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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA GEODIREITO E A GEOGRAFIA DE ESTADO NO BRASIL Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches Tese de Doutorado Brasília-DF

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

GEODIREITO E A GEOGRAFIA DE ESTADO NO BRASIL

Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches

Tese de Doutorado

Brasília-DF

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM PRODUÇÃO DO ESPAÇO E

TERRITÓRIO NACIONAL

GEODIREITO E A GEOGRAFIA DE ESTADO NO BRASIL

Discente:

Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches

Orientador:

Prof. Dr. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos

Tese de Doutorado

Brasília-DF: 18 de dezembro de 2014

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i

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

GEODIREITO E A GEOGRAFIA DE ESTADO NO BRASIL

Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches

Tese de Doutorado submetida ao Departamento de Geografia da Universidade de Brasília,

como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Grau de Doutor em Geografia,

área de concentração Produção do Espaço e Território Nacional.

Aprovado por:

Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, Doutor (Universidade de Brasília)

Orientador

Marilia Luiza Peluso, Doutora (Universidade de Brasília)

Examinadora Interna

José Geraldo de Sousa Júnior, Doutor (Universidade de Brasília)

Examinador Interno

Ricardo Mendes Antas Júnior, Doutor (Universidade de São Paulo)

Examinador Externo

Alcindo José de Sá, Doutor (Universidade Federal de Pernambuco)

Examinador Externo

Brasília-DF, 18 de dezembro de 2014.

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UGEDA SANCHES, LUIZ ANTONIO MANO

Geodireito e a Geografia de Estado no Brasil, 424 p., (UnB-PPGGEA, Doutor,

Produção do Espaço e Território Nacional, 2014).

Tese de Doutorado - Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em

Geografia.

1. Geodireito 2. Geografia de Estado

3. Teoria Tridimensional da

Geografia

5. Tríade fato-valor-técnica

4. Direito Administrativo

Geográfico

6. Infraestrutura geográfica

I. UnB-PPGGEA

II. Ciga/UnB

O autor reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta tese de doutorado

pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do autor.

______________________________

Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches

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A Milton Santos e Miguel Reale, pela simetria científica.

A Rui Barbosa e Teixeira de Freitas, pela simetria política.

À Brasília, cidade simétrica.

A meus pais, minha origem simétrica.

À Karine, minha simetria.

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Agradecimentos

Ao Homem, à Madre, ao Painho, à Karine e ao Matheus.

Ao Prof. Dr. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, orientador das horas difíceis,

que com incisiva técnica cartográfica e com largo sorriso acreditou no projeto e tornou

esta construção viável. Aos Profs. Drs. Alcindo José de Sá, José Geraldo de Souza Jr.,

Ricardo Mendes Antas Jr. e Marília Luiza Peluso pelas oportunas edificações fomentadas

na qualificação, agregando sua visão epistemológica tanto na Geografia quanto no

Direito.

Ao CIGA-UnB, que me aproximou da cartografia e demonstrou na prática

sua importância enquanto técnica geográfica.

Ao deputado Arnaldo Jardim, que possibilitou testar na prática o Geodireito,

submetendo seus fundamentos ao crivo da sociedade, fato que decisivamente fortaleceu

e aprimorou a construção que ora se apresenta.

Ao Instituto Geodireito, berço das discussões que ora recebem um método

compatível com seu desafio.

Às bibliotecas do Senado Federal do Brasil, e da Universidade de Coimbra,

em Portugal, que me permitiram ter acesso a obras do século XIX, sem as quais

dificilmente seria possível obter alguns raciocínios que foram chave na construção da

presente teoria.

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“Não há solução perfeita num universo

imperfeito - ou os homens continuam a

sacrificar a organização da sociedade à busca

de um ideal impossível, ou aceitam, no

interesse de todos, o jogo de uma autoridade

sem a qual não há construção política viável.”

Paul Claval

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RESUMO

A Geografia e o Direito são ciências representantes de tradições milenares,

mas caminham de forma paralela desde a Modernidade, com raros pontos de diálogo, por

força de suas opções científicas. O objetivo deste trabalho é aproximar estes ramos para

o enfrentamento científico do século XXI, de forma a articulá-las epistemologicamente,

identificar formas de interação, propor o Geodireito enquanto método interdisciplinar de

mediação e analisar a Geografia de Estado do Brasil enquanto estudo de caso.

Com método fenomenológico, e estudo de caso realizado de forma

historiográfica, será adotado o critério social como ponto de partida para a identificação

do critério espacial e do critério coercitivo, que pressupõem relações fenomenológicas,

axiológicas e instrumentais. Este método possibilitou uma interação com o território, o

lugar e a região em diversas escalas, produzindo governanças distintas. Foi empregada a

simetria como mecanismo de aproximação, de dimensionamento e de interação entre a

Geografia e o Direito, de maneira a promover uma releitura da Teoria dos Sistemas de

Milton Santos e da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale que, mediante

propostas de convergência, comporão duas faces de um sistema único. Para tanto foi

realizada uma contextualização filosófica e sociológica, com base no pensamento

geográfico na qualidade de grande sistema historicizado.

O Geodireito, enquanto resultante deste entrelaçamento interdisciplinar,

passa a edificar ramo de estudo com princípios autônomos que possibilita analisar a

Geografia de Estado do Brasil desde a Proclamação da Independência. Desta maneira,

viabilizou-se uma releitura do critério espacial do Estado e do critério coercitivo do

espaço, com base em 700 normas e em seis frentes de estudo interdisciplinar, situação

que renova a forma como a Geografia se relaciona com o Estado e como o Direito se

relaciona com o espaço. Os principais resultados serão identificar mecanismos para se

cumprir a Constituição Federal de 1988, destacar a importância de uma Geografia oficial,

identificar a infraestrutura geográfica enquanto bem de domínio público, identificar

meios de reestruturar a profissão geográfica, sugerir o aprimoramento do ensino da

Geografia e propor uma renovada política pública geográfica no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Geodireito; Geografia de Estado; Princípio da Simetria; Teoria

Tridimensional da Geografia; Tríade fato-valor-técnica; Fenomenologia; Axiologia,

Instrumentalismo; Escala de governança; Infraestrutura geográfica.

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ABSTRACT

Geography and Law are sciences representing millennial traditions, however

they have trailed parallel paths since the Modern Age, with rare converging points for

their scientific options. The objective of this paper is to bring these paths closer for a

scientific approach of the XXI Century, so as to articulate them epistemologically, to

identify forms of interaction, to propose Law and Geography as an interdisciplinary

method for mediation and to analyze the State Geography of Brazil as case study.

Adopting a phenomenological method and a historiographical study, social

criterion shall be adopted as the starting point for identifying spatial and coercive criteria,

which assume phenomenological, axiological and instrumental relationships. Such

method allowed an interaction with territory, location and region in various scales,

producing distinct governances. The mechanism adopted for approaching, dimensioning

and interaction between Geography and Law was symmetry, so as to promote a new

reading of Milton Santos’s Theory of Systems and of Miguel Reale’s Three-Dimensional

Theory of Law which, within convergence proposals, will comprise two sides of a single

system. In this regard, a philosophical and sociological contextualization was made, based

on geographical thinking in the form of great historicized system.

Law and Geography, as a resultant of such interdisciplinary entanglement,

comes to edify a study branch with its own principles, which allows analyzing the State

Geography of Brazil since the Proclamation of the Independence. A new approach has

thus been enabled for the spatial criterion of the State and for the coercive criterion of

Space, based on 700 norms and six interdisciplinary study fronts, a situation that

renovates the way Geography relates to the State and the way the Law relates to the Space.

The main result will be the identification of mechanisms to comply with the 1988 Federal

Constitution, regarding the creation of an official Geography, restructuring the

geographic profession, improving the way Geography is taught, and proposing a

renovated public policy for Geography in Brazil.

KEYWORDS: Law and Geography; State Geography; Principle of Symmetry; Three-

Dimensional Theory of Geography; Fact-Value-Technique Triad; Phenomenology;

Axiology, Instrumentalism; Scale of Governance; Geographic Infrastructure.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Decomposição de quadra poliesportiva................................................ 6

FIGURA 2 - Contextualização da relação Sociedade-Natureza para as Ciências

Sociais.................................................................................................

11

FIGURA 3 - Relação entre Filosofia e Ciências Sociais, por meio da

Fenomenologia....................................................................................

14

FIGURA 4 - Relação entre Filosofia, por meio da fenomenologia, a Geografia e o

Direito.................................................................................................

15

FIGURA 5 - Relação entre Geografia e Direito no plano fenomênico, baseada no

fato social.............................................................................................

30

FIGURA 6 - Relação entre Geografia e Direito no plano axiológico........................ 44

FIGURA 7 - Relação entre Geografia e Direito no plano instrumental.................... 57

FIGURA 8 - Processo axiológico-factual normativo, por Miguel Reale................... 63

FIGURA 9 - Proposta de realinhamento do modelo tridimensional de Miguel

Reale....................................................................................................

65

FIGURA 10 - Aplicação do modelo tridimensional a Geografia................................ 68

FIGURA 11 - Modelo tridimensional com a contextualização da dinâmica

Sociedade-Natureza e a relação vetorial entre fato, valor e técnica na

Geografia............................................................................................

70

FIGURA 12 - Modelo tridimensional com a contextualização da dinâmica

Sociedade-Natureza e a relação vetorial entre fato, valor e técnica no

Direito....................................................................................................

70

FIGURA 13 - Base filosófica e matriz sociológica da interdisciplinaridade entre

Geografia e Direito, pautada na Teoria Tridimensional.........................

73

FIGURA 14 - Interdisciplinaridade estática entre Geografia e Direito pautada na

Teoria Tridimensional...........................................................................

77

FIGURA 15 - Modelo tridimensional interdisciplinar............................................... 77

FIGURA 16 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – valor geográfico................... 79

FIGURA 17 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – valor jurídico..................... 80

FIGURA 18 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – técnica geográfica............. 80

FIGURA 19 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – técnica jurídica................... 81

FIGURA 20 - Relação cognitiva axiológica valor-valor – fato geográfico................... 82

FIGURA 21 - Relação cognitiva axiológica valor-valor – fato jurídico...................... 82

FIGURA 22 - Relação cognitiva axiológica valor-valor – técnica geográfica........... 82

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FIGURA 23 - Relação cognitiva axiológica valor-valor – técnica jurídica................. 83

FIGURA 24 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – fato geográfico....... 83

FIGURA 25 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – fato jurídico............. 83

FIGURA 26 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – valor geográfico..... 84

FIGURA 27 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – valor jurídico........... 84

FIGURA 28 - Relação científica interdisciplinar: a Geografia do Estado................... 94

FIGURA 29 - Relação científica interdisciplinar: a Geografia da Justiça................. 101

FIGURA 30 - Relação científica interdisciplinar: a Geografia da Legalidade............. 110

FIGURA 31 - Relação científica interdisciplinar: o Direito do Espaço........................ 116

FIGURA 32 - Modelo de interdisciplinaridade entre a ciência geográfica e a jurídica,

com base na teoria tributária..................................................................

120

FIGURA 33 - Relação científica interdisciplinar: o Direito Administrativo

Geográfico.............................................................................................

127

FIGURA 34 - Relação científica interdisciplinar: o Direito da infraestrutura

geográfica..............................................................................................

136

FIGURA 35 - Identificação de hipóteses de estudo interdisciplinar entre Geografia e

Direito...............................................................................................

141

FIGURA 36 - Caracterização do fato geojurídico, multiplicado por “n” vezes

(FGDn), com objeto de estudo na escala de governança......................

144

FIGURA 37 - Caracterização do fato geojurídico enquanto dimensão

fenomenológica...................................................................................

144

FIGURA 38 - Caracterização do valor geojurídico, multiplicado por “n” vezes

(VGDn), como objeto de estudo da divisão geojurídica do trabalho...

153

FIGURA 39 - Caracterização do valor geojurídico enquanto dimensão axiológica..... 153

FIGURA 40 - Caracterização da técnica geojurídica, multiplicado por “n” vezes

(VGDn), com objeto de estudo na criação de infraestrutura..................

160

FIGURA 41 - Caracterização da técnica geojurídica enquanto dimensão

instrumental...........................................................................................

160

FIGURA 42 - Identificação das dimensões do Geodireito no modelo interdisciplinar

entre Geografia e Direito.......................................................................

165

FIGURA 43 - Dimensões do Geodireito representadas na base oposta ao eixo

originário...............................................................................................

166

FIGURA 44 - Geodireito sob a ótica da Geografia....................................................... 167

FIGURA 45 - Geodireito sob a ótica do Direito........................................................... 167

FIGURA 46 - Modelo tridimensional aplicado a Geografia na Monarquia.................. 187

FIGURA 47 - Modelo tridimensional aplicado a Geografia na República Velha......... 196

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FIGURA 48 - Modelo tridimensional aplicado a Geografia Federalizada.................... 218

FIGURA 49 - Modelo tridimensional aplicado a Geografia Militarizada.................... 226

FIGURA 50 - Modelo tridimensional aplicado a Geografia Redemocratizada............ 282

FIGURA 51 - Consolidação interdisciplinar entre Geografia e Direito....................... 289

FIGURA 52 - Representação da crise na Fundação IBGE em 2014............................ 293

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - Modelo sobre a distinção entre empírico e normativo, segundo a Lei

de Hume...............................................................................................

12

TABELA 2 - Exemplos de caracterização do fato geográfico e do fato jurídico........ 31

TABELA 3 - Exemplos de caracterização do valor geográfico e do valor jurídico.... 45

TABELA 4 - Exemplos de caracterização da técnica geográfica e da técnica

jurídica..................................................................................................

58

TABELA 5 - Tríade fato geográfico - fato jurídico - valor geográfico.................. 79

TABELA 6 - Tríade fato geográfico - fato jurídico - valor jurídico..................... 80

TABELA 7 - Tríade fato geográfico - fato jurídico – técnica geográfica.............. 80

TABELA 8 - Tríade fato geográfico - fato jurídico – técnica jurídica................... 81

TABELA 9 - Tríade valor geográfico - valor jurídico - fato geográfico.............. 82

TABELA 10 - Tríade valor geográfico - valor jurídico - fato jurídico.................... 82

TABELA 11 - Tríade valor geográfico - valor jurídico – técnica geográfica.......... 82

TABELA 12 - Tríade valor geográfico - valor jurídico – técnica jurídica............... 83

TABELA 13 - Tríade técnica geográfica - técnica jurídica - fato geográfico............ 83

TABELA 14 - Tríade técnica geográfica - técnica jurídica - fato jurídico................. 83

TABELA 15 - Tríade técnica geográfica - técnica jurídica - valor geográfico........... 84

TABELA 16 - Tríade técnica geográfica - técnica jurídica – valor jurídico.............. 84

TABELA 17 - Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica geográfica................ 94

TABELA 18 - Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica geográfica................ 101

TABELA 19 - Tríade fato geográfico - valor geográfico - técnica jurídica................ 110

TABELA 20 - Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica jurídica..................... 116

TABELA 21 - Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica jurídica..................... 127

TABELA 22 - Tríade fato jurídico - valor jurídico - técnica geográfica..................... 136

TABELA 23 - Exemplos de identificação de escalas de governança.......................... 147

TABELA 24 - Exemplos de identificação de divisão geojurídica do trabalho........... 155

TABELA 25 - Exemplos de identificação de produção de infraestrutura como base

do sistema Mapa-Norma...................................................................

161

TABELA 26 - Construção do Geodireito com base tridimensional............................ 164

TABELA 27 - Construção matricial dos princípios do Geodireito............................ 171

TABELA 28 - Sumário exemplificativo de possibilidades interdisciplinares com

base geográfica.....................................................................................

284

TABELA 29 - Síntese das modalidades do Geodireito e suas antíteses..................... 288

TABELA 30 - Comparação da governança da infraestrutura no Brasil...................... 299

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LISTA DE MAPAS

MAPA 1 - Decomposição das competências federativas no Brasil........................ 6

MAPA 2 - Brasil na Constituição de 1824............................................................. 177

MAPA 3 - Brasil em 1872...................................................................................... 184

MAPA 4 - Brasil em 1911..................................................................................... 192

MAPA 5 - Brasil na Constituição de 1934............................................................ 200

MAPA 6 - Exemplo de estudo sobre divisão regional do Brasil, por vários

autores...................................................................................................

211

MAPA 7 - Brasil em 1950...................................................................................... 213

MAPA 8 - Brasil em 1970...................................................................................... 229

MAPA 9 - Brasil em 1991..................................................................................... 259

MAPA 10 - Cartografia oficial do Brasil em 2014................................................... 292

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

a.C. - Antes de Cristo

ABC paulista - Região do Grande ABC, região tradicionalmente industrial do

estado de São Paulo, parte da Região Metropolitana de São Paulo.

AC - Estado do Acre

Acordo TRIPs - Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property

Rights

ADA - Agência de Desenvolvimento da Amazônia

ADENE - Agência de Desenvolvimento do Nordeste

ADT - Agenda de Desenvolvimento Territorial

AEB - Agência Espacial Brasileira

AGU - Advocacia-Geral da União

AL - Estado das Alagoas

AM - Estado do Amazonas

Amazônia Azul - Território marítimo brasileiro corresponde a Zona Econômica

Exclusiva (ZEE) do Brasil, cuja área corresponde a

aproximadamente 3,6 milhões de quilômetros quadrados.

Amazônia legal - Área que engloba nove estados brasileiros (RR, AM, AP, PA, AC,

RO, MT, TO e parte ocidental de MA) pertencentes à bacia

amazônica e a área de ocorrência das vegetações amazônicas.

ANA - Agência Nacional de Águas

ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil

ANATEL - Agência Nacional de Telecomunicações

ANCAR - Agência Nacional de Cartografia e da Informação Geoespacial

ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica

ANP - Agência Nacional do Petróleo (até 2005), sendo Agência Nacional

do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (após 2005)

ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários

ANTT - Agência Nacional de Transportes Terrestres

AP - Estado do Amapá

APA - Área de Proteção Ambiental

APP - Área de Proteção Permanente

ART - Anotação de Responsabilidade Técnica

Art. – Artigo

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BA - Estado da Bahia

BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNDE - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico

BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CAAML - Centro de Adestramento Almirante Marques de Leão

CAR - Cadastro Ambiental Rural

CC - Código Civil

CCEAGRI - Coordenadoria de Câmaras Especializadas de Engenharia de

Agrimensura

CE - Estado do Ceará

CF - Constituição Federal

CGEE - Centro de Gestão e Estudos Estratégicos

Chesf - Companhia Hidro Elétrica do São Francisco

Cide - Contribuição de Intervenção de Domínio Econômico

CIGA/UnB - Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da

Universidade de Brasília

CLA - Centro de Lançamentos de Alcântara

CLT - Consolidação das Leis do Trabalho

CMEABEUSC - Comissão Mista Executora do Acordo Brasil - Estados Unidos sobre

Serviços Cartográficos

CNIR - Cadastro Nacional de Imóveis Rurais

CNPU - Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana

CNUDM - Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar

CNUMAD - Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento

CO2 - Dióxido de Carbono

COCAR - Comissão de Cartografia

Codebras - Coordenação de Desenvolvimento de Brasília

CODERNAT - Comitê Brasileiro do Decênio Internacional para a Redução dos

Desastres Naturais

Codevasf - Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco

COMCARMIL - Comissão de Cartografia Militar

COMDABRA - Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro

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Conama - Conselho Nacional do Meio Ambiente

Concar - Comissão Nacional de Cartografia

Confea - Conselho Federal de Engenharia e Agronomia

CONPDEC - Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil

CPF - Cadastro de Pessoas Físicas

CPRM - Serviço Geológico do Brasil

CREA - Conselho Regional de Engenharia e Agronomia

CSN - Companhia Siderúrgica Nacional

CSU - Programa Nacional de Centros Sociais Urbanos

CTM - Cadastro Territorial Multifinalitário

CVRD - Companhia Vale do Rio Doce

CVSF - Comissão do Vale do São Francisco

CZPE - Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação

DBDG - Diretório Brasileiro de Dados Geoespaciais

DECEA - Departamento de Controle do Espaço Aéreo

DEI - Direito Espacial Internacional

DER - Departamento de Estradas de Rodagem

DF - Distrito Federal

DGE - Diretoria Geral de Estatística

DNAEE - Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica

DNIT - Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes

DNPM - Departamento Nacional de Produção Mineral

DSG - Diretoria de Serviço Geográfico

ECO 92 - Conferência da ONU sobre meio ambiente realizada em 1992, no

Rio de Janeiro

EIA - Estudo de Impacto Ambiental

EIV - Estudo de Impacto de Vizinhança

Eletrobras - Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (retirou o acento em 2009)

Eletronorte - Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A.

EMBRATEL - Empresa Brasileira de Telecomunicações

ePING - Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico

ES - Estado do Espírito Santo

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ESG - Escola Superior de Guerra

EUA - Estados Unidos da América

F1 - Exemplo de fato n°1

F2 - Exemplo de fato n°2

F3 - Exemplo de fato n°3

F4 - Exemplo de fato n°4

FDA - Fundo de Desenvolvimento da Amazônia

FDn - Fato Jurídico multiplicado por “n” vezes

FFLCH/USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo

FGDn - Fato geojurídico multiplicado por “n” vezes

FGn - Fato geográfico multiplicado por “n” vezes

FINAM - Fundo de Investimentos da Amazônia

FINOR - Fundo de Investimentos do Nordeste

FMI - Fundo Monetário Internacional

Fn - Exemplo de Fato multiplicado por “n” vezes

FPM - Fundo de Participação dos Municípios

FT - Referência fato - técnica

Fundação IBGE - Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

FUNRES - Fundo de Recuperação Econômica do Estado do Espírito Santo

FV - Referência fato - valor

GEMUD - Grupo Executivo da Complementação da Mudança de Órgãos da

Administração Federal para Brasília

GEPD - Grupo Executivo de Pesquisas Domiciliares

GO - Estado de Goiás

GPS - Sistema de Posicionamento Global (do inglês Global Positioning

System)

GT - Grupo de Trabalho

GTB - Grupo de Trabalho de Brasília

I1 - Primeira relação interdisciplinar

I2 - Segunda relação interdisciplinar

I3 - Terceira relação interdisciplinar

I4 - Quarta relação interdisciplinar

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I5 - Quinta relação interdisciplinar

I6 - Sexta relação interdisciplinar

IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrária

IGD - Instituto Geodireito

IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INDA - Infraestrutura Nacional de Dados Abertos

INDE - Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais

INE - Instituto Nacional de Estatística

INFRAERO - Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária

INPC - Índice Nacional de Preços ao Consumidor

INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados

IPTU - Imposto Predial Territorial Urbano

ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural

Km - Quilômetro

kW - Quilowatt

LAI - Lei de Acesso a Informação

Leplac - Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira

MA - Estado do Maranhão

Macro-ZEE - Macrozoneamento Ecológico-Econômico

Mar Territorial - Faixa de águas costeiras que alcança 12 milhas náuticas (22 km)

MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário

MG - Estado de Minas Gerais

MJ - Ministério da Justiça

MME - Ministério das Minas e Energia

MP - Medida Provisória

MPOG - Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

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MS - Estado do Mato Grosso do Sul

MT - Estado do Mato Grosso

MW - Megawatt

OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

OEA - Organização dos Estados Americanos

OMC - Organização Mundial do Comércio

ONU - Organização das Nações Unidas

Opep - Organização dos Países Exportadores de Petróleo

PA - Estado do Pará

PAC - Programa de Aceleração do Crescimento

Paeg - Programa de Ação Econômico do Governo

PB - Estado da Paraíba

PDA - Plano de Dados Abertos

PDFF - Programa de Desenvolvimento de Faixa de Fronteira do Ministério

da Integração

PDT/DF - Partido Democrático Trabalhista, seção do Distrito Federal

PE - Estado de Pernambuco

PED - Plano Estratégico de Desenvolvimento

Petrobras - Petróleo Brasileiro S/A (retirou o acento em 1994)

PI - Estado do Piauí

PIB - Produto Interno Bruto

Plano SALTE - Saúde, Alimentação, Transporte e Energia

Planvasf - Plano Diretor para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco

PMCMV - Programa Minha Casa, Minha Vida

PMN - Política Marítima Nacional

Pnad - Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios

PNAE - Programa Nacional de Atividades Espaciais

PNAP - Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas

PND - Programa Nacional de Desburocratização

PND - Plano Nacional de Desenvolvimento

PND - Programa Nacional de Desestatização

PNDR - Política Nacional de Desenvolvimento Regional

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xix

PNGeo - Política Nacional de Geoinformação

PNOT - Política Nacional de Ordenação do Território

PNPDEC - Política Nacional de Proteção e Defesa Civil

PNRA - Plano Nacional de Reforma Agrária

PNRM - Política Nacional para os Recursos do Mar

Polamazônia - Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia

Polígono das secas - Região situada nos Estados de AL, BA, CE, MG, PB, PE, PI, RN e

SE, compreendendo zonas geográficas com distintos índices de

aridez.

POLONORDESTE - Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste

PPA Territorial - Plano Plurianual Territorial

PPS-SP - Partido Popular Socialista, Seção de São Paulo

PR - Estado do Paraná

Projeto Jari - Fábrica de celulose existente às margens do Rio Jari, que teve início

em 1967.

PROTERRA - Programa de Integração Nacional-PIN e do Programa de

Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e

do Nordeste.

PT-AC - Partido dos Trabalhadores, seção do Acre

PUC/SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

QAO - Quadro Auxiliar de Oficial

QOA - Quadro de Oficiais de Administração

QOE - Quadro de Oficiais Especialistas

RADAMBRASIL - Projeto realizado entre 1970 e 1985, destinado a produzir imagens

aéreas de radar, captadas por avião, de diversas regiões do país.

RAIS - Relação Anual de Informações Sociais

RIDE - Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno

RIMA - Relatório de Impacto Ambiental

RJ - Estado do Rio de Janeiro

RL - Reserva Legal

RN - Estado do Rio Grande do Norte

RO - Estado de Rondônia

RR - Estado de Roraima

RS - Estado do Rio Grande do Sul

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xx

SC - Estado de Santa Catarina

SCN - Sistema Cartográfico Nacional

SDR - Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional

SE - Estado do Sergipe

SGB - Sistema Geodésico Brasileiro

SGE - Serviço Geográfico do Exército

SICAR - Sistema de Cadastro Ambiental Rural

Siconv - Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse

SIG - Sistema de Informações Geográficas

SIG Brasil - Sistema de Informações Geográficas do Brasil

SIMARN - Sistema de Monitoramento Ambiental e dos Recursos Naturais por

Satélite

SINAMOB - Sistema Nacional de Mobilização

SINDAE - Sistema Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais

SINDEC - Sistema Nacional de Defesa Civil

SINIMA - Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente

SINPDEC - Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil

SINPESQ - Sistema Nacional de Informações da Pesca e Aquicultura

Sinter - Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais

SLTI/MP - Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do MPOG

S N - Relação Sociedade-Natureza

SP - Estado de São Paulo

SPVEA - Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia

STF - Supremo Tribunal Federal

STJ - Superior Tribunal de Justiça

Sudam - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia

Sudeco - Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste

Sudene - Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste

Sudesul - Superintendência do Desenvolvimento da Fronteira Sudoeste

SUFRAMA - Superintendência da Zona Franca de Manaus

Suvale - Superintendência do Vale do São Francisco

T1 - Exemplo de técnica n°1

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xxi

T2 - Exemplo de técnica n°2

T3 - Exemplo de técnica n°3

T4 - Exemplo de técnica n°4

TDn - Técnica jurídica multiplicada por “n” vezes

TGDn - Técnica geojurídica multiplicada por “n” vezes

TGn - Técnica geográfica multiplicada por “n” vezes

Tn - Exemplo de técnica multiplicado por “n” vezes

TNP - Tratado de Não-Proliferação

TO - Estado do Tocantins

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina

UnB - Universidade de Brasília

UNFCCC - Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima

UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas

UNITAU - Universidade de Taubaté

URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

URV - Unidade Real de Valor

USP - Universidade de São Paulo

V1 - Exemplo de valor n°1

V2 - Exemplo de valor n°2

V3 - Exemplo de valor n°3

V4 - Exemplo de valor n°4

Valec - Engenharia, Construções e Ferrovias S.A.

VDn - Valor jurídico multiplicado por “n” vezes

VGDn - Valor geojurídico multiplicado por “n” vezes

VGn - Valor geográfico multiplicado por “n” vezes

Vn - Exemplo de valor multiplicado por “n” vezes

VT - Referência valor - técnica

ZEE-Brasil - Zoneamento Ecológico - Econômico

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xxii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 1

1. POR UMA ARTICULAÇÃO EPISTEMOLÓGICA ENTRE

GEOGRAFIA E DIREITO PELO PRINCÍPIO DA SIMETRIA:

FATO, VALOR E TÉCNICA..................................................................

5

1.1. O fato e sua repercussão geográfica e jurídica........................................... 11

1.2. O valor e sua repercussão geográfica e jurídica ........................................ 32

1.3. A técnica e sua repercussão geográfica e jurídica...................................... 46

1.4. A construção da Teoria Tridimensional da Geografia enquanto elemento

de articulação epistemológica com o Direito.............................................

59

2. RELAÇÕES INTERDISCIPLINARES ENTRE GEOGRAFIA E

DIREITO...................................................................................................

75

2.1. Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica geográfica: a Geografia

de Estado....................................................................................................

85

2.2. Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica geográfica:

a Geografia da Justiça ...............................................................................

95

2.3. Tríade fato geográfico - valor geográfico - técnica jurídica: a Geografia

da Legalidade.............................................................................................

102

2.4. Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica jurídica: o Direito do

Espaço ........................................................................................................

111

2.5. Tríade fato jurídico - valor jurídico - técnica geográfica: o Direito

Administrativo Geográfico........................................................................

117

2.6. Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica jurídica: o Direito da

infraestrutura geográfica.............................................................................

127

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xxiii

3. POR UM RAMO AUTÔNOMO NA GEOGRAFIA DE ESTUDO DO

DIREITO: O GEODIREITO..................................................................

138

3.1. Fato geojurídico: O sistema Espaço-Estado.............................................. 142

3.2. Valor geojurídico: O sistema Solidariedade-Justiça................................ 148

3.3. Técnica geojurídica: O sistema Mapa-Norma............................................ 156

3.4. A construção do Geodireito enquanto resultante interdisciplinar entre

Geografia e Direito.....................................................................................

163

4. APLICAÇÃO DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO

GEODIREITO À GEOGRAFIA DE ESTADO NO BRASIL..............

172

4.1. A Geografia na Monarquia: a centralização monárquica, o IHGB e o DGE

(1822 - 1889).............................................................................................

175

4.2. A Geografia na República Velha: o Serviço Geográfico e a

descentralização republicana (1889 - 1930)...............................................

188

4.3. A Geografia federalizada: O IBGE autárquico, a região enquanto técnica

geográfica de Estado e a construção de Brasília (1930 - 1964)...................

197

4.4. A Geografia militarizada: A Fundação IBGE, o CMEABEUSC e o

COCAR (1964 - 1988)...............................................................................

219

4.5. A Geografia redemocratizada: O território, a região, o lugar e o global no

Direito brasileiro (desde 1988)...................................................................

240

4.6. Por uma nova Geografia de Estado no Brasil: Crítica axiológica.............. 283

CONCLUSÃO............................................................................................................. 311

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 317

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1

INTRODUÇÃO

Como um pêndulo que vive o destino de oscilar entre seus extremos simétricos, a

proposta do presente trabalho é a terceira etapa de uma construção interdisciplinar iniciada na

Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em que o

trabalho “Geodireito e Divisão do Trabalho - Impactos urbanísticos e ambientais” buscou

demonstrar como o Direito atua nos conceitos geográficos, momento em que obtive o título de

Mestre em Direito em setembro de 2009. Naquele momento houve a argumentação de que o

Direito Administrativo1 vem se defrontando com paradigmas que colocam em questionamento a

unicidade de seu sistema metodológico. O desenvolvimento econômico, tecnológico, urbano e

ambiental, que culminaram no atual estágio de integração humana e entre os povos, comumente

denominada globalização, acabou por tornar o Direito Administrativo rico em percepções e de

complexa organicidade.

Ato contínuo, em 2010 foi cumprida a segunda etapa deste desenvolvimento, com a

defesa da dissertação de mestrado em Geografia “O Geodireito enquanto identificação do

conteúdo da Geografia no Direito. O caso do setor de energia como propulsor de desenvolvimento

regional”, igualmente pela PUC/SP. Neste trabalho, foi discorrido sobre como a

interdisciplinaridade entre Geografia e Direito passou a ser discutida no estudo do espaço. Foi

dissertado sobre as manifestações deste estudo na América do Norte, Latina e na Europa, bem

como a identificação da dimensão geográfica da norma, por meio dos elementos do território e da

escala, em suas dimensões internacional, nacional, regional e local. Havia uma preocupação em se

caracterizar elementos geográficos para combater as desigualdades sociais e regionais, como

previsto na Constituição Federal e nas normas em geral, propondo novas formas epistemológicas

para o estudo da Geografia.

Após generosa banca, em que os professores Drs. Ruy Moreira e Douglas Santos, sob

a orientação do prof. Dr. Gustavo Coelho-Souza, puderam relatar suas impressões, restou a

sensação de que o caminho dissertado era válido, mas merecia um estruturado aprofundamento

epistemológico e metodológico, de forma a identificar um sistema que pudesse refletir uma regra

geral de funcionamento desta interdisciplinaridade. Afinal, o corte epistemológico preponderante

da Geografia e do Direito não favorece o diálogo. A Geografia, dividida entre natural e humana,

com forte viés crítico, e o Direito, segregado entre público e privado, com estruturada tendência

positivista e dogmática, possibilitam formas de contato casuísticos e pontuais, sem um senso de

sistema.

1 A expressão “Direito Administrativo”, quando mencionada no presente trabalho, se referirá ao ramo do Direito que

aborda a Administração Pública.

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2

Este cenário sugere a necessidade de retirar estas epistemologias de suas zonas de

conforto, de maneira a impor uma desconstrução para que se possa edificar uma renovada proposta

científica interdisciplinar para centrar esforços no que une a Geografia e o Direito: a busca pela

mediação dos interesses projetados no espaço. Para tanto, se iniciaram as atividades que

culminaram no presente trabalho junto a Universidade de Brasília (UnB) e ao Centro de

Cartografia Aplicada e Informação Geográfica (CIGA-UnB), bases de conhecimento que

repousam ao lado do lugar de onde irradiam as legislações nacionais, servindo de fonte de

inspiração para a construção metodológica abaixo descrita. Contribuíram igualmente para o

presente desenvolvimento a produção do livro “Curso de Direito da Energia” em 2011, que

encontrou grande material no estudo de caso promovido na dissertação de mestrado em Geografia;

a produção da minuta e da justificativa do Projeto de Lei n° 5.067/2013, referente à criação do

Código Cartográfico Nacional e da Agência Nacional de Cartografia e da Informação Geoespacial

(Ancar), de autoria do deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP); a manutenção das atividades

do Instituto Geodireito (IGD), que tenho a honra de presidir; bem como as atividades realizadas

nos setores aeronáutico e rodoviário após as concessões de 2012.

No presente esforço, orientado pelo método fenomenológico, sendo que o estudo de

caso funda-se na historiografia, haverá a perene interferência do instituto da simetria, advinda

principalmente da Física Quântica e da escola antropológica de Edimburgo que, nas palavras de

Bruno Latour, questiona a própria existência da Modernidade na busca de uma pureza científica

absoluta, e a posiciona enquanto referencial teórico imprescindível para o desenvolvimento

científico. Para o estabelecimento da simetria, considerando que a Geografia e o Direito têm

morfologias e repercussões distintas na sociedade, buscar-se-á o mínimo múltiplo comum entre

estas ciências, caracterizando-o como o menor inteiro positivo destas disciplinas. Sem invalidar

outras construções de geógrafos e juristas que tracem outras perspectivas de suas respectivas

ciências, este mínimo múltiplo comum será denominado Geodireito.

Logo, não se trata de buscar um mecanismo pós-moderno para fortalecer as ciências

modernas, mas promover ciência com base em dados postos, sistemas de referências, sejam

geográficos, sejam jurídicos. Este raciocínio é análogo ao que Boaventura de Souza Santos realiza

ao descrever o mapa enquanto referência da realidade, que a reflete mas não a substitui. O mesmo

ocorre com as normas, que representam uma determinada sociedade, mas não correspondem à

própria sociedade.

Esta é uma discussão que necessita ser colocada sob a perspectiva da escala. As retas

são referências pois, em última análise, sob escala pequena, são curvas. Elas têm desvios, por mais

imperceptíveis ao olho nu que sejam. Mas admitimos que elas são retas para efeitos didáticos, pois

assim elas se assemelham quando analisadas em escala grande. O mesmo se sucede com a

Modernidade, que por mais pura que aparente sua construção científica em escala grande, ela está

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3

dotada de “impurezas” na escala pequena, que no limite comprometem sua proposta inicial, mas

não a invalidam para efeitos didáticos e referenciais.

Neste cenário, a presente obra trabalha com esta característica referencial da

Modernidade que, dependendo da visão axiológica a ser adotada, pode considerar seus

desmembramentos como Pós-Modernidade ou como continuidade do modelo referencial da

Modernidade. É uma busca de simetria, de diálogo e de mediação entre a escala grande da

Modernidade, do sistema, da pureza científica, do topo da pirâmide positivista de Kelsen; e a escala

pequena da pós-Modernidade, do cotidiano, das impurezas, do pragmatismo, da base da pirâmide

de Kelsen. Independentemente de ser moderno ou pós-moderno, ou se a leitura da obra será

produzida com um vetor de cima para baixo – ou de baixo para cima – da pirâmide positivista

kelseniana, o modelo que se pretende constituir receberá a nomenclatura da Física Quântica que

Latour emprega na Antropologia: o “quase-objeto”.

Haverá o resgate de uma ampla tradição de juristas que refletiram a Geografia no Brasil

e na lusofonia. Autores como Pontes de Miranda, Mário Augusto Teixeira de Freitas, José Nicolau

dos Santos, Boaventura de Souza Santos e Paulo de Barros Carvalho, cada qual ao seu modo,

pensaram o espaço em função do Direito e se utilizaram de conceitos e pensamentos geográficos

para edificarem suas teses jurídicas. No sentido oposto, geógrafos debruçam-se na principal

construção jurídica presente na sociedade - o Estado de Direito -, para desenvolverem seu papel

crítico no desenvolvimento da Geografia, do determinismo ratzeliano do início do século XX até

as iniciativas geojurídicas observadas no século XXI, passando pela escola alemã da

Geojurisprudência da década de 1920, da tradição francesa do Géographie du Droit, do Law &

Geography anglo-saxão e do Geodiritto italiano, que emergiram à partir dos anos 1950 e se

acentuaram na década de 1980, tanto na corrente crítica geográfica quanto no realismo jurídico.

Neste aspecto, cabe uma especial centralidade ao bacharel em Direito Milton Santos, que produziu

extensa obra que se tornou determinante para o desenvolvimento do pensamento geográfico, a

ponto de ser nomeado patrono da Geografia no Brasil.

A base do método para estabelecer a interdisciplinaridade entre as duas ciências será

calcada em um jurista brasileiro, mas que será compreendido por meio de sua função filosófica.

Mentor do Tratado de Itaipu de 1973 e do Código Civil de 2002, pode-se dizer que a maior obra

científica de Miguel Reale foi a concepção e o desenvolvimento da Teoria Tridimensional do

Direito. Mais do que uma tese jurídica, o nível de abstração de Reale possibilita, como ele mesmo

admitiu, aplicar a Teoria Tridimensional a qualquer ramo científico, de forma a se tornar a base

para a edificação epistemológica interdisciplinar que aqui pretendemos realizar e avançar, por

meio de uma releitura crítica de sua proposta. Com o especial foco em Milton Santos e em Miguel

Reale, mais do que se surpreender pelo alto nível de complementariedade de seus discursos,

refletem a exata distância que a interdisciplinaridade entre Geografia e Direito enfrentou na

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segunda metade do século XX, haja vista serem intelectuais brasileiros contemporâneos de

rarefeito relacionamento entre si.

Em que pese a densa referência jurídica, o presente trabalho deve ser compreendido

como geográfico, uma vez que propõe a construção de um método para a Geografia, denominado

Tridimensional, que no limite viabiliza o Geodireito enquanto ramo autônomo de estudo. Mas esta

centralidade na Geografia não torna o trabalho inválido aos juristas. Pelo contrário, houve uma

tentativa em tornar a linguagem da obra acessível aos profissionais de ambas as ciências, em que

pese doutrinadores de uma área serem comumente desconhecidos da outra. E este esforço para

construir a presente interdisciplinaridade por meio de um método e linguagem comum, com base

em uma tríade, tornou possível identificar uma Geografia com sólida organicidade, pronta para o

diálogo aberto com qualquer ramo científico, situação diametralmente oposta à imiscibilidade do

excepcionalismo destacado por Schaefer.

Assim, se é verdade que as relações espaciais e coercitivas do Estado necessitam ser

mediadas, o presente trabalho promove quatro ações, que estão divididos em capítulos: (i) articula

epistemologicamente a Geografia e o Direito, por meio da simetria, utilizando da tríade fato-valor-

técnica como elementos comuns para os ramos científicos e demonstrando a pré-existência da

tridimensionalidade na história do pensamento geográfico; (ii) identifica formas interdisciplinares

entre Geografia e Direito, segregando aqueles cognitivos dos que merecem um maior destaque por

fundar uma tridimensionalidade científica, respeitada a opção tridimensional e com mecanismos

de referenciabilidade; (iii) constrói o Geodireito como resultante desta interdisciplinaridade,

sugerindo objetivos e princípios próprios para este modelo; e (iv) aplica o Geodireito na Geografia

de Estado do Brasil, propondo mecanismos de aprimoramento, proporcionando uma visão crítica

do cenário atual com base no modelo geojurídico a ser proposto.

É um esforço interdisciplinar que produz uma espécie de mandala, pela exposição

plástica e visual do retorno ao mínimo múltiplo comum pela delimitação de um espaço. Em outras

palavras, é uma inferência que busca uma articulação entre Geografia e Direito que possibilita

identificar elementos que constituam a política pública geográfica no Brasil por meio de seu

mínimo múltiplo comum estabelecido pela simetria, o Geodireito.

Considerando que a aludida interdisciplinaridade, secular, jaz nas entrelinhas dos

mapas e das normas enquanto técnicas, analisar a Geografia de Estado no Brasil por meio do

Geodireito possibilitou edificar uma forma de mediação entre a Geografia e o Direito, realocando

a compreensão do critério espacial das políticas públicas a novos patamares, de maneira a

promover e resgatar a centralidade deste discurso ante as potencialidades tecnológicas e sociais do

século XXI e sugerir políticas públicas geográficas condizentes com a proporção deste desafio.

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5

1. POR UMA ARTICULAÇÃO EPISTEMOLÓGICA ENTRE GEOGRAFIA E

DIREITO PELO PRINCÍPIO DA SIMETRIA: FATO, VALOR E TÉCNICA

Imagine-se uma quadra poliesportiva presente em clube, condomínio ou praça no

Brasil. Neste espaço estão sobrepostas linhas que delimitam as regras do jogo de futebol de salão,

basquete e vôlei. Há uma trave e um cesto em cada uma das duas extremidades da quadra, bem

como a rede de vôlei ao centro. Coloquem-se os atletas para jogar todos os esportes que tem as

respectivas linhas projetadas no chão ao mesmo tempo, com seus uniformes, suas bolas, suas

regras e torcidas. Tudo isso submetido aos respectivos árbitros, cada qual com competências

distintas.

O resultado de tal catarse seria, no mínimo, curioso. Cada um dos esportistas tentaria

fazer prevalecer seu esporte em detrimento dos demais, valorizar seus respectivos esportes pela

alta especialidade de suas regras ou pelo simples uso da força, trombariam em quadra, trocariam

as bolas, haveria mistura de regras, de cores dos uniformes. E os resultados seriam altamente

previsíveis: jogadores contundidos, erros nas contagens de pontos, aumento da possibilidade de

ocorrência de jogadas irregulares, enfim, a total inviabilidade da prática concomitante dos esportes

em um mesmo espaço.

O exemplo dessa parábola mal alinhavada, se transportado para o território brasileiro,

ainda seria simples. Isso porque o Brasil, este enorme espaço de conflitos de interesses, tem

inúmeros recortes em seu território (superfície, subterrâneo, marítimo, aéreo e espacial), que

podem se dividir em geográficos (internacional, nacional, regional e local) e jurídicos (União,

estados, Distrito Federal e municípios). É o que Santos, B. (1988, p. 164) chama de interlegalidade,

que resulta em um processo dinâmico em que os espaços jurídicos não são sincrônicos, produzindo

misturas de códigos de escalas, de projeção e de simbolização, que resulta em relações desiguais

e instáveis. É como viver em uma quadra poliesportiva com uma União, 26 estados, um Distrito

Federal e 5.570 municípios legislando concomitantemente, de maneira que a vida sócio jurídica é

constituída pela intersecção de diferentes linhas de fronteira, sendo que, sem a existência de uma

regra geral, o respeito a uma corresponde à transgressão das demais.

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FIGURA 1 – Decomposição de quadra poliesportiva

Fonte: CIGA/UnB

MAPA 1 – Decomposição das competências federativas no Brasil

Fonte: CIGA/UnB

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O problema filosófico, sociológico, político e metodológico que se coloca é qual seria

a forma, ou as formas, de exercício do poder para a manifestação do interesse social juridicamente

instituído perante uma determinada área. Ou quando estes interesses sociais forem múltiplos, quais

seriam as regras que poderiam ser observadas de forma a buscar a harmonização destas pretensões

projetadas em um espaço previamente delimitado. Em outra metáfora, como um maestro poderia

harmonizar sua orquestra.

Diversos exemplos podem ser destacados para dispor desta quadra poliesportiva no

caso brasileiro. Uma hidrelétrica será construída e seccionará um determinado rio para se apropriar

da queda d´água, de forma a produzir energia elétrica. Há toda a remoção de populações ribeirinhas

para outras localidades, forçadas pelo chamado “interesse nacional”, que enuncia a necessidade de

aumentar a autonomia energética do país. Populações indígenas e quilombolas são afetadas em

seus “interesses locais” com esta remoção, em prol de uma pretensa coletividade. Toda a fauna e

a flora local e regional, que representam um “interesse difuso”, acabam por sofrer intervenção para

comportar esse empreendimento. Servidões administrativas, ou mesmo desapropriações, são

fixadas em propriedade de particulares, que representam “interesses individuais privados”, para

construir linhas de transmissão, de forma a transportar a energia elétrica desta hidrelétrica até a

distribuidora (ou aos consumidores finais). Municípios, com seus “interesses locais públicos”,

passam a receber royalties por terem partes de suas terras alagadas, proprietários são indenizados

por ceder suas propriedades para as servidões (ou mesmo indenizados pelas desapropriações).

Tudo isso em prol de populações que se situam a centenas (ou às vezes milhares) de quilômetros

desta hidrelétrica e que receberão a eletricidade ao apertar o interruptor de suas residências.

Esta pluralidade de interesses, que compromete o conceito de identidade moderna e

Latour (1994, p.11) denomina de “quase-objetos”,2 produz inúmeras pretensões resistidas,

resultando em disputas territoriais em diferentes escalas. Na contraposição entre local e global,

pode-se vislumbrar desde conflitos entre dois proprietários rurais, que não encontram o limite

correto de suas propriedades inscritas em cartório, até países que reclamam porções de território

(terrestre ou de plataforma continental) e acabam por sobrepor a interesses de outras nações. Os

interesses podem também se manifestarem de formas políticas, econômicas, sociais, ambientais,

fiscais, dentre outros.

2 Esta expressão tem origem na Mecânica Quântica, que para superar este paradigma propõe o Princípio da Simetria

entre partículas. Na Literatura, ver SARAMAGO, 1978.

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Na toada desse verdadeiro conjunto de pretensões resistidas, que anseiam por

mediações de diversas espécies, a proposta interdisciplinar entre Geografia e Direito ganha

relevância como forma de legitimar poderes e produzir atos, representados por uma ou mais

autoridades, que representam uma determinada sociedade respaldada em delimitada área. Afinal,

existe uma má construção de nossa vida intelectual, uma vez que atualmente a ciência depende de

níveis de pureza modernista que, mesmo sendo referenciais, as sociedades atuais não comportam

mais (LATOUR, 1994, p. 11), dada a sua crescente complexidade concomitante a pluralidade de

interesses.

A filosofia transcende e suporta, de forma paralela, os conceitos geográficos e

jurídicos. São discursos seculares, muitas vezes antagônicos entre si. Algumas correntes

científicas, como o Direito Positivo e a Geografia Crítica, chegam a ter tamanha discrepância

quando contrapostos que beiram a inaplicabilidade concomitante. Como as percepções geográficas

e jurídicas são muito variadas e nem sempre convergentes, é imprescindível firmar alguns pontos

nos dois ramos científicos que permitam uma articulação epistemológica, de forma a produzir um

discurso de interdisciplinaridade. Esta busca pode ser identificada e descortinada no discurso de

diversos autores, sejam geógrafos, sejam juristas, de forma difusa, com metodologias distintas e

premissas variadas, mas que estabelecem formas de diálogo intercientífico que, em última análise,

contribuem cada qual para solidificar a necessidade do diálogo geográfico-jurídico realizado por

meio de instrumentos, geralmente expedidos por atos de governos.

Mais do que uma possibilidade, este “quase-objeto interdisciplinar” tornou-se uma

necessidade das sociedades contemporâneas, identificada tanto por geógrafos, que buscam

elementos no Direito para fundamentar seus estudos na busca da compreensão de como o espaço

se transforma, quanto pelos juristas, que se debruçam em elementos geográficos para compreender

o critério espacial de seu objeto de estudo. Muitas vezes essas manifestações não se dão pelos

respectivos ramos de estudo, mas pelos instrumentos utilizados por cada um destes ramos como

base para a construção científica. Ou seja, a Geografia estuda a repercussão espacial de elementos

discutidos pela ciência jurídica e o Direito dispõe das técnicas geográficas como instrumentos para

o alcance de seus objetivos científicos.

Neste esforço cognitivo, a norma, enquanto objeto de estudo do Direito, tem sido um

poderoso instrumento de referência para o geógrafo. Por representar uma técnica de interpretar a

sociedade, mediante um procedimento pré-estabelecido por instrumentos de legitimidade, esta

prerrogativa possibilita o desenvolvimento de relevantes paradigmas de estudo, tais como: (i) o

que está na norma e o que não está na norma; (ii) o que está na norma e é cumprido e o que está

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na norma e é descumprido; ou (iii) o que tenho que fazer, não fazer ou deixar de fazer. Tais dilemas,

de alta complexidade, têm sido enfrentados por juristas de diversas gerações ao longo dos séculos.

E a grande maioria sem a devida compreensão das peculiaridades epistemológicas do

espaço, de região e de território, temas exaustivamente debatidos pelas diferentes correntes do

pensamento geográfico. Da mesma forma, os instrumentos cartográficos, estatísticos e de

informação geoespacial, elementos básicos de instrução e de desenvolvimento da Geografia, estão

presentes em um conjunto de normas na história do ordenamento jurídico brasileiro que, se

analisadas em apartado da devida perspectiva geográfica, perdem sentido e eficácia jurídica.

Ao mesmo tempo em que se pode identificar iniciativas de busca de conhecimentos

alheios a cada um dos ramos científicos, são escassos os esforços em que tenha havido uma

preocupação conceitual no sentido de se obter uma interdisciplinaridade material. Existe um

método de interdisciplinaridade que possa viabilizar um diálogo entre Geografia e o Direito de

forma estruturada?

Resta aqui fundamental o papel do princípio da simetria como norteador para se

estabelecer uma interdisciplinaridade epistêmica, uma vez que Geografia e Direito interagem

concomitantemente para a produção da realidade. Somente por meio de uma articulação dos dois

ramos científicos em patamares epistemologicamente comuns é que será possível proporcionar

uma interdisciplinaridade factível e concreta.

Ao seu modo, Bloor (2009) propôs o princípio da simetria entre o verdadeiro e o falso,

sendo que ambos necessitam ser explicados da mesma forma, no esforço de se definir o

conhecimento enquanto crença compartilhada e, por conseguinte, passível de análise pela

sociologia. Trata-se de realizar uma abordagem durkheimiana à ciência, ao propor uma visão

bipartida do universo, entre o conhecido e o conhecível, em duas classes que abarcam tudo o que

existe, mas que se excluem mutuamente de modo radical.

O desafio e o pressuposto de se estudar temas que a primeira vista parecem antagônicos

são análogos ao que levou Latour a elaborar sua Antropologia Simétrica e identificar um amplo

paralelismo entre as obras de Hobbes e Boyle, de forma a estabelecer o que ele passa a chamar de

princípio da simetria entre a sociedade e a natureza, ao atribuir a ciência a representação dos não-

humanos, sendo proibida qualquer possibilidade de apelo à ciência política, situação esta que

produz um efeito reverso.

A escolha de tratar ao mesmo tempo de Hobbes e Boyle tem algo de genial, uma vez que

o novo princípio de simetria, destinado a explicar ao mesmo tempo a natureza e a

sociedade (ver abaixo) nos é imposto pela primeira vez nos estudos sobre a ciência através

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de duas grandes figuras do início da era moderna. Hobbes e seus seguidores criaram os

principais recursos de que dispomos para falar do poder - representação, soberano,

contrato, propriedade, cidadãos -, enquanto que Boyle e seus seguidores elaboraram um

dos repertórios mais importantes para falar da natureza - experiência, fato, testemunho,

colegas. O que nós ainda não sabíamos, é que se tratava de uma dupla invenção.

(LATOUR, Ibid., p. 30)

Latour (ibid., p. 52), ao sugerir a não existência da modernidade, usa a Constituição

moderna como um fato, de forma a estudar as binaridades dela, de maneira a propor um método

de análise. Seria compreender o terreno vasto dos mundos não modernos, sendo uma espécie de

“Império do Centro”,3 tão vasto e desconhecido quanto à China.

Posso agora escolher: ou acredito na Constituição Moderna, ou então estudo tanto o que

ela permite quanto o que proíbe, o que ela revela e o que ela esconde. Ou defendo o

trabalho de purificação - e me torno também um purificador e um vigilante da

Constituição -, ou então estudo tanto o trabalho de mediação quanto o de purificação, mas

então deixo de ser realmente moderno. (LATOUR, ibid., p. 50)

Esta compreensão tem em seu bojo algumas virtudes. Na exploração latouriana do

Império do Centro, deve-se buscar um reducionismo4 comum, de forma a afastar as dificuldades

que cada ramo científico detém quando abordado isoladamente, aproximando os conceitos

científicos da realidade. Logo, estudar o fato, o valor e a técnica enquanto elementos de articulação

epistemológica entre dois ramos científicos, no caso específico entre a Geografia e o Direito,

significa estruturar este reducionismo, o mínimo múltiplo comum, com base na fenomenologia,

no culturalismo e no instrumentalismo, elementos imprescindíveis para estabelecimento do

diálogo interdisciplinar.

Em outras palavras, o princípio da simetria, empregado na Sociologia por Bloor e

Latour, não é uma resultante, mas sim um ponto de partida. Conforme se demonstrará abaixo, esta

premissa principiológica não se prenderá na Sociologia, mas se expandirá na Geografia e no

Direito, com base nas premissas fato, valor e técnica, fundados nos ambientes fenomenológico,

culturalista e instrumental, sendo esta construção necessária para a articulação epistemológica,

possibilitando, assim, o desenvolvimento científico equilibrado e linear. Logo, são as Ciências

Sociais que reaproximam as tradições milenares da Geografia e do Direito, afastadas pelas suas

opções metodológicas modernistas: A Geografia, dividida entre Humana e Natural; o Direito,

dividido entre público e privado.

3 Em mandarim, China. 4 Conceito que advém da Filosofia e consiste em reduzir os fenômenos complexos a seus componentes mais simples,

de maneira a considerar estes fenômenos como mais fundamentais do que sua origem complexa.

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FIGURA 2 - Contextualização da relação Sociedade-Natureza para as Ciências Sociais.

Neste sentido, o conceito de fato, de valor e de técnica, com ampla discussão de suas

repercussões realizada por filósofos e cientistas sociais, sugere a possibilidade de decomposição

da Geografia e do Direito, de forma a desconstruir suas ricas percepções e sugestões de

organicidade em prol de uma edificação científica simétrica que, em última análise, viabilizam

uma construção interdisciplinar equilibrada e sólida.

[É uma simetria epistêmica, que possibilita a] compreensão das diferentes cientificidades

como obviamente distintas em seus processos de construção dos artefatos científicos,

mas, simétricas na condição de postulados de compreensão dos fenômenos a que se

dedicam, já que adotamos aqui a perspectiva de que as diferentes ciências são produtos e

produtoras da dinâmica sociocultural da era da reflexividade (SILVA JUNIOR;

FERREIRA, 2013, p. 425-426).

É o trabalho de mediação em detrimento ao trabalho de purificação modernista. A

mestiçagem5 científica busca o diálogo em detrimento da pureza, encontrando como resultante

uma mediação possível, em que pese imperfeita por ser impura, mas simétrica. Logo, esta simetria

é a busca metodológica de aproximação da perfeição, de criação de um diálogo interdisciplinar,

respeitando o método moderno enquanto mera base referencial desta investigação, fundada na

Geografia e no Direito. Passaremos a analisar como ela se manifesta enquanto fenômeno.

1.1. O fato e sua repercussão geográfica e jurídica

O ser humano ocupa um lugar no espaço.6 Todos os objetos, animados ou inanimados,

até que a ciência prove o contrário, ocupam um lugar no espaço, situação que impõe uma análise

5 Latour se refere a drosófilas, a híbridos, a monstros e a mistos para caracterizar este perfil interdisciplinar. 6 A lógica contemporânea do espaço, que permeia uma variedade expressiva de significados em ramos científicos

distintos, deriva basicamente da obra de Copérnico e de Newton, que impuseram uma completa releitura do lugar do

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deste fenômeno por ciências distintas. O momento passado está morto como tempo, mas não como

espaço, pois o espaço é uma objetivação do passado, que participa da vida atual como forma

indispensável à realização social (SANTOS, M. 2004, p. 14). A premissa maior da Geografia é o

fato de que o ser humano ocupa um lugar no espaço. Mas antes de entender esta lógica

antropocêntrica ou o espaço, como qualificar este fato?

A discussão sobre fato na ciência ganhou grande relevância como premissa científica

após o advento da Modernidade. Para Hume (1978, p. 455 ss.), há de se fazer uma distinção lógica

entre o reino dos fatos (fenomenologia) e o reino dos valores (axiologia), de forma a segregar a

natureza empírica (ser) daquela normativa (dever ser). Logo, o princípio da simetria mantém uma

clara separação entre fatos e valores, de forma a assegurar a objetividade necessária no objetivo

de alcançar a “verdade científica”.

TABELA 1 - Modelo sobre a distinção entre empírico e normativo, segundo a Lei de Hume

EMPIRÍCO NORMATIVO

Ser Deve ser

Fatos Valores

Objetivo Subjetivo

Descritivo Prescritivo

Ciência Arte

Verdadeiro/falso Bom/mau

O fato, enquanto gênero, pode ser dividido entre fatos naturais e fatos sociais. Na

realidade fenomênica, a relação entre sociedade e natureza deve ser compreendida de forma

dialética, respeitado o princípio da simetria. O que fica claro nessa relação é que a natureza se

impõe a sociedade por meio de seus fatos naturais (florestas, rios e faunas),7 que são dinâmicos e

estão em constante mutação, de forma que os fatos sociais (p. ex., cidades, estradas, usinas

hidrelétricas), igualmente dinâmicos, sucumbem aos fatos naturais por não ter como resistir à força

da natureza.

O que perdura, cresce e explode é a tensão entre forças do homem e as forças da natureza.

Um precisa dominar; o outro deve submeter-se. Parece que os dois vencem. A natureza

se impõe ao homem, fazendo-o submeter-se às suas florestas, rios, faunas e mitos. O

homem se impõe à natureza, fazendo-a submeter-se à pólvora e ao trator (LOUREIRO,

2001, p. 395).

Homem no Universo. O espaço, assim como o tempo, ainda foi tomado por objeto de estudo por inúmeros cientistas.

A Física tem estudado o espaço de forma bastante aprofundada. Na formação do conceito de espaço no século passado,

a importância da centralidade da luz e do sentido visual foi evidenciada a partir de Einstein quando, na notória “Teoria

da Relatividade”, descreve que a trajetória da luz no vácuo define a geometria do Universo. 7 Não será tratada da categoria “mito”, uma vez que é um valor atribuído pelo homem.

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O Direito tem uma forma peculiar de tratamento aos fatos da natureza, que demonstra

com clareza sua preponderância em relação aos fatos da sociedade, ao prever em suas fontes a

possibilidade da “Força Maior”8 ou “Fato da natureza” como excludente de responsabilidades

entre os indivíduos, uma vez que a vontade da natureza se sobrepõe a da sociedade, sendo suas

construções, enquanto fatos sociais, hipossuficientes perante o fato natural.9

Assim, um fato da sociedade não se sobrepõe, tampouco altera, um fato da natureza.

Uma ferrovia não impedirá que haja chuva pelo trajeto que ela passa caso a chuva seja um fato da

natureza naquela localidade. Um vilarejo litorâneo ou fluvial não impedirá que a maré ou o rio

siga com suas oscilações. Uma ponte que passa acima de uma junção de placas tectônicas não

impedirá que ocorra terremotos naquela localidade. Mas a chuva pode bloquear a ferrovia, o mar

ou o rio podem inundar e inviabilizar a vida social no vilarejo e um terremoto pode comprometer

a estrutura da ponte.

Importante destacar que não se trata de um enunciado de Buckle (1900), no qual a

natureza influenciaria o desenvolvimento humano dependendo da localidade a ser estudada: caso

fosse em zonas temperadas, a sociedade teria capacidade de agir sobre o meio, mas se fosse em

zonas tropicais, a natureza sucumbiria a sociedade. A sobreposição da natureza a sociedade não é

locacional, espacial, mas fenomenológica. O fato natural sucumbe o fato social, como já é aceito

pelos ordenamentos jurídicos dos Estados contemporâneos, pois em última análise a morte,

enquanto fato natural, sucumbe quaisquer fatos sociais porventura avençados.

O fato, enquanto grande gênero filosófico, dotado da dialética Sociedade-Natureza,

não há que ser analisado exclusivamente sob o enfoque das Ciências Sociais. Todavia, quando

analisado sob um enfoque social, pode ser identificado como o ponto de partida do estudo

geográfico. Afinal, é no nível da sociedade que se situa o bloqueio da reflexão sobre o espaço, uma

vez que a longa carência epistemológica dos geógrafos se justificaria pela sua caracterização em

8 Conceito que se originou na França, como Force Majeure. 9 No Brasil, o Código Civil (Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002) prevê diversos dispositivos sobre força maior,

incluindo mas não se limitando aos seguintes:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não

se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar

ou impedir. [...]

Art. 625. Poderá o empreiteiro suspender a obra:

I - por culpa do dono, ou por motivo de força maior; [...]

Art. 642. O depositário não responde pelos casos de força maior; mas, para que lhe valha a escusa, terá de prová-los.

[...]

Art. 696. No desempenho das suas incumbências o comissário é obrigado a agir com cuidado e diligência, não só para

evitar qualquer prejuízo ao comitente, mas ainda para lhe proporcionar o lucro que razoavelmente se podia esperar do

negócio.

Parágrafo único. Responderá o comissário, salvo motivo de força maior, por qualquer prejuízo que, por ação ou

omissão, ocasionar ao comitente.

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termos totalmente empíricos (LACOSTE, 1981, p. 270). Mas como romper esta barreira empírica

para uma compreensão fenomenológica?

a) Do fato social

As Ciências Sociais, de forma análoga a Filosofia, trata largamente da separação entre

fatos e valores. Há cientistas sociais que pressupõem os fatos sociais enquanto objeto fundamental

de investigação da Sociologia. Esta categoria é comumente utilizada para designar fenômenos

ocorridos no bojo de uma sociedade com repercussão social, que vinculam maneiras de agir, de

pensar e de sentir, exercendo força sobre os indivíduos, de forma a adaptá-los a um conjunto de

regras socialmente dispostas em um determinado lugar.

Fato social é toda maneira de atuar, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo

uma coerção exterior; ou ainda, que é geral na extensão de uma dada sociedade,

conservando uma existência própria, independentemente de suas manifestações

individuais (DURKHEIM, 2007, p. 51).

Compreender os fatos sociais seria identificar o conjunto de signos que expressam

maneiras de agir, de pensar e de sentir fora das consciências individuais, permeando todo um

conjunto de indivíduos, de forma a subtrair à argumentação em busca do que se denomina “verdade

objetiva”. É o objeto de estudo da sociedade, é indagar a fenomenologia o que se deseja estudar,

de maneira a identificar a demanda social a ser estudada e atendida pela sociedade. Mas para isso

o fato social precisa ser inserido na lógica filosófica desta mesma fenomenologia.

FIGURA 3 - Relação entre Filosofia e Ciências Sociais, por meio da Fenomenologia

Da mesma maneira, esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores

ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual

se impõem a ele, quer queira, quer não. Logo, a generalidade, a exterioridade e a coercitividade

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são elementos constitutivos do fato social, que deve ser tratado como uma coisa para que se

constitua um objeto de estudo científico. Esta compreensão sociológica ganhou derivações ao

longo do tempo, principalmente sobre o envolvimento dos fatos nos coletivos e nos objetos, de

forma a ocupar um lugar marginal e sagrado, simultaneamente, sem o qual esta categoria seria

reduzida a meras contingências locais e míseras negociatas (LATOUR, 1994, p. 10).

FIGURA 4 - Relação entre Filosofia, por meio da fenomenologia, a Geografia e o Direito10

Logo, se é nos fatos sociais que está o segredo para desvendar uma epistemologia

geográfica, é possível identificar um fato social como um fato geográfico, ou mesmo perceber,

dentre os fatos, aqueles que são sociais e aqueles que devem ser tratados sob a ótica geográfica?

A resposta seria transitar pelo eixo filosófico da fenomenologia, identificando nele tanto a

Geografia quanto o Direito, pois toda a fenomenologia científica se encontra em um mesmo plano

filosófico.

b) Do fato geográfico

Identificar fatos geográficos dentro desta concepção seria apontar um conjunto de

signos, projetados no espaço, que expressam maneiras de ser, haja vista conservar uma existência

própria, independente de manifestações individuais. Da mesma forma que os fatos sociais, esta

categoria é dotada de uma força imperativa e coercitiva, imposta aos indivíduos e a coletividade.

Logo, as características de generalidade, de exterioridade e de coercitividade que constituem o fato

social também permeiam o conceito de fato geográfico.

10 As cores utilizadas na Geografia e no Direito se referem àquelas adotadas pelas Ciências: azul para representar a

Geografia e vermelho para associar ao Direito. O verde das Ciências Sociais foi empregado para dissociar da Geografia

e do Direito.

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Considerado o fato social como um ponto de partida, o fato geográfico, neste sentido,

seria uma espécie de critério espacial do fato social. Se ao indagar “onde” ao fato social houver

uma delimitação no espaço como resposta, lá residirá o fato geográfico. O princípio adjacente a

esta construção fenomenológica é o do utilitarismo, enquanto elemento mais íntimo da formação

do fato geográfico, nos termos em que “a utilização do espaço e de seus recursos visa a uma

finalidade utilitária: a construção de objetos que sirvam ao homem.” (SANTOS, C., 1986, p.

100). O fato social, enquanto pilar do fato geográfico, obedece ao antropocentrismo proposto desde

o modernismo de Kant para a compreensão do espaço, decorrente de que o espaço é intuição pura,

onde os objetos são determinados.

[...] Somente do ponto de vista humano podemos falar de espaço, de seres extensos, etc.

Se saímos da condição subjetiva, única sob a qual podemos receber a intuição externa,

sendo abalados pelos objetos, a representação do espaço não significa nada (KANT, 2007,

p. 29).

Logo, o fato geográfico deve ter uma preocupação locacional, toponímica, que

identifique espacialmente os fenômenos sociais. O que importa para sua compreensão não seria a

concepção de espaço e de seus recursos em si, mas a maneira como estes elementos são

conscientizados e, em seguida, planificados pela sociedade, de forma a atender aos requisitos de

generalidade, de exterioridade e de coercitividade.

O fato geográfico deve ser compreendido enquanto lugar para caracterizar os objetos

sociais de estudo, de forma a constituir um conjunto determinado de paisagens como um todo

funcional. A descrição, a corografia e a paisagem encontram nos fatos geográficos sua função na

Geografia, uma vez que indicam e orientam o geógrafo na análise espacial. Ou seja, ao identificar

excepcionalismos científicos, poderíamos parafrasear Schaefer (1977, p. 14) ao apontar os fatos

históricos como uma narrativa e os fatos geográficos como uma descrição.

Caracterizado o fato geográfico enquanto fenômeno, com base antropológica e social,

cabe realizar, de forma cronológica, uma breve análise sobre como esta categoria foi concebida e

trabalhada na história do pensamento geográfico. Destaca-se que não há a pretensão de se fazer

uma síntese, tampouco uma avaliação das ricas obras destes autores, que invariavelmente são

muito mais amplas do que as observações abaixo, mas somente identificar nos geógrafos

abordagens que sugiram um possível mínimo múltiplo comum com o Direito.

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A questão da análise dos fatos, naturais ou humanos, que ocorria desde a Antiguidade

enquanto escala fenomenológica,11 começa a ganhar contornos de fatos geográficos, de forma a

fundar a Geografia Moderna. Humboldt (2005), ao considerar a Terra como um todo orgânico,

com seus fenômenos ocorrendo de forma interdependente, cria mecanismos para identificar fatos

geográficos. Por exemplo, ao empregar isotermas, para representar regiões de temperaturas iguais,

nada mais fez do que empregar técnica para identificar e sistematizar fatos geográficos, uma vez

que as regiões de mesma temperatura alcançam a todos os seres vivos (generalidade), independem

da vontade unilateral de um grupo de interesse (exterioridade) e é imposta pela natureza aos seres

vivos (coercitividade).

A visão holística de Humboldt carecia de uma sistematização científica. Ritter (1865)

buscou suprir esta lacuna, por compreender que a Geografia se comportava como um aglomerado

de dados, sem nenhuma base teórica ou científica. Ao buscar uma “Geografía pura”, de forma a

estudar as divisões naturais da superfície da Terra, há um claro esforço em identificar fatos

geográficos que reflitam estas divisões naturais, situação que concebe a Geografia se

desenvolvendo sob a influência decisiva da natureza, ou seja, submete o fato geográfico ao fato

natural. Assim, os fatos da natureza, compreendidos como aqueles, por exemplo, que são o objeto

de estudo da geomorfologia, da climatologia e da oceanografia, passam a ser compreendidos

dentro de uma dinâmica espacial e, por conseguinte, passam a ser interpretados como fatos

geográficos.

Ratzel (1902, 2011) aprofunda o modelo de Ritter, ao agrupar e coordenar os fatos da

Geografia, com o objetivo de compreender as leis que animam o espaço12 e criar uma profícua

base para a interdisciplinaridade.13 Em sua concepção darwiniana, os “fatos da Geografia Física”,

e não mais “fatos naturais”, determinariam os “fatos da Geografia Humana”, que poderia empregar

estas leis no sentido de se adaptarem ao mundo fenomênico. Ou seja, dentro de uma concepção

11 “Os gregos definiam a Geografia em seu sentido etimológico: como descrição da Terra. O objeto da Geografia

seriam os fenômenos da superfície terrestre, mas como esses tinham sua gênese numa escala fenomenológica que

transcendia a epiderme do planeta, suas dimensões eram cósmicas. Essa foi a herança que se arrastou até o século

XIII e foi desenvolvida por Estrabão, Ibn Khaldun, Cluverius, Avenarius, cada qual alargando o seu campo de

conhecimento e esboçando uma primeira sistematização da geografia como ciência.” MOREIRA, 2011, p. 64). 12 A expressão “lei” não deve ser entendida na Geografia Clássica no sentido jurídico, mas no sentido de buscar

identificar regras naturais que pudessem servir como base da ciência geográfica. 13 “algumas das argumentações e reflexões mais importantes que têm sido desenvolvidas por pensadores da

contemporaneidade, particularmente aquelas que insistem na necessidade de ampliação dos diálogos entre os

diversos saberes e pela adoção de posturas transdisciplinares, capazes de considerar e valorar, sem as

hierarquizações discricionárias de praxe, as contribuições cognitivas tanto da ciência como da arte, poderiam

encontrar apoio em muitas das considerações de Ratzel, valendo-se inclusive das inúmeras formulações que

pioneiramente ele desenvolveu.”13 (CARVALHO, M., 2014, p. 149).

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antropogeográfica, aqueles Estados que compreendessem os fatos naturais com maior clareza

teriam vantagem comparativa perante os demais Estados.

Por sua vez, a discussão da relevância do fato geográfico enquanto base para a

edificação de leis geográficas foi renovada no início do século XX na França, por meio da

necessidade de se localizar os fatos e estudá-los sob o enfoque geográfico.

Aqui intervêm plenamente as causas geográficas. É necessário, com efeito, localizar

exatamente os fatos, estudá-los em sua ordem natural, isto é, do mais simples ao mais

complexo, para discernir nestas combinações que chamamos de Estado, a força inicial

que, com o tempo, serviu de centro de atração. (VIDAL DE LA BLACHE, 2014b).

Ao aprofundar a necessidade de localização dos fatos naturais, Brunhes (1962)

realizou grande esforço fenomenológico na Geografia, uma vez que buscou o aprimoramento

científico desta ciência por meio da conceituação de fato geográfico, base do que denomina

Geografia Humana. Em que pese ter produzido um verdadeiro tratado sobre fato geográfico, não

há manifestação explícita sobre o princípio da simetria. Mas isso não significa que Brunhes o

desconsiderasse. Ao definir o “princípio da atividade” como o processo dinâmico espacial, define-

se como espécies dos fatos geográficos os fatos físicos e os fatos humanos, que estão em

transformação perpétua e que devem ser tratados como tais. Neste sentido, o objeto de estudo da

Geografia seria o lugar onde se superpõem e se misturam todos os fatos essenciais e que

circunscreve o teatro de observação dos geógrafos. A construção de Brunhes sobre fato

geográfico,14 bem como o que denomina de princípio da atividade, que traz em seu bojo a simetria

entre natureza e sociedade, reforçam e aprofundam o critério locacional de Vidal de la Blache e

irão se mostrar abaixo como elementos essenciais para o fortalecimento do conceito de fato

geográfico enquanto critério espacial do fato social.

Em esforço de consolidação do pensamento geográfico clássico, Claval (2011, p. 170)

aponta que grande parte dos trabalhos apresentados naquele período podem ser caracterizados pela

construção do fato geográfico, que muitas vezes se confundiu com o fato natural,15 mas que são

14 “Tudo se transforma ao nosso redor; tudo diminui ou cresce. Nada há verdadeiramente imóvel. O nível do mar,

referência universal e tradicional para a medida de altitudes, é uma média puramente fictícia e muitas vezes instável.

As imensas extensões geladas, em sua fixidez aparentemente eterna, deslocam-se, entretanto, por movimentos lentos

e contínuos. Os mais elevados picos serão, mais cedo ou mais tarde, reduzidos às altitudes mais modestas.”

(BRUNHES, 1962, p. 27). 15 “os factos observados não estava ausente na geografia tradicional, mas tinha um lugar modesto nas preocupações

dos autores, que se contentavam em sublinhar a sua distribuição zonal. O século XIX dá um impulso decisivo à

pesquisa das causas e dos mecanismos. Numa época em que triunfam as filosofias da natureza e em que as ciências

naturais fazem progressos decisivos, a disciplina que se forma define-se mais como uma ciência natural do que como

uma ciência social”. (CLAVAL, 2006, p. 62).

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sintetizados pelas formas de organização, haja vista que os “fatos de estruturas” constituiriam em

uma espécie de exclusividade da Geografia. Ao produzir boa síntese do fato geográfico quando

explora a região enquanto categoria geográfica,16 o que importa é seu destaque e sua

caracterização, e não sua explicação ou sua interpretação.17

O conceito de fato geográfico dentro desta visão corográfica, descritiva, enquanto

prerrogativa básica e de primeira hora da Geografia, ao conferir critério espacial aos fatos sociais,

espacializa a História.18 Ao não definir o fato geográfico como algo estático, mas enquanto ação e

consequência, de forma a atribuir-lhe uma visão historicizada ao critério espacial do fato social, é

possível verificar na obra de Monbeig um exemplo baseado na Geografia do Brasil.

É erro comum e persistente pretender tomar e ensinar fatos geográficos isolados e

atomizados. Não é a altitude das Agulhas Negras que é um fato geográfico, mas o

conjunto do maciço, constituído por certas categorias de rochas, situado num determinado

conjunto orográfico, submetido a certas condições climáticas que determinam certa

distribuição de vegetação, possibilitando certos modos de ocupação do solo pelo homem

e tornando possíveis certos produtos. Se quisermos um exemplo de geografia humana,

podemos encontrá-lo na estação D. Pedro II da Central do Brasil. A estação, em si, não é

um fato geográfico; o fato geográfico é o movimento dos trens, dos viajantes, das

mercadorias, a sua proveniência, o seu destino; fato geográfico serão também as

conseqüências da presença dessa estação na paisagem do bairro da capital onde se

encontra, a circulação urbana e seu ritmo cotidiano e estacional, uma determinada

localização dos ramos de comércio ligados a estação da estrada de ferro, etc.. Dizer que

as Agulhas Negras tem x metros de altitude ou que a estação D. Pedro II está situada em

tal rua do Rio de Janeiro, não satisfará o geógrafo, embora sejam duas afirmativas

indispensáveis, mas que são apenas a sombra enganadora do fato geográfico. O geógrafo

procurará o conjunto de fenômenos, como os que acima enumeramos rapidamente, e os

laços que os unem e fazem deles um todo vivo. (MONBEIG, 1954b)19

E o pensamento geográfico no Brasil não ficou alheio às discussões sobre fato

geográfico. Carvalho, D (2011, p. 865) realizou grande esforço, no final da primeira metade do

século XX, ao buscar estabelecer diferenças entre fatos sociais e fatos geográficos. O geógrafo

franco-brasileiro dizia que a contribuição da Geografia seria de permitir uma apreciação do fator

posição em relação aos fatos sociais, que nada mais é do que estabelecer um critério espacial aos

16 “para muitos geógrafos, o verdadeiro objeto da sua disciplina não é o estudo das relações de tipo ecológico que

os homens mantém com seu ambiente, nem a análise das situações que destacam a influência de lugares ou de regiões,

frequentemente longiquos, sobre as evoluções locais; é o estudo desses objetos estáveis, onde se encontram

misturados os elementos físicos e as realidades sociais, que constituem as regiões, semeadura dos estabelecimentos

humanos ou os meios humanizados. O geógrafo deve elaborar o inventário dessas formas de organização.”

(CLAVAL, 2011, p. 169 - 170). 17 Estes derivados de um de valor que, em última análise, devem ser objeto de estudo e de análise enquanto valor

geográfico. 18 “[...] seqüência complexa constituída por múltiplos e pequenos fatos cronológicos [...] constitui um fato histórico.

Transfira-se o exemplo do historiador para o campo da geografia e chegar-se-á às mesmas conclusões” (MONBEIG,

1957a, p. 8). 19 Republicado como um capítulo do livro Novos Estudos de Geografia Humana Brasileira, São Paulo, Difel, 1957.

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fatos sociais. Havia uma preocupação de se estabelecer correlações sem obedecer a princípios

advindos das demais Ciências Sociais. Assim ensina a Geografia Clássica, uma vez que o fato

geográfico é algo que possui uma estrutura extremamente complexa e resulta da combinação de

elementos e fatores solidários.

Mas este caminho profícuo, que Carvalho, D. trilhara, de conceber relações,

similaridades e diferenças entre as Ciências Sociais e a Geografia no plano fenomenológico,

sofreria uma ruptura no pensamento geográfico. No cerne desta transição, estava um crescente

abandono da espacialização da História para a busca da espacialização da Economia.

A partir da década de 1950, a Nova Geografia20 evoca uma longa tradição estatística,

que tem como principal enfoque traçar o inventário fenomenológico dos fatores de produção, dos

recursos e das atividades no seio de cada Estado.21 Sauer (2011) promove uma visão do fato, que

induz o geógrafo a inter-relacionar os fatos geográficos, ou “fatos do lugar”, que constituiriam o

conceito de paisagem quando analisados em sua totalidade. Ao considerar a Geografia uma ciência

de diferenciação regional da superfície terrestre, pressupõe a necessidade de caracterização do fato

geográfico com base na observação empírica, na qual o observador deverá descrever os fenômenos

de forma racional, de forma a classificá-los genericamente, aplicando processos lógicos de análise

e de síntese, com o objetivo final de organizar os resultados em sistemas ordenados. Neste sentido

a Geografia se prestaria a conduzir o cientista, com base em um conjunto de fatos, a novas formas

de conhecimentos (HARTSHORNE, 1978, p.169-70).

A crítica ao posicionamento clássico e quantitativo, acima expostos, é que o fato

geográfico e Geografia não são sinônimos. A fenomenologia consubstancia uma primeira etapa,

imprescindível, para a construção da Geografia enquanto ciência que estuda os critérios espaciais,

mas não é a ciência em si. Ela prescinde de outras dimensões, conforme se verá abaixo.

Este ponto de partida foi bem compreendido pela corrente crítica, e utilizada

posteriormente para fundamentar uma visão materialista da História, que resgata itens debatidos

anteriormente pelos geógrafos clássicos. Soja, ao empregar sua experiência na costa oeste norte-

americana, faz uma interessante conexão entre a abstração do conceito de espaço e a busca de sua

essência fenomenológica, que no limite fundamenta o conceito de fato geográfico.

O espaço, nessa forma física generalizada e abstrata, foi conceitualmente incorporado na

análise materialista da história e da sociedade, a ponto de interferir na interpretação da

organização espacial humana como um produto social, passo primeiro e fundamental para

se reconhecer uma dialética sócio-espacial. O espaço como contexto físico gerou um

20 Também denominada de Geografia Pragmática e de Geografia Quantitativa. 21 Neste sentido, CLAVAL, 2006, p. 98.

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21

amplo interesse filosófico e discussões demoradas sobre suas propriedades absolutas e

relativas (um longo debate que remonta a Leibniz e recua ainda mais), suas características

como “continente” ambiental da vida humana, sua geometria objetificável e suas

essências fenomenológicas. (SOJA, 1993. p. 101).22

De forma profunda e crítica, Santos, M. resgata a importância do papel de Durkheim

para a Geografia e, por conseguinte, de suas ideias sobre fato social. Para tanto, vai ao cerne da

questão fenomenológica, para compreender como as Ciências Sociais compreendiam o espaço.

Onde, ao nosso ver, Werlen fica mais próximo da solução do problema teórico da

definição do espaço é quando se refere à obra de Durkheim. De todos os sociólogos e

filósofos citados no livro, é Durkheim aquele que revela uma clara noção do que, à sua

época, era considerado pêlos geógrafos como sendo o espaço, noção que, aliás, ele,

Durkheim, buscava aperfeiçoar. Incompreendido pêlos geógrafos, na época dos seus

escritos, Durkheim ainda está esperando que suas ideias a respeito do espaço sejam

retomadas e devidamente aperfeiçoadas (SANTOS, M., 2006. p. 55).

Ao admitir um resgate das ideias das Ciências Sociais, Santos, M. endossa a ideia de

que o fato geográfico é um critério espacial do fato social. Neste sentido, o caminho para alicerçar

a Geografia, enquanto ramo autônomo científico, não seria compreender o fato geográfico como

um "fato social total", discussão proposta e igualmente afastada por Santos, M. (2006, p.72), mas

dissociar o fato geográfico do fato social, identificando o critério espacial do fato social como

objeto de estudo do fato geográfico. O espaço, enquanto dado social, possibilita o estudo do fato

geográfico enquanto conjunto de signos que expressam maneiras de espacializar os objetos, coisas

e ações humanas, caracterizada pela: (i) externalidade das consciências individuais; (ii)

generalidade de sua extensão, permeando todo um conjunto de indivíduos; e (iii) exercício de uma

coerção exterior ao indivíduo e as sociedades.

Em sua famosa definição dos fatos sociais, cuja existência se impõe à sociedade, e,

independentemente deles, aos indivíduos, Emile Durkheim (1895, 1962, pp. 12 -13)

distinguia entre meio de ação e meio de existência. Nessa definição ele inclui os "meios

de ação fixos", um caso particular dos "meios de existência", isto é, "meios de ação

cristalizados". Essa cristalização dos meios de ação segundo Durkheim pode ser

considerada como equivalente ao "trabalho morto" da terminologia de Marx e seria mais

bem representada, em nossos dias, pelo conjunto de objetos culturais que, ao lado ou no

lugar dos objetos "naturais", cuja significação modificam, formam o que podemos chamar

de configuração espacial, configuração territorial ou configuração geográfica, da qual a

paisagem é um aspecto ou uma fração. Mas, na terminologia geográfica corrente, essas

duas expressões - configuração geográfica e paisagem - substituem frequentemente e

22 Soja segue sua análise promovendo uma crítica a esta visão de espaço, no sentido de que o espaço físico foi uma

base epistemológica ilusória para se analisar o sentido concreto e subjetivo da espacialidade humana. O espaço em si,

desta forma, poderia ser um primordialmente dado, mas a organização e o sentido do espaço são produto da translação,

da transformação e da experiência sociais. Esta corrente do pensamento geográfico será aprofundada ao falarmos

sobre o valor geográfico.

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equivocadamente a palavra espaço. Ora a configuração espacial é um dado técnico,

enquanto o espaço geográfico é um dado social. (SANTOS, M. Ibid., p. 47)

Assim, Santos, M., com base no processo social que deixa heranças que constituem

uma condição para as novas etapas, continua seu raciocínio destacando a importância do critério

espacial advindo da evolução social, identificando a Morfologia Social como um ramo científico

que buscou, em última análise, compreender o fato geográfico. Era a disputa modernista, na qual

os cientistas sociais diziam que o critério espacial da Sociologia e da Antropologia é objeto de

estudo destas ciências, e os geógrafos que enunciavam que os critérios sociais que ocorrem no

espaço eram uma prerrogativa de estudo da Geografia.

Acrescentaríamos a esse raciocínio de Durkheim que as formas sociais não-geográficas

tornam-se, um dia ou outro, formas sociais geográficas. A lei, o costume, a família

acabam conduzindo ou se relacionando a um tipo de organização geográfica. A

propriedade é um bom exemplo porque é, ao mesmo tempo, uma forma jurídica e uma

forma espacial.23 A evolução social cria de um lado formas espaciais e de outro lado

formas não-espaciais, mas, no momento seguinte, as formas não-espaciais se

transformam em formas geográficas. Essas formas geográficas aparecem como uma

condição da ação, meios de existência - e o agir humano deve, em um certo momento,

levar em conta esses meios de existência. Foi isso que levou Durkheim a propor, dentro

da Sociologia, uma disciplina chamada de Morfologia Social, na qual os geógrafos

enxergaram então uma concorrente da geografia (A. Buttimer, 1991; V. Berdoulay,

1978), votando ao termo e aos conceitos subjacentes um combate feroz e duradouro. Foi

uma pena, pois a ideia de Durkheim (1895, 1962, p. 113) para quem o meio era

formado de "coisas e pessoas", poderia haver aproximado a geografia de uma

definição do seu objeto epistemologicamente operacional. (SANTOS, M., 2006, p. 48.

Negritos acrescidos)

Ora, o princípio da simetria sugere que a construção das Ciências Sociais de espaço,

assim como a compreensão da Geografia das questões sociais, são faces da mesma moeda,

alterando apenas o ponto de partida, ou o vetor de estudo. O geógrafo parte da sociedade e não do

solo, oposto ao que propõe Febvre (1955), haja vista que o solo é um dos critérios espaciais do

fato social, assim como o espaço marítimo, o subsolo, o espaço aéreo ou o sideral.

Cabe aos geógrafos, na edificação desta operacionalidade fenomenológica, definir o

critério espacial do fato social. E este processo emancipador das Ciências Sociais ocorre pela

pergunta “Onde?” ao fato social, elemento imprescindível para fixar a escala, que é o objeto de

estudo geográfico no eixo fenomenológico. Ou seja, com base no princípio da simetria, ao

questionar “Onde?” a Geografia delimita seu estudo, estabelece seu fenômeno, o dimensiona para

que haja a intervenção do geógrafo em um espaço pré-definido. O “Onde?” emancipa a Geografia

23 Nota-se que Santos já relacionava o ordenamento legal enquanto tipo de organização geográfica.

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das Ciências Sociais no plano fenomenológico ou, como quer Milton, S., aproxima a Geografia de

uma definição epistemologicamente operacional, uma vez que a evolução social cria formas

espaciais, nelas interferem, mas estas formas, após serem criadas, independem das Ciências

Sociais para existirem.

Caracterizado o fato geográfico como uma dimensão fenomenológica indispensável

para a construção da Geografia enquanto ciência, sendo o critério espacial do fato social,

passaremos a identificar como se manifesta o fato jurídico igualmente com base no fato social,

com o objetivo de estabelecer futura simetria perante o fato geográfico.

c) Do fato jurídico

Dentro de uma concepção moderna, necessária ao estabelecimento de uma referência

epistemológica, o fato jurídico não existe a priori. Ele precisa ser determinado por uma autoridade

competente para que exista. O ato de atirar em alguém é um ato da sociedade, o fato de morrer é

uma situação da natureza, mas tipificar este ato como assassinato ou legítima defesa, passível ou

não de sanção, depende de uma autoridade coatora que, no caso das sociedades contemporâneas,

encontra respaldo no Estado de Direito.

E este conceito de Estado pode ser identificado em diversos períodos e civilizações.

Isto ocorre pelo fato de que não há concepção de Estado que não esteja fundamentado em uma

visão orgânica de mundo, de filosofia ou de intuição (GENTILE, 1932, p. 847). Para tanto, torna-

se imprescindível conhecer o fato jurídico enquanto forma de exercício do poder coercitivo por

um determinado Estado.

É com o advento da Modernidade24 que o Estado reforça seu papel enquanto instância

jurídica e ganha novos contornos de ética e moral. Enquanto na Idade Média a ligação entre Igreja

24 De forma a conferir aos geógrafos informação jurídica historicizada, na Antiguidade, Platão, ao discorrer sobre o

diálogo entre Sócrates e Glauco por meio de “A República”, aponta que a cidade deve deliberar sobre o seu próprio

conjunto, de forma a conhecer a melhor maneira de se comportar em relação a si mesma e às outras cidades por meio

de uma ciência que tenha por objeto a conservação do Estado, encontrando nos magistrados seus guardiães perfeitos.

(PLATÃO, 1997, p. 123). A sociedade como produto da necessidade humana também aparece em “A Política” de

Aristóteles em diversos trechos, que pode ser sintetizado na frase de que "aquele que não pode viver em sociedade,

ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio, não faz parte do estado; é um bruto ou um deus". (ARISTÓTELES,

2008). Enquanto na Grécia antiga o Estado era tratado como um pressuposto de justiça e de civilização, em Roma ele

passa a ter um cunho científico. Desde a fundação de Roma, no século VIII a.C., até a codificação de Justiniano, no

século VI d.C., o comumente denominado Direito Romano criou suas normativas, na qual o cidadão estava, na síntese

de Coulanges, “submetido sem reserva alguma à cidade; pertencia-lhe inteiramente. A religião que tinha gerado o

Estado, e o Estado que conservava a religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo; estes dois poderes

associados e confundidos formavam um poder quase sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente

submetidos”. (COULANGES, 2004, p. 246–247). Na Idade Média, principalmente no pensamento de São Tomás de

Aquino, o Estado passa a ser um gênero efêmero, pois trata do bem temporal dos indivíduos e deve ser subordinado à

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e Estado pressupõe que o governante faça sempre o bem, este paradigma começa a ser rompido na

Idade Moderna. O termo Estado passa a ser empregado na terminologia política dos povos

ocidentais, como é o caso do Staat alemão, État francês, State inglês, Stato italiano, Estado

espanhol e Estado português. A partir de então, passou-se a se criar uma teoria do Estado, fundada

em uma sociedade, com base territorial, de forma a obter supremacia perante todas as demais

instituições e atividades que julgue conveniente, sob o argumento de manter a ordem e a defesa

social com o objetivo de proporcionar o interesse público.

Maquiavel (1976, p. 103) lança os fundamentos da política na virada do século XVI,

como a arte de atingir, exercer e conservar o poder, ao enunciar que um príncipe não pode praticar

todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez que, frequentemente,

é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra

a religião. Hobbes (1979, p. 106), por sua vez, descreve que apenas o Estado, personificado no

soberano, é capaz de determinar quais são os valores religiosos e morais a serem seguidos, haja

vista que os homens em seu Estado natural iriam perceber, em seus momentos de reflexão, que a

lei da natureza os obriga a renunciar a seu direito de julgamento privado do que é perigoso em

casos dúbios, e a aceitar por si mesmo o julgamento de uma autoridade comum.

Assim, o Estado Moderno tem como sua estrutura básica a soberania, enquanto

elemento de disseminação de poder por meio de normas de Direito, a territorialidade, na qualidade

de dimensão geográfica da extensão deste poder, e o povo, como elemento social, ao mesmo tempo

objeto da criação do Estado e objetivo de sua existência, pois viabilizaria a vida em sociedade.

Considerado pelo aspecto puramente jurídico, o povo é a população do Estado, sujeito às mesmas

leis, detentor de direitos e deveres.

A visão contratualista do Estado é reforçada por diversos autores na Modernidade.

Para Locke (2005, p. 381-382), a sociedade delegou ao Estado o poder de regulamentar relações

sociais, uma vez que os homens possuem perfeita liberdade para regular as suas ações e dispor de

suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem

pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. Em que pese a visão liberal de

Locke propor um alto nível de autonomia aos homens, há uma centralidade do papel do Estado em

seu discurso, uma vez que, embora os homens tenham direitos no Estado de natureza, o exercício

Igreja no que se refere à religião. Com o Feudalismo, valoriza-se a posse da terra, de forma a desenvolver um sistema

administrativo e uma organização militar ligados à situação patrimonial. Todavia, em regra houve uma proliferação

de poderes menores, com hierarquia indefinida, de forma a produzir diversas ordens jurídicas, tais como normas

imperiais, normas eclesiásticas, ordenações dos feudos, bem como regras decorrentes das corporações de ofício,

situação que produziu grande instabilidade política, social e econômica, de forma a proporcionar as demandas por um

poder mais centralizado e dissociado de premissas religiosas.

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do mesmo é bastante incerto e está constantemente exposto à violação por parte dos outros. Como

todos são reis na mesma proporção, caberia ao Estado dirimir estes interesses, de forma a produzir

segurança.

Montesquieu (1993) faz um metódico apanhado sobre as diferentes formas de Estado,

bem como dos direitos políticos, sociais e econômicos dos regimes despótico, monárquico,

republicano e democrático. Afirma que uma sociedade não pode subsistir sem um governo, de

forma a prescindir de um Estado político para sua manutenção. Neste sentido, discorre sobre as

formas de poder que existe em cada Estado, dividindo em três tipos: (i) o poder legislativo, no qual

o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que

foram feitas; (ii) o poder executivo das coisas, que emendem do direito das gentes, de forma a

fazer a paz ou a guerra, enviar ou receber embaixadas, instaurar a segurança, bem como prevenir

invasões; e (iii) poder executivo daquelas que dependem do direito civil, sendo a instância que

castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares.

Para Rousseau (2014, p. 12), a concepção de Estado natural decorre da perfeição,25

sendo a ordem social comprometida com a multiplicidade de interesses dentro de uma sociedade.

Assim, o ser humano nasceu livre, mas a ordem social é um direito sagrado que serve de alicerce

a todos os outros. Neste sentido, o contrato social serve de base a todos os direitos no Estado.

Encontra-se em Rousseau, ainda, o conceito de que o povo cria o Estado, que por sua vez cria o

Direito enquanto lei, que se manifesta por meio da vontade geral identificada pelo consenso da

maioria do povo. O Direito, nesta ótica, seria a vontade do Estado.

Vê-se por aí que o poder soberano, todo absoluto, todo sagrado, todo inviolável que é,

não passa nem pode passar além dos limites das convenções gerais, e que todo homem

pode dispor plenamente da parte de seus bens e da liberdade que lhe foi deixada por essas

convenções; de sorte que o soberano jamais possui o direito de sobrecarregar um vassalo

mais que outro, porque então, tornando-se o negócio particular, deixa o seu poder de ser

competente. (Ibid., p. 17)

Com o desenvolvimento filosófico do Direito, Kant,26 na mesma linha de raciocínio

de Rousseau, designa o ato de manifestação desta vontade geral, identificada pelo consenso da

maioria do povo, como “contrato original”, instrumento que legitimaria a existência e

operacionalidade do Estado.

O ato pela qual um povo se constitui num Estado é o contrato original. A se expressar

rigorosamente, o contrato original é somente a idéia desse ato, com referência ao qual

25 Logo, oposta a visão hobbesiana, que entende a ordem social como perfeição em relação a uma natureza caótica. 26 Neste momento, Kant deve ser compreendido dentro de sua concepção jurídica.

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exclusivamente podemos pensar na legitimidade de um Estado. De acordo com o contrato

original, todos (omnes et singuli) no seio de um povo renunciam à sua liberdade externa

para reassumi-la imediatamente como membros de uma coisa pública, ou seja, de um

povo considerado como um Estado (universi). E não se pode dizer: o ser humano num

Estado sacrificou uma parte de sua liberdade externa inata a favor de um fim, mas, ao

contrário, que ele renunciou inteiramente à sua liberdade selvagem e sem lei para se ver

com sua liberdade toda não reduzida numa dependência às leis, ou seja, numa condição

jurídica, uma vez que esta dependência surge de sua própria vontade legisladora. (KANT,

2007b, p.158).

Hegel (1997, p. 216) contribui a esta construção ao conceber o Estado como realidade

em ato de ideia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma,

que se conhece e se pensa, e realiza o que se sabe e porque sabe. Esta concepção idealista defende

o Estado como base da filosofia política, de forma a: (i) possuir uma existência imediata enquanto

organismo autorreferenciado, base do Direito político interno; (ii) conceber o Estado isolado

perante outros Estados, base do Direito externo; e (iii) compreender a ideia universal como gênero

e potência absoluta, de forma a viabilizar o Estado como uma realidade em forma de liberdade

concreta.

O Estado é o que existe; é a vida real e ética, pois ele é a unidade do querer universal,

essencial, e do querer subjetivo - e isso é a moralidade objetiva. O indivíduo que vive

nessa unidade possui uma vida ética, tem um valor que existe nessa substancialidade.

(HEGEL, 1995, p.39).

O idealismo hegeliano é contestado na obra de Marx (2005; 2010), que por sua vez

não registra uma abordagem sistemática do Estado, o mesmo não ocorrendo com as questões

jurídicas, que são enfrentadas de forma sistemática na “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”,

de 1843. Por seu turno, Engels (2002) pormenorizou o tema, principalmente na obra “A Origem

da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de 1884, momento em que o Estado é descrito

como orgânico ao domínio da classe. A concepção do Estado como o instrumento de uma classe

dominante, permaneceu fundamental em toda a obra de Engels, em que a tônica era uma constante

luta de classes, na qual o Estado da classe mais poderosa economicamente passava a ser igualmente

dominante politicamente, adquirindo com isso novos meios de dominar e explorar a classe

oprimida.27

Independentemente da função idealista ou de cenário de luta de classes, o fato jurídico

tende a ser uma resposta da sociedade, hipossuficiente, ante os fatos da natureza. E a visão

contratualista de Estado se sofisticava com as críticas filosóficas sofridas ao longo do tempo, com

27 Corrobora neste sentido BOTTMORE, 1988, p. 134.

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vistas à perpetuidade de determinada sociedade. Burke (1942) contribui ao conceito de Direito e

de Estado ao fixar parâmetros para o pacto de gerações. Ao se opor ao artificialismo da teoria

contratualista, afirma que o Estado é uma associação de toda ciência, de toda arte, de toda virtude

e de toda perfeição, associação esta realizada não apenas entre os vivos, mas também entre os

mortos e os que irão nascer.

Por sua vez, são atribuídas a Mohl (1866) as primeiras construções científico-jurídicas

no sentido de caracterizar o matrimônio modernista entre o Estado e o Direito. O Estado de Direito

seria a estrutura que se subordina ao "império da lei", constituído por meio de seus representantes

politicamente legitimados, delimitando inclusive as formas de manifestação do poder estatal, que

terá autonomia para garantir que as leis imponham regras e delimitem o exercício do poder estatal,

de forma a subordinar todos e tudo.

Logo, a construção de que o Estado de Direito é um fato social e uma realidade

histórica, por refletir a vontade de um determinado povo projetado em um território delimitado,

foi realizada apenas no século XX. Na tentativa de firmar a pureza epistemológica do Estado de

Direito, Jellinek (1954, p. 250) aprofunda a distinção das percepções sociológicas daquelas

jurídicas sobre o Estado, ao enunciar que a doutrina sociológica considera a existência social,

histórica, objetiva e natural do Estado, enquanto o Direito se dedica às normas jurídicas. Neste

sentido, o Estado (de Direito) seria a corporação de um povo, assentada num determinado território

e dotada de um poder originário de mando.28 Assim, o positivismo jurídico repousaria, em última

instância, na convicção de sua obrigatoriedade, elemento puramente subjetivo que edifica todo o

ordenamento jurídico. Esta seria a consequência necessária do reconhecimento da vida em

sociedade.

Os estudos de Jellinek foram precursores de ampla discussão sobre a “Teoria Geral do

Estado”, com repercussão nas sociedades ocidentais.29 O conceito de Estado de Direito é

aprofundado por Bobbio (2005, p. 18) que, ao defender a superioridade do governo das leis sobre

o governo dos homens, define Estado de Direito como instância em que os poderes públicos são

regulados por normas gerais30 e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam, salvo o

direito do cidadão de recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e

refutado o abuso ou excesso de poder. Na mesma linha de garantia dos interesses individuais,

28 Ou Zweiseitentheorie, na qual Jellinek (1954) usa a figura de Juno, a deusa com rosto voltado para dois lados. 29 No Brasil, diversos autores se debruçaram sobre o tema, que encontra boa síntese em Dallari, que define o objeto

da Teoria Geral do Estado como o estudo do Estado sob todos os aspectos, incluindo a origem, a organização, o

funcionamento e as finalidades, compreendendo-se no seu âmbito tudo o que se considere existindo no Estado e

influindo sobre ele. (DALLARI, D., 2005). 30 Leis fundamentais ou constitucionais.

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Canotilho (1999, p. 9) reforça a caracterização do Estado de Direito como a eliminação do arbítrio

no exercício dos poderes públicos com a consequente garantia de direitos dos cidadãos perante

esses poderes.

No Brasil, Grau (2011, p. 270) realizou esforço para identificar o critério espacial deste

Estado de Direito. O ex-ministro do STF trabalha com o conceito de nomos da terra cunhado por

Schmitt (1950, p. 13), que na linguagem mítica versa sobre a mãe do direito (o nomos da terra). O

Direito seria então uma unidade de ordenamento e determinação de território, sendo o Estado a

soberania no espaço de um determinado território. O nomos baseia-se em uma plenitude imediata

de uma força jurídica não atribuída por alguma lei; um acontecimento histórico constitutivo, ato

de legitimidade que dá sentido à legalidade das leis. Grau sintetiza o conceito de nomos como o

princípio normativo fundante que dá sentido e ordem ao sistema jurídico e político e, assim, o

legitima. Ou seja, apoiado sobre o nomos, cada Estado afirma-se como soberano na comunidade

internacional (plano do Direito Internacional), na qual coexiste com outros estados em situação de

paridade. O território e a cidadania são elementos essenciais da soberania: o Estado é o ente

territorial soberano ou a organização jurídica e política de um povo.

