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Universidade de Brasília UnB Instituto de Ciências Humanas IH Departamento de Filosofia - FIL HISTÓRIA, POLÍTICA E MODERNIDADE: UM ESTUDO SOBRE A ARTE NA OBRA DE MARTIN HEIDEGGER Bianca Rocha Machado Brasília DF 2013

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Universidade de Braslia UnB

Instituto de Cincias Humanas IH

Departamento de Filosofia - FIL

HISTRIA, POLTICA E MODERNIDADE:

UM ESTUDO SOBRE A ARTE NA OBRA DE MARTIN HEIDEGGER

Bianca Rocha Machado

Braslia DF

2013

Bianca Rocha Machado

HISTRIA, POLTICA E MODERNIDADE:

UM ESTUDO SOBRE A ARTE NA OBRA DE MARTIN HEIDEGGER

Monografia apresentada ao Departamento

de Filosofia da Universidade de Braslia

como requisito parcial para obteno de

ttulos de Bacharel e Licenciado em

Filosofia.

Orientadora: Prof Dr Priscila Rossinetti Rufinoni.

Braslia DF

2013

Agradecimentos

Meus sinceros agradecimentos, primeiramente, a todos os Professores do

Departamento de Filosofia da Universidade de Braslia. Agradeo-os respeitosamente, pois

seu trabalho, dedicao e exemplo contriburam decisivamente para o meu crescimento

pessoal e profissional ao longo deste curso de graduao e marcaram para sempre a minha

histria.

Agradeo minha orientadora, Prof. Dr. Priscila Rossineti Rufinoni, no apenas

porque seu conhecimento, cuidado e ateno foram fundamentais para a execuo deste

trabalho, mas tambm porque sua confiana no meu potencial permitiu a superao de todos

os obstculos.

Agradeo tambm minha me, Maria Luzinete Rocha Machado, cujo investimento,

pacincia, amor, carinho e dedicao so sempre a fonte da coragem de que preciso para

realizar os meus sonhos. Ela me ensinou a ser forte e eu jamais me esquecerei dessa lio.

Agradeo, especialmente, ao Erick, meu amor e meu melhor amigo, pelo apoio e

constante incentivo. Estou certa de que sem seu cuidado eu jamais teria chegado at aqui.

E, finalmente, agradeo afetuosamente a toda minha famlia e amigos, que, direta ou

indiretamente, me inspiram e me do novo flego para ir sempre mais alm. So eles que me

reconfortam e me do o impulso necessrio para seguir em frente.

Meus sinceros agradecimentos a todos.

Dedicatria

Dedico este trabalho, primeiramente, minha orientadora, professora e amiga

Priscila Rossinetti Rufinoni. minha me, Maria, por seu apoio e amor incondicionais.

Ao meu pai, Francisco, por seu imenso cuidado, dvida que nunca poderei pagar. Ao

Erick, por ser protagonista dos momentos mais felizes e por permanecer ao meu lado

mesmo nas horas mais difceis. A toda minha famlia, pelo constante incentivo. E,

especialmente, a todos que se dedicam ao estudo da Filosofia.

Progressos dos armamentos perigosamente mortferos!

Couraas, canhes, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnivoramente!

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vs, coisas grandes, banais, fteis, inteis,

coisas todas modernas,

minhas contemporneas, forma factual e prxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelao metlica e dinmica de Deus!

Fernando Pessoa Ode Triunfal

Sento-me no cho da capital do pas s cinco horas da tarde

E lentamente passo a mo nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pnico.

feia. Mas uma flor. Furou o asfalto, o tdio, o nojo e o dio.

Carlos Drummond de Andrade A Flor e a Nusea

Resumo

Este trabalho tem como objetivo principal investigar, no pensamento do filsofo

Martin Heidegger, os desdobramentos que conduzem sua pesquisa acerca da obra de arte e o

carter paradigmtico que esta atinge em seus escritos de maturidade. Para tanto, partiremos

de uma anlise de seu projeto principal a questo acerca do sentido do ser anunciado j

em Ser e Tempo, considerada sua obra capital. Em seguida, trataremos da virada [Kehre] em

seu pensamento e da forma como esta se origina a partir do interesse de Heidegger por

questes relativas radicalizao tipicamente moderna da tcnica como instrumento de

apreenso da verdade. Finalmente, investigaremos a forma como a obra de arte desponta

como nico elemento capaz de fazer frente ao destino que se anuncia: a dominao do homem

pelo aparato tcnico. Assim, veremos como Heidegger articula temas como modernidade,

niilismo, tcnica e arte para ressaltar a urgncia da elaborao de uma nova ontologia,

possvel apenas sob um novo olhar para as possibilidades abertas pela arte.

Palavras-chave: ontologia verdade modernidade tcnica arte Heidegger

Sumrio

1. INTRODUO ........................................................................................................ 9

2. HEIDEGGER E O PROJETO DE SER E TEMPO ............................................... 11

3. UMA MUDANA DE FOCO ............................................................................... 19

3.1 KEHRE .................................................................................................................. 19

3.2 TCNICA E MODERNIDADE ................................................................................. 23

4. ARTE ...................................................................................................................... 28

4.1 UMA ANLISE DE A ORIGEM DA OBRA DE ARTE ................................................. 28

4.2 ARTE E HISTRIA: O PR-SE-EM-OBRA-DA-VERDADE, A LINGUAGEM E O

TRABALHO DO POETA ..................................................................................................... 38

5. CONCLUSO ........................................................................................................ 52

6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................. 55

9

1. INTRODUO

Martin Heidegger tido hoje como um dos maiores filsofos do sculo XX. Nascido

na pequena cidade alem de Messkirch, no ano de 1889, o perodo de sua produo filosfica

atravessa aquela que considerada uma das pocas mais conflituosas e atribuladas da nossa

era. Sua juventude e maturidade compreendem todo perodo no qual se deflagraram as duas

Grandes Guerras, e, como ocorreu com a imensa maioria dos intelectuais da poca, sua

produo filosfica e acadmica se colocou frente s tenses que se instauraram em todo

continente europeu, pensando a fundo as questes de sua prpria poca.

Paradoxalmente, Heidegger tambm conhecido por levar seu questionamento at o

incio do pensar filosfico ocidental. Sua obra marcada pelo aparente contrassenso de buscar

no mais remoto passado a origem dos maiores conflitos de sua poca e as solues para as

questes mais prementes de seu presente histrico. Assim sendo, no de se admirar que,

primeiramente, o pensamento heideggeriano seja, em todo seu desenvolvimento, um intenso

debate com os problemas legados pela tradio do pensamento ocidental e, em segundo lugar,

que a histria da filosofia seja o solo ltimo sobre o qual se firma toda a construo do seu

pensar, enquanto reflexo sobre a herana do passado, as urgncias impostas pelo presente e

as possibilidades que se anunciam para o futuro.

Este trabalho tem como meta investigar o desenvolvimento da obra de Heidegger, com

a inteno de tornar explcito o modo como o desenrolar de suas reflexes conduzem o

filsofo a tratar de um tema bem especfico: a arte. Tal tema surge em sua obra de maturidade

e adquire cada vez mais relevncia em seu pensamento, at se tornar a temtica central de

seus ltimos escritos. Investigaremos os motivos que levam Heidegger a conceder tamanha

importncia arte e a articulao entre este e os demais elementos investigados em sua obra.

Assim, em nosso primeiro captulo trataremos do livro Ser e Tempo, considerada a

obra capital de Heidegger. Nosso objetivo evidenciar que nesta obra esto lanadas as bases

de seu pensamento: as questes fundamentais com as quais Heidegger se defrontar esto

presentes nesta obra. Entretanto, Ser e Tempo uma obra inacabada. Trataremos dos motivos

que levam seu autor a no finaliz-la e das mudanas de rumo pelas quais passar seu projeto

filosfico a partir disso.

10

O segundo captulo trar especificamente da Kehre, da virada no pensamento de

Heidegger. Nossa pesquisa pretende explicar at que ponto essa virada, que marca a

passagem dos escritos heideggerianos de juventude aos de maturidade, representa uma

transformao na sua obra: Heidegger, como veremos, conserva seu eixo temtico e o

interesse pelas mesmas questes, muito embora decida que o caminho tomado para a

elaborao de Ser e Tempo deve passar por modificaes radicais. Os problemas se mantm,

mas exigiro ser pensados a partir de novas bases.

Finalmente, o terceiro e ltimo captulo investiga como a discusso acerca da arte

promove mudanas no projeto heideggeriano. A anlise da obra de arte se encontra, nessa fase

do pensamento de Heidegger, entrelaada com as reflexes sobre a modernidade e sobre a

histria e o destino do homem. O aspecto poltico da filosofia heideggeriana ganha cada vez

mais importncia. Heidegger percebe que, para se contrapor ao niilismo moderno e pensar em

uma transformao que abra novos caminhos para o destino da humanidade, a filosofia deve,

mais do que nunca, recolocar a questo acerca do sentido do ser. arte, como veremos,

caber o papel principal nessa busca por conduzir a filosofia atravs de caminhos novos e

inexplorados.

11

2. HEIDEGGER E O PROJETO DE SER E TEMPO

Publicada em 1927, Ser e Tempo considerada a obra capital de Martin Heidegger

(1889-1976). O audacioso objetivo do tratado envolve um trabalho de transformao de todo

pensamento ocidental, desde o seu alicerce: atravs da articulao entre ontologia e

temporalidade, Heidegger pretende evidenciar os elementos que compem a tradio

filosfica do ocidente de modo a afirmar a necessidade de recolocao da questo acerca do

sentido do ser. Esta iniciativa representaria a condio de possibilidade de toda e qualquer

ontologia (CASANOVA, p. 140 2010). Heidegger promove uma investigao que articula

ser, homem e historicidade, desenvolvendo uma crtica que perpassa a metafsica ocidental

em suas mais diversas implicaes. Incorrendo no preconceito de considerar o conceito de ser

enquanto o mais evidente por sua suprema universalidade1, indefinibilidade e

compreensibilidade imediata a metafsica ocidental2, ao longo de toda sua histria, teria

passado ao largo daquela que deveria ser sua questo fundamental:

Toda ontologia, por rico e firmemente articulado que seja o sistema de

categorias sua disposio, no fundo permanece cega e se desvia de sua

inteno mais-prpria, se antes no elucidou suficientemente o sentido de ser e

no concebeu essa elucidao como sua tarefa-fundamental. (HEIDEGGER,

2012, p. 57, grifo do autor).

