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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” INSTITUTO A VEZ DO MESTRE USO DE ALGEMAS: SEGURANÇA OU CONSTRANGIMENTO? Por: Rogério Vieira da Silva Miranda Orientador: Prof. Francis Rajzman Rio de Janeiro 2011

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

USO DE ALGEMAS: SEGURANÇA OU CONSTRANGIMENTO?

Por: Rogério Vieira da Silva Miranda

Orientador:

Prof. Francis Rajzman

Rio de Janeiro

2011

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

USO DE ALGEMAS: SEGURANÇA OU CONSTRANGIMENTO?

Apresentação de monografia à Universidade Candido

Mendes como requisito parcial para obtenção do grau de

especialista em Direito e Processo Penal. Por: Rogério

Vieira da Silva Miranda

DEDICATÓRIA

As horas dedicadas ao desenvolvimento

deste trabalho foram impulsionadas pelo

prazer de realizar um sonho de minha queri-

da mãe, ver um filho graduado em Direito.

Eis então minha monografia de Pós-

Graduação, mas um degrau transposto e

dedicado inteiramente a minha família que

muito me incentivou em todos os momentos

e pelo carinho com que apoiaram minhas

escolhas.

AGRADECIMENTO

Agradeço a Deus por tudo o que fui pelo que

sou e pelo que serei. Por ter iluminado sem-

pre o meu caminho e permitisse que eu rea-

lizasse os meus objetivos, sempre com afin-

co e perseverança.

RESUMO

A presente monografia tem como objetivo discutir a temática do uso das algemas,

principalmente no que se refere ao desrespeito à dignidade da pessoa humana no

uso indevido dessa prática, bem como o abuso de poder por parte de autoridades

competentes no ato da apreensão, ressaltando, ainda. o conflito que se estabelece,

de um lado, a segurança pública e do outro lado a dignidade da pessoa humana.

Aborda-se a Súmula Vinculante nº 11, do Supremo Tribunal Federal, que trata do

uso de algemas. Quando a dignidade da pessoa humana é objeto de violação por

abuso de poder por parte das autoridades competentes, torna-se visível o excesso e

nesse caso, o mau uso das algemas configura o excesso de autoridade, não aceita

num Estado Democrático de Direito. A Constituição do Brasil de 1988 estatui sobre

os direitos e garantias fundamentais. Ela afirma que todos são iguais perante a lei,

não havendo possibilidade de discriminação assegurando, ainda, aos brasileiros e

estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança, assim como

de todos os direitos que são conferidos ao ser humano.

Palavras-Chave: Algemas; Súmula Vinculante n° 11; Direitos Humanos; Princípio da

dignidade humana.

METODOLOGIA O trabalho a ser desenvolvido se utilizará do método de pesquisa bibliográfi-

ca, revendo as principais obras de teoria constitucional para permitir o levantamento

das questões a serem abordadas, principalmente no que tange aos direitos funda-

mentais. Consultas à Internet serão feitas quando se tornar necessário, sempre com

respeito à Lei dos Direitos Autorais. Será feita, ainda, uma análise através de refe-

renciais teóricos para delimitar o campo de atuação da pesquisa, ocasião em que se

fará uma leitura investigativa dos principais textos constitucionais, com a finalidade

de embasar e apresentar logicidade ao tema frente à Súmula Vinculante n° 11 do

Supremo Tribunal Federal.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08 1. ALGEMAS 10

1.1 HISTÓRICO DO USO DAS ALGEMAS 10

1.2 BECCARIA E FOUCAULT 11

1.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA 13

1.4 ABUSO DE DIREITO 17

2- DAS LEGALIDADES E ILEGALIDADES 20

2.1 A LEI DE EXECUÇÕES PENAIS (LEP) E A FALÊNCIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 20 2.2 LIBERDADE E RESTRIÇÕES 24

2.3 LEGALIDADE PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 26

2.4 DIFERENÇA ENTRE LICITUDE E ABUSO 29 3 - USO DE ALGEMAS: SEGURANÇA OU CONSTRANGIMENTO? 31

3.1 SÚMULA VINCULANTE N° 11 31 3.2 O USO DAS ALGEMAS X PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

3.3 DIFERENTES POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE A LIMITAÇÃO DO USO DE ALGEMAS ATRAVÉS DA SÚMULA VINCULANTE N°.11 36 3.4 JURISPRUDÊNCIA 38

CONCLUSÃO 41

REFERÊNCIAS 43

INTRODUÇÃO

O estudo a ser desenvolvido se reporta ao uso de algemas e sua problemáti-

ca de acordo com a Súmula Vinculante n° 11 do STF, uma vez que a mídia expõe

reiteradamente essa prática no sentido de alertar para a afronta aos direitos das

pessoas suspeitas de terem praticado algum crime.

Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, regido pelo princípio da

dignidade humana, a edição da referida súmula pelo Supremo Tribunal Federal per-

mitiu a busca de equilíbrio dos direitos do preso e limitações do agente policial. É

Importante se entender que os direitos fundamentais são princípios jurídicos positi-

vados numa ordem jurídica constitucional, que possuem correlação com a concep-

ção de dignidade humana de uma sociedade. Assim, a expressão "direitos funda-

mentais" se relaciona com a garantia de limitações do Estado no que se refere ao

indivíduo e também com a dignidade humana.

As normas jurídicas preveem sanções para quem viola as condutas impres-

cindíveis ao equilíbrio social, motivo pelo qual o Estado criou mecanismos para a

atuação estatal, propiciando, na esfera criminal, a formulação do ilícito.

Os Estados que se regem pelos princípios da democracia, do Estado de Direi-

to e das liberdades condenam o autoritarismo, a arbitrariedade e a irresponsabilida-

de dos legisladores e administradores públicos. Desse modo, todo ato que se origi-

na da autoridade pública deve possuir elementos essenciais que se intitulam como

adequação, necessidade ou exigibilidade e equilíbrio no que concerne à moderação

e à proporção suficiente.

O tema se faz relevante na medida em que o pensamento jurídico-

constitucional contemporâneo se torna uma peça fundamental para a resolução dos

casos em que há contradição de interesses. Assim, à sociedade cabe se inteirar dos

atos que ferem os Direitos humanos para que se posicione convictamente a respeito

das medidas abusivas existentes.

Divide-se a monografia em três capítulos, a saber:

10

O primeiro capítulo tem como destaque o histórico do uso das algemas, enfo-

cando também o pensamento de Beccaria e Foucault, discorrendo ainda sobre o

princípio da dignidade da pessoa humana, presunção de inocência, para que haja

compreensão dos casos do abuso de direito.

O segundo capítulo tratará das legalidades e ilegalidades estudando-se al-

guns aspectos da Lei de Execuções Penais (LEP), a liberdade e restrições, a legali-

dade penal no Estado Democrático de Direito e também será discutida a diferença

entre licitude e abuso.

O terceiro capítulo responderá através da pesquisa a autores de grande cre-

dibilidade se o uso de algemas é caso de segurança ou constrangimento. Para tal se

estudará a Súmula Vinculante n° 11 e sua importância no uso das algemas em a-

fronta aos princípios constitucionais quando também se demonstrará o posiciona-

mento dos juristas a respeito do tema.

10

1. ALGEMAS

A história, como a mais importante ferramenta para a compre-ensão do direito e das formas das relações sociais anteceden-tes ao mundo contemporâneo, nos permite absorver notáveis elementos interpretativos da construção do Direito, em particu-lar o próprio Direito Penal1.

1.1 HISTÓRICO DO USO DAS ALGEMAS

As algemas se compõem de duas partes, unidas entre si por um elo que per-

mite sua articulação ou, no caso de algemas rígidas, por uma barra. Cada meio tem

um braço rotativo que se envolve com uma catraca, que impede ser aberto uma vez

fechado em torno do pulso de uma pessoa2.

Sem a chave, as algemas não podem ser desbloqueadas, assim, a pessoa

contida é incapaz de mover seus pulsos além de alguns centímetros, o que, geral-

mente, é feito para evitar que os conduzidos possam escapar da custódia da polícia

ou ferir a si mesmos ou a terceiros.

A prática de se limitar os movimentos de alguém através da contenção de su-

as mãos e de seus pés é muito antiga. Relevos mesopotâmios já mostravam, 4.000

anos atrás, prisioneiros com mãos atadas3.

Antes, todo instrumento de metal, subjugante de prisioneiros, ora surgia sob

denominação de cadeias de ferros. Depois se principia a distinguir as algemas para

tolher pelos pulsos ou dedos polegares e os grilhões para deter pelos tornozelos os

presos (meio, pois, de submeter, fisicamente, mas de também castigar).

Sérgio Pitombo4 em artigo publicado na Revista da Associação dos Magistra-

dos do Paraná explica que a palavra algema proveniente da língua árabe, se tor-

1 CRESPO, Aderlan. Curso de Criminologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 15. 2 HERBELLA, Fernanda. Algemas e dignidade da pessoa humana: Fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex Editora S.A., 2008, p.23. 3 Ibid. 4 PITOMBO, Sergio Marcos de Moraes. Emprego de algemas: notas em prol de sua regulamenta-ção. Revista da Associação dos Magistrados do Paraná, Curitiba.. Revista dos Tribunais. São Paulo,

11

nou, quando empregada no sentido de aprisionar, uso comum no século XVI, embo-

ra grilhões, ou simplesmente ferros, fossem também frequentemente usados.