Com outras palavras, mas no mesmo sentido de legitimar a delimitação do Estado,

Reale (2000, p. 249) discorre sobre a impossibilidade de se limitar o Estado, uma vez que ele já

nasce limitado. A tese da estatalidade apresentaria uma feição relativista e pragmática, haja vista

que não é possível ordem e segurança sem o primado de um sistema de Direito, apresentando o

Estado de Direito como uma espécie de "lugar geométrico da positividade jurídica".

[...] o conceito de Estado como pessoa jurídica é o produto de uma longa e lenta

elaboração cultural, marca o termo final ou coroamento de um processo histórico-político

milenar, pois implica necessariamente a idéia de Estado de Direito, não no sentido do

Estado reduzido a meras formas jurídicas, mas sim no sentido do Estado que subordina,

em via de regra, as suas atividades aos preceitos do direito que ele declara; não no sentido

do Estado que se circunscreve à missão de tutelar os direitos individuais, mas no sentido

do Estado que não delimita a priori a sua esfera de interferência, mas fixa a priori a

juridicidade de toda e qualquer interferência neste ou naquele outro setor da produção

humana. (REALE, 2000, p. 356).

Ao fixar a geometria enquanto princípio da positividade jurídica em específico, e do

Direito em geral, Reale contextualiza o Estado no espaço. E este conceito é imprescindível para

uma compreensão abrangente do critério espacial do Estado. Afinal, este espaço não é só o

território, como querem os dogmáticos do Direito ou o que sugeriria uma leitura rasa da Teoria

Geral do Estado. Se desemaranharmos o princípio da geometria das limitações do positivismo,

retornando a sociologia jurídica, que encontra em Durkheim uma referência que proporcionou uma

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matriz epistemológica contemporânea para a interdisciplinaridade entre Geografia e Direito,31 o

fato jurídico pode ser compreendido como um critério coercitivo do fato social, que conduz ou se

relaciona a um tipo de organização geográfica, haja vista que a lei, o costume, a família e a

propriedade se projetam no espaço. E na definição de fato jurídico, Reale traz a noção de “espaço-

tempo” para efeitos jurídicos.

Procuremos proceder metodicamente, discriminando a matéria a partir do mais acessível

e intuitivo. Em primeiro lugar, a ciência pode versar sobre objetos naturais, como quando

o químico estuda as propriedades do hidrogênio, do oxigênio ou de um metal. Que é que

caracteriza os objetos que se chamam físicos ou “reais”, no sentido estrito desta última

palavra? O que distingue é o fato de não poderem ser concebidos sem referência ao espaço

e ao tempo ou, mais rigorosamente, ao “espaço-tempo” (REALE, 2002, p. 177).

Logo, o estudo do critério coercitivo do fato social é realizado pela Teoria Geral do

Estado, quanto sua natureza intrínseca, no tempo e no espaço, de forma a ter como objeto o estudo

da organização de um Estado como fato social, histórico, singular e concreto (AZAMBUJA, 1998).

Por sua vez, o Estado de Direito é a subordinação do Estado a uma organização jurídica disposta

pela respectiva sociedade, de forma a assegurar direitos e garantias fundamentais. No caso do

Brasil, o art. 1º da Constituição Federal de 1988, enquanto fato jurídico,32 adotou a expressão

“Estado Democrático de Direito”, que alicerça a construção do Estado brasileiro, dentre outras

coisas, na cidadania e em valores sociais, com base no poder constituinte do povo.33

Nesta construção de Reale, decorrente de todo um pensamento jurídico amadurecido

ao longo dos séculos, pode-se concluir que o fato jurídico nasce por uma imposição do Estado,

que nada mais é do que um ente, legitimamente constituído, que confere critério coercitivo a um,

ou mais, fatos sociais. Assim como o ocorrido com o fato geográfico, o princípio da simetria sugere

que tanto a construção de Estado pelas Ciências Sociais quanto a compreensão do Direito das

questões sociais são faces de uma mesma moeda, alterando apenas a origem epistemológica de

estudo, o ponto de partida desencadeador de cada uma destas ciências.

Cabe aos juristas, na edificação de sua operacionalidade fenomenológica, definir o

critério coercitivo do fato social. E este processo emancipador das Ciências Sociais ocorre pela

pergunta “Quem?”, elemento imprescindível para fixar a competência, que é o objeto de estudo

31 Para alguns cientistas, Kant pode ser identificado como a origem interdisciplinar moderna entre Geografia e Direito. 32 “[...] o fato jurídico, estribado no direito objetivo, dá azo a que se crie a relação jurídica, que submete certo objeto

ao poder de determinado sujeito. A esse poder se denomina direito subjetivo (LIMONGI FRANÇA, 1989, p. 347). 33 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito

Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do

trabalho e da livre iniciativa; [...]

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jurídico no eixo fenomenológico. Ou seja, com base no princípio da simetria, ao questionar

“Quem?” ao fato social, o Direito identifica a entidade coatora, estabelece seu fenômeno ao

investir um ente com legitimidade para coagir e confere os limites desta competência pela

delimitação, de maneira a caracterizar a atuação do jurista em nome da ordem desta entidade

coatora. O “Quem?” viabiliza o Direito enquanto ciência no plano fenomenológico, uma vez que

a evolução social cria formas estatais, nelas interferem, mas estas formas, após serem criadas,

independem das Ciências Sociais para existirem.

d) Do nivelamento epistemológico entre Geografia e Direito no plano

fenomênico e seus exemplos

Desta forma, é possível vislumbrar um modelo, em que as Ciências Sociais tornam-se

um ponto de partida alicerçada na modernidade, referencial, por meio do fato social, para

identificar tanto o fato geográfico quanto o fato jurídico, por meio da fenomenologia. Nestes

termos, o critério espacial do fato social passaria a ser tratado pela Geografia, de forma que o

critério coercitivo do fato social seria objeto de estudo do Direito, em uma realidade na qual a

relação Sociedade-Natureza ocorre no bojo de cada uma destas ciências, com preponderância ao

fato da natureza em detrimento do fato da sociedade.

FIGURA 5 - Relação entre Geografia e Direito no plano fenomênico, baseada no fato social

Tome-se como exemplo um rio. Este rio pode ser analisado sob a ótica

fenomenológica, uma vez que ele produz fatos sociais perante a sociedade estabelecida em sua

margem. Este rio tem em si um critério que é espacial, pois repousa em um relevo pré-determinado,

formando uma riqueza natural de fenômenos (p. ex., vales, várzeas, quedas etc.), interferindo na

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vegetação, no clima e na sociedade existente no seu curso, da montante à jusante. Da mesma

maneira, este rio está submetido a um critério coercitivo, seja aquele imposto pelas leis naturais

(p. ex., gravidade, regime pluviométrico, características do solo etc.), bem como pelas leis das

sociedades que interagem com sua margem (p. ex., uso das águas para irrigação, abastecimento,

saneamento, produção hidrelétrica etc.). Outros exemplos podem ser identificados na tabela

abaixo:

TABELA 2 – Exemplos de caracterização do fato geográfico e do fato jurídico

Demanda social

O que? Objeto de estudo

Fato Geográfico Onde? Escala

Fato Jurídico Quem?

Governança

Ampliar o sistema metroviário em São Paulo

Estado de São Paulo Estado de São Paulo e 39 municípios do Estado34

Aprimorar o Registro de imóveis (sistema cartorário)

Brasil Brasil, 26 estados, um Distrito Federal e 5.570 municípios.

Combater o aquecimento global Terra Organização das Nações Unidas (ONU) e 193 países-membros.

Combater o desmatamento da Amazônia América do Sul Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, com diversos estados e municípios, dependendo do caso concreto.

Compreender a anexação da Crimeia pela Rússia

Eurásia Rússia, Ucrânia, União Européia, Organização das Nações Unidas e demais países-membros.

Controlar a alfândega em Santana do Livramento

Brasil e Uruguai Brasil, por meio do estado do Rio Grande do Sul e do Município de Santana do Livramento; e Uruguai, por meio do Município de Rivera.

Criar zonas francas Brasil Manaus e Tabatinga (AM), Boa Vista e Bonfim (RR), Guajará-Mirim (RO), Macapá e Santana (AP), Cruzeiro do Sul e Brasiléia (AC).

Explorar o Aquífero Guarani América do Sul Brasil (8 estados)35, Argentina (diversas províncias), Paraguai (estado unitário) e Uruguai (estado unitário), que envolvem uma diversidade de municípios, dependendo da forma de aferição da espacialidade do aquífero.

Explorar petróleo na plataforma marítima

Mar territorial Brasil e estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo

Fixar indicação geográfica para o açaí do Marajó

Brasil Estado do Pará

Gerir o Polígono das secas Sertão nordestino Estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Minas Gerais, que envolvem 1.348 municípios.

Viabilizar a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE)

Brasil Distrito Federal, Estado de Goiás, com 19 municípios envolvidos,36 e Estado de Minas Gerais, com 3 municípios envolvidos.37

Ante estas características, caracterizado o Estado de Direito enquanto fenômeno

moderno que identifica fatos jurídicos, estabelecido no mesmo plano fenomênico que o fato

geográfico, compreendidos, respectivamente, com base no critério coercitivo e espacial do fato

34 Arujá, Barueri, Biritiba Mirim, Caieiras, Cajamar, Carapicuíba, Cotia, Diadema, Embu das Artes, Embu-Guaçu, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Franco da Rocha, Guararema, Guarulhos, Itapecerica da Serra, Itapevi, Itaquaquecetuba, Jandira, Juquitiba, Mairiporã, Mauá, Mogi das Cruzes, Osasco, Pirapora do Bom Jesus, Poá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Salesópolis, Santa Isabel, Santana de Parnaíba, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, São Lourenço da Serra, São Paulo, Suzano, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista. 35 Mato Grosso do Sul (213.700 km²), Rio Grande do Sul (157.600 km²), São Paulo (155.800 km²), Paraná (131.300 km²), Goiás (55.000 km²), Minas Gerais (51.300 km²), Santa Catarina (49.200 km²) e Mato Grosso (26.400 km²). 36 Abadiânia, Água Fria de Goiás, Águas Lindas de Goiás, Alexânia, Cabeceiras, Cidade Ocidental, Cocalzinho de Goiás, Corumbá de Goiás, Cristalina, Formosa, Luziânia, Mimoso de Goiás, Novo Gama, Padre Bernardo, Pirenópolis, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto, Valparaíso de Goiás e Vila Boa. 37 Buritis, Cabeceira Grande e Unaí.

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social, passa-se a verificar e analisar como se caracterizam os valores geográficos e jurídicos em

face da Geografia e do Direito.

1.2. O valor e sua repercussão geográfica e jurídica

Claval, em esforço de contextualização do pensamento geográfico após a década de

1950, traz em seu discurso uma síntese de que os fatos geográficos, enquanto elementos

toponímicos e descritivos, não bastavam para explicar o mundo, principalmente ante as

vicissitudes do século XX. Nesse sentido, ele realiza perguntas que trazem em suas entrelinhas as

respostas, de que se tornou inevitável buscar ferramentas científicas para avançar na compreensão

epistemológica da Geografia, de forma a conferir respostas satisfatórias às sociedades

contemporâneas.

Os geógrafos devem ir mais adiante? É tolerável continuar neutro quando as injustiças são gritantes? Do fim do século XIX à Segunda Guerra Mundial, a regra era permanecer quieto e não apresentar as suas opções. Um certo número de geógrafos que militam na França para os partidos de esquerda, os comunistas em especial, adotam, nos anos de pós-guerra, atitude oposta: julgam oportuno apresentar suas posições políticas; denunciam as desigualdades, as diferentes formas tomadas pela segregação e pela exclusão, os defeitos da planificação urbana ou a fragilidade das ações de ajuda em prol dos desfavorecidos ou das regiões e dos países em vias de desenvolvimento. Nos países anglófonos, a mesma evolução acontece vinte anos mais tarde, em favor das agitações estudantis dos anos 1960, da luta contra a guerra do Vietnã e do desenvolvimento de novas tendências libertárias. (CLAVAL, 2011, p. 364)

Esta contextualização demonstra que os fatos geográficos, por si só, não atendem

isoladamente aos anseios da Geografia enquanto ciência, pois são elementos que precisam de uma

valoração para que haja um avanço de sua compreensão. Ir além do método descritivo passa a ser

imprescindível para a Geografia, característica esta acentuada na segunda metade do século XX.

Uma vez que os fatos geográficos são considerados a partir da identificação e da descrição do

critério espacial dos fatos sociais, sejam eles de origem natural ou produto da concepção humana,

sendo dotados de generalidade, externalidade e coercitividade, faz-se necessário incorporar a

noção de valor à ciência geográfica, de forma a conferir sentido científico mais aprofundado e

crítico. De forma análoga ao fato geográfico, identificar um critério espacial no valor social38 passa

a ser uma hipótese de estudo que passaremos a analisar. Qual valor social especializado seria este?

38 Neste aspecto, a obra de Durkheim, referenciada na análise do fato social como base para a identificação do critério

espacial, que culminaria na identificação do fato geográfico, será utilizada de forma análoga para empregar no estudo

do valor social como referência para identificação de seu critério espacial, que culminará na identificação do valor

geográfico.

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Ao rememorar a separação de Hume, se existe um mundo do ser, fundado na fenomenologia, como

é o mundo do dever ser, alicerçado na axiologia?

a) Do valor social

A questão central é que fato e valor não tem como serem entendidos de forma pura,

moderna, quando menor for a sua escala. A ciência é uma só, sendo que a sociedade a divide para

efeitos metodológicos. Se ela é um ente único, a natureza híbrida das ciências estaria em sua

essência, no microcosmo dos detalhes, no qual a análise de determinados aspectos estaria

condicionada à correlação com outros aspectos. Neste sentido, pode-se cogitar os híbridos como

ponto de partida, com base no princípio da simetria proposto por Latour. Este pressuposto social

já foi, inclusive, cogitado no pensamento geográfico.

Se o espaço é, como pretendemos, um resultado da inseparabilidade entre sistemas de

objetos e sistemas de ações, devemos causticar, com Latour em seu livro Jamais fomos

modernos o equívoco epistemológico, herdado da modernidade, de pretender trabalhar a

partir de conceitos puros [...] por que, então, em nossa construção epistemológica não

preferimos partir dos híbridos, em vez de partir da idéia de conceitos puros? (SANTOS,

M., 1996, p. 81- 82)

Em que pese a ausência de pureza, que produz os “quase-objetos” definidos por Latour,

ao identificar o fato enquanto fenômeno, objetivável, pode-se qualifica-lo, tornando-o passível de

análise por meio do culturalismo e conforme as percepções dos indivíduos ou da coletividade. Ou

seja, empregar o valor como elemento de reflexão de determinado fato sugere uma relação dialética

entre estes elementos que, no limite, viabiliza a existência humana. O valor social se impõe ao

valor natural com o objetivo de garantir a perpetuidade da espécie. Não há como admitir um valor

natural sem uma visão antropocêntrica, haja vista que o valor natural de qualquer coisa consiste

na sua capacidade de prover as necessidades ou de servir as comodidades da vida humana.39 Assim,

o valor da sociedade deve se sobrepor ao valor da natureza, pois é a busca desta superioridade que

preserva a perenidade da raça humana.40 Separar fato e valor garante à humanidade a chance de se

tornar perene, ao definir parâmetros de sua relação com a natureza.

39 Neste sentido, MARX, 2010, p. 58. 40 Conforme mencionado no item 1.1 acima, “O que perdura, cresce e explode é a tensão entre forças do homem e as

forças da natureza. Um precisa dominar; o outro deve submeter-se. Parece que os dois vencem. A natureza se impõe

ao homem, fazendo-o submeter-se às suas florestas, rios, faunas e mitos. O homem se impõe à natureza, fazendo-a

submeter-se à pólvora e ao trator.” Logo, o homem se impõe à natureza por meio de um valor preestabelecido, que

faz com que o homem empregue a técnica da pólvora e do trator para criar um novo fato humano, que altera o fato

natural no que ele pode e se adapta as características no que ele não pode (p. ex., envelhecimento e falecimento),

mesmo que deseje, modificar, considerando os recursos técnicos disponíveis em determinado momento histórico.

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34

Com base em um fato, identifica-se o que há de útil ou de desvantajoso, mecanismos

para que a coisa possa servir a um grupo de indivíduos, ou mesmo de contrariar interesses pré-

estabelecidos. A análise do valor, por sua vez, é um esforço científico realizado fundamentalmente

pelos filósofos por meio da axiologia desde a Antiguidade,41 sendo atualmente empregado em

praticamente todos os ramos científicos. Alguns pensadores modernos colocam grande

centralidade na identificação do valor, quando afirmam, por exemplo, que “todas as ciências

devem doravante preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim

compreendida: o filósofo deve resolver o problema do valor, deve determinar a hierarquia dos

valores.” (NIETZSCHE, 1998, p. 46).

Kant (2007a, p. 5) propõe que todos os conhecimentos têm origem em nossa

experiência, de forma a atribuir centralidade ao conceito de valor na compreensão da realidade,

com base no culturalismo. Neste sentido, os conhecimentos seriam divididos entre a priori e

aqueles empíricos, definidos como a posteriori.42 No conhecimento humano, existiriam juízos de

um valor necessário para atribuir significação universal. Logo, ao exercer o ato de conhecer, Kant

diz que este ato passa pela subjetividade do indivíduo, uma vez que o fato primordial da sensação

já imprime, desde a origem, a marca de sua subjetividade. Assim, os conhecimentos a priori, que

independem da experiência, seriam dados como fatos ou, nas palavras de Kant, um “valor

objetivo”. O espaço kantiano se qualificaria nesta classificação como valor objetivo, onde o fato

poderia ser enquadrado como um objeto da intuição empírica.

Não nos foi difícil fazer compreender como os conceitos do espaço e do tempo, ainda que

conhecimentos “a priori”, devem, necessariamente, referir-se a objetos, e como

possibilitam um conhecimento sintético dos mesmos, independentemente de toda

experiência. Efetivamente, como somente mediante essas formas puras da sensibilidade

pode oferecer-se-nos um objeto (quer dizer, ser objeto da intuição empírica), resulta que

o espaço e o tempo são intuições puras que contêm “a priori” as condições de

possibilidade dos objetos como fenômenos, e tem a síntese nas mesmas um valor objetivo.

(KANT, 2007a, p. 74).

41 A axiologia é tratada desde a Antiguidade, sendo fortemente identificada em Sócrates, Platão, Aristóteles e no

discurso escolástico. Este recurso foi implementado pelos medievais, notadamente Santo Agostinho e São Tomás de

Aquino, que ao versarem sobre o bem e o mal acabavam por atribuir valor a estas categorias. Na Modernidade, Hume,

Descartes, Leibniz e Kant podem ser tomados como referência na busca da essência do valor enquanto categoria. 42 Esta distinção tem relevante função na construção do valor jurídico e da técnica jurídica, uma vez que Kant, de

forma a esclarecer a categoria da lei jurídica, pormenoriza o elo entre estas duas categorias por estabelecer a ligação

entre lei e moral. “Em contraste com as leis da natureza, essas leis da liberdade são denominadas leis morais.

Enquanto dirigidas meramente a ações externas e à sua conformidade à lei, são chamadas de leis jurídicas; porém,

se adicionalmente requererem que elas próprias (as leis) sejam os fundamentos determinantes das ações, são leis

éticas e, então, diz-se que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade de uma ação, e a conformidade com as

leis éticas é sua moralidade.” (KANT, 2003, p. 63).

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Uma visão crítica deste pensamento sugere que os modernos incorrem no mesmo tipo

de equívoco de Aristóteles, qual seja, equiparar bens e fins aos valores.43 Por outro lado, no outro

extremo, se levada a abstração do conceito de valor as últimas consequências, ocorrerá o que

Valadier (1996, p. 19) enunciou de anarquia dos valores, pois escaparia à discussão razoável, uma

vez que se revela como sendo incontestável no campo de influência do cada um por si. Logo, deve-

se considerar o valor em sua dimensão axiológica, ou culturalista em um jargão popular, de uma

forma que transcenda particularismos mas que seja dotado de determinado nível de consenso. Ou

seja, passa-se a considerar o valor enquanto elemento de constituição da sociedade pelo consenso

e pela mediação, instrumentos necessários para transcender os particularismos.

Este objetivo, para ser alcançado, necessita resgatar sua dimensão temporal, enquanto

elemento constituidor da experiência. Ortega y Gasset, na contemporaneidade, destaca esta

característica que era considerada por Kant, por compreender que o valor objetivo das categorias

repousa no fato de que a experiência serve como mediadora desta construção. Há especial destaque

para a estrutura axiológica da sociedade, haja vista que “é conveniente voltar de quando em quando

uma grande olhada na profunda alameda do passado: nela aprendemos os verdadeiros valores -

não no mercado do dia”. (ORTEGA Y GASSET, 1998b, p. 44). Desta forma os valores marcam

a vida da sociedade, uma vez que se encontram na base da cultura, que por sua vez toma como

grande referência a história, que produz experiência.

De forma a corroborar para que a discussão filosófica sobre os valores seja tão central

e vasta quanto abstrata e controversa, e voltando à referência na fenomenologia, na seara

sociológica Weber relativiza a construção de fato social ao considerar que a realidade é infinita, e

quem a estuda faz nela apenas um recorte científico a fim de explicá-la. Esta delimitação material

realizada é fruto de uma opção de estudo de um objeto em determinado momento. Nesse sentido,

não haveria objetividade absoluta, mas um juízo de valor que não poderia ser ignorado na

construção científica, todavia agregado a esta. Para Weber, o valor é uma espécie de fato

relativizado.

[...] a história das ciências da vida social é, e continuará a ser, uma alternância constante

entre a tentativa de ordenar teoricamente os fatos mediante uma construção de conceitos

e a composição dos quadros mentais assim obtidos, devido a uma ampliação e a um

deslocamento do horizonte científico, e à construção de novos conceitos sobre a base

assim modificada (WEBER, 1998, p. 131).

43 Neste sentido, SCHELER, 1941, p. 22.

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36

Neste sentido, Weber (2003, p. 90) explica o valor social enquanto aspecto qualitativo

dos fatos. A axiologia é a qualificação da fenomenologia, que ocorre por meio da valoração dos

fatos mediante aspectos culturais, haja vista que a axiologia é culturalista.

[...] o conceito de cultura é um conceito de valor. A realidade empírica é ‘cultura’ para

nós porque e na medida em que a relacionamos a ideias de valor. Ela abrange aqueles e

somente aqueles componentes da realidade que através desta relação tornam-se

significativos para nós. (WEBER, 2003, p. 92)

Na construção do que se denominou de Sociologia dos valores, Durkheim identifica

uma clara separação entre o fato, ao abordar o fato social e seus elementos constitutivos, e o valor,

ao pormenorizar os aspectos da moral em face da ciência sociológica. Os produtos da consciência

coletiva são repositórios de valores que, por sua vez, estão e pertencem à natureza. Com se

buscasse uma espécie de “mínimo múltiplo comum” na sociologia, Durkheim constrói uma teoria

na busca de uma consciência coletiva irredutível e superior à consciência dos indivíduos

componentes.44 Este conceito, como se verá adiante, encontra grande repercussão tanto na

Geografia quanto no Direito.

No que concerne a identificar valores geográficos dissociados daqueles sociais, em

que pese conferir uma importante ferramenta de compreensão do fato geográfico, por meio da

repercussão espacial do fato social, Durkheim busca a construção de uma morfologia social. O

papel da ciência geográfica para o desenvolvimento do valor social decorreria de sua natureza

estritamente física, não alcançando uma dimensão moral, qualificação esta atribuída ao Direito.

Mas, em primeiro lugar, esses diversos fenômenos apresentam a mesma característica que

nos ajudou a definir os outros. Essas maneiras de ser se impõem ao indivíduo tanto quanto

as maneiras de fazer de que falamos. De fato, quando se quer conhecer a forma como uma

sociedade se divide politicamente, como essas divisões se compõem, a fusão mais ou

menos completa que existe entre elas, não é por meio de uma inspeção material e por

observações geográficas que se pode chegar a isso; pois essas divisões são morais, ainda

que tenham alguma base na natureza física. É somente através do direito público que se

pode estudar essa organização, pois é esse direito que a determina, assim como determina

nossas relações domésticas e cívicas. Portanto, ela não é menos obrigatória. Se a

população se amontoa nas cidades em vez de se dispersar nos campos, é que há uma

corrente de opinião, um movimento coletivo que impõe aos indivíduos essa concentração.

Não podemos escolher a forma de nossas casas, como tampouco a de nossas roupas; pelo

menos, uma é obrigatória na mesma medida que a outra. As vias de comunicação

determinam de maneira imperiosa o sentido no qual se fazem as migrações interiores e as

trocas, e mesmo a intensidade dessas trocas e dessas migrações, etc., etc. Em

conseqüência, seria, quando muito, o caso de acrescentar à lista dos fenômenos que

enumeramos como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais; e,

como essa enumeração não tinha nada de rigorosamente exaustivo, a adição não seria

indispensável. (DURKHEIM, 2007, p. 11-12).

44 Corrobora neste sentido o entendimento de Reale, 2002, p. 198.

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Sem adentrar nas peculiaridades que levaram Durkheim a compreender a Geografia de

forma estritamente física, ponto de vista questionado nos diálogos com Ratzel,45 faz-se necessário

analisar como os geógrafos construíram o conceito de valor para efeitos científicos.

b) Do valor geográfico

O conceito de valor permeia grande parte dos estudos geográficos ao longo da história.

Como exemplo, na escola alemã do início do século XX, a obra de Ratzel adota o conceito de valor

ora como um bem político,46 ora como um recurso econômico,47 ora como uma dimensão

antropológica,48 de forma a determinar o desenvolvimento de um Estado. Ratzel parte do

pressuposto central de que o espaço possui uma espécie de valor absoluto para as sociedades e os

Estados, havendo uma aspiração natural por espaços, situação que diferencia os grandes povos e

aqueles que sofrerão com o isolamento, imbuídos de miserável espírito local (COSTA, 2008, p.

49).

De maneira a dialogar com esta construção alemã, Vidal de la Blache realizou

consistente síntese que identifica a ligação entre os fatos geográficos e os valores geográficos, uma

vez que atribui valor aos fatos, de forma a apontar a existência de uma interação entre estas duas

dimensões: o fato enquanto descrição, que proporciona a existência de um valor que será

igualmente analisado pelos geógrafos.

A Geografia distingue-se como ciência essencialmente descritiva. Não seguramente que

renuncie à explicação: o estudo das relações dos fenómenos, de seu encadeamento e de

sua evolução são também caminhos que levam a ela. Más esse objecto mesmo a obriga

mais que em outra ciência, a seguir minuciosamente o método descritivo. Uma dessas

tarefas principais não é localizar as diversas ordens de fatos que a ela concernem,

determinar exactamente a posição que ocupam, as áreas que abrangem? Nenhum índice,

mesmo nenhuma nuança não poderia passar despercebida; cada uma tem seu valor

geográfico, seja como dependência, seja como factor, no conjunto que se trata de analisar

(VIDAL DE LA BLACHE, 2014a).

45 Ou Antropogeografia versus Morfologia Social, retratados pormenorizadamente em CARVALHO, M., 1997. 46 “Na ideia política, não há não somente o povo, mas também o seu país. É por isso que apenas uma potência política

pode progredir sobre um mesmo solo, de maneira a tirar dele todo o seu valor.” (RATZEL, 2011 p. 53). 47 “Criou-se, no século XIX, a ideia nacional. Para muitos, ‘política nacional’ designa uma política fundada sobre a

compreensão do valor do solo; dessa forma eles dizem ‘nacionais’ em vez de ‘territoriais’.” (RATZEL, 2011 p. 52). 48 “O valor de uma parte do Estado depende da sua relação geográfica com o todo do organismo estatal. Os elementos

geográficos de um país que agem no sentido da sua propriedade essencial possuem a maior importância porque se

adicionam a uma soma de vantagens presentes.” (RATZEL, 2011 p. 56).

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Logo, tanto a corrente ratzeliana quanto a vidaliana, definidas pelo pensamento

geográfico, respectivamente, como determinista e possibilista, devem ser compreendidas enquanto

valor geográfico, e não como um fato. O determinismo não pode ser considerado um fato

geográfico pois, em que pese atender ao requisito de coercitividade e de exterioridade, não atende

ao de generalidade, pois aquela doutrina estava confinada a um grupo restrito de beneficiados,

homogêneos, pela aplicação de propensas teorias evolucionistas aplicadas a finalidade de uma

percepção de Estado, configurando-se, assim, como um valor geográfico questionado por outros

valores geográficos. A corrente possibilista também não pode ser considerada um fato geográfico,

uma vez que não há que se falar em coercitividade, em que pese haver generalidade e exterioridade.

Se a natureza pode mudar a sociedade assim como a sociedade pode alterar a natureza, não há que

se falar em uma força irresistível em uma realidade de relativismo, o que tornam estas correntes

do pensamento geográfico igualmente axiológicas. E a grande virtude histórica destas correntes

foi exatamente demonstrar que fato geográfico e Geografia não são sinônimos, mas que aquela é

uma categoria de estudo desta, existindo igualmente formas de se identificar o valor geográfico.

No pensamento geográfico espanhol, Huguet del Villar (1921) promoveu relevante

contribuição a noção de valor geográfico, ao trabalhar com o conceito de “capacidade de carga”

para designar o limite que um determinado ambiente pode suportar de população em um

determinado lapso temporal, considerando elementos essenciais, como água, alimentos e demais

demandas, de forma a ser pioneiro no que concerne as demandas contemporâneas de

sustentabilidade econômica. Neste aspecto, o valor geográfico seria um conceito que preza pela

preservação e conservação dos espaços geográficos, incluindo a escala Estado (no caso, a Espanha)

e a localidade.

No Brasil, a necessidade de caracterizar o valor geográfico torna-se mais evidente à

partir da década de 1940. Carvalho, D. (2011, p. 865) é enfático ao afirmar a ligação entre fato49 e

valor geográfico, ao dizer que o fato só tem valor geográfico quando nele integrado. Era o início

da compreensão da Geografia enquanto ciência, que estuda fatos e valores. O método do inquérito

geográfico, que possibilitaria valorar o fato, passa a ganhar novos contornos epistemológicos, ao

cumprir o que Claval (2001, p. 63) denominou de espécie de aplicação da Sociologia a Geografia,

de forma a obter o valor e a significação dos fatores geográficos locais.

Mas esta construção da noção de valor geográfico estava na antessala de uma grande

contradição, pois a discussão sobre sua existência polarizou duas correntes do pensamento

49 Para Carvalho, D., para que um fenômeno mereça o qualificativo de geográfico necessitaria que o fator posição ou

situação o venha diferenciar de outros ramos científicos.

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geográfico. Após a segunda metade do século XX, diferentemente da corrente clássica, poucos

trabalhos podem ser encontrados na Geografia Quantitativa e na Geografia Crítica sobre valor

geográfico enquanto categoria de estudo. Todavia, ambas colocaram centralidade no valor, em que

pese terem o feito de forma diametralmente oposta. Para os quantitativos, a Geografia deveria ser

desprovida completamente de valor, dado o seu caráter eminentemente técnico, pensamento que

encontra síntese em Hartshorne, que definiu com excelência o dogmatismo do fato geográfico ao

afirmar que devemos fazer Geografia e não discuti-la.50

Por sua vez, a Geografia Crítica conferiu ricos debates que bem sintetizaram o que

Claval sugeriu, de que os geógrafos não deveriam continuar neutros perante injustiças tão gritantes.

Assim, a corrente crítica tem como principal característica colocar centralidade absoluta na

discussão do valor geográfico, a ponto de confundi-lo como objeto único de estudo da Geografia,

obtendo como principal resultado uma ciência rica em percepções mas de frágil organicidade.

Conceitos como desigualdade, justiça, cidadania, ética, moral, dentre outras categorias de valores,

começaram a ter a busca de sua compreensão intensificada, sob a justificativa de se compreender

sua repercussão espacial.

Por outro lado, a Geografia Cultural passou a identificar uma axiologia que conferiria

uma pista sobre como se pode identificar valores para efeitos geográficos. Retornando a Claval

(1999), a cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e

dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas, compartilhando códigos de

comunicação que tem em comum um estoque de técnicas de produção e de procedimentos de

regulação social que asseguram a sobrevivência e a reprodução do grupo. Logo, uma cultura é

definida pela uniformidade de valores, justificados por uma filosofia, uma ideologia ou uma

religião compartilhada, fato que torna a dimensão valorativa um elemento culturalista.

É fato que, na construção de uma teoria marxista da Geografia,51 diversos geógrafos52

se esmeraram nos estudos sociais e econômicos para extrair um critério espacial do valor social

que pudesse servir de estudo.53 Contudo, dentre os modelos propostos pela Geografia na segunda

50 Corrobora neste sentido BRAGA, 2007, p. 68. 51 Expressão empregada por MORAES; COSTA, 1979, p. 121. 52 Harvey, no último parágrafo de sua obra “A produção capitalista do espaço”, vislumbra uma oportunidade na busca

capitalista de valores, ao enunciar que “(os capitalistas,) [a]o procurarem explorar valores de autenticidade,

localidade, história, cultura, memórias coletivas e tradição, abrem espaço para a reflexão e a ação política, nas quais

alternativas podem ser tanto planejadas como perseguidas.” (HARVEY, 2001, p.237). 53 A busca de uma teoria marxista da Geografia compreende o trabalho como fonte de valor, sendo estas duas

categorias a base da materialidade social. Todavia, é preciso haver um cuidado semântico com a expressão “valor”

disposta pela Geografia Marxista, que tem o sentido de relações sociais, pois se caracteriza pela busca da

descoisificação do valor, uma vez que o valor se caracteriza pela troca, que pressupõe mercadoria e circulação.

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metade do século XX, nos filiamos ao corte epistemológico proposto por Santos, M. (2006), que

não se atém ao processo em si da produção do espaço, o que implicaria entrar na teoria do valor

marxista, mas no resultado da construção do critério espacial do valor e sua ação sobre o

movimento da totalidade social.54 Esta perspectiva, de reconhecer o valor social dos objetos sem

adentrar na teoria do valor possibilita a busca do valor geográfico com base em seu fenômeno, ou

coisificação nas palavras de Durkheim, que se instala e se insere num tecido preexistente, de forma

que seu valor real é encontrado no funcionamento concreto do conjunto, considerado que sua

presença também modifica os valores preexistentes (SANTOS, M., 2006, p. 37).

Esses objetos e essas ações são reunidos numa lógica que é, ao mesmo tempo, a lógica da

história passada (sua datação, sua realidade material, sua causação original) e a lógica da

atualidade (seu funcionamento e sua significação presentes). Trata-se de reconhecer o

valor social dos objetos, mediante um enfoque geográfico. A significação geográfica e o

valor geográfico dos objetos vem do papel que, pelo fato de estarem em contiguidade,

formando uma extensão contínua, e sistemicamente interligados, eles desempenham no

processo social (SANTOS, M., 2006, p. 49).

Logo, a noção axiológica da Geografia advém da contiguidade de valores geográficos,

que por sua vez atuam com base em objetos já agidos, sejam físicos, sejam enquanto realidade

social, formas-conteúdo, isto é, objetos sociais já valorizados aos quais a sociedade busca oferecer

ou impor um novo valor, (SANTOS, M., 2006, p. 88) que podem ser considerados valor geográfico

com base em fatos geográficos.

Os eventos, as ações, não se geografizam indiferentemente. Há, em cada momento, uma

relação entre valor da ação e o valor do lugar onde ela se realiza: sem isso, todos os lugares

teriam o mesmo valor de uso e o mesmo valor de troca, valores que não seriam afetados

pelo movimento da história. Há uma diferença entre dizer que o espaço não é uma causa

e negar que ele é um fator, um dado. Admitir a “existência” do espaço não é ser

“geodeterminista” (SANTOS, M., 2006, p. 70).

Ao edificar o valor geográfico enquanto critério espacial do valor social, que pressupõe

sua ação sobre o movimento da totalidade social, cabe aos geógrafos perguntar “Quando?” ao valor

social, elemento indissociável para fixar a solidariedade, que é o objeto de estudo geográfico no

eixo axiológico. Afinal, é ele que caracteriza a perenidade da coesão espacial e da divisão

geográfica do trabalho, de maneira a capturar o “movimento da história”, para empregar a

expressão cunhada por Santos, M. e descrita acima. O “Quando?” historiciza a Geografia, a

contextualiza no tempo, conferindo uma definição epistemologicamente funcional no plano

54 Corrobora neste sentido MORAES; COSTA, 1979, p. 125.

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axiológico, e confere os elementos necessários para se compreender a coesão dos elementos

dispostos neste espaço dentro da simetria centralização-descentralização, que produzem o critério

espacial dos valores sociais.

Caracterizado o valor geográfico como uma dimensão axiológica indispensável para a

construção da Geografia enquanto ciência, sendo o critério espacial do valor social, passaremos a

identificar como se manifesta o fato jurídico igualmente com base no valor social, com o objetivo

de estabelecer futura simetria perante o valor geográfico.

c) Do valor jurídico

O valor jurídico, assim como o ocorrido com o valor geográfico, encontra uma base

culturalista, na qual os indivíduos classificam suas condutas mediante valores, com um objetivo

finalístico. Na Modernidade, Hegel traduz e sintetiza o conceito de valor com a riqueza do

idealismo jurídico, atrelando ao culturalismo a prerrogativa da universalidade do pensamento.

A reflexão relacionada aos instintos, enquanto os representa, os calcula e compara entre

si, com seus meios e conseqüências, e com uma totalidade de satisfação - a felicidade -

dá a esse material a universalidade formal e o purifica desse modo exterior de sua crueza

e barbárie. Esta produção da universalidade do pensamento é o valor absoluto da cultura

(HEGEL, 1997, p. 390).

A universalidade de pensamento de Hegel é sistematizada no positivismo de Kelsen,

que demonstra o caráter binário (ou simétrico, nas palavras de Latour) que a valoração da norma

deve obedecer enquanto técnica, de forma a possibilitar uma coerção eficaz do Estado perante a

sociedade.

Uma norma objetivamente válida, que fixa uma conduta como devida, constitui um valor

positivo ou negativo. A conduta que corresponde à norma tem um valor positivo, a

conduta que contraria a norma tem um valor negativo. A norma considerada como

objetivamente válida funciona como medida de valor relativamente à conduta real

(KELSEN, 1996, p. 12).

Para Bobbio, o valor está na essencialidade do Direito, por estar alicerçada na Filosofia

do Direito, uma vez que esta essência pode “ser definida como o estudo do direito do ponto de

vista de um determinado valor, com base no qual se julga o direito passado e se procura influir

no direito vigente” (BOBBIO, 1995b, p. 138). Bobbio identifica que o positivismo estabelece essa

divisão entre juízos de fato e juízos de valor.

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O motivo dessa distinção e dessa exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de

juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a

formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a

minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário uma tomada de posição frente

à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir

sobre o outro [...] (BOBBIO, 1995b, p. 135).

No Brasil, Reale, em esforço jusfilosófico, discorreu de forma profunda sobre o valor

jurídico, momento em que pôde analisar os pensamentos de diversos filósofos e cientistas

jurídicos, dentre os quais Hegel, Kant, Kelsen e Bobbio, de forma a propor uma síntese do

pensamento destes autores, dando uma noção de sistema ao invés de contraponto de cada uma das

percepções. Graças à verificação dos fatos, pode-se afirmar que o espírito humano se projeta sobre

a natureza, conferindo uma nova dimensão, que são os valores, enquanto consciência histórica, um

processo dialógico que traduz a interação das consciências individuais.

[...] os valores, em última análise, obrigam, porque representam o homem mesmo, como

autoconsciência espiritual; e constituem-se na História e pela História porque esta é, no

fundo, o reencontro do espírito consigo mesmo, do espírito que se realiza na experiência

das gerações, nas vicissitudes do que chamamos ‘ciclos naturais’, ou civilizações

(REALE, 2002, p. 206).

O valor não pode se reduzir ao real, tampouco coincidir, sob pena de se converter em

dado. Logo, conforme explica Reale, como realidade e valor se implicam, sem se reduzirem um

ao outro, o mundo da cultura obedece a um desenvolvimento dialético de complementariedade. Os

valores não são uma realidade ideal e acabada, mas algo que a sociedade realiza em sua própria

experiência e que assume expressões diversas e exemplares através do tempo. Assim, o valor é um

“processus da experiência humana de que participamos todos, conscientes ou inconscientes de sua

significação universal”, pois o ato de valorar é um componente intrínseco do ato de conhecer.

Reale ensina sobre as características do valor de forma pormenorizada, enunciando

diversos preceitos que contribuem para uma construção valorativa. Dentre estes preceitos, destaca-

se o da bipolaridade, uma vez que um valor sempre se contrapõe a um desvalor. “Ao bom se

contrapõe o mal; ao belo, o feio; ao nobre, o vil; e o sentido de um exige o do outro. Valores

positivos e negativos se conflitam e se implicam em processo dialético.” (REALE, 2002, p. 189).

Outra característica relevante do valor seria a da implicação, no sentido de que nenhum deles se

realiza sem influir, direta ou indiretamente, nos demais valores. Assim, o valor sempre se

contrapõe ao fato, jamais se reduz a este. Uma terceira característica seria a referência, uma vez

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que o valor implica em uma tomada de posição da sociedade, conferindo uma referência, haja vista

atribuir um sentido a um objeto, ou a um fato.

Reale fundamenta ainda a teoria da consciência coletiva irredutível, de Durkheim,

enquanto elemento superior à consciência coletiva dos indivíduos. Para tanto, foi empregada uma

alegoria sobre a composição da água para explicar, de forma didática, a Sociologia dos valores.55

A estrutura dos valores, enquanto entidades polares, proporciona uma verdadeira dialética de todos

os bens culturais, uma vez que a sociedade atribui valor às coisas e aos atos, constituindo assim o

mundo histórico-cultural. Este conceito deriva da concepção de que o revelar-se da sociedade a si

mesmo já é em si e por si um valor, a fonte de todos os valores. Em outras palavras, ao interpretar

Ortega y Gasset, quando afirma a máxima de que ‘eu sou eu e minha circunstância’, realça-se a

sociedade situada, deixando implícito o mundo de valores que o transcende, ao se iniciar com seu

próprio conceito de vida. (REALE, 1986, p. 99)

Estes ideais constantes na sociologia dos valores descortinam conceitos como o do

pluralismo jurídico, que em síntese valorizam a particularidade em detrimento à unicidade,

enfatizando a diferença como pressuposto da sociedade. Há o resgate do papel da mediação, que

em última análise “define a prática do poder como a negociação permanente nos desacordos, a

busca ativa das soluções de compromisso e a invenção dos equilíbrios provisórios no seio das

relações de força”. (ANSART, 1978, p. 170)

Ante o exposto, conclui-se que o valor jurídico resulta em um critério coercitivo do

valor social, que pressupõe uma ação ordenatória sobre a totalidade social. Nesta linha, cabe aos

juristas indagar “Por quê?” ao valor social, elemento imprescindível para compreender a justiça

(ou a ausência dela), que é o objeto de estudo jurídico no eixo axiológico. Afinal, é ele que

caracteriza os valores éticos de ética, moral, igualdade, fraternidade, dentre outros, que

possibilitam a obtenção da justiça enquanto elemento fundamental de constituição da sociedade.

O “Por quê” justifica o Direito e contextualiza a sociedade no espaço, conferindo os elementos

necessários para se mediar os interesses desta sociedade dentro da simetria ordem-desordem, que

produzem o critério coercitivo dos valores sociais. Independentemente da corrente jurídica a ser

adotada, desde o positivismo puro ao pluralismo jurídico completo, o que importa é obter uma

sociedade situada em seus direitos e em suas obrigações.

55 “Assim como o hidrogênio e o oxigênio se compõem para formar a água, e esta não reúne as qualidades de seus

elementos formadores, líquido que é, não comburente nem combustível, assim também a sociedade formaria um todo

uno e diverso, que não seria explicável tão-somente pela simples soma dos indivíduos que se congregam para viver

em comum. O elemento distintivo do fato social seria dado pela consciência coletiva, insuscetível de ser explicada à

luz da Psicologia individual.” (REALE, 2002, 189).

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d) Do nivelamento epistemológico entre Geografia e Direito no plano

axiológico e seus exemplos

Assim como o ocorrido na dimensão fenomenológica, é possível vislumbrar um

modelo em que a Modernidade em geral, e as Ciências Sociais em específico, tornam-se pontos

de partida, por meio do valor social, para identificar tanto o valor geográfico quanto o valor

jurídico, por meio da axiologia, que promove o que denominaremos de culturalismo. Nestes

termos, o critério espacial do valor social passaria a ser tratado pela Geografia, de forma que o

critério coercitivo do valor social seria objeto de estudo do Direito, em uma realidade na qual a

relação Sociedade-Natureza continua a ser tratada intrinsecamente por cada uma destas ciências,

mas com preponderância ao fato da sociedade em detrimento do fato da natureza.

FIGURA 6 - Relação entre Geografia e Direito no plano axiológico

Esta opção metodológica não significa que a Geografia não tenha seus “porquês” e que

o Direito não tenha seus “quandos”. Muito pelo contrário. A sociedade atribui valor às coisas e

aos atos, constituindo assim as razões e as justificativas do mundo histórico-cultural, tanto na

Geografia quanto no Direito. Todavia, para efeitos da presente construção interdisciplinar, atribuir

a Geografia a pergunta “Quando?” corresponde buscar uma historicização axiológica para a

simetria centralização-descentralização, ou seja, do critério espacial do valor social, que contém

em si questionamentos intrínsecos. Por outro lado, ao delegar ao Direito a questão “Por quê?”,

almeja-se compreender, axiologicamente, a simetria ordem-desordem, logo, o critério coercitivo

do valor social, que igualmente contém em seu bojo uma temporalidade inerente desta dicotomia.

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TABELA 3 – Exemplos de caracterização do valor geográfico e do valor jurídico

Demanda social

O que?

Objeto de estudo

Valor Geográfico

Quando?

(Solidariedade)

Valor Jurídico

Por quê?

(Justiça)

Ampliar o sistema

metroviário em São Paulo

Geografia Urbana, mobilizar a sociedade metropolitana até a obtenção dos benefícios deste empreendimento,

desnudando os interesses sociais projetados no espaço.

Direito Urbanístico, necessidade de aprimorar a mobilidade urbana (exercício do direito de ir e vir)

pelo poder coercitivo.

Aprimorar o Registro de imóveis (sistema cartorário)

Geografia Urbana e Agrária, mobilizar a sociedade até a

obtenção dos benefícios de um cadastro territorial, analisando tecnicamente (e permanentemente) eventuais

sobreposições de títulos (beliche cartorário).

Direito Urbanístico e Agrário, necessidade de

aprimorar a qualidade dos títulos de posse, considerando sua validade e sua eficácia jurídica

(Direito Civil).

Combater o aquecimento

global

Geografia Física e Geografia Ambiental, mobilizar a sociedade global permanentemente por meio de estudos,

debates e conscientização, desnudando os interesses sociais

projetados no espaço.

Direito Ambiental e Direito Internacional, necessidade de combater o aquecimento global com

o objetivo de garantir a perpetuidade das espécies

existentes (Direito a vida).

Combater o desmatamento

da Amazônia

Geografia Física e Geografia Ambiental, mobilizar os países amazônicos permanentemente, de maneira a

explorar os recursos naturais de forma sustentável (pacto de

gerações), de forma a preservar o uso da floresta pelas gerações futuras.

Direito Ambiental e Direito Internacional,

necessidade de aliar desenvolvimento econômico

agrário com o uso sustentável da floresta. Mediar

livre iniciativa e proteção ambiental.

Compreender a anexação da

Crimeia pela Rússia

Geografia Política (ou Geopolítica), mobilizar a sociedade

global permanentemente, expondo o ponto de vista de cada

nação, demonstrando o impacto no tempo deste ato político, desnudando os interesses políticos projetados no

espaço.

Direito Internacional Público, necessidade de avaliar

se a Rússia, a Ucrânia, a União Européia, a Organização das Nações Unidas e demais países-

membros cumpriram os tratados internacionais

referentes a vontade da população local (Crimeia). Direito a Soberania.

Controlar a alfândega em Santana do Livramento

Geografia Humana, identificar as formas de interação dos

dois países por meio das relações existentes entre as duas cidades, desnudando os interesses sociais projetados no

espaço enquanto elemento de integração regional.

Direito Administrativo e Direito Internacional,

necessidade de aprimorar a mobilidade urbana (exercício do direito de ir e vir) entre os dois países

enquanto elemento de integração regional.

Criar zonas francas

Geografia Regional, identificar as formas de interação entre

as zonas sob subsídio fiscal perante as demais, desnudando

os interesses sociais projetados no espaço enquanto elemento de desenvolvimento regional.

Direito Administrativo, necessidade de descentralizar

a produção industrial, tratando desigualmente regiões desiguais (princípio da isonomia), de forma a

desenvolver economicamente a região norte do

Brasil.

Explorar o Aquífero

Guarani

Geografia Física, mobilizar os países do Cone Sul

permanentemente, de maneira a explorar os recursos

naturais de forma sustentável (pacto de gerações), de forma a preservar o consumo das gerações futuras.

Direito Administrativo e Direito Sanitário,

necessidade de universalizar o atendimento ao

saneamento básico para as populações de baixa renda (princípio da igualdade).

Explorar petróleo na

plataforma marítima

Geopolítica e Geografia da Energia, debater o uso dos

royalties do petróleo dentro de uma perspectiva solidária, preservando o pacto de gerações.

Direito Administrativo, Direito da Energia e Direito

Internacional, necessidade de garantir a segurança

jurídica para o pleno funcionamento da extração, transporte, refino e distribuição do petróleo

(princípio da livre iniciativa).

Fixar indicação geográfica

para o açaí do Marajó

Geografia Regional, identificar as formas de representação dos produtores de açaí na ilha de Marajó ao longo do

tempo para que promovam desenvolvimento regional com

a patente do açaí de Marajó.

Direito Civil (Propriedade Intelectual), necessidade de garantir a segurança jurídica para que os

produtores do açaí de Marajó consigam patenteas sua

indicação geográfica.

Gerir o Polígono das secas

Geografia Regional, mobilizar os estados e os municípios

até que o déficit de serviços públicos, notadamente o

sistema de saneamento, estejam universalizados, de forma a garantir a perenidade (pacto de gerações) do uso e da

ocupação do solo árido.

Direito Administrativo e Direito Sanitário, necessidade de universalizar serviços púbicos na

região, de forma a viabilizar o acesso a água e ao

saneamento (princípio da igualdade).

Viabilizar a Região

Integrada de Desenvolvimento do

Distrito Federal e Entorno

(RIDE)

Geografia do Estado, Geografia Regional e Geografia

Urbana, identificar os reflexos do crescimento de Brasília

nos municípios vizinhos, de forma a identificar formas de tratamento homogêneo das questões sociais regionais.

Direito Constitucional e Direito Administrativo,

necessidade de conceber instrumentos jurídicos para conferir uniformidade jurídica as diferentes entidades

federadas para gestão urbana de Brasília de forma

única.

Tome-se novamente como exemplo o rio utilizado como base da compreensão

fenomenológica. Este rio pode ser analisado sob a ótica axiológica, uma vez que ele produz valores

sociais perante a sociedade estabelecida em sua margem. Este rio tem em si um critério que é

espacial, que consiste em identificar espacialmente onde haverá a prática cultural que será aplicada

ao manejar e adensar as populações ribeirinhas, utilizar os recursos naturais dispostos por este rio,

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desviar seus recursos hídricos para promover irrigação ou abastecimento etc.. Da mesma maneira,

este rio contém uma valoração coercitiva, que manifesta o interesse de uma coletividade perante

as pretensões de indivíduos, que consubstanciará um pacto coletivo de como determinada

sociedade pretende lidar com estes recursos e impor esta vontade a individualidades. É o que

ocorre claramente na construção de uma barragem para produção hidrelétrica, ou demais usos

industriais deste recurso hídrico. Acima podem-se notar outros exemplos, fundados nas mesmas

demandas sociais apresentadas no plano fenomenológico:

Logo, a relação fato-valor é uma construção que pode ser observada tanto na Geografia

quanto no Direito, produzindo repercussões científicas, na qual, em última análise, são orientados

por uma espécie de princípio da simetria, para o qual Latour identificou uma explicação satisfatória

para fundar esta interdisciplinaridade epistemológica. Todavia, em que pese sua

imprescindibilidade, estas duas dimensões ainda não conferem o necessário caráter totalizante

destes dois projetos científicos.

Considerando que “os conceitos, sem as intuições (sensíveis), são vazios; as intuições

sem os conceitos são cegas” (REALE, 2002, p. 100), o plano fenomenológico e o axiológico não

bastam para explicar a Geografia e o Direito enquanto ciências. Analisado o fato e o valor, dentro

de uma perspectiva fenomênica e cultural, que devem ser concebidos em conjunto para a

edificação da ciência geográfica e jurídica, deve-se compreender a dimensão que instrumentaliza

esta estrutura em seu sentido mais estrito, sendo a técnica, por meio da linguagem, seu objeto de

estudo, conforme se verificará no próximo item.

1.3 A técnica e sua repercussão geográfica e jurídica

“Sem a técnica o homem não existiria e nem teria existido. Assim, sem mais nem

menos.” Com esta abordagem cortante, Ortega y Gasset (1998a) abre o ensaio Meditação sobre a

técnica e passa a definir a técnica como a reforma que a sociedade impõe à natureza para satisfazer

as suas necessidades.56 Seria uma reação enérgica contra a natureza ou circunstância na qual, em

última análise, faz com que a sociedade crie uma espécie de sobrenatureza. Na visão do filósofo

espanhol, a técnica adapta o meio ao sujeito, uma vez que um indivíduo sem técnica, sem reação

ao meio, não é um ser humano.

56 No mesmo sentido, “Será então preciso mover o céu e a terra para abrigar as redes de ciências e técnicas? Sim, é

exatamente isso: o céu e a terra.” (LATOUR, 1994, p. 16).

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Para tanto, Ortega y Gasset, primeiro filósofo profissional a discorrer sobre a técnica,57

pontua quais são os objetivos da técnica enquanto objeto de estudo filosófico: (i) assegurar a

satisfação das necessidades elementares da sociedade; (ii) alcançar a satisfação com o mínimo de

esforço; e (iii) criar possibilidades completamente novas produzindo objetos que não existem na

natureza do ser humano, tais como navegar, voar, comunicar por meio de aparelhos de radiodifusão

etc.. Em que pese o conceito contemporâneo de Ortega y Gasset trazer em seu bojo a contraposição

Sociedade-Natureza, este conceito de técnica remonta à práxis presente desde a Antiguidade, ao

buscar integrar as forças produtivas do ser humano de forma raciocinada.58

Esta contraposição Sociedade-Natureza com viés instrumental também pode ser

identificada nos estudos sobre razão instrumental da escola de Frankfurt, na qual pressupõe que o

sujeito do conhecimento busca conhecer, dominar e controlar a natureza,59 bem como nas análises

sobre técnica de Heidegger, que não a define como um simples meio, mas como uma forma de

desencobrimento, que tem como objetivo trazer a verdade. Heidegger compreende a técnica como

a forma de relacionar, explorar e desafiar a natureza, dispondo desta, de forma que a técnica sofre

um processo dinâmico de aperfeiçoamento por meio do lema “o máximo de rendimento possível

com o mínimo gasto”.

A técnica moderna precisa utilizar as ciências exatas da natureza porque sua essência

repousa na com-posição. (sic) Assim nasce a aparência enganosa de que a técnica

moderna se reduz à aplicação das ciências naturais. Esta aparência apenas se deixa manter

enquanto não se questionar, de modo suficiente, nem a proveniência da ciência moderna

e nem a essência do que se questiona. (HEIDEGGER, 2002. pp.26).

Dentro de uma dicotomia cara ao pensamento geográfico, a relação Sociedade-

Natureza concebe os artefatos como projetos, conscientes ou não, dos órgãos naturais da

sociedade, de forma que a riqueza das criações espirituais brotaria dos órgãos físicos. Logo, a

história não é o desdobrar-se necessário da ideia absoluta, ou Moderna, mas o registro da prática

empírica da sociedade para superar os desafios da natureza por meio da técnica.60 Mas que técnica

social seria esta?

57 Corrobora neste sentido MITCHAM, 1990, p. 58. 58 Aristóteles, em “Ética a Nicômaco”, entende a técnica como a capacidade de produzir algo de maneira raciocinada. 59 Para aprofundamento, Horkheimer (1994) e Habermas (1985). 60 Neste sentido, CRAIA, 2003, p. 39

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a) Da técnica social

A análise filosófica de Goffi (1988, p. 21-22) busca na sociologia de Weber a definição

para técnica de uma atividade social, sendo uma espécie de somatória dos meios necessários para

o exercício de nosso espírito, por oposição ao sentido ou ao fim da atividade que lhe determina,

em última análise, a orientação. Por sua vez, Weber realiza esforços para definir a técnica como

uma atividade-meio, condicionada pelo desenvolvimento econômico da sociedade. Para Sell, que

correlaciona técnica e valores com base em Weber,

No pensamento weberiano, a técnica está presente em todas as formas de ação social,

pois, seja buscando fins e valores, ou orientando-se pelos afetos e costumes, o indivíduo

sempre precisa empregar meios para levar a termo sua conduta. Independente dos critérios

que distinguem uma forma de ação de outra, a técnica é sempre uma propriedade da ação.

No entanto, Weber não considerou a técnica como uma forma específica de agir, mas

apenas como um ‘objeto alheio ao sentido’ que atua em relação à ação como ocasião,

resultado, estímulo ou obstáculo (SELL, 2011, p. 568).

Ainda na Sociologia, Castells (2003, p. 170-171) explica que a aderência entre técnica

e instrumento é absoluta, uma vez que a Geografia técnica diz respeito à infraestrutura de

telecomunicações da internet, às conexões entre os computadores que organizam seu tráfego

(roteadores) e à distribuição da banda larga nela; isto é, as linhas de telecomunicação dedicadas ao

tráfego de pacotes de dados. Castells aproxima o conceito de técnica geográfica à noção de

infraestrutura, relação que se demonstrará abaixo como extremamente estreita para a definição de

Geografia enquanto ciência que utiliza a Modernidade como referência epistemológica, e de

atribuição de objeto à Geografia de Estado de maneira específica.

a) Da técnica geográfica

Ante a matriz filosófica e social, a Geografia pode ser considerada como um ramo

científico que explorou pormenorizadamente o conceito de técnica. De forma primária, sempre

que uma dimensão da Geografia puder ser disposta como verbo, lá está a técnica. Retratar a

paisagem, levantar dados, falar, localizar, territorializar, regionalizar, mapear etc.. Da mesma

forma que o fato e o valor geográfico, a Geografia prescinde, nesta dimensão enquanto

materialidade, de identificar na vida social seu critério espacial, de forma a constituir sua base

técnico-científica.

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Se a ação gera realidade, é por meio de seu atributo técnico, o “império dos signos”,61

que ela se materializa.62 Por exemplo, a fala é uma linguagem63 produzida por uma técnica de

articular fonemas64 segundo determinadas regras gramaticais, com grande repercussão no ensino.65

O mapa do Brasil é uma técnica gráfica que produz uma linguagem.66 O mesmo ocorre com as

informações geoespaciais, a estatística ou o sensoriamento remoto. Logo, compreender a relação

linguagem e técnica torna-se imprescindível para compreender qualquer ramo científico enquanto

ciência em geral, e a Geografia, na busca de seu objeto espacial, em específico.

Além de identificar a técnica nas ações constantes nos verbos acima, as geografias

temáticas buscam técnicas de identificação espacial nos nichos propostos. A Geografia Urbana,

Agrária, da Energia, dos Transportes, da Cultura, do Cinema, da Saúde, enfim, quantos segmentos

forem possíveis identificar desde que haja interesse (valor) científico, é objeto técnico de estudo

61 LATOUR, 1994, p. 63. 62 Santos, M. contextualiza a linguagem como técnica que viabiliza a geração de realidade. “O mundo tornar-se-ia a

soma e a síntese de eventos e lugares, onde "tempo", "espaço" e "mundo" mudariam constantemente e o fato de

mudarem concomitantemente e de se auto-influenciarem permitiria que o espaço pudesse ser tratado como meio em

que a vida é tornada possível, mas também como linguagem, por permitir a geração de realidade.” (SANTOS, M.,

2008c, p. 163). 63 Lévy destaca a linguagem como elemento intrínseco da técnica, uma vez que os sentidos são os elos de ligação dos

seres humanos com o meio externo e representam também fonte de informação, de conhecimento. O principal

instrumento utilizado para estabelecer este elo é a linguagem, que consiste em uma poderosa forma de

empreendimento de liberdades e exercício de autonomia pelos indivíduos e pelas coletividades. “[...], mas é a própria

utilização intensiva das ferramentas que constitui a humanidade como tal (juntamente com a língua e as instituições

sociais complexas). O mesmo homem que fala [...] inventou e inventa as técnicas que chegam até nós [...] fundindo

os metais, alimentando as máquinas a vapor, correndo nos cabos de alta tensão, fervilhando nas centrais nucleares,

explodindo nas armas e nos equipamentos de destruição. Pela arquitetura que o abriga, o reúne e o inscreve na

Terra; pela roda e pela navegação que lhe abriram os horizontes; pela escritura, pelo telefone, pelo cinema, o mundo

humano é desde sempre técnico.” (LÉVY, 1997, p. 5). Raffestin tece uma pormenorizada leitura geográfica sobre a

linguagem em “Por uma Geografia do Poder”. Ele define o espaço e o tempo pela área e pela duração relacional. Neste

sentido, a linguagem ou as linguagens são meios para mediatizar relações políticas, econômicas, sociais e/ou culturais

num dado lugar e por uma duração específica. 64 Na obra “A Caminho da Linguagem”, Heidegger expõe sobre o ato de nomear e sua repercussão enquanto técnica,

por se tratar de um signo fonético. “O que significa “nomear”? Podemos responder assim: nomear é aparelhar

alguma coisa com um nome. E o que é um nome? Uma designação que confere a alguma coisa um signo fonético ou

gráfico, que lhe confere uma cifra. E o que é um signo? Um sinal? Uma insígnia? Uma marca? Um aceno? Ou tudo

isso e mais alguma coisa? Tornamo-nos por demais negligentes e calculadores na compreensão e uso de signos.”

(HEIDEGGER, 2004, p. 127). 65 Preocupação similar pode ser identificada em Cavalcanti, com base nas questões de ensino da Geografia. ““[...] o

ensino [de geografia] visa à aprendizagem ativa dos alunos, atribuindo-se grande importância a saberes,

experiências, significados que os alunos já trazem para a sala de aula incluindo, obviamente, os conceitos cotidianos.

Para além dessa primeira consideração, o processo de ensino busca o desenvolvimento, por parte dos alunos, de

determinadas capacidades cognitivas e operativa, através da formação de conceitos sobre a matéria estudada. Para

tanto, requer-se o domínio de conceitos específicos dessa matéria e de sua linguagem própria.” (CAVALCANTI,

1998, p. 88). 66 No Brasil, a linguagem é enfrentada por Moreira, que a coloca em centralidade quando considera as transformações

que levam do espaço de um arranjo arrumado em matrizes regionais a um espaço de um arranjo arrumado em rede.

“É fato que a linguagem geográfica deixou de atualizar-se já de um tempo. As expressões vocabulares antigas

perderam a atualidade, diante dos novos conteúdos, e as expressões novas foram tiradas mais de outros campos de

saber, que da sua própria evolução histórica.” (MOREIRA, 2007, p. 65).

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geográfico. Esta característica fica evidente em Sorre (1984), que encampa com clareza o objeto

técnico como estudo geográfico em sua construção de “Gênero de Vida”, uma vez que técnicas de

energia, de produção de matérias-primas, de maquinaria, são sempre técnicos, como as instituições

que mantêm a coesão do grupo assegurando sua perenidade. Aqui resta, novamente, a proliferação

dos quase-objetos de Latour, na forma de ramos da Geografia.

Dentre estas técnicas, encontra-se igualmente a Geografia do Estado. Lacoste destacou

que, em numerosos Estados, a Geografia é claramente percebida como um saber estratégico e os

mapas, assim como a documentação estatística, que dá uma representação precisa do país, é uma

técnica reservada a uma minoria dirigente, uma vez que os Estados, ao se apropriarem de mapas

enquanto técnica, promovem vantagens comparativas perante outros Estados (LACOSTE, 1981,

p. 17).

A Geografia “Teorética e Quantitativa” ou Geografia “Neopositivista” traz em seu

discurso um contundente componente técnico, ao empregar intensivamente técnicas matemático-

estatísticas como fonte de Geografia, conferindo centralidade a esta visão científica. Esta dita

corrente do pensamento geográfico tem como premissas: (i) alcançar o conhecimento científico ao

descartar a metafísica; (ii) estender o empirismo a todo o domínio do pensamento; (iii) matematizar

a Geografia, uma vez que todas as ciências são matematizáveis; e (iv) estudar os dados da

experiência mediada pelos sentidos ou por instrumentos (técnica).67 Assim, o conteúdo técnico

suscitou um poderoso instrumento de desenvolvimento de linguagens que produziam “paisagens

matemáticas”, uma vez que demonstravam o retrato, numérico, de determinada realidade.

Esta visão tecnicista da Geografia acaba sendo colocada em xeque por uma postura

mais valorativa da Geografia, na qual, como efeito reverso, acabou por considerar a vertente

técnica da Geografia como algo menor, com efeitos até hoje sentidos no pensamento geográfico.68

No Brasil, Carlos aclara como este movimento se sucedeu.

Desde a fundação da chamada “geografia científica” no Brasil há uma forte influência do

pensamento francês - o possibilismo embasa os trabalhos durante três décadas. A década

de 1960 marca um momento na geografia brasileira em que se contrapõem duas grandes

tendências. No Rio de Janeiro desenvolve-se, no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatística) a chamada New Geography ou Geografia Quantitativa que passa a

influenciar a maioria das pesquisas. De fundamentação matemática, esses trabalhos viam

a realidade a partir da perspectiva da regularidade dos fenômenos no espaço, fazendo da

técnica um fim em si mesma, enquanto na Universidade de São Paulo as pesquisas

tomavam um rumo diverso. Contrapondo-se às idéias esposadas por Berry e fiéis à escola

67 Adaptado de CAMARGO; REIS JÚNIOR, 2007, p. 91. 68 Como exemplo, Moraes chega a afirmar que “a esfera do aprimoramento do método (pela Nova Geografia) era

preenchida pela instrumentalização técnica, num quadro onde o adestramento cartográfico e em técnicas de

levantamento de campo tinha importante papel.” (MORAES, 2005, p. 136).

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francesa de interpretação da realidade, desenvolvem-se as pesquisas baseadas nos

fundamentos da chamada Geografia Ativa, sob a influência de Pierre George - que nasce

da constatação da extrema mobilidade das situações atuais, conduzindo a um estudo ativo

que pode inspirar ou guiar as ações e, que a meu ver, prepara o caminho das grandes

transformações do final dos anos 70 na Geografia brasileira. (CARLOS, 2002, p. 164).

Rompendo com a lógica de que técnica e valor deveriam ser compreendidos em

contraposição, Santos, M. devolve à técnica uma centralidade e, de certa forma, um papel relevante

e simétrico àquele destinado a crítica. Esta simetria pode ser observada na obra A Natureza do

Espaço, em que, no esforço de construção de sua teoria social, Santos, M. discorre sobre

tecnoesfera e psicoesfera, que podem ser compreendidos como sistemas de técnica e sistema de

valores.

A materialidade do território é dada por objetos que têm uma gênese técnica, um conteúdo

técnico e participam da condição da técnica, tanto na sua realização como na sua

funcionalidade. Esses sistemas técnicos atuais são formados de objetos dotados de uma especialização extrema. Isso é, sobretudo, válido para os objetos que participam dos

sistemas hegemônicos, aqueles que são criados para responder às necessidades de

realização das ações hegemônicas dentro de uma sociedade. (SANTOS, M., 1996, p. 176).

Santos, M., ao descrever a tecnoesfera como resultante da crescente artificialização do

meio ambiente, discorre sobre a fundamental centralidade da técnica na Geografia, a ponto de

defini-la como o ramo científico que estuda a “filosofia das técnicas”.69 Neste sentido, a técnica

seria o veículo necessário para ordenar o espaço de um país, graças aos fatos adjacentes a

intencionalidade da escolha dos objetos (que nada mais é do que axiologia, valor geográfico),

criando uma ligação entre a matematização (ou geometrização) do espaço com finalidade social.

Hoje, graças aos progressos técnicos e à aceleração contemporânea, os espaços nacionais

podem, também, grosseiramente, dividir-se em, de um lado, os espaços da racionalidade

e, de outro lado, outros espaços. É evidente que, como sempre, situações intermediárias

são muito numerosas. O caminho secular que conduziu a sociedade humana à necessidade

cotidiana da medida, padronização, ordem e racionalização já não é, hoje, exclusivo da

esfera da ação estudada por cientistas sociais não-geógrafos. Hoje, o próprio espaço, o

meio técnico-científico, apresenta-se com idêntico conteúdo de racionalidade, graças à

intencionalidade na escolha de seus objetos, cuja localização, mais do que antes, é

funcional para os desígnios dos atores sociais capazes de uma ação racional. Essa

matematização do espaço o torna propício a uma matematização da vida social, conforme

aos interesses hegemônicos. (SANTOS, M. 2008c, p. 30-31).

69 Esta construção epistemológica foi fundamentada a partir da publicação da obra Pensando o Espaço do Homem,

em que a noção de meio técnico-científico-informacional passa a ser empregado para explicar o processo de

globalização no território. Há a busca de se propor uma composição técnica e orgânica do espaço, que decorreria da

contemporaneidade e de seu uso crescente da tríade ciência-tecnologia-informação com finalidade hegemonizante.

Assim, a Geografia teria uma substância “científico-tecnológico-informacional” que nada mais é a decomposição da

técnica em seu sentido mais amplo, uma vez que ciência, tecnologia e informação são técnicas de domínio do homem

perante a natureza, e perante eles mesmos. (neste sentido, SANTOS, M. 2008c, p. 51).

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A dialética entre interesses hegemônicos e o poder jurídico de um Estado é

aprofundado por Antas Jr., que demonstra o caráter técnico da construção de Santos, M. sobre o

sistema de objetos indissociáveis do sistema de ações, destacando dois elementos supostos com

status equivalentes: a técnica (geográfica) e a norma (enquanto técnica jurídica). Nesta dimensão

técnica, Antas Jr. traz valorosos elementos interdisciplinares entre Geografia e Direito. Há uma

aceitação tácita do princípio da simetria quando destaca que “pode-se afirmar que a rigidez da

norma jurídica e a da forma geográfica - elementos que, instrumentalizados, se prestam à

regulação - compõem partes de um mesmo processo.” (ANTAS JR., 2005, p. 52). Ao se referir a

regulação70 enquanto construção de território normado, Antas Jr. discorre sobre o par dialético

entre território normado enquanto elemento repressivo e o território enquanto norma, elemento

comunicacional que serve como referencial diretor, de forma a trabalhar basicamente com dois

eixos interdisciplinares, que é o instrumental técnica-técnica e o fato geográfico-valor geográfico-

técnica jurídica, que serão abaixo explorados.

Enquanto resultante desta construção instrumental da Geografia, e de forma simétrica

às outras dimensões geográficas,71 a técnica geográfica decorre do aprimoramento de um conjunto

de técnicas sociais, com a finalidade de representar o critério espacial das técnicas sociais, ao

orientá-las espacialmente. Uma pessoa pode dizer a outra, oralmente, como sair do ponto A e

chegar ao ponto B. Mas um croqui, um mapa ou um GPS pode orientá-la de maneira sistemática.

Assim, a técnica geográfica, enquanto critério que espacializa a técnica social, cabe aos geógrafos

explicar “Como?” a técnica social se projeta no espaço. Afinal, é ele que representa os fatos e os

valores, ou seja, demonstra onde se localizam as formas espaciais, bem como a coesão espacial e

a divisão geográfica do trabalho, de maneira a capturar o tempo e o espaço enquanto instrumento,

ou infraestrutura.

70 Como contraponto jurídico a definição geográfica de regulação, “no Brasil, a origem das discussões acerca do real

significado do vocábulo regulação advém da adaptação do conceito de ‘regulation’ para o português, importado da

doutrina jurídica e econômica norte-americana, que pode ser traduzido tanto como regulação, quanto como

regulamentação.

[...]. Entendido no sentido amplo, regulation significa intervenção do governo em toda a atividade econômica e social,

por meio dos mais diversos ramos do direito (civil, trabalhista, tributário, penal, ambiental, antitruste, etc....). No

sentido restrito, porém, regulation deve ser entendido como intervenção do governo na atividade econômica de forma

mais intensa.” (LOSS, 2007. p. 21). 71 Fenomenologia e axiologia.

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Considerando que a técnica geográfica representa o critério espacial das técnicas

sociais e produz infraestrutura voltada a compreensão do espaço, analisaremos como o pensamento

jurídico compreende sua técnica para que possa ser estabelecida a simetria entre as ciências.

b) Da técnica jurídica

Há uma recorrente discussão do papel da técnica no Direito, com sólida base social. A

racionalização, ao mesmo tempo em que exige um jurista que domine as técnicas subjacentes à

atividade que irá exercer, demanda que os fenômenos que compõe o objeto do Direito possuam

abordagens por outros conjuntos de saberes, tais como a Economia, a Sociologia, a Psicanálise, a

Geografia, dentre outros.72

A construção da técnica jurídica ganha um ponto de inflexão com a construção de

Kelsen (1997, p. 230-231). Na busca do purismo jurídico dentro de sua linha positivista, o Mestre

de Viena73 definiu o Direito como uma organização da força, constituindo uma técnica social

específica de uma ordem coercitiva, recondicionando socialmente a conduta do ser humano por

meio da ameaça de coerção no caso de conduta contrária. Há uma clara centralidade da técnica

jurídica, bem como sua interação com o fato jurídico por meio do pressuposto do Estado como

algo pressuposto, uma vez que é ela que determina o que vem a ser fato jurídico, que somente

poderia existir mediante o exercício de uma autoridade legitimada para tanto.

É um princípio fundamental da técnica jurídica, embora frequentemente esquecido, que

não existem no domínio do Direito fatos absolutos, diretamente evidentes, ‘fatos em si’,

mas apenas fatos estabelecidos pela autoridade competente em um processo prescrito pela

ordem jurídica. Não é ao roubo como um fato em si que a ordem jurídica vincula certa

punição. Apenas um leigo formula a regra de Direito dessa maneira. O jurista sabe que a

ordem jurídica vincula certa punição apenas a um roubo assim estabelecido pela

autoridade competente, seguindo um processo prescrito. Dizer que A cometeu um roubo

só pode expressar uma opinião subjetiva. No domínio do Direito, apenas a opinião

autêntica, isto é, a opinião da autoridade instituída pela ordem jurídica para estabelecer

um fato, é decisiva. Qualquer outra opinião quanto à existência de um fato, tal como

determinado pela ordem jurídica, é irrelevante do ponto de vista jurídico (KELSEN, 1997,

p. 246).

72 Corrobora neste sentido KIRALY, 2009, p. 18. 73 Kelsen nasceu em 11 de outubro de 1881 em Praga, no então Império Austro-Húngaro, tendo estudado Direito e

iniciado sua vida acadêmica em Viena.

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Assim, o formalismo jurídico materializa o Direito por meio de técnica social

específica de uma coerção emanada de um ente legalmente instituído. E aqui resta a maior crítica

ao trabalho de Kelsen que, na verdade, é idêntica àquela realizada pelos geógrafos críticos aos

geógrafos quantitativos: ao entender o Direito como uma técnica, esta ciência deveria ser neutra

e, por conseguinte, isenta de valores. Logo, a técnica jurídica, para Kelsen, pode ser sintetizada

como a forma de se aplicar o Direito Positivo ao caso concreto, na qual sua ferramenta principal é

o silogismo,74 mas não explica o Direito enquanto ciência totalizante. Nesta linha, o jurista deve

estudar o dado e o construído, sendo que a técnica e a ciência constituiriam este construído ao

mesmo passo que o conjunto de todos os dados seriam a fonte primária do Direito. Assim, a

linguagem jurídica adquire centralidade enquanto técnica. A linguagem jurídica passaria a ser, por

excelência, o instrumento de trabalho do jurista, sendo o Direito posto linguagem pura,

manifestada de forma escrita.

A crítica ao positivismo jurídico pode ser encontrada em Bobbio, que também trabalha

com o Direito como uma técnica de organização social, bem como atividade-meio, situação que

faz com que todas as suas normas sejam técnicas. Ao referir-se ao trabalho de Kelsen, Bobbio

relembra a distinção de Kant para tornar verdadeira a premissa kelseniana de que o Direito em seu

complexo é uma técnica.

Se o direito no seu complexo é uma técnica, pode-se bem dizer que as normas que o

compõem são normas técnicas, isto é, normas que estabelecem ações não boas em si

mesmas, mas boas para atingir aquele determinado fim a que todo o direito é endereçado.

Porém, aqui é lícita uma objeção: se o direito em seu complexo é um ordenamento

normativo técnico, não se distingue mais de modo algum de ordenamentos normativos

como o do jogo e o das regras sociais. Para todos estes ordenamentos, pode-se dizer, como

para o ordenamento jurídico, que são ordenamentos normativos instrumentais. Resta

observar se não é possível introduzir uma ulterior especificação, tendo presente a

distinção, feita por Kant, entre regras instrumentais de um fim real (ou normas

pragmáticas) e regras instrumentais de um fim possível (ou normas técnicas em sentido

estrito). (BOBBIO, 2003, p. 116).

Bobbio, ao analisar a finalidade do Direito, diz que ele procura um fim absoluto, real,

obrigatório, um fim do qual não se pode subtrair, situação que resulta que o ordenamento jurídico

no seu complexo não é composto por normas técnicas em sentido estrito, mas por normas

74 “[...] Por isso é que se diz que a técnica de aplicação opera consoante uma fórmula silogística, na qual a premissa

maior é a norma, a menor é o fato, e a conclusão é a imputação da conseqüência normativa a alguém. Exemplificando:

dado que o locatário deve pagar o aluguel ao senhorio (premissa maior), e sendo fulano locatário de sicrano

(premissa menor), deve ser que fulano deva pagar o aluguel a sicrano (conclusão imputativa).” (SOUZA, 1994, p.

398).

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pragmáticas, propondo como máxima "dado que você deve viver em sociedade, deve comportar-

se do modo que as normas jurídicas prescrevem". (BOBBIO, 2003, p. 117).

Existem outras técnicas de aferição do Direito que visam criar formas alternativas ao

positivismo. Dentre as diversas correntes realistas, pode-se destacar o pluralismo jurídico,75 que

busca uma compreensão social das diversas normas que vigem em uma determinada sociedade de

forma simultânea, conceito que se aproxima da alegoria da quadra poliesportiva. É a procura de se

identificar formas de regulamentação e de mediação do comportamento social, mesmo que não

resultem daquelas emanadas pelo Estado, revestida de oficialidade. Enquanto que no positivismo

jurídico a organicidade se fortalece em detrimento das percepções, reversamente o pluralismo

jurídico ganha em percepções, mas se fragiliza na organicidade, de forma que compreender o

Estado e a norma dentro deste conceito constitui um “quase-objeto” que atribui a esta sociedade

pluralista um referencial coercitivo.

Dentre as diversas técnicas jurídicas existentes, o pensamento jurídico brasileiro

também reflete com profundidade a discussão sobre este conceito. Lafer, na introdução à obra de

Ferraz Júnior, revela a grande base epistemológica entre valor e técnica observada pelo Direito,

entre o pensar e o conhecer.

Hannah Arendt, cuja reflexão também permeia esta Introdução, sublinha importância

epistemológica da distinção kantiana entre o "pensar da razão" (Vernunft) e o "conhecer

do intelecto" (Verstand). Este edifica o sistema dos conhecimentos que, por meio da

técnica, transforma a sociedade e cria o meio no qual o homem vive. Aquele critica e

abrange o saber do conhecer, pensando o global e buscando o seu significado. (LAFER,

in: FERRAZ JÚNIOR, 2003, IV)

Coelho discorre sobre a neutralidade da técnica no Direito e a relação valor-técnica

jurídica, bem como a base espacial do Direito, que deve ser geograficamente situado.

Enquanto técnica, o Direito é neutro em relação aos valores. Mas só enquanto técnica.

Onde quer que exista uma estrutura de poder, democrática ou autocrática, primitiva ou

sofisticada, o Direito é utilizado para organizar a sociedade subjacente e determinar os

comportamentos desejáveis. Os valores dos que empolgam o poder político são utilizados

para justificar as normas organizatórias e comportamentais do sistema jurídico, com ou

sem o consentimento da sociedade. O Direito, portanto, é datado historicamente e

geograficamente situado, posto que universal, seja incipiente, seja complexo (COELHO,

2014).

Diferentemente do plano fenomenológico e do axiológico, Reale traz no

desenvolvimento do plano instrumental a noção de norma, que pode ser técnica. A tridimensão

75 Conforme referenciado acima, p. ex., por Santos, B.

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corresponderia a fato-valor-norma. As normas são divididas em técnicas (procedimentais) e

materiais. Em sua obra “Filosofia do Direito”, faz um longo arrazoado sobre as opções kelsenianas

de técnica, bem como de eficácia e de vigência do Direito. Há na Sociologia Jurídica a base da

conceituação da técnica, em que “caberia à Ciência do Direito, como Técnica de organização

social e coordenação feliz de processos coercitivos, tornar respeitadas as normas correspondentes

à força histórica dominante, isto é, relativas a ‘ideologia do Poder’ consagrada como Direito

vigente, abstração feita desse caráter ideológico” (REALE, 2002, p. 474). Reale destaca ainda

que é no plano técnico que a diferença entre Estado e Direito é diluída.

Outra conclusão a que chega Kelsen é a de que, do ponto de vista normativo, não existe

diferença entre Estado e Direito. Para o político ou o economista, haverá diferença; mas,

para o jurista, o Estado é o Direito enquanto subjetivado. Toda regra jurídica pressupõe

logicamente um sujeito; da mesma maneira, a totalidade do ordenamento jurídico deve

pressupor um ponto geral de referência; - é a pessoa jurídica do Estado. (REALE, 2002,

p. 477).

Assim como o ocorrido na dimensão fenomênica e axiológica, há que se concordar

com Reale, que coloca o Estado como ponto geral de referência, pois é possível cogitar um modelo

em que as Ciências Sociais tornam-se um ponto de partida instrumental, por meio da técnica social,

para identificar a técnica jurídica, por meio do instrumentalismo. Mas, conforme se verá no item

1.4. abaixo, a centralidade que Reale dá ao positivismo impossibilita que a proposta que realizou,

de Teoria Tridimensional do Direito, seja de fato tridimensional.

Todavia, a construção instrumental do Direito, de forma simétrica às outras dimensões

jurídicas,76 possibilita compreender a técnica jurídica enquanto representação do critério coercitivo

das técnicas sociais, ao atribuir legitimidade a determinados entres para regular direitos e deveres

de uma determinada sociedade. Uma pessoa pode dizer a outra, oralmente, o que se deve fazer

perante determinada situação. Mas uma norma, uma jurisprudência, ou mesmo os usos e costumes

podem orientá-la de maneira sistemática. Assim, a técnica jurídica, enquanto critério que regula e

normatiza a técnica social, delega aos juristas que expliquem “Como?” a técnica social se projeta

no Estado. Afinal, é ele que representa os fatos e os valores, ou seja, condiciona as ações no seu

interior no objetivo de promoção da justiça, sendo a norma o instrumento, ou sua infraestrutura

quando tratada no conjunto do ordenamento jurídico.

76 Fenomenologia e axiologia.

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d) Do nivelamento epistemológico entre Geografia e Direito no plano

instrumental e seus exemplos

Nesta linha, assim como o ocorrido na dimensão fenomenológica e na axiológica, é

possível vislumbrar um modelo em que a Modernidade em geral, e as Ciências Sociais em

específico, tornam-se pontos de partida, por meio da técnica social, para identificar tanto a técnica

geográfica quanto a técnica jurídica, por meio do instrumentalismo, que promove tanto

infraestrutura geográfica, por meio do mapa, quanto infraestrutura jurídica, por intermédio da

norma.

Nestes termos, o critério espacial da técnica social passaria a ser tratado pela

Geografia, de forma que o critério coercitivo da técnica social seria objeto de estudo do Direito,

em uma realidade na qual a relação Sociedade-Natureza continua a ser tratada intrinsecamente por

cada uma destas ciências de forma neutra.

FIGURA 7 - Relação entre Geografia e Direito no plano instrumental

Na alegoria outrora utilizada, um rio pode ser instrumento de transformação social, no

qual seu critério espacial se traduz no emprego de sistemas de referência, tais como mapas,

estatísticas, cartografias, sensoriamento remoto, georreferenciamento, informação geoespacial

etc., que representam este rio para efeito de viabilizar conhecer suas características e planejar seu

uso futuro. Ato contínuo, o critério coercitivo é percebido pelo emprego das fontes do Direito, tais

como normas, usos, costumes, jurisprudências, ou mesmo as técnicas decorrentes do pluralismo

jurídico. Todas estas formas coercitivas servem para representar a ordem preestabelecida a ser

adotada por determinada sociedade perante a convivência junto a aquele rio (ou a compreensão

das pretensões resistidas dos agentes daquela sociedade perante aquele rio). Seguem abaixo outros

exemplos, com base em demandas sociais:

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TABELA 4 – Exemplos de caracterização da técnica geográfica e da técnica jurídica

Demanda social

O que?

Objeto de estudo

Técnica Geográfica

Como?

(infraestrutura geográfica)

Técnica Jurídica

Como?

(infraestrutura jurídica)

Ampliar o sistema metroviário em São Paulo

Produzir o mapeamento das possíveis rotas, demonstrando o

volume de pessoal alcançadas, de forma a possibilitar a

valoração da sociedade de seus benefícios.

Aplicar e aprimorar a legislação vigente, coibindo

abusos, de forma a viabilizar o empreendimento de

forma justa.

Aprimorar o Registro de

imóveis (sistema cartorário)

Produzir o Cadastro Territorial Multifinalitário, demonstrando como os interesses urbanos, rurais e

ambientais interagem dentro de uma mesma propriedade

(justiça territorial).

Aplicar e aprimorar a legislação vigente, coibindo abusos, de forma a viabilizar o Cadastro Territorial

Multifinalitário, previsto na legislação, de forma

justa (função social da propriedade)

Combater o aquecimento global

Produzir o mapeamento dos focos de emissão de CO² por

meio de geotecnologias, demonstrando as populações

afetadas e formas técnicas de combate à poluição.

Aplicar e aprimorar os tratados internacionais, de

forma a exercer o poder coercitivo sobre os países

mais poluidores.

Combater o desmatamento

da Amazônia

Produzir o mapeamento ambiental da área, de forma a

produzir um inventário de uma mesma área em diferentes momentos históricos com o uso de geotecnologias,

monitorando remotamente eventuais focos de

desmatamento.

Aplicar e aprimorar os tratados internacionais e as leis ambientais, de forma a criar normas (e/ou

instituições) supranacionais, interestaduais e

intermunicipais que permitam o uso sustentável e

coordenado da floresta, coibindo quem fizer mal

uso dos recursos.

Compreender a anexação

da Crimeia pela Rússia

Levantar dados (p. ex., composição da população, idiomas falados, maneira em que o voto foi exercido etc.) sobre a

vontade popular de anexação, conferindo critérios objetivos

para verificar se esta anexação foi ou não legítima.

Aplicar os tratados internacionais ao caso concreto, de forma a conferir a comunidade internacional

elementos para compreender a legalidade da

anexação.

Controlar a alfândega em

Santana do Livramento

Levantar dados (p. ex., compreender a divisão do trabalho existente na localidade, o fluxo turístico, comportamento da

criminalidade etc.), conferindo critérios objetivos para verificar como se processa a integração regional.

Aplicar os tratados internacionais ao caso concreto, de forma a conferir àquela localidade elementos

para compreender a legalidade das relações decorrentes da integração regional.

Criar zonas francas

Levantar dados (p. ex., como os subsídios atraem capital

para a localidade, analisar aumento da criminalidade, fluxo

de mercadoria, aumento do PIB local etc.), bem como delimitar espacialmente a localidade a ser economicamente

desenvolvida.

Aplicar o princípio da isonomia por meio de regras

de exceção tributárias, incentivando o capital a investir naquela localidade.

Explorar o Aquífero

Guarani

Produzir o mapeamento geológico da área, com o uso de

geotecnologias, monitorando remotamente eventuais focos

de poluição.

Criar normas (e/ou instituições) supranacionais, conferindo segurança jurídica que permita o uso

sustentável do recurso e coibindo quem fizer mal

uso dos recursos.

Explorar petróleo na

plataforma marítima

Mapear geologicamente a área, com o uso de

geotecnologias, bem como levantar dados e realizar

simulações sobre como os royalties do petróleo poderiam ser alocados na sociedade brasileira.

Criar normas e regulações para viabilizar o pleno funcionamento da extração, transporte, refino e

distribuição do petróleo oriundo de alto-mar.

Fixar indicação geográfica

para o açaí do Marajó

Levantar dados (p. ex., a origem da plantação, as tradições

envolvidas com o açaí, demonstrar como a cadeia

econômica se desenvolveu em torno do produto, a repercussão espacial e social do produto na região etc.).

Defender os interesses dos produtores do açaí de

Marajó nos foros nacionais e internacionais

Gerir o Polígono das secas

Produzir o mapeamento dos recursos naturais da área, com o

uso de geotecnologias, de forma a levantar dados (p. ex., o acompanhamento da evolução do PIB regional, as carências

por serviços públicos, a divisão do trabalho existente etc.)

Aplicar e aprimorar a legislação vigente, coibindo

abusos, de forma a fomentar o desenvolvimento

regional de forma justa.

Viabilizar a Região

Integrada de

Desenvolvimento do

Distrito Federal e Entorno

(RIDE)

Produzir o mapeamento dos possíveis limites da RIDE, levantando dados (p. ex., divisão de trabalho regional, fluxo

econômico, necessidade de transportes públicos, segurança

pública etc.) para justificar a opção técnica.

Aplicar e aprimorar a legislação vigente, coibindo

abusos, de forma a viabilizar a metrópole

brasiliense como um conjunto normativo uniforme.

Logo, é no plano da técnica, ou instrumental, que tanto a Geografia quanto o Direito

se emancipam enquanto ciência. Os instrumentos de organização, tanto do espaço quanto da

sociedade, constituem a verdadeira razão de existência destes dois ramos científicos. A técnica

jurídica, assim como a geográfica, consiste em um conjunto de meios, e deve ser neutra. Assim, a

Geografia e o Direito passam a conferir sentido às suas respectivas técnicas por meio da sociedade.

Esta sociedade, ao se utilizar de seus mecanismos legitimamente instituídos, por meio de um

processo culturalista, atribuirá valor como uma finalidade a ser alcançada por um meio técnico.

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Assim, a técnica jurídica seria a estrada, não sem barreiras, por onde transitam os anseios de justiça

e da igualdade, cabendo a Geografia a compreensão de sua repercussão espacial.

Compreendida a relação entre Geografia e Direito em três planos, a saber: (i)

fenomenológico, no qual o fato social tem um critério espacial (fato geográfico), identificado pelo

“Onde?” e um critério jurídico (fato jurídico), encontrado pelo “Quem?”; (ii) axiológico, no qual

o valor social tem um critério espacial (valor geográfico), identificado pelo “Quando?” e um

critério jurídico (valor jurídico), encontrado pelo “Por quê?”; e (iii) instrumental, no qual a técnica

social tem um critério espacial (técnica geográfica), identificada pelo “Como?” e um critério

jurídico (técnica jurídica), encontrada pelo “Como?”; alcança-se o objetivo de articular estes ramos

científicos sob a ótica epistemológica, de forma a possibilitar, no próximo item, que se construa

um modelo de diálogo interdisciplinar.

1.4. A construção da Teoria Tridimensional da Geografia enquanto elemento de

articulação epistemológica com o Direito

O objeto de estudo da Geografia, enquanto ramo científico, tem sido debatido ao longo

dos séculos. A paisagem seria uma forma de estudá-la. Essa abordagem contém o entendimento

de que esta seria uma ciência de síntese, que analisa os aspectos visíveis do real. Para tanto, há o

estudo da forma do planeta (morfologia) e de sua dinâmica (fisiologia). Dado o caráter dedutivo

da corrente morfológica, que valoriza a intuição, houve significativo aumento de critérios

subjetivos em seu estudo. Por sua vez, a fisiologia da paisagem se fundou na Biologia, que induziu

a Ecologia no domínio geográfico. A Geografia, nesta perspectiva, trabalha a relação Sociedade-

Natureza, pois ela forma uma paisagem que deve ser questionada, ou seja, por que é aquela

paisagem que está lá e não outra? É a criação de um “gênero de vida”.

A Geografia também pode ser considerada enquanto estudo da individualidade dos

lugares. O objetivo desta corrente almeja abarcar todos os fenômenos que estão presentes em uma

dada área, de forma a compreender a singularidade de cada porção do planeta. Essa é a matriz dos

estudos regionais, sendo a região uma unidade espacial, de dimensão variável, passível de ser

individualizada em função de um caráter próprio. De forma reversa, a Geografia também pode

adotar como método a diferenciação de áreas. Tal individualização busca explicações pela

singularidade, de forma a criar uma perspectiva mais generalizadora e explicativa.

Este ramo científico pode ainda ser compreendido enquanto estudo das relações entre

a sociedade e a natureza. Aqui se faz a dicotomia Sociedade-Natureza sob três vertentes: (i) estudo

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da influência da natureza no desenvolvimento dos homens, de forma a ser a sociedade um elemento

passivo das forças naturais; (ii) A sociedade enquanto elemento transformador da natureza, de

forma a inverter totalmente a premissa anterior, colocando a natureza como um agente passivo; e

(iii) o estabelecimento, a manutenção e a ruptura do equilíbrio entre sociedade e natureza. Esta

última vertente reflete a intensidade das discussões geográficas.

Por fim, a Geografia pode ser concebida enquanto estudo do espaço. No século XVIII,

a natureza era o substrato do pensamento científico europeu na busca do equacionamento das

questões objetivas (matemáticas) e subjetivas (sociais). Sociedade e natureza foram separados na

construção de um discurso dualista do mundo.

Nesse contexto, sobressai a filosofia de Kant (2007a, 2007b), que refuta este dualismo

ao buscar um discurso de síntese entre sociedade e natureza. Na busca desta essência, a Geografia

é tratada como ciência empírica, de síntese, apoiada na observação e nas sensações. Neste sentido,

o pensamento de Kant é um grande referencial para se compreender o espaço como objeto de

estudo perante as ciências naturais.77

Sob essa ótica, cabe uma indagação: a Geografia poderia ser o ramo científico que

busca compreender o espaço como objeto, nas seguintes hipóteses: (i) o espaço enquanto um dos

vértices de todas as formas de conhecimento, assim como o tempo, grau, gênero etc.; (ii) o espaço

enquanto atributo do ser, haja vista que nada existe sem que ocupe um lugar no espaço; e (iii) o

espaço enquanto um ser específico do real, com características e dinâmicas próprias, na busca da

lógica da distribuição e da localização dos fenômenos, a qual seria a essência da dimensão

espacial? Não, não poderia.

A Geografia enfrenta uma profunda e decana discussão epistemológica. No centro de

todo o dilema geográfico persiste um debate, na qual o desenvolvimento de uma percepção

epistemológica deriva da negação das premissas advindas da percepção anterior. Em boa síntese,

Dosse (1994), em texto dos anos 1960, demonstra com clareza, e com uma boa dose de melancolia,

que os dilemas geográficos sempre contrapuseram ao menos uma das dimensões geográficas

perante as demais. É a cultura, enquanto valor, e a técnica em contraposição aos fatos. São os fatos

e as técnicas em oposição aos valores e a crítica. São os fatos e os valores do pensamento clássico

que marginalizam as potencialidades das técnicas.

77 “Essa definição, constante da introdução a suas conferências didáticas, descreveu o escopo da geografia de modo

tão completo, que afetou, direta ou indiretamente, todas as discussões metodológicas posteriores. Pode-se ir mais

longe e afirmar que a confusão acerca do objeto e conteúdo da geografia quase sempre surge apenas quando não se

leva em conta a análise de Kant” (TATHAM, 1959, p. 558).

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[...] a Geografia está então mergulhada num longo sono, surda para uma interrogação que

a deveria ter acordado do seu torpor, e muda em tempos particularmente loquazes. Essa

longa ausência tem alguns fundamentos. Em primeiro lugar, a disciplina geográfica

continua a se definir, nesses anos 60, como uma ciência das relações entre a natureza e a

cultura, entre os elementos da geomorfologia, da climatologia etc, e aqueles que decorrem

da valorização humana das condições naturais. A esse respeito, a ambição estruturalista

de fundar as ciências do homem exclusivamente sobre a cultura, modelada pelas regras

da linguagem, é percebida como algo deveras estranho à preocupação do geógrafo que,

pelo contrário, baseia a unidade da sua disciplina na correlação entre os dois níveis da

natureza e da cultura: os geógrafos viveram isso, portanto, como algo que não lhes diz

respeito (DOSSE, 1994, p. 347).

Identificar uma definição possível a este dilema passa a ser uma imprescindível

atividade-meio para que o esforço interdisciplinar tenha chance de prosperar. Desta forma, o

princípio da simetria surge novamente como uma solução factível, onde se podem aplicar

simetricamente, por meio de analogia, construções oriundas da Geografia e do Direito para que

estes ramos científicos se nivelem epistemologicamente. A simetria tende a aproximar os

elementos de convergência que a epistemologia moderna das duas ciências forjou separar, em prol

da pureza científica.

Na aplicação da simetria, caberia buscar na Geografia um método de compreensão

científico que mais se aproxime das características do Direito e vice-versa, de forma a manter a

interdisciplinaridade proporcional e simétrica. Não caberia uma assimetria para esta

interdisciplinaridade, sob pena de um ramo científico se tornar satélite do outro. A Terra gira em

torno do Sol pois não são simétricos. Caso o fossem, um giraria em torno do outro. E este girar

recíproco deve ser a perseguição epistemológica simétrica.

Neste cenário, a matriz filosófico-social confere os eixos que ligam a Geografia e o

Direito, uma vez que possibilitam uma construção simétrica pautada na tríade fato-valor-técnica,

com base na fenomenologia-culturalismo-instrumentalismo enquanto forma dialética de se

viabilizar a relação ser-pensar-conhecer, haja vista que tem como ação identificar-qualificar-

quantificar. E estes elementos trazem, naturalmente, a Teoria Tridimensional do Direito e do

Estado de Reale, bem como o sistema de ações e o sistema de objetos de Santos, M., como grandes

referências epistemológicas para a pretendida construção interdisciplinar. Afinal, estes dois

autores conferem elementos suficientes para a prática desta aproximação epistemológica, sendo

aqueles que melhor transitam suas ciências com base na matriz filosófico-social para o fim

almejado: o estabelecimento de um sistema interdisciplinar simétrico entre Geografia e Direito.

Reale fundou sua tese tridimensional com base no fato social, que recebe uma carga

valorativa antes de se tornar norma, de forma a inaugurar novos paradigmas jurídicos, uma vez

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que demonstrou que a dimensão ontológica (fato), a dimensão axiológica (valor) e a dimensão

gnosiológica (técnica78 por meio da forma normativa) compõem o objeto de estudo do jurista.

[...] sendo a experiência jurídica uma das modalidades da experiência histórico-cultural,

compreende-se que a implicação polar fato-valor se resolve, a meu ver, num processo

normativo de natureza integrante, cada norma ou conjunto de normas representando, em

dado momento histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão operacional

compatível com a incidência de certos valores sobre os fatos múltiplos que condicionam

a formação dos modelos jurídicos e sua aplicação (REALE, 1986, p. 74).

Sobre a relação entre fato e valor, Reale, ao expor sobre a Teoria Tridimensional do

Direito, descreve de forma sintética como o valor ocorre em função do fato, produzindo uma

dialética que denomina de implicação-polaridade, que produz a técnica normativa que, dentre

outras coisas, integra o espaço, que Reale denomina de “limites circunstanciais de lugar”.

Como se vê, a Teoria Tridimensional do Direito e do Estado, tal como a venho

desenvolvendo desde 1940, muito embora não empregasse então aquele termo, distingue-

se das demais de caráter genérico ou específico, por ser concreta e dinâmica, isto é,

afirmar que:

a) Fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer

expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filosofo ou sociólogo do direito, ou pelo

jurista como tal, enquanto que na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao

filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da norma

(tridimensionalidade como requisito essencial do direito).

b) A correlação entre aqueles três elementos é de natureza funcional e dialética, dada

a ‘implicação-polaridade’ existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento

normativo, como solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e

de tempo (concreção histórica do processo jurídico, numa dialética de implicação e

complementariedade) (REALE, 1986, p. 57).

Considerando que o fato social está na origem da tese realeana, que produz uma

dialética, por meio da ‘implicação-polaridade’ que supera e integram os limites circunstanciais de

lugar, o mesmo ocorre no desenvolvimento da compreensão geográfica. A sociedade não se

distribui uniformemente no espaço, pois essa distribuição não é obra do acaso. Ela é o resultado

de uma seletividade histórica e geográfica, que é sinônimo de necessidade, pois decorre de

determinações sociais fruto das necessidades laborais e das possibilidades da sociedade em um

dado momento. Desta forma, não é coincidência o pensamento geográfico da primeira metade do

século XX estar no cerne da construção jurídica, por meio da dilação dos círculos sociais.

78 Miguel Reale tratou em regra a norma enquanto técnica. Contudo, deve-se recepcionar outras fontes do Direito que,

igualmente, prescindem de técnicas para produzir efeitos no mundo fenomênico, tais como usos e costumes, analogia,

Direito comparado, jurisprudência, dentre outras, incluindo aquelas decorrentes da visão realista do pluralismo

jurídico.

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Segundo Pontes de Miranda, o princípio fundamental evolutivo da ciência positiva do

direito é o da crescente integração e dilatação dos círculos sociais. "Seria, em outros

termos, a lei espacial dos espaços crescentes, a que se referiu F. Ratzel, a lei da extensão

segundo Richard, ou de aglutinação crescente a que aludem Brunhes e Vallaux", mas

associada à teoria dos círculos sociais exposta pelo autor em vários de seus livros

(REALE, 2000, p. 64-65).

Assim, o Estado torna-se a principal referência da Teoria Tridimensional do Direito,

uma vez que ele é a base da validade e da eficácia do sistema jurídico pautado em fatos, valores e

normas (REALE, 1986, p. 105). Reale demonstra como uma norma jurídica, entendida como

técnica jurídica, sofre alterações semânticas uma vez emanada, pela superveniência de mudanças

no plano dos fatos e dos valores, até se tornar necessária sua revogação. Da mesma forma, toda

norma jurídica pressupõe uma tomada de posição perante fatos, tendo em vista a concepção de

determinados valores (REALE, 1986, p. 101-102).

FIGURA 8 - Processo axiológico-factual normativo, por Miguel Reale

Fonte: REALE, 1986, p. 101.

Neste sentido, este modelo demonstra um grande avanço epistemológico não só ao

Direito, mas para as ciências como um todo, pois demonstra um método de análise científica que

articula três dimensões filosóficas em função de uma ciência específica. Como filósofo do Direito,

esta obra jurídica pode ser compreendida também em sua dimensão filosófica, sugerindo uma

possibilidade metodológica que, salvo alguns aprimoramentos, pode ser aplicada a outros ramos

científicos em geral, e a Geografia em específico.

Mas este avanço não deve ser compreendido como perfeição metodológica. Restam

duas críticas capitais ao modelo realeano. A primeira é que a forma proposta não caracteriza uma

tridimensionalidade, mas meramente uma bidimensionalidade historicizada, uma linha temporal

que contém três elementos, - fato, valor e norma -, com centralidade da norma, pois ela canaliza o

fato e o valor, de maneira que os elementos não sobrevivem independentemente dentro deste

modelo.

