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1.1 INTRODUÇÃO O objetivo da unidade 1 é conceituar a ciência antropológica que tem como premissa o entendimento do homem completo e cuja preocupação é a compreensão da existência humana em sua expressão global, ou seja, biopsicocultural. É destacada a importância do trabalho de campo para o antropólogo da cultura e suas etapas de pesquisa. O estudo da Antropologia cultural propicia ao ser humano o desenvolvimento de uma atitude sempre aberta ao aprendizado com a alteridade e, desse modo, estimula o respeito às diversidades culturais. Na unidade 1, serão abordadas as seguintes temáticas: » Conceituação da Ciência Antropológica; » Os Campos de Estudo da Antropologia; » As Etapas de Pesquisa da Antropologia Cultural; » A Antropologia Cultural e a Noção de Alteridade. AULA 1 Antropologia: a Cultura como Objeto de Estudo Autor: Prof. Dr. Marcelo Flório

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1.1 INTRODUÇÃO

O objetivo da unidade 1 é conceituar a ciência antropológica que tem como premissa o entendimento do homem completo e cuja preocupação é a compreensão da existência humana em sua expressão global, ou seja, biopsicocultural. É destacada a importância do trabalho de campo para o antropólogo da cultura e suas etapas de pesquisa. O estudo da Antropologia cultural propicia ao ser humano o

desenvolvimento de uma atitude sempre aberta ao aprendizado com a alteridade e, desse modo, estimula o respeito às diversidades culturais.

Na unidade 1, serão abordadas as seguintes temáticas:

» Conceituação da Ciência Antropológica;

» Os Campos de Estudo da Antropologia;

» As Etapas de Pesquisa da Antropologia Cultural;

» A Antropologia Cultural e a Noção de Alteridade.

AULA 1Antropologia: a Cultura como Objeto de EstudoAutor: Prof. Dr. Marcelo Flório

ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

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Ao final da unidade, espera-se que você seja capaz de:

» Definir o que é a Ciência Antropológica;

» Refletir sobre os diversos campos de estudo da Antropologia;

» Compreender as etapas de pesquisa da Antropologia Cultural;

» Entender a importância do estudo da alteridade para a Antropologia Cultural.

1.2 CONCEITUAÇÃO DA CIÊNCIA ANTROPOLÓGICAA expressão “Antropologia” deriva de duas palavras gregas: anthropos, que significa “homem” e logos, que significa “estudo”. O objeto de estudo da ciência antropológica é o HOMEM em suas dimensões biológica e sociocultural. A antropologia é uma ciência que tem como objetivo o conhecimento do homem a partir do trinômio: Ciência Social, Ciência Humana e Ciência Natural (MARCONI; PRESOTTO, 2011, p. 1):

1) A Antropologia - enquanto ciência social - tem como proposta conhecer o homem enquanto indivíduo que interage em grupos sociais organizados.

2) A Antropologia - enquanto ciência humana - tem como objetivo conhecer o homem no todo: as crenças, costumes, história e linguagens.

3) A Antropologia - enquanto ciência natural - tem como intenção o estudo da evolução humana.

A Antropologia é o estudo do homem completo e tem como premissa a compreensão da existência humana em sua expressão global, isto é, BIOPSICOCULTURAL. Nessa dimensão analítica, o objetivo é entender o homem como ser biológico pensante, como produtor de culturas e como participante da sociedade. Desse modo, pode-se afirmar que a ciência antropologia tem como objetivo o (idem, 2011, p. 2):

(...) conhecimento completo do homem, o que torna suas expectativas muito mais abrangentes. Dessa forma, uma conceituação mais ampla a define como a ciência que estuda o homem, suas produções e seu comportamento. O seu interesse está no homem como um todo – ser biológico e ser cultural -, preocupando-se em revelar os fatos da natureza e da cultura. Tenta compreender a existência humana em todos os seus aspectos, no espaço e no tempo, partindo do princípio da estrutura biopsíquica. Busca também a compreensão das manifestações culturais, do comportamento e da vida social.