Para Heidegger, a no-observncia da questo sobre o sentido do ser conduz a seu

esquecimento. Uma vez deixado de lado, o ser passa a ser investigado apenas em termos de

sua representao. A metafsica, segundo Heidegger, entificou o ser, abandonando sua

investigao por interpret-lo, preconceituosamente, como algo evidente, como o conceito

mais geral ou mesmo como algo indefinvel3. Ao longo da tradio, a confuso entre ser e

ente se perpetuou, repetidamente transformando em um mero questionar pelo ente toda

iniciativa de se buscar o sentido do ser. A tese do esquecimento do ser est vinculada noo

1 Cf. HEIDEGGER, 2012, p. 37.

2 Depreendida por Heidegger como todo perodo da histria da filosofia que comea com Plato e se

estende at Nietzsche. 3 Heidegger chega a afirmar que todo o interesse pela metafsica teria cado no esquecimento (Cf.

HEIDEGGER, 2012, p. 85). Newton Aquiles Von Zuben acrescenta outra hiptese para este preconceito,

afirmando que a ausncia de uma resposta adequada indagao sobre o sentido do ser na histria da

filosofia ocidental se deve ao fato de que a abordagem e o tratamento da questo ontolgica se fizeram

por caminhos que s poderiam conduzir ao desvirtuamento da prpria questo. Com efeito, a

interpretao do ser na metafsica ocidental se operou a partir do modelo do ente intramundano, a saber, o

ente subsistente. Exemplo significativo desse tipo de interpretao encontramos em Descartes, onde a

perspectiva ontolgica que o cogito poderia abrir obstruda em seu nascedouro, porque o portador da

questo fundamental da filosofia ele mesmo interpretado como existindo ao modo de ser das coisas,

como res. Se, em Descartes, a questo ontolgica no chega a se transformar em interrogao sobre o

problema do ser, em geral, porque o ser pensado de imediato a partir do modelo de ser da substncia,

o que faz com que permanea obscuro o prprio modo de ser da res cogitans e, sobretudo, o sentido de

ser do sum (Cf. ZUBEN, 2011, p. 88).

12

heideggeriana de diferena ontolgica: preciso que a filosofia se desvencilhe do erro

inicial que conduziu confuso entre os mbitos ntico e ontolgico4.

Propondo a recolocao da questo pelo sentido do ser5, Heidegger d incio, com Ser

e Tempo, ao trabalho de destruio [Destruktion] da metafsica, como parte de seu projeto

para reconstru-la em novas bases. Apenas uma destruio da metafsica em seus fundamentos

permitiria um novo entendimento acerca da sua questo primordial. Para isso, contudo,

preciso que se empreenda uma anlise do nico ente apto para executar essa tarefa. O homem

um ente singular, o nico capaz de se colocar a questo ontolgica. Da que o projeto

heideggeriano de destruio da metafsica se inicia, de fato, com o reconhecimento de um

ente privilegiado:

Por conseguinte, elaborar a questo-do-ser significa tornar transparente um ente

o perguntante em seu ser. O perguntar dessa pergunta, como modus-de-ser de

um ente, ele mesmo essencialmente determinado pelo perguntado, por aquilo

de que nele se pergunta pelo ser. Esse ente que somos cada vez ns mesmos e

que tem, entre outras possibilidades-de-ser, a possibilidade-de-ser do perguntar,

ns o apreendemos terminologicamente como Dasein. Fazer expressamente e de

modo transparente a pergunta pelo sentido do ser exige uma adequada exposio

prvia de um ente (Dasein) quanto ao seu ser (HEIDEGGER, 2012, p. 47).

Assim, o projeto geral de Ser e Tempo se desenvolve atravs de uma analtica

existencial. Pois, apesar de o Dasein ter com seu prprio ser uma relao de compreenso6,

no se pode deixar de atentar para o fato de que ele tambm um ente que se encontra

constantemente lanado na facticidade e temporalidade inerentes sua prpria existncia.

nessas condies, a princpio, que o Dasein se relaciona, questiona e compreende seu prprio

ser. Nas palavras de Heidegger, o homem nunca , mas est constantemente em busca de seu

ser, pois a essncia do Dasein reside em sua existncia (HEIDEGGER, 2012, p. 139, grifo

do autor). Portanto, uma pergunta acerca do sentido do ser exige antes a passagem por uma

investigao acerca do ente mesmo que questiona. Acerca da primazia do Dasein enquanto

ente que compreende o ser e, portanto, da necessidade da analtica existencial no projeto de

Ser e Tempo, Benedito Nunes explica que:

Para que se elabore a questo, para que seu interrogar expressamente feito deixe

ver a prvia direo que o determina e seja transparente (durchsichtig) ao ser, ao

que nela perguntado (Gefragte) e buscado (Gesuchte), ser necessrio ento

4 O primeiro se refere ao mundo em que os homens se relacionam entre si e travam contato com as coisas

a sua volta. o mbito dos entes, da realidade das coisas, do cotidiano do homem. Ontolgica a esfera

do que ser, que se deixar investigar apenas a partir de uma nova pergunta, mais autntica, pelo sentido

deste. 5 Para Heidegger, se trataria de pensar, em outros termos, o problema da unidade de sentido do ser, frente

multiplicidade de suas acepes (IDEM, p. 86). 6 Essa relao ser retomada mais a frente.

13

recuar ao ente inquisitivo e ver primeiramente atravs dele a pergunta que o

determina em sua conduta. Trata-se, pois, de fazer do Dasein uma via de acesso

questo do ser. Da corresponder a Analtica um empreendimento

fenomenolgico preliminar, a um primeiro desideratum a cumprir-se no interesse

do posterior desenvolvimento da investigao ontolgica. [...] Dado que para a

Fenomenologia no h outro tema seno o ontolgico, e nenhuma outra linha

seno a interpretativa, a investigao fenomenolgica cumpre-se como um lgein

t phainmena um permitir ver o que se mostra, tal como efetivamente se

mostra por si mesmo: a existncia, o ser do Dasein, desse ente que somos ns

mesmos (NUNES, 1986, p. 80).

Nunes ressalta a analtica existencial como empreendimento fenomenolgico. A

herana de Husserl presente na obra de Heidegger se deixa antever na medida em que a

proposta central de Ser e Tempo a elaborao de uma ontologia fundamental que, no

entanto, s pode ser levada a termo atravs de um primeiro movimento de anlise

fenomenolgica das estruturas existenciais do Dasein.

Por outro lado, Marco Antnio Casanova explica que o maior desafio do projeto

heideggeriano se coloca em pensar as diferentes naturezas entre o que se pretende investigar e

aquele que investiga. Trata-se da considerao do fato de que o conhecimento do ser o

conhecimento do imutvel, daquilo que permanece eterno e uno, apesar da mutabilidade e

constante transformao natureza. O homem, embora seja um ente capaz de se perguntar

sobre o ser, , irremediavelmente, um ente: finito, suscetvel a transformaes e mudanas.

Alm disso, o horizonte interpretativo ao qual esse homem tem acesso, suas experincias e

vivncias, sua histria e conhecimentos do mundo prtico influenciam e podem determinar a

forma como ele interpreta coisas e acontecimentos e compreende o mundo a sua volta.

Segundo Casanova, com essa constatao que Heidegger reconhece a importncia de partir

de uma anlise das condies estruturais que influenciam a existncia humana, em seu modo

de viver no mundo e de compreend-lo7. A busca heideggeriana pelo pensamento filosfico

em suas origens tem como objetivo primeiro a destruio da metafsica, ponto de partida para

uma reconstruo da ontologia. Este trabalho deve ser fenomenolgico e, pela natureza do

ente que o empreende, tambm hermenutico. Heidegger, em Ser e Tempo, delineia o trajeto

que sua investigao dever percorrer:

Tomada em seu contedo-de-coisa, a fenomenologia a cincia do ser do ente

ontologia. Na elucidao das tarefas da ontologia surgiu a necessidade de uma

ontologia fundamental, cujo tema o ente ntico-ontologicamente assinalado, o

Dasein, e isso de tal maneira que ela se ponha ante o problema cardeal, a saber,

ante a pergunta pelo sentido do ser em geral. Da investigao ela mesma

resultar que o sentido metdico da descrio fenomenolgica a interpretao.

O da fenomenologia do Dasein tem o carter do pelo qual se

anunciam ao entendimento-do-ser inerente ao Dasein ele mesmo o sentido de ser

7 Cf. CASANOVA, 2010, p. 64.

14

prprio e as estruturas fundamentais do seu prprio ser. A fenomenologia do

Dasein uma hermenutica na significao originria da palavra, que designa a

tarefa da interpretao. Agora, na medida em que pela descoberta do sentido-do-

ser e das estruturas-fundamentais do Dasein em geral se pe mostra o horizonte

para toda outra pesquisa ontolgica do ente no-conforme ao Dasein, essa

hermenutica se torna ao mesmo tempo Hermenutica, no sentido da

elaborao das condies da possibilidade de toda investigao ontolgica. E,

finalmente, na medida em que o Dasein tem precedncia ontolgica em relao a

todo ente como ente sendo na possibilidade da existncia, a hermenutica,

como interpretao do ser do Dasein, recebe um terceiro sentido especfico o

qual, filosoficamente entendido, o sentido primrio - o sentido de uma analtica

da existenciariedade da existncia. Nessa hermenutica, pois, na medida em que

elabora a historicidade do Dasein como a condio ntica da possibilidade do

conhecimento-histrico, ela tem suas razes no que se pode denominar

hermenutica em sentido derivado, isto : a metodologia das cincias de

conhecimento-histrico do esprito (HEIDEGGER, 2012, p. 129).

Hans-Georg Gadamer ressalta aquela que, nessa poca, era a questo mais relevante

para Heidegger, qual seja, como que se pode ser afinal pensado no interior da mudana

corrente do elemento histrico algo assim como uma verdade filosfica permanente?8. Este

pensamento, segundo Gadamer, leva Heidegger a aprofundar seus estudos do pensamento

grego pr-socrticos, Plato e Aristteles9.

O 44 de Ser e tempo se inicia com a anlise de um fragmento de Parmnides. Este,

segundo Heidegger, promoveu uma identificao entre o ser e o entender percipiente de ser10

.

Este pargrafo fundamental para o entendimento do projeto heideggeriano como um todo,

justamente porque a partir dele que o autor passa a desenvolver a relao central entre a

questo do ser esquecida, como vimos, ao longo da metafsica tradicional , a estrutura

compreensiva do Dasein e o conceito de verdade. Heidegger defende que em sua origem, o

termo grego para verdade possua um nexo originrio com o ser, envolvendo uma

problemtica ontolgica de compreenso do ser. Este nexo teria se perdido, devido ao

privilgio que se conferiu razo intuitiva, responsvel por reduzir o conceito de verdade

noo tradicional de verdade como concordncia entre o juzo e seu objeto11

.