Os grilhões eram mais difíceis de remover e prendiam de modo firme os pul-

sos ou tornozelos dos cativos. Podiam ser ligados entre si por barras metálicas ou

correntes, fornecendo graus variados de imobilização a quem os utilizasse. Para as

pernas era geralmente preferido o uso de correntes, longas o suficiente para permitir

algum tipo de passo, ainda que curto. Os prisioneiros também podiam ser ligados,

entre si, por correntes, às vezes até por grilhões de pescoço5.

Um problema convencional da maioria dos grilhões era o diâmetro fixo de su-

as grilhetas, peças de seção circular ou retangular, que, efetivamente, prendiam os

pulsos ou tornozelos. Isso significava que, para pessoas com pulsos ou mãos mais

finos que a média, era necessário ter grilhetas de menor diâmetro, as quais, caso

fossem usadas numa pessoa de físico mais robusto, poderiam produzir desconforto,

dor e danos graves, ou serem impossíveis de aplicar. Nesse caso havia necessidade

de se dispor de grilhetas de diversos diâmetros..

1.2 BECCARIA E FOUCAULT Beccaria, em seu livro “Dos delitos e das penas” aduz que são três as fontes

de onde derivam os princípios morais e políticos reguladores dos homens. A revela-

ção, a lei natural e as convenções factícias da sociedade.

Não há comparação entre a primeira e as outras quanto à sua fi-nalidade principal, mas as três se assemelham por conduzirem à feli-cidade nesta vida mortal. Considerar as relações da última não signi-fica excluir as relações das duas primeiras: na verdade, assim como aquelas, embora divinas e imutáveis, foram, por culpa dos homens, alteradas de mil maneiras em suas mentes depravadas pelas falsas religiões e pelas noções arbitrárias de vício e virtude6.

Continuando o pensamento de extrema lucidez e visão futura Beccaria expla-

na que os homens geralmente abandonam as importantes resoluções à prudência

cotidiana ou à discrição daquelas cujo interesse é opor-se às leis mais sábias; estas,

v. 592, p. 275- Disponível em: http://www.processocriminalpslf.com.br/algemas.htm e http://www.sergio.pitombo.nom.br/files/word/algemas_1.doc. Acesso em: 10 jul 2011. 5 HERBELLA, op. cit., p.24. 6 BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Trad. Lúcia Guidicini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.34.

12

por natureza, tornam as vantagens universais e resistem às pressões que levam a

privilegiar a poucos, separando de um lado o máximo de poder e felicidade e, do

outro, toda a fraqueza e miséria.

Por isso, só após ter passado por mil erros nas coisas essenciais à vida e à

liberdade, cansados dos males sofridos e no extremo de suas forças, dispõem-se

eles a remediar as desordens que os oprimem. Começam a reconhecer as verdades

mais palpáveis, as quais, por sua simplicidade mesma, escapam às mentes vulga-

res, não habituadas a analisar os objetos, mas a captar suas impressões como um

todo, antes por tradição que por exame.

As leis, que são ou deveriam ser pactos entre homens livres, não passaram, geralmente, de instrumentos das paixões de uns poucos, ou nasceram da necessidade fortuita e passageira; jamais foram elas ditadas por um frio examinador da natureza humana, capaz de aglo-merar as ações de muitos homens num só ponto e de considerá-las de um único ponto de vista7.

Para Beccaria a história política identifica-se cada vez mais com o resultado

de uma interação de fatores cujos alicerces estão no costume e na prática da cola-

boração individual. A defesa da liberdade, todavia, não autoriza ninguém a tomar um

percurso pessoal que o leve ao martirólogo.

Na base de um correto funcionamento do Estado está a sua capacidade de

produzir riqueza a partir de uma justa avaliação relativamente aos programas a se-

rem realizados, com a participação de todas as forças sociais. Ao Estado compete a

tarefa de remover todos aqueles obstáculos que se interpõem à iniciativa individual

que visa ao bem coletivo antes de intervir para dirimir conflitos inevitavelmente de-

terminados pela dinâmica social.

Beccaria traz uma nova consciência jurídica mais do que um rigoroso princí-

pio explicativo da lógica da não violência. Para ele o chamado Estado de Direito não

resolve por si só os problemas relativos à autodeterminação individual e â inviolabi-

lidade da pessoa física por parte de alguma autoridade se não for possível justificar,

proporcionalmente, tal princípio com o interesse do Estado em salvaguardar integri-

dade física e moral dos seus súditos. Isso com o objetivo de garantir à comunidade,

a mais ampla e a mais articulada participação possível.

7 BECCARIA, op. cit., p.39..

13

Do conjunto combinado das contribuições individuais, a comunidade tira, his-

toricamente, vantagens que a perseguição elimina ou não consente nem mesmo que

sejam dissimuladas no pacto social.

Segundo Foucault,

[...] da tortura à execução, o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime. Ou melhor, ele constitui o elemento que, através de todo um logo de rituais e de provas, confessa que o crime aconteceu, que ele mesmo o cometeu, mostra que o leva inscrito em si e sobre si, suporta a operação do castigo e manifesta seus efeitos da maneira mais ostensiva. O corpo várias vezes supliciado distorce a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos de processo e do dis-curso do criminoso, do crime e da punição8.

A necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um gri-

to do coração ou da natureza indignada: no pior dos assassinos, uma coisa pelo

menos deve ser respeitada quando punimos: sua "humanidade".

Chegará o dia, no século XIX, em que esse "homem", descoberto no crimino-

so, se tornará o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende corrigir e trans-

formar, o domínio de uma série de ciências e de práticas estranhas penitenciárias e

criminológicas.

Foucault ensinou como poucos, a forma pela qual o poder fabrica os seres

humanos como sujeitos conhecedores. O saber penal, sempre tão ligado ao poder,

caracteriza-se por extremar essa reprodução, por limitar duramente horizontes cien-

tíficos, gerando "verdades" ao preço da marginalização de dados. A moderna ten-

dência progressista orienta-se para a crítica mais ou menos radical ao poder de fora,

ao sistema de reprodução do poder.

1.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA No campo dos direitos fundamentais é que ressoa o abuso de direito, e este

se faz presente quando a ação, ou conduta, fere o interesse geral, protegido por

uma norma de caráter prevalente, como é o caso da norma constitucional. A preven-

ção deste abuso decorre do limite imposto à própria atuação do poder, através dos

8 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 31 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p.46.

14

dispositivos autoaplicáveis dos direitos e garantias individuais. Este limite é intrínse-

co ao dispositivo garantidor do direito e impõe a observância destas normas, dado o

seu caráter concreto e genérico, que impede o exercício destes direitos de modo

abusivo9.

O princípio da presunção de inocência ou do estado de inocência está previs-

to no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que desse modo estatui: "ninguém

será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenató-

ria". Consagrando-se um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia

processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal.

Para Paulo Rangel, uma coisa é a certeza da culpa, outra, bem diferente é a

presunção da culpa. Apesar de discordar da expressão “presunção de inocência”, o

autor deixa claro que o réu não pode ser considerado culpado apenas no campo da

“presunção”. É necessário que o juiz analise os autos do processo para que aja a

aplicação correta e justa da lei10.

Desse modo, quando se algema de forma indevida uma pessoa, passa-se a

imagem para toda a sociedade de que aquele cidadão é o verdadeiro culpado de um

delito. O julgamento da sociedade forma-se, principalmente, por meio dos aspectos

televisivos, da imagem a qual é passada. A autoridade estigmatiza o indivíduo como

culpado.

A dignidade da pessoa humana precisa de políticas públicas para se fazer

respeitada, haja vista que a Declaração Universal dos Direitos Humanos alçou me-

canismos para protegê-la. Nesse contexto, é plantado o problema central para anali-

sar até que ponto as algemas podem ser usadas, quando e se devem usá-las, qual

o direito do cidadão.

Para Rizzatto Nunes dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no de-

correr da história e chega ao início do século XXI repleta de si mesma como um va-

lor supremo, construído pela razão jurídica.

Com efeito, é reconhecido o papel do Direito como estimulador do desenvolvimento social e freio da bestialidade possível da ação hu-mana. Não se vai aqui discutir se o ser humano é naturalmente bom ou mau. Nem se vai refletir com conceitos variáveis do decorrer da história, pois, se assim fosse, estar-se-ia permitindo toda sorte de manipulações capazes de colocar o valor supremo dignidade num re-

9 REIS, Adriana Cruz dos. O uso das algemas. Dignidade da pessoa humana. Abuso de poder. Disponível em www.jurisway.org.br.Acesso em 11 jul 2011. 10 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 24.

15

lativismo destrutivo de si mesmo. E, conforme colocamos desde o i-nício, a dignidade é garantida por um princípio. Logo, é absoluta, plena, não pode sofrer arranhões nem ser vítima de argumentos que a coloquem num relativismo11.

É a dignidade o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. Não se

discute se o ser humano é naturalmente bom ou mau. Nem se vai refletir com con-

ceitos variáveis do decorrer da história, pois se assim fosse estar-se-ia permitindo

toda a sorte de manipulações capazes de colocar o valor supremo da dignidade

num relativismo destrutivo de si mesmo.

A dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, simplesmente

existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento quali-

ficador do ser humano e dele não pode ser destacado. Assim, de tal sorte não se

pode cogitar da possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão

quando lhe seja concedida a dignidade12.

A respeito da dignidade da pessoa humana sob o aspecto de limite e tarefa

do Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie suas ações tanto

no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que

possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo, portanto, dependente (a dignida-

de) da ordem comunitária, já que é de se perguntar: Até que ponto é possível ao in-

divíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais

básicas?