Também para o estudioso Edgar Morin (2000, p. 145-146), o homem não pode ser visto separado ou fragmentado, à medida que o homem é um sistema complexo: cérebro, genética e cultura. Segundo o pensador, o sistema sociocultural atualiza as competências do cérebro:

O ecossistema controla o código genético (a seleção natural, que nós consideramos como um aspecto da interação natural complexa), co-organiza e controla o cérebro, o qual condiciona a sociedade e o desenvolvimento da complexidade cultural. O sistema sociocultural atualiza as competências do cérebro, modifica o ecossistema e desempenha mesmo o seu papel na seleção e na evolução genética.

Nessa perspectiva, o objetivo da antropologia não é dividir o homem em natureza e cultura, mas apreendê-lo como “homem total”, tal como sugeriu o antropólogo francês Marcel Mauss. Nessa perspectiva, o ser humano é, ao mesmo tempo, biológico, psicológico e sócio-histórico. Segundo Rocha e Tosta (2009, p. 29-30), somente em tempos recentes é que a ciência antropológica parece resgatar

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sua pretensão inicial de ter como foco o estudo do homem em sua complexidade e totalidade, pois durante muito tempo esteve presa a paradigmas limitadores que funcionaram como camisa de força para o pensamento antropológico, de modo a separar natureza de cultura.

O homem é um ser de nível muito mais complexo se comparado com outros habitantes do planeta: os animais irracionais. O homem é um ser humano, porque é racional, simbólico e ser “aprendente” (a capacidade ilimitada de desenvolver aprendizados na vida cotidiana em sociedade). De acordo com Brandão (apud ROCHA; TOSTA, 2009, p.12), o aprendizado do homem é ilimitado e é diferente do aparato cognitivo dos animais irracionais, cujos aprendizados são limitados pelo primado do condicionamento genético:

(...) não somos humanos apenas porque somos racionais ou simbólicos. Somos humanos porque somos seres aprendentes. Os animais pertencem ao primado do condicionamento genético, da instrução, do treinamento, do adestramento, e esses são os limites de seu aprendizado. Nós, os humanos, somos seres disso tudo também. (...) Somos seres de algo bem mais complexo. Algo que ao longo da história foi recebendo nomes como capacitação, educação, formação humana. Afinal, os animais sabem e sentem. E nós sabemos e sentimos. Mas a diferença está em que nós sabemos que sabemos, e nos sabemos (ou não sabendo); e nos sentimos sabendo e nos sabemos sentindo.

Além das dimensões da vida humana, denominadas como “racional” e “aprendente”, a dimensão simbólica é também parte constitutiva do ser humano, porque o homem está imerso na linguagem e na cultura. Pode-se compreender um valor simbólico como um significado cultural atribuído pelo ser humano a gestos, palavras e/ou objetos materiais de acordo com seu contexto social e histórico. A atribuição de significado é o que faz com que o homem crie/recrie representações e visões de mundo demarcadas por seus valores e sentimentos num determinado espaço geográfico e época histórica.

Nessa vertente, o Antropólogo norte-americano Cifford Geertz (1989) discorreu em sua obra sobre o que vem a ser um traço simbólico na cultura humana e exemplificou com o ato da piscadela. A piscadela é uma contração de pálpebras. Já do ponto de vista simbólico pode ter interpretações diversas. Dentro dessa dimensão analítica, pode significar um convite à cumplicidade. E, para se chegar a uma conclusão de qual o significado do ato “piscadela” é necessário avaliar o contexto social no qual está inserida a referida piscadela.

De acordo com Travancas (2008, p. 99), uma piscadela pode ter múltiplos significados:

Uma piscadela pode ter significados distintos. Pode ser um tique nervoso, pode ser um código de comunicação entre pessoas, pode ser um sinal de paquera, entre outros. E o papel do antropólogo ao realizar uma etnografia (descrição da cultura) será sair da descrição superficial dos fatos e compreender como as piscadelas são produzidas, percebidas e interpretadas pelos “nativos” daquela sociedade. E esta interpretação pode ser completamente diversa daquela do grupo a que pertence o pesquisador.

Pode-se afirmar que a antropologia promove um processo de educação ininterrupto, pois estimula a compreender o “outro” e suas diferenças, como a perceber as diversas possibilidades de ser e estar no mundo. Nesse sentido, convida ao conhecimento de outros modos de sociabilidades e interação socioculturais (idem, 2009, p. 20).