A segunda – e talvez central na construção de Reale, - é que a excessiva centralidade

normativa, na qual fato e valor somente dialogam via norma, cria uma situação que só se justifica

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em uma visão positivista. Neste sentido, retirar a centralidade da norma e inserir a técnica, em

sentido amplo, emancipa o modelo de Reale do positivismo, e descortina o modelo tridimensional

para toda a dimensão técnica do Direito, tais como usos e costumes, analogia, direito comparado,

jurisprudência, dentre outras, incluindo todo o pensamento voltado para o pluralismo jurídico.

Reconstruir o modelo tridimensional de Reale enquanto tríade fato-valor-técnica,

possibilitando que todos os elementos interajam entre si, significa emancipar este sistema do

projeto positivista e conferir a este o real sentido de tridimensionalidade, o que de certa forma

reinventa a tensão entre regulação e emancipação proposta por Santos, B. (2001, p. 327). A

centralidade do Estado continua presente no aparelhamento da regulação, enquanto técnica jurídica

de identificação e de caracterização de constelações de regulação e da pluralidade de agentes

sociais, pois, no atual momento civilizatório, a sociedade ainda não alcançou um nível de

desenvolvimento que a permita prescindir desta estrutura. Este desenvolvimento poderia vir com

o aprimoramento do “direito territorial”, sendo o território uma expressão espacial que a sociologia

jurídica não conseguiu, ainda, compreender todas as dimensões da formação do Direito.

Defendo assim, que a “falsa consciência” do direito nas sociedades capitalistas não reside

tanto na discrepância entre o direito legislado e o direito aplicado, como geralmente se

pensa, mas antes numa construção social bem urdida que converte o direito estatal na

única forma de direito, supondo assim que suprime o direito doméstico, o direito da

produção, o direito da troca, o direito da comunidade e o direito sistêmico, sem os quais,

de facto, o direito territorial não funcionaria como funciona nas nossas sociedades. A

sociologia jurídica, por muito crítica que seja, nada mais fez, desde o século XIX, do que

consolidar e legitimar essa supressão das dimensões da formação do direito. (SANTOS,

B., 2001, p. 319).

Realinhar o modelo tridimensional de Reale, que na verdade é bidimensional com três

elementos, nos quais a norma tem centralidade, possibilita que o fato e o valor jurídico, tenham

uma linha de diálogo direto, de forma a produzir conhecimento jurídico e sem centralidade nos

vértices do triângulo, mas uma simetria na qual eles atuam com harmonia e dependem do interesse

do cientista do direito para interpretar e produzir uma finalidade, seja positivista, realista, moderna,

pós-moderna, pluralista, ou qualquer outra corrente que o pensamento jurídico venha a conceber.

Em outras palavras, se o que se busca é identificar o processo relacional dialético entre

fato, valor e técnica, a linearidade do modelo demonstra que sempre haverá um fato (F1, F2, F3,

Fn) novo, o mesmo ocorrendo para o valor (V1, V2, V3, Vn) e a técnica (T1, T2, T3, Tn). Todavia,

os fatos, os valores e as técnicas são sempre reincidentes, onde o conjunto universo confere uma

melhor noção de tridimensionalidade. Os fatos, os valores e as técnicas sempre se comunicam

concomitantemente uma com a outra dimensão, formando circuitos relacionais, não fazendo

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sentido a linearidade proposta por Reale, a não ser pela necessidade de se demonstrar juridicamente

a centralidade na norma ou do Direito Positivo perante as outras dimensões. Ao utilizar a

linguagem de Santos, M., faz sentido entender o fato, o valor e a técnica como sistema de objetos,

sendo suas relações dimensionais o sistema de ações.

FIGURA 9 – Proposta de realinhamento do Modelo Tridimensional de Miguel Reale

De forma análoga, a possibilidade de compreensão da Geografia como uma ciência

tripartite não é nova. Todavia, é possível observar, conforme disposto nos capítulos anteriores, que

a tríade fato-valor-técnica está presente em toda a história do pensamento geográfico. Com maior

ou menor intensidade, cada uma destas dimensões foi estudada e apurada por geógrafos de

diferentes partes e matrizes de pensamento, possibilitando que, ao serem analisadas em conjunto,

reflitam a existência de um sistema de relações que, no limite, definem a Geografia como ciência.

Claval (1999) versa sobre a tridimensionalidade na Geografia79 quando demonstra que

a cultura (valor-culturalismo) é a ordem do simbólico (fato-fenomenológico), com centralidade da

palavra (técnica-materialidade), que media a relação Sociedade-Natureza (simetria), sendo sempre

admitida como uma construção (logo, um quase-objeto, impuro sob a ótica positivista). Monbeig,

ao centrar esforços na definição de “fato geográfico”, igualmente pressupõe uma

tridimensionalidade, todavia centrada na categoria “fato”, uma vez que cabe ao geógrafo explicar

o fato, mas também valorá-lo uma vez que deve procurar suas consequências, que ocorrem dentro

de uma civilização técnica.

79 Não se pode confundir o discurso tridimensional presente em Claval com aquilo que ele denominou de “geografia

tripartite” ou “tripolar”, que se refere a compreensão da Geografia enquanto suas componentes física, regional e

humana.

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A pesquisa geográfica trata dos complexos de fatos e são esses complexos que, por sua

localização no globo, são verdadeiros "fatos" geográficos. Cabe ao geógrafo explicar esta

localização, procurar-lhe as conseqüências, examinando as relações, ações e interações

que unem uns aos outros os elementos constitutivos do complexo geográfico. Complexo

geográfico, sim, porque se localiza e porque implica em ações recíprocas mutáveis do

meio natural e do meio humano. A variedade dos componentes do complexo geográfico

é tanto maior quanto mais elevado é o grau de civilização técnica alcançado pelo grupo

humano, existente há séculos, se não milênios, e muito numeroso (MONBEIG, 1957b).

No Brasil, Carlos, ao contextualizar o que chama de “crise teórica na Geografia”, traz

em sua própria conclusão os elementos fato (plano fenomênico), valor (debate teórico) e técnica

(possibilidade instrumental), sugerindo que o empirismo e a fenomenologia por si só não bastam,

que o debate teórico deve promover valor geográfico, e que a possibilidade técnica não pode ser

um fim em si, mas um meio da construção de um sistema geográfico maior.

A volta ao empirismo, a recusa do debate teórico na pesquisa que se desdobra e se limita

ao plano fenomênico, ou ainda na postura que reduz os problemas atuais a uma

possibilidade técnica, viabilizando a produção econômica (e, com isso, atendendo as

necessidades da acumulação), revela uma crise teórica na Geografia (CARLOS, 2002, p.

177).

Esta tríade, enquanto sistema, pode ser amplamente identificada na obra de Santos, M.

Há a fundamentação do estudo das relações entre técnica e espaço, baseadas nas repercussões

espaciais da revolução tecnológica, que acarretou o presente momento histórico marcado pela

globalização da produção e do consumo.80 Para Santos, M. (1988, p. 29), quando se fala em espaço

total, descreve-se um complexo sistema de influências superpostas, mas que ao mesmo tempo

mantém o espaço como contínuo, maciço e indivisível, de forma que pode ser concebido como

uma espécie de soma dos resultados da intervenção humana sobre a terra. As espacialidades sofrem

acumulações distintas, pois as mudanças não ocorrem no mesmo período, na mesma velocidade

ou na mesma direção, tendo inclusive uma instância político-institucional, que nada mais é do que

uma construção jurídica.

Consideramos o espaço como uma instância da sociedade, ao mesmo título que a instância

econômica e a instância cultural-ideológica. Isto significa que, como instância, ele contém

e é contido pelas demais instâncias, assim como cada uma delas o contém e é por ele

80 “O espaço assume hoje em dia uma importância fundamental, já que a Natureza se transforma, em seu todo, numa

forma produtiva. Quando todos os lugares forem atingidos, de maneira direta ou indireta, pelas necessidades do

processo produtivo, criam-se, paralelamente, seletividades e hierarquias de utilização com a concorrência ativa ou

passiva entre os diversos agentes. Donde uma reorganização das funções entre as diferentes frações de território.

Cada ponto do espaço torna-se então importante, efetivamente ou potencialmente. Sua importância decorre de suas

próprias virtualidades, naturais ou sociais, preexistentes ou adquiridas segundo intervenções seletivas” (SANTOS,

M., 1988, p. 45). Vale destacar que, se a natureza se transforma em uma forma produtiva, essa forma que ela adquire

é uma consequência da atividade laboral do homem.

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contida. A economia está no espaço, assim como o espaço está na economia. O mesmo

se dá com o político-institucional e com o cultural-ideológico. Isso quer dizer que a

essência do espaço é social. (SANTOS, M., 1988, p. 12).

Logo, a tríade fato-valor-técnica pode ser identificada como uma derivação

epistemológica do sistema de objetos e do sistema de ações, em que Santos, M. discorre sobre a

correlação entre objeto, valor e técnica geográfica.

Objetos não agem, mas, sobretudo no período histórico atual, podem nascer predestinados

a um certo tipo de ações, a cuja plena eficácia se tornam indispensáveis. São as ações que,

em última análise, definem os objetos, dando-lhes um sentido. Mas hoje, os objetos

‘valorizam’ diferentemente as ações, em virtude de seu conteúdo técnico. Assim

considerar as ações separadamente ou os objetos separadamente, não dá conta de sua

realidade histórica. (SANTOS, M., 2006, p. 70).

Ao buscar as razões da existência dos objetos, enquanto ser geográfico, bem como de

suas transformações ao longo do tempo, encontram-se fatos, passíveis de atribuição de valor por

meio de técnica. Uma nota de dez reais é um objeto. Mas ela somente se torna um objeto pelo fato

de haver um poder estatal que conferiu aquele pedaço de papel o valor pecuniário de dez reais, por

meio de uma técnica de impressão e de distribuição na sociedade, com base no recurso natural

celulose, que originou o papel da nota. Uma caneta é um objeto, característica recebida por aquele

pedaço de plástico e porção de tinta pelo fato de haver uma indústria que a confeccionou e se

apropriou dos bens naturais para sua produção, possibilitando que uma criança, um poeta ou um

médico atribuam valor as suas propriedades e qualidades ao empregar a técnica da escrita ou do

desenho. Assim, utilizando o raciocínio de Santos, M., objetos não agem, mas os fatos que os

constituem, sim. E o fato, enquanto categoria de estudo, é o elo que justifica que os objetos,

enquanto sistema, nasçam predestinados a certo tipo de ação.

Aprofundando um pouco mais a construção do sistema de objetos, que são motivados

por fatos, eles podem ser classificados como tangíveis ou intangíveis. A nota de dez reais e a caneta

são objetos tangíveis, palpáveis, que ocupam um lugar no espaço e, por conseguinte, são objeto de

estudo da Geografia por comportarem em sua natureza um critério espacial delimitado. O mesmo

ocorre com os objetos naturais, como um rio, uma montanha ou uma árvore. A dificuldade do

geógrafo reside na compreensão dos objetos intangíveis, tais como o ar, o vento, o software, a

internet, ou mesmo o pensamento.

A compreensão do fato geográfico contribui para desvencilhar a Geografia da

armadilha de procurar o critério espacial de objetos intangíveis, pois busca os motivos adjacentes,

os fatos, de determinado evento a ser estudado. O ar decorre do fato de haver uma atmosfera que

o comporta e envolve geograficamente todo o globo terrestre; o vento provém do deslocamento de

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ar entre regiões com diferentes pressões atmosféricas; o software advém do espírito criativo de um

conjunto de técnicos que produziram aquela técnica de apropriação dos recursos naturais e a

internet encontra como fato geográfico o ganho de escala nas relações sociais. O pensamento, de

alto nível de subjetividade, decorre do valor que cada indivíduo atribui a um conjunto de fatos, por

meio de técnicas preestabelecidas.

Logo, compreender o fato geográfico, enquanto causa dos objetos, permite uma

melhora na qualidade de análise do geógrafo, ao buscar, em uma espécie de ontologia dos objetos,

a origem espacial de sua existência, com base em valores enquanto atributo culturalista e na técnica

como instrumento de materialidade. A natureza relacional está na gênese do fato geográfico, uma

vez que, parafraseando Santos, M., são as ações que, em última análise, definem os objetos,

tangíveis ou não, por meio dos fatos geográficos, dando-lhes um sentido. Afinal, se as ações

ocorrem no espaço, independentemente dos objetos estarem ou não espacializados, lá reside o fato

geográfico.

FIGURA 10 - Aplicação do Modelo Tridimensional a Geografia

Com base no fato geográfico, categoria devidamente pormenorizada pela corrente

francesa, capitaneada principalmente por Brunhes e Monbeig, é possível compreender a Geografia

por intermédio da tríade fato-valor-técnica. Ao se exigirem reciprocamente e interagirem dinâmica

e dialeticamente, resultam na própria vida da Geografia, por conferir um aspecto tridimensional à

experiência geográfica. E aqui se alberga a construção análoga ao pensamento de Reale (1998, pp.

64-68), pois a Geografia pode ser compreendida pelo:

(i) Aspecto fático, ou seja, pelo seu nicho físico, político, social, econômico,

histórico, jurídico, técnico etc., fundado na fenomenologia, em que se

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caracteriza o ser geográfico (objeto) por meio de uma dimensão ontológica

com base espacial;

(ii) Aspecto axiológico, ou seja, os valores buscados pelos agentes políticos,

sociais, econômicos, jurídicos, técnicos, etc., necessário para compreensão da

espacialização, uma vez que a essência da Geografia é sempre e

necessariamente valorativa e, portanto, cultural, de forma a inclinar a ação dos

homens para que se atinja determinada finalidade ou objetivo; e

(iii) Aspecto instrumental, ou seja, a busca da técnica que confere uma dimensão

gnosiológica e, por conseguinte, materialidade aos objetivos da Geografia por

meio de conhecimentos refletidos em linguagens, tais como mapas, dados,

textos, dentre outros.

Compreendida a tríade fato-valor-técnica, e como ela é aplicada a Geografia e ao

Direito, cabe analisar como a simetria Sociedade-Natureza opera dentro deste modelo.

a) A relação Sociedade-Natureza na tríade fato-valor-técnica

Na concepção tridimensional, a relação entre sociedade e natureza necessita ser

epistemologicamente realocada. O fato vem a ser o acontecimento a ser descrito pela Geografia,

de forma que, nesta dimensão, a natureza conduz a sociedade; no valor encontra-se o elemento

crítico da Geografia, momento em que a sociedade se impõe a natureza; e a técnica é o instrumento

e a representação de uma área de acordo com projeções geométricas e analíticas, forma na qual

ocorre a interlocução simétrica entre sociedade e natureza. Logo, esta dicotomia, ou melhor,

simetria, não é algo a ser combatido pelo pensamento geográfico. Ao contrário, é nesta relação

que a Geografia se consolidou enquanto ciência,81 e a busca de sua superação pode ser substituída

pelo aprimoramento contínuo desta relação e sua realocação epistemológica, com base no

princípio da simetria82 e na tríade fato-valor-técnica, sendo que cada uma das dimensões

comportam em si a relação Sociedade-Natureza, uma vez que esta discussão é fenomenológica,

81 “[...] é necessário considerar que os geógrafos das décadas de 60, 70 e 80, quantitativos, marxistas, tecnocratas

ou o nome que se queira dar, viraram as costas para a Geografia Física, e que com isso asfixiaram perigosamente a

mais importante tradição da Geografia legada pelos franceses – a relação Sociedade/Meio. Tal situação somente

veio apresentar modificação no final dos anos 80 e início dos 90, com a emergência dos estudos ambientais.”

(ALMEIDA, 1995, p.106). 82 Ou busca dos híbridos, nas palavras de Santos, M.

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culturalista e instrumental. Em que pese a dinâmica Sociedade-Natureza ser um projeto totalizante,

esta discussão deve ser separada de forma a viabilizar discussões epistemológicas.

A lógica da separação contemporânea entre sociedade e natureza decorre da origem da

civilização humana. O reconhecimento desta segregação decorre da necessidade que os homens

tiveram ao domesticar o pensamento pela necessidade de reconhecer e de produzir fatos, valores

e técnicas. O fato de uma determinada sociedade produzir excedentes por força do trabalho

material, com a finalidade de alimentação e sobrevivência, acabou por permitir que outros se

ocupassem de atividades distintas, voltadas ao sedentarismo.

FIGURA 11 e 12 - Modelo tridimensional com a contextualização da dinâmica Sociedade-

Natureza e a relação vetorial entre fato, valor e técnica

A dicotomia Sociedade-Natureza é uma constante em inúmeros estudos de diversos

ramos científicos. Schmidt se apoia em Marx para fundamentar que é a atividade mediadora do

trabalho que faz com que a relação entre a sociedade e a natureza engendre um processo dialético.

É por meio do trabalho que a sociedade leva adiante o processo de criação realizado pela natureza.

À medida que os homens desatam “as potências adormecidas” no material natural,

“liberam” esse material: ao transformar o morto em-si em um vivente para-nós,

prolongam de certo modo a série dos objetos produzidos pela história natural e a

prosseguem em um estado qualitativamente mais elevado. Mediante o trabalho humano

a natureza leva adiante seu processo de criação. O transtorno produzido pela práxis chega

assim a adquirir uma significação não apenas social, mas também “cósmica” (SCHMIDT,

1950, p. 87).

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Moreira (1991, p. 81), afirma que a natureza está na sociedade e a sociedade está na

natureza, porque a sociedade é produto da história natural e a natureza é condição concreta, então,

da existencialidade humana. No entendimento de Santos, M., o desenvolvimento da natureza pode

ser compreendido como processo e resultado, mediante atividade repetitiva. No que tange a

atividade humana, se produz como resultado a atribuição de valor social, por meio de atividade

progressiva.83 Como exemplo, a construção da urbanidade foi realizada enquanto elemento

emancipador da sociedade perante a natureza. Nesse entendimento, o urbanismo tem como função

a satisfação da autonomia humana perante o meio ambiente, de forma progressiva.

Espaço urbano é uma mercadoria cujo preço é estabelecido em função de atributos físicos

(tais como declividade de um terreno ou qualidade de uma construção) e locacionais

(acessibilidade a centros de serviços ou negócios e/ou proximidade a áreas valorizadas da

cidade). Como a valorização ou desvalorização de uma região depende dos investimentos

públicos e privados naquele espaço, o investidor maciço, representado por grandes

trabalhos de remodelação, alteram substancialmente o mercado imobiliário (SANTOS,

M., 2006, p. 32).

A opção pela manutenção do discurso Sociedade-Natureza recai sobre a simetria.

Como concebeu Santos, M. (2008c, p. 60), possibilita a criação de um sistema de referência, de

forma a possibilitar a interpretação global do mundo, de forma que o seu valor é sempre relativo e

surge no interior do sistema em que se encontra e em relação com as demais variáveis presentes.

b) A simetria enquanto princípio norteador do sistema interdisciplinar

Parafraseando Latour, ao tratar ao mesmo tempo de Santos, M. e Reale, de forma

simétrica, mais do que referenciar duas grandes figuras do pensamento científico brasileiro da

segunda metade do século XX, percebe-se que se suas obras representam uma dupla invenção.84

Santos, M. criou elementos para se compreender o valor e a técnica na Geografia de forma crítica,

amparada no fato geográfico concebido principalmente pela corrente francesa, versando sobre a

natureza, a experiência, os testemunhos, as relações. Por sua vez, Reale ensinou como as

dimensões da representação, da legitimidade, do contrato, da propriedade, e dos cidadãos

83 “Quando a natureza ainda era inteiramente natural, teríamos, a rigor, uma diversificação da natureza em estado

puro. O movimento das partes, causa e conseqüência de suas metamorfoses, deriva de um processo devido unicamente

às energias naturais desencadeadas. A primeira presença do homem é um fator novo na diversificação da natureza,

pois ela atribui às coisas um valor, acrescentando ao processo de mudança um dado social. Num primeiro momento,

ainda não dotado de próteses que aumentem seu poder transformador e sua mobilidade, o homem é criador, mas

subordinado. Depois, as invenções técnicas vão aumentando o poder de intervenção e a autonomia relativa do

homem, ao mesmo tempo em que se vai ampliando a parte da "diversificação da natureza" socialmente construída”

(SANTOS, M., 2006, p. 84). 84 Analogia a LATOUR, 1994, p. 30.

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convivem na contemporaneidade. Conforme entendimento de Santos, M. (2008b, p. 37), pode-se

deprender que a Geografia e o Direito são dois sistemas, abstratos, que constituem frações do

espaço, uma vez que o espaço é o resultado da geografização de um conjunto de variáveis, de sua

interação localizada, e não dos efeitos de uma variável isolada. Sozinha, uma variável é

inteiramente carente de significado, como o é fora do sistema ao qual pertence. Logo, fato, valor

e técnica não podem ser compreendidos de forma isolada, mas como um sistema de referência que

contém seu valor, que não seria diferente para a interdisciplinaridade aqui proposta.

Em outras palavras, a tríade fato-valor-técnica é fundada e derivada da tríade fato-

valor-norma concebida por Reale, em sua Teoria Tridimensional do Direito. De forma reversa, são

elementos do espaço os homens, as firmas, as instituições, o chamado meio ecológico e as

infraestruturas, de forma que as instituições “produzem normas, ordens e legitimações”,85

conforme ensinou Santos, M. Assim, respeitada a dicotomia Sociedade-Natureza, o sistema

interdisciplinar é alicerçado na filosofia, com ponto de partida nas Ciências Sociais, na qual:

(i) a partir do fato social, natural ou humano, fundado na fenomenologia

filosófica, se identifica o fato geográfico à partir do critério espacial,

bem como o fato jurídico, com base no critério coercitivo, de forma que

a dimensão natural, nesta dimensão, se impõe a Social;

(ii) com base no valor social, de matriz culturalista, pode-se perceber tanto

o valor geográfico (critério espacial) quanto o valor jurídico (critério

coercitivo), sendo que a sociedade, nesta dimensão, se impõe a

dimensão natural; e

(iii) fundada na técnica social, alicerça-se o instrumentalismo filosófico

para constituir a técnica geográfica (critério espacial) e a jurídica

(critério coercitivo), sendo neutra a relação Sociedade-Natureza nesta

dimensão.

Nesta conjectura simétrica e tridimensional, é possível especular o seguinte sistema

interdisciplinar entre Geografia e Direito, que descortina novas formas de estabelecer linguagens

entre as ciências, com base filosófica e ponto de partida social.

85 SANTOS, M., 2008b, p. 17.

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FIGURA 13 - Base filosófica e matriz sociológica da interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, pautada na Teoria Tridimensional

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Na decomposição deste emaranhado de relações interdisciplinares possíveis, a relação

Sociedade-Natureza, enquanto elemento indissociável do princípio da simetria, permeará todo o

sistema de formas distintas, conferindo sentido as relações e as ações existentes, transformando a

realidade e inovando nas técnicas por meio da compreensão de novos entendimentos.

No plano fenomenológico, o critério espacial do fato social forma o fato geográfico,

assim como o critério espacial do fato social forma o fato jurídico, sendo que a natureza se impõe

em sua relação com a sociedade. No plano axiológico, o critério espacial do valor social forma o

valor geográfico, assim como o critério coercitivo do fato social forma o valor jurídico, sendo que

a sociedade se impõe em sua relação com a natureza. Por fim, assim como o critério espacial da

técnica social forma a técnica geográfica, o critério coercitivo da técnica social forma a técnica

jurídica, sendo a relação Sociedade-Natureza neutra, sem prevalências.

Quanto mais o processo produtivo se tornar complexo, mais intrincado será discernir

o fato, o valor e a técnica, tanto na Geografia quanto em qualquer outro ramo científico, como é o

caso do Direito. Desta maneira, alcança-se o objetivo de articular as duas disciplinas

epistemologicamente, identificando o mínimo múltiplo comum, de forma a viabilizar a aludida

interdisciplinaridade. E, como não haveria de ser diferente, passaremos a denominar a tríade

geográfica como Teoria Tridimensional da Geografia.

Definidas as tridimensionalidades disciplinares, bem como a articulação

epistemológica, e admitido que: (i) a Geografia é o ramo científico que se compreende o espaço

como objeto de estudo, de forma a buscar um conceito epistemológico; (ii) que o Direito detém

em seu bojo a construção científica do Estado de Direito, que por sua vez delimita o espaço por

intermédio de normas jurídicas; e (iii) que Geografia e Direito podem ser articulados

epistemologicamente pela simetria, cria-se uma dupla contradição, que alia dogmatismo enquanto

referência e mediação como objetivo. Neste cenário, resta necessário analisar como pode se

manifestar eventuais “tridimensionalidades interdisciplinares” entre estas ciências.

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2. RELAÇÕES INTERDISCIPLINARES ENTRE GEOGRAFIA E DIREITO

A compreensão de Geografia e de Direito sempre estudaram objetos de estudo

semelhantes. A compreensão da construção e reconstrução do espaço, do aproveitamento dos

recursos naturais, da proteção ao meio ambiente, da questão fundiária, do uso do solo urbano, da

distribuição da renda e de muitas outras contradições que marcam o presente período histórico

dificilmente serão resolvidos se não houver um grande diálogo entre os dois saberes, um

descortinamento objetivo da realidade social e uma educação não-disciplinar, que acreditamos ser

uma exigência da contemporaneidade.86

Este cenário sugere aquilo que Santos, B. sintetiza de forma mais genérica (ou com

uma escala maior): a centralidade do critério espacial para o exercício do critério coercitivo pelo

Estado.

Todos os conceitos com que representamos a realidade e à volta dos quais constituímos

as diferentes ciências sociais e suas especializações, a sociedade e o Estado, o indivíduo

e a comunidade, a cidade e o campo, as classes sociais e as trajectórias pessoais, a

produção e a cultura, o direito e a violência, o regime político e os movimentos sociais, a

identidade nacional e o sistema mundial, todos estes conceitos têm uma contextura

espacial, física e simbólica, que nos tem escapado pelo facto de os nossos instrumentos

analíticos estarem de costas viradas para ela mas que, vemos agora, é a chave da

compreensão das relações sociais de que se tece cada um destes conceitos. Sendo assim,

o modo como imaginamos o real espacial pode vir a tornar-se na matriz das referências

com que imaginamos todos os demais aspectos da realidade. (SANTOS, B., 1988, p. 141).

Na busca desta matriz de referências exposta por Santos, B., a base das contradições,

fundada no descortinamento objetivo da realidade social, pode ser identificada no entrelaçamento

do critério espacial, decorrente da Geografia, e do critério cogente, oriundo do Direito, de forma

que o diálogo interdisciplinar pode se alicerçar no critério cogente do espaço e no critério espacial

do Estado, que promoverão um ordenamento espacial com base na justiça, pelo emprego de

sistemas geotecnológicos e normativos como instrumentos necessários para a transformação desta

realidade dita social.

86 Neste mesmo sentido, ADAS, 2009.

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Neste cenário, a construção e a reconstrução do espaço passará pela identificação de

qual nível do Estado, enquanto matriz de referência central, é o responsável por interagir com

aquela determinada realidade. O mesmo ocorrerá com o aproveitamento dos recursos naturais que,

dependendo de sua localidade, encontrará na escala jurídica87 a autoridade competente para

legislar sobre estes recursos, o mesmo ocorrendo com as questões voltadas ao meio ambiente,

restando aos cartórios, bem como a política rural, equacionar a questão fundiária.

Estes exemplos mal alinhavados demonstram como a diversidade geográfica é a base

para a comparação de sistemas de direitos, conforme demonstrou David (1998),88 ao analisar

legislações desde a Antiguidade, no início de seu estudo de direito comparado. Todavia, onde se

pode traçar o discrímen para identificar o que é base para a produção de conhecimento de um ramo

científico, no caso a Geografia estudando elementos jurídicos e o Direito compreendendo questões

geográficas, ou quais são os mecanismos epistemológicos que podem seguramente traçar uma

linha de corte para fundamentar um desenvolvimento científico interdisciplinar?

Fixado o sistema interdisciplinar, que pressupõe a simetria e a delimitação, com base

em um modelo tridimensional fundado em uma matriz filosófica, é possível estabelecer o diálogo

direto entre Geografia e Direito sem a intermediação das Ciências Sociais. O cientista social é o

empreiteiro da construção interdisciplinar, mas não seu operador, atribuição conferida aos

geógrafos e aos juristas. O fato, o valor e a técnica social servem de andaimes para a edificação,

que não se faz mais necessária com a obra pronta, uma vez que as ciências, quando niveladas,

podem dialogar diretamente. Neste cenário, é possível aprimorar o sistema no sentido de a

Geografia ofertar seu critério espacial para a concepção jurídica e o Direito destinar seu critério

coercitivo para a construção geográfica.

87 P. ex., no Brasil ela é caracterizada pela União, os Estados, os municípios e o Distrito Federal. 88 “[...] a comparação dos direitos, considerados na sua diversidade geográfica é tão antiga como a própria ciência

do direito. O estudo de 153 constituições que regeram cidades gregas ou bárbaras serviu de base ao Tratado que

Aristóteles escreveu sobre a política; Sólon, diz-se, procedeu do mesmo modo para estabelecer as leis de Atenas, e

os decênviros, segundo a lenda, só conceberam a Lei das XII Tábuas depois de uma pesquisa por eles levada a cabo

nas cidades da Grande Grécia. Na Idade Média comparou-se direito romano e direito canônico, e o mesmo aconteceu

na Inglaterra onde se discutiu, no século XVI, sobre os méritos comparados do direito canônico e da common law. A

comparação dos costumes serviu, mais tarde, de base aos trabalhos daqueles que procuram conservar na França um

direito comum consuetudinário, na Alemanha um Deutsches Privatrecht. Finalmente, Montesquieu esforçou-se, pela

comparação, por penetrar no espírito das leis e descobrir os princípios de um bom sistema de governo.” DAVID,

1998, p.1.

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77

FIGURA 14 - Interdisciplinaridade estática entre Geografia e Direito pautada na

Teoria Tridimensional

Este posicionamento equidistante entre as ciências, fixado em patamares filosóficos

comuns, permite cogitar novas formas de relacionamento entre a Geografia e o Direito, que

buscam como estudo dimensões da outra ciência, produzindo relações que, além de serem

simétricas, são geométricas.

FIGURA 15 - Modelo tridimensional interdisciplinar

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Compreendida esta simetria tridimensional,89 que possibilita uma articulação das

epistemologias destas ciências, é possível identificar como os quase-objetos90 se inter-relacionam

entre Geografia e Direito. Se respeitarmos o conceito tridimensional, com base geométrica nas

relações entre Geografia e Direito, que preservam três ângulos para o estabelecimento deste

diálogo, encontram-se 18 relações que podem ser divididas em duas categorias: a cognitiva e a

científica.

Esta divisão justifica-se pela necessidade de separar os tipos de mediação entre aquelas

que produzem ciência daquelas que possibilitam interdisciplinaridade. Aquelas que contêm as três

dimensões (fato-valor-técnica) daquelas que não tem uma das dimensões. Esta distinção permite

compreender o que é uma ciência se apropriando de um discurso alheio para o fim desta mesma

ciência ou o que viria a ser uma nova forma científica, decorrente da miscigenação de

conhecimentos. Em outras palavras, a Geografia se apropriar de discursos jurídicos para uma

determinada finalidade corresponde a fazer Geografia. O Direito empregar conhecimentos

geográficos para alcançar objetivo expresso em lei corresponde a fazer Direito. Todavia, se

admitirmos que a Geografia e o Direito se projetam concomitantemente para uma finalidade

comum, o “Império do Centro”,91 existe uma possibilidade de se identificar um novo ramo de

estudo específico com base interdisciplinar.

Nas relações cognitivas, demonstra-se abaixo que há 12 dimensões repetidas, como é

o caso do fato-fato-valor e do valor-valor-técnica. Por ausentar uma dimensão, o esforço de

compreensão passa a ser para obtenção de um conhecimento específico, e não ciência em seu

sentido estrito, haja vista não ser possível organizar metodologicamente estas informações de

forma tridimensional, pela ausência de um eixo filosófico. As relações cognitivas podem ser

divididas em três grupos, separadas pela repetição (ou pela ausência) de dimensões

fenomenológica, axiológica e instrumental, sendo denominadas: (i) Relação cognitiva fenomênica

(fato-fato); (ii) Relação cognitiva axiológica (valor-valor); e (iii) Relação cognitiva instrumental

(técnica-técnica). Na construção cognitiva com base fenomenológica, observada a simetria entre

Geografia e Direito, a simetria entre sociedade e natureza, bem como a tridimensionalidade

89 Não serão analisadas relações bilaterais, uma vez que elas constituem aspectos isolados de conhecimento científico,

não servindo ao propósito, em especial, de se edificar um modelo interdisciplinar. 90 Conforme explicado no capítulo 1 acima. 91 Conforme explicado no capítulo 1 acima.

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79

enquanto categoria de estudo, encontram-se como resultantes quatro categorias de Relações

cognitivas fenomênicas, abaixo dispostas. O resultado é a obtenção de Geografia ou de Direito,

com informações da outra ciência, sem que seja possível falar em interdisciplinaridade, mas em

disciplina pura (em sua concepção moderna) com o emprego de dados da outra ciência.

Na relação F1, uma montanha pode ser identificada para a tutela da União, do Estado,

do Município ou do Distrito Federal, de forma que a Geografia poderá analisar se esta tutela está

sendo suficiente para alcançar seu fim ou não (Identificar geograficamente o Estado e a análise

geográfica). Seguindo outra vertente, determinada gleba escriturada em cartório pode ter sua

legitimidade questionada pela análise geográfica (Identificar juridicamente o espaço e a análise

geográfica) ou mesmo o geógrafo pode analisar se o Estado está cumprindo sua função social

perante determinada invasão territorial (Analisar geograficamente o Estado e o espaço). Em todas

estas hipóteses, o que se tem como resultante é um estudo geográfico.

TABELA 5 – Tríade fato geográfico - fato jurídico - valor geográfico

FIGURA 16 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – valor geográfico

F1

Fato

geográfico

Fato

jurídico

Valor

geográfico

Geografia

pura com

dados

jurídicos

Identificar

geograficamente o Estado

e a análise geográfica

Identificar juridicamente

o espaço e a análise

geográfica

Analisar geograficamente

o Estado e o espaço

Na relação F2, privilegia-se a análise jurídica ao invés da geográfica. Desta forma, será

o Direito que analisará se há algum abuso no manejo da montanha tutelada pela União, do Estado,

do Município ou do Distrito Federal (Identificar geograficamente o Estado e a análise jurídica), a

gleba escriturada em cartório poderá ter sua legitimidade questionada pela análise jurídica

(Identificar juridicamente o espaço e a análise jurídica) e o jurista analisará se o Estado está

cumprindo sua função social perante determinada invasão territorial (Analisar juridicamente o

Estado e o espaço). Logo, o que se produziu nesta dimensão foi Direito.

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80

TABELA 6 – Tríade fato geográfico - fato jurídico - valor jurídico

FIGURA 17 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – valor jurídico

F2

Fato

geográfico

Fato

jurídico

Valor

jurídico

Direito

puro com

dados

geográficos

Identificar

geograficamente o Estado

e a análise jurídica

Identificar juridicamente o

espaço e a análise jurídica

Analisar juridicamente o

Estado e o espaço

No cenário F3, a montanha, os limites municipais e as propriedades serão

cartografadas (Mapear o espaço e o Estado), a planta da gleba registrada em cartório será

identificada e checada por um geógrafo (Identificar geograficamente o mapa e o Estado) e o jurista

identificará qual é o croqui válido para defender interesses perante determinada invasão territorial

(Identificar juridicamente o mapa e o espaço). O que se produz, aqui, é um trabalho geográfico, de

forma que a identificação do jurista nada mais é do que um trabalho acessório à prática da técnica

geográfica.

TABELA 7 – Tríade fato geográfico - fato jurídico – técnica geográfica

FIGURA 18 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – técnica geográfica

F3

Fato

geográfico

Fato

jurídico

Técnica

geográfica

Geografia

pura com

dados

jurídicos

Mapear o espaço e o

Estado

Identificar

geograficamente o mapa e

o Estado

Identificar juridicamente o

mapa e o espaço

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81

Por fim, na relação F4 a montanha será tutelada, por meio de lei, pela União

(normatizar o espaço e o Estado),92 o geógrafo identificará o critério espacial na legislação das

unidades federadas (identificar geograficamente a norma e o Estado) e o jurista identificará a

legalidade das ações realizadas na invasão territorial (identificar juridicamente a norma e o

espaço). O que se produz, aqui, é um trabalho jurídico, de forma que a identificação do geógrafo

do critério espacial da legislação nada mais é do que um trabalho acessório à prática da técnica

jurídica.

TABELA 8 - Tríade fato geográfico - fato jurídico – técnica jurídica

FIGURA 19 - Relação cognitiva fenomênica fato-fato – técnica jurídica

F4

Fato

geográfico

Fato

jurídico

Técnica

jurídica

Direito

puro com

dados

geográficos

Normatizar o espaço e o

Estado

Identificar

geograficamente a norma

e o Estado

Identificar juridicamente a

norma e o espaço

O mesmo tipo de dinâmica ocorre na relação cognitiva axiológica, de forma que cada

um dos ramos científicos se fundará em sua tradição culturalista para fundar esta forma de

produção de conhecimento disciplinar, podendo um ramo atuar como assistente de outro, sem que,

com isso, se esteja produzindo Geografia ou Direito, dependendo da referência.

92 Quando se fala em normatizar o Estado, deve-se considerar que um ente federado (União, Estados, Municípios e

Distrito Federal) estará produzindo direitos e obrigações perante todos os demais entes federados.

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82

TABELA 9 – Tríade valor geográfico - valor jurídico - fato geográfico

FIGURA 20 – Relação cognitiva axiológica valor-valor – fato geográfico

V1

Valor

geográfico

Valor

jurídico

Fato

geográfico

Geografia

pura com

dados

jurídicos

Identificar

geograficamente a análise

geográfica e jurídica

Analisar geograficamente

o espaço e a análise

jurídica

Analisar juridicamente o

espaço e a análise

geográfica

TABELA 10 – Tríade valor geográfico - valor jurídico - fato jurídico

FIGURA 21 - Relação cognitiva axiológica valor-valor – fato jurídico

V2

Valor

geográfico

Valor

jurídico

Fato

jurídico

Direito

puro com

dados

geográficos

Identificar juridicamente a

análise geográfica e

jurídica

Analisar geograficamente

o Estado e a análise

jurídica

Analisar juridicamente o

estado e a análise

geográfica

TABELA 11 – Tríade valor geográfico - valor jurídico – técnica geográfica

FIGURA 22 - Relação cognitiva axiológica valor-valor – técnica geográfica

V3

Valor

geográfico

Valor

jurídico

Técnica

geográfica

Geografia

pura com

dados

jurídicos

Analisar geograficamente

a análise jurídica e o mapa

Analisar juridicamente a

análise geográfica e o

mapa

Mapear a análise

geográfica e jurídica

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83

TABELA 12 – Tríade valor geográfico - valor jurídico – técnica jurídica

FIGURA 23 - Relação cognitiva axiológica valor-valor – técnica jurídica

V4

Valor

geográfico

Valor

jurídico

Técnica

jurídica

Direito

puro com

dados

geográficos

Analisar geograficamente

a análise jurídica e a

norma

Analisar juridicamente a

análise geográfica e a

norma

Normatizar a análise

geográfica e jurídica

Por fim, as dinâmicas acima são igualmente análogas no instrumentalismo, em que

cada ramo científico produz linguagem e tecnologia para expressar o desenvolvimento de seus

respectivos ramos científicos.

TABELA 13 – Tríade técnica geográfica - técnica jurídica - fato geográfico

FIGURA 24 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – fato geográfico

T1

Técnica

geográfica

Técnica

jurídica

Fato

geográfico

Geografia

pura com

dados

jurídicos

Mapear a norma e o

espaço

Normatizar o mapa e o

espaço

Identificar

geograficamente o mapa e

a norma

TABELA 14 - Tríade técnica geográfica - técnica jurídica - fato jurídico

FIGURA 25 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – fato jurídico

T2

Técnica

jurídica

Técnica

geográfica

Fato

jurídico

Direito

puro com

dados

geográficos

Normatizar o mapa e o

Estado

Mapear a norma e o

Estado

Identificar juridicamente a

norma e o mapa

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84

TABELA 15 – Tríade técnica geográfica - técnica jurídica - valor geográfico

FIGURA 26 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – valor geográfico

T3

Técnica

geográfica

Técnica

jurídica

Valor

geográfico

Geografia

pura com

dados

jurídicos

Analisar geograficamente

o mapa e a norma

Normatizar a análise

geográfica e o mapa

Mapear a análise

geográfica e a norma

TABELA 16 – Tríade técnica geográfica - técnica jurídica – valor jurídico

FIGURA 27 - Relação cognitiva instrumental técnica-técnica – valor jurídico

T4

Técnica

geográfica

Técnica

jurídica

Valor

jurídico

Direito

puro com

dados

geográficos

Analisar juridicamente o

mapa e a norma

Mapear a análise jurídica e

a norma

Normatizar o mapa e a

análise jurídica

Desta forma, as relações cognitivas não devem ser consideradas para efeito

interdisciplinar por serem imperfeitas sob a ótica do princípio da simetria. Elas não contêm todas

as dimensões em sua construção (fato, valor e técnica), devendo ser tomadas como simples

elemento de estudo da Geografia ou do Direito, dependendo da referência a ser tomada.

Para obter interdisciplinaridade científica, é imprescindível que ocorra

concomitantemente as dimensões fato-valor-técnica, de forma a possibilitar o desenvolvimento de

ciência, produzindo seus efeitos para a consecução metodológica da tridimensionalidade. Pela

geometria, simetria e delimitação é possível identificar seis eixos de estudo interdisciplinares que

contemplam concomitantemente as três dimensões (fato, valor e técnica), sendo divididos em dois

grandes grupos: (i) a referência geográfica, haja vista que dois dos três eixos são fundados na

Geografia; e (ii) a referência jurídica, uma vez que dois dos três eixos estão sediados no Direito.

Passaremos a analisar cada uma destas formas, bem como suas repercussões nas duas ciências.

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85

2.1. Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica geográfica: a Geografia de Estado

Para efeitos interdisciplinares, a Geografia é tida como referência nesta perspectiva de

análise, por meio das dimensões valor e técnica, ao apreciar o fato jurídico como objeto de estudo.

Nesta frente, toda a fenomenologia jurídica se apresenta como material de interesse geográfico, de

forma que o conjunto de objetos de estudo jurídico passam a ser analisados sob uma ótica

geográfica, constituindo este eixo interdisciplinar. Ou seja, a Geografia analisa o Estado de Direito,

de forma a lhe atribuir valor e técnica.

A relação entre Geografia (valor e técnica geográfica) e Estado (fato jurídico,

referencial) pode ser considerada como uma premissa básica na qual se funda a Geografia Clássica,

sendo esta relação caracterizada pelo estudo do solo em face da estrutura de Estado. A sociedade,

por sua vez, seria o elo que liga o Estado ao solo. Após o século XVIII, o desejo de expansão

imperialista, com base no Estado, apresentou-se historicamente como decisivo para a consolidação

da Geografia, e o imperialismo se manifestava com base em uma estrutura estatal, que pressupunha

uma série de regras e mandamentos jurídicos.

No caso do surgimento da Geografia moderna, a questão estatal encontrou grande

repercussão nos meios científicos alemães. A fragmentação territorial, que inviabilizava relações

perenes entre os povos germânicos, concomitante ao anseio de expansão imperial, que

pressupunha a necessidade de constituição de um centro político organizador do espaço político,

social e econômico, provocou um relevante desenvolvimento epistemológico da Geografia.93

Como exemplo, não há como precisar se Ratzel, no início do século XX, aderiu a

concepção hegeliana de Estado, mas parece claro em suas ideias que o Estado é a realidade em ato

da ideia moral objetiva. Ratzel racionaliza o Estado e elabora uma construção geográfica para

embasá-lo e fomentá-lo com uma significação espacial. Assim, o determinismo se manifesta,

primariamente, pelo movimento de expansão espacial do Estado, adotando como premissa maior

que o Estado não pode existir sem o solo, de forma a construir toda uma crítica entre a separação

do conceito de estado do conceito de solo.94

O Estado é uma organização social essencial para a compreensão da obra de Ratzel.

Na obra “O Solo, A Sociedade e o Estado”, Ratzel (2011, p. 52) enuncia que os tipos mais simples

93 Karl Haushofer, enquanto diretor da Zeitschriftfür Geopolitik desenvolveu várias acepções de fronteiras, Estado,

nação, povo, autarquia etc. 94 Corrobora neste sentido CLAVAL, 2006, p. 75.

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de Estado são irrepresentáveis sem um solo que lhe pertença. Um povo regride quando perde

território. Quanto mais as necessidades da habitação e da alimentação ligam estreitamente a

sociedade a terra, tanto mais é premente a necessidade de nela se manter. É dessa necessidade que

o Estado tira suas melhores forças. A tarefa do Estado, no que concerne ao solo, é a de proteger o

território contra os ataques externos. Assim, o Estado ratzeliano era essencialmente uma coisa

viva, que, como outras coisas orgânicas, precisava crescer para viver, sendo uma ligação natural

entre pessoas e o ambiente, a expressão espacial do espiritual, mas também dos laços orgânicos

entre pessoas e lugares.95

Logo, Ratzel atribui ao Estado uma função exógena, de proteção perante terceiros,

sendo que a função de coesão social seria da família e da sociedade. O Estado teria uma função

para além do clã, como o único ente que poderia receber uma extensão territorial contínua,

podendo desta maneira formar impérios que abarcariam até continentes. Seria, então, uma

organização política que age sob o impulso da consciência nacional de um povo, com o objetivo

de exercer controle sobre o território, de forma a garantir as relações econômicas vitais a este povo.

Esta construção acarreta uma espécie de Estado totalitário, sem a multiplicidade de

variáveis (ou o devido pluralismo jurídico) observada nos estados do século XXI e fortemente

baseada em ideias evolucionistas, concebendo o Estado como um organismo vivo e dinâmico, de

forma que sua expansão territorial seria um processo normal, saudável e necessário.96

A escola geográfica francesa contribuiu de forma incisiva para a assunção conceitual

do Estado pela Geografia. São fartos os estudos sobre a importância do Estado, sob uma concepção

política. Há visões distintas sobre como a Geografia pode compreender o Estado enquanto

instância ordenadora do território. Antes do alvorecer do século XX, Vallaux (1870) emprega o

solo e o Estado dentro de uma concepção geográfica. Para Vidal de la Blache (2014b), as

sociedades se relacionam com base em uma divisão do espaço terrestre pré-concebida em

diferentes regiões naturais, que em última análise balizam as trocas inter-regionais. Neste sentido,

um Estado deveria planejar para alcançar seus objetivos, que em última análise seriam a de

conhecer seu território, haja vista suas características naturais e humanas.

Como ponto central da formação dos Estados, residiriam as cidades, uma vez que são

elas que contemplam os produtos e a diversidade das formas de trabalho, atraindo população

95 Corrobora neste sentido MITCHELL, 2000, p. 18. 96 Para Castro, I (2005, p. 19), este tipo de Estado “foi fortemente inspirado na biologia, e os temas por ele

privilegiados respondiam à necessidade de refletir sobre os problemas de sua época, ou seja, a disputa por territórios

e o fortalecimento do Estado nacional como garantia de poder dos povos sobre os territórios por eles ocupados”.

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diversificada, que podem variar e ampliar suas relações, constituindo em elemento central da

construção do Estado e, por conseguinte, dos impérios. A edificação de estruturas de circulação,

notadamente vias e estradas, compõem centralidade na concepção lablachiana de Estado, uma vez

que ela acompanha sua formação e é por ela que as relações econômicas fluem. As cidades e as

vias de circulação, neste caso, são as estruturas necessárias para que o Estado assegure a

solidariedade entre diversas partes do território, bem como sua integração e coesão.

[...] no final das contas, estas unidades territoriais chamadas de Estados não dependem,

de certa forma, da geografia? Não estão elas sujeitas às leis naturais que governam

qualquer corpo estabelecido em termos de extensão, posição, contato? A força que há

neles enfrenta, na sua expansão, a expansão das forças vizinhas: onde está o princípio da

força? Não há, no grupo que representam, um núcleo inicial ou, como dizem os

fisiologistas, um ponto de ossificação que deu consistência ao embrião político? (VIDAL

DE LA BLACHE, 2012).

Na segunda metade do século XX, e fortemente influenciado pelas guerras mundiais,

Lacoste coloca como ponto de partida que a Geografia serve para fazer a guerra. Mas não implica

afirmar que ela só serve para conduzir operações militares, mas também para organizar territórios,

no sentido de melhor controlar os homens sobre os quais o aparelho de Estado exerce sua

autoridade. O Estado deve ter conhecimento aprofundado sobre o espaço geográfico, e para tanto

deve conhecê-lo, por meio da cartografia, de forma a possibilitar a gestão dos recursos projetados

no espaço, principalmente, mas não se limitando, nos casos de guerra. Lacoste ainda confere

grande contribuição ao entender como fato geográfico o território nacional, enquanto projeção

espacial do Estado.

A idéia nacional tem algo mais que conotações geográficas; ela se formula em grande

parte como um fato geográfico: o território nacional, o solo sagrado da pátria, a carta do

Estado com suas fronteiras e sua capital, é um dos símbolos da nação (LACOSTE, 1993,

p. 26-27).

Lacoste (Ibidem, p. 95) propõe uma Geografia que admita a geograficidade dos fatos

que advêm da política, mormente aqueles que traduzem o papel dos diferentes aparelhos de Estado,

de forma a construir um saber teórico que permita articular os problemas de envergadura planetária

aos da vida local, passando inevitavelmente pelo nível do Estado.

George (1968) desenvolve suas convicções sobre o Estado sob um enfoque de gestão

de recursos, sejam bens ou homens. Fundamenta seu raciocínio sob a premissa de que não é

possível fazer boa administração, em escala pública ou privada, sem uma sólida cultura geográfica

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ou sem o concurso de um geógrafo. Para tanto, no intuito de conceber o que denominara como

Geografia Ativa, o geógrafo teria uma importante função no aprimoramento das políticas de

desenvolvimento a serem implementadas por um Estado, entendido como escala de estudo

geográfico, que pode, inclusive, utilizar o trabalho dos geógrafos para conhecer as melhores

práticas utilizadas em outros Estados.

Aos homens que têm no presente ou àqueles que terão no futuro a responsabilidade de

organizar o progresso de sua pátria, coloca-se um problema essencial: o da escolha e da

aplicação de políticas de desenvolvimento que tiveram resultados positivos em outros

países. Ajudá-los é uma das tarefas da geografia ativa, que dispõe efetivamente de um

instrumento conceitual particularmente eficaz: o estudo diferencial do Terceiro Mundo,

tanto na escala dos Estados quanto na das regiões.

Uma política de desenvolvimento deve estar muito estreitamente adaptada às realidades

do país. E nem todos os aspectos dessas realidades são transferíveis de um Estado a outro,

de uma região a outra. [...] Julgar válido organizar-se, em um Estado determinado, um

sistema de desenvolvimento inspirado numa experiência positiva realizada num outro

país implica em que se disponham de estudos que são efetivamente do domínio próprio

da geografia ativa (GEORGE, 1968, p. 118).

Com o aumento da complexidade do Estado na década de 1970, os geógrafos começam

a reforçar sua centralidade ao mesmo tempo que caracterizam seu desgaste enquanto estrutura

totalizante. Burdeau (1970, p. 13) enuncia que “ninguém jamais viu o Estado. Quem poderia, no

entanto, negar que ele seja uma realidade?”. Enquanto Lefebvre (1978) desenvolve critérios para

que o Estado intervenha no capitalismo, Claval (1969, p. 124) entende que o Estado tradicional é

débil pela impossibilidade de se controlar o espaço, decorrente do desequilíbrio entre a capacidade

de expansão da autoridade e os meios que o Estado detém para estruturar o espaço. A crise

enfrentada pelas estruturas do mundo contemporâneo, quer na esfera política, quer pela sociedade

civil, repousa na pretensão em se organizar uma estruturada conjunção de numerosos e dispersos

elementos em grandes extensões, de forma a buscar uma organização que tenha uma lógica

intrínseca, por meio de um princípio de autoridade. O Estado, desse modo, seria uma estrutura

sobreposta a esfera política e a esfera da sociedade civil, o que multiplicaria as expectativas - e as

exigências - em relação a esta estrutura. Caberia à Geografia determinar de forma precisa a

importância relativa dos diferentes feixes de relações pelo estudo sistemático das relações em

todos os níveis de Estado.

[...] as ciências humanas deixaram de ser contemplativas - ou descritivas - e são cada vez

mais levadas a se tornar ativas, isto é, a participar de uma pesquisa normativa capaz de

fornecer os temas de uma política do equipamento e do desenvolvimento urbano e

regional. O Estado e as coletividades públicas estão recorrendo a ‘conselhos’ por se verem

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obrigados a intervir para evitar o agravamento do caos cujo responsável é um liberalismo

confuso e especulativo (CLAVAL, 1969, p. 163).

Na Suíça, Raffestin97 (1993, p. 227) disse que a Geografia Política do século XX pode

ser denominada de Geografia do Estado, uma vez que a transformação do espaço geográfico nos

conduz diretamente na esfera do poder. O fato político penetrou toda a sociedade, de forma que,

se o Estado é triunfante, ele passa a ser um grande centro de conflitos e de oposições, lugar de

exercício de relações assiméricas e dissimétricas. A Geografia do Estado foi um fator de ordem ao

privilegir o concebido em detrimento do vivido.98 Segundo Raffestin, a análise do Estado pela

Geografia observa uma grande inversão de valores, uma vez que as dimensões política e estatal se

confundem.

Quase toda a linguagem foi forjada e organizada em função do Estado, e isto desde Ratzel.

Melhor dizendo, houve uma inversão do expediente. O Estado mesmo sendo a mais

acabada e a mais incômoda das formas políticas não é a única. Se a linguagem tivesse

sido criada para justificar o poder político e as relações que ele estabelece no espaço e no

tempo, o Estado certamente teria tido um lugar privilegiado, mas não estaria sozinho.

Sem dúvida, essa é uma das razões pelas quais a ‘geografia política’, na realidade a

geografia do Estado, permaneceu marginal e pouco integrada no corpus geográfico. Em

vez de se interessar por qualquer organização dotada de poder político suscetível de se

inscrever no espaço, a geografia só viu e, em consequência, só fez a análise de uma forma

de organização: a do Estado. (RAFFESTIN, 2011, p. 25-26).

Raffestin é um dos geógrafos que mais aceita a noção de Estado-Nação, ou o Estado

de Direito, enquanto matriz de referência, - para empregar linguagem de Santos, B. - caracterizado

pelos seus elementos de população, território e autoridade. Deste conceito emanam alguns

conceitos, que Raffestin chama de “códigos semânticos”, que são a noção de capital e de fronteiras,

que exercem funcionalidades de forma a caracterizar relações de força (poder). A Geografia de

Estado derivaria de uma tríade população - território - autoridade. Todavia, como o próprio

Raffestin reconhece, como a observação empírica sempre prevaleceu sobre a construção teórica

em Geografia, a gênese do porquê a Geografia de Estado permaneceu diminuída ao longo da

história talvez resida na ausência de compreensão da dimensão jurídica do Estado, e de seus

mecanismos de busca de equacionamento de assimetrias sociais. Em outras palavras, os geógrafos

usualmente privilegiam o estudo do fato político, como propulsor de interdisciplinaridade entre

97 Raffestin, em que pese ser francês, se tornou geógrafo na Suíça. 98 Ou, em linguagem jurídica, o Dever Ser ao invés do Ser.

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Geografia e Ciências Políticas, de forma a promover uma das espécies de Geopolítica, em

detrimento do estudo do fato jurídico, que culminaria em uma expressão de Geodireito.

Logo, para se compreender a Geografia de Estado, não se pode restringir apenas ao

fato político, mas se deve buscar caracterizar o fato jurídico, utilizando-se do Direito, nesta

vertente, como instrumento de materialidade da Geografia, sob pena de perpetuar o valor

geográfico com noções estritamente empíricas e com baixa capacidade de transformação da

sociedade. Este entendimento é referendado por Raffestin, que contextualiza o problema do estudo

da Geografia do Estado, ao fundar que os geógrafos, ao partirem seus estudos de um fato político,

não teriam enfrentado os conflitos existentes no seio do Estado, exatamente pela característica do

fato político ser unidimensional, ou seja, contemplar apenas a visão do governante.

De modo bem genérico, com algumas raras exceções, a geografia política no século XX

foi uma geografia do Estado. Em certo sentido, uma geografia política unidimensional

que não quis ver no fato político mais que uma expressão do Estado. Na realidade, o fato

político penetrou toda a sociedade e, se o Estado é triunfante, não deixa de ser um centro

de conflitos e de oposições - em resumo, um lugar de relações de poder que, apesar de

dissimétricas, não deixam de ser presentes e reais. Mas a geografia do Estado apagou

esses conflitos, que apesar de tudo continuam a existir em todos Os níveis relacionais que

postulam uma geografia política multidimensional. Essa geografia do Estado foi um fator

de ordem ao privilegiar o concebido, em detrimento do vivido. Só a análise relacional

pode ultrapassar essa dicotomia concebido-vivido (RAFFESTIN, 2011, p. 22).

No Brasil, o Estado ocupa um importante papel na análise geográfica, tanto pela sua

presença quanto pela sua ausência. Enquanto Haesbaert (2010, p. 37) enfatiza que os geógrafos

buscam a materialidade do território em suas múltiplas dimensões, se afastando do conceito de

Estado por ser uma escala limitadora da compreensão geográfica, delegando sua compreensão as

Ciência Política por se tratar de relações de poder,99 Santos, M. chega a apontar o Estado como o

“fator número um para tudo que concerne ao espaço” (SANTOS, M., 1986, p. 185). Santos, M.

conceitua o Estado-Nação100 com base em premissas da Teoria Geral do Estado, sendo formado

por três elementos: (i) território; (ii) povo; e (iii) soberania. Neste cenário, a utilização do território

pelo povo cria o espaço. As relações entre o povo e seu espaço e as relações entre os diversos

territórios nacionais são reguladas pela função da soberania (SANTOS, M., 1986, p. 189).

99 Haesbaert sugere, ainda, que, com base em observações e fatos, La Blache se diferencia do determinismo de Ratzel

exatamente por emancipar a Geografia do Estado, colhendo “os louros e os dilemas de sua opção por uma geografia

política em sentido amplo, liberta das especificidades da questão do Estado.” (HAESBAERT, 2002). 100 Nomenclatura empregada em diversas partes da bibliografia de Santos. Como exemplo, SANTOS, M., 2008a, p.

138.

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O papel do Estado estaria assegurado por ser a única instância possível entre a

produção em escala internacional e a sociedade nacional, sendo utilizado pelo imperialismo para

institucionalizar sua penetração, servindo aos interesses do sistema da seguinte forma: (i) ele torna-

se o maior responsável pela penetração das inovações e pela criação de condições de sucesso dos

investimentos porque, como instrumento de homogeneização do espaço e do equipamento de

infraestrutura, ele é o responsável maior pela penetração das inovações e pelo sucesso dos capitais

investidos, sobretudo os grandes capitais; (ii) por seus próprios investimentos o Estado participa

de uma divisão de atividades que atribui aos grandes capitais os benefícios maiores e os riscos

menores, sendo uma divisão de atividades em escala internacional e que assegura a continuidade

e a reprodução da divisão desigual das riquezas; e (iii) para poder prosseguir com essas funções,

o Estado tem que assumir, cada dia de maneira mais clara, seu papel mistificador, como

propagador, ou mesmo criador de uma ideologia de modernização, de paz social e de falsas

esperanças que ele está bem longe de transferir para os fatos (SANTOS, M., 1986, p. 180).

Logo, a economia não seria a principal estrutura social a ser considerada na abordagem

do espaço. A ação do Estado necessita ser igualmente abordada com centralidade, bem como sua

atribuição de dispor de como a sociedade deve ser, utilizando de seus instrumentos normativos

para reordenar o espaço.

O espaço organizado não pode ser jamais considerado como uma estrutura social

dependendo unicamente da economia. Se esse pudesse ter sido o caso em situações do

passado, nos dias de hoje é mais que evidente o fato de que outras influências interferem

nas modificações da estrutura espacial. O dado político, por exemplo, possui um papel

motor. Um exemplo: quando o Estado toma a decisão de reordenar o território para

melhor assegurar sua soberania. (SANTOS, M., 1986, p. 148-149).

A ação do Estado, enquanto “única organização capaz de se opor a essa ou aquela

forma de realização das forças externas”, (SANTOS, M., 186, p. 187) pode ser empregada para

criar novas rugosidades. Coloca-se como questão central saber a partir de que nível o Estado, por

sua ação ou por sua simples presença, preside uma rede mais extensa de relações. Há a criação do

conceito espaço-Estado (SANTOS, M., 186, p. 188), segundo o qual constitui o nível superior dos

sistemas locais, regionais, nacionais e internacionais, cada quais com níveis de interferência no

espaço em suas respectivas escalas.

Estas atividades do Estado, sobretudo aquelas referentes a economia internacional,

seriam marcadas pela: (i) contingência na qual o Estado necessita ter uma fluidez para se adaptar

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constantemente as exigências do mercado internacional; (ii) caráter contingente de sua

intervenção; e (iii) caracterização das rugosidades no espaço.

Santos, M. aponta a dialética entre o macroespaço, o Estado e o microespaço como

modelo de estudo do Estado no espaço (SANTOS, M., 1986, p. 188), onde a definição das funções

do Estado é a chave de toda a problemática do espaço no futuro. Para tanto, são apontadas quatro

situações possíveis de compreensão da repercussão tecnológica e níveis de intervenção do Estado

(SANTOS, M., 1979, p. 101), a saber: (i) papel não modificado da tecnologia + papel não

modificado do Estado; (ii) papel não modificado da tecnologia + novo papel do Estado; (iii)

superação do sistema tecnológico + papel não modificado do Estado; e (iv) superação do sistema

tecnológico + novo papel do Estado.

Importante destacar algumas passagens em que Santos, M. aponta a relevância do

Direito em face dos estudos geográficos, incluindo a referência a Hegel como um filósofo do

Direito que refletiu sobre o espaço.101 As mudanças que ocorrem nas ciências jurídicas devem ser

observadas para se adequar as necessidades do lugar e as formas de representatividade.102

Santos, M. afirma sua crença no controle do espaço local exercido pelo Estado,

enquanto poder central constituído para a regulação das atividades naquele espaço. Contudo, ele

reforça a importância de se haver descentralização política, representada por partes autônomas

deste espaço, mas ao mesmo tempo afirma o ceticismo perante a eficácia do exercício da

autonomia de vontade destas unidades, pois no final necessitarão inequivocamente de auxílio

federal.

Podemos, também, considerar a evolução do meio técnico em meio científico-técnico do

ponto de vista das diversas áreas de um país. É às vezes difícil dizer o que é causa e o que

é efeito, mas à expansão geográfica do chamado meio técnico-científico corresponde uma

concentração da economia nacional que, por sua vez, supõe ou exige um poder maior do

governo central. De tal forma que os governos provinciais ficam sem a capacidade de

tomar iniciativas, e se tornam, às vezes, inteiramente dependentes do nível governamental

que dispõe de recursos.

101 “No capítulo consagrado às bases geográficas da história em sua Filosofia do Direito, o filósofo alemão faz

referências ao solo, ao clima, à situação geográfica. Nesse mesmo livro é dito que ‘a compreensão do direito passa

pela análise do seu conteúdo no qual, ao lado do caráter nacional particular a cada povo e do seu estágio próprio

de desenvolvimento histórico, inclui-se o complexo total das relações que têm por base as necessidades da natureza”

SANTOS, M., 1986, p. 125. 102 “O resultado (da configuração técnica do território) é a aceleração do processo de alienação dos espaços e dos

homens, do qual um componente é a enorme mobilidade atual das pessoas: aquela máxima do direito romano, ubi

pedis ibi pátria (onde estão os pés aí está a pátria), hoje perde ou muda seu significado. Por isso também o direito

local e o direito internacional estão se transformando, para reconhecer naqueles que não nasceram num lugar o

direito de também intervir na vida política desse lugar. Há que refletir sobre o conflito entre, de um lado, o ato de

produzir e de viver, função do processo direto da produção e as formas de regulação ligadas às outras instâncias de

produção.” SANTOS, M., 2008a, p. 141.

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Ora, como cada nível de organização, seja qual for o domínio das coisas vivas,

corresponde a interesses distintos e às vezes conflitantes, o exercício das atribuições de

um governo central na remodelação do território ou na mudança do uso das suas diversas

frações pode acarretar para os níveis inferiores de governo (no caso, estadual ou

municipal) problemas que se tornam insuperáveis ou cuja solução exige, de novo, que

esse nível administrativo se dirija ao governo central. O fato de que este, como referimos

há pouco, tenha suas próprias finalidades faz com que o atendimento às solicitações dos

governos estaduais ou municipais seja às vezes impossível, às vezes apenas parcial, às

vezes extemporâneo e, de qualquer forma, acarrete distorções (SANTOS, M., 2008b, p.

61-62).

Há outra relevante passagem em que se destaca a descentralização administrativa do

Estado. Quando pormenoriza as situações de conflito no espaço, Santos, M. destaca o Estado como

uma das instâncias que se utiliza de medidas coercitivas para mediar interesses, entendido o Estado

em suas dimensões geográficas (províncias, municípios) e em sua característica organizacional,

por meio de suas instituições. Neste cenário, o Estado às vezes porta o novo, às vezes garante a

permanência do velho.103 Assim, propõe como método para estudo do espaço as categorias

estrutura, processo, função e forma, que por sua vez definem o espaço em relação à sociedade.

Nessa divisão é importante destacar a importância que se conferiu a existência de conflitos, que

por sua vez exigem uma compreensão econômica e jurídica.104 Se as normas jurídicas adquirem

relevância para dirimir conflitos no espaço, e é o Estado que deve promover esta conformação dos

interesses sociais, cabe verificar como é proposta a relação entre o Estado e as redes enquanto

instrumento de regência de relações espacializadas.

[...] cada região produtiva se liga de forma maior ou menor a áreas externas ao Estado.

Os níveis e a intensidade dessa interação para dentro e para fora e cada Estado variam

com o tempo. Pode-se dizer, também, que a cada momento histórico a definição das

disparidades regionais muda. Esses dois princípios, o da mudança da natureza das

disparidades regionais e o do tipo de relações, internas ou externas, mantidas pela região

produtiva, constituem também um dos elementos complementares à compreensão da

significação atual das redes de cidades, que, de uma maneira ou de outra, presidem as

relações existentes (SANTOS, M., 2008b, p. 99).

103 “Em resumo, externo e interno são próximos, em significação e em realidade, de novo e velho. As forças de

mercado são, em última análise, governadas pelo novo e pelo externo, mas se realizam em grande parte através do

velho e do interno. O Estado, garantia do novo e do externo como subsídio ao econômico, assume, porém, o velho no

tocante ao social.

Afinal, os mecanismos de mercado aparecem triunfantes, trazendo o novo e conservando o velho, em função dos

ditames da produção, impondo o externo ao interno nos setores onde isso lhes convém e arrastando o Estado para a

órbita dos interesses privados. A internalização do externo, a renovação do antigo a serviço das forças de mercado

não seria possível sem o apoio, ainda que não deliberado, do Estado.” SANTOS, M., 2008b, p. 107-108. 104 “Cada produção organiza o espaço segundo uma modalidade própria. Produções associadas associam suas

lógicas, sem que forçosamente deixe de haver, entre elas, conflito, inclusive pelo uso do espaço, exceto se a

associação, além de econômica, é também técnico-jurídica.” SANTOS, M., 2008b, p. 91.

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Logo, o Estado pode se utilizar de seu poder normativo ao criar: (i) formas, por meio

de leis de zoneamento, de maneira a consagrar a utilização prioritária dos recursos locais para

setores específicos; (ii) funções, ao produzir, p. ex., isenções tributárias para o fomento econômico

de determinadas espacialidades; e (iii) fixos, principalmente nas regiões pioneiras. Neste último

quesito, Santos, M. pormenoriza a importância desta característica para o desenvolvimento

nacional, utilizado no Brasil na concepção e construção de Brasília enquanto capital federal.

Em uma zona pioneira, dotada de infra-estrutura incipiente, a ação do Estado pode ser

fundamental. Ao Estado cabe criar fixos, precipuamente a serviço da produção ou do

homem. Mas os fixos atraem e criam fluxos. Desse modo, o subsetor governamental

orienta os fluxos econômicos e humanos e determina sua viabilidade e direção. Os fluxos

também criam fixos na órbita do subsistema de mercado, sobretudo quando os fixos de

origem pública são insuficientes para atender à demanda.

Mas, de um modo geral, os fixos necessários ao exercício das formas mais complexas de

cooperação (estradas, por exemplo) são criados pelo Estado (SANTOS, M., 2008b, p.

102).

Neste conceito, as formas geográficas não seriam apenas uma resultante da evolução

da sociedade, mas também poderia condicionar esta evolução, seja pelo interesse global

concretizado nos instrumentos do Estado, seja pelo próprio interesse do Estado enquanto promotor

do projeto nacional.

TABELA 17 – Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica geográfica

FIGURA 28 – Relação científica interdisciplinar: a Geografia do Estado

I1

Fato

jurídico

Valor

geográfico

Técnica

geográfica

Referência

geográfica

(VT)

Identificar juridicamente a

análise geográfica e o

mapa

Analisar geograficamente

o Estado e o mapa

Mapear o Estado e a

análise geográfica

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Nestes termos, se observa uma profunda compreensão do Estado no pensamento

geográfico, ao empregar o fato jurídico enquanto categoria de estudo geográfico, produzindo uma

Geografia de Estado com três eixos de estudo: (i) identificar juridicamente a análise geográfica e

o mapa; (ii) analisar geograficamente o Estado e o mapa; e (iii) mapear o Estado e a análise

geográfica. Esta forma geográfica interdisciplinar está representada no modelo tridimensional

acima.

Deve-se destacar que toda a Geografia do Estado, enquanto uma das formas possíveis

de interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, encontra sua antítese nas demandas sociais (fato,

valor e técnica) que não foram contempladas pelo Estado (ou a Geografia do não Estado). A

sociedade é dinâmica, e suas forças tencionam para tornar o modelo interdisciplinar não simétrico

e não geométrico, mas isso não invalida a constituição de uma matriz de referência pautada no

Estado de Direito. Logo, a função da Geografia de Estado é a de mediar e de harmonizar estas

demandas na sociedade, de forma a alcançar o equilíbrio destas demandas, respeitando as demais

dimensões interdisciplinares, conforme se verá na sequência.

2.2. Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica geográfica: a Geografia da Justiça

Assim como na dimensão anterior, a Geografia é tida como referência nesta

perspectiva de análise, por meio das dimensões fato e técnica, ao apreciar o valor jurídico como

objeto de estudo. Nesta frente toda a axiologia jurídica se descortina como material de interesse

geográfico, de forma que a moral, a ética e principalmente a justiça passam a ser analisadas sob

uma ótica geográfica, constituindo este eixo interdisciplinar. É a Geografia da Justiça, que estuda

o que é justo e o que é injusto, fundada no valor jurídico.

A justiça é um valor jurídico por excelência, fundamental,105 tão intuitiva quanto

indecifrável, que encontra paralelo na busca da definição de espaço pelos geógrafos. Direito e

justiça se confundem,106 uma vez que, para efeito axiológico, ou determinado fato social é Direito

e, por isso, justo, ou não é Direito e, por consequência, injusto.107 A veemência e a densidade desta

construção milenar108 e multicultural109 fundamenta-se no fato de que a busca da justiça para o

105 Corrobora neste sentido AMARAL, 2008, p. 15. 106 Neste sentido, DINIZ, 1991. 107 Importante repisar que ser Direito não significa estar na lei, mas em todas as fontes do Direito, tais como norma,

jurisprudência, analogia, usos e costumes etc. 108 Por exemplo, vide a construção do Direito Romano e do Código de Hamurabi (Babilônia) na Antiguidade. 109 A noção de justiça e Direito está presente em diversas culturas.

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jurista tem uma característica diferenciadora perante a busca da justiça em outros ramos

científicos, uma vez que o jurista detém as prerrogativas de Estado para empregar a coercitividade,

constituindo-se em uma matriz de referência na obtenção de justiça. Logo, o Direito se tornou o

ramo científico que estuda os princípios da justiça como valor regulador das instituições sociais e

das liberdades individuais. Bobbio (1999, p. 116-117) realiza importante síntese ordenadora das

correntes jurídicas sobre justiça:

a) A justiça enquanto igualdade: De matriz aristotélica, o conceito de

igualdade se aproxima do conceito de justiça, sendo função do Direito

garantir a ordem por meio da igualdade entre os indivíduos (justiça

comutativa) ou entre estes indivíduos e o Estado (justiça distributiva). Logo,

se imaginarmos a justiça tendo a espada e a balança, a teoria do Direito como

ordem visa ressaltar a espada, e a do Direito com igualdade, a balança. O

Direito natural fundamental que está na base desta concepção é o direito à

igualdade;

b) A justiça enquanto ordem: De base hobbesiana, o Direito é concebido como

um meio de garantia da segurança da vida, que no limite preserva a

continuidade da civilização. A justiça torna-se um elemento da paz social

após o estado de natureza; e

c) A justiça enquanto liberdade: Com fundamento modernista, o Direito deve

ter como fim o alcance da liberdade, garantida por normas coercitivas que

possibilitem a expressão da personalidade sem violações externas, de forma

universal. Este conceito está presente em Kant, que adota o formalismo como

base de sua construção. Nesta seara, um princípio justo deve ser correto sob

a ótica ética, fundando-se na razão e não em experiências personalíssimas.110

Exceções, para Kant, são imoralidades, logo, injustas sob o formalismo de

seu imperativo categórico. Assim como Kant, Hegel atrela o conceito de

justiça ao de liberdade, pois o ponto de partida do Direito residiria na vontade

110 Tema enfrentado por WEBER, T., 1997, p. 919.

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livre, sendo o sistema de Direito uma espécie de império da liberdade

realizada, uma segunda natureza a partir de si mesmo.

Esta síntese conceitual de justiça encontra um importante contraponto no positivismo

jurídico. A construção da Teoria Pura do Direito exclui de sua análise todo o conteúdo da

sociologia sobre justiça, bem como seus aspectos axiológicos, focando sua pesquisa na validade

da norma, em sua vigência enquanto promotora de efeitos, e sua eficácia de seu objetivo, chegando

a afirmar que “a ciência jurídica não tem espaço para os juízos de Justiça” (KELSEN, 1998, p.

223), devendo promover apenas juízos de Direito.

Haja vista a relevância científica deste raciocínio, em que pese ser parcial em sua

explicação do Direito, nos filiamos a proposta de Rawls, que retoma alguns conceitos aristotélicos

de justiça que foram afastados pela corrente positivista, de maneira a admitir a imperfeição como

elemento constitutivo da justiça.111 Ao mesmo tempo, Rawls se aproxima do formalismo, uma vez

que o objetivo da justiça é a obtenção de um resultado justo por meio de um procedimento justo.

Esta imperfeição derivaria do que ele denomina “véu de ignorância”, com base social, que em

última análise favorece a mediação, ou seja, a simetria entre duas pretensões postas em conflito,

como resultado da busca de justiça.

Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância. Isso garante que

ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do ocaso

natural ou pela contingência de circunstâncias sociais. Uma vez que todos estão numa

situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição

particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste equitativo

(RAWLS, 1997, p. 13).

Esta visão de justiça pode ser percebida parcialmente na Teoria Tridimensional do

Direito, uma vez que aloca o conceito de justiça na axiologia, ou seja, como um valor jurídico.

Também pode ser aplicada em relação ao elemento histórico para a compreensão de justiça, uma

vez que a história da justiça é a história de nossas carências, daquilo que falta ao indivíduo e à

coletividade para que ambos se realizem na plenitude de seus valores éticos e existenciais. No

âmago da ideia de justiça há sempre um sentimento de carência, tudo dependendo de ter-se ou não

ciência dela. Por outro lado, a visão de justiça de Reale não deve ser aplicada no tocante à

111 Para Kant, admitir a imperfeição como elemento constitutivo da justiça seria algo injusto, pois não é correto sob a

ótica ética.

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centralidade da norma positiva, mas sim na tridimensionalidade em que fato, valor e técnica

dialogam entre si sem centralização na dimensão normativa (ou técnica).

Se a justiça, como escrevi em 1953, ao redigir a última página de meu curso de Filosofia

do Direito, é “a constante coordenação racional das relações intersubjetivas, para que

cada homem possa realizar, livremente seus valores potenciais visando a atingir a

plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com o da coletividade”, a conclusão implícita

dessa antiga afirmação é a de que “cada tempo histórico tem o seu conceito de justiça”.

Isso não quer dizer que a nossa noção de justiça surja de repente, lançando raízes tão

somente nos derradeiros acontecimentos históricos, pois jamais nos livramos de nosso

passado, no qual já se achava em germe o nosso presente, muito embora condicionado

por aquilo que “ex novo” se lhe acrescentou de maneira imprevisível (REALE, 2004).

Logo, a discussão de justiça no Direito é algo que pode ser concebido como um valor

jurídico, que se funda em elementos tidos como princípios (p. ex., legalidade, igualdade,

impessoalidade, vida, livre locomoção, segurança etc.), que deve ser compreendido dentro de uma

concepção histórica e com uma importante função mediadora de direitos. De maneira a contrapor

a corrente positivista, Santos, B. coloca a justiça sob a ótica do pluralismo jurídico, admitindo o

papel do Estado enquanto matriz de referência para a distribuição de direitos em diversas escalas.

O debate acerca da adoção de inovações institucionais no âmbito das reformas da justiça

e de distribuição dos direitos não escapa à discussão mais ampla sobre a metamorfose

institucional do Estado neste período de transição paradigmática. Em diferentes escalas,

o papel do Estado na regulação social tem estado sob fogo cruzado. Quer na escala global,

através das pressões do capitalismo transnacionalizado, quer na escala nacional ou local,

através da disputa entre os diversos grupos de interesse e das demandas sociais por

reconhecimento e redistribuição, a materialidade institucional do Estado tem sofrido

abalos estruturais. Esta instabilidade institucional aponta para a transformação do Estado

num campo de experimentação política (SANTOS, B., 2011, p. 53)

De maneira análoga ao que move o pluralismo jurídico, que identifica o Direito

enquanto processo histórico de libertação, que desvenda os impedimentos da liberdade não lesiva

aos demais (SOUSA JÚNIOR, 2002, p.17) e que pode encontrar no modelo tridimensional fato-

valor-técnica um profícuo caminho para sistematizar a riqueza de suas percepções, a Geografia

discute justiça basicamente no cerne da corrente crítica, pois o combustível que a move, a

necessidade de desnudamento de realidades, de sacar máscaras sociais, é o da injustiça, essência

maior da desigualdade social e regional.

Todavia, a Geografia, que sempre reclamou autonomia epistemológica nos estudos

sobre espaço, e viu diversos ramos científicos se utilizarem de seus conhecimentos para

construções científicas exógenas a prática geográfica, iniciava seu movimento de contra-ataque

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com as mesmas limitações que cientistas de outras ciências incorrem ao estudar o espaço: não se

aprofundam nos estudos geográficos para compreender o critério espacial de suas respectivas

ciências.

Diversos autores112 fomentam um grande esforço para correlacionar, dentre outras

premissas, valor e trabalho, com o objetivo de identificar e valorar um pensamento geográfico

engajado, proporcionando conhecimentos epistemológicos que pudessem ser elementos de

transformação do espaço e, por conseguinte, da sociedade. Todavia, ao colocar centralidade na

identificação de justiça (ou sua antítese, a revelação de injustiças) enquanto valor geográfico,

exploram o viés axiológico desta categoria, mas interagem de forma tímida com conhecimentos

jurídicos. Esta opção foi diametralmente diferente daquela realizada, p. ex., por Durkheim, Marx,

Weber, Kant e tantos outros cientistas de outros ramos científicos, que apoiaram ou refutaram

elementos jurídicos na construção de seus legados sobre justiça, ética, igualdade, dentre outras

axiologias.

Em outras palavras, assim como “o espaço geográfico é constituído por objetos

técnicos, formas naturais (desprovidas de intencionalidade) e ações, e não deve ser reduzido ao

status de suporte inerte, que lhe conferem outras ciências e também agentes tomadores de decisões

de repercussão macro e micro” (ANTAS JR., 2005, p. 47), o Direito também não pode ser

minimizado como um conjunto de leis de eficácia questionável, que serve de sustentação estática

a outras ciências de forma inerte, um elemento passivo de descortinamento de realidades. O

sistema jurídico, enquanto matriz referencial pautado no Estado, é muito diferente disso.

Independentemente da gênese do realismo geográfico e/ou jurídico, os geógrafos

críticos, ou melhor, os geógrafos dedicados a estudar o valor geográfico começaram a ensaiar, nas

últimas décadas, uma associação entre justiça e espaço, com base na justiça enquanto igualdade,

de origem aristotélica. A “justiça territorial”, ponto de partida desta construção, é um conceito

simétrico, uma vez que busca, de um lado, identificar o que o espaço oferece de conteúdo para se

definir o que é justo, sendo de outro a percepção sobre como as capacidades de ação sobre o espaço

permitem a aproximação a um agenciamento justo, constituindo em Direito ao espaço e na

territorialização dos Direitos.

112 Neste sentido, MOREIRA, 2007; MORAES, COSTA, W., 1979; HAESBAERT, 2010. Em regra, o território é

entendido como produto da apropriação/valorização simbólica e subjetiva de um grupo em relação ao seu espaço

vivido.

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Independentemente da origem desta discussão, 113 Harvey (2012) pode ser identificado

como o geógrafo que levou a novos patamares este tema. Ao retomar a questão da justiça

distributiva territorial, a discussão iniciada na década de 1970 ganhou novos contornos sem abrir

mão da concepção de justiça enquanto igualdade, aristotélica, que em última análise é um ideal

marxista. Neste mesmo período, Soja (2010) apresentou amplo panorama sobre geografias

injustas, com base em um método exógeno, endógeno e regional, propondo uma teoria espacial de

justiça com base na Geografia Crítica e empregando os problemas urbanísticos de Los Angeles

como estudo de caso. Algo absolutamente simétrico ao que diversos juristas propõem ao trabalhar

o conceito de função social da propriedade, sendo a propriedade dotada de característica espacial,

podendo ser urbana ou rural. Na França destaca-se nesta frente o trabalho de Reynaud (1981), que

versa sobre justiça espacial, bem como Bret (2014), que enuncia que a organização do território

seria a expressão espacial do fato social, que agrava ou atenua as injustiças sociais.

Todavia, esta é uma discussão ainda recente na Geografia e muito centrada em um tipo

de concepção de justiça, aquela que pressupõe a igualdade, mas que muitas vezes nega o Estado

de Direito. Esta discussão, que certamente será muito desenvolvida, necessita estar aliada ao

devido aprofundamento das outras concepções de justiça, como aquela voltada para a ordem e a

liberdade que, em última análise, são as concepções mediadoras de justiça, que harmonizam

interesses diversos e se atrelam a noção de Estado enquanto fato social referenciado, dotado de

poder coercitivo e, por conseguinte, produtor de fatos jurídicos.

Neste sentido, não há como dissociar o conceito de justiça territorial, regional,

espacial, socioespacial ou de quaisquer outras espécies sem evocar noções de Direito, sob pena de

se incorrer nos mesmos equívocos que outros ramos científicos observam ao discutirem noções de

espaço sem compreender conceitos oriundos da ciência geográfica. Falar de justiça espacializada

nos obriga a evocar princípios da ordem e da liberdade, de forma a adentrar em conceitos como o

planejamento do território, a intervenção do Estado, na vida de uma formação social para modificar

de forma profunda a repartição dos equipamentos e atividades no território (CAMPOS; GIL;

SILVA, G.; BENTIVOGLIO; NADER, 2011, p. 8).

No limite, a compreensão da justiça na Geografia, assim como a Geografia de Estado,

também justifica o aprofundamento interdisciplinar entre Geografia e Direito, tornando central

113 Lima (2014) referencia Jacques Lévy sobre esta percepção e aponta Bleddyn Davies como o primeiro geógrafo a

utilizar a expressão justiça territorial na obra “Social needs and resources in local services”, de 1968.

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esta mediação, antes periférica, com o objetivo de avançar epistemologicamente na construção da

justiça territorial, bem como de seu maior elemento simétrico junto ao Direito, a função social da

propriedade, realidades que constituem um mesmo objeto de estudo e faces de uma mesma moeda.

Nestes termos, se observa uma profunda compreensão da justiça, enquanto valor

jurídico, como categoria de estudo geográfico, representada no modelo tridimensional

interdisciplinar da seguinte forma:

TABELA 18 – Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica geográfica

FIGURA 29 - Relação científica interdisciplinar: a Geografia da Justiça

I2

Fato

geográfico

Valor

jurídico

Técnica

geográfica

Referência

geográfica

(FT)

Identificar

geograficamente a análise

jurídica e o mapa

Analisar juridicamente o

espaço e o mapa

Mapear o espaço e a

análise jurídica

Deve-se destacar que toda a Geografia da Justiça, enquanto uma das formas possíveis

de interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, encontra sua antítese nas injustiças encontradas

no seio do Estado (enquanto fato jurídico), seja por sua arbitrariedade, seja por sua ineficiência. A

sociedade sempre é dinâmica, e suas forças constantes tornam o modelo interdisciplinar não

simétrico e não geométrico. Logo, a função da Geografia da Justiça é prover o Estado da axiologia

necessária para ordenar, libertar e conferir tratamento isonômico aos seus cidadãos, por meio da

norma, que é o principal instrumento que o Estado, enquanto matriz de referência, prescinde para

agir. Pormenorizaremos como a Geografia de Estado e a Geografia da Justiça se instrumentaliza.

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2.3. Tríade fato geográfico - valor geográfico - técnica jurídica: a Geografia da

Legalidade

A Geografia tomada como referência, por meio das dimensões fato e valor, ao apreciar

a técnica jurídica, proporciona um amplo leque de estudos sobre o efeito da legalidade em

determinado território. A norma, o arcabouço legal, as leis emanadas por uma autoridade são o

eixo de estudo desta vertente interdisciplinar. Ou seja, a Geografia analisa, nesta dimensão, o

critério formal do Direito, e não o material, como é o caso da Geografia da Justiça. A Geografia

da Legalidade aborda o que é lícito ou ilícito, com base na técnica jurídica. Desta forma, estudar a

legalidade na Geografia pressupõe uma referência estatal. Legalidade de quem e para quem?

A legalidade, enquanto princípio jurídico, surge como uma garantia do exercício do

Direito, sendo uma das maiores conquistas do Estado, de forma que os cidadãos não sejam

obrigados a se submeter ao abuso de poder. Por isso, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de

fazer alguma coisa senão em virtude de lei.114 Logo, se para Durkheim a generalidade, a

exterioridade e a coercitividade são elementos constitutivos do fato social, é pelo princípio da

legalidade, enquanto técnica jurídica, que estes elementos se materializam no mundo fenomênico.

E, ao se materializarem, tornam-se objeto de estudo de diferentes ramos científicos.

Em que pese as correntes da Geografia do Direito francesa115 e da Geojurisprudência

alemã116 mostrarem, em maior ou menor grau, a relação da legalidade com a Geografia, a cultura

anglófona demonstra com peculiaridade esta interação. O Law & Geography é uma corrente do

pensamento geográfico discutido principalmente no oeste norte-americano e na Inglaterra, que

teve suas primeiras manifestações nos anos 1980, quando os geógrafos anglo-saxões começaram

a questionar como e por que a norma interfere no espaço. No mesmo período, juristas também

iniciavam estudos sobre o Direito e a Economia (Law & Economics, que no Brasil seria estudada

pela corrente de Direito Administrativo Econômico), teoria crítica jurídica e Direito e Literatura

(OSOFSKY, 2007, p. 432). Nos dez anos seguintes, houve um grande volume de publicações que

exploravam as relações entre o Direito e o meio ambiente, com ênfase no uso do solo e no poder

local. Mais recentemente, houve a preocupação de se estudar de forma aprofundada as questões

voltadas para o Estado-nação enquanto construção política e territorial.

114 Para aprofundamento, FIGUEIREDO, 2001, p. 42. 115 Géographie du Droit 116 Do alemão Geojurisprudenz, Haushofer abre seu ensaio Geopolitik und Geojurisprudenz, de 1928, realizando uma

análise geográfica de estudos jurídicos alemães.

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Nos anos 1990, foi reconhecido nos meios científicos norte-americanos, a existência

de uma intersecção disciplinar entre a Geografia e o Direito. Em 1994, houve um relevante

fomento desta discussão de forma didática, que demonstrou formas de interação disciplinar

(BLOMLEY; DELANEY, 2001, p. 3-5). Em 1996, Ford (2005) organizou importante estudo sobre

a lei e os limites territoriais no Simpósio de Direito de Stanford.

Desde então obras de grande expressividade foram desenvolvidas sobre como a lei se

projeta espacialmente em diversos níveis. Nos anos 2000 foram publicados dois livros

fundamentais para o norteamento do estudo interdisciplinar, The Legal Geographies Reader e Law

and Geography, que tratam da inter-relação da Geografia em diversos ramos do Direito. A relação

destes ramos científicos é tamanha que Santos, B., ao fazer a apresentação da obra The Legal

Geographies Reader, destacou que essa é uma das mais promissoras interdisciplinaridades do

Direito (SANTOS, B., 2001, Introdução).

Nessa linha, Ford defende que, num contexto jurídico, espaço e locais não são

definições neutras e que suas estruturas influenciam os processos sociais, que por sua vez retro

alimentam os espaços e as localidades, de forma a ser fundamental desenvolver uma análise

geográfica da lei para examinar a relação entre a Geografia, o espaço e os direitos humanos. Com

a peculiar capacidade de síntese anglo-saxã, Aoki (2007, p. 515) preconiza que a Geografia é sobre

local, território, terra. Direito, por sua vez, é sobre governança, regulação, e como controlar essa

terra. Logo, se um governo entra em colapso, o que deve ser feito? Qual seria a legalidade que

seria utilizada para intervir no espaço no qual aquele governo em crise tem soberania? Platt (1976)

sugere formas de responder a estes quesitos, dentro de uma perspectiva histórica que une a atual

prática do planejamento e da regulação do uso da terra nos Estados Unidos.

Em que pese a grande limitação em se aprofundar os conhecimentos sobre a inter-

relação entre Direito e Geografia antes dos anos 1980, a Faculdade de Direito de Yale colocou

uma grande ênfase nos estudos interdisciplinares que, no caso da Geografia, foi realizado em

conjunto com a New Haven School. Tais estudos se basearam inicialmente em três valores

geográficos: comunidade global, unidades territoriais e centros de discussão.

No que tange à comunidade global, a New Haven School procurou desenvolver teoria

e ferramentas para compreensão dos problemas e dos processos que criam comunidades

internacionais com base em conhecimentos geográficos, e também sobre a observação de suas

controvérsias, passando pelo entendimento dos diferentes pontos de vista, de forma a contribuir

para aprimorar as interações entre países e grupos de interesses em nível global, aprimorando o

processo legislativo internacional. Nos estudos sobre unidades territoriais, consideraram que para

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compreender a comunidade global, bem como para haver representatividade global, é necessário

haver “bases territoriais fixas”, que participarão dos processos de decisões globais. Em outras

palavras, seria a constituição de um “poder local”. Por fim, sobre o centro de decisões, o conceito

de Arena (OSOFSKY, 2007, p. 440), que se aproxima da quadra poliesportiva acima descrita,

serve como a grande chave do mecanismo da tomada de decisão com legitimidade global, de

aceitação multiescalar, de forma a constituir uma nova dimensão geográfica global, sob a tutela

jurídica internacional.

Há consenso, nos Estados Unidos, de que a ciência geográfica tem muito a contribuir

ao Direito com os conceitos de lugar, espaço e escala, oferecendo aos juristas muito mais do que

a simples análise cartográfica para identificação de localidades. Em que pese o lento

desenvolvimento do Law and Geography, ele já é reconhecido como um importante ramo do

conhecimento interdisciplinar que sequer exteriorizou todas as suas potencialidades,

principalmente com o advento das ferramentas de geoprocessamento. Ainda é uma corrente

interdisciplinar em busca de um método que estruture suas profícuas percepções.

Assim como ocorre em Portugal, em que Freitas, C. (2007, p. 87) realiza esforço no

sentido de aplicar a informação geográfica na melhoria do processo de decisão judicial, os

geógrafos brasileiros começaram uma movimentação para estudar Direito de forma mais profunda

na entrada do século XXI. Quando busca compreender a atividade de regulação perante um

território, Antas Jr. constrói uma espécie de Geografia da Legalidade, uma vez que correlaciona a

técnica jurídica (norma) com o fato geográfico (fenômeno) para a obtenção de um valor

geográfico, que é a resultante de seu estudo crítico. Desta forma, “as normas jurídicas e as formas

geográficas guardam a propriedade comum de produzir condicionamentos sobre a sociedade,

funcionalizando-a para diversos fins e direções distintas” (ANTAS JR., 2005, p. 54). Neste

sentido, edifica-se a tese de que o espaço geográfico, enquanto axiologia, é fonte material (valor)

e não-formal (fato ou técnica) do Direito, sem ignorar o vetor contrário, qual seja, de que a norma

jurídica (técnica) é um elemento central na produção dos territórios (territorializar, técnica

geográfica). Ele confere uma pista sobre como funcionaria a Geografia da Legalidade por meio do

que denomina “forma híbrida de regulação”, por considerar que as “leis” de mercado são

simétricas as leis jurídicas, ora se sobrepondo, ora sendo sobrepostas.

As normas jurídicas regulam a produção dos sistemas e objetos técnicos e as ações que

incidem sobre tais objetos, segundo finalidades que variam conforme o contexto

socioeconômico de cada período histórico. Tomados em conjunto, esses sistemas

constitutivos do território demandam a existência de sistemas normativos, adequados às

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exigências mais gerais da sociedade de um determinado período, de modo que seu

funcionamento satisfaça àqueles grupos sociais que concentrem maior poder.

A criação e execução dessas leis ficam a cargo de instituições e organizações variadas;

estão todas, porém, de acordo com o período histórico em que se inserem, submissas a

um dado “centro diretor”: a Igreja Católica, durante a Idade Média europeia e em todo o

período colonial brasileiro; o Estado, na origem do capitalismo europeu e após a

Independência, no Brasil, sobretudo após a proclamação da República;117 e, neste período

de globalização, o que denominaremos forma híbrida de regulação, na qual os Estados

têm repartido porção significativa dessa responsabilidade com as grandes corporações

transnacionais. (ANTAS JR., 2005, p. 65).

Esta “forma híbrida de regulação” é uma maneira de sintetizar a análise geográfica da

simetria Economia-Direito. A competitividade e o consumo constituem baluartes do presente

estado das coisas, comandando nossas formas de ação e de inação. Assim, Santos, M. entende que

a Economia é percebida com centralidade científica, deslocando o lugar que outrora foi da

Filosofia, de forma que a Geografia, assim como as demais ciências, tem tido pouco êxito em

buscar um afastamento científico.

Para tudo isso, também contribuiu a perda de influência da filosofia na formulação das

ciências sociais, cuja interdisciplinaridade acaba por buscar inspiração na economia. Daí

o empobrecimento das ciências humanas e a consequente dificuldade para interpretar o

que vai pelo mundo, já que a ciência econômica se torna, cada vez mais, uma disciplina

da administração das coisas ao serviço de um sistema ideológico (SANTOS, M., 2001, p.

47).

Todavia, a premissa econômica não é ilimitada. Houve respostas políticas às ideias

filosóficas no século XVIII que culminaram na revolução americana e na francesa, que fixaram

ideias morais (valor geográfico) e técnicas capitalistas (técnica econômica) com base na

democracia e no Estado de Direito (fato jurídico).

Se ao lado desses progressos da técnica a serviço da produção e do capitalismo não

houvesse a progressão de ideias (morais), teríamos tido uma eclosão muito maior do

utilitarismo, com uma prática mais avassaladora do lucro e da concorrência. Ao contrário,

foi estabelecida a possibilidade de enriquecer moralmente o indivíduo. A mesma ética

glorificava o indivíduo responsável e a coletividade responsável. Ambos eram

responsáveis. Indivíduo e coletividade eram chamados a criar juntos um enriquecimento

recíproco que iria apontar para a busca da democracia, por intermédio do Estado

Nacional, do Estado de Direito, e do Estado Social, e para a produção da cidadania plena,

reivindicação que se foi afirmando ao longo desses séculos. Certamente a cidadania nunca

chegou a ser plena, mas quase alcançou esse estágio em certos países, durante os

chamados trinta anos gloriosos depois da Segunda Guerra Mundial. E essa quase

plenitude era paralela à quase plenitude da democracia. A cidadania plena é um dique

contra o capital pleno (SANTOS, M., 2001, p. 64).

117 A construção histórico-normativa da Geografia da Legalidade será exposta quando analisarmos a Geografia de

Estado, de forma a aprofundar como esta construção se realizou no Brasil.

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106

Considerando que a cidadania plena é uma das formas, garantida pelo Estado de

Direito, contra a disseminação do utilitarismo econômico, os condutores da globalização

necessitam de um Estado flexível para alcançar seus interesses. Por outro lado, para Santos, M.,

os poderosos fatores externos perdem eficácia quando há o exercício de uma função retificadora

da ordem econômica exercida pelo Estado, que detém o monopólio das normas. Para tanto, faz-se

necessário um claro projeto nacional, o que novamente resgata a função referencial do Estado de

Direito.

[...] o Estado continua forte e a prova disso é que nem as empresas transnacionais, nem

as instituições supranacionais dispõem de força normativa para impor, sozinhas, dentro

de cada território, sua vontade política ou econômica. [...]

É o Estado nacional que, afinal, regula o mundo financeiro e constrói infra-estruturas,

atribuindo, assim, a grandes empresas escolhidas a condição de sua viabilidade. [...]

O Estado altera suas regras e feições num jogo combinado de influências externas e

realidades internas. Mas não há apenas um caminho e este não é obrigatoriamente o da

passividade. Por conseguinte, não é verdade que a globalização impeça a constituição de

um projeto nacional. Sem isso, os governos ficam à mercê de exigências externas, por

mais descabidas que sejam. (SANTOS, M., 2001, p. 77-78).

Assim, Santos, M. entende que a partir do momento em que o Estado e a Nação

aceitavam um modelo de crescimento econômico orientado para o exterior, eles perdiam o controle

sobre as sucessivas organizações do espaço. Neste entendimento, os recursos totais de um Estado-

Nação são, na verdade, indivisíveis, seja o capital, a população, seja a força de trabalho, a mais-

valia, etc. Em cada período histórico esses recursos se combinam e se distribuem de maneira

diferente. Santos, M. entende que a definição dos objetivos do Estado devem obedecer o ponto de

vista da população, levando o interesse do povo como dado histórico autônomo.

Se a população pode desempenhar um papel fundamental, e se o Estado pode assumir a

responsabilidade por uma melhor ou pior utilização desse abundante recurso, fadado ao

papel de centro do sistema, então o papel do Estado se torna bem mais decisivo. Ele,

como vimos, funciona como uma espécie de tela entre os fatores de inovação externa ou

interna e as reações locais (SANTOS, M., 1979, p. 98).

Logo, admite-se que o processo de globalização acarreta a mundialização do espaço e

que tem como características, além da formação de um meio técnico, científico e informacional, o

fortalecimento da divisão territorial e da divisão social do trabalho com base em normas sociais

(jurídicas e outras) em todos os escalões (SANTOS, M., 2008c, p. 47). Assim, a dinâmica dos

espaços da globalização supõe adaptação permanente das formas e das normas, sendo estas criadas

em diversos níveis geográficos e políticos e podendo ser jurídicas, financeiras e outras.

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A dinâmica intraestadual também é estudada por Santos, M. ao analisar a

essencialidade do capital para o funcionamento do território. Nessa perspectiva descentralizadora,

a regulação e a produção normativa ganham relevância para definir alocação de competências e

de recursos no espaço.

Quanto maior o movimento, maior se torna a complexidade das relações internas e

externas e aprofunda-se a necessidade de uma regulação, da qual o dinheiro constitui um

dos elementos, ainda que seu papel não seja o papel central. Este é atribuído a categoria

estado, cuja necessidade se levanta como um imperativo, atribuindo-se limites externos

as fronteiras estabelecidas), limites internos (as subdivisões político-administrativas em

diversos níveis) e conteúdos normativos (as leis e costumes), em matéria de competências

e recursos. É assim que se instalam na história, categorias interdependentes: o Estado

territorial, o território nacional, o Estado nacional. São eles que, em conjunto, regem o

dinheiro. (SANTOS, M., 2001, p. 99).

Na dialética entre centralização e descentralização, a regulação e a tensão, que produz

conflitos de interesses, tornam-se indissociáveis em cada lugar. Quanto mais a globalização se

aprofunda, impondo regulações verticais novas a regulações horizontais preexistentes, tanto mais

forte é a tensão entre globalidade e localidade, entre o mundo e o lugar. Mas quanto mais o mundo

se afirma ao lugar, tanto mais este último se torna único.

Logo, a regulação, que pode ser realizada por intermédio de normas jurídicas,

assumem um papel relevante na interlocução dos conflitos entre globalização e localidade e estão

no centro da questão sobre identificar regulações apropriadas aos interesses das localidades.

Dizer o que vai acontecer é sempre audacioso. No entanto, a partir das perspectivas

fornecidas pelos dados que a ciência e a tecnologia põem à disposição da humanidade,

pode-se imaginar que as regulações se abrandarão na escala mundial e que se fortalecerão

nos estádios inferiores. Isso permitiria, talvez, que a união prevalecesse sobre a

unificação.

A regulação mundial é uma ordem imposta, a serviço de uma racionalidade dominante,

mas não forçosamente superior. A questão, para nós, seria descobrir e pôr em prática

novas racionalidades, em outros níveis e em regulações mais consentâneas com a ordem

desejada. Desejada pelos homens, lá onde eles vivem (SANTOS, M., 2008c, p. 54).

Ao caracterizar os espaços globais, Santos, M. aponta que o mundo oferece as

possibilidades e o lugar oferece as ocasiões. Assim, há uma transformação dos territórios nacionais

em espaços nacionais da economia internacional, um papel crescente a regulação nas atividades

localizadas, por meio do fortalecimento da divisão territorial e da divisão social do trabalho. Existe,

ainda, um relevante papel da organização e o dos processos de regulação na constituição das

regiões. Assim, a dinâmica dos espaços da globalização pressupõe uma adaptação permanente das

formas e das normas. No que concerne ao confronto entre lei do mundo e a lei do lugar, há uma

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rica abordagem sobre o papel do Direito na Geografia e apontando a centralidade da norma como

sistema espacializado.

As normas e as formas se associam e confrontam-se, compondo duas situações extremas:

uma ação globalizada como norma, um território local como norma e uma variedade de

situações intermediárias.

Não existe um espaço global, mas, apenas, espaços de globalização. O mundo se dá

sobretudo como norma, oferecendo a oportunidade da espacialização, em diversos

pontos, de seus vetores técnicos, informacionais, econômicos, sociais, políticos e

culturais. [...]

Para se tornar espaço, o mundo depende das virtualidades do lugar. Nesse sentido pode-

se dizer que, localmente, o espaço territorial age como norma.

Entre essas duas situações extremas, se instalam situações intermediárias entre a

universalidade e a individualidade. O universal é o mundo como norma, uma situação não

espacial, mas que cria e recria espaços locais; o particular é dado pelo país, isto é, o

território “normado”; e o individual é o lugar, o território como norma. A situação

intermediária entre o mundo e o país é dada pelas regiões supranacionais, e a situação

intermediária entre o país e o lugar são as regiões infranacionais, subespaços legais ou

históricos.

Em todos os casos, há combinações diferentes de normas e formas. No caso do mundo, a

forma é sobretudo norma; no caso do lugar, a norma é sobretudo forma (SANTOS, M.,

2008a, p. 169).