O que se tem de fazer é apontar o conteúdo semântico de dignidade, sem

permitir que façam dele um conceito relativo, variável segundo se duvide do sentido

de bem e mal ou de acordo com o momento histórico.

Assim, para definir dignidade é preciso levar em conta todas as violações que

foram praticadas, para, contra elas, lutar. Então, se extrai dessa experiência histórica

o fato de que a dignidade nasce com o indivíduo. O ser humano é digno porque é.

No Estado de São Paulo vige o Decreto n° 19.903, de 3 de outubro de 1950,

que orienta os policiais sobre o uso de algemas nas hipóteses de tentativa de fuga

ou resistência à prisão com violência, exigindo que as ocorrências dessa espécie

sejam registradas em livros nas repartições policiais.

11 NUNES, Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 46. 12 CARVALHO, Salo de. Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 377.

16

Art. 1o - O emprego de algemas far-se-á na Polícia do Estado, de re-gra, nas seguintes diligências: a) Condução à presença da autorida-de dos delinquentes detidos em flagrante, em virtude de pronúncia ou nos demais casos previstos em lei, desde que ofereçam resistên-cia ou tentem a fuga; b) - Condução à presença da autoridade dos ébrios, viciosos e turbulentos, recolhidos na prática de infração e que devam ser postos em custódia, nos termos do Regulamento Policial do Estado, desde que o seu estado externo de exaltação torne indis-pensável o emprego de força; c) - Transporte, de uma para outra de-pendência, ou remoção, de um para outro presídio, dos presos que, pela sua conhecida periculosidade, possam tentar a fuga, durante di-ligência, ou a tenham tentado, ou oferecido resistência quando de sua detenção13.

A utilização de algemas não é disciplinada no Código de Processo Penal. Na

Lei de Execução Penal, o artigo 199 determina que o emprego de algemas seja dis-

ciplinado por decreto federal (o referido decreto não existe para regulamentar a ma-

téria). Conforme regra internacional é vedado o emprego de algema como forma de

sanção ou punição com a finalidade de constrangimento ou antecipação da pena, já

que representa uso abusivo e vexatório em desrespeito à dignidade da pessoa hu-

mana14.

O uso de algemas pode e não raro ocorre acarretar abuso de direito pelas

autoridades competentes, porquanto estas devem ter uma atenção mais detalhada,

visto que há conflito entre princípios de um lado, a segurança e do outro lado a dig-

nidade da pessoa humana.

Deve-se analisar devidamente quando seu uso é permitido ao preso que ofe-

rece ameaça à segurança dele e das autoridades. Então longe de serem observados

os requisitos legais, o fato é que essa norma encontra-se em rota de colisão, e, por-

tanto, infringida, caracterizar-se-á abuso de poder por parte das autoridades.

Em 2008, com a reforma do procedimento do Júri, feita por meio da Lei nº

11.689, de 9 de junho de 2008, a palavra algemas despontou no Código de Proces-

so Penal em dois artigos: 474, § 3º, e 478, I. Pela simples leitura do artigo 474, o uso

de algemas está excepcionalmente autorizado, isto é, o não uso de algemas é regra

e não exceção. O uso em si de algemas no plenário é tido como humilhação pública

e poderia influenciar de certo modo, a convicção condenatória do jurado15.

13 MESSA, Ana Flávia. Prisão e liberdade. Porto Alegre: Verbo Jurídico Ltda. 2009, p.145. 14 Ibid, p.145. 15 FEITOZA, Denilson. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Impetus.2009, p.538.

17

1.4 ABUSO DE DIREITO

O artigo 5º, caput, da Constituição Federal prevê o direito à segurança, tor-

nando-se o Estado devedor dessa prestação positiva; pelo que, deve envidar esfor-

ços em prestá-la, porém na forma da lei e seguindo escrupulosamente os parâme-

tros constitucionais. Caso a autoridade exceda o permitido em lei, restará efetiva-

mente configurado o abuso de poder.

A missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais

relevantes para a vida em sociedade. Em decorrência disso, a intervenção penal

punitiva deve ter o caráter fragmentário protegendo apenas os bens jurídicos mais

importantes e em casos de lesões de maior gravidade à segurança coletiva e liber-

dade pessoal16.

O Direito Penal protege bens jurídicos consubstanciados em valores escolhi-

dos pelo legislador que, então leva em conta as necessidades sociais e individuais

extraídas da convivência em condições de dignidade adquirindo, assim, uma feição

notadamente garantista ou protetiva, destinada a proteger a liberdade individual em

face do poder punitivo do Estado.

Os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal são, portanto, valores constitu-

cionalmente protegidos essenciais ao ser humano, que possibilitam sua plena reali-

zação e desenvolvimento em sociedade e que facilitam ou asseguram a participação

social livre e igualitária..

O direito de punir é subsidiário, pois o Estado deve intervir com a sanção jurí-

dico-penal quando não existam outros meios jurídicos de reprimir a conduta, ou seja,

somente quando for absolutamente necessário para a defesa dos bens jurídicos im-

prescindíveis para a sobrevivência da comunidade.

A subsidiariedade estabelece a incidência dos ramos extrapenais para os ilíci-

tos de menor dano ou perigo de dano; já o ramo penal fica restrito aos casos de o-

fensas aos bens jurídicos fundamentais. O poder de resposta penal, positivado na

Constituição da República e nas leis, por força do princípio da intervenção mínima

do Estado, de que deve ser expressão, só vai até onde seja necessário para a pro-

teção do bem jurídico.

Conforme Paulo Queiroz,

16 MESSA, op. cit., p.26.

18

O direito penal não constitui um sistema exaustivo de ilicitudes (Bin-ding) ou de proteção (exaustiva) de bens jurídicos (vida, integridade física, honra), mas descontínuo, fragmentário, já que sua intervenção pressupõe o insucesso de intervenções outras, jurídicas ou não17.

Para proteger os bens jurídicos e manter a paz social, o Estado é dotado do

direito de punir, que na verdade é um dever-poder, já que o Estado tem obrigação

de tomar providências quando está em jogo o interesse público de manutenção e

reintegração da ordem jurídica.

A própria Constituição Federal coloca que a segurança pública é dever do

Estado e direito e responsabilidade de todos (art. 144, caput). Como observa Heleno

Fragoso:

Com o aparecimento da norma agente, surge necessariamente a re-lação jurídica que se estabelece entre o Estado e os destinatários da norma (a generalidade dos súditos), relação que tem, como conteúdo o direito subjetivo do Estado à observância dos preceitos penais com o poder e a faculdade de exigir a abstenção da prática de ações deli-tuosas. A tal direito corresponde o dever de observância do comando da proibição contida nas normas. Titular de tal direito é sempre o Es-tado Administração.Com a violação da norma penal, ou seja, com a prática do crime, ocorre uma transformação do direito que surge com a norma, aparecendo a pretensão punitiva do Estado. O conteúdo dessa relação jurídica é constituído pelo direito subjetivo do Estado à imposição da pena, com a correspondente obrigação jurídica do réu, de a ela sujeitar-se18.

Assim, o direito de punir é instrumento necessário para atender o interesse

público da paz social de forma que é de atuação obrigatória. Em Estado Democráti-

co de Direito, porém, esse punir é limitado pelas normas do Direito Penal e, princi-

palmente pela dignidade da pessoa humana consubstanciada no binômio respeito

aos direitos e patamar mínimo de sobrevivência no contexto de direitos e garantias

para evitar abusos do Estado..

No tocante ao direito de punir do Estado, a dignidade é violada quando ocor-

rem arbitrariedades. Portanto, as algemas devem ser utilizadas para: mobilização e

neutralização do delinquente; garantir a segurança do executor da prisão e de tercei-

ros; prevenir, dificultar ou impedir a fuga ou reação indevida do preso; garantir a in-

tegridade física e moral do executor e dos eventuais auxiliares na efetivação da me-

17 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p.19. 18 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.328.

19

dida; manter a ordem para evitar reação ou inaceitação das providências de segu-

rança19.

É proibido o uso indiscriminado de algemas, em que há ostensiva e excessiva

exposição pública dos detidos, com intenção de constranger, emprego desnecessá-

rio, em desrespeito aos direitos fundamentais, aplicação em pessoas inofensivas nos

casos de não oferecerem risco potencial social ou periculosidade ou abuso com fina-

lidades sensacionalistas.

19 MESSA, op. cit., p.33.

20

2. DAS LEGALIDADES E ILEGALIDADES

Quereis prevenir delitos? Fazei com que as leis sejam claras e simples. Cesare Beccaria

2.1 A LEI DE EXECUÇÕES PENAIS E A FALÊNCIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO Na Idade Moderna, em face do desenvolvimento das cidades, houve cresci-

mento criminalidade e ante a impossibilidade de se dizimar toda uma população de

criminosos, a pena de morte deixou de ser uma solução adequada. Em “Falência da

pena de prisão”, César Roberto Bitencourt esclarece que na metade do século XVI

iniciou-se um movimento de grande transcendência no desenvolvimento das penas

privativas de liberdade, na criação e construção de prisões organizadas para a cor-

reção dos apenados. A autoridade do direito penal viu-se obrigada a limitar os casos

de adoção da pena de morte. Essa conjuntura social permitiu o surgimento das ca-

sas de correção20..

Augusto Thompson21 relata que, nesse período, a pena consistia em pura

vingança. Nas culturas distantes, por sua vez, como a China e a Índia, conheceu-se

a pena de morte, a de desterro, o açoitamento, o espancamento e a tortura. Porém,

nesses casos, a pena ainda era vista como manifestação da vingança divina.