O foco da ciência antropológica é o estudo da cultura produzida pelo ser humano em diversas sociedades. Desse modo, a antropologia não prioriza a pesquisa apenas da civilização ocidental, mas de todos os tipos de sociedades existentes no planeta, sem nenhum juízo de valor e/ou preconceito. Para atingir esse intento, a antropologia promove uma abordagem integrativa, que leva ao estudo das múltiplas facetas da vida humana em sociedade.

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Nessa concepção, o objetivo é não parcelar o estudo do homem, mas decifrá-lo de modo a relacionar os diversos campos de investigação da Antropologia para que se possa compreender a existência humana vivenciada no cotidiano de todas as sociedades. E, é nesse sentido, que o antropólogo Laplantine (2007, p. 15- 16) entende que a antropologia produz um estudo que consiste em estudar o homem inteiro, “em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas”.

Por Que o Homem é um Ser Simbólico?

A dimensão simbólica é constitutiva da vida humana, porque o homem está imerso na linguagem e na cultura e é o que faz com crie/recrie representações e visões de mundo demarcadas por seus valores e sentimentos num determinado espaço geográfico e época histórica. Um valor simbólico é um significado cultural atribuído pelo ser humano a gestos, palavras e/ou objetos materiais de acordo com seu contexto social e histórico.O Antropólogo norte-americano Cifford Geertz discorreu, em sua obra, sobre o que vem a ser um traço simbólico na cultura humana e exemplificou com o ato da piscadela. A piscadela é uma contração de pálpebras. Já do ponto de vista simbólico pode ter interpretações diversas. Dentro dessa dimensão analítica, pode significar um convite à cumplicidade, pode ser um sinal de paquera ou até um tique nervoso. E, para se chegar a uma conclusão de qual o significado do ato da “piscadela”, assim como de outros significados culturais, é necessário avaliar o contexto sócio-cultural.

Referências Bibliográficas:GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.TRAVANCAS, Isabel. Fazendo Etnografia no mundo da Comunicação. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio. Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Editora Atlas, 2008.

1.3 OS CAMPOS DE ESTUDO DA ANTROPOLOGIAA Antropologia é a ciência da humanidade que tem como foco o estudo do homem e tem como preocupação o conhecimento científico do ser humano em sua totalidade e apresenta um campo vasto de pesquisa.

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Dica de Filme: A Guerra do Fogo (La Guerre Du Feu)

Produção: franco-canadenseAno: 1981 Duração: 100 minutosElenco principal: Everetth Mcgill, Ron Perlman, Era Dawn Chong, entre outros.Sinopse: o filme narra o passado pré-histórico da humanidade, com base em estudos paleantropológicos. Discute o processo de homi-nização iniciado há mais de 100 mil anos. Foi exatamente quando, segundo interpretações, o homem desenvolvia os primeiros rudimen-tos da linguagem. O filme demonstra que a posse do fogo representou uma conquista importante para a humanidade. O filme, ainda, propõe o debate sobre: o domínio da técnica de produção do fogo, o processo de aprendizagem da linguagem, as primeiras construções habitacionais e os bens materiais culturais.

Referência Bibliográfica:Rocha, Gilmar; Tosta, Sandra P. Antropologia & Educação. Belo Hori-zonte: Autêntica Editora, 2009.

A Antropologia pode ser dividida em cinco campos de estudo, segundo o estudioso Laplantine: Antropologia Biológica, Antropologia Pré-histórica, Antropologia Linguística, Antropologia Psicológica e Antropologia Cultural (2007, p. 16-20).

1) A Antropologia Biológica

A Antropologia Biológica tem como objetivo o estudo das características biológicas humanas no tempo e no espaço. O antropólogo biologista tem como preocupação em pesquisar como os fatores culturais influenciam o crescimento dos indivíduos, de modo a analisar as particularidades morfológicas e biológicas articuladas ao meio ambiente. É o estudo das formas dos crânios, esqueletos, como também das genéticas das populações.

2) A Antropologia Pré-histórica

A Antropologia Pré-histórica visa reconstituir as culturas do passado que foram extintas em épocas distantes, pois são sociedades que desenvolveram formas culturais que representam fases da humanidade e não estão registradas em documentos escritos. O antropólogo pré-histórico, por meio de técnicas utilizadas no trabalho de escavação e coleta de materiais, interpreta as culturas desaparecidas e trabalha muito próximo do historiador e do arqueólogo e objetiva analisar tanto as técnicas e organizações sociais, quanto suas produções culturais.