Por isso, a ordem global serve-se de uma população esparsa de objetos regidos por

essa lei única que os constitui em sistema e em normas. A ordem local, por sua vez, se

reterritorializa e se define como o espaço banal, irredutível, por reunir em uma mesma lógica

interna todos os seus elementos: homens, empresas, instituições, formas sociais, jurídicas e

geográficas. Cabe melhor compreender como o Estado rege pela regulação, materializada pela

norma, sua espacialidade.

Santos, M. destina a norma e a regulação uma função central na constituição do local

e da região, por substituir a solidariedade orgânica pela regulação.

[...] o que globaliza separa; é o local que permite a união. Defina-se o lugar como a

extensão do acontecer homogêneo ou do acontecer solidário e que se caracteriza por dois

gêneros de constituição: uma é a própria configuração territorial, outra é a norma, a

organização, os regimes de regulação. O lugar, a região não são mais frutos de uma

solidariedade orgânica, mas de uma solidariedade regulada ou organizacional (SANTOS,

M., 2008c, p. 33).

Para tanto, o Estado, ao se utilizar de seu poder regulador, pode modificar o impacto

das forças externas, reduzindo o papel conferido as empresas multinacionais e aos monopólios na

organização do espaço nacional. Para atingir eficácia máxima neste processo contínuo de

mudança, seria indispensável reorganizar o Estado na obtenção do controle da tecnologia e de suas

repercussões.

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109

Em que pese admitir a centralidade do Estado para a construção geográfica, em

algumas passagens Santos, M. demonstra ceticismo sobre este papel estatal. Em 1993, houve uma

reflexão sobre a dissociação do conceito de território sobre o de Estado, de forma a falar em

transnacionalização do território com objetivo em insistir a relevância do papel da ciência, da

tecnologia e da informação na noção de rede.

[...] a interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território. Nesse longo

caminho, o Estado-Nação foi um marco, um divisor de águas, entronizando uma noção

jurídico-política do território, derivada do conhecimento e da conquista do mundo, desde

o Estado Moderno e o Século das Luzes à era da valorização dos recursos chamados

naturais. [...]

Antes era o Estado, afinal, que definia os lugares - de Colbert a Golbery - dois nomes

paradigmáticos da subordinação eficaz do Território ao Estado. O Território era a base, o

fundamento do Estado-Nação, e ao mesmo tempo o moldava. Hoje, quando vivemos uma

dialética do mundo concreto, evoluímos da noção, tornada antiga, de Estado Territorial

para a noção pós-moderna de transnacionalização do território (SANTOS, M., 2008a, p.

138).

Em outras passagens, Santos, M. exemplifica como o Estado intervém na sociedade

por meio do sistema tributário, com significativos impactos geográficos.

Por exemplo, o Estado frequentemente compartilha seu papel de coletor de taxas com

monopólios ou oligopólios. Neste caso, ele contribui para a diminuição do poder de

compra da população, particularmente da população pobre, em benefício dos fundos de

reserva das empresas monopolistas, assim facilitando o desenvolvimento de novas

concentrações tanto no contexto econômico ou setorial quanto no contexto geográfico.

Por outro lado, o Estado, através do controle que pode exercer sobre o comércio externo,

pode facilitar o desenvolvimento de novos tipos de monopólios, concentrações através de

uma política ajustada para proteger ou subsidiar a exportação de produtos manufaturados.

Desta forma ele agrava, além disso, as tendências descritas acima e promove, uma vez

mais, a evolução urbana em direção ao status terciário, principalmente nas regiões

periféricas do país (SANTOS, M., 1979, p. 145-146).

Santos, M. destaca que o conflito entre as normas locais e internacionais deve ser um

dado fundamental da analise geográfica, uma vez que a regulação exterior passa a se relacionar

com formas nacionais e locais de regulação. Com o enfraquecimento do Estado territorial, e a

consequente afastamento da escala da técnica daquela política, as grandes contradições atuais

passam pelo uso do território e suas escalas de governança. Desta forma, a manifestação do

pluralismo jurídico passa por uma união vertical dos lugares por meio da norma, bem como pela

possibilidade de haver normas horizontais, reconstruindo a base de vida comum por meio de

normas locais ou regionais.

Este conjunto normativo, que promove uma Geografia da Legalidade, demonstra a

relevância que existe para que os geógrafos estudem as técnicas jurídicas. Não se concebe que um

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110

bacharel em Direito se forme sem conhecimentos básicos de Geografia, adquiridos no ensino

fundamental e no médio e devidamente checados ao prestar vestibular, mas admite-se que

geógrafos se formem sem estudos jurídicos básicos, que permitam conhecer a estrutura legal do

país. Ao se formarem, os geógrafos lidarão com uma pesada estrutura estatal que produz normas

técnicas para compreensão de estatísticas, cartografias, informações geoespaciais,

aerolevantamentos, dentre outros, sem que as faculdades de Geografia estejam preparadas para

ensinar estes futuros profissionais a lidar com as normas do Estado, fato que cria um grande ônus

a ser enfrentado pelos profissionais recém-formados.

Nestes termos, a Legalidade deve ser o instrumento que materializa a espacialização

do Estado, e reclama por uma compreensão axiológica dos geógrafos, que devem compreender a

técnica jurídica enquanto categoria de estudo geográfico. Esta característica pode ser representada

no modelo tridimensional interdisciplinar da seguinte forma:

TABELA 19 – Tríade fato geográfico - valor geográfico - técnica jurídica

FIGURA 30 - Relação científica interdisciplinar: a Geografia da Legalidade

I3

Fato

geográfico

Valor

geográfico

Técnica

jurídica

Referência

geográfica

(FV)

Identificar

geograficamente a análise

geográfica e a norma

Analisar geograficamente

o espaço e a norma

Normatizar o espaço e a

análise geográfica

Deve-se destacar que toda a Geografia da Legalidade, enquanto uma das formas

possíveis de interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, encontra sua antítese na Geografia da

Ilegalidade, ou seja, toda e qualquer conduta geográfica que não tenha respaldo normativo, ou no

Estado de Direito por meio de outras fontes (analogia, usos e costumes, jurisprudência etc.). Esta

construção serve tanto para balizar geógrafos que, ao conceberem valor geográfico não o façam

de forma a propor entendimentos contrários ao ordenamento jurídico, quanto para juristas que

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111

podem se utilizar de técnicas legais para combater o crime organizado com base em fatos

geográficos (p. ex., rotas de drogas, taxas de homicídio, localização de furtos e roubos etc.).

Logo, a sociedade é dinâmica, e suas forças buscam transformar constantemente a

compreensão da legalidade, tornando o modelo interdisciplinar não simétrico e não geométrico. A

função da Geografia da Legalidade é, ao compreender o Estado enquanto uma matriz de referência,

provê-lo de instrumentos necessários para tornar aquela sociedade mais justa, ao estabelecer

parâmetros de mediação dos conflitos de interesses dentro daquela espacialidade conferida a

determinado Estado. Mas que espaço jurídico seria esse?

2.4. Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica jurídica: o Direito do Espaço

Diferentemente das duas dimensões anteriores, o Direito é tido como base nesta

perspectiva de análise, por meio das dimensões valor e técnica, ao analisar o espaço enquanto fato

geográfico. Nesta frente, toda a fenomenologia geográfica se decompõe como objeto de estudo

jurídico, de forma que os elementos naturais e sociais passam a ser analisados sob enfoque jurídico,

constituindo este eixo interdisciplinar. Ou seja, o Direito analisa, nesta dimensão, o fato

geográfico, fundado no espaço para efeitos jurídicos. É o espaço primário do Estado.

A lógica contemporânea do espaço, enquanto fato geográfico, permeia uma variedade

expressiva de significados em ramos científicos distintos, com fundamento básico na astronomia

de Copérnico (1543), bem como na afirmação da ideia de espaço infinito em Newton (1687). A

profundidade da obra desses dois cientistas impôs uma completa releitura do lugar da sociedade

no universo.

O espaço, assim como o tempo, foi tomado por objeto de estudo por inúmeros

cientistas, sendo que Kant (2007b) traduziu filosoficamente os paradigmas da física newtoniana

ao enunciar quatro pontos relativos a espaço e tempo, que podem ser espalmados nos seguintes

termos: (i) O conceito de espaço não é empírico, mas um a priori pressuposto por todas as

experiências externas; (ii) O espaço é uma representação a priori necessária, subjacente a todas as

intuições, de modo que podemos pensar em espaço como vazio de objetos, mas não podemos

representar para nós a ausência de espaço; (iii) espaço e tempo são intuições, não conceitos. Não

são apenas maneiras de pensar sobre o mundo, são maneiras nas quais o mundo é; e (iv) espaço e

tempo são representados como magnitudes dadas como infinitas.118 Mas como o Direito trata do

espaço em suas diversas escalas?

118 Corrobora neste entendimento HAMLYN, 1990, p. 255-262.

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a) Da Filosofia do Direito em relação ao Espaço

A natureza em geral, e o espaço em específico, sempre moldaram a noção de Direito.

Ao buscar compreender o critério espacial no Direito, Kelsen busca o conceito de território e

aproxima a Geografia119 das ciências naturais, a concebendo como um ramo científico que analisa

a unidade natural. Todavia, Kelsen não afasta o caráter espacial do Estado, e se refere ao território

do Estado como o domínio espacial de vigência de uma ordem jurídica.

O território do Estado é um espaço rigorosamente delimitado. Não é um pedaço,

exatamente limitado, da superfície do globo, mas um espaço tridimensional ao qual

pertencem o subsolo, por baixo, e o espaço aéreo por cima da região compreendida dentro

das chamadas fronteiras do Estado. É patente que a unidade deste espaço não é uma

unidade natural, geograficamente definida. A um e mesmo espaço estadual podem

pertencer territórios que estejam separados pelo mar, o qual não constitui domínio de um

só Estado, ou pelo território de um outro Estado. Nenhum conhecimento naturalístico,

mas só um conhecimento jurídico, pode dar resposta à questão de saber segundo que

critério se determinam os limites ou fronteiras do espaço estadual, o que é que constitui a

sua unidade. O chamado território do Estado apenas pode ser definido como o domínio

espacial de vigência de uma ordem jurídica estadual (KELSEN, 1996, p. 201).

Existem diversas manifestações de juristas sobre o critério espacial do Direito na

América Latina, notadamente na Argentina,120 que explora, a seu modo, a interdisciplinaridade

entre Geografia e o Direito. No Brasil, existem obras esparsas, que contemplam relevantes

diferenças epistemológicas do que viria a ser esta interdisciplinaridade. Na primeira metade do

século XX, Pontes de Miranda (1980) realizou importante estudo sobre princípios geográficos com

119 É importante frisar a semântica de tal expressão aqui caracterizada será considerada estritamente em sua dimensão

geográfica acima mencionada, e não no sentido empregado por filósofos do Direito. Ver BOBBIO, 1995a., que aborda

a lacuna jurídica empregando a expressão “espaço”. 120 Há registros de que a Universidade Nacional de Córdoba, da Argentina, promoveu em 22 de outubro de 1992 uma

“Jornada sobre Derecho y Geografia” com o objetivo de examinar, de forma ampla, as relações entre Direito e

Geografia na teoria e na prática, demonstrando os benefícios que tal estudo traria para a ordem individual e social

naquele país. Como conclusão da jornada, foram aprovados delineamentos para a promoção racional e harmônica

entre Direito e Geografia. Foram desenvolvidos temas de fundamental importância, divididos em sete temas, quais

sejam: (i) rationale de la relación interdisciplinaria derecho-geografía; (ii) derecho, geografía urbana y urbanismo;

(iii) límites internacionales y geografia; (iv) la región geográfica frente al derecho; (v) el factor geográfico en la

jurisprudencia de la Corte Internacional de Justicia; (vi) cuencas hídricas y derecho; e (vii) los factores geográficos

en la Convención de las Naciones Unidas sobre el Derecho del Mar. (BELTRAMINO, 1994, p. 9-18). Dentre eles, o

de desenvolver o estudo das relações entre Direito e Geografia nas universidades que contam com os dois cursos, bem

como perante universidades da Argentina e no exterior, no que se refere ao emprego dos conhecimentos e das

informações como em sua aplicação prática, prestando apoio aos cientistas que se dedicarem a tal estudo

interdisciplinar.

Foi igualmente manifestada a intenção de sensibilizar os profissionais que estão envolvidos com as tarefas de governo

e da administração pública, os políticos, empresários, organizações não-governamentais e cidadãos em geral, sobre a

conveniência da aplicação conjunta dos conhecimentos jurídicos e geográficos, no que se refere ao território; atentar

os geógrafos e juristas para que atuem em conjunto quando tratarem de questões relacionadas ao território e sua

utilização; e propor a realização de uma nova jornada de estudos visto o interesse e a utilidade demonstrada, centrada

em aspectos particulares como a cartografia e outros.

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o objetivo de identificar conceitos jurídicos. Freitas, M. (1932, 1941a, 1949b, 1953), enquanto

estatístico e jurista, pode ser identificado como um divisor de águas nesta interdisciplinaridade em

função da atuação estatal, uma vez que desenvolveu diversos estudos jurídicos e geográficos que

estão atrelados as questões da institucionalização da Geografia e ao ordenamento territorial que,

em última análise, culminaram na criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

em 1938.121

Na busca de um aprofundamento teórico, o espaço, por meio da física quântica, foi

estudado no Direito de forma interdisciplinar por Telles Junior (2004), que conclui pela

obrigatoriedade de uma mudança de atitude científica diante da necessária aceitação dos princípios

da curvatura espacial e da incerteza.122 Importante lembrar que o princípio da simetria se origina

na Física Quântica estudada por Telles Junior para efeitos jurídicos. Na busca de um método

científico de investigação, que começa a deixar de ser isento de subjetividade para um método de

múltipla interação entre investigador e objeto investigado, a preocupação com a dimensão

geográfica pode ser identificada no estudo do Direito em Valadão (2002). Por seu turno, Sá (2011,

p. 67) confere grande contribuição ao estudar a Geografia filosófica do Direito, ou a geofilosofia

do Direito, que valoriza a abstração conceitual com vistas a reflexões críticas na busca de práticas

e construções jurídicas partícipes nas feituras de estruturas e configurações territoriais e

espaciais.123

Genericamente, o espaço tem sido objeto de estudo em praticamente todos os ramos

do Direito. Como exemplo, na Teoria Geral do Estado, Araújo (2006) trata especificamente da

definição do critério espacial do Estado, ao descrever sobre o espaço terrestre, aéreo, fluvial e

marítimo, bem como aprofundar o Direito Espacial enquanto base do Direito Aeronáutico.

Compulsada a dimensão filosófica do espaço no Direito, resta analisa-lo sob suas diferentes

escalas. Como ele é tratado em sua escala global?

b) Do Direito e do critério espacial global: a questão geopolítica

Compreender o valor e a técnica jurídica em face do fato geográfico significa

contextualizar o Direito no globo terrestre. Considerando que as Ciências Sociais são o ponto de

partida interdisciplinar, uma possível resposta para esta contextualização pode ser identificada em

outra simetria, entre Geografia e Ciência Política, que culmina na compreensão da Geopolítica.

121 Este tema será aprofundado no capítulo 4. 122 Ver ainda MOREIRA NETO, 1992, p. 242. 123 Para aprofundamento, ver SÁ, 2008 e 2013.

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Afinal, Napoleão Bonaparte já havia enunciado que "a política de um Estado está na sua

geografia".124 No campo técnico, Kjellén (1985) passou a empregar a expressão “Geopolítica”,

enquanto ramo autônomo da Ciência Política, para descrever as relações entre o Estado e o

território.125

Pode-se afirmar que a Geopolítica contextualiza o Direito no globo terrestre ao

promover uma concepção de relação entre estados, de relações consideradas como internacionais.

A Geopolítica, enquanto Geografia Política multiescalar, somente é possível quando há a

existência de legitimidade de todos seus agentes envolvidos, situação que impõe a necessidade de

aproximação do Direito, uma vez que ele é a forma empregada para fazer valer a vontade do mais

fraco, política e socialmente, perante o mais forte, o que não deixa de ser uma justiça hobbesiana,

por meio da ordem.

Pensar Geopolítica dissociada do Direito significa sobrepor deliberadamente os

interesses de um Estado em relação aos demais por uma relação de poder. Passa a ser uma relação

de dominação e não de legalidade, de conquista e não de ordenação, de predominância ao invés de

harmonização. De supremacia em detrimento da mediação. Na busca da viabilidade de análise de

relações espaciais pautadas em Estados de Direito, a Geojurisprudência alemã trouxe paradigmas

que no limite realocam a Geopolítica, para efeitos jurídicos, na seara do Direito Comparado.

No Brasil, pode-se alocar o pensamento e a obra de Dos Santos como uma variável

deste pensamento, por ter realizado nos anos 1940 e 1950, na Universidade Federal do Paraná,

pioneiro esforço de sistematização da interdisciplinaridade entre Geografia e Direito com base no

Direito Comparado, com enfoque na natureza jurídica da Liga das Nações e, posteriormente, da

ONU. No que ele denominou de “Geografia Jurídica”, houve uma busca de compreensão do

critério coercitivo com base em um critério espacial global, situação que rendeu diversas

interlocuções com Carvalho, D. e, por conseguinte, a adaptação de conceitos geográficos enquanto

princípios de Direito.

124 Apotegma de uso notório. 125 Vesentini qualifica como se desdobra esta concepção de Kjellén com relevantes reflexos na Geografia. “A partir

destas idéias iniciais a geopolítica logo se expandiu, tendo encontrado no cenário mundial da primeira metade do

século XX um solo fértil para crescer. A ordem mundial multipolar que vigorou desde o final do século XIX até a

Segunda Guerra Mundial propiciava um clima de pré-guerra entre as grandes potências do período, com acirradas

disputas por territórios, mercados e recursos na África, na Ásia e até na Europa. Com o declínio relativo da

Inglaterra, grande potência mundial na ordem monopolar da segunda metade do século XVIII e de quase todo o XIX,

os embates pela hegemonia mundial se multiplicavam. Nesse contexto, inúmeros pensadores se engajaram na tarefa,

apelidada de geopolítica por Kjellén, de compreender o equilíbrio de forças no espaço mundial e as condições pela

qual um determinado Estado pode se tornar uma grande potência. Na visão desses pensadores, de forma inclusive

coerente com a sua época, o fundamental era a quantidade de recursos — mercados, povos (mão-de-obra, soldados),

solos agriculturáveis, minérios, espaço geográfico enfim. Daí as geopolíticas clássicas terem sido em geral

explicações a respeito da importância estratégica de determinados territórios, da necessidade de expansão territorial

- ou controle de espaços (rotas marítimas ou áreas geoestratégicas) - como forma de fortalecimento do Estado e de

adquirir hegemonia” (VESENTINI, 2005, p. 16).

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Esta discussão repousaria por algumas décadas sem maiores discussões

epistemológicas. Nos anos 2000, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), como

parte das comemorações dos 180 anos do ensino de Direito no Brasil, trouxe Irti (2001) ao Brasil,

que expôs sobre o que denominou “Geodireito”,126 ou seja, a relação entre a aplicação das normas

jurídicas e a sua territorialidade entre os Estados. Irti defendeu abertamente que o Direito precisa

explorar sua dimensão espacial, pois o território delimita o Estado de Direito, fato acentuado pela

nova geopolítica mundial,127 fundada na economia e na tecnologia. A grande discussão foi em

torno do que o teórico denominou de mercado de ordenamentos jurídicos, ou seja, em como

empresas multinacionais, com o devido respaldo normativo de seus Estados nacionais, têm a seu

inteiro dispor um verdadeiro mercado de Constituições para escolherem realizar investimento - e,

por sua vez, instituir novas divisões de trabalho - aquela que for mais vantajosa e conveniente. Por

isso, como o Direito se fundamenta no território, ele não pode deixar de estudar o fenômeno do

espaço. É o contraponto jurídico, simétrico, a “forma híbrida de regulação” proporcionada pela

relação entre Direito e Economia proposta por Antas Jr. na Geografia.

Considerar as relações internacionais projetadas com base em território possibilita a

localização de determinado Estado, enquanto valor e técnica jurídica, no globo terrestre,

pormenorizando as formas de relacionamento de um Estado, ou de um conjunto deles, perante os

demais. No fato geográfico repousa a gênese do Estado de Direito, pois lá se encontra o seu critério

espacial, requisito que, aliado ao povo e a soberania, pressupõe a existência do Direito

Contemporâneo. Resta analisar como se procedem as relações nacionais, com base nos valores

geográficos que proporcionam o ordenamento espacial.

Determinado o critério espacial do Estado, por meio de um fato geográfico combinado

com valor e técnica jurídica, o Direito do Espaço pode se projetar para fora (exterior) e para dentro

(interior) do território. Considerando a máxima de Aristóteles de que "a natureza tem horror ao

vácuo",128 o projeto de Estado é tão totalizador quanto a noção de espaço, uma vez que não se

pressupõe superfície na Terra sem a tutela de um ou mais estados. Logo, de forma a tornar a

referência jurídica perante a Geografia completa, faz-se necessário estudar sua dimensão intra-

Estado.

126 Tradução livre para a expressão “Geo-diritto”. 127 No sentido de identificar o Geodireito enquanto ramo científico que investiga as relações entre o Direito e a

Geopolítica, ou seja, a constitucionalização da Geopolítica, por meio de uma recepção de conteúdos internacionais

advindos da geopolítica dos centros mundiais de poder, ver Góes, 2014. 128 Apotegma aristotélico de conhecimento notório, apud BASSALO, 1996, p. 97. No mesmo sentido, Latour (1994,

p. 27) aponta que Hobbes rejeita a possibilidade de vácuo por motivos ontológicos e políticos, com base em princípios

filosóficos.

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Nestes termos, o espaço situa-se como objeto de estudo jurídico por meio da Filosofia

do Direito e da Teoria Geral do Estado, sendo o critério espacial onde determinado Estado repousa

seu ordenamento jurídico e faz valer os direitos e as obrigações de seus cidadãos. Ou seja, o espaço

é um dos alicerces que perpetua o Estado, conferindo-lhe critério espacial, e viabiliza sua atuação

enquanto fato geográfico como categoria de estudo jurídico, representado no modelo

tridimensional interdisciplinar da seguinte forma:

TABELA 20 – Tríade fato geográfico - valor jurídico - técnica jurídica

FIGURA 31 - Relação científica interdisciplinar: o Direito do Espaço

I4

Fato

geográfico

Valor

jurídico

Técnica

jurídica

Referência

jurídica

(VT)

Identificar

geograficamente a análise

jurídica e a norma

Analisar juridicamente o

espaço e a norma

Normatizar o espaço e a

análise jurídica

Deve-se destacar que todo o Direito do Espaço, enquanto uma das formas possíveis de

interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, encontra sua antítese nos direitos que não estão

espacializados, principalmente àqueles direitos considerados intangíveis (p. ex., propriedade

intelectual, regulação das tecnologias, etc.). Mas suas repercussões normativas sempre terão uma

dimensão espacial. Ou seja, a sociedade é dinâmica, e suas forças buscam transformar

constantemente a compreensão do Direito, tornando o modelo interdisciplinar não simétrico e não

geométrico. Logo, a função do Direito do Espaço é compreender o critério espacial das pessoas e

das coisas, ordenando espacialmente estes elementos de forma a mediar os interesses projetados

no espaço de determinado Estado. Que ordenamento jurídico seria esse que regula as relações na

escala intra-estatal?

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2.5. Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica jurídica: o Direito Administrativo

Geográfico

Esta perspectiva de análise tem o Direito como referência, momento em que são

empregadas as dimensões fato e técnica para análise do valor geográfico enquanto objeto de

estudo. A riqueza de percepções na Geografia passam a ser estudadas pelo Direito, constituindo

este eixo interdisciplinar. Assim como a categoria “Direito do Espaço” trata do espaço primário

do Estado, notadamente a alocação do Estado de Direito no globo terrestre e suas relações perante

outros estados, a presente categoria versará sobre o espaço secundário do Estado, ou seja, seu

ordenamento espacial no interior da escala estatal. Em outas palavras, falar do Direito do Espaço

é referenciar de forma exógena a existência de um Estado perante os demais, é a coesão externa

que fundamenta das relações internacionais e permite que um estado reconheça o critério espacial

de outro estado; de maneira endógena, construir o Direito Administrativo Geográfico consiste em

desenvolver a organicidade de um determinado Estado, ou seja a coesão interna de seu critério

espacial enquanto premissa maior das relações nacionais. Para tanto, faz-se necessário

compreender como a dimensão territorial, do lugar e regional se caracterizam nesta dimensão.

a) Do ordenamento territorial

O princípio da territorialidade129 norteia o Direito do ordenamento espacial, uma vez

que um território130 deve ter apenas uma ordem jurídica (hujus régio, ejus religio). Este princípio

está fundado no pensamento de Maquiavel que, ao voltar para as instituições, oferece ao

governante um programa de princípios e política virtuosos com o principal objetivo de manter a

coesão interna. É interessante notar que, no alvorecer do século XXI, os Estados continuam a se

comportar como o faziam no século XVII, quando Hobbes formulou o conceito de que o sistema

internacional é essencialmente anárquico e, com isso, estabeleceu os alicerces do estudo das

relações internacionais.131 Obedecida esta tradição secular, o território é compreendido enquanto

critério espacial das relações sociais mediados por uma entidade governamental.

129 Consagrado pela Paz de Westphalia, de 1648, que pôs fim a Guerra dos Trinta Anos e cravejou o globo terrestre

de Estados nacionais soberanos. 130 A palavra território, etimologicamente, provém do verbo latino térreo, territo, que significa intimido, causo medo,

receio. Por isso que território é a universalidade das terras dentro dos limites de cada Estado, denotando um conceito

jurídico-político. 131 Corrobora neste sentido MAGNOLI, 2004, p. 14.

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118

O território termina por ser a grande mediação entre o Mundo e a sociedade nacional e

local, já que, em sua funcionalização, o "Mundo" necessita da mediação dos lugares,

segundo as virtualidades destes para usos específicos. Num dado momento, o "Mundo"

escolhe alguns lugares e rejeita outros e, nesse movimento, modifica o conjunto dos

lugares, o espaço como um todo (SANTOS, M., 2006, p. 230).

Este território, que modifica o conjunto dos lugares, foi concebido pela Teoria do

Estado como um dos alicerces do Estado de Direito, inclusive para justificar o poder soberano que,

segundo Marques Neto (2002, p. 32), é absoluto dentro de limites territoriais razoavelmente

determinados, de forma que esses limites definem a abrangência do poder decisório monopolizado

no e pelo Estado. Nesse entendimento, a delimitação territorial é uma necessidade, haja vista que

viabiliza a existência e a vigência concomitante de diferentes ordens soberanas. Isso reforça o

entendimento de Magdaleno (2005), que evoca o território como princípio da Geografia e o define

como porção do espaço geográfico onde são projetadas relações de poder, que geram uma

apropriação e um controle sobre este espaço, independentemente se ele é ou não territorializado

por um ou mais agentes.

Ainda ao correlacionar território e limites geográficos, a territorialidade é fundamental,

também, para limitar o exercício do poder jurisdicional, tanto em razão da matéria, da hierarquia,

da função e do valor. Em outras palavras, a territorialidade é o âmbito físico-geográfico para o

qual se expandem e irradiam os poderes do juiz em realizar os atos processuais.

Ao acompanharmos os ensinamentos de Cantarelli (2001, p. 103-135), o território do

Estado continua, em sua concepção clássica, apresentando a característica de delimitação - que

Kelsen chama de limites geográficos - e de estabilidade, aonde tais limites geográficos tem o

condão de perenidade. Considera território de um Estado a porção da superfície terrestre, seja de

terra firme ou de água, submetida à soberania do Estado, abarcando seus prolongamentos verticais,

estendendo-se aos espaços do subsolo e aéreo em que se possa desenvolver uma atividade humana,

assim como às coisas sobre as quais exerça o seu poder estatal (navios e aeronaves). Assim, o

território pode ser terrestre (incluindo a superfície e o subterrâneo), marítimo (submerso e

subterrâneo), aéreo e ficto.132

No seio constitucional, o critério territorial deve ser tomado como referência para a

descentralização político-administrativa, assim como ensina Nunes Júnior (2002, p. 102) e Temer

(2000, p. 57-58), que enunciam que a descentralização é a retirada de competências de um centro

132 O presente trabalho não pormenorizará os territórios fictos, por não se tratarem de limites geográficos, mas de

peculiaridades legais.

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119

para outro, passando tais competências a ser próprias do novo centro.133 Moreira Neto, ao versar

sobre a competência legislativa e executiva do município em matéria ambiental, evoca

acertadamente critérios geográficos ao conjugar funcionalidade e espacialidade.

O desenvolvimento das instituições políticas legou-nos duas ordens de descentralização

do poder estatal: a descentralização espacial, estabelecendo âmbitos geográficos de

atuação, e a descentralização funcional, estabelecendo setores substantivos de atuação.

Nos dois casos, a delimitação espacial ou funcional do poder do Estado leva à idéia de

competência como quantidade ou qualidade do poder que a lei atribui às entidades,

órgãos ou agentes públicos para manifestar a vontade estatal. (MOREIRA NETO,

1992, p. 89. Negritos acrescidos)

A compreensão do critério espacial do Estado incita um dos mais promissores ramos

de estudo do Direito, pois o ordenamento espacial, tal como concebido pelo pensamento de Freitas,

M., nada mais é do que situar no espaço os serviços públicos, conferindo centralidade ao critério

espacial nos estudos do que denominaremos Direito Administrativo Geográfico. É a espacialização

da cidadania. A respeito da contextualização do território, deve-se observar que:

A finalidade do ordenamento territorial é o controle regulatório que contenha os efeitos

da contradição da base espacial sobre os movimentos globais da sociedade e a mantenha

funcionando nos parâmetros com que foi organizada. O ordenamento não é, pois, a

estrutura espacial, mas a forma como esta estrutura espacial territorialmente se auto-

regula no todo das contradições da sociedade, de modo a manter a sociedade funcionando

segundo sua realidade societária (MOREIRA, 2007, p. 77).

De forma a exemplificar como o critério espacial se manifesta no Direito,134 é no

Direito Administrativo, enquanto ramo jurídico que estuda a administração do Estado, que o

paradigma espacial encontra seu maior desafio. Enquanto área que fundamenta a construção de

políticas públicas, sua crescente fragmentação científica, aliada a desarticulação de uma teoria

geral das novas funções do Estado, acaba por remontar, de forma simétrica, os quase-objetos de

Latour. Para Sundfeld,

Quando se observa o surgimento de novos ramos, como os direitos econômico,

urbanístico, ambiental, agrário, sanitário, todos ligados, embora não exclusivamente, ao

estudo da ação governamental sobre a vida privada, nota-se que a ciência do direito

administrativo não tem sabido oferecer uma teoria geral apta a ser aplicada a cada um

deles. Vem, com isso, perdendo importância. De pouco ou nada adiantará o estudioso

buscar na teoria do direito administrativo as categorias de que necessita para compreender

os limites e exigências das novas funções do Estado (SUNDFELD, 2003, p. 15).

133 Para Santos, todo esforço no sentido de descentralizar a atividade humana tem como resultado uma nova

centralização. SANTOS, M., 2004, p. 23. 134 P. ex., pode-se apontar que não se concebe o exercício processual sem a delimitação espacial em comarcas, bem

como a lei penal só se aplica no território do Estado que a determinou (art. 5° do Código Penal brasileiro).

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120

Marques Neto (2002, p. 32) demonstra a mesma preocupação e faz opção

epistemológica pelo resgate da Teoria Geral do Estado como base para a consolidação do Direito

Público, de forma a enfrentar o mundo contemporâneo, marcado por profundos processos de

fragmentação social, de internacionalização econômica e de transformação política. Assim, o

Direito Administrativo não tem logrado êxito em sua tentativa de consolidação epistemológica, na

qual a compreensão do espaço, enquanto gênero de suas espécies (p. ex., urbano, ambiental,

agrário, econômico, social etc.) pode se demonstrar um caminho profícuo de solução por meio de

um Direito Administrativo Geográfico.

De maneira a caracterizar um paradigma de aplicação do critério espacial ao Direito

Administrativo, Carvalho, P. (1999, p. 255), ao atentar ao domínio espacial de vigência da ordem

jurídica, descreve sobre limites geográficos na definição de critério espacial para aplicação da

norma tributária ao considerar três graus de elaboração: (i) determinado local para a ocorrência do

fato típico; (ii) alusão a áreas específicas, de tal modo que o acontecimento apenas ocorrerá se

dentro delas estiver geograficamente contido; e (iii) onde todo e qualquer fato que ocorra no âmbito

de vigência territorial da lei instituidora desencadeará efeito.

FIGURA 32 - Modelo de interdisciplinaridade entre a ciência geográfica e a jurídica,

com base na teoria tributária.

A construção tributária sugere que, no estudo geográfico do espaço em função do

Direito, o que importa é a percepção de que o poder vinculante de uma lei ensejará os efeitos

jurídicos até os limites geográficos da pessoa jurídica que a editou.135 Ora, se o poder vinculante

pressupõe a Geografia para delimitar espacialmente a extensão de seus poderes, e que todos os

problemas socioeconômicos ocorrem no bojo do Estado-Nação, seja em função de sua organização

interna, seja decorrente de suas relações com outros Estados, pode-se vislumbrar que existe uma

135 Entendimento decorrente da concepção do princípio da territorialidade da norma tributária.

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121

dimensão geográfica na norma, manifestada pelo espaço, que por sua vez é limitado pelo Direito

para que exerça seu “poder vinculante”.

No Direito Ambiental, a territorialidade une a Geografia e o Direito. Fraxe (2014)

justifica esta relação com base no que ela denomina Geodireito, com foco fenomenológico, o

definindo como ramo do conhecimento jurídico que, na perspectiva multidisciplinar de

entrelaçamento da Geografia ao Direito, tem por objetivo melhor interpretar os fenômenos

decorrentes do elo que existe entre o ser humano e a terra, de maneira a oferecer soluções viáveis

no sistema jurídico para os conflitos daí decorrentes. Para Carneiro (2014), há uma abordagem do

Direito Ambiental espacial normativo, a partir da concepção moderna de Geografia, como ciência

resolutiva dos conflitos sociais aplicados. O autor busca um desenvolvimento sustentável e a

devida aplicação da legislação ambiental por intermédio do estudo da norma valorativa, com o

objetivo de construir uma consciência ambiental personalíssima. Para Allemar (2014), a

manifestação da necessidade de uma abordagem interdisciplinar entre Geografia e Direito fica

evidente quando contrapõe conteúdo e forma.136

Exposto como o ordenamento territorial está refletido em alguns ramos autônomos do

Direito, passa-se a verificar como o lugar está representado no Direito.

b) Do ordenamento do lugar

No bojo do pensamento geográfico, a ordem local137 é associada a uma população

contígua de objetos, reunidos pelo território e como território, regidos pela interação. Ela funda a

escala do cotidiano, e seus parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a

cooperação e a socialização com base na contiguidade. A ordem local, que "reterritorializa", é a

do espaço banal, espaço irredutível, porque reúne numa mesma lógica interna todos os seus

elementos: homens, empresas, instituições, formas sociais e jurídicas e formas geográficas. O

cotidiano imediato, localmente vivido, é o traço de união de todos esses dados (SANTOS, M.,

2006, p. 230).

136 “[...] a formulação de leis e políticas voltadas para a preservação do meio ambiente, ao mesmo tempo em que

deve estar fundada num conteúdo ético, cultural e econômico, de uma dada sociedade, precisa levar em consideração

diretrizes capazes de permitir o desenvolvimento desta mesma sociedade, de modo a favorecer a plena realização do

ser humano em equilíbrio com a preservação do ambiente. Esse equilíbrio entre o que "precisa" ser feito e o que é

licito fazer, é a conseqüência natural da simbiose entre o Direito e a Geografia”. (ALLEMAR, 2014) 137 De forma a estabelecer simetria entre Geografia e Direito, por meio de mediação epistemológica, a categoria

“lugar” da Geografia será abordada como o “local” jurídico, que é a expressão utilizada pela Constituição Federal de

1988, ao abordar, no art. 30, I, o interesse local dos municípios, que nada mais é do que “interesse do lugar” para

efeito geográfico.

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Assim, a localidade jurídica pode ser conceituada como sendo todo lugar geográfico

do território nacional onde exista um aglomerado permanente de habitantes.138 Atualmente, a

capital federal e as estaduais, as cidades, vilas, aglomerações rurais, povoados, lugarejos,

propriedades rurais e aldeias são exemplos de localidades que possuem uma identidade entre os

habitantes que assim se reconhecem e são reconhecidos por outras localidades.

A escala local depende de sua imediata referência. O planeta Terra pode ser

considerado um local dentro da Via Láctea, e esta perante o universo. O Brasil, enquanto Estado

identificado no globo terrestre, territorializado, é um local dentro do globo, inserido na região da

América do Sul ou da América Latina, dependendo do critério regional a ser adotado - físico ou

cultural. Do ponto de vista jurídico, o “cotidiano imediato” proposto por Santos, M., em outros

períodos da história, era representado pelas províncias, e não pelas municipalidades, no período

monárquico brasileiro.

Logo, a escala geográfica surge como critério indispensável de análise desta categoria

interdisciplinar. Para tanto, faz-se necessário compreender a relação local-global como algo

simétrico, com base mediadora no interesse local.139 Há uma intenção de definir o local pela

contraposição ao geral, sem observar a condição de fixar limites materiais dessa localidade para o

exercício do poder coercitivo. Há uma incipiente construção jurídica acerca de interesse local, pois

não delimitam a localidade, ou o lugar, para efeitos jurídicos, o confundindo com o conceito de

competência municipal. Como exemplo, Carrazza (2000, p. 109) afirma que os interesses dos

municípios são os que atendem, de modo imediato, às necessidades locais, ainda que com alguma

repercussão sobre as necessidades gerais do Estado ou do país. Bastos (1994, p. 311) enuncia que

os interesses locais dos municípios são aqueles que se comunicam com as necessidades imediatas

dos cidadãos e, indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais. Milaré

(2005)140 confina os interesses aos limites físicos para que determinada entidade federada exerça

seus respectivos poderes coercitivos. Meirelles (2005, p. 120) versa que a localidade de caracteriza

138 Definição empregada pelo IBGE. 139 A primeira manifestação de interesse local observada enquanto regime jurídico foi concebida pelo rei Luís XVI de

França. Em 1787, a Majestade, ao tentar conduzir sua nação em um período pré-revolucionário, lembrava aos

franceses seus feitos, dentre os quais a convocação das assembleias provinciais concomitantes ao dos estados-gerais,

do estatuto dos protestantes, da abolição da corveia e do apoio à independência americana. (OZOUF, 1997, p. 64). 140 “a) Matérias de interesse local, isto é, que não extrapolem os limites físicos do Município, devem ser administradas

pelo Executivo Municipal; b) Quando a matéria extrapola os limites físicos do Município, ou seja, os seus efeitos não

ficam confinados na área física do Município ou envolvam mais de um Município, desloca-se a competência do

Executivo Municipal para o Executivo Estadual; c) Tratando-se de bens públicos estaduais e de questões ambientais

supramunicipais, a competência será do Executivo Estadual; d) Nas hipóteses em que as matérias envolvam

problemas internacionais de poluição transfronteiriça ou duas ou mais unidades federadas brasileiras, a competência

será do Executivo Federal.” MILARÉ, 2005, p. 264.

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pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse do Município em relação ao do Estado

a da União, sendo uma diferença de grau (escala) e não de substância (matéria), sendo

acompanhado por Silva, J. A. 2007.141

Entretanto, falar em localidade enquanto território municipal, ou mesmo em

“predominância” do interesse municipal em relação ao da União e dos estados, não parece trazer

ao bojo da questão o caráter geográfico que a expressão “local” carrega em sua semântica.142 Logo,

não há como se analisar o interesse local sem compreendê-lo enquanto “interesse do lugar”,

buscando na Geografia a definição de lugar para que haja uma definição operacional sobre o que

vem a ser o interesse local dos municípios. A Geografia deve conferir os limites espaciais e

materiais para que o Direito preencha o espaço interno desses limites com o poder coercitivo, como

ocorre na constituição das comarcas.143 Resta, portanto, verificar como essa relação se projeta,

com base no território e no lugar, de maneira a formar regiões.

c) Do ordenamento regional

A região, enquanto objeto de estudo daqueles que buscam compreender a dinâmica do

desenvolvimento regional, é igualmente um conceito-chave na busca de uma dimensão espacial.

É a técnica da ciência geográfica de se limitar o espaço e que é utilizada pelo Direito para

implementar competências federadas. A origem da palavra região vem de regione, áreas sob a

tutela de Roma.144 Essas áreas de grande diversidade social, cultural e espacial foram a primeira

141 "O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é

o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante

interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse

regional, e aos Municípios conhecerem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição vigente desprezado o

velho conceito do peculiar interesse local que não lograra conceituação satisfatória num século de vigência". SILVA,

J. A. 2007, p. 418. 142 Pelo contrário, o conceito de “predominância” no Brasil remete as discussões pretéritas a Constituição Federal de

1988, quando havia a tentativa de explorar a dimensão do que seria o “peculiar interesse” previsto como competência

municipal. 143 Nesta frente de estudo, há ainda a Geografia do Poder Judiciário, que busca um modelo de organização territorial

para a melhor adequação da divisão e organização judiciária, que no Brasil consiste na criação das comarcas. Estas

divisões devem respeitar as dinâmicas socioeconômicas e demográficas do território em face do movimento

processual existente, buscando produzir maior acessibilidade ao sistema de justiça, com base nos direitos dos cidadãos.

Para Antas Jr., “A criação de comarcas se dá através de um processo eminentemente dialético entre a sociedade e o

território. Esse movimento é de tal modo reconhecido pelos legisladores, que, em vez de se tentar congelar a

existência das comarcas depois de criadas, prevê-se em todas as leis de organização judiciária a dissolução delas

caso os quesitos sociais já mencionados, por alguma razão, cessem a ocorrência. Trata-se, portanto, de considerar

também o território como norma, isto é, de compreender que parte do direito é constituída pelo espaço geográfico,

assim como parte da geografia é constituída por normas jurídicas e não-jurídicas.” ANTAS JR., 2005, p. 30. 144 Para Santos, o fundamento etimológico da palavra região é perdido, na medida em que há regiões que são apenas

regiões do fazer, sem nenhuma capacidade de comando, pois não haveria o “reger”. Assim, os estudos regionais da

Geografia não conseguem, isoladamente, caracterizar o mundo contemporâneo. Para alguns autores, a grande crise

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forma ampla de relação entre a centralização do poder local e seu poder de influência sobre outras

áreas. A região, assim, pode ser compreendida para distinguir o espaço geográfico do espaço

matemático, porque ela se divide em ‘regiões’ que se constituem no substrato da história dos

homens.145

Todavia, o conceito de região não se aplica de maneira absolutamente idêntica ou

homogênea, uma vez que recepciona em seu bojo a complicada dinâmica da superfície terrestre,

onde há a superposição e combinação de processos de elaboração regional. Há uma correlação

direta entre região e divisão do trabalho, haja vista que ela está intimamente ligada às formas de

produção que vigoram em determinado momento histórico.

A região fora, no passado, sinônimo de territorialidade absoluta de um grupo, por meio

de suas características de identidade, de exclusividade e de limites. Hoje, o número de mediações

é muito grande, o que induz, frequentemente, à confusão de imaginar que a região não mais existe.

O processo de globalização exauriu o conceito clássico de região, ao descrever que a expansão do

capital hegemônico em todo o planeta teria eliminado as diferenciações regionais e, até mesmo,

proibido de prosseguir pensando que a região existe.

[...] no decorrer da história das civilizações, as regiões foram configurando-se por meio

de processos orgânicos, expressos através da territorialidade absoluta de um grupo, onde

prevaleciam suas características de identidade, exclusividade e limites, devidas à única

presença desse grupo, sem outra mediação. A diferença entre áreas se devia a essa relação

direta com o entorno. Podemos dizer que, então, a solidariedade característica da região

ocorria, quase que exclusivamente, em função dos arranjos locais. Mas a velocidade das

transformações mundiais deste século, aceleradas vertiginosamente no após-guerra,

fizeram com que a configuração regional do passado desmoronasse.[...]

Acostumamo-nos a uma idéia de região como subespaço longamente elaborado, uma

construção estável. Agora, neste mundo globalizado, com a ampliação da divisão

internacional do trabalho e o aumento exponencial do intercâmbio, dão-se, paralelamente,

uma aceleração do movimento e mudanças mais repetidas, na forma e no conteúdo das

regiões. Mas o que faz a região não é a longevidade do edifício, mas a coerência funcional,

que a distingue das outras entidades, vizinhas ou não (SANTOS, M. 2006, p. 165).

Nesta frente empírica e funcionalista, caberia ao geógrafo obter um conhecimento

enciclopédico, para posteriormente efetivar o trabalho científico de síntese. No bojo dessa

discussão epistemológica, adota-se como definição de região a subdivisão do espaço para uma

finalidade específica.

epistemológica da Geografia Clássica advém da “falta de leis, ou de outra forma de generalização” (MORAES, A.

2005, p. 97). Assim, o “reger” pode ser identificado quando há interrelação científica da Geografia com o Direito,

haja vista que o “dever ser”, o mandamus, é uma das grandes contribuições do Direito para o desenvolvimento

científico ocidental. 145 Corrobora neste sentido CARLOS, 1999, p. 204.

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As regiões são um espaço de conveniência, meros lugares funcionais do todo, pois, além

dos lugares, não há outra forma para a existência do todo social que não seja a forma

regional. A energia que preside essa realização é a das divisões do trabalho

sucessivamente instaladas, impondo sucessivas mudanças na forma e no conteúdo das

regiões. A ampliação da divisão do trabalho e do intercâmbio gera a aceleração do

movimento e mudanças mais rápidas na forma e no conteúdo. As diferenças entre lugares

que eram antes devidas a uma relação direta entre a sociedade local e o espaço local, hoje

apresenta outra configuração, já que se dão como resultado das relações entre um lugar

dado e fatores longínquos, vetores provindos de outros lugares, relações globais das quais

cada lugar é o suporte (SANTOS, M., 2008c, p. 48).

Assim, o conceito de região carrega em sua gênese a noção da diferença, haja vista

que a região continua a existir nos dias atuais, mas com um nível de complexidade jamais visto

pelo ser humano. Agora, nenhum subespaço do planeta pode escapar ao processo conjunto de

globalização e fragmentação, isto é, de individualização e regionalização.146

A questão regional retoma hoje sua força, não apenas nas ciências sociais, em função de

vários debates acadêmicos, como também pela proliferação de regionalismos, identidades

regionais e de novas-velhas desigualdades tanto a nível global como intranacional. Apesar

da propalada globalização homogeneizadora o que vemos, concomitantemente, é uma

permanente reconstrução da heterogeneidade e da fragmentação via novas desigualdades

e recriação da diferença em todos os cantos do planeta (HAESBAERT, 1999, p. 15-16).

A proximidade dos conceitos de região e de desigualdade permeia tanto o pensamento

geográfico quanto o raciocínio jurídico. Para Jellinek (1981, p. 59), a região possui elementos de

Estado, mas não está totalmente integrada a ele, sendo justaposta, caracterizando-se como um

“fragmento de Estado”. No entendimento de Bercovici, a questão regional está diretamente ligada

ao Estado brasileiro, pois envolve a forma federativa e as questões de distribuição territorial e de

renda no país de forma que as desigualdades regionais são, ao mesmo tempo, fator e produto

político. Logo, a região serve para tornar homogênea políticas públicas voltadas para uma mesma

espacialidade e identificar as assimetrias que existem entre espaços distintos, de forma a tornar o

país mais homogêneo e menos desigual por meio da “região-plano”.

A região plano (região programa ou região de desenvolvimento) é o espaço cujas diversas

partes estão ligadas a uma mesma decisão política (o plano), emanada por uma autoridade

(localizada ou não na região) para atingir objetivos econômicos. [...] O essencial, para

uma região-plano, é que esta tenha limites adequados e seja dotada de meios para atingir

os objetivos da decisão (plano) que a unifica (BERCOVICI, 2003, p. 71-72).

146 Conforme identificado em SANTOS, M., 2006, p. 247.

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Nestes termos, se a região não é mais fruto de uma solidariedade orgânica, mas de uma

solidariedade regulada ou organizacional, esta forma de solidariedade se transveste em forma de

desenvolvimento, no qual seu critério espacial é o regional. E este desenvolvimento regional é

centralmente respaldado pelo Direito, de duas formas básicas: (i) pelo Direito Administrativo, que

delimita espaços com finalidades comuns (p. ex., preservação de bioma, área metropolitana, faixa

de fronteira, faixa costeira, eixo de uma rodovia, de ferrovia, do curso de um rio etc.); e (ii) pelo

Direito Tributário, ao conferir subsídios fiscais para determinado espaço delimitado (p. ex., zonas

francas, áreas economicamente subdesenvolvidas etc.). A criação de mecanismos de

desenvolvimento regional, enquanto critério espacial do desenvolvimento social, tende a ser um

elemento homogeneizador do Estado, aperfeiçoando sua divisão espacial do trabalho,

aprofundando a coesão social e proporcionando uma maior integração nacional.

Logo, compreendido o território, o lugar e a região como valores geográficos,147 a

interdisciplinaridade perante o fato e a técnica jurídica pode ocorrer de forma intra e extra Estado,

servindo de instrumento para o aprimoramento da administração pública interna, que em última

análise produz um Direito Administrativo Geográfico que teria como objeto de estudo regular a

ação de um Estado por meio de critérios espaciais de território, de lugar (ou local) e de região. É

o desenvolvimento da coesão do Estado por meio da espacialização de direitos e deveres de seus

cidadãos.

Assim, a Geografia de Estado, enquanto ordenamento do espaço nacional, encontra

sua simetria em uma espécie de Direito Administrativo Geográfico, que viabiliza a espacialização

da cidadania por meio do ordenamento territorial, local e regional, com base: (i) no território

enquanto espaço primário do Estado oriundo do pacto federativo (União, Estados, Municípios e

Distrito Federal); (ii) na localidade enquanto lugar geográfico e espaço secundário do Estado, que

cria os fixos nos quais as políticas públicas irradiarão; e (iii) na regionalidade enquanto espaço

terciário do Estado, mecanismo no qual o Estado busca combater as desigualdades.

Nestes termos, o ordenamento do espaço situa-se como objeto de estudo jurídico por

meio do Direito Administrativo, sendo o critério espacial onde determinado Estado viabiliza seu

funcionamento por meio de seu pacto social e político. Ou seja, o ordenamento do espaço é um

dos alicerces que perpetua o Estado, e viabiliza sua atuação enquanto valor geográfico como

categoria de estudo jurídico, representado no modelo tridimensional interdisciplinar da seguinte

forma:

147 Diferentemente de territorializar, localizar e regionalizar, que são técnicas geográficas.

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127

TABELA 21 – Tríade fato jurídico - valor geográfico - técnica jurídica

FIGURA 33 - Relação científica interdisciplinar: o Direito Administrativo Geográfico

I5

Fato

jurídico

Valor

geográfico

Técnica

jurídica

Referência

jurídica

(FT)

Identificar juridicamente a

análise geográfica e a

norma

Analisar geograficamente

o Estado e a norma

Normatizar o Estado e a

análise geográfica

Deve-se destacar que todo o Direito Administrativo Geográfico, enquanto uma das

formas possíveis de interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, encontra sua antítese nos

direitos que não estão ordenados espacialmente, principalmente àqueles referentes ao uso

desordenado do solo urbano e rural, sendo a função social da propriedade, ou a justiça territorial,

a axiologia que deve ser perseguida para viabilizar esta forma interdisciplinar. Mais uma vez a

sociedade demonstra todo seu caráter dinâmico, e suas forças buscam transformar constantemente

a compreensão do Direito, tornando o modelo interdisciplinar não simétrico e não geométrico.

Logo, a função do Direito Administrativo Geográfico é dirimir injustiças espaciais de forma a

promover um ordenamento justo e cidadão. Mas quais são os instrumentos a serem utilizados para

alcançar este objetivo?

2.6. Tríade fato jurídico - valor jurídico - técnica geográfica: o Direito da

infraestrutura geográfica

O Direito continua a ser concebido como base nesta perspectiva de análise, todavia

agora o faz por meio das dimensões fato e valor, ao analisar a técnica geográfica como objeto de

estudo. O rico instrumentalismo geográfico se decompõe como objeto de análise jurídica, de forma

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que o mapeamento, a cartografia, a estatística, as informações geoespaciais, o

georreferenciamento, o sensoriamento remoto, dentre outras técnicas, passam a ser analisados sob

enfoque jurídico, constituindo este eixo interdisciplinar.

Importante destacar que a Cartografia e a Geografia são profissões distintas, mas

correlacionadas, e assim foram preservadas sob a ótica institucional. Não cabe ao geógrafo fazer

mapas (cartas), mas sim interpretá-las, em conjunto com outras variáveis, que podem ser

econômicas, sociais etc.. De forma análoga, não é competência do jurista fazer leis, desafio este

confiado ao legislador. Mas cabe ao jurista interpretá-las, em conjunto com as demais fontes do

Direito. Ambos correspondem a técnicas, instrumentos imprescindíveis para o desenvolvimento

profissional de cada área.

E estes instrumentos tem uma alta dependência instrumental, de forma que a atual

revolução tecnológica em curso no mundo ganha uma centralidade nesta dialética. Ao conjugar o

advento da internet com a tecnologia de satélites, a cartografia e o sensoriamento remoto enquanto

projetos computacionais, bem como a capacidade de gerenciamento de dados dos softwares atuais,

a Geografia acaba se qualificando como um ramo científico que produz análises espaciais, de

maneira que todo este aparato utilizado pela Geografia se caracteriza por uma infraestrutura

disponível em prol da promoção de cidadania. E o Direito deve regulamentar políticas públicas

para esta finalidade.

Castells realizou grande contribuição, após os anos 1980, com seus estudos sobre o

papel das novas tecnologias de informação e comunicação na reestruturação econômica. Atribui a

sociedade informacional a chegada de “um novo mundo”, caracterizada por: (i) três pilares

(economia, sociedade e cultura); (ii) economia interdependente com premissas globais; e (iii)

desenvolvimento tecnológico. O enfoque no binômio Tecnologia-Capital permite identificar o

processo econômico por meio da “economia global/informacional (que) é organizada em torno de

centros de controle e comando capazes de coordenar, inovar e gerenciar as atividades

interligadas das redes de empresas.” (CASTELLS, 1999, p. 405). Assim, a cidade informacional

torna-se um processo caracterizado pelo espaço dos fluxos.

Todavia, não ocorre Economia global sem Direito global. Ninguém investe sem regras

pré-estabelecidas (Princípio da Legalidade), sem garantia do direito de ir e vir enquanto

pressuposto do fluxo (Princípio da Liberdade),148 ou sem entender a natureza jurídica dos fixos (o

148 Uma das formas que a Geografia trata do Direito de ir e vir é pela Geografia da Circulação, p. ex., Josué de Castro

fala em deslocamento dos homens e indaga sobre os locais em que houve tal movimentação. “Desde o começo deste

livro, ao encarnarmos cada uma das manifestações ativas do elemento humano na superfície da terra, temos feito

sempre alusão à sua mobilidade, aos seus contínuos deslocamentos, e à troca de aquisições de toda ordem que, entre

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que é público, e de quem é público, e o que é privado, e como é privado). Atribuir ao Estado uma

função secundária na globalização significa admitir o que Irti (2001, p. 11) chamou de açougue de

constituições, onde Estados periféricos negociariam seus valores em prol de receitas marginais do

capitalismo. Mas as tecnologias avançam em um mundo cada vez mais complexo, e o próprio

Castells (2014), ao atualizar seu discurso em 2006, lembra do slogan mencionado nos EUA “Não

a globalização sem representação”,149 sugerindo que a relação entre capitalismo e Estado,

Economia e Direito, pode ser muito mais complexa do que uma eventual submissão inconteste do

Estado ao capitalismo, ou mesmo a forma híbrida de regulação proposta do Antas Jr.

E esta revolução tecnológica moldará definitivamente o Direito no século XXI,

encontrando na infraestrutura geográfica sua repercussão no critério espacial do estado a ser

estudado juridicamente. É fato que a sociedade contemporânea transformou-se de forma bastante

acelerada ao longo das últimas décadas. A realidade, usualmente, tornou obsoleta a agenda social

fixada nas políticas públicas. O atraso econômico, a desigualdade social, além do profundo

desnível na distribuição de renda, perpetuados pelos sistemas político e social, devem ser levados

em consideração na reflexão sobre as estruturas jurídicas e institucionais do Estado brasileiro, em

particular a Administração Pública. Bucci (2002, p. 3) enuncia que o Direito Administrativo

acabou por ser empregado muito mais no sentido de conter a discricionariedade do governo,

admitida aqui como o poder do administrador público em optar entre alternativas legalmente

concebidas, do que orientado em prover o Estado com políticas públicas e regulamentações claras.

O pragmatismo sucumbe o planejamento.

Nessa linha, a resposta jurídica a esta revolução tecnológica tem sido, invariavelmente,

manifestar o interesse público em determinadas tecnologias como, p. ex., transformar a técnica

geográfica em infraestrutura,150 passível de regulação. Assim, a revolução tecnológica requalifica

os vários grupos regionais, a humanidade vem realizando, através de todos os tempos. Daí, termos sempre presentes

ao espírito dois fatos essenciais, que são: 1° - por que caminhos os homens se deslocaram nessa atividade criadora?

2° - como transportaram consigo as mercadorias e utensílios para a manutenção de sua vida e seu comércio com

outros homens? Êstes dois fatos essenciais, o estudo dos meios de transporte e o estudo das estradas e caminhos,

merecem, portanto, um capítulo especial, que deve ser intitulado: Geografia da circulação.” CASTRO, J., 1959, p.

133. 149   “The slogan was “no globalization without representation” and was heard for the first time at the WTO in Seattle.

It echoed the one used in The American War of Independence (“No taxation without representation”). Although the

slogan might be considered slightly inaccurate (the WTO does not represent multinationals, but States, some of which

have  democratically-elected governments), the sentiment behind it is unambiguous.” (CASTELLS, 2014) 150 Conforme descrevemos outrora (UGEDA SANCHES, 2011), a relação entre Direito e infraestrutura no Brasil pode

ser dividida em cinco partes, a saber: (i) Interesse monarca (1822 – 1889). Investimentos visavam a satisfazer a

vontade da indústria escravagista e as vontades da monarquia. Inviabilidade de grandes investimentos em

infraestrutura se a mão-de-obra não era remunerada (escravos); (ii) Interesse local (1889 – 1934). Houve excesso de

capitais no mercado internacional até a quebra da bolsa em 1929. As decisões governamentais eram voltadas aos

interesses da burocracia, sem planejamento centralizado, que obedecia a lógica da oportunidade de lucros imediatos.

O café muito contribuiu para o desenvolvimento da infraestrutura brasileira. Ele criou mercado interno e permitiu que

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a técnica geográfica, de forma a ser empregada para a promoção de justiça, ao servir de

instrumento para o enfrentamento das desigualdades sociais e regionais, bem como a integração

nacional.151 Não é demais descrever como o Direito Administrativo Econômico compreende as

infraestruturas dentro de um determinado Estado.

[...] além do fato de serem condicionadas e condicionantes do sistema urbano e do

cumprimento de suas funções sociais, as redes de infra-estrutura exercem tamanho poder

de criação e destruição do espaço que é preciso enquadrá-las em uma disciplina jurídica

ampla, porém flexível, capaz de lidar com a sobreposição de vários sistemas lógicos e

realidades jurídicas dentro de um mesmo espaço urbano. Essa moldura legal compõe-se

geralmente por normas expedidas por órgãos de regulação de serviços (como as agências

reguladoras federais), órgãos de defesa dos princípios da ordem econômica e da

concorrência, bem como por normas de caráter administrativo-urbanístico local152

(MARRARA, 2007, p. 245).

Se a técnica geográfica deve ser compreendida enquanto infraestrutura, passível de

regulação, de maneira a dar escala e vazão a todas as potencialidades que os mapas têm no dia a

dia de uma determinada sociedade, cabem aos estados estudarem formas de conferir caráter de

oficialidade a estes mapas, bem como identificar formas de universalização de seu emprego.

os cafeicultores fossem investidores nesse segmento. Durante a 1ª Guerra Mundial, o país teve um salto industrial

devido ao “Processo de substituição de importações”; (iii) Federalização (1934 – 1950). Primeira tentativa de

centralizar na União as iniciativas do Estado. Houve a federalização de serviços públicos e início de regulamentação

na infraestrutura no Brasil. Como havia escassez de investimentos privados, por ser um período belicista, há o aumento

considerável da atuação do Estado como empresário; (iv) Estatização (1950 – 1990). O Estado brasileiro optou pela

industrialização, iniciada no Estado Novo. Por razões estratégicas, optou-se pelo controle estatal da produção de

energia elétrica no pós-guerra, uma vez que a iniciativa privada não tinha capital para corresponder as necessidades

do momento. Com o crescente esgotamento da capacidade de investimento do Estado, dada a rápida urbanização da

população brasileira, aliada ao alto crescimento vegetativo, houve a necessidade de reorientar o investimento do

Estado nas áreas sociais. O modelo estatal demonstrava ter saturado, pois havia alto nível de ingerência política nas

empresas de serviços públicos, como, p. ex., a contenção de tarifas, que produziu inadimplências intra-setoriais

generalizadas entre empresas estatais. Assim, a União não concedia tarifas e concessionárias não pagavam encargos;

e (v) Regulação e Competição (1990 - ). O Governo Federal iniciou processo de remuneração da prestação do serviço

público pelo preço, permitindo haver lucro, fato que possibilitou privatizar companhias e gerenciar o setor por

intermédio de agências reguladoras. 151 Jacques Lambert chegou a associar o Brasil a um arquipélago, pois o acesso as capitais do país somente eram

possíveis através de transporte de cabotagem, ou pelo uso de rios, como no caso da Amazônia. Golbery do Couto e

Silva também alertou para esse fato, alegando que a permeabilidade do território brasileiro, a falta de soldadura entre

as “ilhas e penínsulas” era motivo de preocupação para com a sua segurança. Para tanto, Golbery propôs uma série de

ações que permitiriam estabelecer a integridade do território, através de uma “geopolítica brasileira”. 152 Considera-se que o tratamento jurídico a infraestrutura deve também ser realizado sob a égide da função de

circulação das cidades.

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a) Da oficialidade a universalização de mapas e de outras técnicas

geográficas

A oficialidade da técnica geográfica em geral, e do mapa em específico, parte do

pressuposto de que o país que não se conhece não existe. O caráter oficial da técnica geográfica,

que cria um sistema de referência para o exercício da cidadania, costuma ser exercido por um

sistema cartográfico, enquanto política pública de determinado Estado. É a maneira de se viabilizar

políticas públicas multifinalitárias que estejam aptas a dirimir espacialmente conflitos de interesses

entre diversos segmentos da sociedade.

Estas políticas públicas multifinalitárias, fundadas em sistemas cartográficos,

produzem uma infraestrutura geográfica e podem se manifestar de formas diversas. Desde pesados,

e muitas vezes ineficientes, sistemas cartorários, que conferem personalidade jurídica a

determinadas glebas, públicas ou privadas, até a constituição de critérios coercitivos para estas

mesmas glebas, que poderão atender a interesses individuais, coletivos ou difusos em função de

finalidades ambientais, urbanas, rurais, de constituição de infraestruturas etc..

Estudos de Direito comparado apontam dois grandes modelos empregados no mundo

para o exercício da infraestrutura geográfica por parte de um Estado. Existe o modelo de autarquia,

típico na realidade anglo-saxã, na Alemanha e na Rússia, que regulam e fiscalizam os serviços

cartográficos, atendendo as demandas de atualização tecnológica das técnicas geográficas

enquanto infraestrutura cartográfica. Nesta realidade, os órgãos cíveis têm caráter de oficialidade,

seus mapas são considerados oficiais. Por outro lado, há os Institutos Geográficos, enquanto

fundações, comumente observado na realidade ibérica, latino-americana e francófona, que também

buscam organizar a cartografia em seus países, mas geralmente encontram uma lacuna legal acerca

do caráter oficial de suas informações, função comumente delegada aos órgãos militares de

produção cartográfica. Logo, a oficialidade da técnica geográfica produz infraestrutura geográfica.

A não oficialidade da técnica geográfica produzida por um Estado cria meramente conhecimento

geográfico, que não se reveste de caráter oficial.

Não há que se falar de oficialidade sem universalidade. Se há a necessidade de se

constituir um sistema de infraestrutura geográfica dotado de oficialidade, ele deve servir para

atendimento de todos seus cidadãos, que com fácil acesso a este sistema poderão conhecer os dados

espaciais de seu país. Nessa linha, pode-se conceituar a universalização como forma de atender ao

princípio da igualdade por meio do atendimento gradual e contínuo a todos os pedidos de

atendimento realizados por pessoas físicas, com enfoque em áreas de baixa densidade

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populacional, independentemente da capacidade financeira dos potenciais clientes, por meio de

subvenção econômica.

E a universalização de infraestrutura geográfica tem um papel fundamental para a

redução das desigualdades sociais e regionais, bem como na integração nacional. Como exemplo,

o espaço urbano, enquanto centro de convivência social e razão para o desenvolvimento de toda a

lógica de infraestrutura, deixou de se restringir a um conjunto denso e definido de edificações para

significar, de maneira mais ampla, a predominância da cidade sobre o campo. Periferias, subúrbios,

distritos industriais, estradas e vias recobrem e absorvem zonas agrícolas em um movimento

incessante de urbanização. No limite, este movimento tende a devorar todo o espaço,

transformando em urbana a sociedade como um todo (ROLNIK, 2002) por meio de mecanismos

de universalização dos serviços públicos. Assim, a “tendência é que os conflitos de delimitação

territorial cedam lugar aos conflitos referentes aos direitos de uso e exploração dos recursos

naturais. E esses nem sempre, ou quase nunca, são abertos” (NUNES, 2006, p. 109). Logo, a

universalização dos serviços públicos se comunica diretamente com os direitos fundamentais

básicos - vida, liberdade, segurança e propriedade -, uma vez que se rege por uma necessidade

ativa, ou seja, “uma força eficaz e determinante que atua sobre tudo o que nela se baseia”

(GARCIA, 2002, p. 122).

Se é verdade que a infraestrutura geográfica chegará ao nível de essencialidade no

século XXI, suscitando estados a manifestarem interesse público perante esta repercussão

tecnológica, de forma exemplificativa,153 cabe abordar, de forma análoga, o mais essencial dos

recursos pós Revolução Industrial - a energia elétrica,154 enquanto recurso natural aos quais os

sujeitos atribuem valor, que provocou uma nova divisão social do trabalho por intermédio da

industrialização, transferiu o fulcro da vida social para as cidades e aproximou cada vez mais as

pessoas por diversos meios de relacionamentos.

153 No Brasil, esforços de universalização de infraestruturas podem ser observados na telefonia fixa, o Fundo de

Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), criado pela Lei n° 9.998, de 2000, que possibilita diminuir

as desigualdades sociais por meio da criação de facilidades de comunicação via Internet para escolas e bibliotecas,

sendo empregado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), bem como no saneamento básico, por meio

da Lei n° 11.445, de 2007, que estabelece diretrizes nacionais, de forma a prever, no art. 2°, inciso I, a universalização

do acesso como um princípio fundamental. O art. 49 desta lei ainda reforça o caráter social do saneamento básico ao

fixar como objetivo da Política Federal de Saneamento Básico contribuir para o desenvolvimento nacional, a redução

das desigualdades regionais, a geração de emprego e de renda e a inclusão social. 154 Esta premissa é secundada por Santos, M., quando dispõe que “Com a indústria, esta tendência se acentua ainda

mais, graças às técnicas que o homem passa a dispor, já que estas interferem em todas as fases do processo de

produção, através das novas formas de energia comandadas pelo homem” (SANTOS, M., 2006, p. 85-86). Antas Jr.,

em sua tese de doutorado, também usa o setor de energia como corte setorial para comprovar a tese interdisciplinar

entre Geografia e Direito.

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b) Energia elétrica: um exemplo de universalização de infraestrutura e de

relação entre Direito e Economia

Do ponto de vista social, a energia se transformou em insumo imprescindível à

coletividade, de sorte que sua eventual escassez ou dificuldade de acesso configura grave lesão à

segurança e economia públicas, por ter um papel de suma importância no que se refere à segurança

pública, iluminação nas escolas, funcionamento de aparelhos hospitalares, desenvolvimento

industrial, entre outros.

Ela chega a ser tão importante quanto a água, pois sem energia a água não se mantém

potável e não alcançaria as caixas d´água localizadas nos topos dos edifícios das grandes cidades,

inviabilizando o modo de produção urbano. Temos aqui exatamente o que Raffestin (2011, p. 58)

descreveu como “trunfos do poder”, ou os fatores básicos que sobrepõem um Estado em relação a

outro: a população, o território e os recursos. A eletricidade é um marco na evolução da

humanidade, ao revelar que a concepção jurídica da propriedade privada tem que evoluir, pois não

adianta o jurista sustentar os mesmos padrões oriundos do Direito romano quando a sociedade

suplantou a noite pelo uso da eletricidade, alterando um ritmo de vida milenar.155 Daí deriva o

entendimento de que “os serviços públicos não podem parar, porque não param os anseios da

coletividade. Os desejos dos administrados são contínuos. Daí dizer-se que a atividade da

Administração é ininterrupta” (GASPARINI, 1995, p. 11-12).

Muitas vezes a própria legislação prevê que a prestação de energia elétrica é um

serviço essencial.156 A propósito do enquadramento da eletricidade como um serviço público,

sujeito a uma política tarifária consubstanciada via legal e contratual157 entre o Poder Concedente

e o concessionário, de forma a garantir a contraprestação pelo serviço concedido, pode-se afirmar

que a energia elétrica é o serviço público mais essencial.

155 Corrobora com este entendimento DALLARI, 1981, p. 3. 156 No Brasil, o artigo 10 da Lei n° 7.783, de 1989 prevê que são considerados serviços ou atividades essenciais: I -

tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II - assistência

médica e hospitalar; III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV - funerários; V - transporte

coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII - telecomunicações; VIII - guarda, uso e controle de

substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a serviços

essenciais; X - controle de tráfego aéreo; XI compensação bancária. 157 A prestação dos serviços concedidos, fundamentados no art. 175 da Constituição Federal, tem como desdobramento

legal o disciplinado em contrato de concessão, conforme exposto no art. 23 da Lei n° 8.987, de 1995, com expressa

fixação dos encargos do Poder Concedente (art. 29) bem como da concessionária (art. 31), além da subordinação ao

regime econômico-financeiro inscrito nos arts. 14 e 15 da Lei n° 9.427, de 1996.

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Os serviços de energia elétrica adquiriram contornos de essencialidade máxima.

Excluídas as atividades diretamente relacionadas com a soberania e que não comportam

transferência de gestão a particulares, o fornecimento de energia elétrica talvez possa ser

indicado como serviço público mais essencial [...]. Portanto, o desenvolvimento

econômico seria fortemente comprometido sem a disponibilidade de energia elétrica

(JUSTEN FILHO, 2003, p. 396-397).

Álvares, em seu tratado de Direito da Energia (1978) demonstrou claramente a ligação

entre a revolução industrial, e o tecnicismo que se lhe seguiu, sendo impossível qualquer

pensamento ou tentativa de composição leiga em um mundo de aplicações de descobertas

científicas. Desta forma, caberia ao Direito adaptar-se a esta realidade, porém não passivamente.

Ao contrário. Deve envolver a tecnologia e dar-lhe dimensão humana, assim como lutar, dentro

do mesmo quadro especializado, para reduzir ao máximo a insensibilidade da tecnocracia. Com o

aparecimento de invenções científicas, no mundo industrial, o engenho humano fica exacerbado,

no sentido de descobrir estruturas e oferecer formas jurídicas para o seu aproveitamento.

Vemos assim que as ações só se realizam por meio da técnica e da norma, sobretudo

atualmente, quando as ações se tornaram sobremaneira complexas e estão divididas em

uma grande quantidade de etapas realizadas por objetos técnicos e definidas igualmente

por um detalhado ordenamento de normas, sejam elas jurídicas, técnicas ou morais. A

aquisição de uma infraestrutura estatal como a rede de abastecimento de energia elétrica

por uma empresa transnacional é o exemplo mais acabado de uma ação hegemônica, que

se dá através de uma intensa divisão do trabalho e envolve uma quantidade expressiva de

indivíduos. Todo esse processo é intensamente regido pelas normas (ANTAS JR., 2004,

p. 82).

Assim, a relação entre capitalismo e Estado, ou mesmo entre Economia e Direito, deve

ser igualmente simétrica. A “forma híbrida de regulação” de Antas Jr. fica definitivamente

caracterizada, ou melhor, encontra sua simetria no Direito, por meio de uma relação entre fins e

meios invertida, sintetizada no pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, que demonstra

a mediação que ocorre entre os interesses na relação Poder Concedente (público) e concessionário

(privado).

Para o concessionário, a prestação do serviço é um meio através do qual obtém o fim que

almeja: o lucro. Reversamente, para o Estado, o lucro que propicia ao concessionário é

meio por cuja via busca sua finalidade, que é a boa prestação do serviço. (MELLO, 2013,

p. 727-728)

Se é verdade que o capital usa do Estado para obter lucro e o Estado usa do capital

para obter cidadania, por meio da boa prestação de serviços públicos, a globalização e o Estado se

usam reciprocamente como meios para alcançarem seus fins. E nesta forma de regulação híbrida,

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em que Direito e Economia estão no mesmo patamar,158 a universalização de infraestruturas é a

forma cabal de atender ao valor jurídico da igualdade entre os cidadãos em uma determinada

sociedade juridicamente constituída, utilizando-se como meio o lucro capitalista.

c) A técnica geográfica e as geotecnologias: por uma infraestrutura

geográfica a ser regulada pelo Estado

O século XXI enfrentará grandes paradigmas em relação a técnica geográfica. Ao

pensarmos numa interdisciplinaridade entre Geografia e Direito com base no fato e valor jurídico

em face da técnica geográfica, pode-se avençar nas ferramentas de mapeamento (geotecnologias)

de um Estado enquanto infraestrutura, como ocorreu com a energia elétrica? Caso afirmativo,

como esta infraestrutura deve ser universalizada? A técnica geográfica deve ser reconhecida como

uma infraestrutura, apta a universalização, em uma espécie de programa “Mapa para Todos”,

enquanto base instrumental para uma renovação da Geografia de Estado? Nesta dimensão

interdisciplinar ganha relevância a cartografia jurídica enquanto busca de identificação de sistemas

geográficos para finalidade jurídica, que deriva desde a delimitação da soberania de determinado

país por meio da estipulação de fronteiras, de suas divisas e limites, até a viabilização de um

sistema cartorário eficaz, onde os registros sejam espacializados com latitudes e longitudes, e não

apenas referenciando limites naturais, que se modificam ao longo do tempo e, por conseguinte,

produzem disputas e necessidades de mediação. Uma estruturada interdisciplinaridade entre

Geografia e Direito deverá conferir respostas a estes paradigmas.

Neste cenário, o desenvolvimento das geotecnologias deve seguir, nos estados mais

desenvolvidos do globo terrestre, o mesmo caminho trilhado pela energia elétrica. A partir do

momento em que a técnica geográfica se reveste de interesse público, produzindo repercussão

econômica sob formas tecnológicas, na qual as geotecnologias passam a ser identificadas enquanto

infraestrutura de dados espaciais, ela tende a ganhar caráter de oficialidade e ser passível de

158 Importante pontuar o raciocínio de Sundfeld (2002. p. 17-18) sobre as aproximações e as diferenças entre o Direito

e a Economia. “Os economistas têm uma fascinante qualidade: sabem avaliar os problemas por equações e unidades

mensuráveis, objetivas. Mas ponderar os transtornos e as facilidades em uma precisa relação de números é algo muito

estranho para um homem do Direito. Somos peritos em contrapor valores de outra espécie, imateriais. Quando a

Constituição diz que as pessoas têm direito à igualdade e, como advogados de uma empresa, reclamamos do Estado

contra o privilégio dado à concorrente, somos incapazes de transpor a briga para um gráfico. É verdade que o símbolo

da justiça é uma deusa com a balança, o que parece remeter a uma equação matemática (X=Y). Só que seus olhos

estão vedados e, por isso, ela não vê os pratos se movendo, nem o peso que carregam: ela sente o movimento e, por

meio desse meio, busca uma relação de equilíbrio, que nada tem de matemática. [...]

Pouco a pouco, os homens jurídicos nos acostumamos com os raciocínios econômicos. Por inspiração de estudos

norte-americanos, difunde-se a análise econômica do Direito, que ganha espaço e adeptos. Em paralelo, o Estado

aprofunda, modifica e sofistica suas ações de regulação econômica, concebendo novos mecanismos e criando órgãos

e instituições específicos. No Brasil não é diferente.”

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universalização enquanto política pública. Afinal, se um cidadão tem o direito de ir e vir, ato

contínuo ele deverá saber onde ele exercerá esta garantia normativa.

As geotecnologias tendem a deixar de ser um bem privado para ser um bem de domínio

público vital para a diminuição das desigualdades sociais e regionais, para a divisão espacial do

trabalho e para a coesão do Estado enquanto elemento de integração nacional. Nestes termos, as

geotecnologias, enquanto técnica geográfica, situam-se como objeto de estudo jurídico por meio

do Direito Administrativo Geográfico, sendo a forma de caracterização do critério espacial para

efeitos jurídicos calcado em tecnologia e em cadastro, de forma a permitir meios de intervenção

do Estado no espaço. Ou seja, se foi pela cartografia que o Estado exerceu seus domínios nos

séculos XIX, e pela estatística no século XX, será pelas geotecnologias e pela informação

geoespacial que o Estado fundará seu poder coercitivo no século XXI, com manifesto interesse

público. A técnica geográfica se transforma enquanto categoria de estudo jurídico, representado

no modelo tridimensional interdisciplinar da seguinte forma:

TABELA 22 – Tríade fato jurídico - valor jurídico - técnica geográfica

FIGURA 34 - Relação científica interdisciplinar: o Direito da infraestrutura geográfica

I6

Fato

jurídico

Valor

jurídico

Técnica

geográfica

Referência

jurídica

(FV)

Identificar juridicamente a

análise jurídica e o mapa

Analisar juridicamente o

Estado e o mapa

Mapear o Estado e a

análise jurídica

Deve-se destacar que todo o Direito e as geotecnologias, enquanto uma das formas

possíveis de interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, encontra sua repercussão na

preservação do meio ambiente, na regularização fundiária, no uso ordenado do solo urbano, no

combate à criminalidade, na institucionalização de mecanismos para realizar o controle espacial

do país, até em questões de propriedade intelectual voltadas as indicações geográficas. Logo, as

geotecnologias devem ser viabilizadas enquanto instrumentos de Estado, para identificar o critério

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espacial do Estado, dirimir conflitos de interesse e promover uma informação geoespacial oficial,

para todos os fins legais. Deve-se evitar a todo custo sua antítese, seja a ausência de técnica

geográfica, seja a sobreposição de imagens com parâmetros heterogêneos, uma vez que pensar em

um Estado sem geotecnologias no século XXI será o mesmo que imaginar um Estado sem energia

elétrica no século XX.

Resta demonstrado que existem seis formas interdisciplinares científica de relação

entre Geografia e Direito, cada qual com suas características que se sobrepõem e interseccionam

com as demais, formando uma malha de conhecimentos que possibilitam a aludida

interdisciplinaridade. Com este emaranhado de entrelaçamentos, pautados na tridimensionalidade,

resta analisar como se projeta esta interdisciplinaridade de forma autônoma, de maneira a constituir

um ramo de estudo, tanto geográfico quanto jurídico.

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3. POR UM RAMO AUTÔNOMO NA GEOGRAFIA DE ESTUDO DO DIREITO:

O GEODIREITO

A história do mundo é um processo ininterrupto de diferenciação, que proporciona,

incialmente, diferenças que se desenvolvem separadamente antes de agirem umas sobre as outras,

modificando as disponibilidades originais do ser humano.159 Este processo dialético, que remonta

a simetria ordem-desordem, encontra-se no âmago da origem da Terra, referenciada pela figura

mitológica grega Géia, que sucede Caos, o primeiro Deus que originou os demais. E a Geografia

trabalha com este processo de diferenciação de diversas formas.

Neste período contemporâneo, a ordenação dos espaços por uma sociedade, de forma

a acomodar o crescimento vegetativo acelerado pelo processo de industrialização, provoca efeitos

no espaço que precisam ser juridicamente ponderados para viabilizar a vida no bojo desta

sociedade. Com esta característica, conceitos clássicos amplamente adotados começam a

demonstrar que precisam de uma redefinição de suas epistemologias para alcançar a almejada

harmonização dos interesses individuais, coletivos e difusos. Afinal, os subúrbios se estendem

desmensuradamente e a globalização confere outra escala econômica, social e política do espaço

e do Estado.

O mundo passa por acelerada reorganização política e social. Há a impressão de que o

planeta se torna cada vez mais interligado em consequência do impacto transformador sobre os

lugares, de novas formas de produção global, de maior mobilidade do capital, de avanços na

tecnologia da comunicação e do surgimento de divisões de trabalho mais internacionalizadas. Com

isso, o destino das localidades passa a ser cada vez mais determinadas por decisões, atividades e

eventos endógenos e exógenos ao conceito de Estado. (SMITH, G., 1996, p. 67).

O mundo contemporâneo produz paradoxos. Ao mesmo tempo em que se amplia a

descentralização das atividades do Estado, produzindo novas centralidades, busca-se uma

sociedade global, que por si só não suprime particularismos, pois leis mundiais, definidas pelas

necessidades do sistema em seu centro, agem sobre sociedades já desiguais pela ação anterior do

capital, contribuindo para manter ou agravar as diferenças.

Todo esforço no sentido de descentralizar a atividade humana tem como resultado uma

nova centralização (SANTOS, M. 2004, p. 23). Becker indica o planejamento estratégico como

ferramenta para lidar com o padrão ordem/desordem e centralização/descentralização, conferindo

protagonismo ao Estado de Direito.

159 Corrobora neste sentido RATZEL, 1902, pp. 61-106.

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139

[...] Primeiro, ordenamento não é sinônimo de gestão. Gestão do território foi uma

expressão surgida em um momento de superação do projeto autoritário de integração

nacional e profunda crise do Estado e do planejamento (proposição do Laboratório de

Gestão do Território, criado em 1987 mediante convênio UFRJ/IBGE). O planejamento

centralizado mostra a incapacidade de administração dos conflitos sociais e ambientais.

A gestão, entendida como prática científico-tecnológica do poder envolvendo a

negociação com todos os atores participantes do processo de desenvolvimento, emergiu

como alternativa para o planejamento estratégico no momento em que se retomava a

democracia no país. Considerando-se, contudo, a necessidade de resgatar o Estado de

direito, há que se resgatar o planejamento estratégico em que o ordenamento se insere,

sem exclusão da gestão, necessária para implementá-lo. A segunda questão diz respeito à

coexistência da ordem/desordem, certamente verdadeira. Entretanto, ordenar o território

significa apenas eliminar ou administrar a desordem, melhor dito, a crise e os conflitos?

Não existe também uma ordem que se deseja mudar, segundo novos objetivos? Cabe à

União alterar a ordem - ou o padrão ordem/desordem - existente pelo planejamento

estratégico (em que o ordenamento se insere) e pela gestão (negociação) segundo metas

do projeto nacional. Tais considerações induzem à discussão sobre a finalidade do

ordenamento (BECKER, 2005, p. 75).

Todavia, no alvorecer do século XXI, novos paradigmas se cristalizam na sociedade.

Para Hobsbawn (2003, p. 10), este século será um período de exacerbação dos nacionalismos

mundo afora, pelo aumento da diferença entre ricos e pobres e por problemas ambientais. Neste

cenário, a interdisciplinaridade entre Geografia e Direito surge como uma possibilidade real de

conferir respostas e avanços científicos a estas questões, cada qual com sua ótica sobre a realidade,

identificando formas de governança mediante a localização espacial deste poder, por meio da

tridimensionalidade.

Assim, há uma clara mudança na interdisciplinaridade entre Geografia e Direito, que

pode ser classificada em dois períodos distintos:

a) Período clássico: Até primeira metade do século XX, fundado

principalmente nos conceitos da Antropogeografia de Ratzel e da Morfologia

Social de Durkheim, na qual geógrafos, cientistas sociais e estatísticos

estudaram conceitos jurídicos, de forma a usar o Estado como instrumento de

profusão de uma “Geografia Oficial” e institucionalizada (no Brasil, p. ex.,

Teixeira de Freitas e Delgado de Carvalho) e juristas que estudaram conceitos

geográficos, de forma a melhor compreender o critério espacial do Direito (p.

ex., Pontes de Miranda e José Nicolau dos Santos). O que define estas

iniciativas, para os geógrafos, é o entendimento do Estado como escala

imprescindível para a compreensão da Geografia, bem como instrumento

básico para sua difusão e, para os juristas, o emprego de conceitos geográficos

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(p. ex., determinismo, espaço vital etc.) enquanto princípios de Direito

(relação cognitiva valor-valor com base no Direito); e

b) Período difuso: ocorrido desde a segunda metade do século XX, fundado

principalmente na Geografia Crítica e no Realismo Jurídico, em que

geógrafos e juristas buscaram compreender aspectos específicos da

interdisciplinaridade, de forma a satisfazer cientificamente a demandas

pontuais, seja em meio ambiente, urbanismo, questões agrárias,

autodeterminação dos povos ou em relações internacionais. Um traço comum

desta corrente é, para os geógrafos, a perda de relevância do Estado nas

análises geográficas, em face da força da globalização, com a progressiva

desinstitucionalização da Geografia, e para os juristas, a profusão de regimes

de exceção, notadamente como o Regime Militar no Brasil (1964 - 1988), que

enfraqueceu as noções jurídicas de regionalidades e localidades, nivelando o

poder estatal apenas a uma escala federal autoritária.160

Considerando estas duas realidades historicizadas, a articulação epistemológica destes

ramos científicos se mostra fundamental e imprescindível para o avanço interdisciplinar neste

século, sendo que diversas tentativas de diálogo foram estabelecidas por diferentes culturas e

autores, que respondiam parcialmente as potencialidades que esta interdisciplinaridade poderia

conferir. Existem várias concepções do que poderia ser a interdisciplinaridade entre Geografia e o

Direito, ou mesmo o Geodireito: O Geojurisprudenz alemão, a Géographie du Droit francês, o

Law & Geography anglo-saxão, o Geodiritto italiano, ou mesmo a Geografia Jurídica ou o

Geodireito desenvolvido no Brasil. Todas estas vias interdisciplinares culminaram em esforços

para compreender a interdisciplinaridade enquanto Geoeconomia (meio jurídico para alcançar

finalidade econômica); enquanto Geopolítica (meio jurídico para alcançar planejamento

estratégico político); enquanto corografia jurídica (descrição espacial dos sistemas jurídicos

postos); enquanto direitos difusos (técnica geográfica para defesa das minorias) ou enquanto fonte

material e não formal do Direito (base nas formas híbridas de regulação).

O que ora se propõe funda-se na necessidade de se compreender a interdisciplinaridade

entre Geografia e Direito como um sistema científico autônomo, mas ao mesmo tempo

160 Neste sentido, SANTOS, B. (1988, p. 148), destaca que uma das virtualidades mais interessantes da cartografia

simbólica do Direito consiste na análise do efeito da escala na estrutura e no uso do Direito, uma vez que o Estado se

assenta no pressuposto de que o Direito opera dentro de uma única escala, a escala do Estado.

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interdependente da Geografia e do Direito, de maneira a possibilitar uma nova leitura das funções

do Estado perante as forças da globalização, bem como identificar as escalas de governança de um

determinado país ou nas relações internacionais. Parte-se de uma visão tridimensional desta

interdisciplinaridade, para a qual passaremos a denominar de Geodireito Tridimensional, ou

simplesmente Geodireito, fundado na tríade fato-valor-técnica da Geografia e do Direito.

Neste sentido, a tridimensionalidade reconfigura a construção do que vinha sendo

denominado Geodireito, uma vez que, identificadas as possibilidades interdisciplinares, e

separadas aquelas que geram conhecimento interdisciplinar daquelas que produzem efetiva ciência

interdisciplinar, pode-se notar a existência de três novos nódulos modulares, similares aos ramos

científicos originários, mas menores e invertidos. Como uma projeção fotográfica,161 esta

resultante tridimensional será a hipótese de estudo que cogitará a existência de um Geodireito,

enquanto ramo autônomo geográfico e jurídico, com base tridimensional, bem como as formas de

compreensão de seu objeto de estudo e seus princípios informadores.

FIGURA 35 - Identificação de hipóteses de estudo interdisciplinar entre Geografia e Direito

161 Poderia ser cogitado que estes resultados fossem tratados como pérolas entre duas conchas que a suportam e a

protegem. Todavia, não há que se enxergar esta resultante como algo mais valioso ou indispensável do que os ramos

científicos que a originam.

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Este conceito de projeções faz com que cada um dos eixos (fato, valor e técnica) sejam

um reflexo do eixo original, constituindo este “quase-objeto”, de forma a produzir novas relações

Sociedade-Natureza derivadas desta interdisciplinaridade que ora se mostra cristalizada. Ante esta

nova morfologia, tridimensional, decorrente do princípio da simetria e com bases geométricas,

passa-se a analisar cada um destes nódulos para verificar a viabilidade de constituição deste ramo

autônomo, em que cada dimensão se apresentará como um nódulo relacional, um sistema com

elementos próprios. Resta analisar a morfologia de cada um destes novos nódulos ou, na linguagem

de Santos, M., seu sistema de objetos.

3.1. O fato geojurídico: o sistema Espaço-Estado

O fato geojurídico nada mais é do que tratar a relação cognitiva fenomênica (fato-fato)

entre Geografia e Direito como resultante da simetria. É sintetizar as possibilidades de

conhecimento interdisciplinar em um fato secundário, geojurídico, respeitada a dicotomia

Sociedade-Natureza. Na relação espaço-Estado, de cunho fenomênico, é fundamental identificar

onde esta capacidade será exercida no espaço e quem tem legitimidade para governar em nome do

Estado.

Neste exercício de corografia geojurídica, a definição de escala ganha centralidade.

Construção sensível do ponto de vista epistemológico, a escala denota inúmeras aplicações

semânticas enquanto linguagem. Ela pode, por exemplo, ser empregada como medida de

intensidade de terremotos e movimento na Terra (Richter), para potência acústica ou elétrica (bel,

decibel e neper), para intervalos de notas musicais (cent, semitom, tom, e oitava), dentre outros

significados.

No âmbito geográfico, escala pode ser descrita como uma relação existente entre as

medidas no mapa e as distâncias lineares correspondentes no terreno. Pode, igualmente, ter

aplicação jurídica, ao se referir a turnos ou vezes em que determinados funcionários devem

desempenhar certas funções. Pode ter outros sentidos, como comercial (determinado avião fará

uma escala em determinada cidade), ser empregado como verbo (escalar) ou mesmo em sentido

figurado (“escalar a seleção de futebol”). A importância da escala reside enquanto elemento que

viabiliza a elaboração e a interpretação de mapas, possibilitando analisar os fenômenos162 dentro

de uma simetria generalidade-especificidade.

O conceito de escala geográfica que ora se busca alcançar se aproxima dos estudos que

Smith, N. (2014a, 2014b) tem realizado, que delimita as fronteiras dos espaços sociais, cabendo a

162 Sobre a contextualização da importância da escala, ver Lindo, 2011, p. 44.

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Geografia analisar as formas de controle. O modelo de critério espacial da escala social se repete

nesta categoria, uma vez que a escala geográfica seria uma construção resultante das atividades e

relações econômicas, políticas e sociais, como expressão da ação social coletiva, portanto

relacionada às disputas e lutas sociais (SOBARZO, 2006, p. 107).

Todavia, a expressão de ação social, no caso da construção do Geodireito, extravasa

os conceitos de Smith, N. e de Sobarzo, haja vista ser um dado posto pelo Direito, por meio de

uma autoridade constituída, que se utiliza de critério coercitivo da sociedade geograficamente

delimitada. É o critério coercitivo da escala social. Santos, B. contextualiza a relação da escala

com o Direito, destacando a centralidade do Estado enquanto referência, bem como o pluralismo

jurídico que surge em decorrência das relações no bojo de um Estado. Afinal, as regras de escala,

de projeção e de simbologia são o modo de estruturar o espaço, conferindo uma resposta a

subjetividade de uma sociedade.

Uma das virtualidades mais interessantes da cartografia simbólica do direito consiste na

análise do efeito da escala da estrutura e no uso do direito. O Estado moderno se assenta

no pressuposto de que o direito opera segundo uma única escala, a escala do Estado.

Durante muito tempo, a sociologia do direito aceitou criticamente este pressuposto. Nas

três últimas décadas, a investigação sobre o pluralismo jurídico chamou a nossa atenção

para a existência de direitos locais nas zonas rurais, nos bairros urbanos marginais, nas

igrejas, nas empresas, no desporto, nas organizações profissionais. Trata-se de formas de

direito infra-estatal, informal, não oficial e mais ou menos costumeiro (SANTOS, B.,

1988, p. 160).

Santos, B. destaca três espaços jurídicos diferentes a que correspondem três formas de

direito: (i) o direito local, de escala grande; (ii) o direito nacional, de média escala; e (iii) o direito

mundial, de pequena escala. A estas dimensões devem ser somadas ao menos o Direito Estadual,

nos casos de países federados, e o Direito Regional, comum nas discussões sobre regiões

metropolitanas, zonas de desenvolvimento ou representações de um ecossistema (como acontece,

p. ex., com a Sibéria na Rússia ou a Amazônia no Brasil). As escalas serão tão diferentes e

subdivididas quanto os níveis de governança que determinado Estado, ou seu agrupamento,

pretendam constituir, desde que tenha legitimidade para tanto. Pode ir desde um município

interiorano discutindo a urbanização de um bairro distante até versar sobre governança global.

Em outras palavras, o que nos interessa, para efeito do presente trabalho, é explorar o

conceito de escala para a produção do Geodireito enquanto cristalização da interdisciplinaridade

entre Geografia e Direito. Se limites geográficos são conferidos para que o poder vinculante de

uma entidade estatal enseje seus efeitos jurídicos, a escala geográfica permite que o Direito

distribua competências, pela escala, para o exercício da governança por determinada autoridade

governamental. Trata-se da escala de governança enquanto objeto de estudo do fato geojurídico,

elemento necessário para aprofundar o diálogo entre os indivíduos de uma sociedade inserida em

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um Estado, de maneira a compreender as escalas constitucionais, pois muda-se a escala, muda-se

o problema.

FIGURA 36 - Caracterização do fato geojurídico, multiplicado por “n” vezes (FGDn), com

objeto de estudo na escala de governança.

FIGURA 37 - Caracterização do fato geojurídico enquanto dimensão fenomenológica

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Compreendida a escala, o conceito de governança adveio em um momento de profunda

crise do conceito de Estado, haja vista as forças globalizantes. É uma espécie de contra-argumento

as forças híbridas de regulação, conforme Antas Jr. expôs, ou ao mecanismo de o Direito se utilizar

da Economia como atividade-meio, conforme proposto por Bandeira de Mello.163 Remonta a uma

construção realizada pelo Banco Mundial (1992), no sentido de propor condições para a existência

de um Estado eficiente, tanto sob sua forma econômica quanto referente as questões sociais e

políticas da gestão pública, analisando meios e fins para quais determinadas políticas públicas são

planejadas, formuladas e implementadas.164

Há diversos autores que versam, com maior ou menor proximidade, do conceito de

escala de governança. Santos, B. (1988, p. 144) fala em “escala de legalidade”, enuncia que a

escala geográfica se aplica a ação social, uma vez que media a intenção e a ação, de maneira que

o poder representa a realidade social e física em uma escala escolhida para criar condições que

potencializem a reprodução do poder. No Brasil, de forma a justificar uma compreensão

epistemológica do desenvolvimento regional, Dallabrida (2006, p. 99-100; 2010a, p. 168; 2010b,

p. 185-216) confere rico material sobre este tema, ao considerar a multiescalaridade dos processos

socioeconômico-culturais que demandam regulação territorial, incluindo mas não se limitando a

ação interescalar de atores e a dispersividade territorial e social do poder de decisão. Dowbor

(2001, p. 197-221) identifica o critério social como mediador do econômico e do jurídico, com o

objetivo de proporcionar uma política regional multiescalar que, em última análise, busca uma

espécie de justiça pela ordem escalar governamental. Brandão (2007) aplica estes conceitos ao

Brasil, ao demonstrar que o reconhecimento dos municípios como entes federativos e a

descentralização decisória e fiscal, a partir principalmente da publicação da Constituição Federal

de 1988, possibilitou a identificação de instrumentos para combater a crescente desigualdade

econômica e social, possibilitando novas formas de se refletir às políticas públicas, por meio das

escalas intermediárias entre o local e o global.

Todavia, o que interessa, no presente caso concreto, é a definição da escala de

governança enquanto objeto do fato geojurídico. De forma a pormenorizar a combinação de

relações geográficas verticais e horizontais,165 principalmente em países federativos, como o

Brasil, que pressupõe múltiplas escalas de governança, voltemos ao paradigma da quadra

poliesportiva e da regência da orquestra constante no início deste trabalho. O Brasil,166 atualmente,

163 Conforme referenciado no item 2.6 do presente trabalho. 164 Para maiores informações sobre este tema, DINIZ, E., 1995. pp. 385-415; SANTOS, M. H., 1997, pp. 335-376; e

WORLD BANK, 1992. 165 Conforme ensina Saquet, 2007, p. 112. 166 Sob a ótica geográfica há uma divisão que relaciona os entes federados entre parte e todo, ou seja, determinado

conjunto de municípios formam um Estado e, por sua vez, os estados, junto ao Distrito Federal, formam a União.

Todavia, do ponto de vista jurídico, o Brasil é um Estado Federal em que as unidades federadas ocupam o mesmo

plano hierárquico.

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conta com inúmeras metodologias que fixam escalas distintas. Em regra, temos um Estado

Federado que contempla 26 estados, um Distrito Federal e 5.570 municípios, que se dividem em

cinco regiões nacionais, 33 regiões metropolitanas,167 12 bacias hidrográficas,168 64 concessões de

distribuição de energia elétrica,169 três concessões de telefonia fixa,170 diversas áreas de proteção

ambiental e muitas outras formas de divisão espacial, em diferentes escalas, nacionais e

internacionais, que, sobrepostas, formam o imenso mosaico do ordenamento territorial brasileiro,

o pluralismo jurídico de Santos, B., e demonstram a complexidade e a urgência em se constituir

um árbitro para mediar pretensões resistidas de diferentes agentes sociais, ou mesmo um maestro

para reger a variedade de instrumentos tocados pela sociedade.

Todos esses fenômenos jurídicos produzem projeções no espaço, de forma a fixarem

limitações geográficas distintas para mesmas entidades federadas. Como exemplo, um estado pode

pertencer a três bacias hidrográficas, com áreas de proteção ambiental federal, estadual e

municipais, bem como estar sob o regime de concessão de três distribuidoras de energia elétrica.

De forma reversa, dois ou mais estados podem estar em regiões distintas, mas serem compostos

pela mesma bacia hidrográfica e na mesma área de concessão de telefonia fixa. Logo, resta nítido

a necessidade de se aprofundar os conhecimentos sobre os limites geográficos para o exercício do

poder coercitivo, pois o aumento da complexidade de nossa sociedade, decorrente do processo de

descentralização decisória, nos impõem a caracterização do fato geojurídico como base da

interdisciplinaridade entre Geografia e o Direito.

Assim, cabe destacar, segundo a técnica do Geodireito, quais são as escalas de

governança em que o fenômeno do espaço e do Estado se manifesta, em consonância com a

distribuição de competências para cada um desses espaços.

Como enunciado fenomênico do Geodireito, se eu pergunto onde para o Direito, lá

está a Geografia. Se eu pergunto quem para a Geografia, reside ali a autoridade de Direito apta

para exercer a governança. É perguntar onde para o Estado e quem para o espaço. Desta forma

resta preservada a natureza material da Geografia e a procedimental do Direito em sua relação

fenomênica. Seguem abaixo alguns exemplos que podem ser realizados desta correlação.

É fato que o art. 1º da Constituição Federal determina que a República Federativa do Brasil é formada pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito.

Enquanto federação, o Estado brasileiro pressupõe a repartição de competências, devidamente delimitadas para que

um ente federado não usurpe os poderes de outro.

Com o advento do período democrático, consagrou-se na Carta Magna de 1988 um sensível aumento de

responsabilidades das municipalidades brasileiras. O art. 18 colocou este ente administrativo em pé de igualdade com

a União, Estados-Membros e o Distrito Federal. Os Municípios, por sua vez, passaram de meros coadjuvantes para

detentores de uma função efetiva na sociedade brasileira. 167 Reflete apenas aquelas reconhecidas pelo IBGE. 168 Conforme ANA. 169 Somatório das concessões de distribuição outorgadas por intermédio da Aneel. 170 Conforme sistema outorgado por intermédio da Anatel.

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TABELA 23 - Exemplos de identificação de escalas de governança

Enunciado fenomênico do Geodireito (primeira regra):

Onde para o Direito e Quem para a Geografia

Objetivo: Compreender a escala de governança

Demanda social

O que? Objeto de estudo

Fato geográfico

Onde? (Escala)

Fato jurídico Quem? (Governança)

Fato geojurídico (escala de governança)

Ampliar o sistema metroviário em São Paulo

Estado de São Paulo

Estado de São Paulo e 39 municípios do Estado171

Competência técnica e jurídica do Estado de São Paulo em estudar e legislar a matéria.

Aprimorar o Registro de imóveis (sistema cartorário)

Brasil Brasil, 26 estados, um Distrito Federal e 5.570 municípios.

Competência jurídica da União em legislar sobre a matéria. Competência da União em arrecadar tributos rurais (ITR). Competência dos municípios nos tributos urbanos (IPTU).

Combater o aquecimento global

Terra Organização das Nações Unidas (ONU) e 193 países-membros.

Competência concorrente. Cabe a ONU as questões ambientais globais, a União aquelas nacionais, aos estados aquelas estaduais e aos municípios aquelas locais.

Combater o desmatamento da Amazônia

América do Sul

Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, com diversos estados e municípios, dependendo do caso concreto.

Em matéria ambiental cabe a cada país suas questões nacionais, sendo que no Brasil a competência é concorrente, sendo que os estados legislam sobre os temas estaduais (residuais) e os municípios sobre os temas locais.

Compreender a anexação da Crimeia pela Russia

Eurásia Rússia, Ucrânia, União Européia, Organização das Nações Unidas e demais países-membros.

Cabe a ONU definir sobre a legitimidade da incorporação da Crimeia pela Rússia, podendo cada país, unilateralmente, estabelecer sanções perante a Rússia considerando suas legalidades.

Controlar a alfândega em Santana do Livramento

Brasil e Uruguai

Brasil, por meio do estado do Rio Grande do Sul e do Município de Santana do Livramento; e Uruguai, por meio do Município de Rivera.

Cabe a União efetivar a função de polícia de fronteira. (As questões fiscais e de aduana são de responsabilidade do Ministério da Fazenda e da Secretaria da Receita Federal)

Criar zonas francas Brasil

Manaus e Tabatinga (AM), Boa Vista e Bonfim (RR), Guajará-Mirim (RO), Macapá e Santana (AP), Cruzeiro do Sul e Brasiléia (AC).

Cabe a União, por meio do Ministério da Integração Nacional, dizer quais as cidades e em que locais delas serão instaladas as zonas francas.

Explorar o Aquífero Guarani

América do Sul

Brasil (8 estados)172, Argentina (diversas províncias), Paraguai (estado unitário) e Uruguai (estado unitário), que envolvem uma diversidade de municípios, dependendo da forma de aferição da espacialidade do aquífero.

Cabe ao Brasil, a Argentina, ao Paraguai e ao Uruguai deliberar sobre o uso comum do lençol freático.