20 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2001, p.18. 21 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária . Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.56.

21

A história do sistema penitenciário brasileiro foi marcada por episódios que

revelam e apontam para o descaso com relação às políticas públicas na área penal,

como também para a edificação de modelos que se tornaram inviáveis quando de

sua aplicação. Donald Clemmer aponta a estrutura da sociedade prisional, uma so-

ciedade dentro da sociedade:

O mundo prisional é um mundo atomizado. Seus membros são como átomos a agir reciprocamente em confusão[...] Não há defi-nidos objetivos comunais. Não há um consenso comum para um fim comum. O conflito dos internos com a administração e a oposi-ção à sociedade livre estão em degrau apenas ligeiramente supe-rior ao conflito e oposição entre eles mesmos[...] É um mundo de ‘Eu’, ‘mim’, e ‘meu’ antes que de ‘nosso’, ‘seus’, ‘seu’22..

As sanções da Idade Média eram impostas de acordo com o pensamento dos

governantes, que as impunham em função do status social a que pertencia o réu. A

amputação dos braços, a forca, a roda e a guilhotina constituíam o espetáculo favori-

to das multidões deste período histórico.

Promovia-se o espetáculo da dor como exemplo. Em muitos casos o conde-

nado era arrastado, seu ventre aberto, as entranhas arrancadas às pressas para que

se tivesse tempo de vê-las sendo lançadas ao fogo.

A prisão não tinha o caráter de pena. Perpetuou-se a prisão custodial como

forma de guardar os condenados até o momento da sua punição, traduzida normal-

mente por amputações, mutilações e queimaduras, ocorridas a céu aberto, como

forma de espetáculo para um público fiel.

O Brasil, como a grande maioria dos países latino-americanos, assiste imobi-

lizado ao desenvolvimento de uma crise crônica em seu sistema penitenciário. Es-

pecialmente nesta última década, os indicadores disponíveis a respeito da vida nas

prisões brasileiras demonstram, de maneira inconteste, um agravamento extraordi-

nário de problemas já muito antigos.

Mirabete e Renato N. Fabbrini entendem que

Apesar de ter contribuído decisivamente para eliminar as penas afliti-vas como castigos corporais, mutilações etc., não tem a pena de pri-são correspondido às esperanças de cumprimento com as finalida-des de recuperação de delinquente. O sistema de penas privativas de liberdade e seu fim constituem verdadeira contradição. É pratica-mente impossível a ressocialização do homem que se encontra pre-

22CLEMMER Donald. The Prision Community, Rinehart, New York, 1958, p.297-298, apud Augusto Thompson op. cit., p.69.

22

so, quando vive em uma comunidade cujos valores são totalmente distintos daqueles a que, em liberdade, deverá obedecer. Isso sem falar nas deficiências intrínsecas ou eventuais do encarceramento como a superpopulação, os atentados sexuais, a falta de ensino e de profissionalização e a carência de funcionários especializados23

Esses problemas são a superpopulação carcerária, a escalada de violência

entre os internos, as práticas de abusos, maus tratos e torturas sobre eles, a inexis-

tência de garantias mínimas aos condenados e o desrespeito sistemático e institu-

cional à legislação ordinária e aos princípios dos Direitos Humanos24.

Tais situações já foram suficientemente documentadas e relatadas por inúme-

ras instituições não governamentais, tais como a Anistia Internacional, o America's

Watch ou a Pastoral Carcerária.

Dezenas de relatórios produzidos por integrantes do Ministério Público e do

próprio Poder Judiciário, em diferentes Estados da Federação, comprovam a dimen-

são nacional do problema e documentos específicos de monitoramento e fiscaliza-

ção levados a efeito por Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) ou por comis-

sões parlamentares de Direitos Humanos como o "Relatório Azul" da Comissão de

Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS e o "Relatório da II

Caravana Nacional de Direitos Humanos" da Comissão de Direitos Humanos da

Câmara dos Deputados revelaram em detalhes as circunstâncias dramáticas que

caracterizam esta crise.

Segundo Salo de Carvalho, o Direito Penal, como disciplina, não pode ter so-

mente como objeto a norma como pensavam muitos positivistas, pois esta não tem

validade em si mesma. Sua validade provém dos próprios valores políticos-criminais

eleitos pelo Estado Democrático de Direito.

As normas penais devem ser expostas a permanente revisão crítica a partir

da realidade social, e isso não deve ser alheio ao Direito Penal, particularmente às

informações propiciadas pela criminologia. Deve haver, por consequência, uma per-

manente interação entre a criminologia, a política criminal e a dogmática penal.

O princípio da legalidade, num Estado Democrático de Direito, não se conten-

ta, apenas, com a asserção ao "como proibir" (cuja resposta é: com segurança jurí-

dica) - tolerância esta arcada pelo clássico modelo de Estado de Direito -, senão

também ao "o que proibir?". A essa garantia penal é dado o poder determinante não 23 MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal. 24 ed. São Paulko: Atlas, 2007, p. 252. 24 CARVALHO, op. cit., p.77.

23

só dos destinatários de suas consequências, senão também da abrangência destas.

Em outras palavras: não é só a forma do Direito Penal que há de restar legitimado

pelo princípio da legalidade, senão também o conteúdo desse Direito Penal.

A Lei de Execuções Penais, em diversas ocasiões, confere ao legislador o

poder de regulamentar as disposições de execução penal, justificando-se tal situa-

ção pelo fato de que, assim se estariam aproximando as normas da citada Lei à rea-

lidade dos estabelecimentos penais também dos Estados. Embora bastante clara

esta regra, alguns Estados brasileiros extrapolam os limites de suas competências

legislativas25.

A referida Lei dispõe sobre os direitos do preso em face do Estado e da Soci-

edade, bem como, os deveres recíprocos desta relação, sendo considerada uma das

leis mais avançadas no mundo e se fosse cumprida integralmente; na prática, cer-

tamente propiciaria a reeducação e ressocialização de uma parcela significativa da

população carcerária atual.

Na concepção de Mirabete,

[...] afirma-se na exposição de motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal: ´Vencida a crença histórica de que o direi-to regulador da execução é de índole predominantemente administra-tiva, deve-se reconhecer, em nome de sua própria autonomia, a im-possibilidade de sua inteira submissão aos domínios do Direito Penal e do Direito Processual Penal26.

As prisões no Brasil não atingem o objetivo de reintegração do condenado à

comunidade. Assim, a Lei de Execuções Penais não cumpre seu papel e não é apli-

cada integralmente,sendo morosa na concessão dos direitos dos presos, principal-

mente quando implica em um afrouxamento, uma restrição da liberdade ou mesmo

na concessão da liberdade do preso27.

A humanização da execução penal consiste na garantia dada ao condenado

de que terá sua integridade física e moral preservada, em obediência ao princípio da

dignidade humana erigido à categoria de dogma constitucional, além da garantia de

preservação dos direitos não atingidos pela sentença. O artigo 38 do Código Penal

também preceitua que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda

25 CARVALHO, op. cit., p.78. 26 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal. São Paulo: Atlas, 1997, p. 25. 27 PASTORE, Alfonso. O iníquo sistema carcerário. São Paulo: Edições Loiola 1991,p.16.

24

da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física

e moral e o artigo 40 da Lei de Execuções Penais impõe a todas as autoridades es-

se respeito aos condenados e aos presos provisórios28.

2.2 LIBERDADE E RESTRIÇÕES

Dentre os bens e vantagens disciplinados na Constituição Federal, destaca-

se, por ser garantia fundamental no artigo 5°, XV, a liberdade de locomoção que cor-

responde à liberdade física da pessoa, sua liberdade corporal. No Estado Democrá-

tico de Direito, o direito à liberdade é regra que só admite exceção, nos casos de

prisão fundamentada e justificada no caso concreto.

A liberdade de locomoção abrange o direito de ir, vir, permanecer e ficar (a-

cesso, ingresso, saída, permanência e deslocamento no território nacional), respei-

tando a lei no interesse comum, e os direitos de outrem. Em tempo de paz a liberda-

de de locomoção, com a entrada ou saída do território brasileiro é regulada por lei. E

norma constitucional de eficácia contida. Em tempo de guerra, o direito de ir e vir é

determinado e limitado pelas circunstâncias da guerra.

A liberdade de locomoção pode sofrer restrição na vigência do estado de sí-

tio, quando o poder público obrigar as pessoas a permanecerem em localidade de-

terminada; nos termos do artigo 139, inciso I da CF/88, e na vigência do estado de

defesa, quando é possível a prisão por crime de Estado determinada pelo executor

da medida, nos termos do artigo 136, parágrafo 3o, inciso I da CF/8829.

A liberdade de locomoção é imprescritível, pois não se pede pelo decurso

do prazo, inviolável, visto que deve ser respeitada e universal, pois se destina a to-

dos os seres humanos, indistintamente, ou seja, aos brasileiros, natos ou naturaliza-

dos e estrangeiros, que estejam no território nacional, a qualquer título, residentes

ou não.

Como a todo direito fundamental corresponde uma garantia constitucional

que o assegura, e a esta corresponde um remédio que a toma eficaz, o habeas Cor-

28 ANDREUCCI. Ricardo Antônio. Legislação penal especial. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.278. 29 MESSA, op. cit., p.209.

25

pus é o remédio constitucional, destinado a garantir a liberdade de locomoção dc

indivíduo, cerceada em razão de violência ou coação ilegal30.