8 No famoso ensaio Heidegger e os Gregos, Gadamer investiga a relao entre as obras do jovem

Heidegger e as razes que levam este a buscar na filosofia antiga a origem a qual seu pensamento deve se

voltar, caso pretenda uma destruio da metafsica e sua recolocao em novos fundamentos (Cf.

GADAMER, Hans-Georg. Hermenutica em Retrospectiva). 9 Sendo um dos principais herdeiros da hermenutica heideggeriana, Hans-Georg Gadamer foi aluno e

assistente de Heidegger e estudou a fundo a obra deste. Verdade e Mtodo, considerada sua obra capital,

um trabalho de grande impacto para a hermenutica filosfica. 10

Cf. HEIDEGGER, 2012, p. 591 11

Cf. Heidegger, 2012, p. 597. Heidegger dedica diversos textos ao desenvolvimento de uma crtica a esta

reduo do conceito de verdade, entendida tambm como predicativa, ou verdade como concordncia. A

forma como esta questo abordada em Ser e Tempo, no entanto, sofre uma mudana, em comparao

com o modo como Heidegger passa a abordar o tema nos escritos posteriores chamada virada [Kehre]

no seu pensamento, que ocorre em meados da dcada de 30. Discutiremos essa mudana adiante.

15

Para Heidegger, este processo se inicia com uma m interpretao do conceito grego

de . O , em seu sentido originrio, o enunciado, a possibilidade mesma do

discurso, da fala. Assim, se entende como enunciao, proposio, e proposio como

juzo, enquanto algo que possibilita a compreenso. O homem compreende. No se trata de

uma aptido externa ao homem enquanto tal, mas sim de algo que lhe essencial. Assim,

um elemento estrutural do Dasein enquanto ente capaz de compreender. Para

Heidegger, filosofia grega, em seus primrdios, j havia percebido o carter do em sua

relao com o conceito de verdade:

A enunciao verdadeira significa: que ela descobre o ente em si mesmo. Ela

enuncia, mostra, faz ver () o ente em seu ser-descoberto. O ser-

verdadeiro (verdade) da enunciao se deve entender como um ser-descobridor.

A verdade no tem, portanto, de modo algum a estrutura de uma concordncia

entre conhecer e objeto, no sentido de uma adequao de um ente (sujeito) a

outro (objeto). [...] O ser verdadeiro do , como o

no modo do : um fazer-ver o ente em sua no-ocultao (ser-

descoberto), tirando-o da ocultao. A que, nos lugares acima referidos,

equiparada por Aristteles a , , significa as coisas elas

mesmas, o que se mostra, o ente no como de seu ser-descoberto. E um acaso

que em um dos fragmentos de Herclito, entre as sentenas de doutrina filosfica

mais antigas a tratar expressamente do , transparea o fenmeno da

verdade que acaba de ser apresentado, no sentido do ser-descoberto (no-

ocultao)? [...] Pertence ao , portanto, a no-ocultao, a -. Sua

traduo pela palavra verdade e, antes de tudo, as determinaes conceituais

tericas dessa expresso encobrem o sentido do entendimento pr-filosfico que,

para os gregos, estava como-algo-que-se-entende-por-si-mesmo, no

fundamento do emprego terminolgico de (HEIDEGGER, 2012, p.

609).

Heidegger mostra, atravs do conceito de , a relao entre verdade e sentido do

ser. Afirmando no pretender desenvolver uma teoria do conhecimento, o autor evidencia a

centralidade do conceito de verdade em Ser e Tempo. O esquecimento do ser est diretamente

vinculado a uma reduo do conceito de verdade levado a termo pela metafsica tradicional.

Heidegger atribui isso a uma m compreenso escolstica do pensamento de Aristteles. A

filosofia da Antiguidade compreendia verdade como o descobrir o ente em si mesmo, como

ele , o desvelar do ente em sua realidade mais prpria. Trata-se daquilo que fundamenta a

possibilidade mesma do conhecimento enquanto tal. O enunciar um ser voltado para a

coisa sendo ela mesma (HEIDEGGER, 2012, p. 603). Ento, como se depreende da citao

acima, verdade neste sentido originrio .

No entanto, Heidegger explica que a tradio metafsica promove uma reduo do

sentido originrio de verdade. Identificando com juzo, a metafsica entende por

verdade a adequao entre o juzo que se faz de um determinado objeto (e o que se enuncia

acerca dele em uma proposio) e a natureza do prprio objeto, de fato. Esse modo de pensar

16

a natureza da verdade a arranca de seu plano ontolgico originrio, reduzindo-a a uma

considerao que se limita ao plano ntico da existncia. Para Heidegger, a metafsica no

atenta para a ideia de que a prpria possibilidade de enunciao acerca de algo no mundo s

possvel na medida em que h um vnculo originrio entre homem e ser. Nisto se origina o

maior dos impasses epistemolgicos da modernidade, a saber, a problemtica da

subjetividade, que a metafsica tenta contornar atravs de um realismo ingnuo12

. O conceito

de verdade enquanto resgataria o sentido ontolgico originrio de verdade, da qual o

entendimento da verdade no plano ntico dos entes e do cotidiano do homem seria

derivado. Heidegger assim explica, em sua conferncia Sobre a essncia do fundamento:

A caracterizao da verdade antepredicativa como intuio se insinua com

facilidade pelo fato de a verdade ntica, e aparentemente a verdade propriamente

dita, ser determinada como verdade proposicional, isto , como unio da

representao. O mais simples em face desta , ento, um puro representar [...].

Este representar tem, no h dvida, sua funo prpria para a objetivao do

ente, certamente, ento j sempre necessariamente revelado. A revelao ntica

mesma, porm, acontece num sentir-se situado em meio ao ente, marcado pela

disposio de humor, pela impulsividade e em comportamentos em face do ente

[...]. Contudo, mesmo estes comportamentos no seriam capazes de tornar

acessvel o ente em si mesmo, se sua ao reveladora no fosse antes sempre

iluminada e conduzida por uma compreenso do ser (constituio do ser: ser-que

e como-ser) do ente. Desvelamento do ser o que primeiramente possibilita o

grau de revelao do ente. Este desvelamento como verdade sobre o ser

chamado verdade ontolgica. [...] Lgos do n significa: o interpelar (lgein) do

ente enquanto ente, significa, porm, ao mesmo tempo, o horizonte (woraufhin)

em direo ao qual o ente interpelado (legmenon). Interpelar algo enquanto

algo no significa ainda necessariamente: compreender o assim interpelado em

sua essncia (HEIDEGGER, 1973, p. 299, grifo do autor).

A tese heideggeriana do esquecimento aponta para a origem do problema

epistemolgico moderno da ciso entre sujeito e objeto. Seguindo a fenomenologia

husserliana, Heidegger no admite o ser enquanto algo desconhecido, do qual o homem

capaz de apreender apenas os fenmenos. Ione Manzali de S explica que o sentido mais

autntico de fenmeno seria assim o do mostrar-se, que Heidegger diferencia entre o simples

12

Heidegger explica em diversos textos que os desenvolvimentos da lgica, principalmente a partir do

pensamento medieval, radicalizam esse processo. Para a lgica, a preocupao com a verdade se reduz

constatao da validade de enunciados. Ou seja, trata-se da verificao, no mundo ntico, da validade de

algo que se afirma acerca de qualquer objeto, nesse mesmo mundo ntico. Entretanto, ao descartar a

meditao acerca do fundamento ontolgico de homem e ser, a metafsica cai no erro de procurar o

fundamento de suas constataes, que deveria ser ontolgico, no mesmo plano ntico de verificao. A

consequncia disso uma espcie de ciso incontornvel entre o sujeito que enuncia e o objeto acerca do

qual se enuncia algo, como se o homem fosse de fato incapaz de conhecer as coisas em si, mas apenas

fenmenos destas, como a concluso mxima da epistemologia kantiana. A teoria-do-conhecimento

neokantiana do sculo XIX caracterizou de vrias maneiras essa definio-da-verdade como expresso de

um realismo ingnuo e metodicamente atrasado, declarando-a inconcilivel com uma formulao do

problema que tenha passado pela revoluo copernicana de Kant. Nisto se omite algo para que Brentano

j chamara a ateno, a saber, que Kant se atm tambm a este conceito de verdade, a ponto de sequer

discuti-lo (HEIDEGGER, 2012, p. 597). Acerca do problema da verdade e sua articulao em uma

questo de validades lgica, Cf. Ser e Tempo 33.

17

aparecer (erscheinen), e uma manifestao (erscheinung) (MANZALI DE S, 2010, p. 27).

Heidegger reconhece, entretanto, que tal manifestao no ocorre de forma imediata. Da que

a fenomenologia , em Ser e Tempo, o modo atravs do qual o homem atinge esse mostrar-se

que ao mesmo tempo mantm algo de si oculto, resistente ao esgotamento. Esse jogo do

mostrar-se do ser o que explica o carter dbio do conceito de enquanto uma

verdade que, ao mesmo tempo, revela e oculta a si mesma13

.

Como dito anteriormente, Heidegger declara que no pretende, com Ser e Tempo,

desenvolver uma epistemologia, mas evidenciar que esta tentativa, tal como a empreende a

metafsica ao longo de toda a sua histria, j falha em suas origens, primeiramente, por

privilegiar o conhecimento terico, em detrimento da prxis, desconsiderando o carter

determinante do mundo ftico para a construo do conhecimento; e em segundo lugar, por

no atentar para o vnculo essencial entre Dasein e ser, indispensvel para pensar a

apropriao da verdade e a capacidade do homem de compreender, intervir e transformar o

mundo.

Casanova expe o plano geral a que se dedica Heidegger atravs da elaborao de Ser

e Tempo e defende que todo o aparato terico levantado por Heidegger em vista da

recolocao da questo pelo sentido do ser analtica existencial, diferena ontolgica,

fenomenologia, hermenutica, compreenso e linguagem possui um vnculo interno com

preocupaes de Heidegger acerca do sentido do prprio mundo ftico. Ao empreender uma

anlise que evidencia as aporias s quais a metafsica tradicional conduz o pensamento

moderno, Heidegger pretende investigar, em ltima instncia, de que modo uma mudana na

postura do ser-a [Dasein] humano, perante si prprio e perante o mundo, torna possveis

mudanas neste mesmo mundo:

Sendo de modo singular, o ser-a transcende o campo de jogo sedimentado dos

em-virtude-de e da significncia cotidiana, e no concretiza mais o seu poder-

ser em virtude daquilo que o mundo prescreve como uma razo estruturante

dotada de sentido. O singular sempre vai aqui alm do mundo ftico

sedimentado, na medida em que projeta compreensivamente um campo

existencial no dedutvel dos elementos presentes nesse mundo. O projeto

compreensivo singular constri um campo existencial vindouro a partir de uma

rearticulao no instante da semntica sedimentada do presente com aquilo que

foi e continua sendo, isto , com os campos de sentido de ser articulados ntico-

ontologicamente com o ser-a. No momento em que isto se d, uma srie de

possibilidades ticas vem tona (CASANOVA, 2010, p. 157).