3) A Antropologia Linguística

A Antropologia Linguística tem como intenção compreender como os homens expressam suas vivências por meio da linguagem. Isto significa compreender como são expressos os pensamentos, sentimentos e valores através das diversas linguagens produzidas pelo próprio homem: escrita, oralidade, literatura, meios de comunicação, cultura audiovisual e também as culturas tecnológicas virtuais.

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4) A Antropologia Psicológica

A Antropologia Psicológica consiste no estudo do funcionamento da capacidade psíquica do ser humano, pois expressa seus comportamentos de modo consciente e inconsciente. Desse modo, a dimensão psicológica, é importante porque é uma parte constitutiva de toda vida humana e é por esta razão que este estudo atravessa todos os campos da área da Antropologia.

5) A Antropologia Social e Cultural

A Antropologia Cultural tem como objetivo o estudo do homem como ser cultural. Nessa perspectiva, de acordo com os autores Marconi e Presotto (2011, p.4), a intenção é investigar as culturas humanas, suas origens e desenvolvimento, suas semelhanças e diferenças com outras formas culturais. O foco de seu interesse é desvendar o comportamento humano e como o homem desenvolveu seu aprendizado social e cultural.

A Antropologia Social e Cultural estuda tudo o que abrange uma sociedade em suas diversidades históricas e geográficas. Nesse sentido, detém sua preocupação em desvelar um determinado grupo cultural, a partir de uma interpretação de seus modos de produzir economicamente, suas formas de estabelecer as regras das organizações políticas, seus sistemas de parentesco, suas crenças religiosas, suas línguas, suas formas de conhecimento, entre outros aspectos culturais (LAPLANTINE, 2007, p. 19-20).

Para a ciência antropológica na atualidade, a cultura pode ser definida como sendo os valores, ideias e percepções que são compartilhados por uma sociedade e geram comportamentos que refletem um determinado modo de ser e estar no mundo. A cultura é compartilhada pelos membros de um grupo, porém é importante compreender que nem tudo é uniforme, à medida que as pessoas podem apresentar diferentes versões, visões, representações e modos de experienciar a cultura, tanto em sua própria sociedade, quanto de uma sociedade para outra (HAVILLAND ET AL., 2011, p. 191-192).

A antropóloga Ruth Benedict definiu cultura como uma lente por meio da qual o homem vê o mundo. (apud LARAIA, 2006, p. 76) Nessa linha de raciocínio, as pessoas usam lentes diferentes e desse modo apresentam visões diversas sobre a vida. O antropólogo Roque Laraia exemplifica a ideia de lente ao relatar os diferentes olhares sobre os significados da floresta amazônica produzidos por um índio tupi e por um cientista social (2006, p. 67):

(...) a floresta amazônica não passa para o antropólogo – desprovido de um razoável conhecimento de botânica – de um amontoado confuso de árvores e arbustos, dos mais diversos tamanhos e com uma imensa variedade de tonalidades verdes. A visão que um índio Tupi tem deste mesmo cenário é totalmente diversa: cada um desses vegetais tem um significado qualitativo e uma referência espacial. Ao invés de dizer como nós: “encontro-lhe na esquina junto ao edifício X”, eles frequentemente usam determinadas árvores como ponto de referência. Assim, ao contrário da visão de um mundo vegetal amorfo, a floresta é vista como um conjunto ordenado, constituído de formas vegetais bem definidas.

A cultura, além de compartilhada e apresentar variações nos modos dos homens vivenciarem o cotidiano em sua sociedade, é também aprendida. Todos os membros de uma sociedade aprendem as normas e regras estabelecidas a partir da vivência e experiência na cultura: ”Toda cultura é socialmente aprendida, não é herdada biologicamente. Aprende-se a cultura crescendo com ela” (idem, 2011, p. 191).