Explorar petróleo na plataforma marítima

Brasil Brasil e estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo

Cabe a União, por meio do Ministério de Minas e Energia, legislar sobre petróleo.

Fixar indicação geográfica para o açaí do Marajó

Brasil Estado do Pará Cabe a União legislar com base em tratados internacionais (Acordo TRIPs), integrante do conjunto de acordos da OMC.

Gerir o Polígono das secas

Sertão nordestino

Estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Minas Gerais, que envolvem 1.348 municípios.

Cabe a União, por meio do Ministério da Integração Nacional, legislar sobre o Polígono das Secas.

Viabilizar a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE)

Brasil Distrito Federal, Estado de Goiás, com 19 municípios envolvidos,173 e Estado de Minas Gerais, com 3 municípios envolvidos.174

Criada e regulada pela União, que fixa formas de relacionamento com os Estados e os municípios envolvidos.

171 Arujá, Barueri, Biritiba Mirim, Caieiras, Cajamar, Carapicuíba, Cotia, Diadema, Embu das Artes, Embu-Guaçu, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato, Franco da Rocha, Guararema, Guarulhos, Itapecerica da Serra, Itapevi, Itaquaquecetuba, Jandira, Juquitiba, Mairiporã, Mauá, Mogi das Cruzes, Osasco, Pirapora do Bom Jesus, Poá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Salesópolis, Santa Isabel, Santana de Parnaíba, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, São Lourenço da Serra, São Paulo, Suzano, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista. 172 Mato Grosso do Sul (213.700 km²), Rio Grande do Sul (157.600 km²), São Paulo (155.800 km²), Paraná (131.300 km²), Goiás (55.000 km²), Minas Gerais (51.300 km²), Santa Catarina (49.200 km²) e Mato Grosso (26.400 km²). 173 Abadiânia, Água Fria de Goiás, Águas Lindas de Goiás, Alexânia, Cabeceiras, Cidade Ocidental, Cocalzinho de Goiás, Corumbá de Goiás, Cristalina, Formosa, Luziânia, Mimoso de Goiás, Novo Gama, Padre Bernardo, Pirenópolis, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto, Valparaíso de Goiás e Vila Boa. 174 Buritis, Cabeceira Grande e Unaí.

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Como se verificou acima, os limites geográficos confinam em um determinado espaço

os efeitos do poder coercitivo das entidades federadas. E tal delimitação pode se dar por meio de

governança jurídica (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) ou pela escala geográfica

(internacional, nacional, regional e local), ambos utilizando como referência o objeto de estudo e

a relação simétrica espaço - Estado, de forma que estes conceitos ora tem delimitação espacial

coincidentes, ora são divergentes, dependendo da fenomenologia a ser caracterizada.

Por outro lado, esta fenomenologia, de base corográfica, não explica o todo

interdisciplinar. Há determinadas matérias que são destinadas a uma única escala, por conveniência

e oportunidade. Por exemplo, um país não necessita entrar em questões sobre sentido de

logradouro público ou sobre coleta de lixo, por mais que este logradouro, ou estes resíduos, estejam

espacialmente dentro de seu território. Ao mesmo tempo, um município não legisla sobre produção

nuclear ou forças armadas, por mais que seu território contenha uma usina ou uma base militar.

Existem funções que são destinadas a apenas um tipo de escala de governança, de forma que se

faz necessário uma análise axiológica para se identificar esta divisão geojurídica do trabalho.

3.2. O valor geojurídico: o sistema Solidariedade-Justiça

O valor geojurídico resulta na criação de uma relação cognitiva culturalista (valor-

valor) entre Geografia e Direito como um valor único interdisciplinar. É a convergência de

opiniões advindas das duas ciências, que culminam em um valor derivado, geojurídico, respeitada

a dicotomia Sociedade-Natureza. Seria uma atualização e um redirecionamento do que Dos Santos

(1954, p. 192) escreveu, ao definir como o Direito estudaria a Geografia Jurídica, que deve

interpretar o fenômeno jurídico, que é o condicionamento ético normativo da vida social, em suas

relações permanentes com o meio antropogeográfico, que direciona materialmente a sociedade.

Ao interpretar as escalas de governança decorrente do fato geojurídico, os valores da

justiça, da igualdade, da liberdade, dentre outros, são o objeto de estudo desta categoria que se

cristaliza como interdisciplinaridade axiológica entre Geografia e Direito. Assim, a promoção da

justiça e da igualdade ou, de forma reversa, o combate a injustiças e as desigualdades projetadas

no sistema Espaço-Estado passam a formar esta categoria de estudo.

Há toda uma dialética pautada na desigualdade que encontra como metodologia de

solução jurídica o critério social e o regional. Afinal, o espaço, enquanto território, passa a ser

encarado como uma acumulação desigual, qualitativa e quantitativa, de limites geográficos e de

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normas jurídicas, haja vista que as competências federativas incidem sobre diversas

“preponderâncias”, regiões, interesses, localidades, escala, competências, territórios etc. Faz-se

necessário identificar quais são os elementos que conferem organicidade a esse conjunto, bem

como aqueles que atribuem identidades perceptíveis a determinados espaços, que justificam suas

individualidades, de forma a produzir a organicidade social perquirida pelo Geodireito. Sob esta

perspectiva, a análise da divisão do trabalho torna-se fundamental para obter metodologias de se

dividir os espaços e, por conseguinte, diminuir as desigualdades espaciais.

Voltemos a Durkheim. Ele escreveu sobre a divisão do trabalho social em um

momento histórico de transição para uma sociedade de massa, imposta pelo processo produtivo

industrial, pela explosão demográfica e em que as instâncias organizacionais tornam-se mais

complexas. Para tal transição, a sociedade passava de um estágio de solidariedade mecânica (pré-

industrial) para uma sociedade orgânica (pós industrial). Nesse escopo, a divisão do trabalho é

apresentada como um mecanismo de integração social por personalidades distintas que passarão a

integrar uma personalidade coletiva, por intermédio da solidariedade, e que deve ser tutelado pelo

Direito.175 É importante salientar que Durkheim176 trabalhou com esta ideia de funcionalismo na

Sociologia, ao correlacionar a função do trabalho e a solidariedade. Esta jamais pode existir sem

outrem e nós a não ser que a imagem desse outrem se una à nossa. Em outros termos, o

relacionamento social pressupõe que dois seres dependem mutuamente um do outro, de forma

simétrica, porque ambos são incompletos e ele nada mais faz do que exteriorizar essa dependência

mútua.177

Logo, se é possível pensar em um valor geojurídico, a compreensão da justiça

enquanto igualdade e liberdade mas, principalmente, ordem (ou enquanto ordenação), são os

requisitos necessários para alcançar este objetivo. Assim como a justiça serve para a edificação da

ordem no Estado, a solidariedade deve estar no centro desta construção, enquanto ordenamento do

espaço.

A solidariedade é comumente definida como a qualidade do que é solidário, a

responsabilidade mútua, ou mesmo a reciprocidade de interesses e obrigações. É o estado de várias

175 “A vida geral da sociedade não pode se desenvolver num certo ponto sem que a vida jurídica se desenvolva ao

mesmo tempo e no mesmo sentido. Podemos portanto estar seguros de ver refletidas no direito todas as variedades

essenciais da solidariedade social” (DURKHEIM, 2004, p. 67). 176 DURKHEIM, 2004, p. 21. 177 Nesta mesma linha, Rodrigues (1990, p. 65) enuncia que somos levados, assim, a considerar a divisão do trabalho

sob um novo aspecto, uma vez que sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de

solidariedade.

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150

pessoas em que cada uma delas se obriga por todas e por tudo, no caso de falta de cumprimento

de determinada obrigação por parte das outras.

Enquanto Durkheim trabalha com o conceito de divisão do trabalho social, e o

compreende como progresso da humanidade por meio da solidariedade orgânica,178 Comte (1978)

pormenoriza que é a contínua distribuição dos diferentes trabalhos humanos que constitui, de

maneira principal, a solidariedade social, de forma a se tornar a causa elementar da extensão e da

complexidade crescente do organismo social. Assim, é a divisão do trabalho que torna a sociedade

viável, orgânica, haja vista que seu efeito mais notável não seria o aumento da produtividade do

trabalho realizado em funções distintas, mas o fato de tornar solidárias as atividades laborais da

sociedade.

A Geografia trata da solidariedade, de forma a conferir espacialidade a este conceito.

A história de seu pensamento está pontilhada desta discussão. A divisão geojurídica do trabalho

pode ser identificada na obra de Vidal de la Blache (1913, pp.3-14) que, ao avançar o discurso de

Ratzel sobre espaço e Estado, enfatiza a sociedade como elemento de composição - ou mesmo de

mediação - entre as relações do sistema Espaço-Estado, substituindo o conceito de homogeneidade

por solidariedade no tratamento da região, entendida como parte do Estado, na qual a cidade seria

seu nó, que reuniria todo o seu conjunto de elementos que, em última análise, forma o espírito

nacional por meio da coesão, solidária.

Resta importante posicionar a importância da solidariedade na história do pensamento

geográfico. Na grande dialética determinista e possibilista, ambas estavam certas, em que pese em

planos diferentes. Se considerarmos o fato geográfico, Ratzel estava correto ao dizer que a natureza

muda a sociedade, pois a natureza, em última análise, sempre sucumbirá a sociedade na dimensão

fenomenológica, este é um fato da vida. Ao pressupormos o valor geográfico, Vidal de la Blache

estava correto ao afirmar que a sociedade muda a natureza, pois é um valor que garante a

perpetuidade da raça humana ante as vicissitudes da natureza. Em que pese Ratzel ter levado o

estudo do Estado na Geografia para novos patamares, sua obra é nacionalista e evolucionista,

voltada ao Estado-Nação, e não propriamente ao Estado de Direito.

178 Marx concebe tal realidade como forma de alienar o homem, ao fracionar o conhecimento e impedir que se conheça

o todo. Há a descrição da divisão social do trabalho como a totalidade das formas heterogêneas de trabalho útil, que

diferem em ordem, gênero, espécie e variedade. “Progressivamente, ela se transforma em divisão da produção de

carruagens em suas diversas operações particulares, em que cada operação cristaliza-se em função exclusiva de um

trabalhador, e a sua totalidade é executada pela união desses trabalhadores parciais [...]” (MARX, 2010, p. 267).

Todavia, a opção acima manifesta é de afastar a preocupação com o processo em si da produção do espaço, o que

implicaria entrar na teoria do valor, mas adentrar no resultado material de tal processo e sua ação sobre o movimento

da totalidade social, por meio da Geografia e do Direito.

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151

O momento em que Vidal de la Blache definitivamente supera o determinismo

ratzeliano é quando propõe, por meio de seus estudos regionais, a substituição do conceito de

homogeneidade pelo de solidariedade, aliando a noção de coesão ao de divisão do trabalho, onde

a diversidade passa a ser o seu motor. Dentro desta grande simetria existente na Geografia Clássica,

não seria demais afirmar que a corrente determinista e a possibilista são faces de uma mesma

moeda, uma vez que Vidal de la Blache viabiliza, de certa forma, o estudo da obra de Ratzel como

Estado de Direito, por meio do conceito de solidariedade.

Com o passar do tempo, após o advento da Geografia Quantitativa que impôs um hiato

axiológico a Geografia, o resgate dos conceitos de solidariedade, justiça e de divisão do trabalho

podem ser identificados como grandes pilares da Geografia Crítica. Ao versar sobre a superposição

dos diversos níveis da divisão do trabalho, Santos, M. traz nas entrelinhas o conceito, acima

mencionado, de quadra poliesportiva e de escala de governança, bem como o de Estado, pois

somente a partir dele pode-se pensar na simetria nacional - internacional e em níveis de

organização social.

Quanto à divisão do trabalho atual, as características que interessam mais de perto ao

nosso enfoque, são, em primeiro lugar, o fato de que, talvez pela primeira vez na história

do homem, há uma completa superposição dos diversos níveis da divisão do trabalho.

Desse modo, as divisões do trabalho internacional, nacional e local se imbricam de

maneira necessária. E isso redefine, de um lado, a própria divisão do trabalho e, de outro

lado, redefine o espaço em todos os seus níveis de organização (SANTOS, M., 2008c, p.

49).

Antas Jr. versa sobre divisão social e territorial do trabalho, que pode ser sintetizada,

para efeitos geográficos e jurídicos, em divisão geojurídica do trabalho.

As normas jurídicas produzem formas geográficas ou são produzidas por elas, para a

realização de funções diferentes na divisão social e territorial do trabalho. As fronteiras

nacionais, os estados federados, os municípios, a propriedade privada, a região

administrativa etc. são formas jurídicas e também geográficas (ANTAS JR., 2005, p. 66).

Logo, na construção da divisão geojurídica do trabalho, com base simétrica na

solidariedade e na justiça, os valores naturais e humanos necessitam ser admitidos como espécies

deste valor. E estes entendimentos encontram simetria no Direito. A divisão social do trabalho tem

uma importância vital enquanto axiologia jurídica, pois é ela que distingue os homens das demais

espécies animais, que no máximo teriam o conhecimento de uma divisão biológica. A

solidariedade, buscada pelo Direito na promoção de justiça, é a orgânica, efetiva e abarcante, que

pode prescindir da sanção estritamente penal para adotar uma postura restitutiva, de forma a

restabelecer a sociedade de forma isonômica.

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152

Ferraz Junior (1987, p. 304) descreve a divisão do trabalho com critério espacial, ao

pormenorizar que a relação entre o soberano e o súdito era ligada a um mecanismo de apossamento

da terra (princípio da territorialidade) e, como relação mais abstrata, sobre o corpo e a atividade

laboral do ser humano (divisão do trabalho), uma forma de poder contínuo que exige delegação,

organização e sistema, e se exerce sobre os cidadãos como todo compacto. Machado Neto

correlaciona a divisão do trabalho com o Direito, colocando centralidade na definição de Durkheim

sobre fato social.179 Há autores que entendem a solidariedade como um princípio do Estado

Socioambiental de Direito, como Fensterseifer.180 Para Loureiro, a doutrina civilista igualmente

destaca a questão da solidariedade.181 Para Greco (1998, p. 127-128), os doutrinadores tributaristas,

ao se referirem à capacidade contributiva, usualmente apontam que a experiência contemporânea,

de convívio em sociedade, é informada fundamentalmente pelo princípio da solidariedade social.

Dentre todos os ramos do Direito, talvez seja a doutrina previdenciária182 quem melhor

trate deste instituto, uma vez que o princípio da solidariedade traz em seu bojo a noção de pacto

de gerações, conforme introduzido por Otto von Bismarck, em 1889, como uma das medidas de

unificação da Prússia. De forma genérica, uma geração poupa para pagar a aposentadoria da

geração anterior, e assim seguidamente. Logo, é a solidariedade que melhor trabalha com o

conceito de tempo, é ela, enquanto valor, que permite que a humanidade se perpetue de maneira

axiológica e, por conseguinte, enfrente a supremacia fenomenológica da natureza, tornando a

relação Sociedade-Natureza menos desfavorável ao ser humano.

179 “Durkheim vai descobrir que, à medida que a solidariedade mecânica vai sendo, pelo influxo da divisão do

trabalho, transformada em solidariedade cada vez mais orgânica, o direito vai abandonando o seu caráter repressivo

ou retributivo, dominantemente penal, para assumir preponderantemente a sanção restitutiva, característica do

direito civil e comercial” (MACHADO NETO, 1987, p. 106). 180 “A solidariedade expressa a necessidade fundamental de coexistência do ser humano em um corpo social,

formatando a teia de relações intersubjetivas e sociais que se traçam no espaço da comunidade estatal. Só que aqui,

para além de uma obrigação ou dever unicamente moral da sociedade, há que se trazer para o plano jurídico-

normativo tal compreensão, como pilar fundamental à construção de uma sociedade e de um Estado de Direito

guardiões dos direitos fundamentais de todos os seus integrantes, sem exclusões” (FENSTERSEIFER, 2008, p. 75). 181 “[...] o eixo do sistema jurídico é agora a Constituição Federal, que não só passou a tratar de temas antes

circunscritos ao direito privado, como também a iluminar, com seus princípios cardeais – dignidade e solidariedade

– toda a legislação infraconstitucional” (LOUREIRO, F., 2003, p. 91). 182 “Como princípio técnico, a solidariedade significa a contribuição de certos segurados, com capacidade

contributiva, em benefício dos despossuídos. Cientificamente, solidariedade é técnica imposta pelo custeio e exigência

do cálculo atuarial. É imperioso repisar o significado da solidariedade; ela não é uma instituição típica da

Previdência Social, a despeito de aí ter encontrado habitat natural para seu desenvolvimento e efetivação. A

solidariedade, referida no princípio, quer dizer união de pessoas em grupos, globalmente consideradas, contribuindo

para a sustentação econômica de indivíduos em sociedade, individualmente apreciada, e, por sua vez em dado

momento, também contribuirão ou não para a manutenção de outras pessoas, e assim sucessivamente.”

(MARTINEZ, 1995, p. 77).

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153

FIGURA 38 - Caracterização do valor geojurídico, multiplicado por “n” vezes (VGDn), como

objeto de estudo da divisão geojurídica do trabalho

FIGURA 39 - Caracterização do valor geojurídico enquanto dimensão axiológica

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154

Assim, pode-se sintetizar que o princípio da solidariedade é um valor social

juridicamente tutelado183 (critério coercitivo do valor social) que tem a noção de tempo intrínseca

a sua existência, e que tem como origem fática a divisão do trabalho, considerada como elemento

fundamental para a coesão social, necessário para diminuir as desigualdades sociais184 e regionais,

manter a união indissolúvel do território nacional e, por fim, promover justiça.

Logo, no plano axiológico geojurídico, a simetria se comporta pela temporalidade da

solidariedade e pelo questionamento, pelo anseio social, de justiça em suas diferentes concepções

(igualdade, ordem e liberdade). Assim, o objeto de estudo do valor geojurídico passa a ser a

construção da divisão geojurídica do trabalho.

O estabelecimento da simetria permite que o Direito se utilize de critérios da Geografia

(critério espacial da solidariedade) para enunciar que os princípios jurídicos (critério coercitivo da

justiça) enseje os efeitos jurídicos de forma a aperfeiçoar a solidariedade da escala de governo que

está a aplicá-la. De forma reversa, a Geografia utiliza-se de critérios da justiça, enquanto ordem,

para promover o ordenamento territorial, regional, de forma a compreender os valores envolvidos

que animam o espaço (critério espacial) no qual determinado senso de justiça (critério coercitivo)

está presente. Estes dois vetores (Geografia ao Direito e Direito a Geografia) cristalizam-se em

um único nódulo geojurídico: a simetria axiológica Solidariedade-Justiça, que tem por objeto

promover a divisão geojurídica do trabalho.

Assim, cabe destacar, quais são as divisões geojurídicas do trabalho em que a axiologia

Solidariedade-Justiça se manifesta, em consonância com a distribuição de competências para cada

um desses espaços. No plano cultural, se eu pergunto quando para o Direito, lá está a Geografia

definindo a coesão espacial e a solidariedade ao longo do tempo, enquanto resultante do pacto de

gerações. Se eu pergunto por que para a Geografia, reside ali a autoridade de Direito apta a

conceber a justiça que balizará a divisão do trabalho, apontando sua legalidade ou ilegalidade.

Seguem abaixo alguns exemplos que podem ser realizados desta correlação.

183 A primeira vez que o conceito de solidariedade apareceu no Brasil em uma Constituição foi em 1934, ao expor que

a educação é direito de todos e deve desenvolver a consciência da solidariedade humana. Importante frisar que a

mesma Carta trata de responsabilidade solidária, todavia, é objetivo do presente trabalho ater-se em tal discussão, pois

não produz efeitos imediatos na composição do espaço.

A solidariedade entre o menos e o mais favorecido fica explicitada na Carta de 1937, ao versar sobre ensino

fundamental. Em 1946, a Constituição foi mais genérica ao enunciar que a educação pressupõe solidariedade humana.

Houve alteração na redação ao correlacionar educação e solidariedade na Carta de 1967. Todavia, a grande inovação

da norma foi correlacionar a solidariedade com fatores de produção, inaugurando, assim, a correlação entre

solidariedade e divisão do trabalho, fato que seria revisto na Emenda Constitucional n° 1, de 1969, de forma a substituir

a expressão “fatores de produção” por “categorias sociais de produção”.

A solidariedade atualmente está prevista constitucionalmente por intermédio do art. 3°, inciso I, ao prever, como

objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. 184 O Estatuto do Idoso, no artigo 12 da Lei n° 10.741, de 2003, igualmente trata da solidariedade no que se refere a

obrigação alimentar.

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155

TABELA 24 - Exemplos de identificação de divisão geojurídica do trabalho

Enunciado axiológico do Geodireito (segunda regra):

Quando para o Direito e Por que para a Geografia

Objetivo: Compreender a divisão geojurídica do trabalho

(Pacto de gerações enquanto coesão temporal x pacto intra-geracional

enquanto coesão espacial)

Demanda social

O que?

Objeto de estudo

Valor geográfico

Quando?

(Solidariedade)

Valor jurídico

Por quê?

(Justiça)

Valor geojurídico

(divisão geojurídica do

trabalho)

Ampliar o sistema

metroviário em

São Paulo

Geografia Urbana, mobilizar a sociedade

metropolitana até a obtenção dos benefícios deste

empreendimento, desnudando os interesses sociais

projetados no espaço.

Direito Urbanístico, necessidade de

aprimorar a mobilidade urbana (exercício do

direito de ir e vir) pelo poder coercitivo.

Geodireito voltado para

ordenar os assuntos

urbanísticos no espaço

estadual

Aprimorar o

Registro de

imóveis (sistema

cartorário)

Geografia Urbana e Agrária, mobilizar a sociedade até a obtenção dos benefícios de um

cadastro territorial, analisando tecnicamente (e

permanentemente) eventuais sobreposições de

títulos (beliche cartorário).

Direito Urbanístico e Agrário, necessidade

de aprimorar a qualidade dos títulos de

posse, considerando sua validade e sua

eficácia jurídica (Direito Civil).

Geodireito voltado para

ordenar os assuntos

urbanísticos e agrários no

espaço nacional

Combater o

aquecimento

global

Geografia Física e Geografia Ambiental,

mobilizar a sociedade global permanentemente

por meio de estudos, debates e conscientização,

desnudando os interesses sociais projetados no

espaço.

Direito Ambiental e Direito Internacional,

necessidade de combater o aquecimento

global com o objetivo de garantir a

perpetuidade das espécies existentes (Direito

a vida).

Geodireito voltado para

ordenar os assuntos

ambientais no espaço

internacional

Combater o

desmatamento da

Amazônia

Geografia Física e Geografia Ambiental, mobilizar os países amazônicos permanentemente,

de maneira a explorar os recursos naturais de

forma sustentável (pacto de gerações), de forma a

preservar o uso da floresta pelas gerações futuras.

Direito Ambiental e Direito Internacional, necessidade de aliar desenvolvimento

econômico agrário com o uso sustentável da

floresta. Mediar livre iniciativa e proteção

ambiental.

Geodireito voltado para ordenar os assuntos

ambientais no espaço

internacional e nacional

Compreender a

anexação da

Crimeia pela

Rússia

Geografia Política (ou Geopolítica), mobilizar a

sociedade global permanentemente, expondo o

ponto de vista de cada nação, demonstrando o

impacto no tempo deste ato político, desnudando

os interesses políticos projetados no espaço.

Direito Internacional Público, necessidade de

avaliar se a Rússia, a Ucrânia, a União

Europeia, a ONU e demais países-membros

cumpriram os tratados internacionais

referentes a vontade da população local (Crimeia). Direito a Soberania.

Geodireito voltado para

ordenar os assuntos políticos

no espaço regional

Controlar a

alfândega em

Santana do

Livramento

Geografia Humana, identificar as formas de

interação dos dois países por meio das relações

existentes entre as duas cidades, desnudando os

interesses sociais projetados no espaço enquanto

elemento de integração regional.

Direito Administrativo e Direito

Internacional, necessidade de aprimorar a

mobilidade urbana (exercício do direito de ir

e vir) entre os dois países enquanto elemento

de integração regional.

Geodireito voltado para

ordenar a imigração e

emigração no espaço local

Criar zonas

francas

Geografia Regional, identificar as formas de

interação entre as zonas sob subsídio fiscal

perante as demais, desnudando os interesses

sociais projetados no espaço enquanto elemento de desenvolvimento regional.

Direito Administrativo, necessidade de

descentralizar a produção industrial, tratando

desigualmente regiões desiguais (princípio

da isonomia), de forma a desenvolver economicamente a região norte do Brasil.

Geodireito voltado para

ordenar o desenvolvimento

econômico no espaço

regional

Explorar o

Aquífero Guarani

Geografia Física, mobilizar os países do Cone Sul permanentemente, de maneira a explorar os

recursos naturais de forma sustentável (pacto de

gerações), de forma a preservar o consumo das

gerações futuras.

Direito Administrativo e Direito Sanitário,

necessidade de universalizar o atendimento

ao saneamento básico para as populações de

baixa renda (princípio da igualdade).

Geodireito voltado para ordenar a atividade

econômica e os serviços

públicos (saneamento) no

espaço regional

Explorar petróleo

na plataforma

marítima

Geopolítica e Geografia da Energia, debater o uso

dos royalties do petróleo dentro de uma

perspectiva solidária, preservando o pacto de gerações.

Direito Administrativo, Direito da Energia e

Direito Internacional, necessidade de

garantir a segurança jurídica para o pleno

funcionamento da extração, transporte, refino e distribuição do petróleo (princípio

da livre iniciativa).

Geodireito voltado para

ordenar a atividade

econômica e os serviços

públicos (energia) no espaço marítimo

Fixar indicação

geográfica para o

açaí do Marajó

Geografia Regional, identificar as formas de

representação dos produtores de açaí na ilha de

Marajó ao longo do tempo para que promovam

desenvolvimento regional com a patente do açaí

de Marajó.

Direito Civil (Propriedade Intelectual),

necessidade de garantir a segurança jurídica

para que os produtores do açaí de Marajó

consigam patenteas sua indicação

geográfica.

Geodireito voltado para

ordenar o desenvolvimento

regional no espaço local

Gerir o Polígono

das secas

Geografia Regional, mobilizar os estados e os

municípios até que o déficit de serviços públicos,

notadamente o sistema de saneamento, estejam

universalizados, de forma a garantir a perenidade (pacto de gerações) do uso da ocupação do solo.

Direito Administrativo e Direito Sanitário,

necessidade de universalizar serviços

púbicos na região, de forma a viabilizar o

acesso a água e ao saneamento (princípio da igualdade).

Geodireito voltado para

ordenar o desenvolvimento

regional no espaço regional

Viabilizar a

Região Integrada

de Desenvolvi-

mento do Distrito

Federal e Entorno

(RIDE)

Geografia do Estado, Geografia Regional e

Geografia Urbana, identificar os reflexos do

crescimento de Brasília nos municípios vizinhos,

de forma a identificar formas de tratamento

homogêneo das questões sociais regionais.

Direito Constitucional e Direito

Administrativo, necessidade de conceber

instrumentos jurídicos para conferir

uniformidade jurídica as diferentes entidades

federadas para gestão urbana de Brasília de

forma única.

Geodireito voltado para

ordenar os assuntos

urbanísticos no espaço

regional

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156

Como se verificou acima, a solidariedade, enquanto pressuposto temporal, quando

projetada no espaço delimita a forma do exercício do poder coercitivo, fundado na justiça. O valor

geojurídico emerge como um elemento consolidador tanto da atomização científica da Geografia

quanto do Direito. O critério coercitivo do Estado viabiliza uma leitura transversal dos ramos da

Geografia (Urbana, Agrária, Regional etc), por meio do ordenamento espacial, com base na

solidariedade. De modo reverso, o critério espacial possibilita uma percepção igualmente

transversal dos ramos do Direito (Civil, Administrativo, Ambiental etc.), intermediado pelo mesmo

ordenamento espacial, fruto da divisão geojurídica do trabalho. Assim, o Geodireito consolida a

axiologia geográfica e jurídica, cristalizando uma releitura de valores tidos isoladamente,

conferindo organicidade ao ordenamento espacial.

Por outro lado, esta axiologia, culturalista, também não explica o todo interdisciplinar.

Ela desmistifica, clarifica, mas prescinde de ferramentas para que possa se materializar, tornar-se

realidade. Por exemplo, um país precisa instrumentalizar sua compreensão de justiça em um

ordenamento normativo, conjunto de regras que sejam legítimas por representar o senso comum,

distante de particularismos. Ao mesmo tempo, um povo precisa de instrumentos para manifestar

sua solidariedade, seja pela produção econômica, pelo uso de armas ou pelo desenvolvimento

artístico. Após compreender a escala de governança e a divisão geojurídica do trabalho, faz-se

necessário uma análise instrumental para se identificar como as ferramentas animam o espaço e o

Estado.

3.3. Técnica geojurídica: o sistema Mapa-Norma

A técnica geojurídica consiste na elaboração de uma relação cognitiva instrumental

(técnica-técnica) entre Geografia e Direito como uma ferramenta interdisciplinar. É a convergência

do sistema mapa e do sistema norma, de forma a produzir uma linguagem unificada Mapa-Norma,

respeitada a dicotomia Sociedade-Natureza, que é neutra nesta dimensão. É o mapa com força

cogente e a Norma com critério espacial. Conforme descrito acima,185 não cabe ao geógrafo fazer

cartas, mas sim interpretá-las, assim como não cabe ao jurista fazer leis, mas interpretá-las. Logo,

geógrafos e juristas não são produtores do sistema Mapa-Norma, mas são diligentes usuários

destes instrumentos. Para Santos, B. (1988, p. 148), ao discorrer sobre estes sistemas referenciais,

as várias formas de Direito têm em comum o fato de serem mapas sociais que, assim como os

mapas cartográficos, recorrem aos mecanismos de escala, da projeção e de simbolização para

representar e distorcer a realidade.

185 Item 2.6.

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157

Dentro deste modelo simétrico, se há distorção por meio desta técnica, que cria um

modelo de referência, mas não a substitui, busca-se a instrumentalização de valores. Aqui repousa

o plano executório dos valores, a instrumentalização da solidariedade e da justiça, a representação

destes ideais como força propulsora de aprimoramento da sociedade. O mapa, em sentido amplo,

representa a solidariedade no espaço, como ela se faz presente, seja em forma de disposição de

recursos naturais para exploração humana, seja na disposição espacial da população, seja de uma

malha de transportes (p. ex., rodovia, ferrovia, hidrovia, aerovia, de energia elétrica, de gás, de

água etc.) ou em outra forma mensurável.

Assim, os mapas são um campo estruturado de intencionalidades, uma língua franca que

permite a conversa sempre inacabada entre a representação do que somos e a orientação

que buscamos. A incompletude estruturada dos mapas é a condição da criatividade com

que nos movimentamos entre os seus pontos fixos. De nada valeria desenhar mapas se

não houvesse viajantes para os percorrer. (SANTOS, B., 1988, p. 168).

Por sua vez, a norma, em sentido amplo, configura a justiça no Estado,186 seja no

exercício do Poder Executivo, seja na produção normativa de uma casa legislativa, seja no

cumprimento de decisão judicial.

Este conjunto de signos encontra uma função central no planejamento. A grande

atomização vivida pela Geografia Humana (Econômica, Urbana, Agrária, da Saúde, da Educação,

da Segurança, dos Transportes, da Energia, Jurídica etc.) e do Direito Administrativo (Econômico,

Urbanístico, Agrário, Sanitário, da Educação, dos Transportes, da Energia, Geográfico etc.) pode

ser sintetizada como o exercício de determinadas atividades, exercidas por autoridades

governamentais com determinadas competências, dentro de limites geográficos previamente

estabelecidos, que fomentam a equidade entre os cidadãos na busca da igualdade social do país.

Em outras palavras, a ferramenta geojurídica proporciona, de forma efetiva e não apenas

valorativa, a coesão social, por intermédio do sistema Mapa-Norma, que se utiliza do

planejamento187 das autoridades governamentais para instrumentalizar os valores geojurídicos.

186 Esta justiça no sentido empregado por Rawls, em que princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância

(ver item 2.2 acima). 187 “Desde sempre, a abstração da realidade urbana coexistiu com as atividades de planejamento de cidades sob a

forma de mapas, maquetes, planos e modelos. Exemplos de cidades deliberadamente planejadas permearam a história

da humanidade desde a Antiguidade, como, por exemplo, assentamentos hindus que remontam a 2600 a.C. ou as

cidades de Roma e da Grécia Antigas. Esse planejamento alcançou certa expressividade no Renascimento, mas a

afirmação do planejamento urbano como campo de atuação reconhecido somente se consolidou na segunda metade

do século XIX, a partir das reformas sanitárias de Londres e do redesenho de Paris pelo barão de Haussmann”.

(ALMEIDA; CÂMARA; 2009, p. 19).

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158

Do ponto de vista geográfico, o planejamento é a técnica que melhor expressa a prática

dessa ciência,188 uma vez que o ato de planejar tem forte apelo interdisciplinar, pois estimula novas

relações para a produção de um documento técnico de síntese.

Planejar significa elaborar planos de melhoria. Significa encontrar diretrizes para corrigir

os espaços mal organizados e improdutivos. Significa encontrar meios e propiciar

condições para interferir nos setores menos favoráveis de uma estrutura ou de uma

conjuntura. Significa criar recursos econômicos suficientes para melhorar as condições

de vida das coletividades humanas de uma região ou de um país. Significa aproveitar e

adaptar exemplos e padrões adequados, venham eles de onde vierem. Significa encontrar

fórmulas para um desenvolvimento regional harmônico. Significa modernizar e estender

o desenvolvimento por vastos espaços. Significa, enfim, afastar os fatores de inércia

cultural e econômica, e realizar um progresso globalizado, em curto espaço de tempo, e

à custa do melhor dos bom-sensos possíveis (AB’ SÁBER, 1969, p. 11-12).

Logo, a planificação pode ser caracterizada de diversas maneiras e todas apresentam

indubitavelmente componentes comuns,189 uma vez que deve ser entendida como sendo um corpo

de conhecimentos e práticas destinadas a orientar e permitir a tomada de decisões, geográficas e

jurídicas, de forma racional para melhor organizar e mobilizar recursos para instrumentalizar os

valores. O planejamento é organizado como uma disciplina voltada para produzir informações de

caráter sócio espacial, apresentadas como básicas do planejamento, nas quais “[t]ais informações,

recolhidas do ambiente físico-biológico e do meio socioeconômico, sempre encontram o seu lugar

na linguagem, no texto da disciplina e no trabalho cartográfico. O texto e o mapa” (HISSA, 1998).

Antas Jr. (2004, p. 81-86) explora pormenorizadamente a dimensão instrumental entre

Geografia e Direito Ao buscar conceber a norma jurídica a partir de suas dimensões comunicativa,

sancionatória e burocrática, concomitante a compreensão do espaço geográfico enquanto um

condicionador impregnado de intencionalidade, transpõe-se a produção de verdades formais e

superficiais que ideologizam a análise. A técnica e a norma, ambos especializados e produtores de

espacialidades, passam a ser categorias de estudo que conferem operacionalidade para a análise

dos processos sociais contemporâneos,190 de maneira que a rigidez da norma jurídica e da forma

geográfica, elemento que instrumentalizados se prestam a regulação, compõem parte de um

mesmo processo e produzem condicionamentos sobre a sociedade, funcionalizando-a para

diversos fins e direções distintas. Assim, Antas Jr. busca fundamentar que, respeitado o fato de a

188 Importante notar que, para a Geografia clássica, por se considerar um ramo científico de contato entre as disciplinas

que estudam a natureza e as sociedades, se auto-intitula uma ciência de síntese. 189 Conforme exposto por CERON; GERARDI, 1981, p. 108. 190 Para Antas Jr., as normas jurídicas produzem formas geográficas ou são produzidas por elas, para a realização de

funções diferentes na divisão social e territorial do trabalho. As fronteiras nacionais, os estados federados, os

municípios, a propriedade privada, a região administrativa etc. são formas jurídicas e também geográficas.

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159

norma jurídica ser um elemento central na produção de territórios, o espaço geográfico é fonte

material e não-formal do Direito, situação que justifica o estudo do Direito pelos geógrafos.

Entendemos que é fundamental para os geógrafos conhecer mais profundamente o direito,

pois assim nos é permitido aprofundar reflexões sobre um problema epistemológico

colocado por Milton Santos quando define o espaço geográfico como conjunto de

sistemas de objetos indissociáveis de conjunto de sistemas de ações. Há nessa formulação

dois elementos supostos com status epistemológico equivalente: a técnica e a norma. A

partir de cada uma é possível estabelecer recortes teóricos e objetos de pesquisa, mas a

análise geográfica exige o tratamento conjunto destes dois elementos (ANTAS JR., 2004,

p. 57).

Antas Jr., ao enunciar a possibilidade de estabelecer recortes teóricos e objetos de

pesquisa para a técnica (geográfica) e a norma (enquanto técnica jurídica), discorre sobre esta

forma interdisciplinar que corresponde a dimensão instrumental da Geografia e do Direito. Dentro

do modelo de Santos, M., o fato e o valor estariam contemplados no sistema de objetos, de forma

que a técnica estaria no sistema de ações. A ponte entre estes dois sistemas seria a neutralidade da

técnica perante a simetria Sociedade-Natureza,191 que para obter sentido precisaria ser valorada. A

energia nuclear não é boa nem ruim. Ela ganha significado a partir de sua aplicação, podendo ser

boa quando aplicada a tratamento de câncer, e sendo ruim na hipótese de vazamento radioativo de

usina nuclear. A espécie técnica é um instrumento de mediação entre fatos e valores, dependente

de intencionalidade para obter uma finalidade.

A divisão geojurídica do trabalho, por meio da simetria Solidariedade-Justiça, confere

esta finalidade a esta dimensão instrumental, com base na ferramenta do planejamento. Por

exemplo, o valor de igualdade entre os homens leva a busca da universalização dos serviços

públicos por meio da técnica da eletrificação, do saneamento, da telefonia, da saúde, da educação,

dentre outros, criando estruturas das cidades centrais até as periferias mais remotas, de forma a

conferir condições equânimes aos cidadãos de determinado país. Assim, o Estado é a principal

construção política, jurídica e social pela qual a sociedade se protege dos fatos da natureza e dos

valores de outros cidadãos, que porventura desejem, por interesses individuais, se sobrepor aos

valores coletivos ou difusos.

Logo, o planejamento federal, estadual, distrital e municipal devem agir em relação

aos seus territórios, regiões e localidades, de forma a identificar formas de instrumentalizar,

observado o pacto de gerações norteador da solidariedade e o conceito de justiça aplicável naquele

tempo e espaço.

191 Ver COELHO, 2014.

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160

FIGURA 40 - Caracterização da técnica geojurídica, multiplicado por n vezes (VGDn), com

objeto de estudo na criação de infraestrutura

FIGURA 41 - Caracterização da técnica geojurídica enquanto dimensão instrumental

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161

TABELA 25 - Exemplos de identificação de produção de infraestrutura como

base do sistema Mapa-Norma.

Enunciado instrumental do Geodireito (terceira regra):

Como para o Direito e Como para a Geografia

Objetivo: Criar políticas públicas (regulação) a infraestrutura geográfica

Demanda social

O que?

Objeto de estudo

técnica geográfica

Como?

(infraestrutura geográfica)

técnica jurídica

Como?

(infraestrutura jurídica)

técnica geojurídica

(produção de infraestrutura)

Ampliar o sistema

metroviário em São

Paulo

Produzir o mapeamento das possíveis rotas,

demonstrando o volume de pessoal alcançadas,

de forma a possibilitar a valoração da sociedade

de seus benefícios.

Aplicar e aprimorar a legislação

vigente, coibindo abusos, de forma a

viabilizar o empreendimento de forma

justa.

Cartografia refletir a decisão legal do traçado;

Lei contemplar o mapa do traçado. Mapa com

força cogente e norma espacializada.

Aprimorar o Registro

de imóveis (sistema

cartorário)

Produzir o Cadastro Territorial Multifinalitário,

demonstrando como os interesses urbanos,

rurais e ambientais interagem dentro de uma

mesma propriedade (justiça territorial).

Aplicar e aprimorar a legislação vigen-

te, coibindo abusos, de forma a viabili-

zar o Cadastro Territorial Multifina-

litário, previsto na legislação, de forma

justa (função social da propriedade)

Matrícula escriturada conter latitudes e

longitudes; lei obrigar georreferenciamento

para imóveis rurais, bem como o cadastro

territorial multifinalitário para imóveis urbanos.

Mapa com força cogente e norma espacializada.

Combater o

aquecimento global

Produzir o mapeamento dos focos de emissão

de CO² por meio de geotecnologias,

demonstrando as populações afetadas e formas

técnicas de combate a poluição.

Aplicar e aprimorar os tratados

internacionais, de forma a exercer o

poder coercitivo sobre os países mais

poluidores.

Sensoriamento remoto possibilita obter infor-

mação geoespacial para combate ao aqueci-

mento global. ONU pode promover tratados

internacionais para criar banco de dados

internacional de informações geoespaciais.

Mapa com força cogente e norma espacializada.

Combater o

desmatamento da

Amazônia

Produzir o mapeamento ambiental da área, de

forma a produzir um inventário de uma mesma

área em diferentes momentos históricos com o

uso de geotecnologias, monitorando

remotamente eventuais focos de desmatamento.

Aplicar e aprimorar os tratados interna-

cionais e as leis ambientais, de forma a

criar normas (e/ou instituições) supra-

nacionais, interestaduais e intermu-

nicipais que permitam o uso sustentável

e coordenado da floresta, coibindo

quem fizer mal uso dos recursos.

Sensoriamento remoto posibilita obter

informação geoespacial para combate ao

desmatamento. Lei orienta a Polícia Federal a

se utilizar de informação geoespacial para o

combate ao desmatamento. Mapa com força

cogente e norma espacializada.

Compreender a

anexação da Crimeia

pela Rússia

Levantar dados (p. ex., composição da

população, idiomas falado, maneira em que o

voto foi exercido etc.) sobre a vontade popular

de anexação, conferindo critérios objetivos para

verificar se esta anexação foi ou não legítima.

Aplicar os tratados internacionais ao

caso concreto, de forma a conferir a

comunidade internacional elementos

para compreender a legalidade da

anexação.

Dados geográficos orientarão decisão jurídica

se a anexação é legítima. Mapa com força

cogente e norma espacializada.

Controlar a alfândega

em Santana do

Livramento

Levantar dados (p. ex., compreender a divisão

do trabalho existente na localidade, o fluxo

turístico, comportamento da criminalidade etc.),

conferindo critérios objetivos para verificar

como se processa a integração regional.

Aplicar os tratados internacionais ao

caso concreto, de forma a conferir

àquela localidade elementos para

compreender a legalidade das relações

decorrentes da integração regional.

Dados geográficos orientarão a integração

política por meio de tratado internacional.

Mapa com força cogente e norma espacializada.

Criar zonas francas

Levantar dados (p. ex., como os subsídios

atraem capital para a localidade, analisar

aumento da criminalidade, fluxo de mercadoria,

aumento do PIB local etc.), bem como delimitar

espacialmente a localidade a ser

economicamente desenvolvida.

Aplicar o princípio da isonomia por

meio de regras de exceção tributárias,

incentivando o capital a investir naquela

localidade.

Dados geográficos orientarão o

desenvolvimento econômico por meio de

subsídios tributários geograficamente

localizados. Mapa com força cogente e norma

espacializada.

Explorar o Aquífero

Guarani

Produzir o mapeamento geológico da área, com

o uso de geotecnologias, monitorando

remotamente eventuais focos de poluição.

Criar normas (e/ou instituições)

supranacionais, conferindo segurança

jurídica que permita o uso sustentável

do recurso e coibindo quem fizer mal

uso dos recursos.

Sensoriamento remoto possibilita obter infor-

mação geoespacial para dimensionar volume de

água, qualidade e formas de extração, de forma

a orientar políticas públicas por normas. Mapa

com força cogente e norma espacializada.

Explorar petróleo na

plataforma marítima

Mapear geologicamente a área, com o uso de

geotecnologias, bem como levantar dados e

realizar simulações sobre como os royalties do

petróleo poderiam ser alocados na sociedade

brasileira.

Criar normas e regulações para

viabilizar o pleno funcionamento da

extração, transporte, refino e

distribuição do petróleo oriundo de alto-

mar.

Sensoriamento remoto posibilita obter infor-

mação geoespacial para dimensionar volume de

óleo, qualidade e formas de extração, de forma

a orientar políticas públicas por normas. Mapa

com força cogente e norma espacializada.

Fixar indicação

geográfica para o

açaí do Marajó

Levantar dados (p. ex., a origem da plantação,

as tradições envolvidas com o açaí, demonstrar

como a cadeia econômica se desenvolveu em

torno do produto, a repercussão espacial e

social do produto na região etc.).

Defender os interesses dos produtores

do açaí de Marajó nos foros nacionais e

internacionais

Dados geográficos orientarão o

desenvolvimento regional por meio de patente.

Mapa com força cogente e norma espacializada.

Gerir o Polígono das

secas

Produzir o mapeamento dos recursos naturais

da área, com o uso de geotecnologias, de forma

a levantar dados (p. ex., o acompanhamento da

evolução do PIB regional, as carências por

serviços públicos, a divisão do trabalho

existente etc.)

Aplicar e aprimorar a legislação

vigente, coibindo abusos, de forma a

fomentar o desenvolvimento regional de

forma justa.

Dados geográficos orientarão o

desenvolvimento regional por meio de normas

regionais. Mapa com força cogente e norma

espacializada.

Viabilizar a Região

Integrada de Desen-

volvimento do

Distrito Federal e

Entorno (RIDE)

Produzir o mapeamento dos possíveis limites

da RIDE, levantando dados (p. ex., divisão de

trabalho regional, fluxo econômico,

necessidade de transportes públicos, segurança

pública etc.) para justificar a opção técnica.

Aplicar e aprimorar a legislação

vigente, coibindo abusos, de forma a

viabilizar a metrópole brasiliense como

um conjunto normativo uniforme.

Dados geográficos orientarão o

desenvolvimento regional por meio de normas

metropolitanas. Mapa com força cogente e

norma espacializada.

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162

A linguagem192 e o planejamento são os instrumentos básicos que animam a simetria

Mapa-Norma. Neste plano, uma ciência enxerga a outra como suporte, base ou infraestrutura para

alcançar suas finalidades disciplinares. A Geografia compreende a norma como uma atividade-

meio de produção do espaço, um recurso, que em conjunto forma uma infraestrutura norteadora

do espaço enquanto fato geográfico. Por sua vez, o Direito estuda o mapa como uma atividade-

meio de edificação do Estado, uma matéria-prima, que quando em conjunto forma uma

infraestrutura balizadora do Estado enquanto fato jurídico. Assim, no plano instrumental, a

Geografia se transforma em uma infraestrutura do Direito na obtenção de justiça, ao passo que o

Direito se incorpora enquanto infraestrutura da Geografia na consecução de solidariedade

enquanto coesão espacial pela coercitividade. Assim, o objeto de estudo da técnica geojurídica

passa a ser a construção de infraestrutura geográfica e jurídica.

Ao pensarmos numa interdisciplinaridade entre Geografia e Direito com base na

técnica jurídica, deve-se considerar toda a revolução tecnológica, que transforma a cartografia em

um complexo projeto computacional, o sensoriamento remoto em uma poderosa ferramenta de

processamento de imagens e a ciência da computação em um meio de gerenciamento de banco de

dados com um volume de informações inimaginável antes do advento da internet.

Como se verifica abaixo, o mapa, enquanto pressuposto espacial, instrumentaliza o

critério espacial da sociedade, por meio da Geografia, ao passo que a norma instrumentaliza o

critério coercitivo da sociedade, por intermédio do Direito. A técnica geojurídica surge como uma

ferramenta fulminante de localização espacial e normativa, servindo de infraestrutura geojurídica

passível de regulação. Assim, o Geodireito consolida o instrumentalismo geográfico e jurídico,

cristalizando um enorme paradigma para a manutenção das liberdades individuais, elemento

indissociável para instrumentalizar o sistema Solidariedade-Justiça.

Logo, conceber a Geografia enquanto infraestrutura espacial, dotada de caráter oficial

e passível de universalização, é a base de uma renovada Geografia de Estado por meio do

Geodireito. Ao mesmo tempo, possibilita a concepção de um Direito Administrativo Geográfico,

de forma a organizar o território nacional. Deste modo, a dialética entre desenvolvimento

tecnológico e interesse público é uma constante na história das civilizações, sendo que o sistema

Mapa-Norma, com base no sistema Espaço-Estado e Solidariedade-Justiça pode-se configurar em

instrumento eficaz para alcançar o objetivo de intervenção nos interesses individuais, coletivos e

192 Conforme referido no capítulo 1.3 acima.

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163

difusos, com centralidade no Estado e com o objetivo de promover a mediação de interesses. Isto

posto, faz-se necessário compreender estes elementos enquanto uma teoria, com princípios

específicos, de forma a justificar a existência do Geodireito com base tridimensional.

3.4. A construção do Geodireito enquanto resultante interdisciplinar entre Geografia

e Direito

Na busca de se instrumentalizar o conhecimento de uma realidade específica - a

interdisciplinaridade entre Geografia e Direito -, cogita-se a hipótese de se estruturar uma teoria

do Geodireito que possa ser devidamente criticada, mesmo que, parafraseando Popper (1982), ao

tentar sistematizar algo sobre o mundo venhamos a descobrir que não sabemos muita coisa.193 No

centro desta construção está a preocupação de Claval (1978) em colocar, com centralidade, o jogo

de uma autoridade sem a qual não há construção política viável. E esta proposta de solução, por si

só, será imperfeita, por retratar uma realidade social igualmente imperfeita. Todavia, modelagens

deste tipo continuam a ser uma das melhores possibilidades de aproximação da realidade, pois

criam um sistema de referência, assim como o mapa e a norma são para Geografia e o Direito.

No intuito de sistematizar e consolidar esta interdisciplinaridade, com um sistema de

referência, define-se Geodireito como o ramo científico interdisciplinar, com base filosófica e de

cunho tridimensional, que tem como objeto de estudo a resultante das relações interdisciplinares

fenomenológicas, axiológicas e instrumentais entre a Geografia e o Direito, de forma a explicar o

critério espacial e coercitivo da sociedade, bem como suas relações com a natureza, promovendo

a mediação das pretensões espaciais e coercitivas nesta sociedade por meio de mecanismos

próprios.

Esta construção tem como ponto de partida as Ciências Sociais (fato social-valor

social-técnica social), que edificam mas não operam esta interdisciplinaridade. A identificação da

Geografia parte do critério espacial desta base social, sendo que a identificação do Direito emerge

do critério coercitivo da mesma base social. Estas relações identificam uma nova tríade de sistemas

interdisciplinares, ou geojurídicos, identificados por questionamentos disciplinares, obtendo como

resultado finalidades específicas. O quadro abaixo sintetiza esta sequência, que em última análise

culmina na identificação do objeto do Geodireito.

193 “Acredito que valeria a pena tentar aprender algo sobre o mundo, mesmo que, ao fazé-lo, descobríssemos apenas

que não sabemos muita coisa. Esse estado de ignorância conhecida poderia ajudar-nos, em muitas das nossas

dificuldades. Vale a pena lembrar que, embora haja uma vasta diferença entre nós no que respeita aos fragmentos

que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ignorância.” POPPER, 1982, p. 57.

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164

TABELA 26 - Construção do Geodireito com base tridimensional

Fato Valor Técnica

Dimensão

filosófica Fenomenologia

Axiologia

(culturalismo) Instrumentalismo

Relação

Sociedade-

Natureza

Natureza sobrepõe a

sociedade

Sociedade sobrepõe a

natureza Neutro

Ponto de partida Fato social Valor social Técnica social

Identificação da

Geografia Critério espacial Critério espacial Critério espacial

Identificação do

Direito Critério coercitivo Critério coercitivo Critério coercitivo

Sistema

geojurídico Espaço-Estado Solidariedade-Justiça Mapa-Norma

Questões

geojurídicas

Quem para a Geografia =

fato jurídico

Onde para o Direito =

fato geográfico

Fato geográfico +

Fato jurídico =

Fato geojurídico

Porquê para a Geografia =

valor jurídico

Quando para o Direito =

valor geográfico

Valor geográfico +

Valor jurídico =

Valor geojurídico

Como para a Geografia =

Técnica geográfica

Como para o Direito =

Técnica jurídica

Técnica geográfica +

Técnica jurídica =

Técnica geojurídica

Resultado (Objeto

do Geodireito) Escala de governança

Divisão geojurídica do

trabalho Produção de infraestrutura

Ao construir o Geodireito, enquanto sistema e com base tridimensional, obtém-se uma

interdisciplinaridade de síntese, que não precisa mais recorrer a particularismos para justificar sua

existência. Fato, valor e técnica estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão

da vida geográfica e jurídica, mantendo uma relação funcional e dialética, dada a ‘implicação-

polaridade’ existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta a infraestrutura espacial e coercitiva

enquanto solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de tempo. Nestes

termos, é possível vislumbrar um processo relacional dialético entre fato, valor e técnica no

Geodireito (FGDn, VGDn e TGDn), sendo o “n” a caracterização da reincidência das dimensões

de forma indeterminada, na qual o conjunto universo confere uma melhor noção de

tridimensionalidade.

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165

FIGURA 42 - Identificação das dimensões do Geodireito no modelo interdisciplinar entre

Geografia e Direito

Assim, o Geodireito é fundado na interdisciplinaridade entre Geografia e Direito,

onde: (i) a partir da simetria entre Geografia e Direito, fundado na fenomenologia filosófica, se

identifica o fato geojurídico, natural ou social, sendo que o natural, nesta dimensão, se impõe ao

social; (ii) a partir da simetria entre Geografia e Direito, com base no culturalismo filosófico, é

encontrado o valor geojurídico, sendo que o social, nesta dimensão, se impõe ao natural; e (iii) a

partir da simetria entre Geografia e Direito, fundada no instrumentalismo filosófico, identifica-se

a técnica geojurídica, sendo neutra a relação Sociedade-Natureza nesta dimensão.

As dimensões geojurídicas são projetadas de forma reflexa, tridimensional, na qual ela

pode ser vista em alinhamento com os demais eixos, quando na verdade ela está disposta de forma

triangular. Tanto na perspectiva da Geografia quanto do Direito, o Geodireito se apresenta com a

tríade fato-valor-técnica na base oposta ao eixo originário.

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FIGURA 43 - Dimensões do Geodireito representadas na base oposta ao eixo originário

Como em toda tridimensionalidade, a análise do Geodireito implica que os geógrafos

e os juristas não devem se manter presos a somente um, ou mesmo dois destes, devendo estar

constantemente vinculada à interpretação destas três características como um sistema. O

Geodireito não é só técnica por meio de infraestrutura espacial e coercitiva. Geodireito não é só

fato, pois não se resume a identificação corográfica de determinada realidade. Geodireito não se

resume a relações, mas delas participa, pois Geodireito não são Ciências Sociais, tampouco

Geopolítica. Geografia não é produção econômica, ou Geoeconomia, mas a suporta e nela interfere

por meio de relações cruzadas entre meios e fins. O Geodireito não é principalmente valor, rico

em percepções mas de frágil organicidade, porque o Geodireito é, concomitantemente, fato, valor

e técnica geojurídica.194 É a Teoria Tridimensional do Geodireito.

Desta forma, o Geodireito se constitui em ramo autônomo científico, tanto para a

Geografia quanto para o Direito. Na Geografia, o Geodireito deverá estudar o critério coercitivo

do ordenamento espacial, haja vista as diferentes escalas de governança, com base na divisão

geojurídica do trabalho e compreendendo a técnica jurídica enquanto infraestrutura coercitiva. Por

sua vez, no Direito, o Geodireito deverá estudar o critério espacial do ordenamento jurídico,

194 De forma análoga, REALE, 1986.

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167

considerada as diferentes escalas de governança, com base na divisão geojurídica do trabalho e

compreendendo a técnica geográfica enquanto infraestrutura espacial.

FIGURA 44 - Geodireito sob a ótica da Geografia

FIGURA 45 - Geodireito sob a ótica do Direito

Resta observar a matriz principiológica que norteia o Geodireito enquanto ramo

autônomo da Geografia e do Direito. Não se trata de identificar os princípios da Geografia ou do

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168

Direito, mas ir além, de forma a justificar a autonomia que se busca ao Geodireito enquanto sistema

tridimensional de síntese epistemológica interdisciplinar. Os princípios serão expostos em caráter

indicativo e não exaustivo, haja vista que apenas sintetizarão todas as características tratadas

acima.

a) Princípio da Simetria: A Geografia e o Direito devem estar no mesmo plano

epistemológico para a produção de interdisciplinaridade, tendo a mesma

morfologia científica, de maneira a possibilitar relações simétricas entre

ambas, possibilitando uma interdisciplinaridade sistemática, e não casuística.

A simetria presente na Física Quântica, em Montesquieu,195 que reflete o

princípio da separação de poderes, que devem ser equânimes e da mesma

dimensão e interdependentes, de forma que uma dimensão não possa excluir

as demais de sua composição passa a ser uma referência geojurídica, bem

como os quase-objetos aplicados por Latour a Antropologia, permite concluir

que o Geodireito aparece como resultante das projeções recíprocas entre

Geografia e Direito. Esta simetria se manifesta de diversas formas, seja em

relações bilaterais (sistema Sociedade-Natureza, sistema Espaço-Estado,

sistema Solidariedade-Justiça, sistema Mapa-Norma), seja em relações

trilaterais (fato-valor-técnica).

b) Princípio da Geometria (ou da tridimensionalidade): Ao se apresentarem

no mesmo plano epistemológico, a Geografia e o Direito projetam relações

tridimensionais entre si, que possibilitam a identificação de dimensões

geojurídicas. Dentre esta identificação, devem ser separadas as relações

cognitivas daquelas científicas, sendo que estas últimas produzem

interdisciplinaridade, que resultarão em uma nova tridimensionalidade,

secundária e geojurídica. Este princípio tem fundamento na geometria

euclidiana e cartesiana, que se alicerçam em questões de forma, de tamanho

e de posição de representações projetadas no espaço, bem como na Teoria

Tridimensional do Direito de Reale e no sistema de objetos e de ações de

Santos, M.

195 Conforme mencionado no item 1.1 acima.

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169

c) Princípio da Delimitação. Decorrente do exercício da técnica geográfica,

que adquire critério coercitivo por meio da técnica jurídica, fundamenta-se no

pensamento originado por Vallaux,196 de dar contornos, forma ao pensamento

humano, possibilitando uma espécie de organização mental dos fenômenos,

em diferentes escalas, para que seja possível valorá-lo no plano axiológico;

ou no pensamento de Castells, de conferir fixos e fluxos, enquanto fatos,

dados postos, em que seus contornos possibilitam se instrumentalizar o

exercício axiológico da sociedade. É o princípio que fundamenta a criação de

territórios, localidades e regiões, atribuindo critério espacial e submetendo a

determinados critérios coercitivos.

d) Princípio da preponderância natural no fato. A natureza sempre se

sobrepõe a sociedade no plano fenomênico. Engloba o conceito jurídico de

Força Maior (escola civilista francesa, que definiu o Force Majeure), e

parcialmente o Princípio da Atividade de Brunhes, que estabelece o caráter

dinâmico e temporal do fato geográfico.

e) Princípio da preponderância humana no valor. A sociedade sempre se

sobrepõe a natureza no plano axiológico, de forma a fomentar solidariedade.

De cunho hobbesiano e darwinista, engloba a busca da sobrevivência da

sociedade ante as vicissitudes da natureza.

f) Princípio da neutralidade da técnica. A técnica é neutra na relação

Sociedade-Natureza, sendo contextualizada pelo fato e valorada pela

axiologia. Com base em Ortega y Gasset, Heiddeger e Kapp, corresponde em

um processo empírico da sociedade em obter o máximo de rendimento

possível com o mínimo de gasto, na tentativa de superar os desafios da

natureza para manter sua sobrevivência dentro de um contexto solidário

(pacto de gerações) e justo (enquanto igualdade, ordem e liberdade).

196 Para Vallaux (1870), as coisas formam na realidade um todo sem solução de continuidade; elas não admitem outras

demarcações nem cortes, senão as divisões imaginadas por nós para aliviar um pouco nosso espírito e para impedi-lo

de se perder no inumerável”, uma vez que há no espírito e no olho humano uma geometria e uma estrutura particulares,

que não nos permitem perceber coisa alguma senão com linhas e com contornos definidos; quando estas linhas e estes

contornos não existem, nós os supomos.

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170

g) Princípio da escala de governança: A escala geográfica confere a

morfologia espacial para que a governança jurídica exerça legitimamente seu

critério coercitivo, produzindo fato geojurídico. Variável do Princípio da

Localização e do Princípio da Extensão de Ratzel, pois determina a área de

ocorrência para efeitos jurídicos, dimensionando o fenômeno na superfície

terrestre. Também decorre do where question do Law & Geography.197 O

método de localização compreende perguntar “onde” para o Direito e “quem”

para a Geografia, de forma a corografar a escala de governança.

h) Princípio da divisão geojurídica do trabalho. A solidariedade, enquanto

pressuposto temporal, quando projetada no espaço cria coesão espacial por

meio do pacto de gerações, fundado na justiça enquanto igualdade e

liberdade, ao passo que a justiça, enquanto ordem, possibilita o ordenamento

espacial de forma solidária, produzindo valor geojurídico. Variável dos

princípios iluministas e da divisão social do trabalho de Durkheim. O método

de identificação compreende perguntar “quando” para o Direito, para obter a

relação espaço-tempo por meio do pacto de gerações e da solidariedade, e

“porquê” para a Geografia, de forma a identificar a legalidade (ou ilegalidade)

de suas proposições.

i) Princípio da infraestrutura recíproca. A técnica geográfica, e a jurídica, se

manifesta por meio de infraestruturas, consubstanciado no sistema Mapa-

Norma. Para a técnica geográfica, a técnica jurídica é uma infraestrutura de

ordenação do espaço, por meio da norma e das demais fontes do Direito. Para

a técnica jurídica, a técnica geográfica é uma ferramenta de espacializar a

ordem, por meio do mapa e das demais técnicas da Geografia. Variável da

Geografia de Estado e do pretenso Direito Administrativo Geográfico.

197 “One simple way to conduct a geographical analysis of law is to ask the “where” question. When confronted with

a problem or issue, ask such questions as: where are the relevant events taking place? Where are the relevant actors

located? Where have they been? Where are they now? Where are they going? In examining the ‘where’ question,

what patterns or generalizations can we identify” AOKI, 2007, p. 511.

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171

Esta proposta principiológica pode ser disposta de maneira matricial, com o objetivo

de contextualizar, hierarquizar e relacionar as disciplinas, de forma a produzir o Geodireito

enquanto teoria tridimensional.

TABELA 27 - Construção matricial dos princípios do Geodireito

Fato Valor Técnica

Contextualiza Simetria Geometria Delimitação

Hierarquiza Preponderância

natural

Preponderância

da sociedade Neutralidade

Relaciona

Geo e Jus

Escala de

governança

Divisão geojurídica

do trabalho

Infraestrutura

Recíproca

Ante estes princípios, que justificam a existência do Geodireito enquanto ramo

autônomo da Geografia e do Direito, há um cenário de alta mutabilidade tecnológica e social. No

caso brasileiro, decifrar a quadra poliesportiva, a complexidade de sua orquestra ou seu pluralismo

jurídico passa a ser um desafio análogo ao exercido pelos antigos sacerdotes egípcios, de guardiões

dos segredos das ciências e de suas aplicações, pois, somente no Brasil, devem desvendar a arte

de dirimir interesses entre a União, 26 Estados, o Distrito Federal e 5.570 municípios que,

sobrepostos espacialmente e em suas competências, devem coexistir concomitante a ordem

internacional e a regional. Como a história do Brasil registra este exercício, sem a possibilidade

de milagres que os sacerdotes egípcios continham?

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4. APLICAÇÃO DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO GEODIREITO A

GEOGRAFIA DE ESTADO NO BRASIL

Aplicar a Teoria Tridimensional do Geodireito a Geografia de Estado no Brasil

corresponde a buscar a comprovação de que o Geodireito, enquanto resultante da tríade fato-valor-

técnica entre a Geografia e o Direito, é um poderoso instrumento de explicação de como foi

conferido critério coercitivo ao critério espacial brasileiro ao longo da história. Trata-se de

verificar como foram realizadas políticas públicas com base espacial, analisando a repercussão das

diversas escalas de governança, por meio da infraestrutura geográfica e jurídica, com a meta de

alcançar uma divisão geojurídica do trabalho no Brasil.

O método de análise do Estado brasileiro será historiográfico, que se funda na busca

da Geografia oficial, ou seja, dos atos normativos que sugerem a existência da Geografia de Estado

na história do Brasil, com estudo de caso em normas expedidas desde a Proclamação da

Independência, que analisará como o critério espacial se manifestou, e se torna presente, no Direito

brasileiro por meio da norma. Será proposta uma divisão cronológica em cinco fases, de forma a

identificar mecanismos geográficos e jurídicos uniformes dentro de cada período, reforçando a

percepção da infraestrutura recíproca, ou seja, a identificação do sistema Mapa-Norma que anima

o território nacional. Esta premissa funda-se no ensinamento de Santos, B., que compreende a

norma em sentido mais amplo, albergando outras fontes do Direito.

São vários os modos de imaginar e representar o espaço. Dentre eles, seleciono os mapas

e, nestes, os mapas cartográficos. Parto deles para analisar um fenómeno marcante do

Estado e da sociedade modernos, o direito. A comparação proposta é, pois, entre mapas

e direito. O direito, isto é, as leis, as normas, os costumes, as instituições jurídicas, é um

conjunto de representações sociais, um modo específico de imaginar a realidade que, em

meu entender, tem muitas semelhanças com os mapas. (SANTOS, B., 1988, p. 141).

E esta interação entre mapas e normas podem ser identificadas desde os primórdios da

construção geográfica e jurídica brasileira, que demonstram como o critério espacial se manifesta

no Direito brasileiro. Antes da Proclamação da Independência, a exploração de recursos naturais

conduzia toda a lógica do ordenamento espacial do Brasil, enquanto colônia portuguesa e

espanhola.198 E esta característica foi determinante para constituir a divisão geojurídica do trabalho

do país.

198 Vide união ibérica entre 1580 e 1640.

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173

Em um momento em que a escala de governança no Brasil era colonial, obedecendo a

lógica normativa da metrópole européia, as Ordenações Manuelinas proibiam, em 1548, a caça de

perdizes, lebres e coelhos199 e tipificava o corte de árvores frutíferas como crime.200 Após 1548, o

Governo Geral passou a expedir regimentos, ordenações, alvarás e outras normas que identificam

a nascente do que viria a se denominar Geografia do Meio Ambiente ou o Direito Ambiental. As

Ordenações Filipinas, impressas por Filipe II em 1603, disciplinaram questões ambientais de

forma esparsa,201 uma vez que objetivava proteger e reservar mercado desta importante matéria-

prima pela Coroa, conferindo àquela atividade econômica uma nova divisão social do trabalho,

qual seja, produzir para centralizar as benesses econômicas na metrópole (HASSLER, 2005, p.

82). Já era possível verificar o modelo de relacionamento entre Direito e Economia na colônia,

uma vez que o mercado utilizava a Coroa para alcançar seus objetivos de produzir lucro,

principalmente pela concessão de capitanias hereditárias, de forma que a Coroa se utilizava do

lucro do mercado para atender suas demandas sociais, de conferir cobertura territorial aos

desígnios da metrópole.

Magalhães (1998, p. 26-27) observa que a primeira lei de proteção florestal teria sido

expedida em 1605, denominada “Regimento do Pau-Brasil”, e que impunha a autorização real para

o corte dessa árvore, um século depois do início de sua exploração comercial. Há uma notoriedade

sobre a importância histórica da exploração do Pau-Brasil para a metrópole portuguesa.

Colonizar a nova terra seria dispendioso, sem lucro imediato. Portugal, no auge de sua

técnica de navegação, de posse de feitorias fincadas em vastíssimas costas de oceanos,

não tinha recursos humanos, com uma população estimada em um milhão de habitantes.

Impunha-se uma atitude predominantemente fiscal. Havia o quê? Havia macacos,

papagaios, selvagens nus e primitivos. Mas havia pau-brasil (SIMONSEN, 1978, p. 120).

Com o tempo, a necessidade de exploração de recursos naturais pela metrópole impôs,

como consequência, o desenvolvimento de núcleos urbanos que pudessem suportar esta atividade.

As Ordenações Filipinas traziam também esta preocupação, sendo igualmente identificada como

a origem do Direito Urbanístico no Brasil (SILVA, J. A., 2006, p. 36; DI SARNO, 2004, p. 10),

podendo, de forma análoga, ser igualmente apontada como a origem da Geografia Urbana no país.

O urbanismo é costumeiramente definido como atividade relacionada ao estudo, regulação,

controle e planejamento do processo de urbanização, que por sua vez é um fenômeno estudado por

diferentes ramos científicos. Tal processo pode ser analisado, sob a ótica local, mediante três

199 Livro V, no título LXXXIII. 200 Título “C”. 201 Livro I, título LVIII; livro II, título LIX; livro IV, título XXXIII; livro V, títulos LXXV e LXXVIII.

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estágios: (i) vilarejo; (ii) cidade; e (iii) aglomerações. Cada uma dessas dimensões tem sua

estrutura própria e cada tipo de estrutura só é válida dentro de certos limites de tamanho.

Em nível do vilarejo, a estrutura permanece reduzida à existência de um pequeno

núcleo (praça, cruzamento de vias, igreja, prefeitura) e de uma trama residencial (residências ou

chácaras). No que concerne ao plano urbano, o centro que serve de núcleo único para a trama

torna-se insuficiente. Surgem núcleos secundários ao redor dos quais gravitam bairros que

correspondem a diferenciações no interior da cidade. Na etapa da aglomeração, a capacidade

coordenadora do centro e seu poder de atração sobre os núcleos secundários tornam-se

insuficientes. Vários centros, correspondendo cada um deles a uma unidade urbana, passam a ligar-

se por um laço de natureza federal.

O urbanismo se desenvolveu em seus primórdios como uma técnica de embelezamento

das cidades, sendo que a preocupação sanitária e de direitos humanos adviria apenas com o

tempo.202 O Estado passou, no século XVIII, a se responsabilizar pela saúde do povo, haja vista

que, com a nova divisão de trabalho decorrente da Revolução Industrial, os operários passam a

viver próximos da burguesia. Nesse sentido, a população passa a reivindicar que o Estado,

idealmente acima dos interesses dos industriais, se responsabilizasse pela fiscalização das

condições de saúde no trabalho.

Na Inglaterra, centro irradiador desta Revolução Industrial, houve uma profunda

reorganização da mão-de-obra local para viabilizar linhas de redução cada vez mais complexas.

Esta revolução teve como uma de suas principais consequências o crescimento exponencial da

população urbana em proporção superior ao crescimento da população rural,203 bem como

movimentos de reivindicação de direitos. Nos Estados Unidos, por sua vez, houve a libertação dos

colonizadores, por intermédio da Declaração de Direitos da Virgínia, de 12 de janeiro de 1776. A

França, de forma a contribuir com a conceituação de dignidade humana, declarou os Direitos do

Humano e do Cidadão em 26 de agosto de 1789.

Com todo este cenário construído na realidade ocidental, o primeiro instrumento de

intervenção urbana, enquanto norma exercendo seu critério coercitivo no espaço, foi o Código

Civil francês de Napoleão, de 1804. Ele consagrou, como princípio, a legitimidade da limitação

do Estado sobre a propriedade, de forma a ser uma espécie de origem do Direito Privado.204 As

202 Meirelles (2005, p. 376) afirma que o Direito Urbanístico sofreu uma profícua evolução do estético para o social.

Isto é, houve uma substituição da premissa do embelezamento, da monumentalidade, para o planejamento que almeja

a unidade entre a natureza e o ser humano, de forma a aproximar e relacionar a cidade e o campo para obtenção do

bem-estar da coletividade em todos os espaços habitáveis. Tal definição é importante para conferir a dimensão

interdisciplinar que aponta a dicotomia cidade-campo enquanto urbano-rural. 203 Medauar (2000, p. 133-139) entende que o Direito Urbanístico passou a ter uma concepção ampla do ponto de

vista humano e social, para melhorar a qualidade de vida do homem nas cidades. 204 Corrobora com este entendimento Di Pietro, 2012, p. 117.

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mesmas forças napoleônicas ocuparam a península ibérica, de forma a intensificar os movimentos

separatistas na América, que em última análise tornaram o Brasil autônomo, em 1808, com a vinda

da família real para o Rio de Janeiro, e independente em 1822, situação reconhecida por Portugal

apenas em 1825.

Neste sentido, propõe-se abaixo realizar uma divisão historiográfica da Geografia de

Estado do Brasil, de forma a simplificar e homogeneizar a compreensão de como a relação do

Brasil com seu espaço nacional se orientou ao longo do tempo. Conforme lembra Telles (1984, p.

75), este corte historiográfico não ocorreu sem obstáculos ou diferenciações, mas contribui para

iluminar a forma que o Estado brasileiro atribui valor geográfico, jurídico e geojurídico as suas

potencialidades políticas, econômicas e sociais.

4.1. A Geografia na Monarquia: a centralização monárquica, o IHGB e o DGE (1822

- 1889)

Com o Rei na América, a progressiva dinamização da economia, decorrente da

abertura dos portos em 1808, possibilitou que o Brasil iniciasse um processo de descentralização

de comarcas enquanto critério espacial para o exercício da justiça enquanto instrumento de Estado.

Esta política foi mantida após a independência e possibilitou que a monarquia constitucional

brasileira pudesse começar a organizar seu território por meio do mapa e da norma. Afinal, se ir e

vir era um direito, os cidadãos somente conseguiriam exercê-lo ao conhecer o onde, elemento

imprescindível para reconhecer este território que passara a ser o centro do império português em

1808 e, ato contínuo, país independente em 1822.

Historicamente, a base política e jurídica do Brasil consiste em sua Constituição. Esta

norma é a base do Estado de Direito, e fundamenta os direitos e as garantias que um povo pretende

exercer, de maneira soberana, no interior de seu território. Conforme defende Kelsen, se a

Constituição é uma norma hipotética fundamental, para efeito de edificação do Geodireito esta

norma não deve ser compreendida em sua repercussão estritamente jurídico-positiva, mas na sua

dimensão jurídico-epistemológica, de maneira a atribuir, em abstrato, todas as dimensões espaciais

necessárias para estruturar o critério coercitivo de um Estado.

Ao identificar a Constituição como a norma hipotética fundamental do Brasil, a

primeira Constituição, de 1824, logo em seu segundo artigo, foi pródiga em demonstrar a relação

geográfico-jurídica, sendo que as antigas capitanias passaram a serem denominadas províncias.

Interessante notar que não é claro qual foi o mapa utilizado para instrumentalizar o mandamento

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abaixo, que viabiliza as províncias na forma em que se encontravam, de forma a sugerir que a

ausência de uma cartografia oficial está na gênese da constituição do Estado brasileiro.

Art. 2. O seu territorio é dividido em Provincias na fórma em que actualmente se acha, as

quaes poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado.

Em que pese a ausência de uma cartografia oficial que pudesse dar plena eficácia ao

art. 2° acima, pode-se inferir que Brasil era aquele retratado pela Constituição de 1824,

demonstrando a forma de exercício de sua coesão interna, as descentralizações oriundas da escala

de governança, de forma a produzir a divisão geojurídica do trabalho por meio do sistema Mapa-

Norma.

O critério espacial também pode ser identificado na Constituição de 1824 no art. 81

que, ao versar sobre os “Conselhos Geraes de Provincia, e suas attribuições”, descentraliza o

direito de deliberar sobre projetos peculiares as localidades.205 É importante frisar que, apesar de

existirem municípios no período monárquico brasileiro,206 a localidade foi uma expressão

empregada para que as províncias legislassem sobre o interesse do lugar, a menor escala de

governança então constituída, e dependiam de posterior regulamentação.

Em outra passagem desta Constituição, em seu art. 179, estava presente a

inviolabilidade dos direitos civis, e políticos, com base na liberdade, inclusive a de locomoção.

Logo, o Império brasileiro garantia o direito de ir e vir ao satisfazer a necessidade de seus cidadãos

de conhecimento do território. Desde então, tal direito de locomoção esteve presente, em maior ou

em menor grau, em todas as constituições brasileiras.

Ao convalidar as províncias, conforme se encontravam, D. Pedro I começou um

processo de reconfiguração do território nacional, por meio de legislação infraconstitucional.

Houve dois grandes marcos em sua gestão: o desmembramento da comarca do rio São Francisco

de Pernambuco, mediante imediata anexação à Bahia, por meio do Decreto s/n de 7 de julho de

1824; e o Tratado do Rio de Janeiro, firmado em 28 de agosto de 1828, que culminou na

independência da província Cisplatina que se tornou o Uruguai, consequência direta do

insulamento da Colônia do Sacramento (HOLANDA, 2003, p. 391).

205 Art. 81. Estes Conselhos terão por principal objecto propôr, discutir, e deliberar sobre os negocios mais

interessantes das suas Provincias; formando projectos peculiares, e accommodados ás suas localidades, e urgencias. 206 Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se crearem haverá Camaras,

ás quaes compete o Governo economico, e municipal das mesmas Cidades, e Villas. Art. 168. As Camaras serão

electivas, e compostas do numero de Vereadores, que a Lei designar, e o que obtiver maior numero de votos, será

Presidente. Art. 169. O exercicio de suas funcções municipaes, formação das suas Posturas policiaes, applicação das

suas rendas, e todas as suas particulares, e uteis attribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar.

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MAPA 2 - Brasil na Constituição de 1824

Fonte: ANJOS, 2014, p. 61

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Estas reconfigurações obedeciam a duas lógicas: uma internacional, fundado no

conflito de interesse com os países vizinhos, que no limite viabilizaram a independência uruguaia;

e outra nacional, que impunha a necessidade de viabilizar um país que beirava 3,5 milhões de

habitantes, com a estimativa de 70% de mão-de-obra escrava. Logo, em um ambiente de baixa

densidade demográfica e fartos recursos naturais, D. Pedro I demonstrou enorme preocupação em

levantar informações sobre o território e a população, aliada a iniciativa privada, situação que

encontrou respaldo nos conceitos geográficos, e no critério espacial, previstos na norma

constitucional.

O desenvolvimento da Geografia de Estado no Brasil encontrou no início do período

monárquico forte repercussão. D. Pedro I foi o primeiro governante a legislar sobre a necessidade

de se viabilizar a técnica geográfica enquanto política pública, que buscou alcançar este objetivo

por meio da criação de uma comissão de estatística geográfica e natural, política e civil. Este órgão

seria subordinado ao Secretário do Estado do Império, espécie de Casa Civil imperial, que teria o

poder de regulamentá-lo por despachos, ou seja, regulá-lo por normas infralegais.

DECRETO DE 25 DE NOVEMBRO DE 1829

Crêa nesta Côrte uma commissão de Estatistica geographica e natural, politica e civil.

Sendo reconhecida a necessidade de organisar-se a Estatistica deste Imperio pelas

vantagens, que do seu exacto conhecimento devem resultar para os trabalhos da

Assembléa Geral Legislativa, e para os actos do Poder Executivo: Hei por bem crear nesta

Côrte uma commissão de Estatistica geographica e natural, politica e civil; e nomear para

ella as pessoas constantes da relação junta, que com este baixa assignada por José

Clemente Pereira, do Meu Conselho, Ministro e Secretario do Estado dos Negocios do

Imperio, que assim o tenha entendido, e faça executar com os despachos necessarios.

Palacio do Rio de Janeiro em vinte e cinco de Novembro de mil oitocentos vinte e nove,

oitavo da Independencia e do Imperio. [...]

O texto normativo, como se não bastasse sua vanguarda geográfica e jurídica, foi

sucedido por outro que buscava criar uma infraestrutura geográfica, por intermédio da

universalização do conhecimento cartográfico nacional. Para tanto, buscava-se expandir o parque

gráfico, assim como a criação da obrigatoriedade de que as cartas fossem comercializadas a preços

módicos, como se direito essencial de todos os cidadãos fosse. Em outras palavras, a difusão de

mapas na Coroa estava atrelada a capacidade de ir e vir da população, direito fundamental tão caro

em todas as sociedades contemporâneas, que com os mapas saberiam para onde estavam se

direcionando. Era a universalização da informação espacial pelo Estado, concomitante a imposição

de sua comercialização a preços razoáveis.

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DECRETO DE 14 DE JUNHO DE 1830

Autoriza o governo a augmentar e aperfeiçoar a officina lithographica de propriedade

do Estado.

Hei por bem Sanccionar, e Mandar que se execute a Resolução seguinte da Assembléa

Geral Legislativa:

Art. 1º O Governo fica autorizado para augmentar, e aperfeiçoar a officina lithographica.

Art. 2º Entre os mappas topographicos, corographicos, geographicos, e hydrographicos

do Imperio, que se acham actualmente no archivo do imperial corpo de Engenheiros, e

no das Secretarias de Estado, e os que forem de ora em diante mandados levantar pelo

Governo em qualquer parte do territorio do Imperio, escolher-se-hão os melhores para

serem immediatamente lithographados, e distribuídos pelas Provincias, para alli serem

expostos á venda por preços razoaveis. [...]

Todavia, esta política pública, com base na Geografia enquanto infraestrutura de

ordenamento espacial do Estado, não teve maiores desmembramentos. Ela foi fulminantemente

afetada com a abdicação de D. Pedro I dez meses depois, em abril de 1831. Ato contínuo, com o

advento da Regência Imperial (1831 - 1840), pode-se afirmar que a Cartografia começou a obter

caráter aplicado no Brasil, iniciado com o mapeamento dos rios da província de Minas Gerais,207

com finalidade eminentemente de escoamento da produção mineral. A técnica geográfica,

efetivada por meio da cartografia, passa a ser uma atividade-meio no desenvolvimento do país,

enquanto especialização da Engenharia, requalificando definitivamente a noção de infraestrutura

geográfica.

Mas a Regência Imperial não estava alheia a necessidade de desenvolver o ensino da

Geografia. E a fez por meio da corografia, enquanto fato geográfico. Geografia e fato geográfico

eram confundidos como uma coisa só, servindo de instrumento para que o Estado promovesse

conhecimento (e não ciência) dos cidadãos perante seu território. Ao menos duas normas, o

Decreto n° 16, de 26 de julho de 1833,208 que criou a cadeira de Geografia no Piauí, bem como o

207 Decreto s/n, de 12 de agosto de 1831: Manda que na Provincia de Minas Geraes haja dous Engenheiros

encarregados de levantar plantas de todas as estradas e rios navegaveis.

A Regencia, em Nome do Imperador o Senhor D. Pedro II, Ha por bem Sanccionar, e Mandar que se execute a seguinte

Resolução da Assembléa Geral Legislativa, tomada sobre outra do Conselho Geral da Provincia de Minas Geraes:

Artigo unico. Na Provincia de Minas Geraes haverão dous Officiaes de Engenharia, encarregados de levantarem

plantas de todas as estradas e rios navegaveis; e de facilitarem os meios de seus melhoramentos; os quaes serão

propostos pelo Presidente em Conselho, sendo pelo mesmo Presidente em Conselho despedidos do serviço da

Provincia, logo que se verificar que não têm a necessaria aptidão para as commissões, que se lhes incumbirem.

José Lino Coutinho, do Conselho do mesmo Imperador, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Imperio, o

tenha assim entendido, e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em doze de Agosto de mil oitocentos trinta e um,

decimo da Independencia e do Imperio. [...] 208 DECRETO N° 16 - DE 26 DE JULHO DE 1833

Crêa na Capital da Provincia do Piauhy uma cadeira de francez e geographia.

A Regencia, em Nome do Imperador o Senhor D. Pedro II, Ha por bem Sanccionar e Mandar que se execute a seguinte

Resolução da Assembléa Geral, tomada sobre outra do Conselho geral da Provincia do Piauhy:

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Decreto n° 2, de 20 de junho de 1834, que criou a cadeira de Geografia em Goiás, demonstram o

interesse governamental em descentralizar este ramo científico, levando estes conhecimentos para

as províncias.

A instrumentalização da Geografia pelo Estado, decorrente da necessidade de

centralização do poder na figura do rei, ganha novos contornos em 1838, com a criação do Instituto

Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Muito mais com atribuições de estudo e divulgação de

informações geográficas, se diferenciava da comissão de estatística geográfica e natural, política

e civil, criada por D. Pedro I, por não ser um órgão de regulação do espaço, mas de estudo e

disseminação de conhecimento do espaço.

E estas informações eram fundamentais para viabilizar o planejamento do Segundo

Reinado. Após à assunção do trono por D. Pedro II, em 1840, busca-se um processo de legitimação

da única monarquia das Américas,209 que passa a utilizar da economia como meio para promoção

de cidadania, dentro do seguinte cenário: (i) o café era o principal produto de exportação do país;

(ii) a indústria açucareira no Nordeste encontrava-se em declínio; (iii) o algodão contava com um

crescimento cíclico pela alta aderência ao mercado norte-americano, que muito importava por

conta da Guerra da Secessão (1861 - 1865); (iv) o surto industrial ocasionado pelos investimentos

diretos da Inglaterra;210 e (v) com o fim do tráfico negreiro internacional,211 que acabou por desviar

recursos para áreas de produção. O país passava a ter condições objetivas de incentivar a indústria,

independentemente da origem do capital, mas era inviável implementar grandes investimentos em

infraestrutura se a mão-de-obra, escrava, não era remunerada e, por conseguinte, não poderia

usufruir das benesses que a industrialização conferia.

No Segundo Reinado, o IHGB buscou formar cientistas em História Natural (que

envolve a Geologia) e em Geografia. Em 1842 foi criada a Seção de Mineralogia, Geologia e

Ciências Exatas no então Museu Imperial.212 No ano seguinte, foi instituída a Seção de

Agricultura, Mineração, Colonização e Civilização dos Indígenas na Secretaria de Estado dos

Negócios do Império.

Mas a Geografia de Estado no Segundo Reinado começava a enfrentar um primeiro

grande desafio na reprodução do critério espacial na política pública agrária. Houve a publicação

de algumas normas no início da década de 1850 que, à primeira vista, pouco teriam em comum,

Artigo unico. Além das cadeiras de rhetorica, e philosophia, fica igualmente creada na Capital da mesma Provincia

uma outra cadeira de francez, e geographia, cujo Professor vencerá tambem o ordenado de 600$000 annuaes, attenta

a posição central da mesma Provincia, e carestia de todos os viveres, sendo mandada pôr a concurso mesmo na Côrte

do Rio de Janeiro, visto que na Provincia não ha absolutamente quem a ella se opponha. [...] 209 Ressalvado breve período monárquico no México. 210 Lei das S.A. inglesa (1853). 211 Lei Eusébio de Queiroz, de 1850. 212 O Museu Real no Rio de Janeiro foi criado em 1818.

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mas que foram percebidas em conjunto pela população, situação que no limite inviabilizou a

primeira tentativa de conhecimento do país por meio de recenseamento:

(i) Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850 (Lei Eusébio de Queirós), que

estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos neste império.

Houve a interrupção do tráfico internacional, mas se manteve inalterado o

tráfico nacional;

(ii) Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras), que criou uma espécie

de ratificação do regime das posses, por meio de um realinhamento das

sesmarias, de forma a viabilizar um cadastro de terras no Brasil. Todavia, não

houve a necessária sistematização das informações, situação que dificultou a

individualização de direitos e deveres perante as propriedades. O critério

coercitivo existia enquanto fixação de um direito, mas a mediação deste

direito perante os demais direitos dispostos em critérios espaciais ambientais,

urbanos ou em infraestrutura não foi realizado via normativa e se transformou

em objeto de pesada judicialização;

(iii) Lei nº 586, de 6 de setembro de 1850, que ao reger o orçamento para 1851 e

1852, autorizou o governo a despender o que fosse necessário para realizar,

no menor prazo possível, o primeiro213 censo geral do Império,214 com

especificação do que respeita a cada uma das províncias, bem como

estabelecer registros regulares dos nascimentos e óbitos anuais (art. 17, § 3º);

e

(iv) Decreto nº 797, de 18 de junho de 1851, que criava diversas competências

decorrentes da escala de governança215 em que fosse aplicado o censo.

213 Alguns textos mencionam que, em 1846, foi elaborado o primeiro regulamento censitário. Todavia, não foi

identificada normativa federal sobre o tema. 214 Importante destacar que foram realizados vários censos de caráter estadual ou municipal antes de 1850. Como

exemplo, aqueles realizados no Rio de Janeiro (1799, 1821, 1838 e 1849); em São Paulo (1765, 1777, 1798 e 1836);

e em Minas Gerais (1832). 215 Art. 1º Haverá na Capital do Imperio hum Director Geral do Censo, ao qual competirá:

1º Formar o mappa geral da população do Imperio;

2º Fazer o alistamento especial do Municipio da Côrte

3º Decidir as duvidas que occorrerem no processo do alistamento;

4º Requerer ao Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios do Imperio as providencias necessarias para a formação

do Censo;

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Em que pese o amplo critério coercitivo, o Decreto n° 797, de 1951, ficou conhecido

como a “Lei do Cativeiro”, haja vista a crença de que era um ato contínuo da Lei Eusébio de

Queirós, de 1850, que acabava com o tráfico negreiro. Logo, uma vez terminado o tráfico, a

população acreditava que o censo seria uma forma de mapear e recuperar ao sistema escravagista

ampla parte da população que estaria marginalizada pelo Estado ou pelos agricultores, de forma a

suprir as necessidades de mão-de-obra no campo. Resta fácil constatar o insucesso desta iniciativa

governamental.

Nos anos seguintes, não houve grandes inovações na Geografia de Estado, nos quais

se destacam as seguintes ações: (i) a busca de operacionalização da Lei de Terras, conferindo

títulos as propriedades; (ii) a produção de conhecimento geográfico por meio do IHGB; (iii) a

disseminação do ensino da Geografia;216 e (iv) a criação da província do Paraná como

consequência do desmembramento da porção sul da província de São Paulo, por meio da Lei nº

704, de 29 de agosto de 1853.

Os esforços imperiais prosseguiram no sentido de promover um recenseamento no

Brasil. Este esforço, vinte anos depois da primeira tentativa de recenseamento no Segundo

Reinado, culminou em um novo marco regulatório geográfico, que aprimorou o anterior ao mesmo

tempo que se precaveu de eventuais ligações sociais com o regime escravagista, conforme ocorrido

com a Lei do Cativeiro. Não coincidentemente, a regulamentação do censo ocorre apenas após a

Guerra do Paraguai (1864 – 1870), como forma de compreender como estava composta a

população brasileira no pós-guerra.

5º Expedir ordens para a boa execução deste Regulamento;

6º Em geral, regular os trabalhos concernentes ao Censo, entendendo-se directamente com os Directores Provinciaes;

7º Propor ao Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios do Imperio as modificações de que carecer este

Regulamento.

Art. 2º Em cada Provincia do Imperio haverá hum Director do Censo Provincial, ao qual competirá:

1º Formar o Censo da Provincia;

2º Requerer ao Presidente da Provincia as medidas necessarias para a prompta organisação do Censo Provincial;

3º Expedir ordens, e executar as que lhe forem dirigidas pelo Presidente da Provincia, e Director Geral do Censo, na

fórma deste Regulamento;

4º Propor ao Director Geral do Censo as modificações, de que carecer este Regulamento, segundo as circunstancias

especiaes das Provincias.

Art. 3º Haverá em cada Municipio hum Director, nomeado pelo Presidente da Provincia sob proposta do Director do

Censo Provincial; e em cada Freguezia hum Commissario tambem nomeado pelo Presidente, ouvido o Director do

Municipio. Na Côrte serão estes empregados nomeados pelo Ministro do Imperio sob proposta do Director Geral.

Art. 4º Compete ao Director Municipal:

1º Formar o Censo do Municipio;

2º Requerer ao respectivo Director Provincial (ou ao Geral no Municipio da Côrte) as medidas que julgar necessarias

para melhor desempenho de seus deveres;

3º Propor aos referidos Directores Geral ou Provinciaes as modificações de que carecer este Regulamento segundo as

circumstancias locaes do Municipio. 216 Como exemplo, em 1859, o Decreto n° 2.335, de 8 de janeiro, criou a cadeira de Geografia no Rio Grande do Sul.

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(i) Lei nº 1.829, de 9 de Setembro de 1870: regulamenta o recenseamento da

população do Império, e prevê o prazo decenal para sua ocorrência (art. 1°);

(ii) Decreto n° 4.676, de 14 de janeiro de 1871: cria a Diretoria Geral de Estatística

– DGE, sendo a instituição estatística nacional, que viabilizou o primeiro plano

estatístico brasileiro;

(iii) Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre): filhos de

escravos passariam a nascer alforriados; e

(iv) Decreto n° 4.856, de 30 de dezembro de 1871, manda proceder, em execução

do artigo 1º da Lei n° 1.829, de 1870, o primeiro recenseamento da população

do Império. Este Decreto foi capitaneado por José Maria da Silva Paranhos,

que viria a ser o Barão do Rio Branco, que desde 1863 lecionava na Escola

Central sobre “Economia Política, Estatística e Princípios de Direito

Administrativo”.

Interessante notar que o art. 4° do Decreto n° 4.676, de 14 de janeiro de 1871, expõe

o critério espacial a ser obedecido pela Geografia de Estado no Brasil, consolidando o pensamento

do Império em relação a divisão administrativa territorial, ao sistema cartorário, as comarcas

judiciais e dos colégios eleitorais.

Art. 4º Os trabalhos concernentes ao territorio devem comprehender, além da situação

geographica do Imperio, determinada pela longitude e latitude de seus limites conhecidos:

1º A divisão administrativa actual em provincias e municipios, ou as que de futuro se

estabelecerem;

2º A divisão judiciaria actual em districtos de tribunaes de segunda instancia, comarcas,

termos e julgados de paz, ou as que de futuro se estabelecerem;

3º A divisão eleitoral actual em provincias, districtos e collegios eleitoraes e assembléas

parochiaes, ou as que de futuro se estabelecerem;

4º A divisão ecclesiastica actual em dioceses, parochias e capellas curadas, ou as que de

futuro se estabelecerem;

5º A divisão do territorio de cada Provincia, municipio e parochia, em relação ás

Provincias, municipios e parochias limitrophes;

6º A divisão do territorio de cada Provincia, municipio e parochia em relação ao numero

das propriedades;

7º A divisão do territorio de cada Provincia, municipio e parochia em relação á natureza

das propriedades;

8º A divisão do territorio de cada Provincia, municipio e parochia em relação ás diferentes

categorias de proprietaries.

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Desta maneira, diferentemente da tentativa da Lei nº 586, de 1850, o censo de 1872

alcançou sua finalidade em um esforço pós-guerra e conferiu ao Brasil seu primeiro mapeamento

populacional, com base em um estruturado critério coercitivo que continha em seu bojo uma clara

regulação do critério espacial decorrente de uma necessidade militar. O censo, divulgado apenas

em 1876 por Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, mostrou que o país contava com

9.930.478 habitantes distribuídos em 20 províncias e 642 municípios, sendo 15,24% escravos217 e

3,8% estrangeiros, notadamente portugueses, alemães, franceses e africanos livres. Era um Brasil

bastante diferente do que se conhece no século XXI, no qual a província mais populosa era Minas

Gerais, onde um de cada cinco brasileiros morava, e a província de São Paulo era apenas a quinta

mais povoada, com 800 mil habitantes. Desta forma, foi possível obter uma primeira cartografia

oficial do Brasil, que se configurava conforme abaixo exposto.

MAPA 3 – Brasil em 1872

Fonte: IBGE, 2012

217 Dado oficial coletado após a publicação da Lei do Ventre Livre.

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Mais do que promover um primeiro mapeamento nacional, possibilitando a criação de

um sistema Mapa-Norma, o marco regulatório de 1871 estruturou um órgão público de regulação

espacial (DGE) concomitante a uma estrutura dedicada ao estudo e produção de mapas e

informações geográficas (IHGB). A Geografia de Estado no Brasil tornou possível o início de um

processo de reflexão, e de intervenção espacial, sobre as políticas públicas nacionais.

Em outras palavras, as escalas de governança estavam postas, com um Império, 20

províncias e 642 municípios (sendo um município neutro, o Rio de Janeiro), sendo que a escala

geojurídica do trabalho tinha como base o art. 4° do Decreto n° 4.676, de 14 de janeiro de 1871, e

a infraestrutura geográfica era regulada pelo DGE e fomentada pelo IHGB.

O Imperador teve ainda a preocupação de fomentar o desenvolvimento geológico com

base geográfica, bem como o relacionamento da Geografia brasileira perante instâncias

internacionais. Com a permissão imperial, o geólogo americano Orville Adelbert Derby terminou

seu doutorado em junho de 1874, sob o título On the Carboniferous Braquiopoda of Itaituba, Rio

Tapajós, promovendo em seu estudo um amplo mapeamento do subsolo na região de estudo,

técnica então pioneira no Brasil. Em 1876, Derby foi contratado para a seção de Mineralogia do

Museu Nacional. Naquela época, havia o entendimento interdisciplinar da ciência geográfica,

enquanto especialidade de engenharia. Como exemplo, o Decreto n° 3.001, de 9 de outubro de

1880, estabelecia os requisitos que deviam satisfazer os Engenheiros Civis, Geógrafos,

Agrimensores e os bacharéis formados em matemáticas, nacionais ou estrangeiros, para poderem

exercer empregos em comissões. Com a contribuição de Derby, foi fundada a Comissão

Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo, por meio da Lei Provincial n° 9, de 27 de março

de 1886.218

Em 1879, o Decreto n° 7.315, de 14 de junho, aprovou os estatutos da seção da

Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil. Era a busca do Imperador em constituir uma

identidade nacional a fim de dar unidade ao país. E empregava a Geografia para alcançar este

objetivo.

Assim, a Monarquia promoveu a Geografia de Estado em diversas frentes. Ao

aplicarmos o modelo tridimensional interdisciplinar, nota-se a ausência de simetria entre a

Geografia e o Direito, que consequentemente reflete um Geodireito igualmente assimétrico, uma

vez que:

218 Atualmente se denomina Instituto Geológico de São Paulo.

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(i) Tríade fato-valor-técnica geográfica: característica considerada de maneira

desequilibrada neste período, haja vista que havia uma ampla compreensão do

fato, decorrente da universalização dos conhecimentos corográficos, por meio

da disponibilização de mapas e difusão da Geografia nas escolas, concomitante

a uma baixa compreensão axiológica, oriunda do baixo emprego dos dados

obtidos por meio do DGE e do IHGB. Por fim, a técnica geográfica foi

considerada neste período, pois buscou instrumentalizar a Geografia de Estado

enquanto esforço eminentemente militar, por meio do censo de 1872,

produzindo o sistema Mapa-Norma por força do marco regulatório criado após

a Lei nº 1.829, de 9 de Setembro de 1870;

(ii) Tríade fato-valor-técnica jurídica: característica considerada de maneira

desequilibrada neste período, haja vista que o fato jurídico era considerado

neste período, pelo Império ter desenvolvido critérios coercitivos para reger o

critério espacial do Estado brasileiro. O valor jurídico, por sua vez, foi pouco

desenvolvido, uma vez que parte considerável da população era tratada como

coisa, sendo prescindida de cidadania, afrontando o conceito de justiça

enquanto busca de igualdade mesmo para os padrões da época. Por fim, a

técnica jurídica buscava aplicar um marco regulatório após 1872 que buscou

estabelecer um critério espacial por meio do critério coercitivo.

(iii) Tríade fato-valor-técnica jurídica: O fato geojurídico foi referenciado

densamente neste período, promovendo escalas de governança claras após o

censo de 1872 (um Império, 20 províncias e 642 municípios). O valor

geojurídico, por sua vez, foi referenciado de forma incipiente, haja vista que a

simetria entre o valor geográfico e o valor jurídico se nivelou por baixo, com

uma divisão geojurídica do trabalho que prescindiu de uma análise geográfica

crítica e se fundamentou em um regime escravagista, injusta até para os

parâmetros da época, por não conferir cidadania a toda a população brasileira.

Por fim, a técnica geojurídica era adequada após 1872, uma vez que o sistema

Mapa-Norma encontrou uma infraestrutura jurídica (marco regulatório) e uma

infraestrutura geográfica (produção de dados).

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Ante o exposto, pode-se notar uma construção assimétrica do Geodireito neste período.

Considerando que a axiologia geográfica e jurídica foram pouco desenvolvidas, o sistema

Solidariedade-Justiça restava comprometido no Império, haja vista que: (i) não havia uma

concepção geográfica crítica naquele período histórico, inviabilizando um critério espacial

engajado, de forma a promover solidariedade e coesão naquela sociedade, função exercida pela

figura do Rei; e (ii) o conceito de justiça pela igualdade não era alcançado naquele período, em

que pese diversos movimentos abolicionistas defenderem esta causa. Monarquia e escravagismo

no Brasil se misturaram de tal forma que o fim deste praticamente culminou com o término

daquele.

FIGURA 46 – Modelo tridimensional aplicado a Geografia na Monarquia

Geografia assimétrica: deficiência axiológica

Direito assimétrico: deficiência axiológica

Conclusão: Geodireito assimétrico. Fragilidade na Geografia da Legalidade e no Direito

Administrativo Geográfico

Por ser um modelo assimétrico, a deficiência axiológica neste período favoreceu suas

antíteses: a produção de uma Geografia da Injustiça, principalmente pela persistência do modelo

escravagista em praticamente todo o seu período, e de um Direito Administrativo Geográfico com

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limitado valor geográfico, haja vista sua incipiente capacidade de organizar espacialmente a

sociedade, em que pese o censo de 1872 ter contribuído para iniciar uma visão da divisão

geojurídica do trabalho além das questões militares. Resta analisar como este patrimônio

geojurídico foi enfrentado na República Velha.

4.2. A Geografia na República Velha: o Serviço Geográfico e a descentralização

republicana (1889 - 1930)

Com a abolição da escravatura em 1888 e o advento da República em 1889, o Brasil

iniciou um forte movimento de descentralização de poder. As províncias começavam a se

organizar administrativamente. Orville Derby se afastou do Museu Nacional em 1890, para

assumir o órgão geológico paulista. Na esfera federal, o Decreto n° 859, de 13 de outubro de 1890,

criou no observatório do Rio de Janeiro uma escola de Astronomia e de Engenharia Geográfica, e

o Decreto n° 1.294, de 17 de janeiro de 1891, criou no Instituto Nacional dos Cegos a cadeira de

Geografia Universal.

O conceito de escala de governança se descola da autoridade do rei, do território

nacional, mas se vincula aos militares, de forma que as províncias passam a ganhar poder efetivo

para regular o interesse do lugar. Esta efetividade ocorre pela regulamentação do serviço cartorial,

denominado à época de “geográfico”. A técnica geográfica passa a ser a premissa de regularização

da propriedade, quase 90 anos depois de Napoleão instituir este conceito na França, por meio de

seu Código Civil. Interessante notar que, sob um governo militar, o Serviço Geográfico ficaria sob

a responsabilidade do Ministério da Guerra, em que pese o então ministro Campos Sales capitanear

o Ministério da Justiça, e seria executado por meio de um Observatório.

DECRETO N° 451 A - DE 31 DE MAIO DE 1890 Reorganiza o Observatorio do Rio de Janeiro, creando o serviço geographico, que lhe ficará annexo, e transfere-o para o Ministério da Guerra. O Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, considerando: Que é de urgente necessidade reorganizar-se o Observatorio do Rio de Janeiro, pondo-o em pé de satisfazer os fins a que é naturalmente destinado; Que convem aproveitar tão util instituição de sorte que nella completem seus estudos os engenheiros geographos e officiaes do estado-maior, adquirindo os conhecimentos praticos indispensaveis para o bom desempenho das commissões, que ser-lhes-hão confiadas, commissões entre as quaes salientam-se as que visam a fixação dos limites do territorio da Republica:

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Resolve reorganizar o Observatorio do Rio de Janeiro, pelo regulamento que baixa com o presente decreto, creando ao mesmo tempo o serviço geographico, que lhe ficará annexo, e transferil-o para o Ministério da Guerra. [...]