13

O tema da verdade como ser retomado mais frente, em sua relao com a virada [Kehre] no

pensamento de Heidegger.

18

As possibilidades ticas apontadas por Gadamer passam a ser vistas por Heidegger de

um modo diferente a partir da dcada de 30. Muitos so os motivos que conduzem Heidegger

ao abandono do projeto de Ser e Tempo que, como se sabe, uma obra inacabada. Segundo o

plano que a obra deveria seguir, enunciado por Heidegger no 8, o que conhecemos hoje de

Ser e Tempo se resume s duas primeiras sees da Primeira Parte. A terceira seo, Tempo e

Ser, e a Segunda Parte que trataria das linhas fundamentais de uma destruio

fenomenolgica da histria da ontologia pelo fio condutor da problemtica da temporalidade

jamais foram publicadas. No prximo captulo investigaremos os motivos que conduzem

Heidegger ao abandono de seu tratado e as implicaes desta deciso para seu pensamento

como um todo. A virada [Kehre] pela qual passa seu projeto filosfico em meados da dcada

de 1930 inclui consideraes que vo de uma anlise de cunho poltico a constataes acerca

da relao entre modernidade, niilismo, verdade e arte. A revelao da importncia que os

estudos acerca da arte adquirem na obra tardia de Heidegger o interesse ltimo da presente

investigao.

19

3. UMA MUDANA DE FOCO

3.1 KEHRE

Como ressaltamos no captulo anterior, Ser e Tempo apresenta a tentativa de elaborar

um projeto de destruio da metafsica. Heidegger entende que a metafsica deixa de lado

aquela que deveria ser sua preocupao primeira, a pergunta pelo sentido do ser. Apenas este

questionamento permitiria ao homem o conhecimento da verdade, o entendimento acerca do

que se mantm imutvel e uno, o fundamento do que h na natureza, razo de possibilidade de

todas as coisas mutveis e que no resistem fora do tempo. Esta tentativa, que visa resgatar

os modos mais autnticos de apropriao da verdade pelo Dasein, s poderia se realizar,

contudo, a partir da investigao de suas estruturas existenciais, seu modo de se colocar no

mundo, sua aptido para o conhecimento e o modo como se relaciona com outros entes, com

seus semelhantes e consigo mesmo, enquanto ente consciente da prpria fragilidade e

finitude. Heidegger investiga a estrutura existencial do Dasein para, em seguida, determinar

os modos a partir dos quais este mesmo ente pode levantar uma autntica questo acerca do

sentido do ser.

Analisando o plano desenvolvido por Heidegger, Ernildo Stein descreve que Ser e

Tempo possui um desenvolvimento circular14

. Ao tentar elaborar uma analtica do ser do

prprio homem, certa compreenso do ser j exigida de antemo. conhecido que, ao longo

da anlise, essa exigncia cumprida pelo homem, na medida em que fica comprovado que

o Dasein um ente que possui uma prvia compreenso de ser, que isso faz parte de sua

estrutura, enquanto ser apto a questionar. Mas essa mesma constatao j exige um

conhecimento prvio da estrutura originria do Dasein, algo que tambm pressuposto, mas

que a analtica se prope a evidenciar. O mtodo fenomenolgico de investigao,

apresentado por Heidegger no 7 de sua obra capital, reconhecido como provisrio, mas

apenas porque Heidegger atinge sua fundamentao ao final do processo. Fazendo uma

referncia famosa metfora da escada, presente no Tractatus de Wittgenstein, Stein explica

que:

14

Cf. STEIN, Ernildo. Introduo ao mtodo fenomenolgico heideggeriano. In. HEIDEGGER, Sobre a

essncia do Fundamento, 1973.

20

O filsofo prepara provisoriamente seu mtodo para penetrar na analtica

existencial. Uma vez realizada parte da anlise, isto , garantida a situao

hermenutica que permite determinar o sentido do ser do ser-a (Dasein), o

filsofo pra. Descobre que o mtodo se determina a partir da coisa mesma. A

escada para penetrar nas estruturas existenciais do ser-a manejada pelo prprio

ser-a e no pode ser preparada fora para depois se penetrar no objeto. No h

propriamente escada que sirva para penetrar no seu sistema. A escada j est

implicada naquilo para que deveria conduzir. O objeto, o ser-a, traz consigo a

escada. H uma relao circular. Somente subimos para dentro das estruturas do

ser-a porque j nos movemos nelas. apenas uma questo de explicitao. A

anlise do ser-a est suspensa no ar. O ser-a se levanta pelos cabelos. [...] Este

resumo do que foi, at ento, atingido, mostra que a antecipao realizada pelo

filsofo, ao analisar a analtica da cotidianeidade, realmente conduziu a um

ponto em que o mtodo recebe, na verdade, sua transparncia a partir de dentro

da prpria marcha da analtica (STEIN, 1973, p. 290).

Stein compreende que essa pressuposio exigida pela natureza mesma daquilo que

se investiga: na tentativa de alcanar o ser a partir das estruturas que constituem o Dasein,

Heidegger se v sob a obrigao de pressupor o resultado para dar partida no mtodo de

investigao. S a descoberta da tendncia para o encobrimento e a fuga prpria ao ser-a

daria razo ao mtodo, antes apenas esboado (STEIN, 1973, p. 291). Aps fundamentar os

pressupostos que levanta em sua obra, Heidegger teria percebido que a continuidade de seu

projeto exigia uma radicalizao. O caminho inverso se faz necessrio, na medida em que,

aps a elucidao da estrutura do Dasein enquanto ente capaz de pensar verdadeiramente o

ser que Heidegger considera percorrido o caminho para a investigao do ser enquanto tal.

Nas palavras de Heidegger, na conferncia Sobre a Essncia da Verdade (1943):

A questo decisiva (Ser e Tempo, 1927) do sentido, quer dizer, do mbito do

projeto, quer dizer, da abertura, ou ainda, da verdade do ser e no apenas do ente,

fica propositalmente no-desenvolvida. Aparentemente o pensamento se

movimenta no caminho da metafsica e, contudo, realiza, em seus passos

decisivos [...] uma revoluo na interrogao, revoluo que j pertence

superao da metafsica. O pensamento ensaiado na conferncia atinge sua

plenitude na experincia decisiva de que somente a partir do ser-a, no qual o

homem pode penetrar, se prepara, para o homem historial, uma proximidade com

a verdade do ser. Qualquer espcie de antropologia e toda subjetividade do

homem enquanto sujeito no apenas, como j acontece em Ser e Tempo,

abandonada e procurada a verdade do ser como fundamento de uma nova

posio historial, mas o curso da exposio se prepara para pensar a partir deste

novo fundamento (HEIDEGGER, 1973, p. 343).

A virada [Kehre] no pensamento de Heidegger analisada por Stein como a

mudana de foco j prevista por Heidegger na continuidade de sua investigao: trata-se de,

uma vez concluda a investigao do Dasein, comear, a partir deste, a investigao acerca do

sentido do ser. Essa mudana est relacionada, porm, com a considerao acerca da verdade,

o que acarreta problemas na tentativa de saltar do Dasein para a anlise do ser enquanto tal.

Ione Manzali tambm compreende que a marca dessa virada a mudana no pensamento de

Heidegger acerca da compreenso da verdade que abandona o foco na analtica da

21

existncia e passa a investigar um pensamento de sentido (MANZALI, 2010, p. 47).

Manzali explica que o elemento decisivo na Kehre heideggeriana uma nova forma de

tratamento da questo do ser, para qual uma nova concepo de verdade a chave15

.

Heidegger explica, nessa longa passagem, que abandona aos poucos seu projeto de juventude

e as tematizaes acerca do homem enquanto Dasein, na medida em que deixa de pensar o

sentido do ser e passa a investigar a verdade do ser.

Em Ser e Tempo, o sentido tem uma significao totalmente precisa, mesmo que

ela hoje tenha se tornado insuficiente. Que quer dizer sentido do ser? Isso se

entende a partir da regio do projeto, desdobrada pela compreenso do ser. A

compreenso, por sua vez, deve ser concebida no sentido originrio de estar-

diante de, manter-se altura do que vem ao nosso encontro, ser forte o suficiente

para aguentar. Sentido deve ser entendido a partir do projeto que se explica

pela compreenso. O inconveniente desse modo de se formular a pergunta

[pelo ser] est no fato de deixar demasiadamente aberta a possibilidade de

compreender o projeto como uma performance humana; em conformidade

com isso, o projeto pode ser tomado por uma estrutura da subjetividade o que

faz Sartre, apoiando-se em Descartes (na obra do qual a aletheia no se apresenta

como aletheia). A fim de evitar esse engano e de preservar ao projeto a

significao na qual ele foi tomado (a de abertura franqueadora), o pensamento

substituiu, depois de Ser e Tempo, a expresso sentido do ser por verdade do

ser. [...] Na medida em que abandona a palavra sentido do ser a favor da

verdade do ser, o pensamento proveniente de Ser e Tempo enfatiza doravante

mais a abertura do ser ele prprio do que a abertura do Dasein em vista da

abertura do ser. isso que significa a virada, na qual o pensamento se dirige

de modo cada vez mais decidido para o ser enquanto ser (HEIDEGGER,

Seminrio em Le Thor. In: LOPARIC, Zeljko. Heidegger, 2004, p. 74).

Aqui fica claro que o projeto principal de Heidegger se mantm. Ocorre apenas que o

modo como este projeto deve ser levado a cabo precisa sofrer uma mudana, para que possa

continuar a responder pela sua demanda. Casanova explica a Kehre com base nesse

posicionamento, e estuda as consequncias dessa virada para a forma como Heidegger passar

a priorizar a histria do ser:

O abandono da iluso da possibilidade de uma conduo da histria por parte do

pensamento a partir da apreenso do sentido histrico s acessvel ao

pensamento, isto , o abandono da presuno de poder guiar espiritualmente o

mundo ntico a partir da compreenso de sua verdade significou

concomitantemente uma intensificao da ateno para com o a em jogo, para

com o mundo do ser-a humano atual. Assim, o que passa a estar em questo

para Heidegger nesse segundo momento [...] a prpria histria do ser e a

determinao dessa histria no mundo ftico a partir do qual Heidegger

desenvolve o projeto de sua filosofia. Niilismo e histria do ser so agora os

temas centrais do pensamento heideggeriano (CASANOVA, 2010, p. 174).