Desse modo, pode-se afirmar que na cultura as pessoas aprendem os comportamentos sociais adequados para a satisfação das necessidades biológicas (idem, 2011, p. 191). Por exemplo, os seres humanos aprendem culturalmente a comer e a beber em horários estabelecidos culturalmente pelos grupos sociais. Os horários de alimentação variam de uma cultura para outra. De acordo com o

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antropólogo Laraia (2006, p. 77), a sensação da fome é estabelecida diferentemente em cada cultura, porém a fome é um condicionante biológico:

A sensação de fome depende dos horários de alimentação que são estabelecidos diferentemente em cada cultura. (...) Estamos condicionados a sentir fome ao meio dia, por maior que tenha sido o nosso desjejum. A mesma sensação se repetirá no horário determinado para o jantar. Em muitas sociedades humanas, entretanto, estes horários foram estabelecidos diferentemente, e em alguns casos, o indivíduo pode passar um grande número de horas sem se alimentar e sem sentir a sensação de fome.

A Cultura Condiciona a Visão do Ser Humano

O antropólogo Roque Laraia exemplifica que os significados culturais são diferenciados, pois a cultura condiciona a visão de mundo do homem:“(...) a floresta amazônica não passa para o antropólogo – desprovido de um razoável conhecimento de botânica – de um amontoado confuso de árvores e arbustos, dos mais diversos tamanhos e com uma imensa variedade de tonalidades verdes. A visão que um índio Tupi tem deste mesmo cenário é totalmente diversa: cada um desses vegetais tem um significado qualitativo e uma referência espacial. Ao invés de dizer como nós: “encontro-lhe na esquina junto ao edifício X”, eles frequentemente usam determinadas árvores como ponto de referência. Assim, ao contrá-rio da visão de um mundo vegetal amorfo, a floresta é vista como um conjunto ordenado, constituído de formas vegetais bem definidas”.

Referência Bibliográfica:LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 2006, p. 67.

Pode-se citar, também, outro exemplo de atuação da cultura sobre o biológico. É o caso das doenças psicossomáticas, que são influenciadas pelo padrão estabelecido por uma determinada cultura. Há pessoas que no Brasil comentam que sentem mal-estar provocado pela ingestão de certos alimentos e consideram perigosa a combinação de leite e manga: “Muitos brasileiros, por exemplo, dizem padecer de doenças do fígado, embora grande parte dos mesmo ignoram até a localização do órgão. (...) quem acredita que o leite e a manga constituem uma combinação perigosa, certamente sentirá um forte incômodo estomacal se ingerir simultaneamente esses alimentos” (idem, 2006, p. 77).

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Cultura: Compartilhamento e Aprendizado

A cultura, além de compartilhada e apresentar variações nos modos dos homens vivenciarem o cotidiano, é também aprendida. Todos os membros de uma sociedade aprendem as normas e regras estabe-lecidas a partir da vivência e experiência na cultura: ”Toda cultura é socialmente aprendida, não é herdada biologicamente. Aprende-se a cultura crescendo com ela”.Desse modo, pode-se afirmar que na cultura as pessoas aprendem os comportamentos sociais adequados para a satisfação das necessidades biológicas. Por exemplo, os seres humanos aprendem culturalmente a comer e a beber em horários estabelecidos culturalmente pelos grupos sociais. Os horários de alimentação variam de uma cultura para outra. De acordo com o antropólogo a sensação da fome é estabelecida dife-rentemente em cada cultura, já a fome é um condicionante biológico.

Referências Bibliográficas:HAVILLAND, Willian A. et al. Princípios de Antropologia. São Paulo: Cengange Learning, 2011.LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 2006.

1.4 AS ETAPAS DE PESQUISA DA ANTROPOLOGIA CULTURALÉ importante ressaltar que o antropólogo cultural utiliza com mais prioridade as etapas de pesquisa denominadas: Etnografia e Etnologia. Segundo o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1993): a Etnografia, Etnologia e Antropologia são três etapas e momentos específicos de uma mesma pesquisa.

Nessa dimensão interpretativa, a Etnografia (Lévi-Strauss, 1993) consiste no estudo das descrições das sociedades humanas. A etapa etnográfica tem como objeto de estudo a observação e análise de grupos humanos em sua particularidade e visa à reconstituição de seus modos de viver e tem como especialidade o estudo da cultura material e/ou imaterial de cada povo. A base da Etnografia é a “observação participante” efetuada pelo pesquisador-antropólogo.