A justificativa deste Decreto foi elaborada por Rui Barbosa,219 que fundamentava a

criação do Serviço Geográfico como instrumento de organização da propriedade territorial,

viabilizando um sistema eficaz de publicidade imobiliária, que possibilitasse a circulação dos

títulos relativos ao domínio sobre a terra, com o objetivo de satisfazer um anseio econômico e

jurídico: a possibilidade dos cidadãos cadastrarem, registrarem, hipotecarem, comercializarem,

enfim, exercerem seus direitos perante a propriedade, de forma a possibilitar o crédito bancário e

interagir com o sistema econômico vigente.

Desta forma, o sistema cartorário aflorava dentro de uma concepção republicana

baseada ainda na Constituição Monarquista de 1824. Como se não bastasse, dezoito meses depois

da publicação do Decreto n° 451 A, de 1890, após longo processo de desgaste político que

culminou no fechamento do Congresso Nacional, o marechal Deodoro da Fonseca renunciou ao

cargo por conta da primeira Revolta da Armada, em 23 de novembro de 1891. Assim como

ocorrera com D. Pedro I, não houve continuidade na política geográfica do Brasil.

A partir da Constituição de 1891, o conceito jurídico de descentralização

administrativa passa a ser descrito na norma. Mesmo que omitindo a expressão “local” para atribuí-

la aos Estados ou aos municípios, o art. 68 da Constituição Federal de 1891 conferia autonomia as

municipalidades adstritas ao que se denominou “peculiar interesse”.220 A exceção ficava a cargo

do que se denominou “despesas de caráter local”221 do Distrito Federal. Outra grande inovação

desta Constituição Federal foi transformar as províncias em estados federados, que por sua vez

estavam dotados de territórios, bem como a transferência da capital federal para a região

denominada “planalto central da República”.

219 “Generalissimo. - A instituição consagrada no projecto que temos a honra de submetter-vos, representa a mais

adeantada phase das idéas contemporaneas quanto á propriedade territorial, o mais bemfazejo de todos os regimens

para o seu desenvolvimento e fructificação nas sociedades hodiernas. Consiste o seu fim em estabelecer um systema

efficaz de publicidade immobiliaria, e commercializar a circulação dos titulos relativos ao dominio sobre a terra. O

ideal dos economistas e jurisconsultos seria, no dizer de um publicista italiano, «constituir registros publicos, onde

fosse facil e expedita a demonstração da propriedade territorial, bem como a investigação dos direitos reaes incidentes

á propriedade immovel, e reunir em um só os varios institutos de publicidade existentes entre nós, a saber: cadastro,

registro, hypotheca e transcripções. Só por esse meio se lograria constituir uma especie de estado civil da propriedade

immobiliaria, correspondente ao estado civil das pessoas, e um bom systema de mobilização da propriedade estavel,

sem o qual baldado será esperar organização perfeita do credito territorial.” 220 Art. 68. Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto

respeite ao seu peculiar interesse. 221 Art. 67. Salvas as restrições especificadas na Constituição e nas leis federais, o Distrito Federal é administrado

pelas autoridades municipais. Parágrafo único - As despesas de caráter local, na Capital da República, incumbem

exclusivamente à autoridade municipal.

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Art 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo,

a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união

perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.

Art 2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município Neutro

constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der

execução ao disposto no artigo seguinte.

Art 3º - Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400

quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a

futura Capital federal.

Parágrafo único - Efetuada a mudança da Capital, o atual Distrito Federal passará a

constituir um Estado.

Com a norma posta, cabia ao governo decifrar o critério espacial de sua Carta Magna

em geral, e da expressão planalto central em específico. Onde seria a capital federal, dentro do

planalto central? Como seria estruturado o sistema Mapa-Norma, haja vista que a norma maior, a

Constituição Federal de 1891, não tinha o mapa de onde seria a capital no planalto central? Para

tanto foi criada a Missão Cruls, a Comissão Exploradora do Planalto Central, em 1892,222 que

identificou cartograficamente onde deveria ser transferida a capital federal, de forma a cumprir

com a Constituição de 1891. Esta missão supriu o sistema Mapa-Norma, mas não o sistema

Solidariedade-Justiça, pois esta mudança não foi viabilizada na República Velha.

Na década seguinte, o ano de 1902 foi de grande relevância para o critério espacial.

Fruto da reportagem da guerra de Canudos de 1896, Euclides da Cunha publicou, após receber as

opiniões de geocientistas como Derby e de Teodoro Sampaio, sua obra magna “Os Sertões”, de

grande e consistente significado geográfico, por pormenorizar a fenomenologia do sertão

nordestino e iniciar uma aproximação axiológica. Ato contínuo, o Decreto n° 908-A, de 13 de

novembro de 1902,223 regulava a colação do título de Engenheiro Geógrafo aos alunos da Escola

Politécnica da Capital Federal e da Escola de Minas de Ouro Preto.

No governo do presidente Rodrigues Alves (1902-1906), houve uma grande

preocupação com a infraestrutura do país, principalmente a urbana. Foi um período de

desenvolvimento e de conflitos entre o interesse público e os direitos individuais. Pelas mãos de

Francisco Pereira Passos, engenheiro nomeado prefeito do Rio de Janeiro, entusiasmado

reformador urbano, favelas foram removidas do centro da cidade para criar uma realidade

cosmopolita, digna do que se desejava para a recém-estabelecida República brasileira. Foi um

grande fomentador de instalações sanitárias e propôs a fixação de normas edilícias.

222 Para maiores informações, CRULS, 1992. 223 Decreto n° 908-A, de 13 de novembro de 1902: Regula a collação do titulo de engenheiro geographo a alumnos

da Escola Polytechnica da Capital Federal e da Escola de Minas de Ouro Preto.

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Por obra do Barão do Rio Branco, foi firmado o Tratado de Petrópolis em 17 de

novembro de 1903, no qual o Brasil tomou posse do atual Estado do Acre. Era o ciclo da borracha

que encontrava seu apogeu no país, de forma que esse recurso natural teria grande aplicação na

indústria. Por sua vez, em 1904 houve a Campanha de Saneamento do Rio de Janeiro, dirigida por

Oswaldo Cruz, que visava à erradicação da febre amarela e da raiva e culminou na Revolta da

Vacina, pela insatisfação de parcela da população pelos métodos aplicados pelo governo, que

impunha a vacinação compulsória.

Sob a presidência de Rodrigues Alves foi colocado em prática ousado projeto de

saneamento básico e reurbanização do centro da então capital brasileira, Rio de Janeiro, fato que

desencadeou o episódio conhecido como Revolta da Vacina. A reforma urbana, comandada pelo

engenheiro Pereira Passos, removeu populações do centro da Capital, derrubando habitações sob

a ideia de projetar o Rio de Janeiro como uma cidade moderna, a altura dos desafios do século

XX, criando uma consistente centralidade urbana na então capital federal.

Em 1906 foi criado o Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio,

por força do Decreto n° 1.606, de 29 de dezembro de 1906. O Ministério tinha sob sua

responsabilidade setores como agronomia, questões indígenas, questões atinentes à fauna e a flora,

astronomia, meteorologia, cartografia, irrigação e drenagem, mineração e legislação respectiva,

explorações e serviço geológico, estabelecimentos metalúrgicos e escolas de minas, dentre outras.

A mineração e a Geologia se profissionalizavam, permitindo criar a base, ainda que incipientes,

da exploração de hidrocarbonetos e minerais energéticos do Brasil, tais como o urânio, tório, dentre

outros. Assim, o Decreto n° 8.359, de 9 de novembro de 1910, reorganizava o Serviço Geológico

e Mineralógico do Brasil.224 O Brasil ganhava novos contornos territoriais, fator acentuado pela

proliferação de municípios desde a Proclamação da República.

224 Art. 1º O Serviço Geologico e Mineralogico tem por fins principaes:

1º, fazer o estudo da estructura geologica, da paleontologia e mineralogia do territorio da Republica, attendendo aos

aspectos scientificos e economicos e ás condições naturaes de aproveitamento dos recursos mineraes e das aguas

superficiaes e subterraneas e colligindo informações sobre a natureza geologica e physiographica dos terrenos, de

modo a servirem de base á organização de projectos de vias de communicação e outras obras publicas especialmente

as de prevenção contra os effeitos das seccas;

2º, colleccionar, classificar e coordenar para exposição no paiz e nos principaes centros estrangeiros, amostras

acompanhadas de informações necessarias ao conhecimento o mais completo possivel da geologia e mineralogia do

Brazil;

3º, fazer analyses e ensaios dos mineraes encontrados;

4º, preparar e fazer editar mappas, plantas, diagrammas, desenho ou photographias, para illustração e elucidação dos

trabalhos executados e bem assim relatorios e outras publicações sobre os assumptos a seu cargo;

5º, organizar e publicar estatisticas da producção mineral e da industria mineira e metallurgica do paiz;

6º, proceder a estudos sobre factos relativos ao supprimento da agua tanto para irrigação como para fins domesticos e

industriaes e sobre poços artezianos e outros;

7º, fazer por todos os meios ao seu alcance propaganda systematica das riquezas mineraes do paiz;

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Mas o Brasil não conseguia atualizar suas informações. Os dados do censo de 1872 se

defasavam rapidamente. O governo tinha dificuldades de obter informações para produção de

infraestrutura geográfica. Foram realizadas iniciativas para fomentar as atividades da Diretoria

Geral de Estatística, tais como o Decreto n° 1.850, de 2 de janeiro de 1908, que obrigou todas as

autoridades civis ou militares, associações, empresas, companhias, estabelecimentos industriais,

comerciais e outros e os particulares a darem as informações que lhes forem pedidas pela DGE. O

Decreto n° 7.931, de 31 de março de 1910, determinou que o recenseamento geral da população

da República seria efetuado no dia 31 de dezembro daquele ano. Mas ele não foi realizado.

MAPA 4 – Brasil em 1911

Fonte: IBGE, 2012

8º, fornecer dados e informações sobre questões de propriedades de terras e minas, concernentes á industria de

mineração e aos demais fins do Serviço, sempre que forem requisitados pelo Governo Federal ou, com autorização

deste, pelos governos dos Estados ou por particulares;

9º, fazer imprimir e publicar regularmente relatorios, memorias, mappas e outros trabalhos destinados a divulgar os

estudos scientificos e industriaes, acerca dos assumptos já mencionados. [...]

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Enquanto a Geologia se desenvolvia enquanto técnica, a Estatística buscava uma

reorientação enquanto estrutura quantitativa de governo e a Geografia iniciava seu distanciamento

das ciências exatas, ganhando contornos axiológicos, qualificando os dados estatísticos e

cartográficos. Ao ansiar deixar de ser mera especialização da Engenharia, a Geografia desenvolveu

sua epistemologia de forma a se aproximar das Ciências Sociais e do Direito. Capitaneada

pioneiramente por Jaguaribe (1909), este momento pode ser caracterizado pela corrente geográfica

denominada “social”, que pregava a reforma da justiça e o aprimoramento tributário nacional.

Esta busca axiológica possibilitou o desenvolvimento do critério espacial para

preservação ambiental. A primeira reserva florestal do Brasil foi criada por força do Decreto n°

8.843, de 26 de junho de 1911, no então neófito território do Acre.

Em que pese os primeiros passos dados na compreensão axiológica da Geografia,

típica de um país que começa a exercer as prerrogativas do pacto federativo e necessita

compreender as escalas de governança, o sistema jurídico, ainda distante da realidade acadêmica,

continuava a prever a Geografia como uma especialização da Engenharia. O Decreto n° 2.835, de

24 de dezembro de 1913, concedia o título de Engenheiro Geógrafo aos alunos que concluíssem

os cursos de Estado-Maior do Exército e da Escola Naval. Os anos seguintes foram de constante

capitalização do Serviço Geográfico Militar,225 fato que se prolongou por toda República Velha.

Na construção axiológica da Geografia, o determinismo ratzeliano conquistava juristas em todo o

país, permeando análises jurídicas com conceitos geográficos.

Absorvendo as teorias sobre as raças desenvolvidas na Europa e nos Estados Unidos, os intelectuais brasileiros em sua maioria aceitaram a tese da superioridade da raça branca e dos perigos da miscigenação com negros e índios. A partir dela os juristas das Faculdades de Direito de Recife ou de São Paulo pensaram uma solução para o país cuja população fora pela mesma tese julgada inferior e condenada ao atraso. Os juristas de Recife liderados por Silvio Romero, partiram do paradigma determinista, mas acreditaram numa mestiçagem modeladora e uniformizadora; os de São Paulo, professando idéias do liberalismo, explicaram desigualdades e hierarquias entre as raças; enquanto vinculados ao Estado republicano, acreditaram na missão civilizatória do Estado sobre a sociedade mestiça (OLIVA; BRAY, 2001, p, 38-39)226

Conceitos como superioridade de raças, ciclo vital e expansionismo territorial

passavam a compor a gênese do que viria a ser denominada Primeira Grande Guerra (1914-1918)

e encontraram ampla repercussão nas faculdades de Direito do Brasil. Era uma realidade

225 Para maiores informações, principalmente sobre os montantes financeiros aportados, ver Decreto n° 12.945, de 03

de abril de 1918; Decreto n° 13.481, de 19 de fevereiro de 1919; Decreto n° 15.125, de 18 de novembro de 1921; e

Decreto n° 4.367, de 18 de novembro de 1921. O título de Engenheiro Geógrafo passou a ser conferido aos estudantes

aprovados na 1ª série do curso de Engenharia Civil, de acordo com o Decreto n° 19.150, de 27 de março de 1930. 226 Para aprofundamento da questão, SCHWARCZ, 1993.

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caracterizada pela recepção de capitais advindos do mercado internacional. As decisões

governamentais, de caráter local, eram voltadas aos interesses da burocracia, sem planejamento

centralizado, que obedecia a lógica da oportunidade financeira e dos lucros imediatos. Nesse

cenário, o café muito contribuiu para o desenvolvimento da infraestrutura brasileira. Ele criou

mercado interno e permitiu que os cafeicultores fossem investidores nesse segmento. Assim,

durante a Primeira Grande Guerra, o país teve um considerável incremento industrial devido ao

“processo de substituição de importações”.

Em 1915, o Decreto n° 11.476, de 5 de fevereiro, reorganizou o serviço oficial de

estatística. Ato contínuo, o primeiro Código Civil brasileiro nasceu em 1916, consolidando os

direitos reais e, por conseguinte, todos os objetivos elencados por Rui Barbosa ao marechal

Deodoro da Fonseca de criação de serviço geográfico, que ora se denominou cartorário e registral,

resultando em uma espécie de critério espacial da economia privada, enquanto atividade-meio do

Direito com o objetivo de conferir segurança jurídica na aquisição de terras para a cafeicultura.

Diferentemente da década anterior, os anos 1920 foram de crescente desequilíbrio das

contas externas, situação que provocou uma desorganização interna, com raras exceções.227 Houve

uma infrutífera tentativa de se viabilizar o censo de 1920, por força do Decreto n° 4.017, de 9 de

janeiro de 1920. Havia um esgotamento do modelo de gestão política denominada “café com leite”,

que fundava toda a prosperidade nacional em cima da exportação do café, bem como de

insurgências revolucionárias, como foi o caso dos “Dezoito do Forte” no Rio em 1922, e do

movimento tenentista de São Paulo em 1924. Este esgotamento de recursos financeiros culminou

na quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929, bem como a não realização do censo de

1930.

Assim, a República Velha, salvo a florescência das duas primeiras décadas, que

promoveram o serviço geográfico, a Missão Cruls, a reforma urbana de Rodrigues Alves e a

incorporação do Acre, pouco promoveu a Geografia de Estado. Ao aplicarmos o modelo

tridimensional interdisciplinar, nota-se a ausência de simetria entre a Geografia e o Direito, que

consequentemente reflete um Geodireito igualmente assimétrico, uma vez que:

(i) Tríade fato-valor-técnica geográfica: O fato geográfico foi uma

característica bastante considerada neste período, decorrente do movimento de

descentralização, com a constituição de estados e o fortalecimento dos

municípios. O valor geográfico, por sua vez, foi pouco considerado, oriundo

da baixa atribuição axiológica do serviço geográfico (cartórios) e do serviço

227 Em 28 de dezembro de 1921, foi criado o Serviço Florestal do Brasil, primeiro nome do atual IBAMA. Importante

igualmente destacar o Decreto n° 16.300, de 1923, que regulamentava a Saúde Pública com base no Código Civil de

1916.

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oficial de estatística, o mesmo ocorrendo com a técnica geográfica, que não

instrumentalizou a Geografia de Estado, decorrente da ausência de censo neste

período, deixando o país sem uma infraestrutura geográfica.

(ii) Tríade fato-valor-técnica jurídico: O fato jurídico foi uma característica

considerada neste período, uma vez que desenvolveu critérios coercitivos,

principalmente no Código Civil de 1916, para reger o critério espacial do

Estado brasileiro, voltado para a propriedade privada, o mesmo ocorrendo com

o valor jurídico, em que Rui Barbosa constitui um serviço geográfico que

ganha força com o Código Civil de 1916, enquanto serviço registral.228 Por fim,

a técnica jurídica foi uma característica muito desenvolvida neste período, haja

vista que os estados e os municípios começaram a produzir legislações para

atender suas escalas de governança, desenvolvendo critérios espaciais por meio

do critério coercitivo.

(iii) Tríade fato-valor-técnica geojurídica: O fato geojurídico foi referenciado

densamente, com o desenvolvimento do pacto federativo enquanto escalas de

governança (União, estados, Distrito Federal e municípios). Por seu turno, o

valor geojurídico estava fundado de forma desequilibrada, haja vista a

assimetria entre o valor geográfico e o valor jurídico, com uma divisão

geojurídica do trabalho que prescindia de uma análise geográfica crítica e se

fundamentava em um regime de exclusão da mulher do processo político, não

conferindo cidadania a toda a população brasileira. O mesmo ocorreu com a

técnica geojurídica uma vez ser inviável identificar um sistema Mapa-Norma

com base em uma infraestrutura geográfica datada de 1872, em que pese haver

produção para casos específicos (p. ex., produção cartográfica estaduais e a

Missão Cruls), em contraponto a ampla proliferação normativa realizada pela

União, estados, Distrito Federal e municípios.

228 Houve valor jurídico em que pese a representação parcial da sociedade nas eleições, uma vez que mulheres e

analfabetos não votavam, premissa que afrontava o conceito de justiça enquanto busca de igualdade.

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FIGURA 47 – Modelo tridimensional aplicado a Geografia na República Velha

Geografia assimétrica: deficiência axiológica

Direito assimétrico: sobrecarga instrumental

Conclusão: Geodireito assimétrico. Fragilidade na Geografia da Legalidade e no Direito

Administrativo Geográfico

Neste período, pode-se notar uma construção assimétrica do Geodireito. Em que pese

a tridimensionalidade jurídica estar mais próxima da simetria de comparada ao período

monárquico, a tridimensionalidade geográfica encontrava-se bastante assimétrica, haja vista a

incipiente axiologia e técnica da Geografia de Estado. Não era uma sociedade coesa, mas

excludente, tampouco justa no que concerne a igualdade entre homens e mulheres. E estas

fragilidades produziram três antíteses se considerarmos o modelo tridimensional: (i) uma frágil

Geografia de Estado, uma vez que o último censo datava de 1872; (ii) a impossibilidade de edificar

o Direito Administrativo Geográfico, por falta de capacidade crítica geográfica; e (iii) a ausência

do sistema Mapa-Norma pela inexistência de uma infraestrutura geográfica que fosse além da

promoção de títulos de terras e que, com o tempo, se comprovou ineficaz e produziu duplicidades

de títulos. Mas esta sobrecarga na descrição geográfica (fato geográfico) e na produção de normas

(técnica jurídica) ficou mais equilibrada no período seguinte, que promoveu grandes avanços neste

cenário.

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4.3. A Geografia federalizada: o IBGE autárquico, a região enquanto técnica

geográfica de Estado e a construção de Brasília (1930 - 1964)

A década de 1930 inicia com uma efervescência fenomenológica, axiológica e

instrumental na Geografia de Estado sem precedentes na história do Brasil. A técnica geográfica

ensaiava uma maior autonomia em relação à engenharia, graças: (i) ao desenvolvimento do valor

geográfico pelas escolas alemã e francesa, momento em que a Geografia não é mais apenas vista

como fatos, corografias, mas também como critério espacial dos valores sociais postos; e (ii) ao

emprego intensivo da técnica geográfica, notadamente o mapeamento, para a expansão da

infraestrutura nacional. E esta construção axiológica e instrumental ganhou novos contornos na

gestão do presidente Vargas, que elevou a Geografia de Estado a novos patamares. No centro desta

visão está um intenso movimento de institucionalização do país, decorrente das promoções

econômicas e sociais almejadas.

Mas esta iniciativa não foi edificada em ambiente democrático. A reorganização das

instituições nacionais veio acompanhada pela revogação da Constituição de 1891, da dissolução

do Congresso Nacional, bem como de uma nova centralização da escala de governança na esfera

federal, decorrente da intervenção federal em governos estaduais.

Na década de 1930, com a mudança do eixo de poder, que reduz o papel político das

oligarquias rurais e consolida a influência de uma burguesia urbano-industrial implementada pelo

governo Vargas, definiu-se o início da demarcação e valorização das terras urbanas, dada a

reorganização da mão-de-obra nacional que a industrialização impôs. Para Sundfeld (2006, p. 46),

neste momento histórico o Direito começa a convergir para elementos que indicam o nascimento

do princípio da função social da propriedade, momento em que os juristas passam a estudar o

urbanismo e surgem os Planos Nacionais de Desenvolvimento e as leis de zoneamento.229

Antes da publicação da Constituição Federal de 1934, o presidente Vargas já havia

promovido uma profunda reestruturação institucional230 das geociências no Brasil, notadamente a

Geologia e a Geografia, que culminaram na criação:

229 Tal princípio já era encontrado no art. 113, 17 da CF de 1934; e no art. 141, § 16 da CF de 1946. 230 Getúlio Vargas tinha ainda preocupações sociais com o meio ambiente, tendo editado, neste período, os primeiros

códigos de proteção dos recursos naturais: o Código Florestal (Decreto-Lei n° 23.793, de 1934), e o Código de Águas

(Decreto-Lei n° 24.643, de 1934). Em 1937 é criado o parque nacional em Itatiaia, sendo que em 1939 há a demarcação

do Parque Nacional do Iguaçu (atual Paraná) e do Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Rio de Janeiro).

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(i) do Serviço Geográfico do Exército (SGE), por força do Decreto n° 21.883,

de 29 de setembro de 1932, que substituiu a Comissão da Carta Geral da

Brasil e o Serviço Geográfico Militar, destinando-se ao levantamento,

organização, preparação e impressão das cartas geográficas e topográficos,

necessárias principalmente à defesa militar, recolhendo e coordenando todos

os dados idôneos (federais, estaduais, municipais, privados, nacionais e

estrangeiros) sobre a Geografia e Cartografia do país, sua descrição física e

política e recursos diversos, principalmente no que interessa à defesa

nacional;

(ii) do Instituto Geológico e Mineralógico do Brasil;231 do Instituto Biológico

Federal; do Instituto de Meteorologia, Hidrometria e Ecologia Agrícola; e do

Instituto de Química, todos por força do Decreto n° 22.508, de 27 de fevereiro

de 1933;

(iii) do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), vinculado ao

Ministério da Agricultura; por força do Decreto n° 24.648, de 10 de julho de

1934;

(iv) do Instituto Nacional de Estatística (INE), por força do Decreto n° 24.609, de

6 de julho de 1934, de forma que o serviço censitário, o demográfico e o

econômico estariam sob responsabilidade do Ministério da Justiça e Negócios

Interiores (art. 3°, § 2º, I); e

(v) do Serviço de Fronteiras, por força do Decreto n° 24.305, de 29 de maio de

1934, que aprovou o regulamento para o serviço de fronteira, parte integrante

do Serviço dos Limites e Atos Internacionais da Secretaria de Estado das

Relações Exteriores, com o objetivo de demarcar as fronteiras, a fim de se

assegurar a inviolabilidade do território nacional. Tal iniciativa ainda criou

três regiões de fronteira no país: (i) Setor Norte: Guiana francesa, Guiana

holandesa, Guiana britânica e Venezuela; (ii) Setor Oeste: Colômbia, Peru e

Bolívia; e (iii) Setor Sul: Paraguai, Argentina e Uruguai.

231 Substituiu o Serviço Geológico e Mineralógico.

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O Brasil se sofisticava e Getúlio Vargas buscava promover novos instrumentos de

gestão pública do território para viabilizar seu governo. A Constituição Federal de 1934,232

promulgada em 16 de julho pela Assembleia Nacional Constituinte, teve a menor vigência na

história brasileira. Fruto principal da Revolução Constitucionalista de 1932, quando a Força

Pública de São Paulo lutou contra as forças do Exército Brasileiro, previu diversas inovações ao

sistema jurídico brasileiro. Dentre elas, instituiu o voto secreto; estabeleceu o voto obrigatório para

maiores de 18 anos; propiciou o voto feminino; previu a criação da Justiça do Trabalho; da Justiça

Eleitoral; e federalizou as riquezas do subsolo e quedas d'água.

A Carta de 1934 foi a primeira a constitucionalizar o conceito geográfico de região,233

em duas partes distintas: (i) no art.121, § 1°, “b”, ao versar sobre o então inovador salário mínimo,

que deveria satisfazer às necessidades normais do trabalhador conforme as condições de cada

região;234 e (ii) no art. 166, § 3º,235 ao definir como região de fronteira faixa de cem quilômetros,

na qual nenhuma concessão de terras ou de vias de comunicação e a abertura destas se efetuariam

sem audiência do Conselho Superior da Segurança Nacional.

Outro ineditismo decorrente da Carta de 1934, que justifica a afirmação de Sundfeld

acima, foi o fato de ter constitucionalizado a noção de planejamento. Houve a instituição do: (i)

plano nacional de viação férrea e o de estradas de rodagem;236 (ii) planos para solução dos

problemas nacionais237; (iii) plano nacional de educação238; e (iv) plano nacional que originou a

232 Importante destacar que a Constituição Federal de 1934, no art. 13, previa que os Estados deveriam resolver suas

questões de limites, fazendo-se a demarcação pelo Serviço Geográfico do Exército. 233 Para Santos, M., o fundamento etimológico da palavra região é perdido, na medida em que há regiões que são

apenas regiões do fazer, sem nenhuma capacidade de comando, pois não haveria o “reger”. Assim, os estudos regionais

da Geografia não conseguem, isoladamente, caracterizar o mundo contemporâneo. Para alguns autores, a grande crise

epistemológica da Geografia Clássica advém da “falta de leis, ou de outra forma de generalização” (MORAES, 2005,

p. 97). Assim, o “reger” pode ser identificado quando há interrelação científica da Geografia com o Direito. 234 Art. 121. A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos,

tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho

observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: [...] b) salário

mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador; [...]. 235 Art. 166. Dentro de uma faixa de cem quilômetros ao longo das fronteiras, nenhuma concessão de terras ou de vias

de comunicação e a abertura destas se efetuarão sem audiência do Conselho Superior da Segurança Nacional,

estabelecendo este o predomínio de capitais e trabalhadores nacionais e determinando as ligações interiores

necessárias à defesa das zonas servidas pelas estradas de penetração. [...] § 3º - O Poder Executivo, tendo em vista as

necessidades de ordem sanitária, aduaneira e da defesa nacional, regulamentará a utilização das terras públicas, em

região de fronteira pela União e pelos Estados ficando subordinada à aprovação do Poder Legislativo a sua alienação. 236 Art. 5º. Compete privativamente à União: [...] IX - estabelecer o plano nacional de viação férrea e o de estradas de

rodagem, e regulamentar o tráfego rodoviário interestadual; [...] 237 Art. 91. Compete ao Senado Federal: [...] V - organizar, com a colaboração dos Conselhos Técnicos, ou dos planos

dos Conselhos Gerais em que eles se agruparem, os planos de solução dos problemas nacionais; [...]. 238 Art. 150. Compete à União: a) fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de todos os graus e

ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do País; [...].

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regionalização do Polígono das Secas para o combate à seca na região Nordeste do país.239 O

planejamento assumia caráter constitucional, enquanto técnica jurídica, de maneira a impor,

concomitantemente, um estruturado sistema cartográfico, na qualidade de técnica geográfica.

MAPA 5 - Brasil na Constituição de 1934

Fonte: IBGE, 2012

239 Art. 177. A defesa contra os efeitos das secas nos Estados do Norte obedecerá a um plano sistemático e será

permanente, ficando a cargo da União, que dependerá, com as obras e os serviços de assistência, quantia nunca inferior

a quatro por cento da sua receita tributária sem aplicação especial. § 1º - Dessa percentagem, três quartas partes serão

gastas em obras normais do plano estabelecido, e o restante será depositado em caixa especial, a fim de serem

socorridos, nos termos do art. 7º, nº II, as populações atingidas pela calamidade.

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Na Constituição de 1934, a expressão “local” passou também a ser empreendida aos

Estados, no tocante a descentralização judiciária (art. 12, § 5º, e art. 71),240 241 para identificar

direitos dos silvícolas242 à terra, ou mesmo para identificar espaço onde repousaria a nova capital

federal.243 A autonomia municipal continuava adstrita ao “peculiar interesse”.244 Destaca-se, ainda,

três normativas que contribuíram para o desenvolvimento da Geografia de Estado: (i) o Decreto

n° 1.022, de 11 de agosto de 1936, que aprovou e ratificou a Convenção Nacional de Estatística;

(ii) o Decreto n° 1.527, de 24 de março de 1937, que instituiu o Conselho Brasileiro de Geografia,

anexo ao Instituto Nacional de Estatística, e autoriza a sua adesão a União Geográfica

Internacional, bem como a necessidade de constituir um organismo de cooperação das atividades

geográficas brasileiras e a busca de articulação entre as geografias oficiais (art. 1°)245; e (iii) o

Decreto n° 1.875, de 11 de agosto de 1937, que dispôs sobre o ensino de topografia, de geodésia

elementar e de astronomia de campo.

Pela legislação em vigor, na esfera federal, a centralização e a coordenação dos

trabalhos de caráter geográfico competiam aos serviços de Estatística Territorial da Diretoria de

Estatística da Produção do Ministério da Agricultura, integrante do Instituto Nacional de

Estatística. Todavia, em que pese os diversos ineditismos da Carta de 1934, bem como a pujante

regulamentação infraconstitucional, é na vigência da Constituição de 1937, de 10 de novembro,

que a mais importante construção da Geografia de Estado brasileira foi viabilizada.

240 Art. 12. A União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo: [...] § 5º - Na espécie do nº VII, e também

para garantir o livre exercício do Poder Judiciário local, a intervenção será requisitada ao Presidente da República pela

Corte Suprema ou pelo Tribunal de Justiça Eleitoral, conforme o caso, podendo o requisitante comissionar o Juiz que

torne efetiva ou fiscalize a execução da ordem ou decisão. 241 Art. 71. A incompetência da Justiça Federal, ou local, para conhecer do feito, não determinará a nulidade dos atos

processuais probatórios e ordinatórios, desde que a parte não a tenha argüido. Reconhecida a incompetência, serão os

autos remetidos ao Juízo competente, onde prosseguirá o processo. 242 Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-

lhes, no entanto, vedado aliená-las. 243 Art. 4º. Disposições Transitórias - Será transferida a Capital da União para um ponto central do Brasil. O Presidente

da República, logo que esta Constituição entrar em vigor, nomeará uma Comissão, que, sob instruções do Governo,

procederá a estudos de várias localidades adequadas à instalação da Capital. Concluídos tais estudos, serão presentes

à Câmara dos Deputados, que escolherá o local e tomará sem perda de tempo as providências necessárias à mudança.

Efetuada esta, o atual Distrito Federal passará a constituir um Estado. 244 Art. 13. Os Municípios serão organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite

ao seu peculiar interesse; e especialmente: [...]. 245 Art. 1º Fica instituído o Conselho Brasileiro de Geografia, incorporado ao Instituto Nacional de Estatística o

destinado a reunir e coordenar, com a colaboração do Ministério da Educação e Saúde, os estudos sôbre a Geografia

do Brasil e a promover a articulação dos Serviços oficiais (federais, estaduais e municipais), instituições particulares

e dos profissionais, que se ocupem de Geografia do Brasil no sentido de ativar e sistematizado do território pátrio. [...]

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A Carta de 1937 buscou identificar regionalidades, por intermédio de agrupamentos

municipais para instalação, exploração e administração de serviços públicos comuns.246 Em que

pese a Constituição de 1937 ter mantido a expressão “local” para designar a descentralização

judiciária, há uma mudança significativa no emprego da expressão, que passa a ser utilizada para

atribuir aos municípios serviços públicos sob seu interesse,247 ao Distrito Federal248 e nas relações

trabalhistas,249 Esta Carta aproximou a Geografia das questões econômicas e sociais, formando

parte do tripé de atribuições do Conselho da Economia Nacional previsto no art. 61.250

Nos meses seguintes a Carta de 1937 ser outorgada, a Geografia de Estado do Brasil

passou por uma verdadeira reconstrução institucional, sem paralelo na história do país, exatos cem

anos após a criação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) no período regencial. O

marco regulatório geográfico foi estruturado de tal forma que é possível afirmar que o presidente

Vargas foi o primeiro operador do critério espacial em todas as suas escalas de governança: federal,

regional, estadual, local e internacional.

O critério espacial e o critério coercitivo ganharam, com a Carta de 1937, a

institucionalidade necessária para criar um novo paradigma de gestão territorial no Brasil, em um

momento que teve como tônica a estruturação da Administração Pública. Houve uma completa

reestruturação do fato, do valor e da técnica geográfica, sendo possível compreender a Geografia

de Estado em sua plenitude tridimensional. Todavia, estas bases normativas foram alicerçadas em

atos de exceção (Decreto-Lei), decorrente do regime político do Estado Novo. As principais

normas foram:

246 Art. 29. Os Municípios da mesma região podem agrupar-se para a instalação, exploração e administração de

serviços públicos comuns. O agrupamento, assim constituído, será dotado de personalidade jurídica limitada a seus

fins. Parágrafo único - Caberá aos Estados regular as condições em que tais agrupamentos poderão constituir-se, bem

como a forma, de sua administração. 247 Art. 26. Os Municípios serão organizados de forma a ser-lhes assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao

seu peculiar interesse, e, especialmente: [...] c) à organização dos serviços públicos de caráter local. 248 Art. 30. O Distrito Federal será administrado, por um Prefeito de nomeação do Presidente da República, com a

aprovação do Conselho Federal, e demissível ad nutum, cabendo as funções deliberativas ao Conselho Federal. As

fontes de receita do Distrito Federal são as mesmas dos Estados e Municípios, cabendo-lhe todas as despesas de caráter

local. 249 Art. 137. A legislação do trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos: [...] d) o operário terá direito

ao repouso semanal aos domingos e, nos limites das exigências técnicas da empresa, aos feriados civis e religiosos,

de acordo com a tradição local; [...]. 250 Art 61 - São atribuições do Conselho da Economia Nacional:

[...]

f) preparar as bases para a fundação de institutos de pesquisas que, atendendo à diversidade das condições econômicas,

geográficas e sociais do País, tenham por objeto:

I - racionalizar a organização e administração da agricultura e da indústria;

II - estudar os problemas do crédito, da distribuição e da venda, e os relativos à organização do trabalho; [...]

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(i) Decreto-Lei n° 43, de 6 de dezembro de 1937: Dispõe sobre a divisão territorial

do Distrito Federal para efeito do Registro Geral de Imóvel;

(ii) Decreto-Lei n° 218, de 26 de janeiro de 1938: Muda o nome do Instituto

Nacional de Estatística e o do Conselho Brasileiro de Geografia, criando o

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),251 autarquia subordinada

à Presidência da República;

(iii) Decreto-Lei n° 237, de 2 de fevereiro de 1938: Regula o início dos trabalhos

do Recenseamento Geral da República em 1940, que trazia no art. 9° um

detalhado rol de competências do IBGE;252

251 Art. 1º O Instituto Nacional de Estatística passa a denominar-se Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,

ficando ambos os seus órgãos colegiais de direção - o de Geografia e o de Estatística - com a denominação de

"Conselho Nacional".

Art. 2º Ao secretário geral do conselho Nacional de Geografia será extensivo, a partir de 1 de janeiro do corrente ano,

o disposto no parágrafo único do art. 12 do Decreto n. 24.609, de 6 de julho de 1934, relativamente ao secretário geral

do antigo Instituto Nacional de Estatística. 252 Art. 9º Distribuídas as tarefas segundo o campo de competência de cada um dos seus órgãos, as campanhas de

1938 e 1939 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística serão planificadas visando o aperfeiçoamento intensivo

das estatísticas nacionais, a fim de que, nos seus dados de 1910, sejam elas as mais completas e exatas possível, e, em

particular, o encaminhamento das medidas para que o ano do recenseamento estejam plenamente atingidos os

seguintes objetivos:

a) a revisão da área do Brasil e do seu parcelamento, segundo as unidades federadas e os municípios, efetuando-

se, também, se possível, o computo das áreas distritais;

b) a descrição sistemática das divisas dos distritos e municípios;

c) a revisão da Carta do Centenário da Independência ao milionésimo;

d) a elaboração do Atlas Estatístico Corográfico Municipal;

e) o cômputo da área e população urbana das sedes municipais e distritais, com o levantamento dos respectivos

efetivos prediais;

f) o cadastro predial e domiciliário das Capitais Regionais, organizado na conformidade do serviço padrão que

o Distrito Federal deverá instituir na forma prevista pela Cláusula XXXII, da Convenção Nacional de Estatística;

g) a intensificação do Registo Civil e a normalização do seu levantamento estatístico;

h) a regularização e o aperfeiçoamento das estimativas agrícolas e industriais;

i) o levantamento do cadastro das propriedades rurais;

j) a organização do cadastro industrial;

l) a organização das tábuas itinerárias brasileiras;

m) o alargamento das estatísticas dos meios de transporte e vias de comunicação;

n) o aperfeiçoamento da estatística das importações e exportações interestaduais;

o) o levantamento da estatística dos serviços de higiene e embelezamento urbanos;

p) a ampliação das estatísticas sobre a remuneração do trabalho e o custo da vida;

q) o estudo estatístico das organizações sociais trabalhistas;

r) o computo da produção bibliográfica brasileira;

s) o levantamento dos quadros do funcionalismo público federal, estadual e municipal;

t) o estudo estatístico do cadastro patrimonial da União, dos Estados e dos Municípios;

u) o estudo estatístico dos sistemas tributários da União, dos Estados e dos Municípios;

v) o levantamento esquemático-estatístico da organização administrativa da União, dos Estados e dos

Municípios;

x) a regularidade da divulgação, em todas as Unidades da Federação, do Anuário Municipal de Legislação e

Administração, previsto na Resolução n. 13, da assembleia geral do Conselho Nacional de Estatística;

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204

(iv) Decreto-Lei n° 311, de 2 de março de 1938: Dispõe sobre a divisão territorial

do país, com base no art. 15 da Constituição de 1937, que confere à União a

competência de resolver definitivamente sobre os limites do território nacional,

fazer o recenseamento geral da população e promover a delimitação uniforme

das circunscrições territoriais. Também conhecida como “Lei Geográfica do

Estado Novo”, cria uma política de divisão territorial regional para dirimir

conflitos e utilizar como instrumento de manuseio de dados estatísticos. Eram

conceitos que misturavam critérios geográficos e jurídicos com a finalidade de

harmonizar as competências federativas por intermédio de divisão territorial;

(v) Decreto-Lei n° 969, de 21 de setembro de 1938: Dispõe sobre os

recenseamentos gerais do Brasil, mantendo a periodicidade decenal dos Censos

Demográficos (art.1°);

(vi) Decreto-Lei n° 782, de 13 de outubro de 1938: Transforma provisoriamente a

Seção Estatística Territorial, da Diretoria de Estatística da Produção, no

Serviço de Coordenação Geográfica, com as funções de Secretaria Geral do

Conselho Nacional de Geografia e órgão técnico dos serviços geográficos da

Comissão Censitária Nacional;253

(vii) Decreto-Lei n° 796, de 19 de outubro de 1938: Dispõe sobre a Comissão

Censitária Nacional; e

z) o arrolamento de todos os elementos da organização nacional, de ordem econômica, social, cultural e

administrativa, cujo conhecimento seja útil à administração em geral ou, em particular, aos trabalhos censitários e à

segurança nacional. 253 No preâmbulo da norma, considerou-se que: (i) entre os trabalhos preparatórios do Recenseamento Geral da

República, para 1940, já iniciados, constam importantes encargos de natureza geográfica, afetos ao Conselho Nacional

de Geografia, um dos órgãos de superior direção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (art. 9º do Decreto-

Lei n.º 237, de 2 de fevereiro de 1938); (ii) o órgão técnico executivo central do Conselho Nacional de Geografia é a

Secção de Estatística Territorial da Diretoria de Estatística da Produção do Ministério da Agricultura, à qual cabem

os referidos trabalhos censitários de natureza geográfica (Resolução n.º 39, de 20 de julho de 1938, da Assembleia

Geral do Conselho Nacional de Geografia); e (iii) o pronunciamento da Comissão Censitária Nacional, no sentido de

ser a referida Secção elevada urgentemente, em organização de emergência, à categoria de "Órgão central" incumbido

da coordenação dos serviços geográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e, como tal, responsável

pelos trabalhos censitários de caráter geográfico, cuja execução cumpre ser facilitada (Resolução n. 10, de 25 de agosto

de 1938, da Comissão);

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205

(viii) Decreto-Lei n° 846, de 9 de novembro de 1938: Institui o "Dia do Município"

e regula a sua celebração.254

Nessa espécie de (re)nascimento da Geografia de Estado no Brasil, ganhou

centralidade a atuação do advogado e estatístico Mário Augusto Teixeira de Freitas, que conferiu

respaldo científico para viabilizar tecnicamente a escala de governança enquanto pressuposto do

pacto federativo, da coesão nacional e da divisão do trabalho. Pela primeira vez no país houve um

plano de cooperação interadministrativa, de âmbito federal, estadual, distrital e municipal, de

forma a viabilizar a unificação estatística enquanto técnica geográfica.

Ao estabelecer a base para a edificação da Geografia de Estado, Freitas, M. pregava a

reestruturação da administração brasileira com base, dentre outros pontos, na reforma

administrativa,255 na revitalização dos municípios256 e na redivisão territorial,257 incluindo mas não

se limitando a interiorização da capital.258 Estes pensamentos foram consolidados nas décadas

seguintes, mas eram percebidos na militância de Freitas, M. por um Brasil territorialmente

ordenado.

Este esforço de Freitas, M. vai além daqueles realizados por Barão (então Visconde)

do Rio Branco e pelo Duque de Caxias na viabilização do censo de 1872, ou a Rui Barbosa, quando

concebeu o serviço geográfico de 1890. O Patrono do IBGE correlaciona estatística, enquanto

técnica geográfica, ao Direito Administrativo, de forma que pode ser considerado como uma

espécie, igualmente, como o patrono do Direito Administrativo Geográfico no Brasil, por versar

sobre o critério espacial da administração pública e do critério coercitivo dos espaços geográficos

de uma forma integrada. Sua vanguarda foi tamanha que sua obra é contemporânea a

254 No preâmbulo da norma, considerou-se que: (i) segundo decretos-leis já baixados pelos Governos Estaduais, a

inauguração dos novos quadros circunscricionais (judiciário-administrativos) deverá obedecer, nos respectivos

âmbitos de jurisdição, ao ritual elaborado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; (ii) segundo esse ritual, as

solenidades inaugurais deverão realizar-se de modo inteiramente uniforme em todas as sedes municipais, revestindo-

se do tríplice caráter - histórico, jurídico e cultural.-, o que lhes dará um alto significado na vida municipal do país, e

assumindo também uma bela expressão nacionalista; (iii) a proposta do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,

apoiada pelo Conselho Nacional de Geografia, para que a data de 1 de janeiro de 1939, em que terão lugar essas

solenidades na forma da parte final do artigo único do decreto-lei n. 522, de 18 de julho de 1938, seja oficialmente

consagrada à exaltação do papel do Município na organização da Pátria Brasileira; e (iv) existe a faculdade que lhe

confere o art. 180 da Constituição Federal de 1937. 255 FREITAS, M., 1941b; 1949b; 1950c; 1953. 256 FREITAS, M., 1943; 1950b. 257 FREITAS, M., 1932; 1949a; 1950a. 258 FREITAS, M., 1948b.

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Geojurisprudência de Haushofer e aos enunciados de Spykman (1938, p. 28-50), que escreve, no

mesmo ano de criação do IBGE, artigo relacionando Geografia e Direito Internacional sendo, de

certa forma, o precursor da corrente do Law & Geography anglo-saxão que viria décadas depois.

A década de 1930 pode ser identificada como o auge da interação institucional entre a

Geografia e o Direito, tanto pela construção epistemológica interdisciplinar de Freitas, M. quanto

pelo fato de haver uma Geografia de Estado que necessitava de instrumentos (critérios coercitivos)

para se legitimar perante o território (critério espacial). Mais que os dois períodos anteriores, a

Geografia de Estado passava a ter uma preocupação central em viabilizar uma divisão geojurídica

do trabalho por meio do sistema Solidariedade-Justiça.

Mas se a abdicação de D. Pedro I dez meses depois da criação de uma política

geográfica e a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca dezoito meses depois da

institucionalização geográfica atrapalharam a construção e aprofundamento desta possibilidade, a

política geográfica de Vargas teve seus interesses fortemente afetados pelo início da Segunda

Grande Guerra (1939 - 1945). As relações externas relegaram as relações internas a um papel

secundário. A Geopolítica sucumbiu o Geodireito, como sempre o faz em épocas de guerra. E não

foi diferente em 1939.

Mas o IBGE estava criado, o censo já estava previsto para acontecer em 1940,259 e

havia a previsão jurídica de que a dinâmica territorial interna seria aperfeiçoada. A Geografia de

Estado era regulada diretamente pelo Presidente da República, por meio de Decreto-Lei. Neste

contexto, o Brasil declarou guerra em agosto de 1942, comprometendo a administração interna,

desestruturando, dentre outras coisas, a Geografia de Estado. A sessão ordinária dos Conselhos

Nacionais de Geografia e de Estatística deixou de ser realizar em 1943260 e em 1944.261 O serviço

de Geografia e Cartografia do IBGE demorou seis anos para ser criado, formalizado pelo Decreto-

Lei n° 6.828, de 25 de agosto de 1944.

Concomitantemente, o presidente Vargas desmembrou seis territórios na fronteira do

Brasil, de forma a intensificar sua gestão direta: Ponta Porã, Iguaçu, Amapá, Rio Branco, Guaporé

e o arquipélago de Fernando de Noronha. Os dois primeiros retornaram aos seus estados de origem

logo após o término da Segunda Grande Guerra, sendo que os demais continuaram na condição de

territórios na década de 1940. Neste cenário, o presidente Vargas outorgou uma nova leva de

259 Conforme previsto no Decreto-Lei n° 237, de 2 de fevereiro de 1938. Aparentemente era mais um esforço de

guerra, assim como o ocorrido com o censo de 1872. 260 Decreto-Lei n° 5.635, de 30 de junho de 1943. 261 Decreto-Lei n° 6.588, de 14 de junho de 1944.

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Decreto-Leis, que continuaram a ditar os rumos da Geografia de Estado, com uma característica

de centralização do critério espacial do governo no IBGE, que por sua vez era uma autarquia

dotada de personalidade jurídica para estruturar a técnica geográfica enquanto infraestrutura

espacial a serviço do Estado.

(i) Decreto-Lei n° 4,181, de 16 de março de 1942: Dispõe sobre a criação de

Secções de Estatística Militar;

(ii) Decreto-Lei n° 4.736, de 23 de setembro de 1942: Dispõe sobre a estatística

econômica e obriga os estabelecimentos industriais e comerciais a entregar ao

órgão de estatística municipal da respectiva sede, em impresso próprio, até o

décimo quinto dia útil de cada mês, informações sobre as compras, vendas e

estoques de mercadorias, e demais aspectos das suas atividades, durante o mês

anterior;

(iii) Decreto-Lei n° 5.901, de 21 de Outubro de 1943: Dispõe sobre as normas

nacionais para a revisão quinquenal da divisão administrativa e judiciária do

país;

(iv) Decreto-Lei n° 6.549, de 31 de maio de 1944: Cria regras de convalidação da

divisão territorial do Brasil;

(v) Decreto-Lei n° 6.828, de 25 de agosto de 1944: Cria o Serviço de Geografia e

Cartografia no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, destinado a

funcionar como órgão executivo central do Conselho Nacional de Geografia,

com o objetivo de executar trabalhos geográficos, cartográficos e

fotogramétricos que lhe forem determinados pelo Conselho Nacional de

Geografia;

(vi) Decreto-Lei n° 6.937, de 6 de outubro de 1944: Reorganiza o Serviço de

Estatística Demográfica, Moral e Política, subordinando-o ao Ministério da

Justiça e Negócios Interiores e obediente à orientação técnica do Conselho

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208

Nacional de Estatística. Constituía um dos órgãos executivos centrais do IBGE

e tinha por finalidade levantar as estatísticas referentes às atividades

demográficas, morais, administrativas e políticas do país, bem como promover,

em publicações próprias, ou por intermédio do Serviço de Documentação e do

IBGE a divulgação dessas estatísticas; e

(vii) Decreto-Lei n° 6.993, de 27 de outubro de 1944: Reorganiza o Serviço de

Estatística Econômica e Financeira, do Ministério da Fazenda, subordinando-

o ao Diretor Geral da Fazenda Nacional e obediente à orientação técnica do

Conselho Nacional de Estatística, constituía um dos órgãos executivos centrais

do IBGE e tinha por finalidade levantar as estatísticas referentes a impostos,

taxas e contribuições, comércio exterior e interior, movimento marítimo e

fluvial e movimento bancário do país, bem como promover, em publicações

próprias ou por intermédio do IBGE a divulgação dessas estatísticas.

4.3.1. O governo Dutra

Após o complexo ano de 1945, em que o mundo viu o término da Segunda Grande

Guerra, conheceu a bomba atômica e o Brasil depôs Getúlio Vargas, em 29 de outubro,262 o

presidente Dutra, que tinha como base desenvolver a infraestrutura do país por meio do Plano

SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia), outorga o Decreto-Lei n° 9.210, de 29 de

abril de 1946, que fixa normas para a uniformização da cartografia brasileira. Assim, os trabalhos

de levantamento que se realizassem no território nacional, no que se refere às operações

geodésicas, topográficas e cartográficas, ficaram sujeitos a normas técnicas que objetivavam

uniformizar a cartografia brasileira, enquanto técnica geográfica.

Este Decreto-Lei autorizava alguns órgãos com competência necessária para produzir

cartas, quais sejam: o Conselho Nacional de Geografia, o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística e o Serviço Geográfico do Exército. Para tanto, as normas técnicas referentes ao preparo

262 Com o fim do Estado Novo, ocorrido com a queda de Getúlio Vargas, toma posse o jurista cearense José Linhares,

que exerceu a Presidência por convocação das Forças Armadas, por ser Presidente do Supremo Tribunal Federal –

STF. Ficou no cargo por quase 100 dias, quando toma posse o marechal matogrossense Gaspar Dutra, por intermédio

de eleições diretas, nas quais apoiou sua campanha com base no Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e

Energia).

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209

das cartas hidrográficas ficaram a cargo da Diretoria de Navegação da Marinha, sendo aquelas

aeronáuticas sob responsabilidade da Diretoria de Rotas Aéreas da Aeronáutica. Por fim, as

normas técnicas relativas às cartas geológicas e climatológicas ficaram, respectivamente, sob

responsabilidade da Divisão de Geologia e Mineralogia e do Serviço de Meteorologia do

Ministério da Agricultura. Esta norma ainda atribuía competência ao Conselho Nacional de

Geografia para providenciar que as normas estabelecidas de acordo com fossem amplamente

difundidas e devidamente observadas pelos serviços públicos civis, e instituições particulares que

se dedicarem no País à confecção de cartas. Era a repetição dos preceitos de universalização das

cartas dispostos por D. Pedro I.

Durante o governo Dutra, o Brasil encontrava-se em processo de redemocratização e

necessitava de uma Constituição democrática. Em setembro, a Carta de 1946 veio cumprir este

papel, com uma riqueza de juristas atuando na Assembleia Constituinte jamais vista na história do

Brasil. Ela aprofunda o papel do Estado como planejador do espaço nacional, por meio do critério

espacial da norma.263 Tal função fica evidente ao prever o plano nacional de viação;264 sobre os

planos de colonização e de aproveitamento das terras pública;265 plano de combate à seca do

Nordeste;266 plano de valorização econômica da Amazônia;267 e o plano para aproveitamento do

rio São Francisco.268

263 Importante notar que o art. 6º previa que os Estados deveriam, no prazo de três anos, a contar da promulgação de

Ato, promover, por acordo, a demarcação de suas linhas de fronteira, podendo, para isso, fazer alterações e

compensações de áreas, que atendam aos acidentes naturais do terreno, às conveniências administrativas e à

comodidade das populações fronteiriças. Se solicitassem os Estados interessados, o Governo da União deverá

encarregar dos trabalhos demarcatórios o Serviço Geográfico do Exército. 264 Art. 5º. Compete à União: [...] X - estabelecer o plano nacional de viação; [...]. 265 Art. 156. A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento

das terras pública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e

os desempregados. 266 Art. 198. Na execução do plano de defesa contra os efeitos da denominada seca do Nordeste, a União dependerá,

anualmente, com as obras e os serviços de assistência econômica e social, quantia nunca inferior a três por cento da

sua renda tributária. 267 Art. 199. Na execução do plano de valorização econômica da Amazônia, a União aplicará, durante, pelo menos,

vinte anos consecutivos, quantia não inferior a três por cento da sua renda tributária. 268 Art. 29. Disposições Constitucionais Transitórias - O Governo federal fica obrigado, dentro do prazo de vinte anos,

a contar da data da promulgação desta Constituição, a traçar e executar um plano de aproveitamento total das

possibilidades econômicas do rio São Francisco e seus afluentes, no qual aplicará, anualmente, quantia não inferior a

um por cento de suas rendas tributárias.

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210

Esta Carta, além de ser a primeira a delegar competência a União para legislar sobre

as riquezas do subsolo,269 traz em seu conteúdo a criação de tribunais regionais,270 de forma a ser

a primeira Constituição a recepcionar em seu corpo os estudos do IBGE como referência para fixar

políticas públicas. É a institucionalização do conceito de região no Brasil aplicado no Poder

Judiciário, concomitante ao início do processo de descentralização de poderes, típico de países

federados, bem como do desenvolvimento regional.

Bercovici (2003, p. 71-72) ensina que nesse momento foi implementado, no Brasil, o

conceito de “região-plano”, espécie de escala de governança definida por pensadores franceses

como o espaço cujas diversas partes estão ligadas a uma mesma decisão política (o plano),

emanada por uma autoridade (localizada ou não na região) para atingir objetivos econômicos. O

essencial, para uma região-plano, é que esta tenha limites adequados e seja dotada de meios para

atingir os objetivos da decisão (plano) que a unifica. Logo, a região sintetiza o que o Estado

brasileiro pretende com a divisão geojurídica do trabalho, diferenciando estados em diferentes

regiões, que conterão políticas regionais específicas para promoção de seu desenvolvimento social

e econômico.

Diversos trabalhos foram realizados nos anos 1940, de forma a encontrar uma

metodologia de regionalização que conferisse sentido orgânico ao modelo federativo previsto

constitucionalmente. Os estudos eram realizados levando em conta diversos aspectos, que

invariavelmente culminavam numa divisão geoeconômica do trabalho, que ao ser dotado de

critério coercitivo passava a ser compreendida como divisão geojurídica do trabalho, ao produzir

solidariedade intra-regional para fomentar políticas públicas, de forma a estabelecer a forma de

desenvolvimento nacional no combate às desigualdades sociais inter-regionais.

269 Art 5º - Compete à União:

[...]

XV - legislar sobre:

[...]

l) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, floresta, caça e pesca;

[...] 270 Art. 105. A lei poderá criar, em diferentes regiões do País, outros Tribunais Federais de Recursos, mediante

proposta do próprio Tribunal e aprovação do Supremo Tribunal Federal, fixando-lhes, sede e jurisdição territorial e

observados os preceitos dos arts. 103 e 104. [...] Art. 109. Os órgãos da Justiça Eleitoral são os seguintes: [...] II -

Tribunais Regionais Eleitorais; [...] Art. 122. Os órgãos da Justiça do Trabalho são os seguintes: [...] II - Tribunais

Regionais do Trabalho; [...].

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211

MAPA 6 - Exemplo de estudo sobre divisão regional do Brasil, por vários autores

Fonte: IBGE, 1941.

Assim como ocorria com o conceito de regionalização, as demais técnicas geográficas

passavam por uma inflexão coercitiva com a publicação da Lei n° 960, de 08 de dezembro de

1949, que disciplinou, pela primeira vez, as atividades de aerolevantamento no Brasil, fixando

competência para a União e para algumas empresas privadas. Descortinava-se um conjunto de

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possibilidades que viabilizava, no Brasil, o emprego das informações aéreas e, posteriormente,

geoespaciais.

Além dos preparativos do censo de 1950,271 os regionalismos, enquanto técnicas

geográficas, foram progressivamente sendo incorporados pela legislação, na qualidade de técnica

jurídica. Por exemplo, o Decreto n° 28.840, de 8 de novembro de 1950, versa sobre a região

marítima, ao declarar integrada ao território nacional a plataforma submarina, na parte

correspondente ao território brasileiro. Era um cenário de grandes discussões geopolíticas, que de

certa forma refletiam o ambiente de Guerra Fria que se disseminava mundo afora com a

polarização entre o bloco democrata e o bloco comunista.

4.3.2. Segundo governo Vargas

Com o retorno de Vargas a presidência, em 31 de janeiro de 1951, agora pela via

democrática, além da preocupação com a infraestrutura houve a concepção e implementação de

mecanismos econômicos para desenvolvimento do país, notadamente a criação do Banco Nacional

de Desenvolvimento Econômico (BNDE),272 a limitação em 8% do total dos lucros de empresas

estrangeiras para o país de origem273 e a criação da Petrobras.274

Paralelamente, iniciava-se um crescente descontentamento com os rumos do IBGE,

em relação a controvérsia de natureza técnica no que diz respeito à economia, atualidade e exatidão

dos processos estatísticos em vigor. Considerando a relevância do IBGE, que dentro das margens

legais de autonomia administrativa e técnica estava diretamente subordinado ao Presidente da

República, o Decreto n° 30.399, de 16 de janeiro de 1952, designou comissão para estudar o

sistema estatístico brasileiro e emitir o parecer a respeito. Eram tempos em que nenhuma decisão

271 O Mapa Político do Brasil do IBGE de 1950 registrava a extinção pela Constituição Federal de 1946, dos Territórios

de Ponta-Porã e Iguaçu. Pelo Recenseamento Geral, o Brasil tinha aproximadamente 52 milhões de habitantes, em

1.889 municípios. 272 Pela Lei n° 1.628, de 20 de junho de 1952, que permitiu ao país contar com uma estrutura formuladora e executora

da política nacional de desenvolvimento econômico, imprescindível para possibilitar a industrialização por viabilizar

recursos financeiros em longo prazo em um momento no qual o sistema financeiro nacional apenas operava com

empréstimos em curto prazo. Logo, equacionava-se como o país seria industrializado. 273 Pelo Decreto n° 30.363, que dispunha sobre o retorno de capital estrangeiro, limitando-o a 8% do total dos lucros

de empresas estrangeiras para o país de origem. Esse instrumento normativo possibilitou que a base fiscal fosse o

grande motor da expansão que o setor elétrico experimentou nas décadas seguintes, de forma que a tarifa foi deixada

de lado, fato que tornou precária a situação da iniciativa privada frente a uma intervenção pública cada vez mais

estruturada. 274 A Lei n° 2.004, de 3 de outubro de 1953, que dispôs sobre a Política Nacional do Petróleo, definiu as atribuições

do Conselho Nacional do Petróleo e instituiu a sociedade por ações Petróleo Brasileiro S.A., doravante denominada

Petrobras, empresa pela qual a União passaria a exercer o monopólio estatal do petróleo previsto na Lei, abrangendo

exploração, produção, refino e transporte do petróleo no Brasil.

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política, econômica ou social era realizada no país sem a análise de seus critérios espaciais pelo

IBGE.

MAPA 7 – Brasil em 1950

Fonte: IBGE, 2012.

A Geografia de Estado estava no cerne do Direito Administrativo do país, da gestão

do erário público, mas mostrava seus primeiros sinais de desgaste. Eram tempos de grande

turbulência política, que culminaram, inclusive, no notório e trágico desfecho do governo

Vargas.275

275 Com a morte de Vargas, assume o Vice-Presidente, o advogado potiguar Café Filho, que fica quatorze meses no

poder, sendo afastado em 8 de novembro de 1955. Toma posse então o presidente da Câmara, o advogado mineiro

Carlos Luz, por apenas três dias, quando queda deposto por um dispositivo militar que o considerava impedido de

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4.3.3. O governo Kubitschek

Após quase 30 meses em que não houve qualquer novação jurídica referente à

Geografia de Estado, em 1956, por eleições diretas, assumiu o médico mineiro Juscelino

Kubitschek, que apresenta o Plano de Metas, que se constituía em 30 metas divididas em cinco

setores: energia, transportes, alimentos, indústrias de base e a construção de Brasília enquanto

capital federal.276 O presidente Kubitschek promove um novo arcabouço jurídico para viabilizar

suas promessas de campanha em geral, e confere grandes contribuições a Geografia de Estado em

específico:

(i) Decreto n° 43.285, de 25 de fevereiro de 1958: Cumpre o desígnio presente

desde a Constituição de 1891 e constitui Grupo de Trabalho com o fim de

promover a transferência de órgãos federais para Brasília, medida que será

seguida por diversas outras normas;277

(ii) Decreto n° 44.229, de 31 de julho de 1958: Institui a Comissão Censitária

Nacional, integrada no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com as

atribuições e deveres definidos no Decreto-Lei n° 969, de 21 de dezembro de

1938;

(iii) Decreto n° 47.044, de 19 de outubro de 1959: Aprova o regulamento da

Diretoria do Serviço Geográfico (DSG), diretamente subordinada ao Estado-

Maior do Exército, que se incumbe das atividades referentes à elaboração e

reprodução de documentos cartográficos de interesse principalmente, do

Exército;

exercer o cargo de Presidente da República pelo Congresso Nacional. Assume, então, enquanto Presidente do Senado

e nos 80 dias que restavam do mandato de Vargas, o advogado catarinense Nereu Ramos. 276 Havia a manifestação de se crescer “50 anos em 5”. Em 1957, é inaugurada a Rodovia Rio – Belo Horizonte. As

companhias automobilísticas Ford e General Motors passam a produzir veículos no Brasil, na região metropolitana de

São Paulo, especificamente no ABC paulista. Assim, se consolidava o eixo Rio – São Paulo – Belo Horizonte como

o berço da industrialização brasileira. E essa região precisava de energia, que mesmo antes da implementação do

parque industrial já demonstrava situação de crise energética. O Decreto n° 41.066, de 28 de fevereiro de 1957, veio

para sanar essa necessidade, ao criar a Central Elétrica de Furnas, com o objetivo de construir e operar no rio Grande

(divisa entre São Paulo e Minas Gerais, ao norte do Estado de São Paulo) um conjunto de usinas, sendo a primeira a

Usina Hidrelétrica de Furnas, com capacidade de 1.216 MW – a primeira considerada de grande porte no país, que

começou a funcionar efetivamente em 1963, em Passos (MG). Em 1959, foi inaugurada a primeira fábrica

automobilística da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, a primeira instalada fora da Alemanha. Foi o grande

marco do modelo nacional-desenvolvimentista, em oposição ao nacionalista, contrário ao capital externo. 277 Tais como Decreto n° 43.324, de 10/03/1958; Decreto n° 44.767, de 30/10/1958; e Decreto n° 45.810, de

15/04/1959.

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(iv) Lei n° 3.692, de 15 de dezembro de 1959: Cria a Superintendência para o

Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), iniciando processo de

institucionalização do desenvolvimento regional no Brasil;

(v) Decreto n° 47.813, de 2 de março de 1960: Institui o Serviço Nacional de

Recenseamento, viabilizando o censo de 1960; e

(vi) Decreto nº 49.914, de 12 de janeiro de 1961: dispõe sobre a instalação e o

funcionamento do Centro de Processamento de Dados da União, no IBGE,

com a finalidade de efetuar as apurações censitárias e estatísticas e os cálculos

geodésicos de interesse do Sistema Estatísticos-Geográfico Brasileiro, bem

como auxiliar o estudo e a solução dos problemas básicos essenciais às

decisões do Governo. Era o início do emprego da tecnologia por meio da

Geografia de Estado.

Em 21 de abril de 1960, o presidente Kubitschek inaugura Brasília. A descentralização

da capital produzia uma nova centralidade. A definição da localização da capital federal teve base

constitucional,278 que ordenava a transferência para o planalto central. Este mandamento, em

conjunto com o Relatório Cruls, fundou um verdadeiro sistema Mapa-Norma. O engenheiro

geógrafo Castro, C., descreve com grande síntese como a Geografia interagiu com a Constituição

Federal de 1946 para localizar e construir Brasília no planalto central. O método de

questionamento sobre “onde”, “porque” e “como”, que estão na gênese do Geodireito

Tridimensional, encontrou guarida nestas palavras.

A presente palestra resumir-se-á no seguinte:

Uma palavrinha sobre o “Por que?”; duas sobre o “Para onde?” e uma sobre o “Como?”.

Evidentemente, para ser fiel ao título da palestra, eu terei de deter-me um pouco mais na

segunda pergunta. Se não me falha a memória, estou solicitado a falar da mudança da

capital do país, à luz da ciência geográfica. A resposta ao “Por que”? está dada pela

Constituição Federal, que determina a mudança da capital da República para o planalto

central do Brasil. [...]

278 Art 4º da Constituição Federal de 1946: A Capital da União será transferida para o planalto central do País.

§ 1 º - Promulgado este Ato, o Presidente da República, dentro em sessenta dias, nomeará uma Comissão de técnicos

de reconhecido valor para proceder ao estudo da localização da nova Capital.

§ 2 º - O estudo previsto no parágrafo antecedente será encaminhado ao Congresso Nacional, que deliberará a respeito,

em lei especial, e estabelecerá o prazo para o início da delimitação da área a ser incorporada ao domínio da União.

§ 3 º - Findos os trabalhos demarcatórios, o Congresso Nacional resolverá sobre a data da mudança da Capital.

§ 4 º - Efetuada a transferência, o atual Distrito Federal passará a constituir o Estado da Guanabara.

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216

Para onde mudar a capital? É este um grande problema. Que diz a respeito a Constituição?

Ela diz: a capital do país será transferida para o planalto do país. Então, desde logo se

impõe a seguinte pergunta: que é planalto central do Brasil? Vamos a ver o que nos diz a

Geografia. (CASTRO, C., 1947, p. 281).

Ante este conceito geográfico, foi desmembrada uma área retangular do estado de

Goiás, que passaria a ser o novo Distrito Federal, concomitante a transformação do antigo Distrito

Federal no estado da Guanabara, compreendendo a cidade do Rio de Janeiro. Este cumprimento

da Constituição Federal ocasionou um grande déficit financeiro, de maneira que a inflação dobrou

para 40% ao ano durante o mandato.

4.3.4. O governo Quadros

Neste cenário, o presidente Jânio Quadros assumiu em 31 de janeiro de 1961 com uma

agenda negativa para a Geografia de Estado. Em sua curta gestão, publicou o Decreto n° 50.371,

de 22 de março de 1961, que revogou a iniciativa de Kubitschek de centralizar o Centro de

Processamento de Dados da União no IBGE e o Decreto nº 50.372, de 22 de Março de 1961, que

cancelou as Assembleias-Gerais dos Conselhos Nacionais de Estatística e de Geografia. Os dados

positivos foram no sentido de ter criado Grupo de Organização da Comissão Nacional de Estudos

Espaciais, bem como instituir a Divisão Turística do Território Nacional. Todavia, esta agenda

afirmativa ocorreu no mesmo mês de sua saída precoce da presidência.

Em 25 de agosto de 1961, após sete meses de governo, o presidente Jânio Quadros

submeteu sua renúncia ao mandato presidencial, que foi prontamente aceita pelo Congresso

Nacional. O advogado gaúcho João Goulart, então Vice-Presidente, não assumiu, pois estava em

viagem à República Popular da China. O Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli,

assumiu o poder, como substituto legal, no dia subsequente à renúncia. Iniciava-se outro período

de instabilidade institucional no Brasil.

4.3.5. O governo Goulart

Em 8 de setembro de 1961, por meio de sessão conjunta do Congresso Nacional,

Goulart toma efetivamente posse na Presidência da República. Sua principal meta279 foi o Plano

Trienal, proposto por Celso Furtado, então Ministro do Planejamento, que objetivava conter a

279 Importante destacar que Goulart elevou o Território Federal do Acre à condição de estado em 1962.

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disparada inflacionária e o desequilíbrio crescente na balança comercial. Neste contexto ganhou

centralidade o Decreto n° 52.256, de 11 de julho de 1963, que dispôs sobre a Coordenação do

Planejamento Nacional. Era uma medida eminentemente econômica e financeira, que almejava

propulsar e disciplinar o processo de desenvolvimento econômico e social do país. Neste processo,

a Geografia de Estado regulada pelo IBGE280 não estava integrada no contexto do planejamento

nacional. O plano não logrou o êxito esperado e o alto endividamento da União acompanhou o

governo Goulart até 31 de março de 1964, quando o movimento militar depôs o presidente, que

forçosamente deixou o país de imediato.

No dia 2 de abril de 1964, o Congresso Nacional declarou a vacância da Presidência

da República, melancólico término de um fértil período de profundas transformações econômico-

sociais baseadas na prática de uma Geografia de Estado simétrica. Ao aplicarmos o modelo

tridimensional interdisciplinar, nota-se a existência de simetria entre a Geografia e o Direito, que

consequentemente reflete um Geodireito igualmente simétrico:

(i) Tríade fato-valor-técnica geográfica: característica considerada neste

período em equilíbrio com as demais dimensões, com base na construção

epistemológica de Teixeira de Freitas, enquanto estatístico,281 ao viabilizar

uma Geografia de Estado dotada de fenomenologia geográfica (território,

região, localidade e escala), de axiologia geográfica (desenvolvimento da

coesão interna, em sua dimensão econômica e social, com base em valores

geográficos) e de técnica geográfica (praticar censos decenais, incorporando

linguagens e tecnologias que possibilitem constituir uma infraestrutura

geográfica), que em simetria constituem o critério espacial do Brasil;

(ii) Tríade fato-valor-técnica jurídica: característica considerada neste período

em equilíbrio com as demais dimensões, com base na construção

epistemológica de Teixeira de Freitas, enquanto jurista, ao viabilizar uma

Geografia de Estado dotada de fenomenologia jurídica (União, estados,

Distrito federal e municípios), de axiologia jurídica (busca de uma justiça

enquanto ordem que promova a coesão interna, em sua dimensão econômica e

social, com base em valores jurídicos) e de técnica jurídica (constituir

legislações que incorporem linguagens e tecnologias que possibilitem

280 O IBGE sequer foi mencionado na norma. 281 Sendo a estatística considerada uma técnica geográfica.

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constituir um marco regulatório geográfico), que em simetria constituem o

critério coercitivo do Brasil; e

(iii) Tríade fato-valor-técnica geojurídica: característica considerada neste

período em equilíbrio com as demais dimensões, com base na construção

epistemológica de Teixeira de Freitas, enquanto patrono da Geografia de

Estado no Brasil, ao dotá-la de fenomenologia geojurídica (escalas de

governança definidas), de axiologia geojurídica (divisão geojurídica do

trabalho estabelecidas nos planejamentos setoriais, de maneira a promover a

coesão interna, em sua dimensão econômica e social, com base em valores

geojurídicos) e de técnica geojurídica (constituindo políticas públicas,

enquanto infraestrutura jurídica, para fomentar técnicas geográficas, tais como

mapeamento, cartografia, estatística, aerolevantamento etc.. enquanto

infraestrutura geográfica), que em simetria constituem a aplicação do

Geodireito no Brasil.

FIGURA 48– Modelo tridimensional aplicado a Geografia Federalizada

Geografia simétrica: tríade fato-valor-técnica

Direito simétrico: tríade fato-valor-técnica

Conclusão: Geodireito simétrico. Viabilidade de mediação entre critério espacial e

coercitivo pela Geografia de Estado no Brasil

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Neste período, pode-se notar uma construção simétrica do Geodireito, possibilitando

o exercício do Direito Administrativo Geográfico. Em que pese ser possível – e válido – questionar

que a estrutura de Teixeira de Freitas foi realizada em um período de exceção – o Estado Novo -,

situação que desencadearia o surgimento de uma assimetria na axiologia jurídica, uma vez que os

cidadãos eram tratados de forma desigual, a estrutura do IBGE se manteve também em período

democrático, demonstrando sua pujança enquanto autarquia, bem como a eficácia enquanto órgão

oficial e imprescindível de ordenação do critério espacial nacional. Todavia, a Geografia de Estado

estava na antessala de uma profunda reestruturação, que no limite sucumbiu a visão de Teixeira

de Freitas de revitalizar municípios, atuar na redivisão territorial e promover o ordenamento do

território brasileiro.

4.4. A Geografia militarizada: A Fundação IBGE, O CMEABEUSC e o COCAR

(1964 - 1988)

As grandes inovações na Geografia de Estado retornaram com um novo período de

exceção. O Regime Militar instalado em 1964 tinha como um de seus discursos mais contundentes

a necessidade de centralizar o planejamento do país. O marechal cearense Castelo Branco assumiu

a presidência em 11 de abril de 1964, eleito de forma indireta.282 No plano econômico, acentuou-

se a internacionalização da economia para a entrada de capitais estrangeiros no país para

construção de obras rodoviárias, liberação e financiamento governamental de facilidades

tributárias para fabricantes de equipamentos e insumos rodoviários. Por outro lado, o Estado

centralizava o controle e a distribuição dos ativos financeiros, por meio da intervenção direta no

mercado de capitais.

4.4.1. O governo Castelo Branco

Castelo Branco promoveu importante repercussão no critério espacial da norma. Em

relação à ruralidade, o presidente publicou a Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964, referente

ao Estatuto da Terra, que regulou os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais,

para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola. Neste escopo,

podemos encontrar uma definição sobre a propriedade rural no art. 4o desta norma, ao descrever

282 A Emenda Constitucional n° 9, de 22 de julho de 1964, prorrogou os mandatos do Presidente e do Vice-Presidente

até 15 de março de 1967.

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220

que, para efeitos da aludida lei, imóvel rural é o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja

a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer

por meio de planos públicos de valorização, quer por intermédio de iniciativa privada.

Esta norma tratou ainda sobre as questões cadastrais, obrigando a atualização a cada

cinco anos (art. 52), sendo aperfeiçoados os métodos de apuração dos dados pelo uso de fotografias

aéreas das áreas já cobertas. Assim, a União deveria lançar e arrecadar o ITR, ficando a cargo do

IBRA a responsabilidade de promover levantamentos para elaboração de cadastro de imóveis

rurais no país.

Tem-se, aqui, uma definição para a propriedade rural voltada para a finalidade da

utilização do imóvel. O conceito exposto confere uma característica rural a toda propriedade que

tiver uma finalidade agrária, em qualquer localização na qual o imóvel se situe. Assim, a

delimitação administrativa no Brasil fica comprovada por meio de legislações esparsas no

ordenamento, sem terem sido refletidas em conjunto, mas de forma a contrapor o que é urbano e

rural, dentro de um conceito finalístico e que amplia a dicotomia “moderno-rústico”.

A ruralidade, condicionada ao “moderno-rústico”, novamente é evocada no art. 32 da

Lei n° 5.172, de 1966,283 referente ao Código Tributário Nacional. Ao fixar critérios para a

incidência do IPTU faz uma leitura da ruralidade pela escassez de infraestrutura urbana. Logo,

para efeitos tributários,284 a ausência de infraestrutura, ou mesmo das comodidades até então

consideradas privilégios exclusivos da urbanidade, definem a subsunção a hipótese de incidência

tributária do ITR.285

283 Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato

gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na

lei civil, localizado na zona urbana do Município. § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a

definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2

(dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização

de águas pluviais; II - abastecimento de água; III - sistema de esgotos sanitários; IV - rede de iluminação pública, com

ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3

(três) quilômetros do imóvel considerado. § 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de

expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria

ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior. 284 Cabe registrar que a doutrina e a jurisprudência, ao longo dos anos, tem considerado a finalidade do imóvel para

efeitos de cobrança do ITR, fato que privilegia a dicotomia urbano-agrário em detrimento do urbano-rural. 285 Para Endlich (2006, p. 17), tal critério não parece ser suficiente para as diferenciações espaciais, pois, nesse prisma,

os habitantes da cidade são vistos ora como produtores, ora como consumidores. Tal conceito faz com que o rural e o

urbano sejam empregados como meros adjetivos territoriais, por intermédio de somatória de critérios objetivos, como

por exemplo, densidade demográfica ou atividade econômica. Para Abramovay (2000), ao focar as discussões sobre

a ruralidade, discorre com síntese sobre o grande paradigma atualmente existente na concepção do que é urbano ou

rural. Há a identificação de três formas dominantes de delimitação do rural. A primeira é a delimitação administrativa,

conceito no qual os municípios definem discricionariamente o critério. Esta metodologia tem demonstrado que as

conseqüências fiscais da definição acabam sendo mais importantes que seus aspectos geográficos, sociais, econômicos

ou culturais. No Brasil, as sedes de distrito com algumas centenas ou dezenas de casas são definidas como “urbanas”

por haver determinados serviços públicos que servem a certo aglomerado populacional. Assim, o rural tende a ser

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221

Concomitante ao foco na ruralidade, Castelo Branco cria todo um arcabouço

normativo que, no limite, usa o critério espacial como forma de preservação ambiental por meio

de um critério cogente. Nota-se uma proliferação normativa do conceito de reserva, enquanto área

delimitada com finalidade específica de proteção a um interesse difuso, expostos na Lei n° 4.504,

de 30 de dezembro de 1964 (Estatuto da Terra), na Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965

(Código Florestal), da Lei nº 5.197, de 03 de janeiro de 1967 (Lei de Proteção à Fauna), e do

Decreto-Lei nº 221, de 28 de fevereiro de 1967 (Código da Pesca). Estas técnicas jurídicas criaram

diversas técnicas geográficas, tais como parques nacionais, reservas indígenas, biológicas, dentre

outros.

Por sua vez, na seara cartográfica houve um grande alinhamento com os Estados

Unidos, que influenciou decisivamente a técnica geográfica. No biênio 1966/1967, Castelo Branco

estabeleceu grupo de trabalho para definir as Diretrizes e Bases da Política Cartográfica Nacional,

que culminou no Acordo Brasil - Estados Unidos sobre Serviços Cartográficos – CMEABEUSC,

com base no Decreto Legislativo n° 68, de 14 de julho de 1965. A justificativa para tanto é que o

desenvolvimento econômico e social do país estava atrelado à segurança nacional. A intervenção

do presidente na Geografia de Estado no Brasil somente pode ser comparada àquela realizada por

Getúlio Vargas, com efeitos sentidos até hoje:

(i) Decreto n° 57.814, de 15 de fevereiro de 1966: Fixa a composição da

delegação brasileira na comissão mista executora do acordo Brasil - EUA

sobre serviços cartográficos e define sua vinculação com órgãos do governo

brasileiro;

(ii) Decreto n° 58.733, de 27 de junho de 1966: Promulga o acordo para o preparo

de mapas topográficos e cartas aeronáuticas no Brasil com os EUA;

(iii) Decreto-Lei n° 44, de 18 de novembro de 1966: Altera os limites do mar

territorial do Brasil para seis milhas marítimas de largura, medidas a partir do

limite externo das águas territoriais, estabelecendo uma zona contígua desde

o cabo Orange, na foz do rio Oiapoque, ao arroio Chuí, no Estado do Rio

Grande do Sul;

definido, em princípio, pela carência e escassez, o que não pode ser considerado um critério adequado perante os

atuais conceitos de dignidade humana.

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222

(iv) Decreto-Lei n° 161, de 13 de fevereiro de 1967: Autoriza a instituição da

Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Fundação IBGE); do

Plano Nacional de Estatística; e do Plano Nacional de Geografia e Cartografia

Terrestre. Altera completamente a governança da Geografia de Estado no

Brasil, retirando o caráter autárquico do IBGE; e

(v) Decreto-Lei n° 243, de 28 de fevereiro de 1967: Fixa as Diretrizes e Bases da

Cartografia Brasileira, criando o sistema único, chamado Sistema

Cartográfico Nacional (SCN), sujeito à disciplina de planos e instrumentos

de caráter normativo; e a Comissão de Cartografia (COCAR), órgão da

Fundação IBGE incumbido de coordenar a execução da Política Cartográfica

Nacional, constituído por representante do Ministério da Marinha, da Guerra,

da Aeronáutica, da Agricultura, das Minas e Energia e da Associação

Nacional de Empresas de Aerofotogrametria.

O efeito imediato deste novo marco regulatório geográfico foi a reinvenção da

cartografia brasileira, que internalizava as práticas tecnológicas dos EUA, concomitante a perda

de autonomia do IBGE para a produção da Geografia de Estado. Sua caracterização como fundação

demonstrou, ao longo do tempo, uma sobrecarga de seu lado estatístico em detrimento de sua

vertente geográfica. Era o privilégio do instrumentalismo, da técnica geográfica, em detrimento

da axiologia que, em última análise, atendia aos interesses do Regime Militar de centralizar o valor

geográfico contido na Geografia de Estado, sem maiores discussões pela sociedade.

Ou seja, na vertente instrumental, a representação da Geografia do Estado brasileiro

ganhou uma então inédita pujança, sendo realizada por cartas, elaboradas seletiva e

progressivamente, consoante prioridades conjunturais, segundo os padrões cartográficos terrestre,

náutico e aeronáutico. Os levantamentos cartográficos sistemáticos seriam apoiados

obrigatoriamente em sistema plano-altimétrico único, de pontos geodésicos de controle,

materializados no terreno por meio de marcos, pilares e sinais, constituídos na forma da lei. Este

sistema cartográfico permitiu considerável mapeamento do país, contribuindo sensivelmente em

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projetos estruturantes, altamente planejados, sendo que empreendimentos no setor elétrico,286 em

telecomunicações287 e em transportes288 repaginariam a infraestrutura nacional.

Por outro lado, a Fundação IBGE não teria mais a competência de ordenar o território,

de ser o grande gestor do espaço nacional, função que progressivamente foi sendo fragmentada e

atribuída a órgãos regionais, tais como SUDENE, SUDAM e CODEVASF, órgãos reestruturados

por Castelo Branco sob o argumento de ordenar suas regiões com o objetivo de combater a

desigualdade regional. Pode-se afirmar, analogicamente, que se antes o IBGE autárquico

funcionava como o grande maestro de uma orquestra que produzia diversos critérios espaciais, o

integrando e dando um sentido de conjunto, Castelo Branco transforma o maestro em produtor de

partituras, que seriam utilizadas para que cada músico toque sua música, dentro de sua

regionalidade, sem maestro o regendo. Ou melhor, o maestro seria o próprio dono da orquestra,

sem conhecimentos específicos sobre música – o Presidente da República. O produtor de

partituras, por melhor que seja, criará conteúdo musical, mas não música. Produz técnica, mas não

valor.

Neste cenário, delegar a Fundação IBGE a estrita função de produção de dados

descaracterizou por completo a ideia original de Teixeira de Freitas, desorientando as políticas

públicas pautadas no critério espacial. Se por um lado Castelo Branco reinventou a técnica

geográfica, possibilitando que o Brasil alcançasse novos patamares tecnológicos em cartografia,

aerofotogrametria, sensoriamento remoto, processamento de dados etc., por outro lado inviabilizou

o Direito Administrativo Geográfico, inclusive excluindo a Fundação IBGE da reforma

administrativa, em que pese pregar a descentralização das atividades federais enquanto princípio

do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967 (art. 6°).

Esta supressão axiológica da Geografia de Estado fez com que a técnica sucumbisse o

culturalismo, ou seja, o Estado adotasse uma visão quantitativa da Geografia. Este raciocínio

encontra respaldo em Couto e Silva que, como grande teórico deste período, demonstrou em 1966

o pensamento majoritário dos governantes de então, de que havia um esgotamento da

286 o consórcio Canambra Engineering Consultants Limited (Canadá – America – Brasil) foi financiado pelo Banco

Mundial, que: (i) fundamentou o planejamento energético do Brasil; (ii) possibilitou o levantamento dos potenciais

hidrelétricos; e (iii) criou condições de desenvolver a economia do país, por meio do Programa de Ação Econômico

do Governo (PAEG) de 1964 a 1966 e do Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED) de 1968 a 1970. Era o

estabelecimento de novas metodologias de planejamento com enfoque na expansão de longo prazo. Logo, a Canambra

possibilitou a existência de um planejamento centralizado, de forma a criar condições de interligação de sistemas e

instalar grandes reservatórios sob a operação da Eletrobrás. 287 Em 1972, por força da Lei n° 5.792, criou a Telecomunicações Brasileiras S/A – Telebrás. 288 Em 1970, o presidente Médici convidou os homens sem terra do Brasil a ocuparem as terras sem homens da

Amazônia, dando início aos projetos rodoviários da Transamazônica, Cuiabá – Santarém (BR-163), Manaus – Porto

Velho (BR-319) e a Perimetral Norte (que deveria ligar Macapá com Manaus e que não foi terminada).

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discricionariedade do Estado enquanto autarquia, que deveria se tornar lógico e, por que não,

matemático.

O Estado soberano, surgido das fontes profundas do Medo para prover a segurança

individual e coletiva na Terra, passaria a afirmar sua vontade onipotente sobre os destinos

de todos os súditos que o haviam criado, assim mesmo, inigualável e autárquico, mas, já

agora, pela própria necessidade de um raciocínio lógico, escorreito e severo, que o

justificaria, de uma vez para sempre, contra todas as críticas e contra quaisquer

argumentações. (COUTO E SILVA, 1981, p. 7.)

Esta visão de Geografia de Estado produziu alguns fatores determinantes para o

desenvolvimento da Geografia no Brasil: (i) a Revista Brasileira de Geografia passou,

basicamente, a relatar aspectos de relações internacionais, geopolítica, com sensível diminuição

das publicações com enfoque na realidade interna brasileira; (ii) a ausência de democracia impediu

que um conjunto de profissionais, dentre estes geógrafos e juristas que não estavam alinhados ao

Regime Militar, mas que tinham estrutura técnica para contribuir para o desenvolvimento do país,

ascendessem profissionalmente, fato que, no mínimo, diminuiu consideravelmente as

possibilidades científicas do Brasil naquele momento; e (iii) a Constituição de 1967 incluiu a

técnica geográfica como competência da União, fundada na estatística e na cartografia, (art. 8°,

“u”), mas não tratou do sistema geográfico enquanto axiologia. Ao aplicarmos o modelo

tridimensional interdisciplinar, nota-se a inexistência de simetria entre a Geografia e o Direito, que

consequentemente reflete um Geodireito igualmente assimétrico, uma vez que:

(i) Tríade fato-valor-técnica geográfica: Característica desequilibrada neste

período, que observa a retirada da função autárquica do território (IBGE)

concomitante a atribuição autárquica as regionalidades (p. ex., SUDENE e

CODEVASF), de maneira que o ordenamento do espaço assume uma função

meramente desenvolvimentista, sendo necessária apenas onde é considerado

com índices sociais e econômicos abaixo das regiões consideradas

desenvolvidas. Há uma atomização do critério espacial pela regionalização e

pela temática (p. ex., intensificação da Geografia Ambiental, Geografia

Agrária e Geografia Urbana). Esta visão fracionada inicia uma segmentação do

valor geográfico, produzindo subsistemas de ricas percepções mas de frágil

organicidade, em que pese pormenorizar as ferramentas técnicas como

pressuposto de desenvolvimento de infraestrutura geográfica;

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(ii) Tríade fato-valor-técnica jurídica: Característica desequilibrada neste

período, que observa a retirada da função autárquica do território (IBGE)

concomitante a atribuição autárquica as regionalidades (p. ex., SUDENE e

CODEVASF), de maneira que a busca pela justiça social e econômica assumiu

uma função meramente desenvolvimentista e regionalizada. Há uma

atomização do critério coercitivo pela regionalização e pela temática (p. ex.,

intensificação do Direito Ambiental, Direito Agrário e Direito Urbanístico).

Esta visão fracionada inicia uma segmentação do valor jurídico, produzindo

subsistemas de ricas percepções mas de frágil organicidade, concomitante ao

fato de o Regime Militar ser um governo de exceção, reduziu as possibilidades

de atribuição de um valor jurídico condizente com a complexidade do país,

com uma produção normativa comprometida pelo fato de o Congresso

Nacional funcionar em um regime de exceção; e

(iii) Tríade fato-valor-técnica geojurídica: Característica desequilibrada neste

período. Em que pese o aprimoramento das escalas de governança, com uma

sinalização descentralizadora das competências da União pelo art. 6° do

Decreto-Lei n° 200, de 1967, há uma verdadeira espécie de diáspora axiológica

incentivada pela Geografia de Estado, que desestimula a coesão interna ao

retirar a função autárquica do território (IBGE) e cria uma nova divisão

geojurídica do trabalho ao atribuir condição autárquica as regionalidades (p.

ex., SUDENE e CODEVASF) e temática (setor ambiental, agrário e urbano),

de maneira que o ordenamento do espaço assume uma função meramente

desenvolvimentista, sendo necessária apenas onde é considerado com índices

sociais e econômicos abaixo das regiões consideradas desenvolvidas. Esta

visão fracionada produz valor geojurídico de rica percepção mas de frágil

organicidade, em que pese haver um estruturado sistema Mapa-Norma, que

viabiliza a infraestrutura geográfica enquanto técnica em patamares

anteriormente não conhecidos.

Talvez aqui resida fértil discussão sobre a principal diferença de visão de Estado de

dois regimes de exceção: enquanto Vargas, no Estado Novo, para governar criava uma estrutura

autárquica, unindo o país em um modelo de coesão axiológica às vésperas da Segunda Grande

Guerra; o Regime Militar de 1964 eliminava esta estrutura autárquica sob o mesmo pretexto de

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governabilidade, fortalecendo a fragmentação axiológica e instrumental com o intuito de combater

uma ameaça externa decorrente do período de Guerra Fria. O Direito Administrativo Geográfico

sucumbia a uma visão estritamente geopolítica do Estado, que no limite alterou o centro de

gravidade do pensamento geográfico do Estado do IBGE para a ESG.

Nesta visão de alerta permanente contra um inimigo externo, a lógica adotada foi de

desenvolver técnicas geográficas com os aliados internacionais, EUA à frente, para mapeamento

do país, com a devida base legal. A fragmentação axiológica seria remediada pela centralização

de poder decorrente do Regime Militar (em que pese, normativamente, pregar a descentralização),

de maneira que a fragmentação na técnica geográfica poderia ser suprida pela visão geopolítica de

Estado, em que sua coesão e organização interna se procederia enquanto atividade-meio, em

função da ameaça externa.

FIGURA 49 – Modelo tridimensional aplicado a Geografia Militarizada

Geografia assimétrica: fato definido, valor minimizado e fragmentado, técnica bem

dimensionada, mas fragmentada

Direito assimétrico: fato definido, valor minimizado e fragmentado, técnica bem

dimensionada, mas fragmentada

Conclusão: Geodireito assimétrico. Desequilíbrio e fragmentação entre axiologia e técnica

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227

E esta tônica permeou todo o critério espacial das políticas públicas nas duas décadas

seguintes, sendo aprofundada por todos os presidentes subsequentes, independentemente se em

regime de exceção ou sob democracia.

4.4.2. O governo Costa e Silva

O presidente seguinte, o general gaúcho Costa e Silva, também eleito de forma

indireta, assumiu em 15 de março de 1967. Ele teve como um dos grandes destaques de sua gestão

o planejamento e a implementação, em 1967, do Projeto Jari, no Amapá. Esse projeto tinha como

objetivo produzir celulose no interior da Amazônia e integrar a região, de forma a ocupar a

fronteira norte brasileira e fomentar atividade econômica perene naquela parte do território.289

Com a Constituição outorgada, iniciam-se as preocupações com o desenvolvimento nacional290 e

com o Congresso Nacional podendo dispor sobre planos e programas nacionais e regionais.291 Ato

contínuo, a Carta outorgada inovou ao empregar o conceito de região para institucionalizar

dotações plurianuais para a execução dos planos de valorização das regiões menos desenvolvidas

do País (art. 65)292 e para estabelecer regiões metropolitanas, a ser composta por municípios que

integrem a mesma comunidade socioeconômica, mesmo com vinculação administrativa distinta.293

No que concerne a Geografia de Estado, Costa e Silva aprofunda a visão de Geografia de Estado

construída por Castelo Branco, ao desenvolver alguns eixos temáticos:

(i) Regulamentou a atuação da Fundação IBGE enquanto órgão de produção

técnica,294 bem como a Diretoria do Serviço Geográfico;295

289 Foram construídas duas plataformas flutuantes, a primeira com uma unidade produtora de celulose, sendo a segunda

destinada à produção de energia em 55MW, alimentada a diesel, com opção de consumo de cavacos de madeira. 290 Art. 8º. Compete à União: [...] XIII - estabelecer e executar planos regionais de desenvolvimento; [...]. 291 Art. 46. Ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, cabe dispor, mediante lei, sobre todas

as matérias de competência da União, especialmente: [...] III - planos e programas nacionais, regionais e orçamentos

plurianuais; [...]. 292 Art. 65. O orçamento anual dividir-se-á em corrente e de capital e compreenderá obrigatoriamente as despesas e

receitas relativas a todos os Poderes, órgãos e fundos, tanto da Administração Direta quanto da Indireta, excluídas

apenas as entidades que não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento. [...] § 6º - O orçamento

consignará dotações plurianuais para a execução dos planos de valorização das regiões menos desenvolvidas do País. 293 Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: [...] § 10 -

A União, mediante lei complementar, poderá estabelecer regiões metropolitanas, constituídas por Municípios que,

independentemente de sua vinculação administrativa, integrem a mesma comunidade sócio-econômica, visando à

realização de serviços de interesse comum. 294 Decretos n° 61.126 e 61.127, ambos de 2 de agosto de 1967. 295 Decreto n° 62.237, de 8 de fevereiro de 1968.

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228

(ii) Criou regionalidades, por meio da Superintendência da Zona Franca de

Manaus – SUFRAMA enquanto critério espacial para isenção tributária,296 da

SUDECO297 e da SUDAM;298

(iii) Aprovou o regulamento do Comando da Zona Aérea, regionalizando o espaço

para finalidade de aviação;299

(iv) Aprovou o Regulamento do VIII Recenseamento Geral do Brasil;300 e

(v) Produziu sua maior contradição, e motivo pelo qual se perpetuou na história do

país, ao criar a obrigatoriedade de prestação de informações estatísticas,301 para

que a Fundação IBGE pudesse executar o Plano Nacional de Estatística,

garantindo sigilo e que as informações não seriam usadas como prova contra a

população (art. 2°), um mês antes de editar o Ato Institucional n° 5, que lhe

dava poderes para fechar o Parlamento, cassar políticos e institucionalizar a

repressão.

Com a saída de Costa e Silva em 31 de agosto de 1969, uma Junta Militar assumiu o

Governo em 1969, com sua investidura no cargo prevista em Ato Institucional e não em um Termo

de Posse, tendo publicado o novo texto da Constituição Federal, por meio da Emenda n° 1, de 17

de outubro de 1969.

4.4.3. O governo Médici

Em 30 de outubro de 1969 assumiu a presidência o general gaúcho Emílio Garrastazu

Médici, eleito de forma indireta. Em seu governo, o Brasil teve um crescimento anual superior a

10% do Produto Interno Bruto (PIB). Havia uma crescente preocupação com a ocupação do

território nacional, incluindo a questão da reforma agrária. Neste sentido, o Decreto n° 1.110, de

9 de julho de 1970, criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia

296 Decreto n° 61.244, de 28 de agosto de 1967. 297 Lei n° 5.365, de 1° de dezembro de 1967. 298 Lei n° 5.374, de 7 de dezembro de 1967. 299 Decreto n° 64.450, de 2 de maio de 1969. 300 Decreto n° 64.520, de 15 de maio de 1969. 301 Lei nº 5.534, de 14 de Novembro de 1968

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229

federal dotada da missão de realizar a reforma agrária, bem como a obrigação de manter o cadastro

nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União.

MAPA 8 - Brasil em 1970

Fonte: IBGE, 2012.

O quadro de divisões regionais foi publicado pelo Decreto nº 67.647, de 23 de

novembro de 1970, que conferia oficialidade aos estudos da Fundação IBGE referente ao novo

quadro composto por cinco grandes regiões, vigentes até hoje:302 Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e

302 As alterações subsequentes decorreram da criação do Estado do Mato Grosso do Sul (1979), incorporado à Região

Centro-Oeste e do Estado do Tocantins (1988), incorporado à Região Norte.

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230

Centro-Oeste. Como o IBGE não era mais autárquico, seus estudos passavam a necessitar de ato

presidencial para assumir caráter de oficialidade.

Os estudos da Fundação IBGE seriam finalizados apenas em 1976, totalizando 86

mesorregiões homogêneas. Se a Geopolítica ganhava sua força enquanto projeto militar de

manutenção do poder e de segurança contra ameaça externa, a Geoeconomia se disseminava na

base, em prol da edificação do desenvolvimento regional e o Geodireito se tornava uma

reminiscência epistemológica, haja vista a ausência de participação popular no critério espacial da

técnica jurídica (processo decisório do Regime Militar) e da assimetria interdisciplinar.

Mas para a técnica geográfica, os efeitos da fragmentação regional começam a

demonstrar sinais de comprometimento das funções das escalas de governança. O presidente

Médici, então, cria o Programa de Integração Nacional,303 304 muito mais no sentido de viabilizar

as obras305 assumidas para o “milagre brasileiro”, tais como as rodovias Transamazônica e Cuiabá-

Santarém, do que no sentido de reconhecer a necessidade de haver um maestro para reger o

emaranhado de regionalidades que se reproduziam em grande velocidade. O Brasil se desenvolvia

economicamente, as técnicas geojurídicas (sistema Mapa-Norma) eram amplamente empregadas

para o alcance deste desenvolvimento, mas a axiologia geojurídica não se sofisticava, pelo

contrário, retrocedia ao vácuo epistemológico da década de 1920.

O presidente Médici deve ainda ser reconhecido como o responsável pelo

aprofundamento das seguintes técnicas geojurídicas, que contribuíram para a consolidação do

sistema Mapa-Norma no Brasil:

(i) Decreto n° 68.099, de 20 de janeiro de 1971: Cria a Comissão Brasileira de

Atividades Espaciais (COBAE), reestruturando a governança espacial

brasileira, haja vista o franco desenvolvimento dos satélites e seu emprego na

obtenção de informação geoespacial;

303 Decreto n° 1.106, de 16 de junho de 1970. 304 Pode-se afirmar que o Ministério da Integração Nacional, responsável pelo Programa de Integração Nacional, se

origina no Alvará, de 28 de julho de 1736, que criou a Secretaria de Estado dos Negócios Interiores do Reino. No

Império foi designada como Secretaria de Estado dos Negócios do Império. Na República, passou a denominar-se

Secretaria de Estado dos Negócios do Interior. A Lei nº 23, de 30 de outubro de 1891, transformou a Secretaria de

Estado dos Negócios do Interior em Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores. Em 1967, o Decreto-Lei no 200,

de 25 de fevereiro, desdobramento do Ministério da Justiça e Negócios Interiores resultou na criação do Ministério

do Interior. 305 Vide Decreto nº 67.113, de 1970; Decreto-Lei nº 1.179, de 1971; Decreto-Lei nº 1.754, de 1981; e Decreto-Lei nº

1.932, de 1982.

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(ii) Decreto-Lei n° 1.177, de 21 de junho de 1971: Dispõe sobre aerolevantamentos

no território nacional, o definido como o conjunto das operações aéreas e/ou

espaciais de medição, computação e registro de dados do terreno com o

emprego de sensores e/ou equipamentos adequados, bem como a interpretação

dos dados levantados ou sua tradução sob qualquer forma;

(iii) Lei n° 5.878, de 11 de maio de 1973: Dispõe sobre a Fundação IBGE,

consolidando sua função de mero produtor de técnicas geográficas, ao

constituir, enquanto seu objetivo único, o de “assegurar informações e estudos

de natureza estatística, geográfica, cartográfica e demográfica necessários ao

conhecimento da realidade física, econômica e social do País, visando

especificamente ao planejamento econômico e social e à segurança nacional”

(art. 2°). E o planejamento econômico e social e a segurança nacional não eram

funções de competência da Fundação IBGE. Este objeto era completamente

diferente da redação do Decreto nº 24.609, de 6 de Julho de 1934, que concebia

uma entidade de natureza federativa, articuladora das escalas de governança,

bem como da iniciativa particular, promovendo, executando e orientando

tecnicamente, em regime racionalizado, o levantamento sistemático de todas

as estatísticas nacionais; e

(iv) Lei Complementar n° 14, de 8 de junho de 1973: Estabelece as regiões

metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador,

Curitiba, Belém e Fortaleza. De maneira a cumprir o art. 164 da Constituição,

inicia-se a identificação de conurbações urbanas, com a governança

estabelecida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo Governador do

Estado, e um Conselho Consultivo, criados por lei estadual. Os Municípios de

regiões metropolitanas, que participassem da execução do planejamento

integrado e dos serviços comuns, teriam preferência na obtenção de recursos

federais e estaduais, inclusive sob a forma de financiamentos, bem como de

garantias para empréstimos.

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232

Concomitantemente a todo este ordenamento jurídico, grandes mudanças ocorriam no

critério espacial do Direito Ambiental.306 A Conferência Internacional de Meio Ambiente, ocorrida

em Estocolmo em 1972, teve como grande resultado uma carta principiológica do que seria

considerado proteção ao meio ambiente. O mundo guinava para uma busca intermitente de

preservação ambiental, que se manifestou com inúmeras normas produzidas pelos Estados

integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU). O planejamento de áreas destinadas ao

meio ambiente sinalizava que o critério espacial seria o principal instrumento jurídico de divisão

geojurídica do meio ambiente, de forma a preservar estes recursos para as gerações futuras (pacto

de gerações).307 Este conceito culminou, posteriormente, na Lei n° 6.938, de 1981, que institui a

Política Nacional de Meio Ambiente, que dispõe sobre espaços territoriais quando pretende indicar

áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas. A área de

energia também contou com fatos relevantes em 1973,308 principalmente com a crise do petróleo309

e a promulgação do Tratado de Itaipu,310 que teve crucial mitigação de problema geopolítico com

o Paraguai, ao alagar a área de fronteira em litígio.

306 Na segunda metade do século XX, com o mundo desgastado após duas grandes guerras e vivenciando o que se

denominou Guerra Fria, foi finalmente percebido que os recursos naturais são escassos ante as tecnologias até então

desenvolvidas e economicamente viáveis, em contraposição ao crescimento populacional e aumento do consumo per

capita. Tal percepção culminou, no Brasil, na outorga do vigente Código Florestal (Lei n° 4.771, de 1965), do Código

de Minas (Decreto-Lei n° 227, de 1967), do Código de Pesca, (Decreto-Lei n° 221, de 1967) e do Código de Proteção

à Fauna (Lei n° 5.197, de 1967). 307 Não obstante, o Brasil assumiu proatividade dentro desse sistema internacional e produziu normas que apontam a

preocupação ambiental do Estado que representa o território global com uma das maiores biodiversidades do planeta.