Trata-se, portanto, do abandono da concepo de que o sentido do ser se deixaria

atingir a partir da investigao dos campos de sentido abertos pelo Dasein em sua lida

15

Cf. MANZALI, Ione. Die Kehre, a viragem de Heidegger. In: Da verdade como abertura existencial

ao acontecimento potico da verdade, 2010, p. 48.

22

cotidiana e articulados ntico-ontologicamente16

por este mesmo ente. A verdade do ser, a

partir dos anos 30, ser entendida no como uma abertura articulada particularmente pelo

Dasein, enquanto ente singular, mas como um acontecimento possvel devido ao carter

mesmo da verdade em sua dinmica de desvelamento do real. Zeljko Loparic resume a

mudana de percurso que ocorre na filosofia heideggeriana:

Em outras palavras, ele [Heidegger] constata o fracasso da tentativa de

desconstruir o sentido do ser que prevalece na atualidade por meio da ontologia

por meio da ontologia fundamental, exposta em Ser e Tempo, constatao que o

obriga a procurar novos horizontes para essa pergunta. Essa crise culminou, em

1936, na virada decisiva do seu pensamento, isto , o abandono da formulao

existencial-ontolgica da pergunta pelo ser e a sua substituio pela formulao

acontecencial-ontolgica: acontecencial, visto que repousa sobre consideraes

relativas a modificaes do sentido do ser ao longo do acontecer do ser

depositado nas obras de grande filsofos do Ocidente; ontolgica, porque diz

respeito ao ser (LOPARIC, 2004, p. 53).

O esquecimento do ser e a questo acerca da verdade continuam sendo o motor da

investigao de Heidegger. Entretanto, tal como ressaltaro tambm Casanova e Loparic, as

anlises sobre a modernidade se tornam centrais em seus escritos de maturidade, e trataro da

questo da tcnica e do destino do homem, revelando preocupaes de cunho histrico e

poltico que no estavam presentes de modo to evidente na obra do jovem Heidegger.

Vimos que o pensamento metafsico tradicional atravessa um processo especfico que

culmina com o estabelecimento de uma ciso entre sujeito e objeto. Essa ciso apontada por

Heidegger como caracterstica fundamental de um modo de racionalidade tpico da

modernidade. Em resumo, pode-se afirmar que o pressuposto terico deste modo de

racionalidade o constante tratamento do objeto que se diz conhecido, ou que se visa

conhecer, como algo disponvel, dado ao conhecimento. Essa postura se fundamenta na

prescrio de uma distncia entre o sujeito do conhecimento e o objeto a ser conhecido.

Concebe-se uma pretensa neutralidade do sujeito em face ao objeto, que, aliada aplicao do

mtodo mais adequado para o caso, garante que nenhuma experincia particular do sujeito

ser capaz de contaminar o conhecimento acertado acerca do outro, do objeto em questo.

Esta a causa do que Heidegger anuncia, na conferncia O Fim da Filosofia e Tarefa

do Pensamento, como o acabamento legtimo da filosofia (HEIDEGGER, 1973, p. 270). O

fim da filosofia , para Heidegger, o acabamento desta enquanto uma metafsica cujo

principal resultado foi o desenvolvimento de uma forma de racionalidade que se tornou ponto

16

Cf. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger, 2010, p. 157.

23

de partida para processos de especializao do conhecimento e reduo do acesso verdade a

uma nica via, a do mtodo.

3.2 TCNICA E MODERNIDADE

A preocupao heideggeriana com a exigncia de se repensar o papel da filosofia, na

medida em que esta se deixa guiar especificamente na modernidade pelos preceitos e

mtodos das cincias da natureza, reduzindo o mbito de suas reflexes ao conjunto de

normas e regras que perfazem um conhecimento instrumental, tratado por Heidegger na

famosa conferncia A Questo da Tcnica (1953).

De modo geral, a tcnica a capacidade humana de criar aquilo que no se produz por

conta prpria. Nesse sentido mais geral, a tcnica indispensvel para qualquer cincia.

Trata-se, explica Heidegger, da atividade de retirar do objeto aquilo que neste estava oculto.

o trabalho realizado, por exemplo, por quem constri uma casa ou um navio.

No entanto, tcnica, enquanto , em seu sentido originrio, derivada do conceito

grego de . Este vnculo remonta a Aristteles, que entende como um fazer

humano, um pro-duzir. Heidegger ressalta que fazer se diz em grego com a palavra

(HEIDEGGER, 2008, p. 166). Ao contrrio do que se depreende por tcnica no

mundo moderno, enquanto a habilidade para executar uma atividade especfica, que acaba por

se confundir com a execuo da atividade mesma, uma espcie de aptido prpria do

homem. Assim, vinculada ao conceito de , o conceito originrio de guarda um

vnculo, caro a Heidegger, com a essncia da verdade:

A pro-duo conduz do encobrimento para o desencobrimento. S se d no

sentido prprio de uma pro-duo, enquanto e na medida em que alguma coisa

encoberta chega ao desencobrir-se. [...] Pois no desencobrimento que se funda

toda a pro-duo. Esta recolhe em si, atravessa e rege os quatro modos de deixar-

viger a causalidade. esfera da causalidade pertencem meio e fim, pertence a

instrumentalidade. Esta vale como trao fundamental da tcnica. Se

questionarmos, pois, passo a passo, o que propriamente a tcnica conceituada,

como meio, chegamos ao desencobrimento. Nele repousa a possibilidade de toda

elaborao produtiva. A tcnica no , portanto, um simples meio. A tcnica

uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de ns

todo um outro mbito para a essncia da tcnica. Trata-se do mbito do

desencobrimento, isto , da verdade. [...] A tcnica vige e vigora no mbito onde

se d desencobrimento e des-encobrimento, onde acontece , verdade.

(HEIDEGGER, 2008, p. 17).

24

Marco Aurlio Werle enfatiza a essncia da tcnica moderna enquanto uma atitude

humana de imposio e disponibilizao da natureza. O homem acaba por perder o contato

com o real na medida mesma em que pensa se aproximar e se inserir neste de modo mais

radical:

Embora dependa de um destaque dado ao fazer, a tcnica moderna no pode

ser pensada como um mero fazer que se esgota no domnio da ao humana, mas

remete a uma essncia mais ampla, a uma atitude que antecede a operao

tcnica, que justamente o que designa a armao, o Ge-stell, como a reunio

do pr desafiante da realidade. Ainda que o pr da armao se assemelhe

poiesis como modo de desabrigar e inventar o ente, ele substancialmente

diferente dela, pois, no interior da armao, o homem no encontra mais a sua

essncia. Por meio da armao a modernidade perdeu o controle do princpio da

subjetividade, se que algum dia se pode considerar que a transformao do

homem em sujeito lhe outorgou a posio de controlador. Na tcnica moderna

as imposies so exteriores coisa. A tcnica transforma todas as coisas em

instrumentos, mas ela mesma em sua essncia no um meio, e sim uma atitude

humana decidida na poca moderna. A tcnica um perigo, dir Heidegger, j

que implica a inteno de ordenar o mundo de uma nica maneira, de explorar a

natureza tendo em vista uma nica via e, com isso, regular a vida dos homens

conforme essa via. A essncia da tcnica que estende-se para o campo das

atitudes humanas acarreta um comportamento, principalmente de separao da

natureza (WERLE, 2011, p. 101).

Como apontado por Werle, Heidegger percebe que o produzir da tcnica, na

modernidade, possui um carter que a difere imensamente daquele ressaltado por Aristteles.

A tcnica moderna no a prtica que permite a revelao de um ente como tal; tambm no

uma pro-duo, nem em sentido abrangente, nem no sentido originrio de . Na

modernidade, a tcnica uma dis-posio, no sentido de uma explorao. O objetivo da

tcnica moderna dis-por da natureza, embotando seu desvelamento, precisamente na

medida em que impe um modo de desvelamento pr-determinado e nico. O problema no

se encontra, portanto, no fazer tcnico e seus mtodos, ou no fazer cientfico em geral, mas na

racionalidade que, na modernidade, no apenas determina este fazer tcnico, mas o expande

para todos os campos de ao e conhecimento do homem.

Heidegger caracteriza a modernidade como a poca do desencobrimento e atribui a

radicalizao desse aspecto metafsica moderna e seu primado da subjetividade. A essncia

da tcnica moderna a consequncia mais radical da metafsica na modernidade. No se trata

nem de um fazer do homem com vistas a um fim, nem de um saber do homem que permitiria

uma relao mais ntima com o mundo em este que vive, mas de um posicionamento

impositivo perante a natureza. Esta posio se resume na afirmao heideggeriana de que a

essncia da tcnica moderna pe o homem a caminho do desencobrimento que sempre conduz

o real, de maneira mais ou menos perceptvel, dis-ponibilidade (HEIDEGGER, 2008, p.

25

27). Esse primado do disponvel a marca da modernidade e afeta diretamente o modo como

o homem compreende a verdade. Qualquer forma de conhecimento da natureza que no se

valha, de antemo, da estrutura objetivadora tpica da racionalidade tcnica, corre o risco de

ser simplesmente invalidada como forma de conhecimento:

A cincia pe o real. E o dis-pe a pro-por-se num conjunto de operaes e

processamentos, isto , numa sequncia de causas aduzidas que se podem prever.

Desta maneira, o real pode ser perseguido e tornar-se perseguido em suas

consequncias. como se assegura do real em sua objetidade. Desta decorrem

domnios de objetos que o tratamento cientfico pode, ento, processar vontade.

[...] Com isto, todo o real se transforma, j de antemo, numa variedade de

objetos para o asseguramento processador das pesquisas cientficas

(HEIDEGGER, 2008, p. 48).