A antropóloga Ruth Cardoso (1986), ao discutir o papel do investigador em sua prática de campo, entende que há uma valorização da “observação participante”, mas pondera que é fundamental que esta prática não se transforme em “participação observante”, pois dessa maneira o pesquisador deixaria de lado seu compromisso profissional/ ético e se colocaria apenas como um “porta voz” da cultura estudada. Nessa perspectiva, para não incorrer nesse problema, é fundamental refletir que: “embora haja um enorme espaço para a subjetividade do cientista social neste tipo de pesquisa, os dados são formas objetivas e têm vida própria” (apud TRAVANCAS, 2008 p. 103).

A “observação participante” na pesquisa etnográfica é a técnica utilizada para compreender e entender uma determinada cultura, por meio de uma observação e participação do pesquisador-antropólogo. Através da observação participante, o estudioso realiza entrevistas e discussões com membros da cultura a ser investigada (HAVILLAND et al, 2011, p. 10).

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A imagem que se construiu sobre a pesquisa etnográfica foi a de que a pesquisa é realizada com grupos culturais que vivem distantes e isolados dos grandes centros urbanos. No entanto, é importante frisar que, também, as sociedades industrializadas são objetos de estudo da antropologia. Desse modo, os antropólogos do mundo todo empregam as mesmas técnicas etnográficas para o conhecimento de assuntos variados e que fazem parte do cotidiano do homem contemporâneo, como por exemplo: movimentos religiosos, relações afetivas e sexuais, gangues de rua, cotidiano da escola, práticas de casamento, lutas pelo direito a terra, sistemas de saúde, cotidiano das corporações e organizações. (idem, 2011, p. 10-11).

Segundo Havilland et al (2011, p. 10-11), o antropologia na modernidade utiliza as seguintes ferramentas para a pesquisa de campo: “lápis e caneta, cadernetas de campo, máquina fotográfica, gravador, diários de campo e, cada vez mais, computadores. Porém, o mais importante de todos: o etnógrafo precisa ter habilidades sociais flexíveis”.

Travancas (2008, p. 101-102) exemplifica o que vem a ser o trabalho etnográfico de uma pesquisa. Para tanto, relata dois tipos de trabalho de campo etnográfico:

1) O trabalho etnográfico com aldeias indígenas:

Quando se vai estudar uma aldeia indígena, há todo um processo que começa muito antes da chegada do investigador lá. Há muitas etapas e negociações com os órgãos envolvidos, como a Funai, por exemplo, com as lideranças indígenas, para o pesquisador saber se será aceito e quais serão as condições e exigências para sua entrada; em muitos casos, ainda é necessário o apoio ou mesmo a interferência de um outro antropólogo que já tenha investigado a mesma aldeia.

2) O trabalho etnográfico com jornalistas:

Quando decidi acompanhar os repórteres em suas rotinas de apuração, precisei da autorização das chefias. Ou seja, era possível circular pelas redações sem problemas, se você tinha um “passe” – crachá de visitante – concedido por um colega, mas não sair daquela esfera. E para a autorização do chefe de redação era fundamental apresentar uma carta explicando a pesquisa, seus objetivos, prazos e atividades. Feito isso, obtive a autorização, e me solicitaram que eu assinasse uma declaração que desobrigava a empresa de qualquer espécie de seguro de saúde ou de vida para mim, caso ocorresse algum acidente com o carro da reportagem em que eu estivesse.

De acordo com o antropólogo Malinowiski, a etnografia deve incluir uma descrição detalhada de gestos, expressões corporais, usos alimentares, os silêncios e suspiros, os sorrisos, as caretas, os ruídos da cidade e do campo de uma determinada cultura (apud LAPLANTINE, 2004, p. 15), como também o trabalho de campo deve despertar o olhar para uma observação atenta da cultura, de modo a preparar a observação para incluir o inesperado, o desconhecido, a descoberta da outra cultura.