A liberdade temporária é a autorização de saída do preso do estabelecimen-

to penal, atenuando a execução penal. A liberdade temporária ou autorização de

saída é gênero do qual são espécies a permissão de saída e a saída temporária.

Permissão de Saída é a possibilidade de o preso, condenado ou provisório,

sair do estabelecimento, mediante escolta de policiais ou agentes penitenciários,

mediante autorização do diretor do estabelecimento onde se encontra preso nos ca-

sos de: falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, des-

cendente ou irmão e necessidade de tratamento médico não disponível no presídio.

A permissão de saída é exaustiva e excepcional, pois as hipóteses legais de

permissão de saída são taxativas e deve ter a mera função de corrigir um problema

de saúde ou atender a um razão de natureza humanitária. É temporária, pois a per-

manência do preso fora do estabelecimento terá a duração necessária à finalidade

da saída; é vigiada, pois possui a existência de escolta policial.

Saída Temporária é a possibilidade de o condenado que cumpre pena em

regime semiaberto sair do estabelecimento sem vigilância direta, mediante ato moti-

vado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenci-

ária, nos casos de: a) visita à família; b) frequência a curso supletivo profissionali-

zante, bem como de instrução do 2° grau ou superior, na Comarca do Juízo da Exe-

cução; c) participação em atividades que concorram para o retomo ao convívio soci-

al.

A liberdade condicional é medida de segurança que exige a prática de um fato

punível e da periculosidade do autor. Existem duas espécies de medida de seguran-

ça, a detentiva, ou seja, a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiá-

trico e a restritiva, o tratamento ambulatorial. O prazo máximo da medida de segu-

rança será indeterminado até a perícia médica constatar a cessação da periculosi-

dade. O prazo mínimo varia de um a três anos.

A liberdade provisória é o direito de aguardar o processo criminal em liberda-

de, com ou sem o pagamento de fiança, até o trânsito em julgado da sentença final.

Se condenatória, toma possível a efetivação da sanção penal imposta através do

processo de execução penal e, se absolutória, transforma a liberdade em definitiva,

30 Ibid, p.175.

26

consagrando o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana31 previsto no

artigo 1o, inciso III da Constituição Federal.

A liberdade provisória é vinculada ou não a certas obrigações que visam a

garantir o comparecimento do acusado ao processo e ao juízo, sem que o mesmo

seja recolhido à prisão. Sobrevindo o trânsito em julgado da condenação, resta pre-

judicado o pedido de deferimento de liberdade provisória.

A concessão da liberdade provisória é ato vinculado, pois depende do preen-

chimento dos requisitos previstos em lei, de forma que uma vez preenchidos os

requisitos legais o juiz deverá conceder a liberdade provisória, que não é mera fa-

culdade judicial, mas direito público subjetivo do réu ou indiciado.

Essa concessão depende da presença de alguns pressupostos: a) primarie-

dade: o réu primário é o que não possui na data do crime condenação anterior tran-

sitada em julgado. A primariedade não gera direito subjetivo à fixação da pena base

no mínimo legal; b) bons antecedentes: os antecedentes são todos os fatos ou epi-

sódios da vida do agente antes da prática do fato criminoso. A análise dos antece-

dentes é feita sobre o comportamento social, familiar, profissional, judicial, policial e

cotidiano do agente; c) residência fixa; d) ocupação lícita.

A vedação da liberdade provisória não pode estar fundamentada apenas na

gravidade abstrata do crime. É importante ressalvar que a proibição da liberdade

provisória com fiança não compreende a da liberdade provisória sem a fiança.

2.3 LEGALIDADE PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Conhecido por princípio da legalidade, da estrita legalidade, princípio da re-

serva legal ou princípio da intervenção legalizada, este comando denota a existência

de uma infração penal e de uma pena à previsão legal específica, e dele são extraí-

das inúmeras consequências ( conteúdo, destinatários, eficácia etc.). Mas impõe-se

destacar que o princípio da legalidade, com os contornos hoje admitidos, encontra-

se arraigado ao pensamento iluminista oriundo, principalmente, do século XVII32.

31 GEMAQUE, Sílvio Cezar Arouk. Dignidade da pessoa humana e prisão cautelar. São Paulo: RCS Editora, 2006, apud Messa, op. cit. p.379. 32 CARVALHO, op. cit., p.30.

27

Esse postulado incide na fase de execução penal como forma de não subme-

ter à fase de cumprimento da pena ao arbítrio e parcialidade dos membros da Admi-

nistração Pública, fazendo com que sejam observados os deveres e direitos dos

condenados, em conformidade com as previsões constantes das leis e dos regula-

mentos.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5°, inc.

XXXIX dispõe que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia

cominação legal, recepcionando, pois, a redação semelhante do art. 1° do Código

Penal Brasileiro, Decreto-lei na 2.848, de 7 de dezembro de 1940, com as modifica-

ções introduzidas pela Lei na 7.209, de 11 de julho de 198433.

Nessa época é que surgiu a ideia de expressão determinante da lei contra a

arbitrariedade estatal irracional. Assim, como o postulado dos direitos naturais e in-

violáveis da pessoa em relação à sua liberdade, limitando-se, em decorrência disso,

a tarefa do Estado à proteção do Direito na exigência de dar segurança e certeza ao

Direito em benefício de uma burguesia que ganhava progressivamente influência.

Com a teoria do contrato social nasce o Estado garantidor dos direitos do homem,

vinculando-se a sua atuação à proteção destes34.

Segundo Cezar Roberto Bitencourt35, a gravidade dos meios que o estado

emprega na repressão do delito, a drástica intervenção nos direitos mais elementa-

res e por isso mesmo fundamentais da pessoa, o caráter ultima ratio que esta inter-

venção deve ter, impõem necessariamente a busca de um princípio que controle o

poder punitivo estatal e que confine sua aplicação em limites que excluam toda arbi-

trariedade e excesso do poder punitivo.

O professor Damásio Evangelista de Jesus ensina que:

O Princípio da Legalidade tem significado político, no sentido de ser uma garantia constitucional dos direitos do homem. Constitui a garantia fundamental da liberdade civil, que não consiste em fazer tudo o que se quer, mas somente aquilo que a lei permite. À lei e somente a ela com-pete fixar as limitações que destacam a atividade criminosa da atividade legítima. Esta é a condição de segurança e liberdade individual. Não haveria, com efeito, segurança ou liberdade se a lei atingisse, para os punir, condutas lícitas quando praticadas, e se os juízes pudessem pu-nir os fatos ainda não incriminados pelo legislador36.

33 Ibid., 34 ANDREUCCI, op. cit., p.278. 35 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p.10. 36 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Parte Geral. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p.51

28

Salo de Carvalho afirma que o ideal da segurança jurídica impõe que o con-

vívio social possa ser regulado por normas de conduta, desde que aos integrantes

dessa sociedade seja conferida a devida previsibilidade das consequências de suas

ações.

Dessa necessidade é que surgem os quatro desdobramentos do princípio da

legalidade, já consagrados pela doutrina em geral nas seguintes regras: a) nullum

crimen, nulla poena sine lege previa, b) nullum crimen, nulla poena sine lege stricta,

c) nullum crimen, nulla poena sine lege scripíta, e d) nullum crimen, nulla poena sine

lege certa37.

A verdade é que o princípio da legalidade atravessa uma dupla crise nos dias

atuais. Uma primeira crise, que se pode denominar política, decorre do fato de tal

princípio possuir os mesmos contornos estabelecidos há mais de dois séculos, ao

mesmo tempo em que o nosso Estado não é mais o Liberal, mas sim o Democrático

de Direito.

Além disso, também existe outra crise, a de legitimidade da reserva legal: embora os quatro desdobramentos antes enumerados sejam reconhecidos e aceitos pela comunidade jurídica de um modo geral, o certo é que a função dessa garantia vem se apresentando, salvo algumas exceções, como um simples fator de (des)legitimação ex-terna do ordenamento jurídico, ou seja, como uma mera recomenda-ção legiferante e judicial que, acaso inobservada, não será capaz de gerar a invalidação do ato que a contraria (deslegitimação interna). Assim, p. ex., ao mesmo tempo em que a exigência de lei estrita de-termina ao juiz que interprete restritivamente toda norma penal incri-minadora, temos tribunais brasileiros aplicando verdadeira analogia in mallam partem, disfarçada sob as vestes de uma interpretação a-nalógica que sequer tem fundamentação plausível perante a moder-na hermenêutica38.

Em outros casos, o princípio da legalidade obriga toda lei a ser suficientemen-

te clara quanto à sua abrangência, ao mesmo tempo em que no Brasil se tem um

tipo penal que sujeita alguém a uma pena somente no caso de contrariar "princípios

éticos". Portanto, depara-se o "cientista penal brasileiro", hoje, com um dilema: vê-se

obrigado a ampliar um princípio da legalidade aos moldes constitucionais atuais,

sendo que tal princípio sequer restou observado em seus velhos ditames. Vive-se

num Estado Democrático de Direito sem que, ao menos em matéria penal se tenha

aprendido a viver legitimamente num Estado de Direito..

37 CARVALHO, op. cit., p.32. 38 Ibid.

29

A garantia da legalidade não se contenta ao menos no regime políti-co de nosso País, com o seu alcance decorrente do tradicional mo-delo liberal-individualista predominante no clássico Estado Liberal. Nesse sentido, temos apenas um princípio da legalidade lato sensu, de conteúdo quase que meramente formal e capaz de legitimar sis-temas de Direito Penal Máximo, adstritos, apenas, à observância das competências, dos procedimentos legislativos específicos e da prévia e taxativa cominação legal dos crimes, das penas e do processo pe-nal39..