Heidegger passa a investigar, cada vez mais a fundo, as consequncias prticas do

advento de uma racionalidade que tende a considerar a via da disponibilizao do objeto

como a nica a conceder ao homem um conhecimento de fato autntico, enquanto deste se

pode dizer que seja racional17

. A tcnica moderna difere significativamente do fazer

caracterstico da aristotlica. O fazer humano que se guia pelo rigor cientfico que tem

se tornado a norma para o fazer em geral, na atualidade tem suas razes na epistemologia

moderna, que atestou a ciso sujeito-objeto. Portanto, para Heidegger, est no pensamento

filosfico a origem de uma forma de conhecimento que impe limites prpria filosofia e

impede que cincia reconhea seus limites. Esta ultrapassou o recorte epistemolgico que

demarcaria seu mbito de ao para tornar-se a medida mais elevada do saber humano.

Heidegger entende, como passaremos a investigar, que o acontecer da verdade em seu

desencobrimento possui algo de prprio, que embotado pela nsia de esgotamento que

fundamenta, em suas diversas manifestaes, a essncia da tcnica moderna. Esse mpeto de

tornar o objeto disponvel, destri toda viso do que o desencobrimento faz acontecer de

prprio e, assim, em princpio, pe em perigo qualquer relacionamento com a essncia da

verdade (HEIDEGGER, 2008, p. 35). O conhecimento da verdade do ser no se esgota

17

Heidegger no desqualifica o rigor cientfico como modo de conhecimento, como meio para a

apreenso da verdade. A pretenso de Heidegger no , jamais, empreender um combate cincia e seus

mtodos, mas sim evidenciar os perigos da reduo da filosofia cincia, quando a primeira submete seus

conhecimentos a um rigor que delimita e diminui o campo do saber filosfico. A busca pelo esgotamento

do objeto em sua manifestao perfaz o mpeto moderno de dominao, no qual o objetivo do homem

frente natureza no somente conhecer, mas criar mecanismos para se assegurar do objeto conhecido.

Isso est, para Heidegger, vinculado ao mpeto moderno por controle dos fenmenos naturais, sociais e

polticos. O sujeito da tcnica moderna conhece da natureza apenas o que pode ser submetido a leis, mas

cr conhec-la em sua totalidade. As leis conferem plausibilidade, calculabilidade e previsibilidade aos

fenmenos, permitindo que o homem extraia da natureza todos os bens dos quais julga necessitar e

neutralize as manifestaes que lhe so desagradveis ou desnecessrias. Quanto relao entre filosofia

e conhecimento cientfico, Cf. HEIDEGGER, Cincia e Pensamento de Sentido. Ver tambm

HEIDEGGER, Filosofia e Cincia In: Introduo Filosofia.

26

atravs da racionalidade categorial e conceitual em que se resumiu todo o saber moderno:

mesmo a relao sujeito-objeto de que se vale o fazer cientfico derivada de uma relao

homem-mundo anterior tcnica. aqui que o conceito de verdade como se torna

fundamental: verdade propriamente o desvelar do ente naquilo que ele tem de prprio, no

que este de fato . As limitaes com as quais o homem se depara em todo processo que visa

um conhecimento no so deficincias do mtodo, mas se originam no carter mesmo da

verdade, cujo esgotamento absoluto tal qual pretendem as cincias da natureza

impossvel18

.

O representar do real em nico modo particular de desvelamento restringe a vigncia

da verdade do ser. A preocupao de Heidegger em deixar que as coisas mesmas sejam a

medida e o parmetro do conhecimento algo que atinge o que se considera o carter mais

poltico do seu pensamento. Seus escritos de maturidade passam a, cada vez mais, expor a

relevncia da histria do ser e das reflexes acerca da modernidade. O subjetivismo moderno

e o alastrar da tcnica so duas faces de uma mesma moeda, qual seja, o embotamento e

desgaste da filosofia enquanto responsvel pela tarefa mxima de pensar o destino do

homem19

.

18

neste momento que se torna marcante a diferena entre o conceito de verdade proposto por Heidegger

em Ser e Tempo e este mesmo conceito em obras mais tardias. Heidegger deixa de considerar a verdade

como algo que pertence constituio ontolgica do Dasein (Cf. HEIDEGGER, 2008, p. 168) e passa a

analisar a essncia mesma da verdade enquanto jogo de velar-desvelar que no depende, em absoluto, das

consideraes e imposies do homem, pois se trata de algo relativo ao ser enquanto tal. As implicncias

ticas e polticas dessa mudana desembocam nas reflexes acerca da arte. 19

Zeljko Loparic (2004, p. 51) discorre acerca da influncia exercida pela leitura de Ernst Jnger no

pensamento heideggeriano, resumindo aquela que a verdadeira preocupao de Heidegger com respeito

tcnica: O cotidiano analisado em Ser e Tempo o do uso dos objetos, cujo modelo o trabalho

artesanal. No h nenhuma meno ao trabalho industrial, no sentido moderno, tal como explicitado, por

exemplo, por Marx. A partir de 1930, esse panorama muda e Heidegger comea a perceber que o

cotidiano de nossa poca dominado pela tcnica, do modo como descrito por Ernst Jnger no artigo A

mobilizao total, de 1930, e em Der Arbeiter [O trabalhador], publicado em 1932, no horizonte da

metafsica nietzschiana da vontade de poder. Depois de ler Jnger, Heidegger passa a ver o que h na

poca de hoje a partir da realidade da vontade. De que realidade se trata? Da realidade que consiste na

mobilizao total do ente no seu todo, decorrente de um processo cujo expoente no o arteso, mas a

figura do trabalhador. O trabalho, agora, o nome para o ser. De onde se determina a essncia do

trabalho? Da tcnica: a tcnica o modo como a figura do trabalhador mobiliza o mundo. Na poca

atual, o trabalho alcana status metafsico de objetificao incondicional de tudo o que est presente e

que se essncia como vontade, mais precisamente, como vontade de vontade. A objetificao tcnica do

ente no seu todo, fundada na vontade de poder, fonte de perigos. Um deles a fabricao dos humanos.

s vezes parece, diz Heidegger em seu comentrio sobre a Fsica de Aristteles, de 1939, que a

humanidade da poca moderna se apressa em atingir o seguinte objetivo: que o homem se produza

tecnicamente a si mesmo. Caso se consiga tal coisa, o homem ter feito voar pelos ares a si mesmo, isto

, a sua essncia como subjetividade; com isso, o que simplesmente sem sentido, passar a valer como o

nico sentido, e a manuteno dessa validade aparecer como a dominao humana sobre o globo

terrestre. Dessa forma, a subjetividade no ser ultrapassada, mas apenas tranquilizada no eterno

progresso, numa constncia moda chinesa.

27

O perigo mximo para o qual alerta Heidegger o de a tcnica se tornar o nico modo

de apropriao da verdade, aliado ao fim da filosofia em sua capacidade questionadora, nica

forma de acesso do homem verdade, quilo que realmente tem implicncia em sua vida e

seu destino. Assim, a questo acerca da verdade do ser adquire uma dimenso histrica,

essencialmente vinculada prxis. Na conferncia O Fim da Filosofia e a Tarefa do

Pensamento (1964) Heidegger resume de modo decisivo o entrelaamento entre metafsica,

tcnica, o fim da filosofia e as consequncias disso para o pensamento da prtica, no mbito

da histria e do destino do homem:

Na poca presente a filosofia chega ao seu estgio terminal. Ela encontrou seu

lugar no carter cientfico com que a humanidade se realiza na praxis social. O

carter cientfico dessa cientificidade de natureza ciberntica, quer dizer,

tcnica. Provavelmente desaparecer a necessidade de se questionar a tcnica

moderna, na mesma medida em que mais decisivamente a tcnica marcar e

orientar todas as manifestaes no Planeta e o posto que o homem nele ocupa.

[...] Aquilo que a filosofia, no transcurso de sua histria, tentou em etapas, e

mesmo nestas de maneira insuficiente, isto , expor as ontologias das diversas

regies do ente (natureza, histria, direito, arte), as cincias o assumem como

tarefa sua. [...] O fim da filosofia revela-se como o triunfo do equipamento

controlvel de um mundo tcnico-cientfico e da ordem social que lhe

corresponde (HEIDEGGER, 1973, p. 271).

Heidegger passa, ento, a se ocupar com os modos atravs dos quais possvel

estabelecer uma resistncia contra o nivelamento compreensivo operado pela tcnica. nessa

conjuntura, e consciente das patologias da modernidade, cuja origem reside no pensamento

ocidental-europeu, que Heidegger se interessa pelo potencial da obra de arte como elemento

capaz de oferecer tal resistncia. A relevncia do tema da arte nas obras do assim chamado

segundo Heidegger ser o tema do prximo captulo.

28

4. ARTE

4.1 UMA ANLISE DE A ORIGEM DA OBRA DE ARTE

Em A poca das Imagens do Mundo (1938) Heidegger defende que a metafsica

funda uma poca, na medida em que lhe concede o fundamento da sua configurao essencial

atravs de uma interpretao especfica do ente e de uma acepo especfica de verdade

(HEIDEGGER, p. 01). Nesta curta passagem possvel atentar para um entrelaamento

peculiar de temas. A metafsica atinge sua forma mais radical com a valorizao de uma nica

forma de apreenso da realidade, qual seja, aquela proporcionada pela tcnica e seu mtodo

pautado pelo reducionismo, controle e domnio do real. Neste ensaio, Heidegger explica que a

centralidade conferida ao sujeito moderno consequncia da metafsica iniciada com o

pensamento platnico, desenvolvida por Descartes e tornada radical por Kant opera uma

antropologizao, cuja base uma extrema objetivao da natureza. O consequente impulso

por dominao, sustentado pelo mtodo de conhecimento advindo das cincias naturais, e o

niilismo que a se origina, se torna marca caracterstica desse momento histrico que a

modernidade. Heidegger explica que:

A cincia moderna se fundamenta e ao mesmo tempo se individualiza nos

projetos de esferas de objetos determinadas. Estes projetos se desdobram nos

mtodos correspondentes e assegurados atravs do rigor. O mtodo respectivo se

instala na explorao organizada. Pesquisa e rigor, mtodo e explorao

organizada se exigem reciprocamente, so a essncia da cincia moderna,

transformam-na em pesquisa. Refletimos sobre a essncia da cincia moderna

para reconhecer o seu fundamento metafsico. Que concepo do ente e que

conceito de verdade servem de base para a transformao da cincia em

pesquisa? [...] A pesquisa dispe do ente, que pode ser computado de antemo no

seu curso futuro ou contabilizado como algo passado. No cmputo prvio, a

natureza disposta [gestellt]; no cmputo retrospectivo, a histria igualmente

disposta. A natureza e a histria se transformam em objeto de uma representao

explicativa. [...] S , ou seja, reconhecido como existente, o que, desta forma,

transforma-se em objeto. S existe cincia sob a forma da pesquisa quando o ser

dos entes buscado em tal objetividade. Esta objetificao do ente se consuma

em um re-presentar [Vor-stellen] que visa trazer cada ente diante de si mesmo de

tal forma que o homem calculador possa se assegurar do ente, isto , ter certeza

dele. Portanto, s existe cincia na forma da pesquisa quando, e s quando, a

verdade se transforma em certeza da representao (HEIDEGGER, p. 06).

importante acrescentar que em uma decisiva passagem do j citado ensaio sobre a

essncia da tcnica Heidegger revela sua preocupao com a possibilidade de se instalar por

toda a parte a fria da tcnica at que, um belo dia, no meio de tanta tcnica, a essncia da

tcnica venha a vigorar na apropriao da verdade (HEIDEGGER, 2008, p. 37).