Desse modo, o estudioso Laplantine entende que o ato de “ver” deve ir além do conhecimento já previsto ou do imaginado e abrir-se aos novos conhecimentos da cultura estudada (2004, p. 14):

O ato de ver, informado pelos modelos (e até pelos modos) culturais, está estreitamente ligado ao de prever, e o conhecimento muitas vezes, nessas condições, não vai além de um conhecimento do que já sabíamos. Ver é, na maioria das vezes, por memorização e antecipação, desejar encontrar o que esperamos e não o que ignoramos ou tememos, a tal ponto que pode acontecer-nos de não acreditar que vimos (ou seja, não ver) se tal não corresponde a nossa espera (...).

A Etnologia (idem, 1993) é quando os pesquisadores antropólogos utilizam os dados coletados na etapa da etnografia e desenvolvem uma primeira interpretação e análise das culturas, estabelecendo

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semelhanças e diferenças com outras culturas por meio de um estudo comparativo. A fase etnológica representa um primeiro passo em direção a uma síntese explicativa.

E, por fim, a antropologia cultural (ibidem, 1993) representa a última etapa da síntese explicativa, tomando por base as conclusões da etnografia e da etnologia. Desse modo, a Antropologia Cultural empreende uma análise conclusiva sobre o comportamento cultural humano e deve ser analisado em todo seu processo.

Desse modo, pode-se inferir que o antropólogo é, ao mesmo, tempo o etnógrafo e o etnólogo.

A Descrição Etnográfica: O Processo do “Fazer Ver”

(...) a descrição etnográfica (que significa a escrita das culturas), sem a qual não há antropologia no sentido contemporâneo do termo, não consiste apenas em ver, mas em fazer ver, ou seja em escrever o que vemos. É um processo geralmente implícito, de tão aparentemente óbvio, quando de fato é de uma complexidade inaudita. A indissociabilidade da construção de um saber (antropologia) a partir do ver (etnografia) não tem nada de imediato ou de uma experiência transparente. É uma empresa pelo contrário extremamente problemá-tica que supõe que sejamos capazes de estabelecer entre o que é tido em geral por separado: a visão, o olhar, a memória, a imagem e o imaginário, o sentido, a forma, a linguagem.

Excerto do livro do autor:LAPLANTINE, François. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004, p. 10-11.

1.5 A ANTROPOLOGIA CULTURAL E A NOÇÃO DE ALTERIDADEA Antropologia cultural é uma área de conhecimento que fornece explicações sobre as práticas culturais da alteridade (“estudo sobre o ´outro´”), como também possibilita ao homem uma visão humanista sobre as diferentes formas de viver em sociedade, à medida que pode-se reinterpretar e reavaliar as ações humanas no cotidiano da sociedade. Nessa perspectiva, a Antropologia propicia ao ser humano o desenvolvimento de uma atitude sempre aberta ao aprendizado com as diversidades e diferenças culturais. (LAPLANTINE, 2007, p. 21-22).

Os estudos antropológicos permitiram notar que os comportamentos humanos não nasceram com o homem, não são INATOS. Os comportamentos do homem são construções da cultura. Essa questão pode ser, assim, explicada: as maneiras de andar, caminhar, dormir, os modos de conceber o lazer, a morte, as moradias, os encontros, as formas de amar, as emoções são produtos de escolhas culturais e não são predisposições genéticas ou biológicas. (idem, 2007, 22).

Desse modo, chega-se ao entendimento de que os homens diferenciam-se de outros homens no que concerne à elaboração de seus sistemas culturais e o que há de natural na espécie humana é sua característica de variação cultural. O homem diferencia-se uns dos outros em termos de costumes, línguas e formas de conhecimento (ibidem, 2007, 21):

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De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano e que consideramos evidente. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos não tem realmente nada de “natural”. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento de outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.

O encontro com as outras culturas (a alteridade), a partir da reflexão antropológica, contribui para que o homem ocidental entenda que sua sociedade não é natural; é cultural. Essa constatação possibilita que o homem compreenda que não há apenas uma cultura no mundo. A partir dos estudos da ciência antropológica, é possível vislumbrar que a humanidade habita o universo de maneira pluralizada e multifacetada.

Sobre Etnografia, Etnologia e Antropologia

Segundo o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a Etnografia, Etnologia e Antropologia são três etapas e momentos de uma mesma pesquisa. Desse modo, a Etnografia é a observação, descrição e traba-lho de campo. Já a Etnologia representa um primeiro passo em direção a uma síntese explicativa. E, por fim, a antropologia cultural ou social representa a última etapa da síntese explicativa, tomando por base as conclusões da Etnografia e da Etnologia. Então, pode-se dizer que o Antropólogo é, ao mesmo tempo, Etnógrafo e Etnólogo.