Em 1974 foi instituído o II Plano Nacional de Desenvolvimento, aprovado pela Lei n° 6.151, que adotou medidas de

proteção do meio ambiente, principalmente sobre a fluoretação da água em sistemas de abastecimento quando existir

estação de tratamento.

O III Plano Nacional de Desenvolvimento, por sua vez, foi aprovado pela Lei n° 6.453, de 1977, que dispõe sobre a

responsabilidade civil e criminal por danos nucleares e foi regulamentada pela Resolução nº 1, de 5 de dezembro de

1979, do Congresso Nacional, que criou o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Em 1981 foi instituída

a Política Nacional do Meio Ambiente, aprovada pela Lei n° 6.938, que instituiu o Sistema Nacional do Meio

Ambiente e recepcionou na norma, dentre outros pontos, o conceito de meio ambiente e a responsabilidade objetiva

do poluidor para reparação dos danos causados. 308 A Lei n° 5.655, de 20 de maio de 1971, dispôs sobre a remuneração legal do investimento dos concessionários de

serviços públicos de energia elétrica, conhecida então como Conta de Resultados a Compensar – CRC. Assim, a

remuneração legal do investimento, a ser computada no custo do serviço dos concessionários de serviços públicos de

energia elétrica deveria ficar entre 10% e 12%, a critério do Poder Concedente. Eventual diferença entre a remuneração

resultante da aplicação do valor percentual aprovado pelo Poder Concedente e a efetivamente verificada no resultado

do exercício passaria a ser registrada na CRC do concessionário, para fins de compensação dos excessos e insuficiência

de remuneração. Iniciava-se período de remuneração pelo custo do serviço, no qual não havia margem para lucros e

que em última análise tornou o setor elétrico insolvente no final da década de 1980. 309 A Organização dos Países Exportadores de Petróleo – Opep triplicou o preço do barril em represália aos governos

ocidentais que haviam apoiado Israel contra os árabes na guerra do Yom Kippur. Era a recessão global que freava o

período conhecido como “milagre econômico” brasileiro, e ao mesmo tempo, incentivava cada vez mais o país a

buscar a autossuficiência energética. 310 Foi recepcionado pelo Congresso brasileiro por força da Lei n° 5.899 do mesmo ano. Esse marco jurídico

possibilitou a construção daquela que era a maior hidrelétrica do mundo no rio Paraná, e previa a obrigatoriedade de

os guaranis venderem o excedente energético ao Brasil até 2023.

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4.4.4. O governo Geisel

Em 15 de março de 1974 tomava posse decorrente de eleição indireta o general gaúcho

Ernesto Geisel. Seu governo, que enfrentava uma recessão econômica global por causa da crise do

petróleo, ficou caracterizado pelo Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento.311 Além de

inaugurar a ponte Rio-Niterói em março de 1974, no ano seguinte o presidente Geisel firmou o

Tratado Nuclear Brasil-Alemanha, que mudou definitivamente as relações locais em Angra dos

Reis, e criou, por meio do Decreto n° 76.593, de 1975, o Programa Nacional do Álcool,

dinamizando economicamente o interior do país, notadamente as regiões do agreste nordestino e

do estado de São Paulo.312

O presidente Geisel promoveria contribuições ao modelo geográfico concebido por

Castelo Branco, realizando ajustes ao modelo que, de forma genérica, reestrutura as competências

da Fundação IBGE, denuncia os acordos cartográficos com os EUA, e concebe marco regulatório

para a criação de Estados e Territórios, a saber:

(i) Decreto n° 74.084, de 20 de maio de 1974: Aprova o Plano Geral de

Informações Estatísticas e Geográficas, que delega a Fundação IBGE a

responsabilidade de compreender o conjunto de informações estatísticas,

geográficas, cartográficas, geodésicas, demográficas, socioeconômicas, de

recursos naturais e de condições do meio-ambiente, inclusive poluição,

necessárias ao conhecimento da realidade física e econômica e social do país

em seus aspectos considerados essenciais ao planejamento econômico e social

e à segurança nacional. Destaca-se que “compreender” é diferente de “intervir”

ou “regular”, função não atribuída a Fundação IBGE;

(ii) Decreto n° 74.156, de 6 de junho de 1974: Cria a Comissão Nacional de

Regiões Metropolitanas e Política Urbana – CNPU, com a finalidade de

311 Se o plano de Juscelino Kubitschek visava à indústria de consumo, o de Geisel objetivava alcançar à indústria de

base, tais como fertilizantes, produtos petroquímicos e à geração de energia. Mais uma vez, o país passaria por um

ciclo de substituição de importações, dessa vez de maior envergadura e buscando soluções alternativas ao binômio

hidreletricidade-petróleo. 312 O Pró-Álcool visava o atendimento das necessidades do mercado interno e externo e da política de combustíveis

automotivos, fundada no incentivo por meio de expansão da oferta do álcool oriundo da cana-de-açúcar, da mandioca

ou de qualquer outro insumo, bem como a modernização e ampliação das destilarias existentes e da instalação de

novas unidades produtoras, anexas a usinas ou autônomas, e de unidades armazenadoras.

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234

acompanhar a implantação do sistema de regiões metropolitanas e de propor as

diretrizes, estratégia e instrumentos da Política Nacional de Desenvolvimento

Urbano, bem como de acompanhar e avaliar a sua execução;

(iii) Lei Complementar n° 20, de 1° de julho de 1974: Dispõe sobre a criação de

Estados e Territórios, bem como a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da

Guanabara e a reconfiguração da região metropolitana do Rio de Janeiro;

(iv) Lei nº 6.183, de 11 de dezembro de 1974: Dispõe sobre os Sistemas Estatístico

e Cartográfico Nacionais,313 competindo a Fundação IBGE zelar pelo bom

funcionamento do Sistema Estatístico Nacional, nos termos do art. 6°;314

(v) Decreto n° 76.040, de 29 de julho de 1975: Atribui à Comissão Executora do

Projeto RADAMBRASIL a responsabilidade do mapeamento de recursos

naturais de áreas situadas nas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste,

autorizando a participação de empresa estrangeira em atividades de

aerolevantamento. Era um primeiro esforço sistematizado de se produzir, em

larga escala, o sistema Mapa-Norma do subsolo brasileiro;

313 Art. 2º Integram o Sistema Estatístico Nacional todos os órgãos e entidades da Administração Pública direta e

indireta, de âmbito federal, estadual ou municipal, e entidades de natureza privada, que exerçam atividades estatísticas

com o objetivo referido no artigo 1º e para isso recebam subvenção ou auxílio dos cofres públicos.

Art. 3º O Sistema Cartográfico Nacional continuará a reger-se pelo Decreto-lei nº 243, de 28 de fevereiro de 1967,

com as alterações introduzidas pela Lei nº 5.878, de 11 de maio de 1973. 314 Art. 6º Ao IBGE compete zelar pelo bom funcionamento do Sistema Estatístico Nacional, cabendo-lhe para isso:

I - Promover reuniões nacionais, com a participação de representantes dos Ministérios, dos Governos Estaduais, de

entidades da administração pública indireta, de entidades privadas, produtores ou usuários de informações estatísticas,

com vistas à discussão de programas de trabalhos e assuntos técnicos;

II - Apreciar o programa anual das atividades específicas de cada um dos órgãos e entidades integrantes do Sistema,

de acordo com instruções a serem expedidas na forma do item VII deste artigo;

III - Prestar assistência aos órgãos e entidades integrantes do Sistema Estatístico Nacional, a fim de que as atividades

estatísticas exercidas com o objetivo referido no artigo 1º se revistam dos indispensáveis requisitos técnicos e possam

servir, de forma adequada, às finalidades a que se destinam, garantindo a mais eficiente utilização dos recursos

humanos e materiais do referido Sistema;

IV - Acompanhar a elaboração da proposta orçamentária da União, em relação aos projetos dos diversos órgãos e

entidades integrantes do Sistema Estatístico Nacional;

V - Orientar os órgãos e entidades integrantes do Sistema Estatístico Nacional na atualização profissional dos seus

técnicos, de acordo com as necessidades do Sistema e em consonância com os interesses próprios de cada órgão ou

entidade;

VI - Fazer-se representar junto às entidades públicas e privadas a que tiver sido delegada a produção de informações,

na forma prevista no artigo 8º, da Lei nº 5.878, de 11 de maio de 1973;

VII - Expedir instruções e normas operacionais. [...]

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(vi) Decreto 76.086, de 6 de agosto de 1975: Integra a COCAR na Secretaria de

Planejamento da Presidência da República, retirando da competência da

Fundação IBGE regular sua estrutura;

(vii) Decreto nº 77.624, 17 de maio de 1976: Dispõe sobre a utilização, pela

Fundação IBGE, de dados informativos de origem governamental na produção

de informações e estudos de interesse do planejamento econômico e Social e

da segurança nacional. Resgata a função reguladora da Fundação IBGE para

fatos geográficos, padronização de topônimos, uniformização de conceitos ao

uso de classificação comum e à manutenção de metodologia uniforme de

coleta, com vistas à compatibilização dos registros com os princípios da

legislação em vigor sobre os Sistemas Estatístico e Cartográfico Nacionais e o

Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas;

(viii) Decreto nº 79.055, de 28 de dezembro de 1976: Fixa a composição da

Delegação Brasileira na Comissão Mista Executora do Acordo Brasil-Estados

Unidos sobre Serviços Cartográficos, define sua vinculação com Órgão do

Governo Brasileiro;

(ix) Lei Complementar n³ 31, de 11 de outubro de 1977: Cria o Estado de Mato

Grosso do Sul; e

(x) Decreto nº 82.289, de 19 de setembro de 1978: Torna pública a denúncia, pelo

Brasil, do Acordo, por troca de notas, para a Reestruturação da Comissão

Militar Mista Brasil-Estados Unidos, do Acordo sobre Material cedido pelo

Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos de 15 de março de 1952,

do Acordo Brasil-Estados Unidos para o Estabelecimento de um Programa de

Colaboração para o Preparo de Mapas Topográficos e Cartas Aeronáuticas, e a

rescisão do Contrato entre os Governos do Brasil e dos Estados Unidos da

América referente a uma Missão Naval.

Importante ainda destacar que o presidente Geisel criou o Plano de Dinamização da

Cartografia (PDC/78), para intensificar o mapeamento sistemático brasileiro, visando à cobertura

plena do território na escala de 1:250.000 e o incremento da cobertura na escala 1:100.000 (nas

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regiões Centro-Oeste e Nordeste e em parte das regiões Sudeste e Norte), na escala 1:50.000 (nas

regiões Sul e parte do Sudeste e Nordeste) e na escala 1:25.000 (em capitais estaduais). O sistema

Mapa-Norma passava a ter uma escala atribuída, para efeitos de produção de políticas públicas.

4.4.5. O governo Figueiredo

Em 15 de março de 1979, o general carioca João Figueiredo tomou posse mediante

eleições indiretas, momento em que prometeu tornar o Brasil uma democracia.315 Foi o primeiro

– e por enquanto, único - geógrafo a ser mandatário do país. Não por acaso, um de seus primeiros

atos foi o de regulamentar a profissão de geógrafo, por meio da Lei n° 6.664, de 26 de junho de

1979, e pelo Decreto n° 85.138, de 15 de setembro de 1980. Em que pese ter contribuído para

produzir direitos e deveres aos geógrafos enquanto profissão regulamentada, suprindo uma

carência existente desde pelo menos o censo de 1872, realizado mais de um século antes, não

houve uma mudança dos rumos da Geografia de Estado, talvez em decorrência do esforço

concentrado em devolver a democracia no Brasil.

Se por um lado, o presidente Figueiredo iniciou as atividades do Projeto Grande

Carajás,316 por outro, assim como ocorre na regulamentação da profissão de geógrafo, sua gestão

pareceu, a todo instante, tentar lidar com os grandes passivos existentes na Geografia de Estado

no Brasil: explosão demográfica, inflação crescente, êxodo rural, crescimento desenfreado das

cidades, necessidade de democratização, complementação da regulamentação da Geografia de

Estado de 1967, necessidade de mapeamento do subsolo, organização do espaço aéreo, dentre

outras demandas que o Regime Militar não demonstrava pujança, naquele momento, para lidar

concomitantemente. Suas principais medidas voltadas a função normativa do critério espacial

foram:

(i) Decreto n° 84.221, de 20 de novembro de 1979: Dispõe sobre a realização do

IX Recenseamento Geral do Brasil;

315 Concedeu anistia ampla, geral e irrestrita aos políticos cassados com base em atos instituicionais e teve enfoque

econômico na agricultura e na habitação. 316 A maior jazida de ferro do mundo, intensiva no uso de energia, no Estado do Pará, produzindo grande

desenvolvimento regional, seja pela mineração, seja pela eletricidade, haja vista a inauguração, em 22 de novembro

de 1984, da primeira etapa da Usina Hidrelétrica de Tucuruí.

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237

(ii) Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979 (Lei Lehmann): Dispõe sobre o

parcelamento do solo urbano e prevê a expressão “espaço”,317 muito em

decorrência da explosão demográfica que as cidades passavam naquele

período. Foi uma tentativa de identificar, ainda que timidamente, a justiça

territorial na linha geográfica ou a função social da propriedade na ótica

jurídica. Com a acentuação do fluxo migratório para as cidades, 318 esta lei se

inseriu em um momento de forte fluxo migratório, dentro de um contexto de

rápido crescimento urbano mediante forte êxodo rural, que culminou na grande

procura por imóveis urbanos, fato que impulsionou a demanda por habitação,

serviços públicos e equipamentos coletivos de consumo. A União foi obrigada,

ainda que tardiamente, a formular uma política habitacional mais robusta e

estruturada, incluindo formas de crédito. Desnecessário dizer que ficou muito

aquém do necessário, haja vista a disseminação desenfreada das favelas neste

período;319

(iii) Decreto n° 84.557, de 12 de março de 1980: Regulamenta o Decreto-Lei nº

1.177, de 21 de junho de 1971, que dispõe sobre aerolevantamento no território

nacional;

(iv) Decreto n° 84.596, de 26 de março de 1980: Prorroga o prazo para execução

do mapeamento integrado dos recursos naturais do território nacional para o

final de 1985;

(v) Lei Complementar n° 41, de 22 de dezembro de 1981: Cria o Estado de

Rondônia;

(vi) Decreto n° 88.133, de 1° de março de 1983: Dispõe sobre a divisão do território

nacional em sete zonas aéreas;320 e

317 Espaços livres (art. 6°; e art. 20, parágrafo único) e espaços livres de uso público (art. 4°, I; e art. 22). 318 A edição da Lei Lehman proporcionou um período de acentuado predomínio do governo central e de esvaziamento

progressivo da autonomia dos estados e municípios. Para muitos estudiosos, o planejamento centralizado

correspondeu a um desenvolvimento que manteve a concentração da expansão industrial localizada nos grandes polos

tradicionais. 319 “Esta lei não limitou sua incidência aos casos de venda ou promessa de venda de lote urbano e não veio para

proteger principalmente o adquirente, mas (foi criada para proteger) o interesse da administração pública na ordenação

dos espaços urbanos.” (AGUIAR JÚNIOR, 1981, p. 207). 320 1ª Zona Aérea: Estados do Pará, do Maranhão e Território Federal do Amapá;

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238

(vii) Decreto n° 89.817, de 20 de junho de 1984: Estabelece as instruções

reguladoras das normas técnicas da cartografia nacional, que estabeleceu as

Instruções Reguladoras das Normas Técnicas da Cartografia Nacional, de

forma a criar, após homologação do COCAR, a Coletânea Brasileira de

Normas Cartográficas.321 É a técnica jurídica que faltava para completar a

regulamentação da Geografia de Estado criada em 1967.

2ª Zona Aérea: Estados do Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas, de

Sergipe, da Bahia e Território Federal de Fernando de Noronha;

3ª Zona Aérea: Estados de Rio de Janeiro, do Espírito Santo, de Minas Gerais e Ilhas da Trindade e Martins Vaz;

4ª Zona Aérea: Estados de São Paulo e de Mato Grosso do Sul;

5ª Zona Aérea: Estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul;

6ª Zona Aérea: Estados de Goiás, de Mato Grosso e Distrito Federal;

7ª Zona Aérea: Estados do Amazonas, do Acre, de Rondônia e Território Federal de Roraima. 321 Considerando que o presente trabalho tem grande aspecto jurídico, faz-se importante destacar a metodologia

normativa atribuída pelo Decreto:

“I - Em caráter geral:

1 - Serviço Cartográfico ou de Natureza Cartográfica - é toda operação de apresentação da superfície terrestre ou parte

dela, através de imagens, cartas, plantas e outras formas de expressão afins, tais como definidas no art. 6º do DL

243/67 e seus parágrafos.

2 - Atividade Correlata - toda ação, operação ou trabalho destinado a apoiar ou implementar um serviço cartográfico

ou de natureza cartográfica, tal como mencionada no parágrafo único do art.2º do Decreto-Lei nº 243/67.

II - Quanto à finalidade:

1 - Norma Cartográfica Brasileira - NCB-xx - denominação genérica atribuída a todo e qualquer documento

normativo, homologado pela COCAR, integrando a Coletânea Brasileira de Normas Cartográficas

2 - Norma Técnica para Cartas Gerais - NCB-Gx - documento normativo elaborado pelos órgãos previstos nos incisos

1 e 2 do § 1º do artigo 15 do Decreto-Lei nº 243/67.

3 - Norma Técnica para Cartas Náuticas - NCB-NM - documento normativo elaborado pelo órgão competente do

Ministério da Marinha, na forma do art.15 do DL 243/67.

4 - Norma Técnica para Cartas Aeronáuticas - NCB-AV - documento normativo elaborado pelo órgão competente do

Ministério da Aeronáutica, na forma do art.15 do DL 243/67.

5 - Norma Técnica para Cartas Temáticas - NCB-Tx - documento normativo elaborado pelo órgão público federal

interessado, conforme competência atribuída pelo art. 15 do DL 243/67.

6 - Norma Técnica para Cartas Especiais - NCB-Ex - documento normativo elaborado pelo órgão público federal

interessado, conforme competência atribuída pelo art. 15 do DL 243/67.

7- Norma Cartográfica Geral - NCB-Cx - documento normativo de caráter geral, não incluído na competência prevista

no art.15 do DL 243/67, elaborado pela Comissão de Cartografia ou por integrante do Sistema Cartográfico Nacional,

aprovado e homologado pela COCAR.

8 - Prática Recomendada pela COCAR - PRC-xx - especificação, procedimento ou trabalho decorrente de pesquisa,

sem força de norma, porém considerado e homologado pela COCAR como útil e recomendável, contendo citação

obrigatória da autoria, incluída na Coletânea Brasileira de Normas Cartográficas.

III - Quanto à natureza:

1 - Norma Cartográfica de Padronização - documento normativo destinado ao estabelecimento de condições a serem

satisfeitas, uniformizando as características físicas, geométricas e geográficas dos componentes, parâmetros e

documentos cartográficos.

2 - Norma Cartográfica de Classificação - documento normativo destinado a designar, ordenar, distribuir ou subdividir

conceitos ou objetos.

3 - Norma Cartográfica de Terminologia - documento normativo destinado a definir, relacionar ou conceituar termos

e expressões técnicas, visando o estabelecimento de uma linguagem uniforme.

4 - Norma Cartográfica de Simbologia - documento normativo destinado a estabelecer símbolos e abreviaturas, para

a representação gráfica de acidentes naturais e artificiais.

5 - Norma Cartográfica de Especificação - documento normativo destinado a estabelecer condições exigíveis para

execução, aceitação ou recebimento de trabalhos cartográficos, observados os padrões de precisão exigidos.

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Interessante notar que as Instruções Reguladoras das Normas Técnicas da Cartografia

Nacional foram publicadas por Decreto, e não por resolução (ou portaria) da Fundação IBGE. Os

atos normativos acabaram por desnudar o mito de que a Fundação IBGE ainda regula o espaço

nacional pois, se tivesse capacidade regulatória para tanto, deveria ter expedido ato próprio para

tratar deste tema.

Com a transição realizada para o regime democrático, a gestão do presidente

Figueiredo encerrou-se com a eleição indireta do advogado mineiro Tancredo Neves,322 que não

chegou a assumir por ter adoecido e falecido, sendo sucedido pelo então vice-presidente.

4.4.6. O governo Sarney

O advogado e jornalista maranhense José Sarney assumiu, na condição de vice-

presidente de Tancredo Neves, em 15 de março de 1985. O Plano Cruzado, a hiperinflação, o

processo constituinte e a moratória marcaram seu governo que, com hiperinflação e

descapitalização, muito pouco pôde fazer para a infraestrutura brasileira. Incluem-se neste rol as

demandas decorrentes da técnica geográfica, que se resumiu a dispor, nas vésperas da promulgação

da Carta de 1988, do Decreto n° 96.705, que dispôs sobre a realização do X Recenseamento Geral

do Brasil, e a elaboração da Lei n° 7.399, de 4 de novembro de 1985, que alterou a redação da Lei

n° 6.664, de 1979, no sentido de alterar a regulamentação da profissão de geógrafo com uma

redação que produz ambiguidades até os dias atuais.

Iniciava-se um período em que seria necessário adaptar a Geografia de Estado de 1967

ao regime democrático, conferindo voz à sociedade para dispor de sua Geografia em geral e aos

geógrafos, enquanto profissão regulamentada, em específico.

6 - Norma Cartográfica de Procedimento - documento normativo destinado a estabelecer condições:

a) para execução de projetos, serviços e cálculos;

b) para emprego de instrumental, material e produtos decorrentes;

c) para elaboração de documentos cartográficos;

d) para segurança no uso de instrumental, instalações e execução, de projetos e serviços.

7 - Norma Cartográfica de Método de Ensaio ou Teste - documento normativo destinado a prescrever a maneira de

verificar ou determinar características, condições ou requisitos exigidos de:

a) material ou produto, segundo sua especificação;

b) serviço cartográfico, obra, instalação, segundo o respectivo projeto;

c) método ou área de teste ou padronização, segundo suas finalidades e especificações.

8 - Norma Geral - é a que, por sua natureza, abrange mais de um dos tipos anteriores.” 322 A Lei n° 7.465 de 21 de abril de 1986, no art. 1o, determinou que o cidadão Tancredo de Almeida Neves, mineiro,

advogado, eleito e não empossado, por motivo de seu falecimento, figurará na galeria dos que foram ungidos pela

Nação brasileira para a Suprema Magistratura, para todos os efeitos legais.

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Em outras palavras, o modelo de Castelo Branco, baseado na forte centralização do

planejamento que culminou em grande produção cartográfica, enquanto técnica geográfica, foi a

tônica nacional até a redemocratização. Havia, naquele momento, o desafio de produzir

planejamento com democracia, ou seja, identificar meios de trazer para a Geografia de Estado a

axiologia geográfica, que era debatida quase que exclusivamente nos meios acadêmicos, período

em que a Geografia Crítica amadurecia principalmente na academia, mas pouco permeava as

estruturas do Estado.

4.5. A Geografia redemocratizada: o território, a região, o lugar e o global no Direito

brasileiro (desde 1988)

A Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, foi promulgada na gestão do

presidente Sarney, após a redemocratização do Brasil. Ela é exaustiva ao dispor os direitos,

garantias e obrigações de cada cidadão. Pela primeira vez na história, ela cria a competência da

União para manter os serviços oficiais de Geografia de âmbito nacional, assim como o faz para

Estatística, Geologia e Cartografia,323 bem como legislar sobre sistema estatístico, sistema

cartográfico e de geologia.324 Afinal, o próprio Preâmbulo da Carta versa sobre “ordem interna e

internacional”, criando, por si só, ao menos duas escalas de governança distintas, com consequente

exercício de poder coercitivo. Assim, há a necessidade de se verificar como o espaço se manifesta

perante a divisão geojurídica do trabalho, colocando a Geografia de Estado como parte constituinte

de uma ordem social e econômica que propicia a existência e a prática de uma cidadania justa.

Nesta Carta Magna, a função de planejar, enquanto axiologia, ganhou novos contornos

e força coercitiva.325 As atribuições federativas da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos

Municípios e de regiões, mais do que a evidente contraposição entre o caráter centralizador versus

descentralizador que suas naturezas jurídicas acarretam, começaram a impor novos desafios com

o aumento da complexidade da sociedade brasileira, principalmente em face da peculiaridade de

nosso sistema jurídico que permitiu a transformação dos municípios em entes federados.

Existem diversas remissões ao instituto do planejamento na atual Carta Magna,

impondo novos patamares de valor, tanto jurídico quanto geográfico e geojurídico. Há a menção

no art. 21, inciso IX326 que se constitui no conjunto de diretrizes gerais destinadas a

323 Art. 21, XV 324 Art. 22, XVIII, que trata de competência privativa 325 Como a preocupação do presente trabalho pressupõe fundamentar o planejamento enquanto instrumento de

intervenção no espaço, não discorreremos sobre os planos plurianuais, o planejamento familiar ou quaisquer outras

formas de planejamento que não se correlacione diretamente com a Geografia de Estado. 326 Art. 21. Compete à União: [...] IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e

de desenvolvimento econômico e social; [...]

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instrumentalizar a política nacional do desenvolvimento urbano, ou seja, na coesão interna que

objetiva estabelecer a orientação geral da ordenação territorial do país em função do bem-estar da

população. Abstraída a ordem internacional, estas podem se dividir em: (i) nacionais, que

estabelecem as diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano; (ii) macrorregionais, que

estão sob a responsabilidade das superintendências do desenvolvimento das regiões econômicas

do país; (iii) setoriais, instados sob ordenação territorial especial (p. ex., plano de viação, plano de

defesa do meio ambiente etc.). Conforme o inciso XVIII do mesmo artigo,327 a União também é

responsável por planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas,

especialmente as secas e as inundações.

Para os Estados, a Constituição Federal previu no art. 25, § 3º, a possibilidade de,

mediante lei complementar, planejar e executar funções públicas de interesse comum, instituir

regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de

municípios limítrofes, para integrar a organização de seu território.328

Os municípios, por sua vez, devem cooperar com as associações representativas no

planejamento municipal,329 e promover o ordenamento territorial mediante planejamento.330 No

caso do “interesse local” preconizado a entidade municipal, que detém o poder cogente no

exercício de tal interesse, a função de planejar salta como o grande instrumento geojurídico para

o exercício de suas competências, haja vista que a descentralização federal do planejamento cria

uma nova centralidade local, com interesses próprios e complementares.

Assim, a figura do planejamento, enquanto instrumento geojurídico, está presente nas

quatro formas territoriais previstas na Constituição Federal (União, Estados, Distrito Federal331 e

Municípios). Ora, ao lembrarmos a definição kelseniana de que o poder vinculante de uma lei

ensejará os efeitos jurídicos até os limites geográficos da pessoa jurídica que a editou, a

Constituição Federal criou quatro territorialidades com competências definidas para o exercício

do planejamento, enquanto instrumento geográfico do dever ser.

327 [...] XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as

inundações; [...] 328 Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios

desta Constituição. [...] § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas,

aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a

organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. 329 Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e

aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos

nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

[...] XII - cooperação das associações representativas no planejamento municipal; (Renumerado do inciso X, pela

Emenda Constitucional nº 1, de 1992) 330 Art. 30. Compete aos Municípios: [...] VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante

planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; 331 Conforme art. 32, § 1º, CF, ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados

e Municípios.

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Existem, ainda, três manifestações relevantes do planejamento na Constituição

Federal. A primeira é a relatividade de seu papel, dependendo da pessoa jurídica que for o objeto

de sua ação. Tal preceito encontra-se no art. 174, ao prever que o Estado exercerá, na forma da lei,

as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público

e indicativo para o setor privado. Logo, o poder coercitivo será distinto para entes públicos e

privados.

A segunda manifestação é em função da compatibilização do planejamento, na qual a

Carta Magna delega para lei, por meio do § 1º do mesmo artigo. Para tanto, as diretrizes e bases

do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará

os planos nacionais e regionais de desenvolvimento, depende de lei ordinária. Por outro lado, o

art. 43, § 1º, inciso II, impõe que a composição dos organismos regionais que executarão os planos

regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, demanda lei

complementar.

Por último, o art. 187 designa um planejamento específico para a política agrícola,

composta pelas atividades agroindustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais e que deve contar

com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais,

bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes.

Assim, a Constituição de 1988 promoveu quatro alterações da divisão territorial do

país: (i) elevou Roraima a condição de Estado federado; (ii) elevou o Amapá à condição de Estado

federado; (iii) integrou o território de Fernando de Noronha ao estado de Pernambuco; e (iv) criou

o estado do Tocantins, por meio do desmembramento do estado de Goiás.

Resta analisar como a Geografia de Estado está presente na Constituição Federal de

1988, principalmente em suas categorias de análise (território e sua relação com o global,

localidade enquanto lugar e região e sua relação com o local).

a) Constituição de 1988, o território enquanto critério espacial do Estado e

sua relação com o global. Aspectos terrestre, subsolo, marítimo, aéreo e

espacial.

O território é o espaço do exercício da soberania de determinado Estado. É o critério

espacial primário do Estado, pois dele o Estado depende para sua existência e exerce sua

capacidade de organização geopolítica, delimitando o espaço do exercício de seu critério

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coercitivo perante os demais estados dispostos no globo terrestre. Um território pode ser dividido

entre terrestre,332 subsolo, marítimo, aéreo e espacial.

O território333 terrestre assume denominações distintas pela Carta de 1988. A

expressão “espaço” é mencionada três vezes, ao discorrer sobre a competência do Congresso

Nacional, para dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre

espaço aéreo (art. 48, inciso V);334 ao versar sobre patrimônio cultural brasileiro em função dos

espaços destinados às manifestações artístico-culturais (art. 216, IV);335 e ao prever proteção aos

espaços territoriais na manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, § 1º,

III).336 Espaço, neste caso, é nada mais do que o próprio território, uma vez que o critério espacial

primário do estado é o próprio território no qual seu poder coercitivo repousa.

Por sua vez, a expressão “área” está amplamente difundida na Constituição Federal.

Todavia, a previsão de tal expressão costuma ser empregada com sentidos distintos, seja para

definir um espaço determinado, como parece ser o caso dos trabalhos demarcatórios na Amazônia

Legal (art. 12 do Ato Das Disposições Constitucionais Transitórias);337 seja para conferir

332 No que concerne ao Direito de superfície, conforme se verá abaixo, o tema foi inicialmente abordado pelo Estatuto

da Cidade, Lei n° 10.257, de 2001, nos artigos 21 a 24. O Código Civil igualmente regulou o tema, conforme os arts.

1.369 a 1.377. O superficiário assume a posse direta da coisa (espaço), de forma onerosa ou gratuita, e passa a ter o

direito de plantar e edificar, não sendo este perpétuo. Haverá direito de preferência e pagamento se a concessão for

onerosa. Como o objetivo do presente trabalho é estudar a manifestação do espaço na norma, não se aprofundarão

questões referentes ao direito de propriedade e aos mecanismos de intervenção estatal. Todavia, é importante destacar

que, nos pontos em que existem algumas diferenças entre o Código Civil e o Estatuto da Cidade, deve prevalecer o

primeiro, por ser posterior. 333 No Brasil, é importante frisar duas distinções semânticas, de forma a evitar que o cientista do Direito incida em

erro. A primeira é que não há que se confundir o princípio da territorialidade acima descrito com a figura dos

territórios, previstos na Constituição Federal (Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa

do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta

Constituição. [...] § 2º - Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado ou

reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar.) como parte do ente federado Distrito Federal.

A segunda é que a expressão “território” contempla todo espaço que contém uma relação de poder, ao passo que

“território do Estado” define determinado espaço marcado por um poder soberano. 334 Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o

especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...]

V - limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo e bens do domínio da União; [...]. 335 Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: [...] IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais

espaços destinados às manifestações artístico-culturais; [...]. 336 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial

à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as

presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] III -

definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos,

sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a

integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; [...]. 337 Art. 12. Será criada, dentro de noventa dias da promulgação da Constituição, Comissão de Estudos Territoriais,

com dez membros indicados pelo Congresso Nacional e cinco pelo Poder Executivo, com a finalidade de apresentar

estudos sobre o território nacional e anteprojetos relativos a novas unidades territoriais, notadamente na Amazônia

Legal e em áreas pendentes de solução.

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territorialidade ao espaço (art. 8°, inciso II);338 como espaço jurisdicional (art. 37, inciso XVIII);339

ou mesmo para definir categorias profissionais. A área, neste caso, deve igualmente ser definida

como território, pois está atrelada ao conceito de jurisdição.

Assim, é na etimologia do território que o Estado ganha seu critério espacial. O pacto

federativo, que viabiliza as escalas de governança no Brasil, de forma genérica cabe a União os

interesses nacionais, aos municípios os interesses locais, aos estados os interesses residuais, e ao

Distrito Federal as competências estaduais e municipais. Como exemplo, o direito de ir e vir

encontra no território sua concepção espacial, previamente delimitada,340 bem como a

inelegibilidade em determinadas situações, de forma a garantir a soberania popular.341 A

organização territorial do Brasil está prevista no art. 18, que fixa a capital, bem como a forma de

desmembramento de estados e municípios.

TÍTULO III

Da Organização do Estado

CAPÍTULO I

DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil

compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos,

nos termos desta Constituição.

§ 1º - Brasília é a Capital Federal.

§ 2º - Os Territórios Federais integram a União, e sua criação, transformação em Estado

ou reintegração ao Estado de origem serão reguladas em lei complementar.

§ 3º - Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se

anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante

aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso

Nacional, por lei complementar.

338 Art. 8º. É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: [...] II - é vedada a criação de mais de

uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base

territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um

Município; [...]. 339 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência

e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) [...] XVIII - a administração

fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os

demais setores administrativos, na forma da lei; [...]. 340 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,

nos termos seguintes:

[...]

XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele

entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; 341 Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para

todos, e, nos termos da lei, mediante:

[...]

§ 7º - São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o

segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal,

de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato

eletivo e candidato à reeleição.

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§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por

lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão

de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após

divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma

da lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional no 15, de 1996)

A Carta de 1988 cria ainda o conceito de “faixa de fronteira”, ao definir como

fundamental para defesa do território nacional, bem como sua ocupação, faixa de cento e cinquenta

quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres.342 Delega a União a competência de

permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam

temporariamente.343 O território deve ainda ser ordenado mediante a elaboração e a execução de

planos nacionais e regionais com o objetivo de promover desenvolvimento econômico e social.344

O artigo 48, inciso V, da Constituição Federal345 expõe que cabe ao Congresso

Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts.

49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre limites

do território nacional,346 espaço aéreo e marítimo e bens do domínio da União.347

No que concerne ao território do subsolo, previsto como bem da União (art. 20, incisos

IX e X, CF), este se caracteriza por um prolongamento vertical inferior, que projeta as fronteiras

nacionais em direção ao centro da Terra. A soberania do país é plena, principalmente no tocante

aos recursos naturais, haja vista a inviabilidade tecnológica atual de possibilitar a vida humana de

forma regular e contemporânea a grandes profundidades. Cabe destacar que, em que pese as

riquezas existentes no subsolo pertencerem a União, sua exploração pode ser realizada mediante

outorga a terceiros.

No que se refere ao território aéreo, o Brasil exerce soberania sobre todo seu território,

fundado no art. 1° da Convenção de Chicago.348 Por sua vez, a dimensão do território espacial

342 Art. 20, § 2º. 343 Art. 21, IV. 344 Art. 21, IX. 345 Art. 48. Cabe ao Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos

arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...] V - limites do

território nacional, espaço aéreo e marítimo e bens do domínio da União; [...] 346 Importante destacar que a menção a território já consta na Carta Magna brasileira de 1824: “TITULO 1º - Do

Imperio do Brazil, seu Territorio, Governo, Dynastia, e Religião.” 347 O artigo 91 aponta que o Conselho de Defesa Nacional é órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos

relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático, competindo, dentre outros pontos, propor

os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu

efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos

naturais de qualquer tipo (inciso III do par. 1°). No que se refere ao sistema de defesa brasileiro, foi promulgada a Lei

nº 11.631, de 27 de dezembro de 2007, que dispõe sobre a Mobilização Nacional e cria o Sistema Nacional de

Mobilização - SINAMOB. Sua regulamentação foi realizada por intermédio do Decreto n° 6.592, de 02 de outubro de

2008, que dentre outras medidas fixou o que será considerado agressão estrangeira ao Brasil e aos brasileiros, ou aos

interesses do País. 348 E do art. 11 da Lei n° 7.565, de 1986, conhecida como Código Brasileiro de Aeronáutica.

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ainda é pouco estudada, de forma que a profundidade de seus estudos tem sido inversamente

proporcional à relevância de seus temas, que envolvem o papel da Organização das Nações Unidas

(ONU) e União Internacional de Telecomunicações (UIT) no envio, operação e manutenção de

satélites, o uso de fontes nucleares de energia no espaço, a questão do lixo espacial, e o uso

militar.349 O país ainda tem uma legislação incipiente para regular as atividades espaciais no

país,350 haja vista o interesse nacional em participar do mercado espacial por meio do Centro de

Lançamentos de Alcântara (CLA), no Maranhão, destinada a servir como base internacional de

lançamentos.

Em relação ao território marítimo (mar territorial), para alguns esta dimensão é uma

mera criação do Direito, chegando a ser chamado de o “mar dos juristas” (MELLO, 2001, p. 1104).

Há impedimentos em se concordar com essa noção, pois o critério espacial, o limite geográfico

existente está fixado no oceano, haja vista que é a projeção geográfica mar adentro da porção

territorial de determinado Estado que se encontra acima do nível do mar.

E esta projeção ganha diferentes distâncias ao longo do tempo. Os países costeiros,

historicamente, sempre aceitaram a existência do mar das 3 milhas (5.556km) marítimas como

espaço para o exercício de soberania pelos países costeiros. Tal distância correspondia ao alcance

dos canhões no século XIX. Era consenso que, ao estar fora do alcance armamentista dos estados

costeiros, o mar seria de todos. Com o uso intensivo dos mares para o comércio internacional, bem

como para discussão sobre os recursos naturais marítimos, a Carta de 1988 se baseia na Convenção

das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM),351 que estabelece o conceito de linhas de

base a partir das quais passam a ser contados: o mar territorial (até 12 milhas náuticas), a zona

contígua (até 24 milhas náuticas), a zona econômica exclusiva (200 milhas náuticas) e o limite

349 Monserrat Filho (2014) ensina o Direito Espacial Internacional (DEI) pode ser definido como “o ramo do Direito

Internacional Público que regula as atividades dos Estados, de suas empresas públicas e privadas, bem como das

organizações internacionais intergovernamentais, na exploração e uso do espaço exterior, e estabelece o regime

jurídico do espaço exterior e dos corpos celestes”. Com o lançamento do primeiro satélite artificial da Terra, o Sputnik

I, da ex-União Soviética (URSS), em 4 de outubro de 1957, Monserrat Filho explana que houve a necessidade de se

constituir um conjunto de princípios e normas internacionais destinados a ordenar o âmbito espacial e as atividades

que explorem essa dimensão do espaço. Assim, em 1967 entrou em vigor o “Tratado sobre Princípios Reguladores

das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes”,

conhecido também como “Tratado do Espaço”. Além de assinar e ratificar o Tratado do Espaço, o Brasil fez o mesmo

para o “Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera, no Espaço Cósmico e sob a

Água”, de 1963, o “Acordo sobre Salvamento de Astronautas e Restituição de Astronautas e Objetos lançados ao

Espaço Exterior”, de 1968; e a “Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos

Espaciais”, de 1972. Em 1976, por sua vez, o Brasil apoiou países equatoriais que queriam incluir parte da órbita

geoestacionária em sua área de jurisdição nacional soberana, ao assinar a Declaração na qualidade de ouvidor. 350 No que concerne a legislação espacial brasileira, pode-se identificar a Lei n° 8.854, de 1995, que cria a Agência

Espacial Brasileira (AEB), de natureza civil, a Lei n° 9.994, de 2000, que institui o Programa de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico do Setor Espacial e alguns decretos esparsos. Há destaque especial ao Decreto Legislativo

n° 610, de 2003, e o Decreto Legislativo n° 766, de 2003, firmados respectivamente com a Argentina e a Ucrânia. 351 De 10 de dezembro de 1982.

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exterior da plataforma continental além das 200 milhas, bem como os critérios para o delineamento

do limite exterior da plataforma.

É o que a marinha denomina de “Amazônia Azul”, espaço territorial que deve ser

planejado352 pelo Brasil, situação acentuada: (i) pelo pleito brasileiro aos órgãos internacionais,

referente ao prolongamento de seu território em até 350 milhas marítimas por toda a costa; (ii)

pela alta concentração de petróleo na plataforma continental; e (iii) pela necessidade de

monitoramento e vigilância desse território, que tem preocupado o Ministério da Defesa e o

Itamaraty,353 principalmente decorrente das manifestações territoriais nos polos354 do globo

terrestre e pela corrida expansionista nos mares globais.355

O Estado brasileiro deve ser compreendido também em sua dimensão geopolítica, ou

seja, em sua relação perante os demais estados existentes no globo terrestre. Questões globais

352 O planejamento também se faz presente ao descrever o território marítimo. O Plano de Levantamento da Plataforma

Continental Brasileira (LEPLAC) é um programa do Governo brasileiro, instituído pelo Decreto nº 98.145, de 15 de

setembro de 1989, e tem por finalidade a determinação da área oceânica compreendida além da zona econômica

exclusiva, na qual o Brasil exercerá os direitos exclusivos de soberania para a exploração e o aproveitamento dos

recursos naturais do leito e do subsolo de sua plataforma continental, conforme estabelecido na CNUDM. Por sua vez,

a Lei nº 8.617, de 4 de janeiro de 1993, instituiu as larguras, contadas a partir das linhas de base, do Mar Territorial,

da Zona Contígua e da Zona Econômica Exclusiva. 353 Em um momento histórico em que os norte-americanos reativaram a Quarta Frota para monitorar a região do

Atlântico Sul, as questões que envolvem a Antártida, a corrida armamentista venezuelana e as jazidas de petróleo e

gás naturais descobertas a trezentos quilômetros da costa do Brasil, e do maior núcleo urbano da América Latina,

existe o consenso de que as águas do Atlântico sul passou a ser um dos cenários de maior potencial conflitivo no

planeta. 354 Existem duas formas de se dividir as regiões polares. A primeira, o "método da linha media", dividiria as águas

polares entre os países em consonância com a extensão do litoral mais próximo da região. Se tal metodologia for

aplicada ao Ártico, o Polo Norte seria da Dinamarca, mas o Canadá teria enormes ganhos territoriais. A segunda forma

seria o "método do setor", que fixa a centralidade no polo, de forma a firmar fronteiras sob linhas longitudinais. Isso

causaria perdas ao Canadá e ganhos à Noruega e à Rússia. O grande problema referente a convenção das Nações

Unidas sobre o Direito do Mar é que os Estados Unidos não a ratificaram, sob o fundamento de que os senadores não

desejaram aceitar restrições internacionais às ações daquele país. No lado de baixo do Equador, as recentes crises em

diversos países africanos, as incursões dos chineses na África, a descoberta de grandes jazidas de gás e petróleo no

litoral do Brasil, a questão amazônica, a questão das ilhas Falklands e a exploração da Antártida, fato que acarretaria

na revisão do Tratado da Antártida é o documento assinado em 1º de Dezembro de 1959 pelos países que reclamavam

a posse de partes do continente da Antártica, em que se comprometem a suspender suas pretensões por período

indefinido, faz com que diversos especialistas militares exponham que existe a possibilidade de uma guerra acontecer

no Atlântico Sul no século XXI. Tais discussões ainda estão muito incipientes na sociedade brasileira e no hemisfério

sul. Importante salientar que as reivindicações argentina, britânica e chilena sobrepõem-se. Por sua vez, o Brasil, a

Espanha, o Peru e a África do Sul são países que participam como membros consultivos do Tratado da Antártida.

Estes países manifestaram interesse no continente antártico territorial mas não podem expôr seus motivos e alegações

durante a validade do Tratado. Por sua vez, os Estados Unidos a Rússia não reconhecem nenhuma reivindicação

territorial no continente gelado, de forma que se resguardam do direito de realizar suas próprias reivindicações. 355 Os russos lideram uma corrida marítima no norte do planeta, como parte de uma estratégia de obter acesso a

recursos naturais e manter o controle perante o Oceano Ártico e o Polo Norte. O mais prestigiado explorador da Rússia,

Artur Chilingarov, afirmou que "o Ártico é russo", com base na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do

Mar, assinada em 1982. Nesse sentido, houve a compreensão do maior país em extensão territorial do mundo que o

Polo Norte nada mais é do que uma extensão da plataforma do litoral russo. A indústria está animada com o

derretimento rápido da calota polar no Ártico, pois facilitaria a exploração das reservas de gás e petróleo, abriria ao

mundo novas rotas marítimas e possibilitaria a Rússia explorar toda sua costa ártica. Isso vem aliado ao ressurgimento

do nacionalismo russo no pós Guerra Fria.

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afetam o Brasil, assim como temas brasileiros afetam o globo. No centro desta dialética, estão os

temas ambientais.

A Carta Maior de 1988356 foi a primeira Constituição brasileira a tratar especificamente

sobre meio ambiente, em capítulo próprio, sobre a matéria, influenciando diretamente as

Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais ao firmar que todos têm Direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de

defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (pacto de gerações, art. 225, CF).357

Logo, não há como tergiversar sobre meio ambiente equilibrado, ou mesmo desenvolvimento

sustentável, sem explorar a divisão geojurídica do trabalho enquanto princípio da solidariedade

entre gerações. Este pacto se caracteriza pela obrigação de fazer ou de não fazer dos cidadãos

inseridos na divisão do trabalho para compensar os déficits urbanos, agrícolas e fundiários, bem

como ambientais e de infraestruturas dos que estavam nessa situação no passado, do mesmo jeito

dos que serão obrigados os cidadãos do futuro a fazer ou deixar de fazer algo para custear a

inatividade dos cidadãos de hoje.

Em 1992 foi realizada no Rio de Janeiro a maior conferência mundial sobre os

problemas ambientais, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

(CNUMAD), também conhecida como ECO 92. O grande desafio colocado foi encontrar meios

de se obter o desenvolvimento sustentável, ou seja, atender as necessidades sociais e econômicas

do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem às suas próprias

necessidades.

Em março de 1994 foi realizada a Convenção-Quadro358 das Nações Unidas sobre

Mudanças do Clima (UNFCCC). Precedente ao Protocolo de Quioto359, seus termos foram

firmados por 182 Países-Partes, de forma a buscar a estabilidade da emissão de gases do efeito

356 O Direito Ambiental foi recepcionado constitucionalmente no Brasil com defasagem em relação a outros Estados-

Membros da ONU. Tais princípios foram previstos em 1976 em Portugal, seguido pela Espanha (1978), pelo Equador

(1979), pelo Peru (1979), pelo Chile (1980) e pela Guiana (1980). 357 Para Meira (2008, p. 11-23), há outras menções na Constituição Federal ao Direito Ambiental, tais como o objeto

da ação popular para alcançar os atos lesivos ao meio ambiente (art. 5º, LXXIII). Ao dispor sobre os princípios gerais

da atividade econômica, entre eles incluiu a defesa do meio ambiente (art. 170, VI). No mesmo capítulo, dispôs: “O

Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio

ambiente...” Em outro capítulo, ao dispor sobre a função social da propriedade rural, incluiu entre os requisitos a

serem observados, “a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente” (art.

186, II). Ao tratar das atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS), deferiu-lhe a competência para “colaborar na

proteção do meio ambiente...” (art. 200, VIII). Além disso, ao conceituar “terras tradicionalmente ocupadas pelos

índios” entre elas arrolou “as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar”

(art. 231, § 1º) 358 Por ser uma convenção-quadro, necessita de outros instrumentos normativos para regulamentá-la, não sendo

autoaplicável. 359 O Protocolo de Quioto regulamenta e especifica a Convenção, com regras próprias e compartilhadas, bem como

sanções aos infratores.

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estufa, de modo a prevenir uma intervenção humana perigosa para a atmosfera. Importantes

avanços puderam ser verificados na UNFCCC, tais como: (i) regras gerais sobre a emissão dos

gases que causam o efeito estufa, em especial o CO2; (ii) não imposição de tempo limite para a

redução dessas emissões; (iii) previsão de ajuda financeira, tecnológica e científica aos países em

desenvolvimento; (iv) tratado sem normas e regras cogentes; (v) divisão dos signatários em dois

grupos: Partes Anexo I, contido pelos países desenvolvidos, industrializados e ricos, e também

alguns países com sua economia em transição, como a Federação Russa e a Europa Oriental, sendo

as Partes Não Anexo I o restante dos países, em sua maioria países em desenvolvimento; (vi)

previsão do Princípio do Direito ao desenvolvimento sustentável; e (viii) previsão do Princípio do

poluidor-pagador.360

Uma vez relacionados a manifestação geográfica e jurídica do território, seja em sua

dimensão terrestre, subterrânea, marítima, aérea ou espacial, incluindo sua repercussão ambiental,

faz-se necessário observar como se viabilizam os fixos dentro deste mesmo território, soberano

para fora e coeso por dentro.

b) Constituição de 1988 e o lugar enquanto interesse local municipal

O lugar é o espaço do exercício do interesse local de determinado Estado, que ali

alicerça seus fixos. É o critério espacial secundário do Estado, que centraliza sua capacidade de

irradiar políticas públicas, alcançando diversos níveis de escala de governança. É nele que o Estado

cria suas cidades e, por conseguinte, viabiliza sua capacidade de organização geojurídica e

geoeconômica. Garcia aponta importante correlação entre o espaço urbano e o município ao

empregar, no Direito, a noção de escala, de território e de região.

O corpo político total compõe o Estado Federativo e, neste, os órgãos de base territorial

serão constituídos pelos municípios, distritos e regiões - de amplo espectro autonômico,

partindo, portanto, da sociedade e desta, ao Estado.

360 Importante destacar que, respeitada a cronologia normativa abaixo exposta, em 1998, a Lei n° 9.605 dispôs sobre

as sanções penais e administrativas aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. No ano de 2002, em

observância ao Princípio 8 da Declaração do Rio, que dispõe que: "para alcançar o desenvolvimento sustentável e

uma qualidade de vida mais elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insustentáveis de

produção e consumo e promover políticas demográficas adequadas", foi realizado, dez anos depois em Johanesburgo

(Rio+10), convenção específica para tratar do desenvolvimento sustentável.

Assim, se o valor geojurídico maior é a preservação da raça humana ante as vicissitudes da natureza, o

desenvolvimento sustentável, enquanto resultante da divisão geojurídica do trabalho, ordenará os interesses

econômicos na obtenção de lucro com o objetivo de promover cidadania. Nunca é demais lembrar o caráter axiológico

da declaração da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em Assembleia-Geral realizada em 28 de outubro

de 1982, que enuncia que “Toda forma de vida é única e merece ser respeitada, qualquer que seja a sua utilidade para

o homem, e, com a finalidade de reconhecer aos outros organismos vivos este direito, o homem deve se guiar por um

código moral de ação” (Resolução n° 37/7, conhecida como “Carta Mundial da Natureza”).

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Nessa escala de auto-determinações coordenadas, o grupo mais importante porque

originário e primitivo: o município - a cidade.

Nisto de concentra o espaço urbano - o espaço da existência humana, do País, do planeta,

enfim. (GARCIA, 2005, p. 42-43).

O grande paradigma que se coloca é identificar quais são as ferramentas jurídicas que

podem ser utilizadas para compreender o fenômeno da urbanização, ou seja, quais são os

elementos que tornam os lugares diferentes e individualizados, as ferramentas geográficas que

agrupam essas áreas de forma a conferir tratamentos isonômicos e a ordem jurídica que rege o

todo. A Geografia Urbana e o Direito Urbanístico repousam nesta escala de governança e buscam

estas respostas para a escala do lugar, enquanto critério espacial, que exerce seu critério coercitivo

pelo interesse local.

A discussão sobre espaço ganha densidade jurídica no Direito Urbanístico, que tem

como objeto de estudo a atividade urbanística com o fim de organizar os espaços habitáveis,

trazendo bem-estar à coletividade, destacando o conjunto de normas reguladoras da atividade

urbanística (FIGUEIREDO, 2005, p. 32; SILVA, J. A., 2006, p. 21). É a ciência ou a técnica de

ordenar os espaços habitáveis, visando o bem-estar geral. Para Sundfeld (2006, p. 48), por sua vez,

o objeto da regulação promovida pelo Direito Urbanístico é o solo (espaço) da cidade, de forma

que cabe a esse ramo do Direito a regulação da política espacial da cidade. Importante verificar a

equiparação que realiza entre a expressão “solo” e “espaço”, de forma a possibilitar o entendimento

de que, para efeitos jurídicos, tais expressões podem ser consideradas sinônimas.361

Na Constituição Federal de 1988, o conceito de local foi previsto três vezes no rol de

competências dos municípios, sendo que em duas vezes se prenuncia explicitamente o município

como detentor de um “interesse local”, principalmente no art. 30, I.362 O urbanismo foi

constitucionalizado pelo art. 24, inciso I, da Constituição Federal, que delega a União, aos Estados

e ao Distrito Federal a competência de legislar concorrentemente sobre Direito Tributário,

Financeiro, Penitenciário, Econômico e Urbanístico. Ato contínuo, o art. 182363 e 183 da mesma

Carta Magna cria mecanismos jurídicos para se implementar a política de desenvolvimento

361 As expressões “solo” e “espaço” não se confundem em nosso entendimento, haja vista que solo pressupõe

superfície, de forma a representar apenas uma das dimensões do espaço, que pode ser dividido em aéreo, marítimo,

superfície e subsolo. 362 Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; [...] V - organizar e prestar,

diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte

coletivo, que tem caráter essencial; [...] IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a

legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. 363 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes

gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o

bem- estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com

mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. [...].

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urbano, a ser executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei.

Logo, o princípio da função social passa a integrar plenamente o conceito de propriedade

urbana.364

O interesse local, que encontra no apotegma de Montoro sua síntese, de que "ninguém

vive na União ou no Estado, todos vivem no Município",365 foi legislado pelo Estatuto da Cidade,366

que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal. Ele estabelece diretrizes gerais da

política urbana, explicita duas vezes a expressão “espaço”, ao prever que o Direito de superfície

abrange o Direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, (art. 21, §

1°)367 e ao dispor sobre o Direito de preempção, que poderá ser exercido sempre que o Poder

Público necessitar de áreas para criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes (art. 26, VI).368

O uso e ocupação do solo faz parte do rol das diretrizes gerais da lei,369 que prevê sua

simplificação e o estabelecimento de normas especiais mediante regularização fundiária e

urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda. A modificação de índices e

características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo também podem ser previstas nas

operações urbanas consorciadas,370 371 sendo o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV)372 o

364 Tal premissa foi admitida em face do art. 5°, XXIII, CF. 365 André Franco Montoro empregava esta expressão para demonstrar a importância da municipalidade. Este apotegma

está gravado em uma placa na entrada do Centro de Estudos e Pesquisas da Administração Municipal (CEPAM) –

Fundação Prefeito Faria Lima, dentro do campus da Universidade de São Paulo. 366 Lei n° 10.257, de 2001. 367 Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo

determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis. § 1o O direito

de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida

no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística. 368 Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar de áreas para: [...] VI – criação

de espaços públicos de lazer e áreas verdes; [...]. 369 Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da

propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: [...] XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas

ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e

ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; XV –

simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a

redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; [...]. 370 Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações

consorciadas. § 2o Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas: I – a modificação

de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como alterações das normas

edilícias, considerado o impacto ambiental delas decorrente; 371 Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá prever a emissão pelo Município de

quantidade determinada de certificados de potencial adicional de construção, que serão alienados em leilão ou

utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação. [...] § 2o Apresentado pedido de licença

para construir, o certificado de potencial adicional será utilizado no pagamento da área de construção que supere os

padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo, até o limite fixado pela lei específica que aprovar a

operação urbana consorciada. 372 Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou

atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no

mínimo, das seguintes questões: [...] III – uso e ocupação do solo; [...].

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instrumento utilizado pelo Direito para analisar a qualidade de vida da população dentro de um

determinado perímetro.

Assim o interesse local é exercido, no bojo da Geografia do Estado, nos termos do

Estatuto da Cidade, do Plano Diretor Municipal373 e da Lei de Zoneamento Municipal, que deve

possibilitar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, consoante o a divisão

geojurídica do trabalho. A lógica motriz do zoneamento é a divisão do trabalho que, ao viabilizar

as funções sociais da cidade, determina onde os cidadãos exercerão sua capacidade laboral e de

qual forma será disposta as atividades do setor primário, secundário e terciário, por intermédio do

macrozoneamento, que deve observar principalmente a atividade que será exercida em

determinada gleba, a disponibilidade de infraestrutura, a base ambiental e a densidade de

ocupação.

Logo, do ponto de vista do Direito Urbanístico,374 ramo do Direito que estuda os

“espaços habitáveis”,375 entendido este critério espacial enquanto dimensão geográfica, a base

espacial é o território do município enquanto lugar, conceito exaustivamente estudado pelos

geógrafos, que está inserido em uma realidade federativa e regionalizado de forma heterogênea.

São linhas de transmissão e posteamento de distribuição de energia elétrica, gasodutos,

antenas de telefonia celular, áreas de proteção ambiental, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos,

enfim, inúmeros interesses públicos exógenos aos dos municípios que devem ser levados em conta

na definição do Plano Diretor e na Lei de Uso e Ocupação do Solo, na harmonização com o

373 Neste sentido, “É apenas na Constituição de 1988 que o Município, reconhecido como entidade integrante da

federação brasileira, passa à condição plenamente autônoma, nos termos do art. 34, inciso VII, alínea “c” da Lei

Maior, e demais dispositivos, que lhe asseguram, (i) poder de auto-organização, pela capacidade de elaboração de

lei orgânica própria, (ii) poder de autogoverno, pela eletividade do prefeito, vice-prefeito e dos vereadores, (iii) poder

normativo próprio, ou de autolegislação, mediante elaboração de leis municipais na área de competência exclusiva

e suplementar e (iv) poder de auto-administração, administração própria para criar, manter e prestar os serviços de

interesse local, bem como legislar sobre tributos e aplicar suas rendas. Além disso, acrescentamos o poder de

autoplanejamento, uma vez que cabe ao município aprovar o seu próprio Plano Diretor urbanístico, nos termos do

art. 182, § 1°, da Constituição federal. Trata-se de facetas da descentralização administrativa imposta pela Carta de

88” (VICHI, 2007, p. 137-138). 374 Para Oliveira Filho (2014, p. 7), o emprego da expressão “direito do urbanismo” em Portugal é ainda mais ampla

e exaustiva, por englobar a regulação normativa dos planos urbanísticos, o direito do uso e ocupação dos solos, o

direito das operações urbanísticas e o direito de construção, a disciplina da atividade da administração pública e dos

particulares no ordenamento do desenvolvimento dos meios urbanos e rurais, o desenvolvimento territorial

sustentável, a ordenação do território, a integração regional e dos blocos internacional. 375 Decorrente do item 77 da Carta de Atenas, manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de

Arquitetura Moderna (CIAM), realizado em Atenas em 1933. Ao fundar um ramo autônomo do Direito sob a premissa

de se estudar os “espaços habitáveis”, como o faz importante corrente doutrinária do Direito Urbanístico, se reconhece,

de forma adversa, que existem espaços que não são habitáveis. Tal entendimento, aliado à “falta de comando, de

fiscalização, de exercício do poder de polícia pelas autoridades municipais sobre o processo de urbanização

predatória e irracional que marca nossas grandes cidades” (SILVA, J. C. A. 2007, p. 276) demonstra as fragilidades

de tal percepção doutrinária, ao colocar milhões à margem da lei sem que o Estado tenha mecanismos efetivos de

coação por meio do poder de polícia.

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interesse do lugar, sob pena de obscurantizar a realidade federativa do país e, por conseguinte,

desconsiderar a divisão geojurídica do trabalho nesta escala de governança compreendida

enquanto interesse do lugar, enquanto local para efeitos jurídicos.

c) Constituição de 1988 e a região enquanto critério coercitivo de combate

às desigualdades

A região é o espaço do exercício da gestão de determinado Estado. É o critério espacial

terciário do Estado, pois nele o Estado exerce sua capacidade de organização geoeconômica e

geojurídica, de forma a ter instrumento de combate às desigualdades.

Uma das grandes inovações da Carta de 1988 está no fato de ter disseminado o conceito

de região a patamares não realizados nas Cartas anteriores. Este fato pode ser constatado logo no

art. 3º, inciso III, que prevê como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil reduzir as desigualdades sociais e regionais. Pelo próprio fato de a Constituição Federal

dizer que a República deve reduzir desigualdades, ela admite, de forma reversa, que o Brasil é um

país desigual. E o critério de regionalidade, junto ao social, foram os instrumentos escolhidos para

tornar o país menos desigual. Santos, M. expõe a relação de desigualdade - produção de normas,

e afirma que esta segunda é indispensável ao processo produtivo.

Quanto mais desigual a sociedade e a economia, tanto maior o conflito. É o caso dos

países subdesenvolvidos, sobretudo em suas grandes cidades. Mas em todos os casos há

conflitos reclamando regulação, isto é, produção de normas. Mesmo quando não podem

atenuar ou suplantar as normas globais, as normas territorializadas enfrentam o mundo,

mesmo, quando, aparentemente, colam aos interesses globais (SANTOS, M., 2006, p.

228).

E não faltam mandamentos constitucionais no Brasil para alcançar esse objetivo. A

constitucionalização da região, enquanto instrumento de organização do Estado, pode ser

encontrada no art. 21, inciso IX,376 que delega competência a União para elaborar e executar planos

nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, bem

como no art. 25, §3º, que enuncia que cabem aos estados, mediante lei complementar, instituir

regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de

municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções

376 Art. 21. Compete à União: [...] IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e

de desenvolvimento econômico e social; [...].

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públicas de interesse comum.377 Por seu turno, o art. 48, inciso IV, prevê que a União detém

competência legislativa para planejar e elaborar programas regionais e setoriais de

desenvolvimento,378 delimitado pelo plano plurianual,379 que por sua vez está instituído no art.

165, § 4°.

O conceito regional retorna ao obrigar a União, por intermédio do Congresso Nacional,

atribua a comissão competência para apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e

setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer (art. 58, § 2°, inciso VI),380 bem como

exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária (art. 166, § 1°, inciso II).381 É importante

destacar que o orçamento fiscal da União e o orçamento de investimento de suas empresas terá

como uma de suas funções reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional

(art. 165, § 7°).382

A ordem econômica, no Brasil, está fundada na redução das desigualdades regionais e

sociais (art. 170, inciso VII), de forma que as diretrizes e bases do planejamento do

desenvolvimento nacional equilibrado, a ser estabelecidas em lei, devem incorporar e

compatibilizar os planos nacionais e os planos regionais de desenvolvimento (art. 174, § 1°).383

Em matéria de saúde (art. 198, § 3°, inciso II),384 cabe a União, aos Estados, ao Distrito Federal e

377 Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios

desta Constituição. [...] § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas,

aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a

organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. 378 Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o

especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...]

IV - planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento; [...]. 379 Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: [...] § 4º - Os planos e programas nacionais, regionais

e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo

Congresso Nacional. [...]. 380 Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e

com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. [...] § 2º - às comissões,

em razão da matéria de sua competência, cabe: [...] VI - apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e

setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer. [...]. 381 Art. 166. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos

créditos adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do regimento comum. § 1º -

Caberá a uma Comissão mista permanente de Senadores e Deputados: [...] II - examinar e emitir parecer sobre os

planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição e exercer o acompanhamento e a

fiscalização orçamentária, sem prejuízo da atuação das demais comissões do Congresso Nacional e de suas Casas,

criadas de acordo com o art. 58. 382 Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: [...] § 7º - Os orçamentos previstos no § 5º, I e II,

deste artigo, compatibilizados com o plano plurianual, terão entre suas funções a de reduzir desigualdades inter-

regionais, segundo critério populacional. [...]. 383 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as

funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o

setor privado. § 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado,

o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. 384 Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um

sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada

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aos Municípios objetivar a progressiva redução das disparidades regionais, de forma que cabe a

União entregar parcela dos impostos arrecadados para compor o Fundo de Participação dos

Estados e do Distrito Federal e o Fundo de Participação dos Municípios (art. 159, incisos I, “a”,

“b” e “d” e II),385 com o objetivo de financiar o setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e

Centro-Oeste, por meio de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os

planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semiárido do Nordeste a metade dos

recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer (art. 159, inciso I, “c”).

Todavia, há uma seção específica na Constituição para tratar das regiões. A pedra de

toque que legitima pensar na técnica do Geodireito é o art. 43 prevê que a União poderá articular

sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à

redução das desigualdades regionais, devendo ser regulamentada por Lei complementar.386

TÍTULO III

Da Organização do Estado

CAPÍTULO VII

DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Seção IV

DAS REGIÕES

Art. 43. Para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo

complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das

desigualdades regionais.

§ 1º - Lei complementar disporá sobre:

I - as condições para integração de regiões em desenvolvimento;

II - a composição dos organismos regionais que executarão, na forma da lei, os planos

regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento econômico e social,

aprovados juntamente com estes.

§ 2º - Os incentivos regionais compreenderão, além de outros, na forma da lei:

esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços

assistenciais; [...]. 385 Art. 159. A União entregará: I - do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer

natureza e sobre produtos industrializados quarenta e oito por cento na seguinte forma: (Redação dada pela Emenda

Constitucional nº 55, de 2007) a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados

e do Distrito Federal; b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios; c)

três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e

Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de

desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma

que a lei estabelecer; d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro

decêndio do mês de dezembro de cada ano; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 55, de 2007) II - do produto da

arrecadação do imposto sobre produtos industrializados, dez por cento aos Estados e ao Distrito Federal,

proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados. 386 Não regulamentada até 2014, em que pese haver iniciativas de regulamentação no Congresso Nacional, como é o

caso do Projeto de Lei Complementar n° 269, de 2008, promovida pelo Sr. Davi Alves Silva Júnior na Câmara dos

Deputados, que regulamenta o art. 43 da Constituição Federal, para criar o complexo geoeconômico e social do

Nordeste, Norte e Centro-Oeste e dá outras providências.

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I - igualdade de tarifas, fretes, seguros e outros itens de custos e preços de

responsabilidade do Poder Público;

II - juros favorecidos para financiamento de atividades prioritárias;

III - isenções, reduções ou diferimento temporário de tributos federais devidos por

pessoas físicas ou jurídicas;

IV - prioridade para o aproveitamento econômico e social dos rios e das massas de água

represadas ou represáveis nas regiões de baixa renda, sujeitas a secas periódicas.

§ 3º - Nas áreas a que se refere o § 2º, IV, a União incentivará a recuperação de terras

áridas e cooperará com os pequenos e médios proprietários rurais para o estabelecimento,

em suas glebas, de fontes de água e de pequena irrigação.

Após analisar a construção regional da Constituição Federal de 1988, percebe-se uma

evidente utilização da regionalização como técnica geojurídica, uma vez que ela produz um

sistema Mapa-Norma apto a combater desigualdades regionais. A construção de Brasília, os

grandes projetos rodoviários e a criação de agências de desenvolvimento regionais são apenas

alguns dos inúmeros exemplos de políticas públicas destinadas a mitigar as desigualdades sociais

e regionais que podem ser encontradas, que buscam produzir uma renovada divisão geojurídica do

trabalho, combatendo a desigualdade enquanto um valor geojurídico. Esta necessidade encontra

respaldo no fato geojurídico de que há uma disparidade entre o PIB per capita da região Sudeste

e da Norte e Nordeste, de forma que a primeira supera a segunda em razão de 2,8 as regiões

setentrionais.387 Todavia, o fato de haver regiões a serem desenvolvidas, por conta de um evidente

atraso econômico, não justifica que a Geografia de Estado não precise conferir ao território uma

visão apenas regionalizada, com base nos espaços economicamente menos providos.

Existem diversas vantagens na gestão do espaço via regiões, pois além de reunir,

dentro de um mesmo critério regional, localidades com uma mesma necessidade que difere

daquelas que estão fora de seus limites, permite a interação do planejamento federal, estadual,

distrital e municipal de forma exógena, ou ao menos não coincidentes, a lógica federativa, de forma

a atacar o problema com ferramentas mais eficazes do que seriam se tivessem que observar a lógica

hierárquica federativa. Um exemplo é o repasse direto da União aos municípios situados na região

do “Polígono das Secas”,388 da “Amazônia Legal”389 ou mesmo em relação aos “comitês de

387 Índice obtido no Instituto de Pesquisas de Economia Avançada (IPEA). 388 O Polígono das Secas foi criado em 1936 e teve o escopo ampliado pelo Decreto-Lei n° 9.857, de 1946, quando a

Constituição federal do mesmo ano, no art. 198, previu plano de defesa contra os efeitos do que se denominou “seca

do Nordeste”. Posteriormente houve alterações pela Lei n° 1.004, de 1949; pela Lei n° 1.348, de 1951; e pela Lei nº

4.239, de 1963; que proibiu a criação de novos municípios naquela região. O Decreto-Lei n° 63.778, de 1968, delegou

a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) a competência de declarar quais seriam os

municípios pertencentes ao Polígono das Secas. Esse Decreto-Lei regulamentou e esclareceu que a inclusão de

municípios no Polígono, somente ocorreria para aqueles criados por desdobramento de municípios anteriormente

incluídos total ou parcialmente, no mesmo Polígono, quando efetuados até a data da lei regulamentar, ou seja, de 30

de agosto de 1965. Até hoje a SUDENE, que foi extinta e reeditada, tem sua eficácia questionada pela objetivos até

então alcançados. 389 O Decreto n° 35.600, de 1953, aprovou o Regulamento do Plano de Valorização Econômica da Amazônia que

possibilitou que a Lei 5.173, de 1966, criasse a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), no

qual o conceito de Amazônia Legal é adaptado para a finalidade de planejamento. A Lei Complementar n° 31, de

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bacias”.390 391 392 Logo, estruturas como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

(SUDENE),393 a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM)394 e a

Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF)395

correspondem a alguns dos mecanismos que o Estado brasileiro se utiliza para lidar com as o

combate às desigualdades por meio de regionalidades, ou seja, dissociado do monopólio da lógica

federativa, que em última análise é territorial, e atrelada a lógica regional.

De maneira sintética, a Geografia do Estado no Brasil, com base na Carta de 1988,

funda-se em três formas de relacionamento perante os sistemas tridimensionais do Geodireito,

quais sejam:

(i) critério espacial primário do Estado, realizado pela identificação do território

(terrestre, subsolo, marítimo, aéreo e espacial), tanto internamente, em

1977, cria o estado do Mato Grosso do Sul, fato que permite que todo o estado do Mato Grosso, agora desmembrado,

passe a integrar a Amazônia Legal. Com o advento da Carta Magna de 1988, por força das Disposições Transitórias,

artigos 13 e 14, tornam o recém-criado estado do Tocantins, de Roraima e do Amapá integrantes da Amazônia Legal

sob a condição de estados federados. 390 A Lei n° 9.433, de 1997, institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de

Gerenciamento de Recursos Hídricos (SNGRH). Dentre outras iniciativas, inovou o gerenciamento dos recursos

hídricos do país. 391 Existe toda uma política nacional de desenvolvimento do território, seja nacional ou regional. A Lei n° 10.683, de

2003, no art. 27, inciso XIII delega ao Ministério da Integração Nacional, dentre outras funções: (i) a formulação e

condução da política de desenvolvimento nacional integrada; (ii) a formulação dos planos e programas regionais de

desenvolvimento; (iii) o estabelecimento de estratégias de integração das economias regionais; (iv) o estabelecimento

de normas para cumprimento dos programas de financiamento dos fundos constitucionais e das programações

orçamentárias dos fundos de investimentos regionais; e (v) o acompanhamento e avaliação dos programas integrados

de desenvolvimento nacional 392 Art. 27. Os assuntos que constituem áreas de competência de cada Ministério são os seguintes: [...] III - Ministério

da Integração Nacional: a) formulação e condução da política de desenvolvimento nacional integrada; b) formulação

dos planos e programas regionais de desenvolvimento; c) estabelecimento de estratégias de integração das economias

regionais; d) estabelecimento das diretrizes e prioridades na aplicação dos recursos dos programas de financiamento

de que trata a alínea c do inciso I do art. 159 da Constituição Federal; e) estabelecimento das diretrizes e prioridades

na aplicação dos recursos do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia e do Fundo de Desenvolvimento do Nordeste;

f) estabelecimento de normas para cumprimento dos programas de financiamento dos fundos constitucionais e das

programações orçamentárias dos fundos de investimentos regionais; g) acompanhamento e avaliação dos programas

integrados de desenvolvimento nacional; h) defesa civil; i) obras contra as secas e de infra-estrutura hídrica; j)

formulação e condução da política nacional de irrigação; l) ordenação territorial; m) obras públicas em faixas de

fronteiras; [...]. 393 Autarquia especial, administrativa e financeiramente autônoma, integrante do Sistema de Planejamento e de

Orçamento Federal, criada pela Lei Complementar nº 125, de 3 de janeiro de 2007, com sede e foro na cidade do

Recife, estado de Pernambuco, e vinculada ao Ministério da Integração Nacional. 394 Autarquia federal, criada no governo do presidente Castelo Branco em 1966, com a finalidade de promover o

desenvolvimento da região amazônica. Ela tem sede e foro em Belém, e é vinculada ao Ministério da Integração

Nacional. 395 Criada pela Lei n° 6.088, de 16 de julho de 1974, é empresa pública federal, com sede e foro em Brasília,

originalmente destinada ao desenvolvimento da região ribeirinha do rio São Francisco. A maior inovação de suas

funções, ao longo do tempo, foi a expansão de sua área de atuação. A Lei n° 9.954, de 2000, possibilitou à

CODEVASF atuar no rio Parnaíba, na divisa dos Estados do Piauí e do Maranhão, e a Lei n° 12.196, de 14 de janeiro

de 2010, fez com a esta agência passasse a atuar também nos vales dos rios Itapecuru e Mearim, no Estado do

Maranhão.

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relação ao seu pacto federativo (União, Estados, Municípios e Distrito

Federal), quanto externamente, em função de sua contextualização espacial

perante os demais estados do globo (geopolítica);

(ii) critério espacial secundário do Estado, realizado pela identificação do lugar

enquanto espaço do exercício do interesse local do Brasil, alicerçando os fixos

por meio das cidades, em que exercerão a irradiação das políticas públicas

locais, sendo os fixos dos estados e da União; e

(iii) critério espacial terciário do Estado, realizado por meio das regiões, que rege

a divisão geojurídica do trabalho de forma a estabelecer mecanismos para

acelerar o desenvolvimento social e econômico de determinada espacialidade,

de forma a combater desigualdades.

Compreendido como as relações nacionais, dentro do conceito de escala de

governança, se comporta perante a realidade espacial e normativa, resta analisar como a técnica

geográfica tem se desenvolvido e sido recepcionada pela legislação, de maneira a viabilizar uma

Geografia de Estado atualizada às premissas do início do século XXI.

4.5.1. O governo Collor

O Brasil que emergia na Constituição de 1988 era um país completamente diferente

da realidade que Vargas encontrou em 1934 e Castelo Branco deparou em 1967 para criar suas

respectivas políticas geográficas. No centro das alterações, estava a forte pressão demográfica e o

alto nível migratório. O Brasil em 1990 tinha 130 milhões de habitantes. A industrialização na

região Sudeste provocou um forte fluxo migratório e a convergência de mão de obra, fato que

ocasionou, dentre outros, significativa perda de qualidade dos serviços públicos prestados nas

cidades, em paralelo ao alto nível de endividamento dos poderes públicos e de inflação

descontrolada. Como consequência houve um déficit habitacional histórico que produziu a

conhecida proliferação de favelas nos grandes centros urbanos do país. A pós-modernidade se

avizinhava, com o Estado enfraquecido ante a pluralidade de demandas sociais, que acabavam por

pregar soluções como a desregulamentação, o exercício de interesses públicos por intermédio de

organizações não governamentais, as concessões públicas e as privatizações.

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O processo de redemocratização, que devolveu à esfera civil o processo decisório

direto dos assuntos nacionais por meio da elaboração e promulgação da Constituição Federal de

1988, consubstanciou diversos direitos fundamentais e reorganizou as atividades econômicas. Em

que pese ser possível abstrair diferentes visões políticas e sociais, a implementação imediata das

premissas da Carta Magna veio acompanhada de uma visão liberal da economia. Alguns

movimentos nesse sentido podem ser historicamente identificados.

MAPA 9 - Brasil em 1991

Fonte: IBGE, 2012

Na seara econômica internacional, o economista inglês John Williamson, em 1990,

denominou de "Consenso de Washington" o mínimo denominador comum de recomendações de

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políticas econômicas que estavam sendo cogitadas pelo Fundo Monetário Internacional – FMI,

pelo Banco Mundial e pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, todas instituições

financeiras com sede em Washington D.C., que por sua vez exercia um claro unilateralismo

enquanto potência que havia ganho a Guerra Fria após a queda do muro de Berlim em 1989 e a

respectiva desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Era propalado

que os governos da América Latina, então na quase totalidade com situação financeira deteriorada

e com cenário hiperinflacionário, deveriam observá-las como paradigma para seu

desenvolvimento.

O Brasil passava por transformações políticas, que culminaram com as primeiras

eleições democráticas em 25 anos. Com a posse em 15 de março de 1990, o presidente Collor de

Mello, jornalista carioca, houve importantes avanços na legislação do país.396 Entretanto, no que

tange a Geografia de Estado, Collor demonstrou uma visão estreita de suas potencialidades. Em

que pese não constar revogação expressa do Decreto n° 95.185, de 10 de novembro de 1987, que

fundamentava a composição do COCAR, na prática a reforma administrativa inviabilizou o

exercício das atividades do COCAR e, consequentemente, as interações no âmbito do Sistema

Cartográfico Nacional.

Collor foi ainda o primeiro mandatário, desde 1940, a atrasar o censo demográfico,

prejudicando sua periodicidade decenal. Esta situação foi contornada apenas com a Lei n° 8.184,

de 10 de maio de 1991, que fixa a periodicidade dos Censos Demográficos e dos Censos

Econômicos, realizados pela Fundação IBGE, a ser realizada por ato do Poder Executivo, que não

excederá a dez anos em relação aos Censos Demográficos e a cinco anos a dos Censos

Econômicos. O censo de 1991 estabiliza o processo de criação de estados no Brasil, e demonstra

a acelerada descentralização municipal que o país vivia.

4.5.2. O governo Franco

Com o impedimento do presidente Collor, assumiu a presidência seu vice, o

engenheiro mineiro Itamar Franco. Em que pese seu governo ter ocorrido em momento de crise

política, importantes medidas legislativas podem ser verificadas em sua gestão.397 O governo

396 É o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990); do Código do Consumidor

(Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990); do Imposto de Importação (Lei n. 8.085, de 23 de outubro de 1990); do

regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais (Lei n. 8.112,

de 11 de dezembro de 1990); da Lei de Defesa da Concorrência (Lei n. 8.158, de 8 de janeiro de 1991); e da Política

Agrícola (Lei n. 8.171, de 17 de janeiro de 1991). 397 Como exemplo, a exploração marítima de hidrocarbonetos no local que se convencionou denominar Pré-sal não

seria possível sem a Lei n. 8.617, de 4 de janeiro de 1993, que dispõe sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona

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Franco logrou êxito ao: (i) criar o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR pela Lei n°

8.847, de 28 de janeiro de 1994, com base no art. 236 da Constituição Federal; (ii) criar a Lei dos

Cartórios (n° 8.935, de 18 de novembro de 1994); (iii) publicar a Lei de Licitações;398 (iv) publicar

o Plano Real; e (v) buscar o combate às desigualdades regionais, ao instituir o Plano Diretor para

o Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Planvasf pela Lei n° 8.851, de 31 de janeiro de

1994. Franco ainda criou o Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, vinculando assim

poder coercitivo a uma dimensão geográfica (Amazônia Legal), por força da Lei n° 8.746, de 9 de

dezembro de 1993.

Pode-se ainda afirmar que a gestão Franco se debruçou também nas questões referentes

ao espaço sideral, ao criar a Agência Espacial Brasileira, por força da Lei n° 8.854, de 10 de

fevereiro de 1994, e possibilitar nas décadas seguintes a existência de regime jurídico para

implementar políticas públicas para o georreferenciamento espacial, bem como o Sistema de

Informações Geográficas – SIG, com importantes repercussões no setor energético.

Mas a grande contribuição de Franco a Geografia de Estado foi desfazer o equívoco

de Collor e recriar a Comissão de Cartografia. Por força do Decreto de 21 de junho de 1994, ela

passou a ser denominada Comissão Nacional de Cartografia (CONCAR), e então contava com a

participação de 15 representantes, dentre órgãos civis, militares e representantes da sociedade civil.

Pode-se afirmar que foi o primeiro ato jurídico da Geografia de Estado pós-redemocratização.

Sob a ótica jurídica, chegava com força ao Brasil a corrente do Realismo Jurídico

anglo-saxão, que propunha uma leitura econômica da norma jurídica, denominada Law and

Economics, que foi traduzida pela doutrina majoritária como Direito Administrativo Econômico.

Prepara-se, assim, o ambiente para aprimorar a relação entre público e privado, com forte

repercussão no setor de infraestrutura, conforme será possível observar na gestão do presidente

Cardoso.

4.5.3. O governo Cardoso

O governo do presidente carioca e sociólogo Fernando Henrique Cardoso enfrentou

uma questão sensível para a sociedade brasileira em geral e o desenvolvimento da infraestrutura

nacional em específico: a desburocratização do estado, que tem como principal consequência o

econômica exclusiva e a plataforma continental brasileiros, bem como a Lei n. 8.630, de 25 de fevereiro de 1993,

conhecida como Lei dos Portos. 398 Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, que regulamentou o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal e instituiu

normas para licitações e contratos da Administração Pública.

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redimensionamento da máquina pública. No centro desta discussão estavam as concessões

públicas e as privatizações.399

As justificativas eram eminentemente econômicas, pressupunham ambiente de

estabilidade monetária, e estavam pautadas na falta de capital público para investir, bem como na

necessidade de obter um maior envolvimento da iniciativa privada no desenvolvimento do país.

Pode-se sintetizar as seguintes premissas como os pontos básicos para a viabilização deste projeto:

(i) reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada

atividades subexploradas pelo setor público; (ii) contribuir para reestruturar economicamente o

setor público, por meio de melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida; (iii) permitir

a retomada de investimentos pelas empresas privadas, bem como sua efetiva reestruturação; (iv)

permitir a concentração de esforços da administração pública em atividades mais fundamentais; e

(v) contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais.

399 Pode-se afirmar que o regime jurídico da privatização, enquanto venda de ativos públicos a iniciativa privada, foi

introduzido no Brasil em 1979. A primeira iniciativa atendia pela denominação de “Programa Nacional de

Desburocratização” e foi fixada pelo Decreto n. 83.740, de 18 de julho de 1979. Os objetivos norteadores, expressos

em norma, apontavam claramente os serviços públicos como um foco de ineficiência administrativa, quais sejam: (i)

construir a melhoria do atendimento dos usuários do serviço público; (ii) reduzir a interferência do Governo na

atividade do cidadão e do empresário; (iii) descentralizar as decisões; (iv) simplificar o trabalho administrativo; (v)

eliminar formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco; (vi) agilizar a execução dos

programas federais para assegurar o cumprimento dos objetivos prioritários do Governo; (vii) substituir, sempre que

praticável, o controle prévio pelo eficiente acompanhamento da execução e pelo reforço da fiscalização dirigida, para

a identificação e correção dos eventuais desvios, fraudes e abusos; dentre outros.

Por força do Decreto n. 86.215, de 15 de julho de 1981, o governo Figueiredo criava as condições formais para efetivar

os desígnios do Programa Nacional de Desburocratização. Fixaram-se normas para a transferência, transformação e

desativação de empresas sob o controle do Governo Federal.

O governo Sarney também realizou iniciativas nessa frente. O Decreto n. 95.886, de 29 de março de 1988, dispôs

sobre o Programa Federal de Desestatização, a ser executado por meio de projetos de privatização e de

desregulamentação, e com menção expressa ao regime de concessão e de permissão de serviços públicos, com os

objetivos expressos de: (i) transferir para a iniciativa privada atividades econômicas exploradas pelo setor público;

(ii) concorrer para diminuição do deficit público; (iii) propiciar a conversão de parte da dívida externa do setor público

federal em investimentos de risco, resguardado o interesse nacional; (iv) dinamizar o mercado de títulos e valores

mobiliários; (v) promover a disseminação da propriedade do capital das empresas; (vi) estimular os mecanismos

competitivos de mercado mediante a desregulamentação da atividade econômica; (vii) proceder à execução indireta

de serviços públicos por meio de concessão ou permissão; e (viii) promover a privatização de atividades econômicas

exploradas, com exclusividade, por empresas estatais, ressalvados os monopólios constitucionais. Todavia, o regime

de concessões não demonstrara eficácia em um ambiente financeiro conduzido por uma moeda monetariamente fraca

e em ambiente hiperinflacionário.

Em 1989, durante a primeira campanha presidencial em 25 anos, o então candidato Fernando Collor de Mello fez da

privatização um importante argumento para a obtenção de votos. Após sua posse, o tema foi sistematizado,

transformou-se em um verdadeiro princípio reformador, com base na necessidade de revitalizar a estrutura financeira

do Estado, acabar com a corrupção e reduzir drasticamente o deficit público. A Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990,

primeiro mês de seu governo, o presidente Collor criou o Programa Nacional de Desestatização, com o intuito de

reordenar as atividades do Estado na economia. A ideia central era vender ativos públicos à iniciativa privada de 18

empresas nos setores de siderurgia, fertilizantes e petroquímica. A grande dificuldade na privatização no governo

Collor foi o lastro utilizado na aquisição das empresas. Os títulos representativos da dívida pública federal foram

majoritariamente utilizados, de forma a corresponder a mais de 98% dos valores utilizados, fato que quitava a dívida

pública mas não possibilitava liquidez nas finanças federais. O governo Franco, por sua vez, buscou corrigir essa

distorção e valorizar o uso de moeda corrente, dentre outas medidas.

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263

O instrumento jurídico escolhido para a promoção dessas mudanças foi um intenso

reformismo constitucional, por meio de emendas que possibilitaram importantes alterações

estruturais na infraestrutura brasileira.

(i) Emenda Constitucional n° 5, de 15 de agosto de 1995, que fixou caber aos

Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais

de gás canalizado, na forma da lei;

(ii) Emenda Constitucional n° 6, de 15 de agosto de 1995, ao permitir que a

pesquisa e a lavra de recursos minerais, bem como o aproveitamento

desses potenciais, pudessem ser efetuados mediante autorização ou

concessão da União;

(iii) Emenda Constitucional n° 7, de 15 de agosto de 1995, ao delegar a lei a

ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre;

(iv) Emenda Constitucional n° 8, de 15 de agosto de 1995, que quebrou o

monopólio das telecomunicações;

(v) Emenda Constitucional n° 9, de 9 de novembro de 1995, que quebrou o

monopólio da Petrobras ao permitir que a União pudesse contratar com

empresas estatais ou privadas atividades com hidrocarbonetos;

(vi) Emenda Constitucional nº 15, de 12 de setembro de 1996, que dá nova

redação ao § 4º do art. 18 da Constituição Federal, ao fixar que a criação,

a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por

lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal,

e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos

Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade

Municipal, apresentados e publicados na forma da lei; e

(vii) Emenda Constitucional n° 19, de 4 de junho de 1998, que alterou

princípios e normas da Administração Pública, internalizando conceitos

oriundos do Direito Administrativo Econômico (p. ex., eficiência).

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Ao aliar estabilidade monetária, por força do Plano Real em geral, que permitiu a

existência de uma clara sinalização de custos e receitas, e pela Lei Eliseu Resende400 em específico,

que promoveu uma alteração na estrutura tarifária de infraestrutura, notadamente na energia

elétrica, os desígnios de privatização existentes na legislação brasileira desde 1979 finalmente se

concretizaram, por intermédio dos institutos da concessão, da permissão e da autorização, expostos

na Lei Geral de Concessões, bem como pela alteração promovida pela Lei n° 9.491, de 9 de

setembro de 1997, que alterou procedimentos do Programa Nacional de Desestatização – PND.

Importante destacar o ato de conceder promovido no então governo Cardoso. Essa

iniciativa não era considerada uma alternativa pelo governo, mas uma “ausência de escolha”, dada

a insolvência estatal e o inchaço da máquina pública.401 Em que pese o esforço de se criar um

marco regulatório estável para o desenvolvimento de infraestrutura, incluindo a repaginação do

conceito de agências reguladoras,402 bem como o aprimoramento da governança urbana e rural, o

presidente Cardoso não demonstrou a percepção de que a Geografia, em sua dimensão técnica,

corresponde a uma infraestrutura a ser sistematizada pela Geografia de Estado. Suas principais

iniciativas foram:

(i) Decreto n° 1.953, de 10 de julho de 1996: Institui o Sistema Nacional de

Desenvolvimento das Atividades Espaciais (SINDAE), com a finalidade

de organizar a execução das atividades destinadas ao desenvolvimento

espacial de interesse nacional;

(ii) Lei Complementar n° 91, de 22 de dezembro de 1997: Dispõe sobre a

fixação dos coeficientes do Fundo de Participação dos Municípios, sendo

considerados Municípios regularmente instalados, fazendo-se a revisão de

suas quotas anualmente, com base nos dados oficiais de população

400 Lei n° 8.631, de 4 de março de 1993. 401 Cardoso (2006) defende o programa de desestatização como uma inovação na busca do interesse público. O ex-

presidente cita a criação das agências reguladoras, que justifica como o instrumento necessário para imunizar áreas

importantes de ingerências políticas, como um complemento das privatizações, consideradas economicamente

inevitáveis. Para tanto, seus integrantes não poderiam ser demitidos, como na tradição anglo-saxã que serviu de molde

para as agências. 402 As agências reguladoras em muito se assemelham às Comissões de Serviços Públicos concebidas por Alfredo

Valladão em 1907, que desencadearam no Código de Águas de 1934. Desde o governo Vargas havia as mesmas

atribuições centrais delegadas as agências reguladoras: fiscalizar o serviço público com o tríplice objetivo de assegurar

serviço adequado, fixar tarifas razoáveis, e garantir a estabilidade financeira das empresas. As inovações ocorridas na

década de 1990, se não estruturais, refletem a percepção do que vem a ser serviço público no final do século XX:

controle tarifário, universalização dos serviços públicos, combate as assimetrias de informações perante o outorgado,

mediação de conflitos, e outras avenças que porventura cada autarquia especial tenha no bojo de suas competências.

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produzidos pela Fundação IBGE, nos termos do § 2° do art. 102 da Lei n°

8.443, de 16 de julho de 1992;

(iii) Lei n° 9.808, de 20 de julho de 1999: Define diretrizes e incentivos fiscais

para o desenvolvimento regional, todavia, reproduz o conceito de

integração nacional do Regime Militar, focado em desenvolvimento de

empreitada, no qual os recursos decorrentes da dedução em favor do

FINOR, do FINAM e do FUNRES,403 poderão ser aplicados em

empreendimentos não-governamentais de infraestrutura (energia,

telecomunicações, transportes, abastecimento de água, produção de gás e

instalação de gasodutos, e esgotamento sanitário);

(iv) Lei n° 9.871, de 23 de novembro de 1999: Estabelece prazo de dois anos

para as ratificações de concessões e alienações de terras feitas pelos

Estados na faixa de fronteira de até cento e cinquenta quilômetros, desde

que requerido ao INCRA;

(v) Decreto de 10 de maio de 2000: Dispõe sobre o CONCAR, alterando a

composição da governança cartográfica brasileira;

(vi) Decreto n° 3.683, de 6 de dezembro de 2000: Define os setores da

economia considerados prioritários404 para o desenvolvimento regional,

nas áreas de atuação das Agências de Desenvolvimento Regional

(SUDENE e SUDAM);

(vii) Medida Provisória n° 2.145, de 2 de maio de 2001: Cria as Agências de

Desenvolvimento da Amazônia e do Nordeste (ADA e ADENE) e extingue

a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e a

Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE);

403 Conforme exposto pelo art. 1°, parágrafo único, alíneas "a", "b" e "g", do Decreto-Lei no 1.376, de 12 de dezembro

de 1974. 404 Com base no disposto no art. 9º da Lei nº 8.167, de 16 de janeiro de 1991.

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(viii) Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001: Cria o Estatuto da Cidade, ao

regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelecer

diretrizes gerais da política urbana;

(ix) Lei n° 10.267, de 28 de agosto de 2001: Cria a Lei do Georreferenciamento,

ao alterar a governança nos cadastros de imóveis por exigir memorial

descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de

Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices

definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema

Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA.

Esta exigência incidirá nos autos judiciais que versem localização, limites

e confrontações de imóveis rurais, bem como nos casos de

desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais;

(x) Decreto n° 4.449, de 30 de outubro de 2002: Regulamenta e altera prazos

da Lei do Georreferenciamento.

Ante este rol de legislações, infere-se que elas foram focadas muito mais no sentido

de conferir uma visão de governança do bem público (como, p. ex., a malfadada transformação da

SUDENE e da SUDAM em ADENE e ADA, que objetivava conferir autonomia a seus gestores),

do que integrar o desenvolvimento regional em uma autarquia centralizada, conforme viabilizado

por Teixeira de Freitas. Esta mudança almejava aprimorar a governança estatal, por meio de

medidas provisórias reeditadas consecutivamente, situação que, além de atropelar debates no

Congresso Nacional, não atendia a necessidade de estruturar a gestão das escalas de governança.

Por outro lado, o Estatuto da Cidade trouxe preciosos elementos de gestão espacial, ao

estabelecer como diretrizes gerais da política urbana (art. 2°) a cooperação entre os governos

(inciso II), o planejamento da distribuição espacial da população (inciso IV), a ordenação e o

controle do uso do solo (inciso VI); a integração e a complementaridade entre as atividades urbanas

e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua

área de influência (inciso VII); e a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por

população de baixa renda (inciso XIV). Com base na Constituição, delegou, ainda, a União, a

competência para legislar sobre normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito

Federal e os Municípios em relação à política urbana, tendo em vista o equilíbrio do

desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (art. 3°, II); e elaborar e executar planos

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nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (art. 3°,

V). Concomitante ao Estatuto da Cidade, a Lei do Georreferenciamento foi outra grande iniciativa

deste governo, na qual questões seculares como a grilagem de terras passaria a ter uma solução

geojurídica: o critério coercitivo das poligonais, ou seja, o emprego da latitude e da longitude

enquanto técnica jurídica, e não mais a demarcação por meio de fatos geográficos (p. ex., rio,

morro, várzea etc.).

Assim, em que pese ter criado um marco regulatório para as cidades intervirem no

espaço urbano e ter desenvolvido um sistema Mapa-Norma para a gestão fundiária, por meio do

emprego do georreferenciamento enquanto pressuposto do cadastro rural, a legislação do governo

Cardoso, de complexa efetividade prática, não cria uma política pública geográfica, conforme

ordena o art. 21, XV, da Constituição Federal, assumindo, de forma tácita, o papel meramente

reprodutor da atomização axiológica e instrumental concebida por Castelo Branco.

4.5.4. O governo Lula

Com a posse do metalúrgico pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva, houve uma

demanda da sociedade por identificar novas formas de inserção social, concomitante a um desgaste

do modelo de concessões e de privatizações. No centro deste desgaste, estavam as altas tarifas de

serviços públicos, bem como três fatos decorrentes do setor de energia: (i) o afundamento da então

maior plataforma de produção de petróleo em alto-mar do mundo, a P-36, na Bacia de Campos,

que sofrera três explosões em março de 2001; (ii) o racionamento de energia elétrica, oficializado

em 15 de maio de 2001; e (iii) a malograda tentativa de mudar o nome da Petrobras para Petrobrax,

fundada no pretexto de dissociar o nome da empresa da imagem do Brasil para efeitos de

internacionalização.

O presidente Lula, logo no início de seu governo, promoveu uma reestruturação na

organização da Presidência da República e dos Ministérios, por meio da Lei n° 10.683, de 28 de

maio de 2003 e aprovou o novo estatuto da Fundação IBGE pelo Decreto n° 4.740, de 13 de junho

de 2003. Sob a ótica da Geografia de Estado, Lula reorganiza a governança do desenvolvimento

regional, com o retorno da SUDENE, da SUDAM, da SUDECO e a instituição da Política

Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR, dispõe sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil

(SINDEC), cria a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) e a Lei do Acesso às

Informações (LAI), de grande utilidade para definir informações abertas e sigilosas. Suas

principais medidas foram:

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(i) Decreto n° 4.793, de 23 de julho de 2003: Cria a Câmara de Políticas de

Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, do Conselho de Governo;

(ii) Lei n° 10.894, de 14 de julho de 2004: Declara Patrono da Geografia Nacional

o geógrafo Milton Santos;

(iii) Lei n° 11.111, de 5 de maio de 2005: Cria a Lei do Acesso às Informações

(LAI), que regulamenta a parte final do disposto no inciso XXXIII do caput do

art. 5º da Constituição Federal;

(iv) Lei n° 11.159, de 2 de agosto de 2005: Denomina Milton Santos o Atlas

Nacional do Brasil, publicado pelo IBGE;

(v) Lei Complementar n° 124, de 3 de janeiro de 2007: Institui, na forma do art.

43 da Constituição Federal, a Superintendência do Desenvolvimento da

Amazônia (SUDAM); estabelecendo sua composição, natureza jurídica,

objetivos, área de competência, instrumentos de ação, e dispõe sobre o Fundo

de Desenvolvimento da Amazônia (FDA);

(vi) Lei Complementar n° 125, de 3 de janeiro de 2007: Institui, na forma do art.

43 da Constituição Federal, a Superintendência do Desenvolvimento do

Nordeste (SUDENE); estabelecendo sua composição, natureza jurídica,

objetivos, áreas de atuação e instrumentos de ação;

(vii) Decreto n° 6.047, de 22 de fevereiro de 2007: Institui a Política Nacional de

Desenvolvimento Regional (PNDR), com o objetivo de reduzir as

desigualdades de nível de vida entre as regiões brasileiras e promover a

equidade no acesso a oportunidades de desenvolvimento. Traz em seu bojo o

conceito de escala, sendo que na macrorregional, deverão ser elaborados

Planos Estratégicos de Desenvolvimento, atendendo ao disposto no inciso IX

do art. 21 da Constituição, com prioridade para as regiões Norte, Nordeste e

Centro-Oeste; na escala sub-regional, o Governo Federal atuará,

prioritariamente, por meio de seus Programas, em escala mesorregional; e o

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Ministério da Integração Nacional, mediante portaria, poderá definir os limites

territoriais das Mesorregiões Diferenciadas e outros espaços sub-regionais;

(viii) Decreto de 1° de agosto de 2008: Dispõe sobre a Comissão Nacional de

Cartografia (CONCAR), mantida no âmbito do Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão, com as atribuições de assessorar o Ministro de Estado na

supervisão do Sistema Cartográfico Nacional, de coordenar a execução da

política cartográfica nacional e de exercer outras atribuições nos termos da

legislação pertinente, com a participação de 25 representantes do governo e da

sociedade civil;

(ix) Decreto 6.556, de 8 de setembro de 2008: Altera o art. 6º do Decreto nº 2.179,

de 18 de março de 1997, que dispõe sobre a concessão de incentivos fiscais

para o desenvolvimento regional para os produtos que especifica;

(x) Decreto n° 6.666, de 3 de dezembro de 2008: Institui, no âmbito do Poder

Executivo Federal, a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), para

promover a geração, o armazenamento, o acesso, o compartilhamento e a

disseminação e no uso dos dados geoespaciais, promovendo seu uso pelas

diversas escalas de governança, de forma a evitar a duplicidade de ações e o

desperdício de recursos na obtenção de dados geoespaciais pelos órgãos da

administração pública. Para tanto, prevê a implantação do Diretório Brasileiro

de Dados Geoespaciais (DBDG), denominado “Sistema de Informações

Geográficas do Brasil (SIG Brasil)”, sendo o portal principal para o acesso aos

dados, seus metadados e serviços relacionados;

(xi) Emenda Constitucional n° 57, de 18 de dezembro de 2008: Acrescenta artigo

ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para convalidar os atos de

criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei

estadual tenha sido publicada até 31/12/2006; e

(xii) Lei Complementar n° 129, de 8 de janeiro de 2009: Institui, na forma do art.

43 da Constituição Federal, a Superintendência do Desenvolvimento do

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Centro-Oeste (SUDECO), estabelecendo sua missão institucional, natureza

jurídica, objetivos, área de atuação e instrumentos de ação.

Neste cenário, se o governo Cardoso avançou na axiologia geojurídica urbana e rural,

o governo Lula desenvolveu a técnica geojurídica regional e criou um marco regulatório na

concepção de uma infraestrutura geográfica. A criação da INDE resgata parte importante das

funções do IBGE autárquico, concebido por Teixeira de Freitas, pois busca promover uma

coordenação federativa com gestão descentralizada, que pressupõe participação social e

transparência pública. Mas a INDE, por não ter personalidade jurídica, não está apta a conferir as

suas informações o necessário caráter de oficialidade que o IBGE autárquico tinha e que a

Constituição de 1988 reclama.

Ao integrar dados governamentais em um único portal de internet, o SIG Brasil

possibilita racionalizar as informações geográficas, fomentando uma cultura de infraestrutura

geográfica nos entes federados para a gestão do espaço nacional. E aqui reside a principal

contradição da INDE em específico, e da Geografia de Estado em geral neste início de século XXI:

se ela confere um marco regulatório para que a geoinformação produzida pela Administração

Pública seja considerada um bem de domínio público, atribuindo aos dados espaciais valor

jurídico, econômico e social, por ser dotada de característica de infraestrutura, sendo indispensável

para o desenvolvimento nacional, ela necessita ter uma governança simétrica aos demais

segmentos da infraestrutura (energia, transportes, saneamento, telecomunicações etc.) que

atualmente reclamam estruturado modelo regulatório, com agências reguladoras autônomas e sob

regime de autarquia especial. Veremos como esta contradição se desenvolveu no governo Dilma.

4.5.5. O governo Dilma

Ao assumir a presidência, a economista Dilma Rousseff deu continuidade a gestão de

seu antecessor, mantendo em sua íntegra a constituição da INDE e espraiando o critério espacial

no sistema normativo brasileiro. Sua gestão deve ser reconhecida como aquela que instituiu um

plano estratégico para a região de fronteira, por criar uma nova Lei de Acesso as Informações, por

obrigar os municípios a produzirem cartas geotécnicas para efeito de defesa civil, e por conceber

o Cadastro Ambiental Rural enquanto instrumento regulador do critério espacial do meio

ambiente, conforme conjunto de legislação abaixo exposta:

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(i) Decreto n° 7.496, de 8 de junho de 2011: Institui o Plano Estratégico de

Fronteiras para o fortalecimento da prevenção, controle, fiscalização e

repressão dos delitos transfronteiriços e dos delitos praticados na faixa de

fronteira brasileira;

(ii) Lei n° 12.527, de 18 de novembro de 2011: Cria a nova Lei do Acesso às

Informações (LAI),405 redefinindo parâmetros para considerar determinados

documentos como abertos ou sigilosos;

(iii) Lei n° 12.608, de 10 de abril de 2012: Institui a Política Nacional de Proteção

e Defesa Civil (PNPDEC); dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e

Defesa Civil (SINPDEC); o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil

(CONPDEC); e autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento

de desastres. Prevê que o Governo Federal instituirá cadastro nacional de

municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande

impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos

correlatos, no qual os Municípios incluídos no cadastro deverão elaborar carta

geotécnica de aptidão à urbanização, estabelecendo diretrizes urbanísticas

voltadas para a segurança dos novos parcelamentos do solo e para o

aproveitamento de agregados para a construção civil;

(iv) Lei n° 12.651, de 25 de maio de 2012: Institui o novo Código Florestal,

mantendo as áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal

enquanto critério espacial do Direito Ambiental, criando o Cadastro Ambiental

Rural (CAR), no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio

Ambiente (SINIMA), registro público eletrônico de âmbito nacional,

obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as

informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de

dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e

combate ao desmatamento;

405 Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do §3º do art. 37 e no § 2º do art.