29

Em um trecho imediatamente anterior a essa passagem, e no por acaso, Heidegger se

pergunta pela possibilidade de instaurao da essncia da arte20

. Escrita em 1935, mas

publicada apenas em 1950, A Origem da Obra de Arte considerado o escrito mais

fundamental de Heidegger sobre o tema.

Porm, para compreendermos melhor a proposta de Heidegger com esta conferncia,

faremos um desvio, para analisarmos um ensaio posterior, que data de 1965, intitulado A

Coisa. Heidegger se refere, neste ensaio, mesma ideia do impulso da tcnica moderna por

tornar o ente disponvel, ao falar da modernidade como uma poca de supresso apressada de

todo distanciamento (HEIDEGGER, 2008, p. 143). Neste escrito, Heidegger aponta para a

existncia de um modo mais originrio de contato do homem com os entes sua volta,

anterior ao possibilitado pela tcnica. J em Ser e tempo Heidegger distinguia o ser

simplesmente dado e disponvel [Vorhandenheit], modo como, para Heidegger, este tomado

pela cincia, e a manualidade [Zuhandenheit], ou seja, o modo como este mesmo objeto se

insere no cotidiano do homem, ao ser utilizado para algum fim, em um modo de mero uso, no

qual o homem no conceitua ou teoriza acerca do objeto, pois o toma sem questionamento.

O modo de contato mais comum do homem com os objetos ao seu redor , para

Heidegger, aquele que antecede todo o raciocnio e teorizao, que se antepe ao conhecer

terico, dado que ocorre justamente nessa relao de mero uso. O primeiro modo de contato

do homem com o mundo circundante pr-reflexivo, ocorrendo em uma esfera anterior a

qualquer raciocinar teorizante. O objeto, inserido nesse mbito do til, do cotidiano, o que

Heidegger aponta como o que se convencionou chamar de coisa, objeto da lida cotidiana.

Benedito Nunes assim elabora o que seria, para Heidegger, este contato inicial do homem

com um objeto:

Nossa primeira relao com o que nos cerca no cognoscitiva, mas de lida, de

trato, de manipulao: uma relao instrumental de acesso aos entes pela qual

nos servem para isto ou para aquilo, cada qual sendo a serventia que prestam, o

uso que fornecem. o para qu do utenslio, a sua disponibilidade como ente

20

A necessidade da apresentao desenvolvida at aqui se explica na medida em que o impacto da

questo acerca da obra de arte somente se permite apreender se considerarmos a multiplicidade temtica

da obra tardia de Heidegger como um todo, levando em conta que todas as questes paralelas ao projeto

principal de crtica metafsica se sobredeterminam, confluindo em uma tese que envolve o pensamento

acerca do destino do homem, niilismo, histria, verdade, tcnica e arte. notvel, sobretudo, que a

prpria escrita de Heidegger se torna mais enigmtica e potica com o passar do tempo, evidenciando

que mesmo os conceitos e termos mantidos ao longo da tradio filosfica e, com isso, a tradicional

forma expositiva que da deriva so algo que se faz necessrio superar, revelando o modo como a

mudana de contedo de seu projeto acaba por exigir, consequentemente, graduais e marcantes

transformaes em sua forma de apresentao.

30

mo (Zuhande) numa experincia ante-predicativa, envolvente, de preocupao

(NUNES, 2004, p. 16).

Em seu modo de uso, o objeto no causa qualquer estranhamento. Para Heidegger, isso

significa que, cumprindo sua funo de estar em uso, o ente no revela qualquer abertura de

seu ser. Esta familiaridade embota, j de incio, o potencial do prprio objeto de vir ao

encontro do homem, pois no permite que se ultrapasse o modo de uso. Assim, a designao

de algo como coisa qualifica o ente como algo totalmente disponvel, que s adquire sentido

no momento em que dela o sujeito se utiliza, de forma intermediria, para atingir um fim

outro que no se relaciona diretamente com o objeto utilizado. O objeto dotado de um

carter dificilmente contornvel, meramente disponvel ou utensiliar21

.

O jarro uma coisa, e [tambm] a fonte no meio do caminho. Mas como fica

com o leite no jarro e a gua na fonte? Tambm esses so coisas, se as nuvens no

cu e o cardo sobre o campo, se a folha ao vento outonal e a ave de rapina sobre

a floresta merecem chamar-se coisas. Tudo isso tem de ser de fato nomeado uma

coisa, se recobrimos com o nome de coisa at mesmo o que a si mesmo no se

mostra, quer dizer, o que no aparece como os acima elencados. Uma tal coisa

que no aparece ela mesma, a saber, uma coisa em si, , segundo Kant, o todo

do mundo; uma tal coisa at o prprio Deus. Coisas em si e coisas que

aparecem, todo ente que em geral , chama-se, na linguagem da filosofia, uma

coisa (HEIDEGGER, 2007, p.08).

Heidegger inicia o ensaio A Coisa com uma explicao do que significa aproximao

e distanciamento na relao do homem com os entes no mundo circundante. O homem

moderno supera as distncias no espao com facilidade e rapidez, de tal forma que distncias

que levavam, no passado, muito tempo para serem percorridas, so agora superadas em

poucas horas. No entanto, a supresso apressada de todo o distanciamento no traz

proximidade. Proximidade no pouca distncia (HEIDEGGER, 2008, p. 143);

proximidade e distncia no se referem ao deslocamento no espao, mas ao modo de ser do

homem, em relao aos entes que o cercam.

Para Heidegger, se funda na proximidade o que tradicionalmente se convencionou

chamar de coisa. A concepo tradicional atribui o nome coisa ao que est prximo, no

21

Nesse ensaio se torna evidente que os modos de abertura dos entes para o homem so classificados a

partir de uma perspectiva relacional. Essa uma noo cara Heidegger j se depreende da proposta de

Ser e Tempo, que pretende atingir o sentido do ser a partir de uma anlise da capacidade do homem para

conhecer e compreender, inserido na temporalidade e facticidade da sua existncia pois parte do

princpio de que a estrutura objetivante tpica da tcnica o elemento responsvel por embotar o

desvelamento do ser naquilo que ele realmente . Heidegger insistir, j em Ser e Tempo, que

conhecimento e verdade no so elementos puramente do objeto enquanto tal, nem da comparao entre

aquilo que se afirma do objeto e o que se pode conferir no mesmo objeto (estrutura da verdade

enquanto adequao), mas parte do modo como este mesmo ente se desvela para o homem, que se

mantm na escuta deste desvelo. Essa noo ser discutida mais adiante, ao falarmos da prioridade

conferida por Heidegger obra de arte.

31

sentido de permanecer no mbito do que circunda o homem, entes com os quais este lida

diariamente, dos quais fala, nos quais pensa e com os quais convive; que o homem v, ouve e

toca.

Em interpretao semelhante, na metafsica tradicional se convencionou chamar essa

coisa de objeto. O distanciamento, como modo de ser, permite que os entes se tornem

acessveis ao homem. Da que o homem julga se aproximar dos objetos a partir do

distanciamento que promove destes a pretensa neutralidade do conhecimento objetivante.

a tradicional nomenclatura que promove a ciso entre objeto e sujeito, entre ente

cognoscente e ente cognoscvel. Heidegger afirma que, por este vis, a coisa nunca foi

pensada pelo homem como coisa, embora lide com esta, a use e explique, e at reflita a

respeito.

Para o pensamento moderno, na proximidade que est a coisa e na proximidade

que o conhecimento verdadeiro ocorre. o que, em cada momento, est mais prximo, mais

mo e disponvel. o que acontece, Heidegger exemplifica, com uma jarra, na qual o homem

despeja uma bebida, ou um trinco, do qual faz uso para abrir uma porta.

Entretanto, as coisas no chegam ao homem como coisas, segundo Heidegger, apenas

porque o homem as torna disponveis, as explora, embora essa seja a pretenso de toda a

cincia moderna, enquanto conhecimento do real. O explorar, que torna os objetos

disponveis, tpico das cincias naturais e essncia da tcnica moderna, conduz o homem ao

imprio da falta de distncia (HEIDEGGER, 2008, p. 159). Mas a abolio de todas as

distncias, que torna o mundo disponvel, livre de todos os mistrios e mitos, ainda no atinge

a verdade do ser, a qual Heidegger se refere, pois um pensamento representativo; antes, esse

tornar disponvel cria barreiras. A modernidade a era do disponvel, no sentido daquilo

que est pretensamente s claras, pretensamente dado ao conhecimento humano de forma

imediata. Heidegger afirma:

Quando e como as coisas chegam, como coisas? No chegam atravs dos feitos

e dos artefatos do homem, mas tambm no chegam sem a vigilncia dos

mortais. O primeiro passo na direo desta viglia o passo atrs, o passo que

passa de um pensamento, apenas, representativo, para o pensamento meditativo,

que pensa o sentido (HEIDEGGER, 2008, p. 159).

A noo tradicional de coisa se estende a tudo com que o homem trava contato no seu

cotidiano. No entanto, Heidegger pondera, sempre preciso que se acrescentem explicaes a

este conceito para que tratemos por coisas algo como o ser humano, Deus ou a morte. O

32

pensamento meditativo citado no trecho acima deve levar ao reconhecimento de que a

postura objetivante, tpica da cincia moderna, passa ao largo do que deve compor o

pensamento filosfico que se ocupe de seus prprios fundamentos e suas mais legtimas

questes. O representar do real em nico modo particular de desvelamento restringe a

vigncia da verdade do ser.

A cincia sempre se depara e se encontra, apenas, com o que o seu modo de

representao, previamente, lhe permite e lhe deixa como objeto possvel. Diz-se

que o conhecimento da cincia constrangente. Mas onde est e reside esta

constrangncia? Em nosso caso, na constrangncia de abandonar a jarra cheia de

vinho, e pr, em seu lugar, um espao oco, onde um lquido se espalha. A cincia

faz da coisa-jarra algo negativo, enquanto no deixar as coisas mesmas serem a

medida e o parmetro (HEIDEGGER, 2008, p. 148).