Referência Bibliográfica:LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

A abordagem antropológica produziu uma revolução do olhar, pois rompeu com a noção de que existe um tipo de homem que é o centro do mundo - como o europeu foi identificado durante tanto tempo como a cultura superior e mais importante do planeta - e de que as outras culturas, por serem diferentes, são selvagens. Diante desse acontecimento científico, descobre-se a alteridade (a cultura do outro), o que faz com que o homem seja confrontado constantemente com a multiplicidade de culturas (ibidem, 2007, p.22).

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Dicas de links de vídeos do youtube

Tema: O Que é AntropologiaLink: http://www.youtube.com/watch?v=yLuW_RdweDQ

Tema: Cultura do Ponto de Vista AntropológicoLink: http://www.Youtube.Com/watch?V=ibhxuoykzns

Tema: O Que é Alteridade?Link: http://www.Youtube.Com/watch?V=qhvhlllhrfg

SÍNTESEA Ciência Antropológica é o estudo do homem completo e tem como premissa a compreensão da existência humana, em sua expressão global, ou seja, BIOPSICOCULTURAL. Desse modo, o objetivo é entender o homem como ser biológico pensante, como produtor de culturas e como participante da sociedade.

A Antropologia pode ser dividida em cinco campos de estudo: Antropologia Biológica, Antropologia Pré-histórica, Antropologia Linguística, Antropologia Psicológica e Antropologia Cultural.

Além das dimensões da vida humana, denominadas como “racional” e “aprendente”, a dimensão simbólica é também parte constitutiva do ser humano, porque o homem está imerso na linguagem e na cultura. Pode-se compreender um valor simbólico como um significado cultural atribuído pelo ser humano a gestos, palavras e/ou objetos materiais de acordo com seu contexto social e histórico. A atribuição de significado é o que faz com que o homem crie/recrie representações e visões de mundo demarcadas por seus valores e sentimentos num determinado espaço geográfico e época histórica.

É importante ressaltar que o antropólogo cultural utiliza, com mais prioridade, as etapas de pesquisa denominadas: Etnografia e Etnologia. Segundo o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a Etnografia, Etnologia e Antropologia são três etapas e momentos específicos de uma mesma pesquisa.

Nessa perspectiva, a Etnografia consiste no estudo das descrições das sociedades humanas. A etapa etnográfica tem como objeto de estudo a observação e análise de grupos humanos em sua particularidade e visa à reconstituição de seus modos de viver e tem como especialidade o estudo da cultura material e/ou imaterial de cada povo. Já a etapa denominada Etnologia é quando os pesquisadores antropólogos utilizam os dados coletados na etapa da etnografia e desenvolvem uma primeira interpretação e análise das culturas, estabelecendo semelhanças e diferenças com outras culturas por meio de um estudo comparativo.

O trabalho de campo da etnografia deve despertar o olhar para uma observação atenta da cultura, de modo a preparar a observação para incluir o inesperado, o desconhecido, a descoberta da outra cultura Desse modo, o estudioso Laplantine entende que o ato de ver deve ir além do conhecimento já previsto ou do imaginado e abrir-se aos novos conhecimentos da cultura estudada.

A fase etnológica representa um primeiro passo em direção a uma síntese explicativa. E, por fim, a antropologia cultural representa a última etapa da síntese explicativa, tomando por base as conclusões da etnografia e da etnologia. Desse modo, a Antropologia Cultural empreende uma análise conclusiva sobre o comportamento cultural humano e deve ser analisado em todo seu processo.

AULA 1 - ANTROPOLOGIA: A CULTURA COMO OBJETO DE ESTUDO

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Discutiu-se, também, nesta unidade, que o encontro com as outras culturas (a alteridade), a partir da reflexão antropológica, contribui para que o homem ocidental entenda que sua sociedade não é natural; é cultural. Esta constatação possibilita que o homem compreenda que não há apenas uma cultura no mundo e, principalmente a partir dos estudos da ciência antropológica, pode-se vislumbrar que a humanidade é plural.

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