O princípio ora em estudo exige que a lei defina abstratamente um fato, ou

seja, uma conduta determinada de modo que se possa reconhecer qual o compor-

tamento considerado como ilícito. Infringe, assim, o princípio da legalidade a descri-

ção penal vaga e indeterminada que não possibilita determinar a abrangência do

preceito primário da lei penal e possibilita com isso o arbítrio do julgador.

Em razão do princípio da legalidade, a doutrina tem reconhecido uma série de

outros princípios que formam um todo indivisível de modo que a realização de cada

um é imprescindível.

2.4 DIFERENÇA ENTRE LICITUDE E ABUSO Rômulo de Andrade Moreira40 aduz que a Lei de Abuso de Autoridade tem

objetivos primordiais que são que a função pública seja exercida na mais absoluta

normalidade democrática, para que os representantes da administração pública te-

nham um comportamento legal, portanto, sem abusos de qualquer ordem e de outro

modo, a lei também visa a proteger as garantias individuais inerentes à pessoa, a-

quelas mesmas postas na Constituição Federal.

O artigo 3° alínea a, da Lei, n° 4.898, de 09 de dezembro de 1965 prevê que

constitui crime de abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção.

O direito à liberdade de locomoção engloba quatro situações: direito de ingressar,

sair, permanecer e deslocar no território nacional. Desse modo, se as algemas forem

39 Ibid p.34. 40 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Algemas pra quem precisa. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7830. Acesso em:15 jul 2011.

30

utilizadas para obstarem ilegalmente o direito de locomoção de uma pessoa estará

configurado o crime do mencionado dispositivo legal41.

No que se refere à incolumidade física pode-se visualizar este tipo penal co-

mo autêntica proteção à pessoa humana que deve ser livre de qualquer lesão ao

corpo e à saúde, uma vez que atos de autoridade podem ser por vezes violentos

quando voltados ao controle da ordem e segurança pública.

O uso de algemas pode constituir abuso de autoridade. Se a regra é a reali-

zação da prisão sem o emprego de força, salvo em caso de necessidade (tentativa

de fuga e resistência), o uso indiscriminado de algemas pode representar a execu-

ção da medida privativa de liberdade desrespeitando-se preceito legal (no caso, o

art. 284 do CPP).

Nucci se reporta ao STF:

No tocante à necessidade ou não do uso de algemas, aduziu-se que esta matéria não é tratada, específica e expressamente, nos Códigos Penal e de Processo Penal vigentes. Entretanto, salientou-se que a Lei de Execução Penal (art. 199) determina que o emprego de alge-ma seja regulamentado por decreto federal, o que ainda não ocor-reu42.

Se reportando, ainda, ao STF Nucci explica:

afirmou-se que, não obstante a omissão legislativa, a utilização de algemas não pode ser arbitrária, uma vez que a forma juridicamente válida do seu uso pode ser inferida a partir da interpretação dos prin-cípios jurídicos vigentes, especialmente o princípio da proporcionali-dade e o da razoabilidade. Citaram-se, ainda, algumas normas que sinalizam hipóteses em que aquela poderá ser usada (CPP, arts. 284 e 292; CF, art. 5.°, incs. III, parte final e X; as regras jurídicas que tra-tam de prisioneiros adotadas pela ONU, N. 33; o Pacto de San José da Costa Rica, art. 5.°, 2). Entendeu-se, pois, que a prisão não é es-petáculo e que o uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional e que deve ser adotado nos casos e com as fi-nalidades seguintes: a) para impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justi-ficado receio de que tanto venha ocorrer para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mes-mo43.

41 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revis-ta dos Tribunais, 2007, p.43. 42 Ibid, p.45. 43 NUCCI, op. cit, p.45.

31

No caso de não haver agressão não haveria motivo para a utilização de al-

gemas se o paciente não demonstrar reação violenta ou inaceitação das providên-

cias policiais.

3 USO DE ALGEMAS: SEGURANÇA OU CONSTRANGIMENTO?

Quando alguém compreende que é contrário à sua dignidade de homem obedecer a leis injustas, nenhuma tirania pode es-cravizá-lo.

Mahatma Gandhi

3.1 SÚMULA VINCULANTE N° 11

A súmula vinculante alinha-se com a crescente tendência de valorização da

jurisprudência no Direito contemporâneo. Existem diversas razões que justificam o

fenômeno. Uma delas é o aumento da litigiosidade, que produziu, ao longo dos últi-

mos anos, uma significativa elevação do número de ações judiciais em tramitação no

país. Uma segunda razão, dentro desse contexto, é a expressiva quantidade de de-

mandas em torno do mesmo objeto, de uma mesma controvérsia jurídica, como por

exemplo a constitucionalidade de um plano econômico ou da cobrança de um tribu-

to. Circunstâncias como essas passaram a exigir a racionalização e a simplificação

do processo decisório44.

Em uma realidade de litígios de massa, não é possível o apego às formas tra-

dicionais de prestação artesanal de jurisdição. A súmula vinculante permite a enun-

ciação objetiva da tese jurídica a ser aplicada a todas as hipóteses que envolvam

44 BARROSO, Luiz Roberto. Controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4 ed. São Pau-lo: Saraiva, 2009, p.81.

32

questão idêntica. Como consequência contribui para a celeridade e eficiência na

administração da justiça, bem como para a redução do volume de recursos que che-

ga ao STF

As súmulas vinculantes poderão ter por objeto a validade, a interpre-tação ou a eficácia de normas determinadas, da Constituição ou da legislação ordinária, editadas por qualquer um dos entes federativos. Nesses termos tanto poderão conferir eficácia geral ao entendimento do STF sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de dis-positivos infraconstitucionais (ou mesmo de emenda à Constituição), quanto fixar a interpretação e o alcance que devem ser conferidos a determinado enunciado normativo, incluindo os artigos da própria Carta45.

Na prática, as súmulas prestam-se a veicular o entendimento do Tribunal a-

cerca de qualquer questão constitucional. Isso porque, estabelecida uma interpreta-

ção vinculante para determinado enunciado normativo, a consequência será a inva-

lidade de qualquer ato ou comportamento que lhe seja contrário, oriundo do Poder

Público ou mesmo de particulares. Foi assim que o STF pôde editar súmulas vincu-

lantes para declarar a invalidade de práticas como o uso indiscriminado de algemas

e o nepotismo, considerando-as incompatíveis com o sentido atribuído a princípios

constitucionais como a dignidade da pessoa humana.

A súmula vinculante não se limita a ser um mecanismo para conferir eficácia

vinculante a decisões produzidas em sede de controle incidental de constitucionali-

dade, embora seja essa uma das aplicações possíveis do instituto. Mais do que isso,

as súmulas permitem que o STF estabeleça uma determinada tese jurídi-

ca,cristalizando as razões de decidir adotadas pela Corte em um enunciado dotado

de eficácia geral. Não por acaso, também decisões produzidas em controle abstrato

podem dar origem à edição de súmulas. Na prática, os enunciados poderão ter obje-

to mais ou menos amplo de acordo com a redação que venha a ser aprovada pelo

STF, variando desde uma afirmação sobre a inconstitucionalidade de determinado

dispositivo infraconstitucional até a definição da interpretação adequada de um arti-

go da própria Constituição46.

As súmulas vinculantes podem ser editadas, revistas ou canceladas por deci-

são de dois terços dos ministros do STF, por iniciativa própria ou mediante provoca-

ção. O quorum qualificado contribui para a legitimidade da vinculação imposta, além

45 Ibid. 46 BARROSO, op. cit., p.83.

33

de promover segurança jurídica, atestando a estabilidade do entendimento sumula-

do.

Júlio fabbrini Mirabete expõe que a figura da pessoa algemada, mesmo que

legalmente presa, é degradante e tem o objetivo de constranger e de provocar, in-

clusive, a sua morte social. No entender de Mirabete:

Prejudicial tanto para o preso como para a sociedade é o sensacio-nalismo que marca a atividade de certos meios de comunicação de massa (jornais,revistas, rádio, televisão, etc.). Noticiários e entrevis-tas que visam não à simples informação, mas que têm caráter espe-taculoso não só atentam contra a condição da dignidade humana do preso, como também podem dificultar sua ressocialização após o cumprimento da pena. Pode ainda o sensacionalismo produzir efeitos nocivos sobre a personalidade do preso. A divulgação e, principal-mente, a exploração, em tom espalhafatoso, de acontecimentos rela-cionados ao preso, que possam escandalizar ou atrair sobre ele as atenções da comunidade, retirando-o do anonimato, eventualmente o levarão a atitudes antissociais, com o fim de manter essa atenção pública em processo de egomania e egocentrismo inteiramente inde-sejável47.

De acordo com esse pensamento, as algemas podem ser empregadas licita-

mente pelos agentes estatais apenas como instrumento de constrição física, para

garantir a segurança pública ou individual e para impedir a fuga do detido ou do pre-

so. De modo algum, as algemas poderão ser utilizadas como instrumento de execra-

ção pública, com o propósito de humilhar ou de ridicularizar a pessoa.

Sendo a Súmula vinculante o instrumento que permite ao Supremo Tribunal

Federal (STF) padronizar uma norma jurídica controvertida para assim evitar a inse-

gurança e disparidade de entendimento em questões idênticas, esta foi inserida na

Constituição Federal de 1988, pela Emenda Constitucional n° 45, de 30 de dezem-

bro de 2004, que se conhece como sendo a reforma do Poder Judiciário.