Da voltamos ao tema da conferncia A Origem da Obra de Arte. preciso ter em

mente que, mantendo sempre sua busca pela resposta da questo acerca do sentido do ser que,

aps a Kehre, se torna uma investigao acerca da verdade do ser, este um dos primeiros

escritos de Heidegger a tomar a arte como tema de reflexo. Seu mote mostrar o modo como

as coisas mesmas podem ser a medida e o parmetro do conhecimento.

O desvelamento do ente em seu ser ser tematizado por Heidegger a partir do

potencial de desvelamento interno s prprias as coisas. Assim, sua anlise aponta ainda,

como veremos, para um modo mais originrio e, por isso mesmo, considerado em seu

pensamento como um plano distinto, de abertura. Este plano a arte.

importante diferenciar: a investigao heideggeriana da arte no visa compor uma

reflexo esttica. A esttica tradicional , para Heidegger, apenas o modo a partir do qual a

metafsica tradicional aborda um objeto especfico, qual seja, a obra de arte. Partindo da

objetivao que promove sobre todos os entes, a esttica compreende a arte como

representao e a obra como um objeto. Os conceitos desenvolvidos pela esttica, ao longo da

sua histria, determinam a arte em termos de sua funo, das tcnicas para sua produo e

daquilo que a obra representa, sob determinaes do valor, do belo, entre outras. A

contrapartida desse processo de objetivao e determinao o afastamento da obra.

Heidegger pretende, ao contrrio, descobrir como superar tal distncia.

Entretanto, fundamental ter em mente que o interesse de Heidegger pela investigao

sobre a obra de arte perpassado por seu interesse em responder a reformulada questo, que

agora busca a verdade do ser, atravs da investigao acerca do modo como a arte pode fazer

frente ao domnio moderno da tcnica. O prprio autor explica:

33

Todo o ensaio A Origem da Obra de Arte move-se conscientemente, ainda que

sem o dizer, no caminho da pergunta pela essncia do ser. A reflexo sobre isso,

o que seja a arte, determinada inteira e decididamente apenas a partir da

pergunta sobre o ser. A arte no tomada nem como uma rea de realizao

cultural, nem como uma manifestao do Esprito. Ela pertence ao acontecer-

potico-apropriante [Ereignis], a partir do qual se determina o sentido do ser.

O que seja a arte uma daquelas perguntas s quais o ensaio no d nenhuma

resposta. O que parece ser resposta no passa de indicaes para o perguntar

(HEIDEGGER, 2010, p. 219)22

.

Da que Heidegger percebe, portanto, que seu trabalho envolve uma busca pelo

originrio, por aquilo que, na prpria obra, a caracteriza como tal. Segundo Heidegger

(2010, p. 35), o originrio de algo a provenincia de sua essncia. A pergunta pelo

originrio da obra de arte pergunta pela provenincia de sua essncia. O primeiro passo para

tanto, considera o filsofo, envolve estabelecer uma diferenciao entre sua compreenso

acerca da arte e os modos como esta abordada pela concepo metafsica, evidenciando que

a prpria arte sempre se perde em tais acepes.

Primeiramente, preciso observar que, sob o subjetivismo moderno, a obra de arte ,

para todos os efeitos, um objeto: ela outro, aquilo que no sujeito, algo que o homem

observa e conhece. Entretanto, a tradio entende que a arte possui modos especficos de ser

obra:

Supostamente, torna-se suprfluo e at passvel de confuso indagar sobre isso,

porque a obra de arte, alm do carter de coisa, ainda um outro algo. Este outro

algo que est nela constitui o artstico. A obra de arte , decerto, uma coisa

produzida, mas ela diz ainda um outro algo diferente do que a ma mera coisa

propriamente , allo agoreuei [allo=outro, agoreuei=diz]. A obra d a conhecer

abertamente um outro, manifesta outro: ela alegoria. Junto com a coisa

produzida com-posto ainda outro algo na obra de arte. Pr junto com diz-se em

grego symballein [sym=com, ballein=pr, jogar]. A obra smbolo. Alegoria e

smbolo fornecem o enquadramento representacional em cuja perspectiva, desde

h muito tempo, se move a caracterizao da obra de arte. Mas esta unidade na

obra, que revela um outro, esta unidade que rene a um outro, o carter de

coisa na obra de arte. Quase parece que o carter de coisa na obra de arte seria

como a base na qual e sobre a qual esse outro e prprio da obra edificado

(HEIDEGGER, 2010, p. 43).

Depreende-se, portanto, que alegoria e smbolo so modos de ser pelos quais

tradicionalmente se procurou pensar o que h de especfico na obra de arte. Ou seja, resistindo

a considerar a obra um mero objeto, o homem sempre teria se perguntado pela essncia, pelo

diferencial que torna arte, por exemplo, uma pintura ou uma escultura, que so to coisas

quanto qualquer utenslio. Em suma, como, desde h muito, se caracteriza uma obra de arte.

22

O conceito de Ereignis aqui mencionado ser elucidado mais a frente.

34

Ocorre que Heidegger compreende que sua investigao no deve prescindir do

carter de coisa na obra, descrito acima. Se a tradio opera com a arte a partir da mesma

postura objetivante com a qual opera com todos os entes, uma busca pela essncia da coisa

talvez conduziria compreenso da essncia da obra de arte. Sua investigao o conduz ao

entendimento de que as formas tradicionais de conceitualizao da coisa so trs: a substncia

e seus acidentes; a unidade da multiplicidade de sensaes captadas pelos sentidos e,

finalmente, como ajunte entre matria e forma. Este ltimo a forma atravs da qual, segundo

Heidegger, toda esttica tradicional compreende a obra de arte.

Mas este par conceitual matria-forma no exatamente usual naquele mbito

dentro do qual nos devemos movimentar? Decerto, A distino entre matria e

forma , na verdade, nas mais diferentes variedades, pura e simplesmente o

esquema conceitual usado em todas as teorias da arte e da Esttica. Este fato

incontestvel no comprova nem que a distino entre matria e forma esteja

suficientemente fundamentada nem que ela pertena originalmente ao mbito da

arte e da obra de arte. Alm disso, o mbito de validade deste par de conceitos

ultrapassa h muito e largamente o mbito da Esttica. Forma e contedo so os

conceitos de tudo, nos quais tudo e cada coisa cabe. Quando se liga a forma ao

racional e a matria ao irracional, considera-se o racional como lgico e o

irracional com o ilgico, e quando se acopla ao par conceitual forma matia

ainda a relao sujeito-objeto, ento o representar dispe de uma mecnica a qual

nada se pode opor (HEIDEGGER, 2010, p. 63).

Tal compreenso acerca do objeto artstico questionada por Heidegger em uma

crtica esttica tradicional. Heidegger constata, portanto, que uma anlise acerca do carter

coisal da obra no o melhor caminho, na medida em que esse ponto de partida conduziria

justamente compreenso totalizante e objetivante da qual o filsofo pretende, a princpio, se

desvencilhar. Nenhuma dessas diferenciaes, tornadas correntes ao longo da histria do

pensamento, so capazes de conceder uma caracterizao real da essncia da coisa, em suas

mltiplas formas de apresentao. Assim sendo, tambm no seriam capazes de revelar o

originrio na obra de arte.

Como dito acima, Heidegger busca, para alm das noes de alegoria e smbolo, o que

h na obra de arte que a torna efetiva. Como descreve Laura de Borba Moosburger (2008, p

36), Heidegger pretende uma nova compreenso da obra de arte e das coisas naturais e do

uso. A arte, em relao com as coisas e com o utenslio (coisas do uso) seria possuidora

de uma autossuficincia tpica, que os outros entes no possuiriam23

. O utenslio possui maior

23

H autores que explicam que a compreenso da arte como coisa comparvel, por exemplo, com o

utenslio, desenvolvida na conferncia A Origem da Obra de Arte no fundamental para Heidegger. Esta

noo, muito presente nos textos de 1930 e que investiga a arte como objeto cujo potencial para o

desvelamento da verdade mais marcante que em outros objetos com os quais o homem se depara,

adquire um carter mais amplo nas anlises tardias de Heidegger acerca da arte, presentes nos textos da

dcada de 1960, por exemplo, nos quais h consideraes acerca do teatro ou da arquitetura, formas

35

parentesco com a obra, pois se trata de um feito humano dotado de um repousar-em-si

(HEIDEGGER, 2007, p. 20), tendo um carter intermedirio, entre a mera coisa e a obra24

:

Esse ente, o utenslio, prximo representao do homem de uma maneira

especial, porque aporta ao ser atravs do nosso prprio produzir (Erzeugen). Esse

ente assim ntimo em seu ser, o utenslio, tem ao mesmo tempo uma singular

posio intermediria entre a coisa e a obra. (Heidegger, 2007, p. 18).

Heidegger constata, ento, que sua busca pretende atingir a realidade da obra, aquilo

que esta realmente. Trata-se de uma volta ao incio: Heidegger demonstra que a esttica e a

metafsica tradicionais passam ao largo do que a coisa e, consequentemente, da realidade

de uma coisa especfica, a obra de arte. Portanto, a busca pelo originrio na obra de arte

passa a ser uma pergunta pelo carter de verdade desta. A pergunta pela verdade da obra de

arte responder a pergunta acerca da realidade da coisa e esta, a questo da verdade do ser.

Heidegger, em A Origem da Obra de Arte, toma uma pintura em que de Van Gogh

retrata um par de sapatos de campons. Esta escolha no arbitrria:

No por acaso, a primeira obra considerada uma pintura de Van Gogh de um

par de sapatos de um campons. Com ela, unificam-se as perguntas pela essncia

do natural, do utensiliar e da obra, bom como se desloca o ponto de vista de uma

comparao entre mbitos distintos do ente (natural, utensiliar e artstico) para a

intuio do ajunte ontolgico que acontece desde a prpria obra

(MOOSBURGER, 2008, p. 37).

Sua observao pretende esclarecer a forma como parte da prpria pintura o mostrar-

se autntico do objeto, os sapatos, na obra. Ou seja, Heidegger no desenvolve uma anlise da

obra enquanto pintura, mas ressalta a viso do simples utenslio retratado e do modo tpico de

exposio deste, que apenas a obra permite:

Da escura abertura do interior gasto dos sapatos a fadiga dos passos do trabalho

olha firmemente. No peso denso e firme dos sapatos se acumula a tenacida