216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11/12/1990; revoga a Lei nº 11.111, de 05/05/2005, e dispositivos

da Lei nº 8.159, de 08/01/1991.

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(v) Decreto n° 7.830, de 17 de outubro de 2012: Cria o Sistema de Cadastro

Ambiental Rural (SICAR), que integrará o CAR de todas as Unidades da

Federação;

(vi) Decreto n° 7.845, de 14 de novembro de 2012: Regulamenta procedimentos

para credenciamento de segurança e tratamento de informação classificada em

qualquer grau de sigilo, e dispõe sobre o núcleo de segurança e

credenciamento;

(vii) Decreto n° 7.905, de 4 de fevereiro de 2013: Restaura a vigência do Decreto nº

42.290, de 19 de setembro de 1957, que autoriza o restabelecimento da filiação

do Brasil a União Geodésica e Geofísica Internacional; e

(viii) Decreto n° 8.235, de 5 de maio de 2014: Estabelece normas gerais

complementares aos Programas de Regularização Ambiental dos Estados e do

Distrito Federal, de que trata o Decreto n° 7.830, de 17 de outubro de 2012, e

institui o Programa Mais Ambiente Brasil.

Ante o exposto, em que pese a riqueza de técnicas e de percepções do critério espacial

constantes na norma, a visão de Geografia de Estado produzida após a redemocratização

aprofundou a atomização de subsistemas iniciada por Castelo Branco, de maneira que a técnica

geográfica tem se tornado complexa e compartilhada entre diversas instituições, com diferentes

axiologias, o que se comprova nas quase 65 mil cartas nas escalas de 1:25.000 a 1:250.000, que

refletem 8,5 milhões de km² com diversos enfoques de políticas públicas multifinalitárias e com

temas dos mais variados, englobando questões urbanas, ambientais, agrárias, subsolo, plataforma

marítima, espaço aéreo, dentre outros.

De forma a sintetizar todo o pensamento geográfico do Estado brasileiro, podem-se

apontar atualmente diversas iniciativas na União para identificar, desenvolver e implementar

políticas públicas para critérios espaciais, sendo que estas infraestruturas, enquanto resultantes,

não estão interligadas com as demais. Nenhuma delas cumpre o espírito da Constituição Federal

de 1988, de organizar e manter os serviços oficiais de Geografia, de Cartografia e de Estatística de

âmbito nacional de forma racional. Neste pluralismo de sistemas jurídicos, quando suas

informações são contrapostas, demonstram inconsistências entre si, decorrente da falta de

padronização, sobreposição de cartas e de espaços territoriais não cartografados. Na construção do

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sistema Mapa-Norma, estão todos os times e esportes na quadra poliesportiva, jogando

concomitantemente, impondo suas regras sem sentido de unidade. São músicos que tocam seus

instrumentos sem maestros. Seguem abaixo um sumário das atuais iniciativas vigentes sobre a

Geografia de Estado no Brasil:

(i) Lei do Georreferenciamento: O Sistema Público de Registro de Terras foi

criado pela Lei n° 10.267, de 2001, que alterou a Lei n° 6.015, de 1973, e

tornou obrigatório o georreferenciamento a todos os imóveis considerados

rurais no Brasil. Em outras palavras, os imóveis rurais passam a ser descritos

a partir de pontos geodésicos obtidos por satélite a partir do Sistema

Geodésico Brasileiro (SGB) que serve de mapeamento, pesquisa, geofísica,

dentre outros (OLIVEIRA; NEVES, 2006, p. 13). A grilagem,406 prática

secular no Brasil, passou a ser combatida de forma mais técnica,

consubstanciadas no Direito, que conferia as imagens aerométricas força de

lei para o caso concreto. Ganha centralidade o Cadastro Nacional de Imóveis

Rurais (CNIR). O Brasil encontra dificuldades de regularização das

propriedades rurais, principalmente pela falta de fiscalização eficaz e de

instrumentos de regulação do sistema georreferenciado. Além disso, há um

grande desvio de função institucional, haja vista que o Incra tem homologado

bases comunitárias do GPS, função que juridicamente é da Fundação IBGE.

(ii) Políticas de Desenvolvimento Regional: O Ministério da Integração

Nacional, por meio da Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional,

foi incumbido pela Lei n° 10.683 de 20 de maio de 2003, de:407 (i) formular

e conduzir a política de desenvolvimento nacional integrada; (ii) formular os

planos e programas regionais de desenvolvimento; (iii) estabelecer estratégias

de integração das economias regionais; (iv) estabelecer normas para

cumprimento dos programas de financiamento dos fundos constitucionais e

das programações orçamentárias dos fundos de investimentos regionais; e (v)

acompanhar e avaliar os programas integrados de desenvolvimento nacional.

Em 2007 foi criada a Política Nacional de Desenvolvimento Regional

406 Termo que corresponde a mecanismo de adulteração de limites de propriedade ou de documentos para, de forma

ilegal, tornar pessoa alheia dona de Direito de propriedade de terceiros. 407 Artigo 27 – inciso XIII – letra L e parágrafo 3º.

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(PNDR), por força do Decreto n° 6.047, de 22 de fevereiro de 2007. Esta

política regional é demasiadamente focada no Polígono das Secas, com

resultados muito limitados fora desta geograficidade.

(iii) Comissão Nacional de Cartografia (CONCAR): Sob a tutela do Ministério

do Planejamento, Orçamento e Gestão, a CONCAR foi instituída em 1994,

sendo sua última versão publicada pelo Decreto s/n°, de 1° de agosto de 2008.

Busca adequar as normas cartográficas, ainda com tímidos resultados práticos

decorrentes do perfil da governança setorial, em que pese seu planejamento

estratégico estar vigente desde 2005. Sua principal iniciativa é a viabilização

da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) enquanto projeto de

consolidação da técnica geográfica enquanto infraestrutura, passível de

universalização.

(iv) Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE): Instituída pelo

Decreto n° 6.666, de 27 de novembro de 2008, é definida como conjunto

integrado de tecnologias; políticas; mecanismos e procedimentos de

coordenação e monitoramento; padrões e acordos, necessário para facilitar e

ordenar a geração, o armazenamento, o acesso, o compartilhamento, a

disseminação e o uso dos dados geoespaciais de origem federal, estadual,

distrital e municipal. A INDE é a entidade que mais demonstra o conceito de

monopólio natural da infraestrutura geoespacial, uma vez que busca evitar a

duplicidade de ações e o desperdício de recursos na obtenção de dados

geoespaciais, por meio da divulgação da documentação (metadados) dos

dados disponíveis nas entidades e nos órgãos públicos das esferas federal,

estadual, distrital e municipal. Todavia, a realiza de forma tímida, sem poder

coercitivo para proibir esta duplicação por não ter personalidade jurídica, e

atua com uma governança difusa, consubstanciada por força do Plano de

Ação da INDE.

(v) Infraestrutura Nacional de Dados Abertos (INDA): Política do governo

brasileiro para dados abertos, resulta em um conjunto de padrões, tecnologias,

procedimentos e mecanismos de controle necessários para atender às

condições de disseminação e compartilhamento de dados e informações

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públicas no modelo de Dados Abertos, em conformidade com o disposto na

arquitetura Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico (ePING).

De frágil segurança jurídica, o Ministério do Planejamento mistura funções

de Governo e de Estado, haja vista que regula o que são dados abertos por

meio de Instrução Normativa408 e cria obrigatoriedade perante outros órgãos

mediante Portaria,409 funções estas que deveriam ser autárquicas.

(vi) Plano Plurianual Territorial (PPA Territorial): Instrumento previsto no

art. 165 da Constituição Federal, destinado a orientar o Estado e a sociedade

no sentido de viabilizar os objetivos da República. A dimensão territorial foi

contemplada inicialmente no Plano Plurianual 2008-2011410 que a dividiu em

módulos,411 obtendo como resultado escalas de governança distintas e

regionalizadas. Em que pese nortear as políticas públicas do Ministério do

Planejamento, incluindo a criação de um documento programático para

relacionamento entre União e as demais escalas de governança, os resultados

desta iniciativa ainda necessitarão ser consolidados mediante os próximos

ciclos do PPA.

(vii) Agenda de Desenvolvimento Territorial (ADT): O Ministério do

Planejamento propôs a elaboração das Agendas de Desenvolvimento

Territorial com o objetivo de compartilhar o planejamento entre as escalas

federal, estaduais e distrital. É o instrumento de viabilização do PPA

408 Instrução Normativa nº 4, 13 de abril de 2012, Institui a Infraestrutura Nacional de Dados Abertos – INDA,

mediante determinação do Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão. 409 A Portaria SLTI/MP nº 5, de 14 de julho de 2005, determina que, para os órgãos do governo federal, a adoção dos

padrões e políticas contidos na ePING é obrigatória. 410 Por meio do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), entidade contratada que produziu o estudo

Abordagem da Dimensão Territorial do Desenvolvimento Nacional no Plano Plurianual 2008–2011. 411 O Módulo 1 (Marco Inicial) tem como objetivo definir as bases conceituais e metodológicas do Estudo. O Módulo

2 (Visão Estratégica) apresenta uma visão estratégica para o território nacional no horizonte de 2027. O Módulo 3

(Regiões de Referência) construiu uma regionalização em duas escalas (macrorregional e sub-regional) para o

território brasileiro que permite subsidiar a escolha e localização de projetos de investimentos, bem como a articulação

de políticas públicas. O Módulo 4 (Estudos Prospectivos - Escolhas Estratégicas) objetivou realizar análises

prospectivas sobre setores e temas. O Módulo 5 (Carteira de Investimentos) lançou-se à identificação de conjunto de

iniciativas estratégicas, compreendendo as dimensões econômica, social, ambiental e de informação/conhecimento.

O Módulo 6 (Impactos Econômicos da Carteira de Investimentos) analisou os impactos socioeconômicos da carteira

de investimentos nas regiões de referência. O Módulo 7 (Avaliação da Sustentabilidade da Carteira de Investimentos)

compreendeu a análise de sustentabilidade da carteira de investimentos por região de referência. O Módulo 8 (Serviços

de Georreferenciamento) contempla a sistematização das informações utilizadas nos vários módulos do Estudo em

bases georreferenciadas.

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Territorial, dentro do conceito do Plano Plurianual que estiver vigente. São

dinâmicas e permitem recortes distintos (p. ex., região de uma rodovia ou

zona de fronteira). Assim como o PPA Territorial, os resultados desta

iniciativa ainda necessitarão ser consolidados mediante os próximos ciclos do

PPA.

(viii) Plano de Dados Abertos (PDA): Consiste em informações

geoespacializadas, disponibilizadas por diferentes órgãos do Estado,

destinados a viabilizar a: (i) concepção e governança participativa da

Infraestrutura Nacional de Dados Abertos (INDA); (ii) disponibilização de

dados do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (Siconv);

e (iii) abertura de dados do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

No caso do Ministério do Planejamento, foi criado o Portal Brasileiro de

Dados Abertos (dados.gov.br) e um Guia de Serviços, sendo seu plano bienal.

No caso do Ministério da Justiça, há a intenção de se promover a coordenação

das ações de disponibilização e sustentabilidade de dados abertos, inclusive

geoespacializados, zelando pelos princípios da publicidade, transparência e

eficiência. Assim como o PPA Territorial, os resultados desta iniciativa ainda

necessitarão ser consolidados mediante as políticas públicas setoriais.

(ix) Lei de Acesso a Informação (LAI): A Lei n° 12.527, de novembro de 2011,

versa sobre os procedimentos que União, estados, Distrito Federal e

municípios deverão adotar para garantir o acesso à informação sobre as ações

públicas aos cidadãos. É dever do Estado garantir o direito de acesso à

informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis,

de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão. Além de

viabilizar os meios para que os cidadãos acessem as informações, ela também

trata da Proteção e do Controle de Informações Sigilosas. Dentre estas

informações, devem ser enquadradas as informações geoespaciais

produzidas, ou contratadas, pelo Estado, por serem bens de domínio público.

Não há especificação sobre mapas do Estado, de forma que a análise destas

informações é realizada caso a caso, dependendo do órgão responsável pela

produção geoespacial.

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(x) Cadastro Territorial Multifinalitário (CTM): Iniciativa do Ministério das

Cidades, que regula a matéria por Portaria,412 sendo definido o CTM como o

inventário territorial oficial e sistemático do município, embasado no

levantamento dos limites de cada parcela, que recebe uma identificação

numérica inequívoca. O critério espacial é dado pela Carta Cadastral, sendo

a representação cartográfica do levantamento sistemático territorial do

Município. O levantamento cadastral para a identificação geométrica das

parcelas territoriais deve ser referenciado ao Sistema Geodésico Brasileiro

(SGB, art. 10°), sendo que a Cartografia Cadastral deve obedecer aos padrões

estabelecidos para a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) e às

normas relativas à Cartografia Nacional, de acordo com o artigo 4º do Decreto

n° 6.666, de 2008 (art. 14). Em que pese conter elevado nível de integração

com as demais políticas públicas, alta tecnicidade, bem como alta

capilaridade nos municípios, atendendo as vertentes do Sistema Nacional de

Política Urbana,413 o Ministério das Cidades mistura funções de Governo e

de Estado, haja vista que regula questões cadastrais por meio de Portaria e

cria obrigações a outras entidades federadas sem o crivo do Congresso

Nacional.

(xi) Cadastro Ambiental Rural (CAR): Iniciativa do Ministério do Meio

Ambiente, legislada pelo Código Florestal (Lei n° 12.651, de 25 de maio de

2012), que criou o CAR em âmbito nacional, sendo regulamentado pelo

Decreto n° 7.830, de 17 de outubro de 2012, que criou o Sistema de Cadastro

Ambiental Rural (SICAR), que integrará o CAR de todas as Unidades da

Federação, bem como pelo Decreto n° 8.235, de 5 de maio de 2014, que

estabelece normas gerais complementares aos Programas de Regularização

Ambiental dos Estados e do Distrito Federal, de que trata o mencionado

Decreto n° 7.830, de 2012. O CAR é um instrumento fundamental para

412 Portaria n° 511, de 7 de dezembro de 2009, que cria diretrizes para a criação, instituição e atualização do Cadastro

Territorial Multifinalitário (CTM) nos municípios brasileiros, com base nas competências do Ministério das Cidades

descritas nos incisos I e II, do parágrafo único, do art. 87, da Constituição Federal, no inciso III, do art. 27, na Lei n°

10.683, de 28 de maio de 2003, e no art. 3º, do Anexo I, do Decreto n° 4.665, de 3 de abril de 2003. 413 que são: (i) planejamento territorial; (ii) habitação; (iii) saneamento ambiental; e (iv) trânsito, transporte e

mobilidade urbana, com controle e participação social.

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auxiliar no processo de regularização ambiental de propriedades e posses

rurais. Consiste no levantamento de informações georreferenciadas do

imóvel, com delimitação das Áreas de Proteção Permanente (APP), Reserva

Legal (RL), remanescentes de vegetação nativa, área rural consolidada, áreas

de interesse social e de utilidade pública, com o objetivo de traçar um mapa

digital a partir do qual são calculados os valores das áreas para diagnóstico

ambiental. Sendo o critério espacial mais recente previsto em política pública,

não houve tempo hábil para verificar sua eficácia, devendo em muito

contribuir para o desenvolvimento da Geografia Ambiental e do Direito

Ambiental de maneira diretamente proporcional aos problemas que serão

identificados e enfrentados ao colidir com outros regimes jurídicos (p. ex.,

agrário, urbanístico etc.).

(xii) Código Cartográfico Nacional e Agência Nacional de Cartografia e da

Informação Geoespacial (ANCAR): O Projeto de Lei n° 5.067, de 2013, de

autoria do dep. Arnaldo Jardim (PPS/SP), propôs a criação do Código

Cartográfico Nacional e da Agência Nacional de Cartografia e da Informação

Geoespacial (ANCAR).414 Na fundamentação, apoiada pelo Instituto

Geodireito, propôs a criação de um novo marco regulatório no Brasil,

apontando caminhos e reestruturando o tratamento das informações

geoespaciais de domínio público. Inspira-se no modelo de telecomunicações,

que teve um marco regulatório que revogou todas as normas anteriores. Esta

iniciativa, que produziu intenso debate na comunidade geográfica, carece de

reestruturação e de consenso para prosperar, uma vez que a iniciativa de

criação de agência reguladora deve partir do Poder Executivo.

(xiii) Política Nacional de Geoinformação (PNGeo): Iniciativa do Ministério do

Planejamento, Orçamento e Gestão, produz debates sob sua orientação dentro

da INDE, de forma a obter subsídios para o aprimoramento do modelo da

CONCAR e da INDE, acomodando o modelo e as instituições atuais. Para

viabilizar a infraestrutura espacial, busca envolver alguns órgãos dos entes

414 Altera as Leis nºs 6.015, de 1973; 6.938, de 1981; 12.340, de 2012; 12.608 de 2012 e 12.651, de 2012. Revoga o

Decreto-Lei nº 243, de 28 de fevereiro de 1967, o Decreto nº 89.817, de 20 de junho de 1984, o Decreto nº 5.334 de

6 de janeiro de 2005, o Decreto s/nº de 1º de agosto de 2008 e o Decreto nº 6.666, de 27 de novembro de 2008.

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federados, bem como a academia e os usuários, com eficácia limitada tanto

pela complexidade do tema quanto pela forma de condução.

(xiv) Política Nacional de Ordenamento Territorial (PNOT): Prevista

constitucionalmente, cabe a União elaborar e executar planos nacionais e

regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social

(art. 21, IX, CF 88). Mas não foi regulamentada. Esta norma deve conter

conceitos de cunho geográfico, como território, região, lugar, zona, área,

dentre outros, de forma a criar um Sistema de Gestão do Território, composto

por órgãos e entidades da administração direta e indireta da União, dos

Estados e dos Municípios.415 Os próprios estudos para viabilização do PNOT

enunciam, como finalidade do Plano, a necessidade de preservar o meio

ambiente, distribuir as atividades agropecuárias e as indústrias, diversificar as

fontes de energia, favorecer o crescimento de cidades médias, dentre outras

finalidades. Há ainda o interesse em definir a área de atuação dos planos

nacional, regionais e locais, que poderá coincidir com os limites políticos dos

Estados-membros ou determinar outra unidade de gestão, como as bacias

hidrográficas, os limites políticos do território municipal, a criação de espaços

territoriais especialmente protegidos e o sistema de informações.416

(xv) Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (Sinter):

Decorrente da necessidade de regulamentação do Capítulo II da Lei n°

11.977, de 7 de julho de 2009,417 o Sinter é uma iniciativa do Ministério da

Fazenda para integrar os Atos Registrais de todos os cartórios, por meio de

415 “A particularidade brasileira de exigir da política de ordenamento territorial uma vinculação com as políticas de

planejamento regional reside em seu gigantismo territorial e na necessidade de desconcentração de riqueza e

população, portanto, submetida não aos interesses regionais fragmentados e particularistas, mas num contexto de uma

visão estratégica de Estado e de modelo de organização territorial. Contudo, a gestão do território dialoga não apenas

com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, mas também com todas aquelas políticas setoriais e

macroeconômicas capazes de produzir efeitos territoriais importantes.” RÜCKERT, 2007. 416 “A preocupação com a segurança nacional, de onde emana a criação de um território especial ao longo do limite

internacional continental do país, embora legítima, não tem sido acompanhada de uma política pública sistemática

que atenda às especificidades regionais, nem do ponto de vista econômico nem da cidadania fronteiriça. Motivos para

isso não faltaram até o passado recente, como a baixa densidade demográfica, a vocação “atlântica” do país, as grandes

distâncias e as dificuldades de comunicação com os principais centros decisórios, entre outros.” O Programa de

Desenvolvimento de Faixa de Fronteira do Ministério da Integração - PDFF (2005, p. 9). 417 Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos

localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei n° 3.365, de 21/06/1941, as Leis nos 4.380, de 21/08/1964; 6.015,

de 31/12/1973; 8.036, de 11/05/1990; 10.257, de 10/07/2001, e a MP no 2.197-43, de 24/08/2001; e dá outras

providências.

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um Código Nacional do Imóvel, que será a chave que permitirá o cruzamento

das informações registrais com os dados cadastrais de todos os imóveis do

Brasil. O objetivo é criar um inventário oficial e sistemático do território

nacional, desenvolvido com tecnologia de banco de dados apropriada para

Sistemas de Informações Geográficas (SIG), em uma concepção

multifinalitária, de forma a integrar as informações jurídicas de imóveis,

provenientes dos Serviços de Registros Públicos, às informações físicas,

cadastrais, fiscais, ambientais, fundiárias e de valoração relativas a imóveis

urbanos e rurais. Esta ambiciosa iniciativa permite consolidar dados fiscais a

todas as demais dimensões (principalmente urbana, agrária e ambiental),

permitindo o monitoramento pelo Estado do mercado imobiliário quase que

de forma instantânea, o que permite aprimorar os mecanismos de crédito, o

controle patrimonial e a arrecadação tributária. Esta iniciativa tende a

eliminar o “beliche cartorário”, compreendido como a sobreposição de títulos

em uma mesma gleba, conferindo segurança jurídica a propriedade. Até o

presente momento é a iniciativa mais completa de geoespacialização do

Estado brasileiro, uma vez que utiliza do interesse econômico como

atividade-meio para a consecução de cidadania, nos mesmos termos do anseio

de Rui Barbosa em 1890, de criar um sistema eficaz de publicidade

imobiliária, ao viabilizar a circulação dos títulos relativos ao domínio sobre a

terra.

Ante esta multiplicidade de iniciativas de interação com o critério espacial do Estado

brasileiro, ao aplicarmos o modelo tridimensional interdisciplinar, nota-se a inexistência de

simetria entre a Geografia e o Direito, ou mesmo a inviabilidade de se identificar uma Geografia

e um Direito consolidados, que consequentemente refletem a inviabilidade de se fixar um

Geodireito enquanto mecanismo de mediação entre as ciências, uma vez que:

(i) Tríade fato-valor-técnica geográfica: Em que pese haver uma sólida

composição do espaço brasileiro, com fronteiras bem definidas e escalas de

governança delimitadas constitucionalmente, houve um grande

aprofundamento da atomização axiológica (Geografia Urbana, Geografia

Agrária, Geografia Ambiental, Geografia da Energia, Geografia dos

Transportes, etc.) e instrumental (cartografia, sensoriamento remoto,

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aerolevantamento, sistema de informação geográfica, imagens por satélites,

etc), que reproduziu em grande escala o fracionamento científico iniciado em

1967 pelo presidente Castelo Branco, produzindo subsistemas de ricas

percepções, mas de frágil organicidade, sem que haja um sistema padrão que

possa ser empregado de forma uniforme para caracterizar todo o critério

espacial do Estado brasileiro;

(ii) Tríade fato-valor-técnica jurídica: Em que pese haver uma sólida

composição do Estado brasileiro, com fronteiras bem definidas e escalas de

governança delimitadas constitucionalmente, houve um grande

aprofundamento da atomização axiológica (Direito Urbanístico, Direito

Ambiental, Direito Agrário, Direito da Energia, Direito dos Transportes, etc.)

e instrumental (legislações específicas para região metropolitana, região de

fronteira, desenvolvimento regional, plataforma marítima, espaço aéreo,

infraestrutura de dados espaciais, etc), que reproduziu em grande escala o

fracionamento científico iniciado em 1967 pelo presidente Castelo Branco,

produzindo subsistemas de ricas percepções mas de frágil organicidade, sem

que haja um sistema padrão que possa ser empregado de forma uniforme para

caracterizar todo o critério coercitivo do Estado brasileiro; e

(iii) Tríade fato-valor-técnica geojurídica: Em que pese haver uma sólida

composição do Estado brasileiro, com fronteiras bem definidas e escalas de

governança delimitadas constitucionalmente, a atual diáspora axiológica e

instrumental da Geografia de Estado desestimula a coesão interna, ao não

legitimar um órgão para exercer a função de maestro do sistema Solidariedade-

Justiça, uma vez que a divisão geojurídica do trabalho se transformou em um

não-sistema, caracterizado pelo improviso e pelo senso de oportunidade do

legislador em aprovar medidas pontuais ou complexas a ponto de se tornarem

inviáveis. Ao mesmo tempo, a infraestrutura geográfica não tem uma

governança que viabilize a existência de um verdadeiro sistema Mapa-Norma,

dotado de oficialidade que possa ser utilizado de forma comum, por todas as

escalas de governança.

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A Geografia de Estado pós-redemocratização continua a reproduzir o modelo criado

no Regime Militar, qual seja, o de disseminação axiológica temática concomitante a proliferação

instrumental sem integração tecnológica. Em que pese a Constituição Federal de 1988 falar na

obrigatoriedade da União organizar e manter os serviços oficiais de Geografia, de Cartografia e de

Estatística de âmbito nacional de forma racional, o pluralismo de sistemas geográficos e jurídicos

é tamanho que, no limite, inviabiliza a compreensão da Geografia de Estado como um todo, sem

uma governança que possibilite a produção de informações oficiais e confiáveis, tampouco o

emprego de uma tecnologia que impeça a ausência de padronização, de sobreposição de mapas

com conceitos antagônicos, bem como de espaços territoriais não cartografados.

FIGURA 50 – Modelo tridimensional aplicado a Geografia Redemocratizada

Geografia assimétrica: fato definido, valor e técnica altamente fragmentados

Direito assimétrico: fato definido, valor e técnica altamente fragmentados

Conclusão: Geodireito não identificável dada a pluralidade do sistema axiológico e

instrumental

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O Direito Administrativo Geográfico pós-1967, que sucumbia a uma visão

estritamente geopolítica do Estado, torna-se uma verdadeira colcha de retalhos axiológica e

instrumental, sem um pensamento central balizador, estruturante e referencial, da Geografia de

Estado, que repercute em um sistema Mapa-Norma altamente fragmentado e com pouco poder de

interferir no processo de desenvolvimento da cidadania.

O atual modelo de Geografia de Estado no Brasil, vigente desde 1967, demonstra um

esgotamento de suas possibilidades. Mais do que incorrer em eventuais descumprimentos da

Constituição Federal de 1988, que versa sobre a obrigação da União em organizar e manter os

serviços oficiais de Geografia, de Cartografia e de Estatística de âmbito nacional de forma racional,

o país não tem sido eficaz em promover planejamento e políticas públicas com base em informação

oficial geoespacial. O histórico normativo da Geografia de Estado sugere uma sucessão de

paliativos com critério coercitivos que produziram uma espécie de “puxadinhos jurídicos”, ou

“colcha de retalhos cartográficos”, que não enfrentaram o cerne da questão da Geografia de Estado.

Serão abaixo propostos alguns eixos que sugerem novos caminhos para renovar esta visão

geográfica do Estado brasileiro, que possa promover um critério espacial das políticas públicas de

forma federada, solidária, justa e tecnologicamente avançada.

4.6. Por uma nova Geografia de Estado no Brasil: Crítica axiológica

A historiografia da Geografia de Estado no Brasil comprova a hipótese do Geodireito,

que é o ramo científico que melhor media as relações espaciais e coercitivas de determinado Estado

a partir do modelo tridimensional, desde que haja geometria, simetria e delimitação. A geometria

se caracteriza pelo formato tridimensional, que pode ser aplicado tanto a Geografia quanto ao

Direito, com base no fato, no valor e na técnica. A simetria ocorre quando há o alinhamento de

cada um dos sistemas de objetos da Geografia com o seu respectivo sistema de objetos do Direito:

No eixo fenomenológico, repousa o fato geográfico e o fato jurídico; no eixo axiológico, reside o

valor geográfico e o valor jurídico; e no eixo instrumental situa-se a técnica geográfica e a técnica

jurídica. A delimitação se sucede para conferir a morfologia do fato a ser estudado, sem a qual não

se obtém materialidade e, por conseguinte, objeto de estudo.

Sem geometria, simetria e delimitação, a interdisciplinaridade entre Geografia e

Direito deixa de ser um sistema e se transforma em um casuísmo, em uma especificidade que busca

uma solução imediata para um caso concreto, sem necessariamente ter validade ao ser aplicada a

outras situações análogas. Importante notar que o modelo tridimensional, pautado em geometria,

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simetria e delimitação, pode ser aplicado para relacionar diversas outras ciências entre si no geral

e, em específico, emancipa a Geografia da visão excepcionalista, como se fosse uma ciência com

necessidades especiais decorrente de seu objeto de estudo ser singular. Ora, é exatamente a

singularidade que caracteriza a fenomenologia de cada uma das ciências criadas pela sociedade,

que contém em si um projeto de ciência, na qual a Geografia em nada se difere.

TABELA 28 – Sumário exemplificativo de possibilidades interdisciplinares com base geográfica

Interdisciplinaridade Fato Valor Técnica

Geodireito Espaço- Estado Solidariedade-Justiça Mapa-Norma

Geoeconomia Espaço-Bens escassos Solidariedade-Riqueza Mapa-Capital

Geoengenharia Espaço-Matéria-prima Solidariedade-Tecnologia Mapa-Ferramenta

Geomedicina Espaço-Saúde Solidariedade-Salubridade Mapa-Medicamento

Geoambiente

(Biogeografia) Espaço-Vida Solidariedade-Equilíbrio Mapa-Controle

Geosociologia

(Antropogeografia) Espaço-Sociedade Solidariedade-Coesão Mapa-Comportamento

Geopolítica Espaço-Poder Solidariedade-Legitimidade Mapa-Política

Ante toda a construção da tridimensionalidade científica, do Geodireito e da Geografia

de Estado no Brasil, pautada principalmente na geometria, na simetria e na delimitação, e conforme

exposto historiograficamente, destacam-se oito eixos críticos ao atual estágio de amadurecimento

destas ciências e de suas repercussões ante o Estado brasileiro. Correspondem a propostas de

aprimoramento dos mecanismos informadores da Geografia de Estado, que no limite reconfiguram

as potencialidades da Geografia ante os desafios do século XXI e como o Estado pode induzi-la a

isso.

4.6.1. Do aprofundamento da compreensão da Geografia pela ótica

tridimensional

Compreendido que a Geografia é uma ciência como outra qualquer, na qual nada a

excepcionaliza, é possível a ciência sair da zona de conforto e minorar a alta fragmentação

geográfica, bem como a dicotomia (Física-Humana) cristalizada ao longo da história do

pensamento geográfico, desde que incorpore a tridimensionalidade como epistemologia e

reposicione o critério espacial na ciência.

A aplicação da tridimensionalidade na Geografia, assim como em qualquer outra

ciência, se sintetiza na tríade fato-valor-técnica. O espaço é compreendido enquanto fato de estudo;

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a solidariedade, enquanto elemento de coesão espacial, como seu valor; e a cartografia, a

estatística, o sensoriamento remoto, o aerolevantamento, as informações geoespaciais etc.,

enquanto técnicas de estudo.

A análise da Geografia sob a ótica destes três aspectos implica que os geógrafos não

devem se manter presos a somente um, ou mesmo dois destes, devendo estar constantemente

vinculada à interpretação destas três características como um sistema. O problema crucial, e

reincidente no pensamento geográfico, é a questão de que a Geografia frequentemente é analisada

sob enfoque unilateral, ou seja, priorizando-se apenas um, ou no máximo dois, dos aspectos

supracitados, confundindo dimensão geográfica com a própria Geografia. Mas Geografia não é só

técnica por meio de mapa, gráficos e dados, como sugerem a maioria dos cartógrafos, dos docentes

e dos geógrafos quantitativos. Geografia não é só fato, como versava o pensamento clássico e os

corógrafos. Geografia não são somente relações, como querem os marxistas ou os economistas,

pois Geografia não é Geoeconomia. Geografia não é produção econômica, mas a suporta e nela

interfere. A Geografia não é principalmente valor, como querem os geógrafos críticos, porque a

Geografia é, concomitantemente, fato, valor e técnica.418

Logo, uma das virtudes da tridimensionalidade, e de certa forma interlocutória, talvez

seja recolocar a epistemologia da Geografia dentro de uma perspectiva metodológica, onde as

correntes do pensamento geográfico, e seus projetos totalizantes, não sejam partes que se

confundem com o todo, mas como ramos científicos de um sistema maior, que devem ser

analisados de forma integrada e enquanto sistema.

Em outras palavras, cada corrente do pensamento geográfico não deve ser tomada

como a ciência em si, mas como especializações. O geógrafo clássico comumente estuda os fatos

geográficos por meio da corografia e da paisagem. O geógrafo crítico é o profissional encarregado

de estudar o valor geográfico, de forma a atribuir a ciência seu caráter culturalista. O geógrafo

quantitativo, bem como aqueles que traçam interdisciplinaridades com a cartografia, a estatística

e as informações geoespaciais, é o cientista que se dedica ao desenvolvimento dos instrumentos

geográficos. O geógrafo físico se dedica a compreender a dimensão natural existente no fato, no

valor e na técnica no qual, de forma simétrica, o geógrafo humano compreende a dimensão

antropocêntrica no fato, no valor e na técnica. Tudo isso respeita a tradição secular de

compreender, de forma simétrica, a relação Sociedade-Natureza, bem como coloca os estudos

geográficos sob uma sistematização.

418 De forma análoga, REALE, 1986.

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Admitir que as ditas correntes do pensamento geográfico são correntes, e não

especializações de uma ciência, corresponde a aceitar uma espécie de autofagia geográfica, que

não edifica e transforma a Geografia em fragmentos, um ringue de constante disputa conceitual.

Como exemplo, se levada ao caso do Direito, corresponderia dizer que o advogado civilista

questiona o jurista penalista porque não emprega o Direito Privado, uma vez que só deve existir

Direito Privado, ou o trabalhista nega o tributarista por desconhecer os direitos dos trabalhadores,

logo Direito é exclusivamente a legislação trabalhista. Isso não ocorre. A ciência é una, mas

dividida em ramos para efeitos metodológicos. O mesmo ocorre com a Geografia, pois ela é uma

ciência como outra qualquer com seu objeto totalizante, nada a excepcionaliza.

Os conhecimentos que, de fato, devem ser tomados como correntes do pensamento

geográfico são aqueles voltados a base filosófica. O determinismo e o possibilismo geográfico,

que se pautam no evolucionismo darwinista para edificar um raciocínio; o positivismo geográfico,

que busca sistematizar um conjunto de regras que orientam e condicionam a Geografia; o realismo

geográfico, que não se confunde com o pleonasmo da crítica geográfica, uma vez que toda ciência

é crítica em sua essência, que demonstra a premência que o geógrafo deve ter para estar em dia

com as necessidades sociais. Estas sim devem ser consideradas correntes do pensamento e

consubstanciam o motor que impulsiona e atualiza a ciência geográfica.

Parafraseando Latour, em “Jamais fomos Modernos”, talvez a Geografia jamais tenha

estado em crise. Desconstrução entre correntes (as reais) e contraposição entre segmentos de uma

mesma ciência não desencadeiam crise epistemológica, mas processo dialético. O que falta é uma

abordagem que permitisse o diálogo aberto interdisciplinar, com uma pormenorização

metodológica clara e equilibrada. Neste cenário, a tridimensionalidade confere uma resposta

satisfatória, proporcionando a Geografia aliar suas ricas percepções a uma estruturada

organicidade.

4.6.2. Da emancipação do positivismo na Teoria Tridimensional do Direito

De forma análoga a Geografia, é possível que o Direito também saia de sua zona de

conforto e identifique mecanismos de consolidar a alta fragmentação científica, bem como sua

dicotomia (Público/Privado) cristalizada ao longo da história do pensamento jurídico, desde que

compreenda a tridimensionalidade acima exposta como epistemologia e reposicione o critério

coercitivo na ciência. Para tanto, um caminho possível seria incorporar o sistema de objetos e

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sistemas de ações de Santos, M. ao modelo de Reale, de maneira a emancipar a tridimensionalidade

do positivismo e possibilitar que a tríade fato-valor-técnica ganhe fluência na filosofia do Direito.

O positivismo, neste cenário, seria apenas mais uma das técnicas a serem empregadas

no Direito, situação que confere a esta renovada tridimensionalidade o largo emprego técnico dos

usos e costumes, da analogia, do direito comparado, da jurisprudência, bem como todas as outras

fontes do Direito que porventura sejam concebidas pelas correntes do pensamento jurídico. Seria

a valorização do que Santos, B. chama de Direito territorial, trazendo a formação do Direito outras

formas de exercício do critério coercitivo, por meio do direito doméstico, do direito da produção,

do direito da troca, do direito da comunidade e do direito sistêmico.

Trata-se de viabilizar um sistema para a compreensão do pluralismo jurídico, que pode

vir a utilizar o positivismo enquanto referencial de Direito, meio de estabelecer um processo

relacional dialético entre fato, valor e técnica, mas não enquanto Direito em si ou como uma

técnica absoluta e inconteste de materialização da justiça. Os princípios da geometria, da simetria

e da delimitação podem descortinar um profícuo caminho para a estruturação do pluralismo

jurídico.

4.6.3. Da concepção do Geodireito enquanto ramo científico interdisciplinar,

com base tridimensional e seis formas de estudo

A interdisciplinaridade entre Geografia e Direito é um dado posto. No cerne desta

discussão está o Geodireito que, com base no amplo emprego da geometria, da simetria e da

delimitação, se edifica não como uma obra parnasiana e acabada, um fim em si, tampouco como

um meio pronto para ser justificado, mas simplesmente um ponto de partida, uma nova

centralidade epistêmica, ferramenta imprescindível para a exploração do Império do Centro

latouriano. É uma nova referência, o que Claval (1978) descreveu no último parágrafo do livro

“Espaço e Poder”, ou seja, obter uma solução imperfeita num universo imperfeito, de forma a

legitimar o jogo de uma autoridade, por meio da escala de governança, sem a qual não há

construção política viável. E esta consequência tridimensional da Geografia e do Direito

proporciona a análise de uma Geografia de Estado renovada, eficaz, legal e instrumentalizada.

Esta proposta, por meio da tríade fato-valor-técnica, confere meios para se

contextualizar e hierarquizar, espacial e coercitivamente, as pretensões resistidas no interior de

uma sociedade. As correlações ocorrem por meio de um simples método inquisitivo, no qual o fato

geojurídico se origina ao perguntar quem para a Geografia e onde para o Direito; o valor

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geojurídico surge ao questionar porquê para a Geografia e quando para o Direito; e a técnica

geojurídica decorre de se questionar como para a Geografia e como para o Direito.

Foram empregados doze exemplos419 acima para demonstrar de que forma esta

identificação ocorre na prática, bem como acontece a interação da Geografia e do Direito com

estes casos concretos e a cristalização de suas interações na forma do Geodireito. O estudo destas

situações pode ocorrer de seis formas distintas, contendo síntese e antítese.

TABELA 29 – Síntese das modalidades do Geodireito e suas antíteses

Modalidade do Geodireito Referência Antítese

Geografia de Estado Geografia Geografia de exclusão do Estado

Geografia da Justiça Geografia Geografia da injustiça

Geografia da Legalidade Geografia Geografia da ilegalidade

Direito do Espaço Direito Direito de exclusão do Espaço

Direito Administrativo Geográfico Direito Direito desordenado espacialmente

Direito da infraestrutura geográfica Direito Direito sem representação espacial420

Logo, as antíteses não estão no campo do Geodireito, pois ou não contém Geografia,

por estarem privadas de critério coercitivo, ou não estão sob o Direito, por não ser possível

identificar seu critério espacial. As antíteses retornam o modelo para seu ponto de partida, - a

Geografia e o Direito – disciplinas que se encarregam de conferir o devido tratamento científico a

estas demandas.

Admitir o Geodireito enquanto ramo científico interdisciplinar, com base

tridimensional e seis formas de estudo, possibilita promover a mediação das pretensões espaciais

e coercitivas de uma determinada sociedade. O Geodireito somente terá instrumentos válidos,

eficazes e legais de coibir o padrão ordem/desordem pelo Direito se puder contar com o critério

espacial da Geografia para compreender o planejamento estratégico, ou seja, a dialética

centralização/descentralização. Critérios econômicos, indispensáveis para se produzir

desenvolvimento, recaem a um segundo plano quando se trata de ordenamento espacial, pois

mediar implica contrariar interesses em prol de uma solução cidadã, sendo o Direito o ramo

científico adequado para propor soluções neste cenário de conflito.

419 Os exemplos foram baseados em: (i) ampliar o sistema metroviário em São Paulo; (ii) aprimorar o Registro de

imóveis (sistema cartorário); (iii) combater o aquecimento global; (iv) combater o desmatamento da Amazônia; (v)

compreender a anexação da Crimeia pela Rússia; (vi) controlar a alfândega em Santana do Livramento; (vii) criar

zonas francas; (viii) explorar o Aquífero Guarani; (ix) explorar petróleo na plataforma marítima; (x) fixar indicação

geográfica para o açaí do Marajó; (xi) gerir o Polígono das secas; e (xii) viabilizar a Região Integrada de

Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE). 420 Sem mapa, planta, cadastro, referencial geodésico, coordenadas, localização espacial etc.

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No estudo de caso da Geografia do Estado no Brasil, pôde-se perceber que, quanto

mais simétrico era o modelo, mais harmônica ficava a identificação e a eficácia do Geodireito. E

esta harmonia possibilitava a plena aplicação de seus princípios mediadores: a escala de

governança, a divisão geojurídica do espaço e a infraestrutura recíproca, por meio do sistema

Mapa-Norma.

Logo, se compete a União organizar e manter os serviços oficiais de Estatística,

Geografia, Geologia e Cartografia de âmbito nacional (art. 21, XV da CF), e somente a ela, se os

interesses desta União e da sociedade estão acima dos interesses privados individuais, esta

construção deve ser balizada pelo Geodireito e seus princípios, de forma a evitar a ausência de

uma regência governamental centralizada, que reproduz apenas paliativos, puxadinhos jurídicos,

colcha de retalhos cartográficos, limitados em demasia e sem sentido de unicidade do modelo,

muitas vezes realizando estudos comparados com países de realidades completamente distintas ao

Brasil. Assim, para se estabelecer uma sistemática interdisciplinar entre Geografia e Direito no

Estado brasileiro, é necessário consolidar a axiologia e o instrumentalismo, de maneira a

possibilitar o estabelecimento de um Geodireito que não seja um mero casuísmo entre as ciências,

mas uma resultante mediadora das potencialidades de diálogo entre as ciências.

FIGURA 51 – Consolidação interdisciplinar entre Geografia e Direito

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Se a Geografia de Estado é o corpo, o Geodireito é a alma em busca de sua

reencarnação. Redescobrir a pujança e a pertinência do Geodireito, que certamente será reavivado

no decorrer deste século, nos moldes que Teixeira de Freitas militou outrora, consiste em resgatar

uma das poucas forças que restam aos Estados e a população para se identificar como cidadãos, e

não somente como ávidos consumidores do mundo contemporâneo, propondo uma divisão

geojurídica do trabalho condizente com as expectativas da sociedade. E a base deste resgate no

Brasil, que certamente promoveria a necessária e urgente consolidação axiológica e instrumental

na Geografia de Estado brasileira, está no cumprimento da Constituição de 1988.

4.6.4. Do cumprimento do art. 21, XV, da Constituição Federal de 1988: A

necessidade de criação do serviço oficial de Geografia

A invenção de Teixeira de Freitas culminou, em 1938, em uma autarquia geográfica

ligada diretamente à Presidência da República, que coordenava os estudos sobre a Geografia do

Brasil e a promoção da articulação dos serviços oficiais (federais, estaduais e municipais),

instituições particulares e dos profissionais, que se ocupem de Geografia do Brasil no sentido de

ativar e sistematizar o território pátrio.421 Com esta legislação, após a Constituição de 1946 era

possível identificar um órgão autárquico, o IBGE, para regular, fiscalizar e mediar os princípios

geojurídicos, promovendo desenvolvimento econômico e social de forma equilibrada. O critério

espacial e o coercitivo caminhavam em simetria na Geografia do Estado brasileiro.

Todavia, com o advento da Constituição de 1967, bem como da legislação cartográfica

de Castelo Branco, esta característica autárquica deixou de existir. Foi criada a Fundação IBGE,

pelo Decreto-Lei n° 161, de 13 de fevereiro de 1967, que absorveria a estrutura do IBGE

autárquico, que deixaria de existir. Esta fundação seria alocada no Ministério do Planejamento e

Coordenação Econômica, não se situando mais ligada diretamente à Presidência da República. Em

que pese a Fundação IBGE ter encontrado uma legislação cartográfica e estatística robusta, 13 de

fevereiro de 1967 pode ser considerado a data da primeira morte da Geografia de Estado no Brasil,

uma vez que o país renunciava a uma visão regulatória e fiscalizatória do ordenamento de seu

espaço territorial. A Geografia perdia seu caráter de oficialidade, de maneira que a Fundação IBGE

passaria a ter uma característica eminentemente estatística, pois uma fundação produz dados, mas

não Geografia oficial.

A partir de então iniciou-se uma proliferação de subsistemas axiológicos e

instrumentais, conferindo visões difusas do critério espacial enquanto valor e técnica. A

421 Art. 1° do Decreto n° 1.527, de 24 de março de 1937.

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reprodução de subsistemas se tornou tão acentuada que a Geografia de Estado perdeu por completo

seu sentido de unicidade, reproduzindo uma divisão geojurídica caótica e fragmentada. A

proliferação normativa criou verdadeiros “puxadinhos jurídicos”, remendando a legislação de

1967 na tentativa de encontrar atalhos legislativos para atender demandas setoriais específicas,

bem como políticas públicas com base em recortes cartográficos, sem senso de unicidade e de

integração com um sistema maior que represente o país graficamente.

Nossa divisão geojurídica do trabalho (sistema Solidariedade-Justiça) não está

funcionando na promoção de cidadania, pois a infraestrutura recíproca (sistema Mapa-Norma) está

completamente fragmentada, sem uma autarquia, um órgão de Estado e não de governo, um

maestro no comando que tenha legitimidade para reger o espaço nacional. E esta característica,

além de promover beliches cartorários, beliches geoespaciais, não otimizando os recursos públicos

na produção da Geografia de Estado, descumpre o objetivo da Constituição de 1988, que delega a

União a necessidade de criar uma Geografia oficial.

A oficialidade da Geografia é imprescindível no século XXI. A legislação de 1967 está

tecnologicamente superada, com a proliferação de técnicas da internet, dos satélites, da cartografia

e do sensoriamento remoto enquanto projetos computacionais e da atual capacidade de

armazenamento de dados dos softwares atuais. A informação geoespacial ganha centralidade nas

análises geográficas, de maneira que a ausência de uma Geografia oficial, aliada a fragilidade da

INDE, que não tem personalidade jurídica e ainda é amplamente desconhecida da sociedade, tem

produzido uma situação de desenvolvimento de políticas públicas com base em softwares privados

e internacionais (p. ex., Google Earth).

Mais do que haver puxadinhos jurídicos, há igualmente um verdadeiro “puxadinho

cartográfico”, com diversos órgãos cartografando o país sem um sentido de unicidade, mas para

atendimento de peculiaridades específicas. Se for tomado como referência a cartografia com escala

de 1:100.000, que possibilita estudos setoriais específicos como, p. ex., topografia em torno de

hidrelétrica ou de uma rodovia, verificaremos rapidamente que há diversos órgãos públicos

produzindo cartografia, muitas vezes duplicando esforços em alguns locais e não empreendendo

esforços em outros, situação que faz com que haja grandes áreas não cartografadas no Brasil. Logo,

os brasileiros não se conhecem para efeitos geográficos, pois não produzem infraestrutura

geográfica oficial, tampouco regulam e ordenam seu espaço territorial de forma integrada e

harmônica.

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MAPA 10 – Cartografia Oficial do Brasil em 2014

Fonte: CIGA/UnB

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A ausência de oficialidade da Geografia no Brasil, bem como esta colcha de retalhos

cartográficos, que descobre boa parte do corpo que se pretende cobrir, tem fundamentado uma

segunda morte da Geografia de Estado, muito mais morosa e silenciosa. A Fundação IBGE, que

tem histórico de luta para ser reconhecida como carreira de Estado,422 haja vista o fim de sua

personalidade jurídica autárquica, tem encontrado um esgotamento de seu modelo, chegando em

2014 com questionamentos da sociedade em relação a sua capacidade de produção de dados, aliado

ao contingenciamento orçamentário imposto pela União e recorrente greve de seus funcionários.

Este cenário tem feito com que a Fundação IBGE publique dados errados, incluindo aqueles

referentes a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios – Pnad em 2014.

FIGURA 52– Representação da crise na Fundação IBGE em 2014

Fonte: CARNEIRO, SOARES, 2014.

422 Vide Projeto de Lei do Senado n° 6.127/2009, de autoria do senador Cristovam Buarque (PDT/DF), que inclui,

entre os servidores que desenvolvem atividades exclusivas de Estado, os servidores do Plano de Carreira e Cargos da

Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente esta proposição se encontra arquivada.

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Por sua vez, o Poder Judiciário cada vez mais deixa de reconhecer a Fundação IBGE

enquanto órgão que fundamenta decisões judiciais. Como exemplo, o Supremo Tribunal Federal

(STF) julgou parcialmente procedentes as Ações Cíveis Originárias (ACOs) 652 e 347 e

determinou a fixação das divisas dos Estados de Piauí, Tocantins, Bahia e Goiás de acordo com o

laudo elaborado pelo Serviço Geográfico do Exército Brasileiro em 2006, e não aquela feita pela

Fundação IBGE, em 1980. O relator do acórdão, ministro Luiz Fux, afirmou em sua decisão,

realizada em 8 de outubro de 2014,423 que o parecer do Exército é o que melhor atende ao caso

porque, além de dispor de mais recursos técnicos e modernos, foi o órgão escolhido de forma

consensual pelos estados envolvidos para a perícia, por levar em consideração os marcos já fixados

em estudos anteriormente efetivados.

Ante o atual cenário da Geografia de Estado no Brasil, de defasagem generalizada da

infraestrutura geográfica, não resta outro caminho a ser tomado a não ser cumprir a Constituição

Federal, de forma que a União crie um serviço oficial de Geografia. Este cumprimento deve passar

por três fases fundamentais para a viabilização deste objetivo, que são: (i) compreender a

Geografia de Estado enquanto infraestrutura, análoga as demais infraestruturas existentes no país,

que repristina as funções da antiga engenharia geográfica, concebendo o geógrafo como uma

espécie de “empreiteiro de mapas”; (ii) criar um Código Geográfico brasileiro, de maneira a dispor

de um novo marco regulatório para o desenvolvimento da Geografia de Estado pós-Constituição

de 1988; e (iii) reestruturar a profissão de geógrafo, estabelecendo novas funções e metas,

reconfigurando esta mão-de-obra para o enfrentamento da Geografia de Estado no século XXI.

Veremos abaixo como estas premissas poderiam ser contextualizadas.

4.6.5. Da compreensão da Geografia de Estado enquanto infraestrutura

geográfica

Compreender a Geografia de Estado enquanto infraestrutura é uma ação

imprescindível para o aparelhamento do Estado em função de suas potencialidades no século XXI,

em que a infraestrutura geográfica adquirirá, crescentemente, aspectos de essencialidade. E esta

característica tem tamanha relevância que muitas vezes passa despercebida da compreensão da

sociedade. Houve uma situação análoga no século XIX que ajuda a refletir esta dificuldade de

percepção.

423 Destaca-se que a disputa territorial iniciou-se em 1919.

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Voltemos a Rui Barbosa em 1890, aquele que orientou o presidente Floriano na

política geográfica. O pródigo jurista, político, jornalista, diplomata e escritor baiano promoveu

relevantes estudos jurídicos em que ficava claro que sua erudição contrastava com a precariedade

normativa do Brasil recém-republicano. Todavia, esse conhecimento estava longe de não ser

questionado. Ou até mesmo de ser contraposto pelo tempo, seja por um novo convencimento, seja

pela realidade de fatos supervenientes. Talvez a característica mais controversa de Rui Barbosa

seja referente a situação de monopólio em geral, e da distribuição de energia elétrica em específico.

No século XIX, Rui Barbosa manifestava-se ardorosamente contrário aos monopólios

de distribuição de energia elétrica, por entender que tais privilégios, quando não são ligados à

essência das coisas, ou ditados por necessidades inevitáveis, violavam o Direito Constitucional.

Em pronunciamento no Parlamento, frequentes em sua atividade legislativa, Rui manifestou

entendimento que passava longe da compreensão da energia elétrica enquanto infraestrutura:

Portanto, Sr. Presidente, não tem absolutamente nada de comum o monopólio das loterias

com o monopólio da fôrça elétrica.

O monopólio das loterias existe naturalmente enquanto existirem as loterias; é

propriedade do Estado, senhor absoluto desta faculdade, que ele criou a benefício seu.

Agora, a faculdade de distribuir fôrça elétrica, esta é coisa muito diversa, esta

evidentemente é uma manifestação da nossa atividade individual em um dos ramos

ordinários do comércio em toda a parte (BARBOSA, 1899, p. 177).

Em outra passagem, Rui Barbosa, alinhado com os conceitos de competição na

transmissão e distribuição de eletricidade fomentados por Samuel Insull em Chicago a partir do

final do século XIX, em que empresas competiam com linhas diversas no fornecimento residencial

e comercial, dá mostras de que a energia elétrica poderia ser compreendida enquanto infraestrutura,

com características monopolistas.424

Assim, a caracterização da energia elétrica enquanto infraestrutura monopolista na

obra de Rui Barbosa não passava pelo conceito do fio que conduziria a eletricidade, mas pelo uso

do solo urbano pelo posteamento, que poderia ser duplicado.425 Rui Barbosa reviu sua posição,

424 “Comparar a situação de uma linha de tramways com a de um cabo transmissor de eletricidade não tem senso

comum. Tôda gente compreende que a ferrovia monopoliza de fato a rua. Aí o monopólio é materialmente inevitável.

Mas ainda ninguém ousou dizer que no mesmo caso esteja a transmissão de eletricidade. E a própria defesa de William

Reid & C. confessa a possibilidade normal de se estenderem pelas mesmas zonas e pelas mesmas ruas diferentes

cabos, pertencentes a emprêsas diversas, quando ao lado do sua, admite outras, com a reserva apenas de que não seja

de origem hidráulica a sua eletricidade.” (BARBOSA, 1899, p. 181). 425 Na tentativa de exemplificar o monopólio na distribuição, Rui Barbosa buscava explicação na natureza jurídica do

elétron, ou seja, se este provinha de uma fonte hídrica - logo, de interesse público -, ou de uma fonte térmica, na qual

estaria adstrita às regras de Direito Privado. Todavia, pelo fato de o elétron não ser tecnicamente identificado, mas

apenas perceptível, a crescente interconexão de sistemas de distribuição que misturavam elétrons de diferentes

matrizes demonstrou de fato a fragilidade dessa construção jurídica.

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como demonstram seus estudos a partir de 1904. A passagem a seguir reflete com precisão a

mudança de entendimento:

A distribuição de luz e eletricidade, bem como o serviço de viação férrea nos distritos

urbanos constituem monopólios inevitáveis pela natureza das coisas. Basta refletir um

momento, para ver como seria inconcebível a concorrência livre das linhas de transvias,

canalizações de fôrça e fluido iluminante pelo subsolo ou à superfície das ruas. O espaço

aéreo e subterrâneo destas, limitado como se acha pela sua estreiteza e já dificilmente

repartido, entre tantos, tão importantes e sempre crescentes serviços, como a d’água, o de

esgotos, o da telegrafia, o do telefono, o dos bondes, e do gás e o da energia elétrica, bem

a custo oferece campo bastante para todos eles, ainda concentrados cada qual no seu

monopólio exclusivo. Por isso todos eles estão, hoje em dia, monopolizados, de fato, ou

de direito, nos países mais livres do mundo. São, portanto, monopólios naturais,

necessários e úteis. Não contravêm às exigências da liberdade. Não incorrem

absolutamente na proibição constitucional (BARBOSA, 1905, p. 80-81).

Ao compulsar as fundamentações para a mudança de posicionamento de Rui Barbosa,

fica evidenciado que essa alteração não decorreu de uma nova interpretação constitucional do

jurista, que continuava com forte viés liberal. Esse entendimento era fruto do amplo estudo de

Direito que realizou. O monopólio de fato estava praticamente consagrado em todas as nações

então desenvolvidas, e residia na rede de transmissão e de distribuição, e não no produto elétron.

Concluiu-se ser economicamente ineficaz duplicar estruturas para repartir receita, sendo vantajoso

e eficaz conceber o monopólio a um único distribuidor de energia elétrica, de forma a empregar o

capital que teria destinação liberal para expandir o sistema em uma nova estrutura monopolista.

Assim, nesse período de forte ingresso de capital estrangeiro no país, Rui Barbosa

defendeu após 1904 que a livre concorrência era absolutamente impossível no nascente setor

elétrico por razões técnicas e econômicas. A referida exploração só poderia funcionar conforme o

interesse público, mediante “monopólios de fato”. Era a criação doutrinária do que viria a ser o

monopólio natural,426 enquanto reserva de mercado de cunho geográfico para as distribuidoras que

em determinada área atuassem. Existe um monopólio natural quando os custos de produção são

tais que, para os demandantes do mercado, fica mais barato obter a produção de uma única

empresa, ao invés de muitas.

426 O prefeito de São Paulo em 1931, professor Luiz Anhaia Melo, dividia o monopólio natural em duas vertentes: o

primeiro era denominado de “monopólio privado odioso”, que precisa ser destruído para o bem da humanidade, e o

“monopólio público”, que terá tarifa mediante a prestação de serviços eficientes.

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Este exemplo de caracterização de um bem privado, que se transformou em um bem

público voltado a construção de uma infraestrutura, está presente no setor geográfico. Atualmente

a energia elétrica não se encontra só no quesito essencialidade. Se o Comitê Geoespacial da ONU

estiver correto, a informação geoespacial427 se tornará tão fundamental quanto a energia elétrica e

o governo será mais regulador e menos produtor de dados geoespaciais.428 Afinal, a repercussão

do sistema Mapa-Norma encontra enormes desmembramentos na prevenção de catástrofes

naturais, urbanização de favelas, planejamento ambiental, de infraestrutura, combate à

criminalidade,429 monitoramento de deslocamentos populacionais, desenvolvimento de

tecnologias aeroespaciais e diversas outras finalidades, que podem contribuir definitivamente para

a edificação do Geodireito enquanto resultante interdisciplinar entre Geografia e Direito, de forma

a diminuir as desigualdades espaciais e perseguir a justiça espacial.

A globalização se georreferenciou. É comum realizar download gratuitamente de

softwares de informação geoespacial que fariam inveja a espionagem de qualquer país há 15, 10

anos atrás. Se, antes do advento da internet, o Estado já se encontrava em situação de

hipossuficiência perante as forças globalizantes, quem dirá atualmente com a difusão das

informações geoespaciais? Para retornar a situação de equilíbrio perante as forças globalizantes,

de forma que elas sejam atividade-meio para que o Estado promova políticas públicas voltadas à

cidadania, o Estado deve ter uma consistente política pública geoespacial. Todavia, o Brasil se

georreferencia de forma difusa e desordenada, geralmente sem consciência das consequências que

estas ações acarretam.

Ao não compreender a Geografia enquanto infraestrutura, o Brasil corre o risco de

incidir no mesmo erro de Rui Barbosa em pleno século XXI, de entender que a geoinformação não

é infraestrutura, permitindo sua replicação em um mesmo espaço indefinidamente. Ou será que

admitiremos que ela é infraestrutura, mudando de opinião com a mesma nobreza de espírito que o

Águia de Haia realizou? Há como o Estado brasileiro enfrentar os interesses da indústria

geográfica e determinar que a informação geoespacial constitua uma infraestrutura, de forma que

o princípio do monopólio natural constitua uma estruturada Geografia do Estado, considerando

que a geoinformação produzida pela Administração Pública é um bem de domínio público, ou

replicaremos infraestrutura geoespacial três, quatro, cinco ou mais vezes em uma mesma área,

contrariando conceitos básicos de infraestrutura, sucumbindo ao interesse econômico, de forma a

427 Para efeitos desta obra, informação geoespacial será compreendida como uma técnica geográfica. 428 Neste sentido, ver o sítio eletrônico <http://ggim.un.org/ggim_committee.html> 429 P. ex., questões tecnológicas e jurídicas no que concerne o uso de GPS como tornozeleira de detentos.

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replicar o que Jacomino (2014) chamou de “síndrome de beliche dominial” enquanto “síndrome

de beliche geoespacial”?

O constituinte de 1988 estava ciente da necessidade de se criar uma Geografia oficial,

pois um país sem informação geográfica é um país desconhecido. Mas não basta conhecer, é

necessário ordenar e regular. A infraestrutura geográfica já assumiu um papel central e tem em si

uma axiologia que pode ser tanto boa quanto ruim,430 uma vez que sua técnica é neutra. Pessoas

se georreferenciam voluntariamente em redes sociais; o Estado georreferencia os cidadãos para

efeitos tributários,431 criminais432 e até de espionagem;433 empresas se utilizam do

georreferenciamento para diversas finalidades capitalistas;434 chega-se ao ponto de se cunhar a

expressão geoslavery para alertar sobre invasões de privacidade em face da expansão desenfreada

de serviços baseados em geolocalização (DOBSON; FISHER, 2003, p. 47). Como aliar este

poderio de controle do Estado, e da iniciativa privada que carece de regulação do Estado, ao

conceito de justiça enquanto liberdade, em promoção de cidadania? Como transformar esta

infraestrutura geográfica não como instrumento onipresente do Estado, como antevisto por Orwell

(2005), mas como objeto de regulação pelo Estado? Ao admitir que a Geografia enquanto

infraestrutura, além de denominar seu sistema, a INDE, enquanto “infraestrutura de dados

espaciais”, ela precisa ser juridicamente tratada enquanto infraestrutura.

Para isso, basta uma rápida observação na governança da infraestrutura no Brasil para

notar como a ausência de uma autarquia prejudica o desenvolvimento da infraestrutura geográfica.

Além de o Brasil não cumprir a Constituição, por prescindir da criação de um órgão geográfico

oficial, a ausência desta estrutura dificulta sobremaneira o desenvolvimento de todas as

infraestruturas no país, pois o primeiro passo para se realizar projetos estruturantes é o

levantamento da infraestrutura geográfica, conforme se comprova ao analisar outros setores de

infraestrutura no Brasil.

430 Orwell sintetiza o lado funesto das geotecnologias na obra “1984”, ao dizer que “existia pela primeira vez a

possibilidade de fazer impor não apenas completa obediência à vontade do Estado como também completa

uniformidade de opinião em todos os súditos” (ORWELL, 2005, p. 198) 431 No Brasil, ao assinalar em cada compra o CPF, os cidadãos permitem ao Estado conhecer seus hábitos econômicos

e sociais. 432 A Polícia, com base nas informações passadas pelo CPF dos cidadãos, passa a ter condições privilegiadas de

proceder investigações. 433 Vide notório caso Snowden. 434 No caso do setor elétrico, é possível, de forma online, identificar furtos, fraudes, inadimplências, ocupação de

servidões, compartilhamento de infraestruturas, necessidade de poda de árvores, dentre inúmeras outras repercussões.

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299

TABELA 30 – Comparação da governança da infraestrutura no Brasil

Infraestrutura

Órgão

autárquico de

regulação e

fiscalização

Órgãos de produção de

infraestrutura (empresas públicas,

sociedades de economia mista e

fundações)

Resultado esperado

Energia ANEEL

Eletrobras, Eletronorte, Furnas,

Chesf, Eletrosul, empresas estaduais,

empresas privadas, etc.

Fornecimento de energia compatível com a

necessidade do Brasil, com confiabilidade

e preços módicos.

Petróleo ANP Petrobras, empresas privadas

Fornecimento de petróleo compatível com

a necessidade do Brasil, com

confiabilidade e a preços módicos.

Telecomunicações ANATEL Empresas privadas

Cobertura de telecomunicações compatível

com a necessidade do Brasil, com

confiabilidade e preços módicos.

Subsolo DNPM CPRM, empresas privadas

Extração mineral compatível com a

necessidade do Brasil, com confiabilidade

e preços módicos.

Rodovias ANTT, órgãos

estaduais DNIT, DER, empresas privadas

Atendimento rodoviário compatível com a

necessidade do Brasil, com confiabilidade

e preços módicos.

Ferrovias ANTT, órgãos

estaduais Valec, empresas privadas

Atendimento ferroviário compatível com a

necessidade do Brasil, com confiabilidade

e preços módicos.

Portos ANTAQ Companhias Docas, empresas

privadas

Atendimento portuário compatível com a

necessidade do Brasil, com confiabilidade

e a preços módicos.

Aeroportos ANAC, DECEA Infraero, empresas privadas

Atendimento aeroportuário compatível

com a necessidade do Brasil, com

confiabilidade e preços módicos.

Espacial AEB INPE, Telebras, empresas privadas

Atendimento espacial compatível com a

necessidade do Brasil, com confiabilidade

e preços módicos.

Geografia Não existe Fundação IBGE, DSG, empresas

públicas e privadas.

Cobertura de mapeamento compatível com

a necessidade do Brasil, com

confiabilidade e preços módicos.

E para se criar uma autarquia geográfica, nos moldes, p. ex., da governança espacial,

que tem uma agência que regula o espaço (Agência Espacial Brasileira – AEB) e um instituto que

produz os estudos espaciais (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE), faz-se necessário

haver uma grande discussão, na sociedade em geral e no Congresso Nacional em específico, sobre

qual seria o melhor formato para que esta autarquia possa desenvolver suas atividades no Brasil

do século XXI. Trata-se de uma mudança legislativa que justifica criar uma autarquia e,

adicionalmente, um Código Geográfico brasileiro para consolidar esta e outras medidas

legislativas setoriais.

4.6.6. Da criação do Código Geográfico Brasileiro

O Brasil não desenvolveu a capacidade de produzir legislação geográfica em período

democrático. Seja a legislação imperial de 1830 ou aquela referente ao censo de 1872, a normativa

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300

de Rui Barbosa na República da Espada em 1890,435 a iniciativa de Teixeira de Freitas no Estado

Novo em 1937 e as normas cartográficas de Castelo Branco em 1967, foram raras as iniciativas de

legislações geográficas nas quais o país tenha refletido de forma democrática, que evitasse uma

compreensão geográfica imediatista, focada em necessidades setoriais específicas e pontuais, ou

mesmo adequadas tecnicamente, mas sem repercussão social.

E para enfrentar todos os desafios contemporâneos acima expostos, o atual sistema

Mapa-Norma está alicerçado em uma política pública fixada em 1967, ano em que foi produzida

a legislação vigente sobre Plano Nacional de Estatística, Plano Nacional de Geografia e

Cartografia Terrestre, o Sistema Cartográfico Nacional (SCN) e a Política Cartográfica Nacional.

Não há estudos jurídicos aprofundados para dizer como este conjunto normativo foi recepcionado

pela Constituição Federal de 1988. Em que pese os avanços tímidos da década de 1990, em que

cria a Comissão Nacional de Cartografia (CONCAR) em 1994 e a Comissão de Cartografia Militar

(COMCARMIL) em 1999,436 a Geografia de Estado brasileira lida com um sistema Mapa-Norma

do período de Guerra Fria ante os desafios do século XXI. Esta realidade obedece a uma lógica

normativa defasada, sem um sentido do ordenamento jurídico como um todo.

E os desafios de um Código Geográfico Brasileiro são enormes e difusos na mesma

proporção em que os critérios espaciais estão diluídos na legislação. Afinal, ter um novo marco

jurídico para lidar com os desafios sociais, econômicos e tecnológicos do século XXI é a melhor

forma de se evitar a continuidade da proliferação dos puxadinhos jurídicos, e dar uma eficácia

democrática para a técnica geográfica, enquanto infraestrutura de Estado de domínio público. De

maneira a formar uma agenda propositiva, com algumas diretrizes que deveriam ser contempladas

em um Código desta natureza, lista-se abaixo alguns esforços que necessitam ser superados:

(i) Repensar legislativamente a Geografia de Estado no Brasil: O Código

Geográfico Brasileiro regulamentaria a Geografia oficial do Brasil, nos termos

do art. 21, XV, CF, com base na respectiva política nacional;

(ii) Criar estrutura autárquica para regular e fiscalizar a Geografia de

Estado: O Código Geográfico Brasileiro criaria estrutura autárquica para

regular e fiscalizar o ordenamento territorial e regional no Brasil, vinculando-

435 Regime Militar ocorrido no Brasil entre os anos de 1889 e 1894. 436 Para coordenar a cartografia militar no Brasil, realizada por Portaria.

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301

a diretamente a Casa Civil, por tratar de temas civis e militares, em moldes

análogos ao que Teixeira de Freitas propôs em 1938;

(iii) Criar novo marco regulatório para o desenvolvimento regional: O Código

Geográfico Brasileiro atualizaria a Política Nacional de Desenvolvimento

Regional (PNDR), com base no art. 43, CF, de maneira a delegar competências

em desenvolvimento regional a nova estrutura autárquica, vinculando as ações

da SUDENE, da SUDAM e da SUDECO a esta autarquia;

(iv) Criar Política Nacional de Divisão Territorial: O Código Geográfico

Brasileiro atualizaria o Decreto-Lei nº 311, de 2 de Março de 1938, que dispõe

sobre a divisão territorial do país, de maneira a delegar competências sobre

divisão territorial a nova estrutura autárquica. Esta parte do Código trataria

sobre atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de unidades

federadas, conferindo diretrizes ao art. 18, § 4º da Constituição Federal;

(v) Reestruturar a estatística nacional, enquanto técnica geográfica: O Código

Geográfico Brasileiro atualizaria o Decreto-Lei n° 161, de 13 de fevereiro de

1967, que autoriza a instituição da Fundação IBGE; do Plano Nacional de

Estatística; e do Plano Nacional de Geografia e Cartografia Terrestre, de

maneira a delegar competências na regulação estatística a nova estrutura

autárquica;

(vi) Reestruturar a cartografia nacional, enquanto técnica geográfica: O

Código Geográfico Brasileiro atualizaria o Decreto-Lei n° 243, de 28 de

fevereiro de 1967, que fixa as Diretrizes e Bases da Cartografia Brasileira,

criando o sistema único, chamado Sistema Cartográfico Nacional (SCN),

sujeito à disciplina de planos e instrumentos de caráter normativo; e a

Comissão de Cartografia (COCAR), de maneira a delegar competências em

cartografia a esta nova estrutura autárquica; e

(vii) Criar mecanismos para ordenamento do critério espacial das políticas

públicas: O Código Geográfico Brasileiro conferiria poderes para que esta

nova autarquia pudesse conceber, implementar e suportar o critério espacial

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das políticas públicas, por meio de instrumentos como o Plano Nacional de

Geoinformação (Civil e de Defesa); Sistema de Cadastro de Aerolevantamento

Aeroespacial do Território Nacional; gestão da INDE, da INDA e dos dados

espaciais de defesa; dentre outras iniciativas que viabilizem um sistema de

cadastro territorial eficiente e consolidado.

O Código Geográfico Brasileiro deve viabilizar todo o critério espacial do Estado

brasileiro, com um órgão autárquico de regulação e fiscalização e entidades de produção de

infraestrutura, assim como ocorre em qualquer setor de infraestrutura no Brasil. Somente assim

será possível ter uma governança do espaço brasileiro de forma democrática, com personalidade

jurídica, apta a responder pelos desafios contemporâneos.

Deve-se evitar a proliferação de novos puxadinhos jurídicos, pois não contribuem na

organização do Estado e atendem apenas aos interesses imediatos tanto da burocracia estatal, de

querer atender demandas imediatas, quanto dos empresários da indústria geoespacial, que muitas

vezes vendem o mesmo mapa diversas vezes a órgãos públicos distintos, que oneram o erário pela

ausência de uma Geografia oficial que respeite a modicidade, a universalidade, a eficiência e o

livre acesso da informação. O que se busca com o Código Geográfico Brasileiro, e a consequente

criação de uma autarquia para regular o território, é exatamente qualificar o discurso da União

dentro de uma visão da Geografia enquanto infraestrutura, para que os interesses dos empreiteiros

de mapas sejam regulados e fiscalizados em prol da construção da infraestrutura geográfica

brasileira, que passaria a ter uma Geografia oficial e aboliria o uso de softwares estrangeiros como

base geográfica das políticas públicas brasileiras.

Com o atual nível de insulamento burocrático vivido pela comunidade geográfica, bem

como pela falta de clareza do espírito constitucional, que ordena a criação de uma Geografia

oficial, a atual criatividade das propostas de políticas públicas realizadas chega ao extremo de, no

caso da cartografia colaborativa, buscar construir uma política pública sem juristas para uma

cartografia sem cartógrafos. E estas heterodoxias axiológicas devem ser evitadas em prol da

organicidade da Geografia de Estado.

Para tanto, os geógrafos devem se capacitar e se organizar para interferir no processo

legislativo, para obter normas adequadas sob a ótica geográfica, principalmente, mas não se

limitando, no monopólio natural e na universalização da infraestrutura geográfica como mantra do

critério espacial das políticas públicas. Mas como os geógrafos estão organizados perante o

Estado?

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4.6.7. Da necessidade de requalificar legalmente a profissão de geógrafo

A Constituição Federal dispõe, no inciso XIII do artigo seu artigo 5 º, que “é livre o

exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que

a lei estabelecer”. Observa-se que o artigo 2º da Lei n° 6.664, de 26 de junho de 1979, respeita a

Constituição Federal, disciplinando o exercício da profissão de Geógrafo. Por sua vez, a Lei n°

7.399, de 4 de novembro de 1985, alterou a redação da Lei n° 6.664, de 1979, autorizando o

exercício da Geografia no Brasil aos seguintes profissionais:

Art. 1º- A Lei nº 6.664, de 26 de junho de 1979, que disciplina a profissão de Geógrafo,

passa a vigorar com seu Art. 2º acrescido dos seguintes dispositivos;

"Art. 2º- ................................................................................

IV - aos licenciados em Geografia e em Geografia e História, diplomados em

estabelecimento de ensino superior oficial ou reconhecido que, na data da publicação

desta Lei, estejam:

a) com contrato de trabalho como Geógrafo em órgão da administração direta ou indireta

ou em entidade privada;

b) exercendo a docência universitária.

V - aos portadores de títulos de Mestre e Doutor em Geografia, expedidos por

Universidades oficiais ou reconhecidas;

VI - a todos aqueles que, na data da publicação desta Lei, estejam comprovadamente

exercendo, há cinco anos ou mais, atividades profissionais de Geógrafo".

No mesmo sentido, o Decreto n° 92.290, de 10 de janeiro de 1986, que regulamentou

a nova redação, prevê o seguinte:

Art. 1º - Além dos profissionais enumerados no artigo 2º da Lei nº 6.664, de 26 de junho

1979, poderão exercer a profissão de Geógrafo:

[...]

II - os portadores de títulos de Mestre e Doutor em Geografia, expedidos por

universidades oficiais ou reconhecidas. (negritos acrescidos)

Assim, a leitura literal destas legislações demonstra uma generosidade da profissão de

geógrafo que raramente é percebida em outras profissões. No cerne desta questão está a

possibilidade de conferir título de geógrafo a mestres e doutores, sem a obrigatoriedade de serem

bacharéis em Geografia. Esta característica pode ser entendida como uma oportunidade ou como

uma ameaça a profissão geográfica.

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Oportunidade caso os geógrafos se organizassem para fazer de seus mestrados e dos

doutorados um curso denso e estruturante, que possibilitasse que engenheiros, advogados,

médicos, economistas, sociólogos, biólogos, dentre outras áreas, compreendessem os critérios

espaciais de suas profissões, podendo exercer a Geografia dentro de suas capacidades, expandindo

consideravelmente as possibilidades da Geografia.

Mas esta abertura legal foi encarada como ameaça a profissão geográfica.

Considerando que a Geografia está vinculada ao CREA, como se estritamente Engenharia

Geográfica ainda fosse, esta matéria foi conhecida pela Coordenadoria de Câmaras Especializadas

de Engenharia de Agrimensura (CCEAGRI), do Confea que, ao prolatar a Decisão Plenária n°

807, de 29 de agosto de 2003, deliberou,

Informar aos Creas que devem proceder o registro dos postulantes que atendam às

condições estabelecidas pela Lei nº 7.399, de 1985”, com a devida correção do termo

‘mestre ou doutor em geografia’ para ‘mestre e doutor em geografia’, com a conseqüente

implementação das providências aprovadas pela referida decisão; (negritos acrescidos)

De imediato, a Decisão Plenária n° 807, de 29 de agosto de 2003, provoca dois efeitos

legais, ambos nefastos. O primeiro é promover uma interpretação restritiva da Lei, que é contrário

ao inciso XIII do art. 5°, CF, que confere liberdade de exercício de qualquer profissão atendidas

as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Não fala em restrição infralegal, versa apenas

sobre a permissão legal.

O segundo se refere a “correção” da Lei por meio de uma Decisão Plenária de órgão

profissional. Ora, a expressão “mestre ou doutor em geografia” jamais foi empregada por qualquer

norma brasileira, em especial pela Lei nº 7.399, de 1985, que fala claramente em “mestre e doutor

em geografia”. Logo, o que está em questão não é a análise da expressão “mestre ou doutor em

geografia”, mas tão e simplesmente “mestre e doutor em geografia”. A questão central da sentença

legal resulta em discutir a semântica da expressão “mestre e doutor em geografia”, afastando por

completo quaisquer “correções” por meio de interpretação infralegal.

Uma vez identificada a expressão “mestre e doutor em geografia”, precisa-se conhecer

quais são os sentidos possíveis que a língua portuguesa atribui a conjunção “e”. Resta claro que a

conjunção “e” é aplicada na lei de forma a caracterizá-la como conjunção coordenativa alternativa.

Uma rápida análise da Lei nº 7.399, de 1985 demonstra que não há outra interpretação a ser

realizada senão compreender a conjunção “e” como alternativa, sob pena de descaracterizar o

espírito da lei.

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Se o mesmo raciocínio proferido pela Decisão Plenária n° 807, de 29 de agosto de

2003, fosse igualmente aplicado ao inciso IV do art. 2° da Lei nº 6.664, de 26 de junho de 1979,

alterada pela Lei n° 7.399, de 1985, haveria uma verdadeira inviabilidade da profissão de geógrafo

no Brasil, uma vez que, para ser geógrafo, seria necessário ser licenciado, cumulativamente, em

Geografia e em Geografia e História.

Logo, resta claro que, para a Lei nº 6.664, de 26 de junho de 1979, alterada pela Lei

7.399, de 1985, a conjunção “e” deve ser compreendida como conjunção coordenativa alternativa,

ao permitir que: (i) no inciso IV, a profissão de geógrafo possa ser exercida ora por licenciado em

Geografia, ora por licenciados em Geografia e História; e (ii) no inciso V, a profissão de Geógrafo

possa ser exercida ora por mestres em Geografia, ora por doutores em Geografia. São incisos

constantes em uma mesma lei, dispostos sequencialmente, que demonstram claramente que a

interpretação do texto da lei em geral deve se atentar que a conjunção “e” foi disposta enquanto

conjunção coordenativa alternativa, regra gramatical prevista na língua portuguesa.

Alterar o sentido da Lei e do Decreto por meio de Decisão Plenária, além de produzir

insegurança jurídica aos estudantes do mestrado e do doutorado em Geografia, não contribui para

a construção da profissão de geógrafo com os parâmetros interdisciplinares que se exige na

legislação, que permite a qualquer área de origem produzir mestres e doutores de Geografia. Se há

a intenção de se diferenciar as atividades que podem ser exercidas por um bacharel, por um mestre

e por um doutor em Geografia, cabe ao Crea, bem como a todos os órgãos do sistema Confea,

aprofundar os estudos sobre os limites de competência que cada uma destas categorias podem

cumprir perante a sociedade.

Simplesmente recusar registro a profissional devidamente habilitado, com anos de

estudo na qualidade de mestre ou de doutor em Geografia e que cumpriu todos os requisitos

previstos na Lei nº 6.664, de 26 de junho de 1979, alterada pela Lei 7.399, de 1985, fere

diretamente o inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal acima citado. Já há decisões judiciais

neste sentido437 e o tema deve, inevitavelmente, alcançar o Supremo Tribunal Federal.

O Confea, desta forma, para matar a onça de uma redação legal em que discorda,

queima a floresta das possibilidades geográficas. Ao invés de preparar os mestrados e os

doutorados para esta característica da Geografia, de provedora do critério espacial nas demais

ciências, mantém sua preferência pelo paliativo do corporativismo que em nada contribuiu para

edificar uma Geografia sólida e estruturada. Conferir a lei um sentido e uma eficácia que não está

437 Por exemplo, Processo N° 0052659-15.2014.4.01.3400, da 5ª Vara Federal do Tribunal Regional Federal da

Primeira Região, Seção Judiciária do Distrito Federal.

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contemplada em seu bojo apenas produz insegurança jurídica aos profissionais que pretendem

exercer a Geografia no Brasil.

De maneira a formar uma agenda propositiva, lista-se abaixo alguns esforços que

poderiam fortalecer a profissão de geógrafo:

(i) Preparar a Geografia para cumprir a Constituição e a lei: A atual

legislação que regulamenta a profissão de geógrafo possibilita que bacharéis,

licenciados, mestres e doutores em Geografia possam exercer a Geografia.

Este efeito também acontece, em condições legislativas distintas, em outras

profissões, tais como Jornalismo, Relações Internacionais, Turismo etc. A

legislação infralegal pouco detalhou como seria realizado o exercício da

Geografia, criando restrições indevidas (p. ex., Decisão Plenária n° 807, de

29 de agosto de 2003) e não criando restrições onde seriam devidas, ao dizer

como o mestre e o doutor em Geografia poderiam exercer a Geografia voltada

para cada área de conhecimento (p. ex., bacharel em Engenharia, em Direito,

em Medicina, em Economia, em Sociologia etc. podem exercer a Geografia

no grau mestre nas condições X e no grau doutor nas condições Y). Cabe ao

Confea produzir uma nova Decisão Plenária regulamentando estas condições

enquanto a atual legislação estiver vigente;

(ii) Criar nova legislação para regulamentar a profissão de geógrafo: Os

geógrafos não podem aguardar que um novo presidente da República que seja

geógrafo tenha a preocupação de regulamentar a profissão, como aconteceu

com o presidente Figueiredo, sob pena de sempre aguardar um ato de cima

para baixo. Vivemos em um período democrático, e esta regulamentação deve

partir de baixo para cima. Há a necessidade de um amplo debate na sociedade

sobre o perfil do geógrafo, se haverá a manutenção de se conferir o título de

geógrafo a bacharéis, a mestres e a doutores, ou somente aos bacharéis. A

última tentativa de regulamentar a profissão de geógrafo realizada no

Congresso Nacional foi do senador Sibá Machado438 (PT-AC), pelo Projeto

de Lei n° 6.804, de 2006, atualmente arquivado; e

438 Bacharel em Geografia.

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(iii) Criar Conselho próprio: Não se justifica, em uma realidade na qual a

Geografia de Estado e a infraestrutura geográfica ganham relevância

crescente, que a Geografia remanesça enquanto entidade de classe como

Engenharia Geográfica. A ligação da Geografia ao Crea somente se justifica

para reforçar esta visão parcial do geógrafo, que no limite não dá vazão a toda

formação humanística que os geógrafos têm na academia. Os geógrafos

precisam se organizar para se emanciparem do sistema do Crea, assim como

recentemente fizeram os arquitetos, que criaram um conselho mais aderente

a sua realidade e aos interesses da classe.

Neste sentido, se os geógrafos conseguirem ver além do mero bairrismo o fato de

mestres e doutores exercerem a Geografia, podem extrair uma oportunidade de fortalecer sua

profissão. Afinal, o maior mal da profissão geográfica não é a possibilidade de mestres e doutores

poderem ser geógrafos, mas a dislexia crescente que existe entre a formação acadêmica e o

exercício profissional. É inconcebível que geógrafos se formem nas faculdades de letras e de

ciências humanas e tirem suas carteiras profissionais nos conselhos regionais de engenharia e de

agronomia, pois uma realidade não prepara integralmente o profissional para a outra. Um Conselho

geográfico próprio poderia trabalhar melhor com esta simetria Sociedade-Natureza, ou Humanas-

Exatas, de maneira a conferir maior efetividade a profissão.

Mas para aprimorar esta simetria, o trabalho deve começar mais na base, ou melhor,

na academia.

4.6.8. Do aprimoramento do ensino nas faculdades de Geografia e de Direito

Se a tridimensionalidade é uma realidade na Geografia, as faculdades necessitam se

preparar para lecionar sobre os critérios espaciais nos fatos, nos valores e nas técnicas. Admitido

que a legislação está correta, e que bacharéis, mestres e doutores em Geografia podem ser

geógrafos, a interdisciplinaridade está no cerne da Geografia, pelo menos para efeitos da Geografia

de Estado. É como se a Geografia fizesse um contraponto as Relações Internacionais, se

configurando em uma espécie de Relações Nacionais, compreendendo as escalas de governança,

de maneira a demonstrar a coesão espacial por meio da divisão geojurídica, geoeconômica e

geopolítica do trabalho por meio da infraestrutura geográfica. Engenheiros, advogados, médicos,

economista etc. fazem mestrados e doutorados em Relações Internacionais e exercem o

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internacionalismo dentro de suas áreas. E os cursos de Relações Internacionais não deixam de ser

interessantes por conta desta característica, pelo contrário.

Uma Geografia de Estado renovada impõe as faculdades de Geografia o estudo do

Direito, e não apenas das Ciências Políticas, pois esses alunos, quando se formarem, necessitarão

impreterivelmente lidar com a técnica jurídica, as normas, instrumento básico do Estado de

Direito, meio no qual os geógrafos se utilizarão para colocar seus conhecimentos em prol da

sociedade organizada. E o Direito pode contribuir decisivamente para aprimorar a inserção da

Geografia do mercado de trabalho. Há uma clara mensagem da sociedade, que forma em torno de

100 mil bacharéis em Direito anualmente no Brasil,439 concomitante a diminuição da procura por

cursos de Geografia.

Nas correlações entre os acadêmicos da Geografia e do Direito, pode-se identificar

algumas linhas de ação para aproximar a consciência jurídica no geógrafo e a geográfica no jurista.

Elas são imprescindíveis para que o geógrafo aprimore seu senso crítico dentro das regras do

Estado de Direito e que os juristas apliquem as fontes do Direito no critério espacial do país. Para

tanto, lista-se algumas diretrizes que podem servir de base para o aprofundamento destas relações

interdisciplinares.

(i) Teoria Tridimensional da Geografia: Matéria que pode ser lecionada para

tratar sobre a renovação da Geografia pelo modelo tridimensional,

identificando interdisciplinaridades por meio do critério espacial nas ciências.

Estudaria o sistema de objetos e o sistema de ações enquanto tríade fato-valor-

técnica. Contextualizaria a evolução do pensamento geográfico tendo como

ponto de partida a discussão do critério espacial;

(ii) Geodireito e a Geografia de Estado no Brasil: Matéria a ser lecionada para

tratar sobre o critério espacial no Direito e o critério coercitivo na Geografia,

reconhecendo o Geodireito e a interdisciplinaridade da Geografia perante o

Direito por meio da compreensão da Geografia do Estado, da Geografia da

Justiça e da Geografia da Legalidade como formas de viabilidade do

Geodireito, promovendo amplo estudo de caso;

439 Dados de 2013 da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em uma realidade de quase 1.200 cursos de Direito em

funcionamento, com mais de 650 mil estudantes em todo o Brasil. Estima-se ainda que exista um excedente de 3

milhões de bacharéis em Direito que não estão inscritos na OAB.

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(iii) Geodireito e o Direito Administrativo Geográfico: Matéria a ser lecionada

para versar sobre o critério espacial da Geografia de Estado, bem como do

critério coercitivo da Geografia. Analisaria a renovada Teoria tridimensional

do Direito em face do pensamento geográfico, reconhecendo o Geodireito

enquanto ramo do Direito apto a mediar as relações com a Geografia; e

(iv) Geodireito e a regulação das geotecnologias: Matéria a ser lecionada para

versar sobre a Filosofia jurídica do espaço, concebendo o território, a região

e a localidade enquanto dimensões geográficas projetadas na terra, no mar,

no ar, no espaço e no subsolo. Estudaria a regulação da infraestrutura

geográfica e políticas públicas por meio do Geodireito enquanto mediação

das relações na Geografia do Estado.

Neste contexto, haveria a possibilidade real de se ensinar uma Geografia de Estado

que promova a infraestrutura geográfica em face dos princípios administrativistas voltados ao

serviço adequado, sendo aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade,

eficiência, segurança, generalidade, cortesia na sua prestação e atualidade, de forma que esta

atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua

conservação, bem como a melhoria e expansão desta infraestrutura enquanto serviço público.440

Nesta concepção de ensino geojurídico, em que a academia internaliza o fato enquanto

dado posto, o valor enquanto manifestação cultural de uma sociedade e a técnica geográfica

enquanto infraestrutura, a Geografia confere conhecimentos para implementar, executar e

desenvolver tecnologia fundada em informações geoespaciais, enquanto técnica geográfica que

retrata fato e valor geográfico, para que o Direito confira conhecimentos para implementar,

executar e desenvolver políticas públicas fundadas em normas espacializadas, enquanto técnica

jurídica que retrata fato e valor jurídico. É analisar como as informações geoespaciais são tratadas

na norma, e como a norma pode se utilizar das informações geoespaciais para serem mais eficazes.

O desafio geojurídico, com base tridimensional, consiste em ser fisicamente, pensar

socialmente e agir tecnicamente. O Brasil em geral, e os geógrafos em específico, tem se

demonstrado incapazes de cumprir a Constituição e criar um serviço oficial de Geografia tanto

quanto reconhecer a Geografia de Estado enquanto infraestrutura geográfica. Isso ocorre porque

440 Conforme exposto no art. 6° da Lei n° 8.987, de 1995.

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não há um trabalho de base, que promova o ensino interdisciplinar nas faculdades de Geografia e

de Direito, bem como requalifique legalmente a profissão de geógrafo.

Isso somente acontecerá se houver um esforço para se conceber o Geodireito enquanto

ramo científico interdisciplinar, com base tridimensional e seis formas de estudo, tanto na

Geografia quanto no Direito, que possibilite uma interdisciplinaridade engajada, mediadora de

critérios espaciais e coercitivos, em prol de uma justiça especializada e cidadã.

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CONCLUSÃO

A Geografia tem todas as condições de assumir centralidade dentre as ciências no

século XXI. Se as informações geoespaciais terão uma relevância análoga à que a energia elétrica

teve no século XX, serão os geógrafos os cientistas que melhor poderão conferir respostas sobre

questões como uso e manejo das informações, uso das propriedades, preservação do meio

ambiente, ordenamento das cidades, formas de aplicação tecnológica e todas as demais aplicações

que demandem uma aprofundada compreensão do critério espacial do fato, dos valores e das

técnicas.

No entanto, será necessário colocar centralidade epistemológica em algumas

premissas, tais como a visão tridimensional da Geografia, os princípios da geometria, da simetria

e da delimitação enquanto elementos informadores da morfologia da ciência geográfica, bem como

a compreensão de todos os aspectos que envolvem a supremacia da natureza na esfera

fenomenológica, a superioridade da sociedade na dimensão axiológica e a neutralidade da técnica.

Ao aplicar a tridimensionalidade, os geógrafos encontram um método que une o

conhecimento corográfico às preocupações filosóficas e sociais, empregando suas técnicas em prol

da espacialização da cidadania. Não há mais tempo para que os geógrafos se percam em sistemas

de ricas percepções, mas de insipiente organicidade, sob pena de constante aprofundamento da

descaracterização da Geografia enquanto ciência. O fim da autofagia geográfica somente será

possível se houver a compreensão de que o que são tratadas como correntes do pensamento

científico nada mais são do que áreas de estudo, que não se contradizem umas às outras, mas

adicionam percepções e enriquecem a Geografia. Não há crise na Geografia fora dos interesses

individuais dos geógrafos.

Ao aceitar a organicidade da sociedade de forma epistêmica, com centralidade no

Estado de Direito, rapidamente se perceberá que a Constituição Federal clama por um serviço

geográfico oficial. Há um país carente em conceber uma Geografia de Estado em regime

democrático pela primeira vez em sua existência. E em que pese termos em nossa rica história

excelentes exemplos do caminho que devemos trilhar para alcançar tecnicamente este objetivo,

temos nos deparado com discussões de qualidade questionável, uma vez que não compreendem a

centralidade da escala nacional, ou federal, fixada pela Carta Magna, tampouco em como ela deve

ser regida.

Negar esta centralidade significa abrir mão da Geografia oficial enquanto ação estatal

autárquica. Cumprir esta obrigação constitucional significa devolver a batuta de maestro dos

critérios espaciais aos geógrafos, ou o apito do árbitro da quadra poliesportiva, perdido em 1967

no regime militar. É dar condições práticas para que os geógrafos planejem, regulem, fiscalizem e

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executem o critério espacial do Estado em todas as suas escalas de governança. Esta é a forma de

readquirirem as condições técnicas para afinar a grande orquestra, em termos análogos ao que

Teixeira de Freitas previu em 1938, mas atualizado ante as potencialidades do século XXI.

Mas, a dificuldade de os geógrafos alcançarem este objetivo tem uma raiz muito mais

profunda. Além de o Estado ter prescindido de seu grande maestro dos critérios espaciais, a gênese

da desarticulação geográfica está no franqueamento que os geógrafos realizam de suas

potencialidades a outras profissões regulamentadas, que com suas limitações dizem na prática,

mas sem razão, o que é Geografia oficial. São engenheiros, advogados, economistas, estatísticos,

agrimensores, cartógrafos, biólogos, dentre tantas outras profissões que, ao estudarem os critérios

espaciais de suas ciências, estão produzindo Geografia oficial para casos concretos e pontuais, pois

estes entendimentos são absorvidos pelo Estado e interferem no espaço nacional. São os

instrumentistas tocando suas músicas, com partituras distintas, em prol de uma orquestra sem

maestro.

Este franqueamento geográfico decorre da visão limitada, e em certa medida

contraditória, que os geógrafos conferiram a regulamentação de sua profissão, que exige uma

formação de exatas para uma mão-de-obra formada majoritariamente em centros de humanas. A

Geografia permeia cientificamente um grande rol de ciências e nelas interfere, por meio do critério

espacial dos fenômenos, da axiologia e do instrumentalismo, e deve encontrar nas demais ciências

parte da força de sua consolidação e de seu fortalecimento. Se a tridimensionalidade edifica a

Geografia de forma vertical, a interdisciplinaridade a tonifica e a espraia perante as demais ciências

de maneira horizontal. Logo, os geógrafos necessitam dizer e regulamentar como mestres e

doutores podem ser geógrafos mesmo sendo bacharéis em outras ciências, preparando os

programas de mestrado e de doutorado para esta rica e promissora possibilidade.

E a graduação deve se preparar para trabalhar com o ensino da Geografia de maneira

vertical e horizontal. Os bacharelados devem formar geógrafos tridimensionais, com uma

percepção clara dos fatos, dos valores e das técnicas que podem ser utilizados para a regência da

orquestra dos critérios espaciais. Significa compreender as relações nacionais e como estas se

projetam internacionalmente. E para compreender estas interações, ou a divisão geojurídica do

trabalho, torna-se imprescindível fortalecer o ensino do Direito na Geografia.

Compreender a ciência jurídica conferirá ao geógrafo contextualizar-se perante o

Estado, por meio da absorção da lógica constitucional, das fontes do Direito, da filosofia e

sociologia jurídica e da Teoria Geral do Estado, de maneira a clarificar e desenvolver os

instrumentos de intervenção coercitiva no Espaço.

Esta compreensão deverá estar intimamente relacionada a interdisciplinaridades que

possibilitem o enriquecimento epistemológico da Geografia. Assim, o Direito confere um critério

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coercitivo que, em última análise, espacializa a cidadania pelas diferentes formas de justiça. Nesta

perspectiva, o Geodireito, enquanto mínimo múltiplo comum entre Geografia e Direito, deve

promover e mediar as diferentes escalas de governança dentro de um mesmo espaço, patrocinando

uma Geografia de Estado saudável e mediando os conflitos territoriais por meio da divisão

geojurídica do trabalho e da infraestrutura recíproca, em que as técnicas geográfica e jurídica se

relacionam por meio de interações entre atividade-meio e atividade fim, produzindo o sistema

Mapa-Norma.

Somente assim o geógrafo, ao se deparar com o Direito, construirá as sínteses do

Geodireito e evitará suas antíteses, dentro de três eixos: (i) espacializará o Estado, por meio da

promoção da Geografia oficial; (ii) promoverá a justiça ao combater as injustiças, de maneira a

desenvolver um critério espacial cidadão ao Estado; e (iii) atuará na legalidade ao evitar as

ilegalidades, trabalhando com esmero para conceber uma infraestrutura geográfica sem

inconsistências, tais como beliches cartorários e beliches geoespaciais, valorizando a Geografia

enquanto bem de domínio público.

Considerado que a adoção de uma ótica moderna ou pós-moderna depende diretamente

da escala a ser tomada como referência, a tridimensionalidade ideal a ser manifestada na Geografia

e no Direito, para fins de produção do Geodireito, respeitadas a geometria, a simetria e a

delimitação, devem preservar a seguinte morfologia, que dialoga tanto com a escala grande da

modernidade, do sistema e da pureza científica, quanto com a escala pequena da pós-modernidade,

do cotidiano, das miscigenações científicas e do pragmatismo:

(i) Tríade fato-valor-técnica geográfica: Fundamenta a Geografia

tridimensional que viabiliza, dentre outros temas, uma Geografia de Estado

dotada de fenomenologia geográfica (território, região, localidade e escala),

de axiologia geográfica (desenvolvimento da coesão interna e da divisão do

trabalho, em sua dimensão econômica e social, com base em valores

geográficos) e de técnica geográfica (pratica censos periódicos, incorporando

linguagens e tecnologias que possibilitem constituir uma infraestrutura

geográfica), que em simetria constituem o critério espacial do Brasil;

(ii) Tríade fato-valor-técnica jurídica: Fundamenta o Direito tridimensional

que viabiliza, dentre outros temas, um Estado de Direito dotado de

fenomenologia jurídica (União, estados, Distrito federal e municípios), de

axiologia jurídica (busca de uma justiça enquanto ordem que promova a

coesão interna e a divisão de trabalho, em sua dimensão econômica e social,

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com base em valores jurídicos) e de técnica jurídica (elaborar instrumentos

de legalidade que incorporem linguagens e tecnologias que possibilitem

constituir uma infraestrutura jurídica), que em simetria constituem o critério

coercitivo do Brasil;

(iii) Tríade fato-valor-técnica geojurídica: Fundamenta o Geodireito

tridimensional que viabiliza, dentre outros temas, uma mediação entre as

pretensões resistidas caracterizadas no critério espacial e no critério

coercitivo de uma determinada Sociedade, ao dotá-la de fenomenologia

geojurídica (escalas de governança definidas), de axiologia geojurídica

(divisão geojurídica do trabalho estabelecidas nos planejamentos setoriais, de

maneira a promover a coesão interna, em sua dimensão econômica e social,

com base em valores geojurídicos) e de técnica geojurídica (constituindo

políticas públicas, enquanto infraestrutura jurídica, para fomentar técnicas

geográficas, tais como mapeamento, cartografia, estatística,

aerolevantamento etc..), que em simetria constituem a aplicação do

Geodireito em um Estado referenciado.

Para novamente alcançar este objetivo, construído no Brasil em 1938 com o IBGE

autárquico, e desconstruído em 1967 com a Fundação IBGE, sintetiza-se as elaborações acima

para recomendá-las nos seguintes termos:

(i) Que a comunidade geográfica aprofunde a compreensão tridimensional como

forma de melhor organizar as suas ricas percepções epistemológicas,

incluindo, mas não se limitando a, promover uma releitura do pensamento

geográfico com enfoque fenomenológico, axiológico e instrumental;

(ii) Que a comunidade jurídica emancipe a teoria tridimensional da exclusividade

do positivismo, compreendendo a terceira dimensão enquanto técnica, e não

enquanto norma, situação que permite que outras formas de compreensão do

Direito sejam também passíveis de análise por este método, ou seja, pela

escala pequena da pós-modernidade, de maneira a conferir possibilidade de

convergência epistemológica a diferentes propostas de sistematização do

Direito;

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(iii) Que a interdisciplinaridade entre a Geografia e o Direito seja realizada e

mediada pelo Geodireito, enquanto construção tridimensional com seis

formas de estudo, de maneira a permitir que a Geografia aprofunde a

compreensão de Estado, de justiça e de legalidade, e que o Direito aprimore

a noção de Espaço, de ordenamento (Direito Administrativo Geográfico) e da

Geografia enquanto infraestrutura;

(iv) Que o Estado brasileiro possa cumprir sua Constituição e criar um serviço

oficial de Geografia, permitindo que os brasileiros conheçam seu país e

possam desenvolver políticas públicas com base em uma infraestrutura

geográfica oficial, consolidada, padronizada, universalizada, com tecnologia

de ponta, de livre acesso e de baixo custo, eliminando assim a colcha de

retalhos cartográficos em que o país atualmente fundamenta suas políticas

públicas;

(v) Que a Sociedade compreenda a Geografia enquanto infraestrutura, conferindo

às políticas públicas geográficas um marco regulatório compatível com seus

desafios, assim como é realizado em outros setores de infraestrutura, por meio

do combate às distorções deste avanço epistemológico e tecnológico, tais

como a síndrome de beliche geoespacial, o geoslavery, as violações as

liberdades individuais e, principalmente, a ausência de cobertura cartográfica

e geoespacial do território nacional;

(vi) Que a Presidência da República crie estrutura autárquica para regular e

fiscalizar o ordenamento territorial e regional no Brasil, vinculando-a

diretamente a Casa Civil, por tratar de temas civis e militares, em moldes

análogos ao que Teixeira de Freitas propôs em 1938 ao fundar o IBGE

autárquico;

(vii) Que o Congresso Nacional crie um renovado Código Geográfico brasileiro,

que reflita os anseios democráticos do país em instrumentalizar uma política

pública geográfica, concebendo-a enquanto infraestrutura que atualize o

Plano Nacional de Estatística, o Plano Nacional de Geografia e Cartografia

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Terrestre, o Sistema Cartográfico Nacional (SCN), a Política Cartográfica

Nacional, a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), a Política

Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), crie uma Política Nacional

de Divisão Territorial que trate dos atos de criação, fusão, incorporação e

desmembramento de unidades federadas, conferindo diretrizes ao art. 18, § 4º

da Constituição Federal e consolide todas as iniciativas que tratam do critério

espacial do Estado brasileiro;

(viii) Que os geógrafos lutem para requalificar legalmente sua profissão, buscando

regulamentar as formas de exercício da Geografia por bacharéis, licenciados,

mestres e doutores em Geografia, buscando edificar um conselho profissional

que corresponda aos anseios da profissão; e

(ix) Que os docentes da Geografia e do Direito possam fomentar estas disciplinas

em suas respectivas faculdades, mostrando as potencialidades

interdisciplinares, que muito podem contribuir para o avanço deste diálogo.

É tempo de os geógrafos descortinarem à sociedade sua efetiva contribuição científica,

de reger seu critério espacial. Para alcançar estes objetivos, devem revisitar sua função perante o

Estado e usá-lo em seu favor, consequência natural do desnudamento social a que se propuseram

a fazer desde os anos 1970.

Não basta sacar máscaras sociais, há que se mediar interesses espaciais. Há a

possibilidade de se intervir pelo Estado, enquanto estrutura referencial, e não apesar do Estado, na

qualidade de instrumento de opressão. O caminho para o alcance da cidadania espacializada

encontra na Geografia tridimensional, em geral, e no Geodireito, em específico, o meio no qual

certamente terá aprofundada sua compreensão, seu objeto de estudo e seus princípios informadores

para o alcance desta finalidade ao longo do tempo.

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