A Súmula Vinculante n° 11 do STF tem o seguinte texto:

Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado re-ceio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por es-crito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente

47 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 123.

34

ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado48.

Uma das preocupações do STF quando editou a Súmula Vinculante n° 11 foi

a falta de invocação de um motivo concreto que justificasse o uso das referidas al-

gemas. Não foi proibido o uso e sim o abuso.

Argumentou o STF sobre a deficiente estrutura do Estado que nem por isso

autoriza o desrespeito à dignidade do envolvido. A Súmula n° 11 deu-se em razão

do vácuo legislativo, (ausência de norma específica na Constituição Federal de 1988

e de legislação própria sobre o uso de algemas).

Na realidade, a referida Súmula foi editada por força do Habeas Corpus nº

91.952, do qual foi relator o Ministro Marco Aurélio, em que restou anulado o julga-

mento realizado pelo Júri popular, em virtude de o réu ter sido mantido algemado

durante toda a sessão, influenciando no convencimento dos jurados. Perceba-se,

portanto, que a Súmula acabou sendo mais abrangente do que o próprio precedente

que lhe deu origem.

O efeito vinculante da Súmula tem o seguinte procedimento: a autoridade que

contrariar ou aplicar a súmula de forma indevida, será objeto de reclamação no Su-

premo Tribunal Federal que, depois de analisar o caso concreto, poderá anular o ato

ou determinar que se proferira outra decisão em observância aos termos da Súmula,

preservando deste modo a autoridade das decisões emitidas pela Corte Suprema.

Conforme matéria de Rodrigo Carneiro Gomes na Revista Jurídica Consulex,

em razão da "Operação Dominó", deflagrada pela Polícia Federal em 04 de agosto

de 2006, no Estado de Rondônia, o excelso Supremo Tribunal Federal foi instado a

se manifestar sobre o "uso de algemas". Reconheceu a Corte que a matéria não es-

tá regulamentada por falta de ato normativo que explicite o art. 199 da Lei de Execu-

ção Per al: "O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal". que deve

ser entendido como lei federal49..

Segundo noticiado no Informativo STF n° 437, no julgamento unâni-me do HC n° 89429-RO, Relatora Ministra Cármen Lúcia, em

48 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/DJE_11.11.2008.pdf. Acesso em 15 jul 2011. 49 CAPEZ, Fernando. A questão da legitimidade do uso de algemas. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2219, 29 jul. 2009. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/13245>. Acesso em: 17 jul. 2011

35

22.08.06, ficou assentado que o uso de algemas não podo ser arbi-trário. Mais adiante afirma-se "que a prisão não é espetáculo", com o que concordamos plenamente. Aliás, uma das maiores críticas à atu-ação da Policia Federal ocorre, principal -mente, quando presos tem-porários são expostos à ação devas tadora das câmeras de televi-são, o que deve ser revisto com urgência. Todavia, sem o registro midiático das prisões, possivelmente o STF não tivesse sido provo-cado, embora seja de todo recomendável a manifestação pretoriana sobre o assunto50.

O STF complementa afirmando que o recurso de algemas "deve ser adotado

nos casos e com as finalidades seguintes: a) para impedir, prevenir ou dificultar a

fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado

receio de que tanto venha a ocorrer; b) para evitar agressão do preso contra os pró-

prio? policiais, contra terceiros ou contra si mesmo."

O acórdão terminou por reconhecer que o uso de algemas é regra, e não ex-

ceção. O preso que tem contra si expedido mandado de prisão é de periculosidade

presumida.

O instinto humano é de liberdade e a presunção júris tantum é de procura incessante por essa presunção, a exemplo dos casos "Salva-tore Caciolla", "Jorgina de Freitas", "PC Farias", entre outros que buscaram abrigo internacional.É ditado popular que toda regra tem exceção, mas não quanto à fuga do preso: até aqueles que necessi-tam de cuidados médicos buscam a liberdade quando de sua inter-nação; ademais, os tribunais admitem que a tentativa de fuga é um direito do preso51.

A literatura policial está recheada de casos de presos algemados para frente,

que retiram a arma do policial e fogem nos aeroportos, ou, quando conduzidos em

viaturas sem algemas, agridem a escolta, provocando o capotamento do veículo,

com vítima fatal. Por outro lado, o magistrado não tem como aquilatar a periculosi-

dade do agente criminoso no momento da prisão. Pode fazê-lo na decisão que de-

termina a prisão temporária, mas não terá elementos concretos, por falta de juízo de

antecipação fática, para prever como o preso irá se portar no ato de leitura do man-

dado de prisão.

Um pacato pai de família, na iminência de ter a liberdade restringida, usará

todos os recursos ao seu alcance para se livrar solto. Que parâmetros então utilizar?

O preso bacharel em Direito teria mais condições de avaliar seu status libertatis O

assaltante de banco, réu primário sem antecedentes criminais, deveria ser algema-

50 GOMES, Rodrigo Carneiro. Algemas, segundo o STF. Brasília: Revista Consulex, 2007, p. 34. 51 Ibid., p.34.

36

do? O nível social ou de escolaridade contaria pontos para a retirada das algemas

do preso de colarinho branco ou parlamentar?

A discriminação, em qualquer dos casos referidos, seria odiosa e quebraria a

isonomia constitucional, como faz o art. 242 c/c o art. 234 § 1o, última parte, do Có-

digo de Processo Penal Militar (CPPM) que veda o uso de algemas em ministros,

parlamentares e outras autoridades que elenca. Obviamente, a nova ordem constitu-

cional não abraçou o questionável sistema de privilégios dos citados dispositivos do

CPPM, resquício de uma época de intangibilidade das autoridades, com escassos

instrumentos de controle social e de prestação de contas.

No que concerne aos atos administrativos, a Lei n. 11.417/2006 pretendeu

evitar esse risco por meio de algumas disposições racionalizadoras. Em primeiro

lugar, a via da reclamação para o STF somente se abre após o esgotamento das

instâncias administrativas52.

Em segundo lugar, recursos administrativos em que se alegue violação à sú-

mula, a autoridade encarregada de decidir estará obrigada a expor as razões que a

levam a considerar o enunciado aplicável ou inaplicável, conforme seja o caso. Por

fim, uma vez provida reclamação, a autoridade administrativa será notificada para

adequar sua conduta no caso em concreto e também nos subsequentes, sob pena

de responsabilização pessoal.

A Lei n. 11.417/2006 admite que a eficácia imediata das súmulas excepciona-

da em nome da segurança jurídica ou de relevante intere público, mediante decisão

de dois terços dos Ministros. Essa espécie de modulação temporal não terá o con-

dão de conferir à súmula eficácia retroativa, servindo, ao contrário, para protrair a

sua aplicação limitar o alcance de seus efeitos. Ao que tudo indica, esse tipo de pro-

vidência tende a ficar limitado aos casos em que o STF resolva atribuir efeitos pros-

pectivos à própria decisão que originou a súmula53.

52 BARROSO, op. cit., p.88. 53 Ibid.

37

3.2 DIFERENTES POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE A LIMITAÇÃO DO USO DE ALGEMAS ATRAVÉS DA SÚMULA VINCULANTE N°.11 “A súmula vinculante n° 11 foi inspirada pela intenção do STF de evitar o avil-

tamento da dignidade humana de pessoas presas que porventura sejam expostas à

exposição na mídia”. Assim se expressa Rodrigo de Abreu Fudoli, Promotor de Jus-

tiça e mestre em ciências penais. Dispõe o art. 199 da Lei de Execução Penal - Lei

nº 7.210, de julho de 1984, que o emprego de algemas será disciplinado por decreto

federal, no entanto até hoje não existe esse decreto federal que cuide da matéria54.

Luiz Flávio Gomes adverte e explica que "não se pode considerar nenhum

acusado como uma não pessoa (como um não humano). Nesse equívoco incorre o

Direito penal do inimigo que, partindo da ideologia do inimigo, ofende princípios bá-

sicos como a presunção de inocência”55

Parte da doutrina entende que não é possível arguir a inconstitucionalidade

das Súmulas por meio abstrato de normas e argumenta que a própria Constituição

fixou a norma de rever o enunciado, isto é, a lei previu a forma específica da revisão

e cancelamento das Súmulas Vinculantes nos moldes do Art. 123-A, parte final.

Há questionamento sobre a edição da súmula em comento, se não seria ela

é inconstitucional, visto que no ordenamento jurídico do Brasil não é dado ao STF o

poder de legislar, e pelo fato de não existir lei infraconstitucional sobre o uso de al-

gemas, a Suprema Corte teria exacerbado sua competência.

O pensamento dos que são a favor do uso das algemas, é que seria correto

que o STF modificasse o seu posicionamento acerca do assunto anulando a Súmula

em questão. Eles defendem que se o simples emprego das algemas causa cons-

trangimento, o que se dirá, então, da prisão? Fosse essa uma justificativa razoável,

seria preciso eliminar a prisão quanto àqueles que não representam perigo à integri-

dade física própria ou de outrem56.

54 FUDOLI, Rodrigo de Abreu. Uso de algemas: a súmula vinculante n° 11, do STF. Jus Navigandi, Teresina, n. 1875, 19 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1625>. Acesso em: 17 jul, 2011. 55 GOMES, Luiz Flávio. Algemas: STF disciplina seu uso. Revista Direito Militar, n° 72. São Paulo, 2008, p. 30. 56 SALLES, Tarcísio. Inconstitucionalidade e inaplicabilidade da Súmula Vinculante n° 11. Dispo-nível em www.jurisway.org.br, acesso em 16 jul 2011.

38

Na atual conjuntura seria viável sua aplicação pelos detentores do poder, nos

moldes em que foi editada. E caso tivesse de ser aplicada estaria beneficiando por

completo a integridade do preso ou de terceiro?

O pensamento de José Anchieta da Silva é o de que “a doutrina contrária às

súmulas vinculantes afirma que haverá verdadeiro engessamento de todo o Poder

Judiciário e consequente paralisia na evolução do Direito, além da possibilidade de

maior totalitarismo do órgão de cúpula judicial”57.

A decisão que adveio dos Habeas Corpus que geraram a súmula vinculante

nº 11 foi feita em sede de controle difuso de constitucionalidade, sendo que este ins-

tituto só faz lei entre as partes. Quanto à análise da inaplicabilidade no dia a dia fo-

rense, entende-se que a súmula em comento abarca uma carga subjetiva e de difícil

aplicação.

Quem defende a aplicabilidade do mecanismo de controle em estudo valem-

se, principalmente, da defesa dos atores da segurança pública e da coletividade,

bem como da atenção ao princípio da isonomia.

3.3 JURISPRUDÊNCIA Desde o período do Império, em seu artigo 28, o Decreto n° 4.824 de 22 de

novembro de 1871 já havia a recomendação de que o preso não seria conduzido

com ferros, algemas ou cordas, salvo se fosse caso extremo de segurança justifica-

do por seu condutor58.

Com relação ao assunto, na atualidade brasileira, manifestou-se o Ministro

Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal: "É uma temeridade. Atitudes

como essa só se adotam em situações extravagantes. "Em alguns casos fazem-se

verdadeiros espetáculos. As autoridades devem agir com bom senso, guiadas pelas

circunstâncias59.

Ana Flávia Messa destaca a manifestação do Superior Tribunal Federal a

respeito do uso de algemas:

57 SILVA, José Anchieta da. A súmula de efeito vinculante amplo no direito brasileiro: um pro-blema e não uma solução. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p.28. 58 GOMES, op. cit., p. 37. 59 Ibid.

39

Penal. Réu. Uso de algemas. Avaliação da necessidade. A imposi-ção do uso de algemas ao réu pode constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser feita de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado. Recurso provido60.

Ana Flávia Messa revela o posicionamento da Ministra Carmem

Lúcia a respeito: “a prisão não é espetáculo e o uso legítimo de algemas só deve ser

utilizado em casos excepcionais”61.

No Habeas Corpus, com pedido liminar, impetrado pelo Bel. César Castellucci

Lima alegando que o paciente Mitsuro Hidiwai Nogueira na iminência de sofrer cons-

trangimento ilegal em decorrência da decisão da autoridade impetrada que indeferiu

o pedido do não uso de algemas no paciente durante a oitiva de suas testemunhas

de defesa, a parte impetrante sustenta inexistir motivos justificadores para a utiliza-

ção deste mecanismo no agente, pois as testemunhas a serem ouvidas serão as de

defesa, com a oitiva de sua mãe como informante, revelando que a utilização deste

expediente é desnecessário, desproporcional, degradante e desumano e lhe acarre-

tará traumático constrangimento ilegal, inclusive repassando as testemunhas pre-

sentes a impressão de já ser o paciente condenado.

O pedido para a concessão de liminar foi indeferido porque, não foi vislum-

brado qualquer ilegalidade ou constrangimento ilegal capaz de obstar o uso de al-

gemas no paciente, na audiência para a oitiva das testemunhas de defesa62.

STF. Habeas Corpus nº 71.195-264, acórdão publicado no Diário da Justiça,

em 4 de agosto de 1995:

Habeas Corpus. Concurso material de crimes. Protesto por novo jú-ri.Pena inferior a vinte anos. Medida justificada. I – No concurso ma-terial de crimes considera-se, para efeito de protesto por novo júri, cada uma das penas e não sua soma. II – O uso de algemas durante o julgamento não constitui constrangimento ilegal se essencial à or-dem dos trabalhos e à segurança dos presentes.Habeas Corpus in-deferido63.

60 BRASIL, STJ. Recurso ordinário em Habeas Corpus n° 5.663 SP. Rel. Min.William Patterson. 8ª Turma. Julgado em 19.08.96. DJU 23.09.96. 61 MESSA, op. cit., p. 146. 62 BRASIL, HC Nº 496177-5 Vara Criminal da Comarca de Colorado. Impetrante: Bel. César Castellucci Lima. Paciente: Mitsuro Hidiwai Nogueira. Impetrado: Juiz de Direito da Vara criminal Relatora: Des.. Maria José Teixeira.Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6187326/habeas-corpus-crime-hc-4961775-pr-0496177-5-tjpr/inteiro-teor Acesso em 17 jul 2011. 63BRASIL, STF Habeas Corpus nº 71.195-2-São Paulo. Rel. Min. Francisco Rezek. Disponível em: www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listar jurisprudencia.asp. Acesso em: 17 jul 2011.

40

No julgamento, realizado no STJ, do HC nº 35.540/SP65, cujo paciente é o

Juiz João Carlos da Rocha Mattos, investigado pela Operação “Anaconda” da Polícia

Federal, acórdão publicado no Diário da Justiça, em 6 de setembro de 2004, p. 285,

relatado pelo Ministro José Arnaldo da Fonseca, está disposto que:

Cuida-se de ordem de habeas corpus impetrada pela advogada Da-niela Pellin, em favor de João Carlos da Rocha Mattos, contra ato da Desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que manteve o magistrado sob algemas quando do retorno a PF de Bra-sília, depois de ter tido audiência com a Relatora, legitimando a con-duta abusiva anterior praticada pela polícia federal de Brasília que, algemou de antemão e de per si o magistrado sem qualquer determi-nação judicial que, agora, entende tê-la, tanto é que o algemou. Ha-beas Corpus. Penal. Processual Penal. Os pedidos referentes à: apu-ração de responsabilidade por haver violação de segredo de justiça, proibição de veiculação de imagens do paciente e fixação de mensa-gem, vedando filmagens, no Tribunal, não são compatíveis com o ob-jeto da ação constitucional eleita, que se restringe à liberdade de lo-comoção. O uso de algemas pelos agentes policiais não pode ser co-ibido, de forma genérica, porque algemas são utilizadas, para aten-der a diversos fins, inclusive proteção do próprio paciente, quando, em determinado momento, pode pretender autodestruição. Ordem denegada64.

Observa-se, então, que a utilização das algemas é um procedimento que visa

a cautela de interesses públicos primários, devendo estar acima do interesse indivi-

dual. Ainda que, sendo um meio necessário de proteção dos direitos humanos, in-

clusive o do que está sendo conduzido, sua correta utilização proporciona aos agen-

tes do Estado uma maior segurança na hora de conter um agressor e evita que o

policial utilize meios coercitivos mais violentos.

64 BRASIL STJ, HC nº 35.540/SP. Disponível em: http://intranet.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/hc 35540. Acesso em 17 JUL 2011.

41

CONCLUSÃO

O estudo chega à sua fase de conclusão após ter analisado a utilização de

algemas no Brasil e os efeitos da Súmula Vinculante n° 11 do Supremo Tribunal Fe-

deral que tratou da limitação do seu uso, despertando vários posicionamentos a fa-

vor e contrários a esse procedimento.

O princípio da dignidade da pessoa humana foi enfatizado, uma vez que é a

dignidade humana que orienta os essenciais direitos da pessoa, dela inseparáveis;

dignidade é um valor supremo que dita e limita o alcance de todo e qualquer direito,

norma ou princípio, conforme dita a Constituição.

Investigou-se, também, se o uso de algemas viola o direito fundamental à in-

tegridade física e moral daquele que está sendo preso, amparado pela Lei Maior as-

sim como pela Lei de execuções Penais e pelo Código de Processo Penal. Isso por-

que, na seara dos direitos fundamentais o abuso do direito se configura quando a

ação ou conduta viola direitos garantidos por norma constitucional.

Destacou-se a iniciativa da Suprema Corte limitando o uso de algemas para

resguardar os direitos mínimos dos presos; estudou-se a repercussão causada no

âmbito jurídico e se as forças policiais devem utilizar algemas como instrumento de

trabalho, com o objetivo de conter ou de transportar o preso, independentemente da

sua condição social.

42

Foi verificado que a imposição das algemas, por si só, implica em violação ao

princípio constitucional da dignidade da pessoa humana; por outro lado fica a dúvida

se a aplicação da medida de segurança não tem por objetivo amparar direitos maio-

res que são o direito à vida dos servidores da segurança pública e da coletividade,

sendo então bem controversa esta questão.

Torna-se forçoso reconhecer que o princípio da dignidade humana deve ser

respeitado, guardadas as devidas proporções que cada caso concreto necessitar,

pois não há como, com base nesse princípio deixar que os agentes fiquem despro-

tegidos legalmente no exercício de suas funções.

Os direitos fundamentais se autolimitam segundo a teoria dos limites e ha-

vendo conflito entre eles recorre-se à ponderação de bens para que se determine,

no caso concreto, qual valor constitucional deve prevalecer em determinadas cir-

cunstâncias.

Após verificação dos pontos mais polêmicos do tema em questão conclui-se

que o ordenamento jurídico brasileiro necessita de uma legislação federal que dis-

ponha sobre o correto uso das algemas por meio de critérios que garantam a todos

segurança e também que haja respeito ao cidadão detido que não perde seus direi-

tos apenas pelo fato de ter cometido um delito.

43

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