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GESTÃO CULTURAL - CONCEITOS BÁSICOS ETAPA 1 UNIDADE I O CAMPO DA CULTURA

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GESTÃO CULTURAL - CONCEITOS BÁSICOS

ETAPA 1

UNIDADE I

O CAMPO DA CULTURA

Gestão Cultural – Conceitos Básicos – Etapa I

O Campo da Cultura

Ministério da Cultura - MinC

Ministra da Cultura

Marta Suplicy

Secretário Executivo

Marcelo Pedroso

Realização:

Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura

Henilton Parente Menezes

Equipe da SEFIC

Jorge Alan Pinheiro Guimarães - Diretor de Gestão de Mecanismos de Fomento

Rômulo Menhô Barbosa - Coordenador-Geral de Normatização e Orientação

Telma Silva dos Santos Tavares - Coordenadora de Programas de Capacitação

Tassia Toffoli Nunes - Chefe da Divisão de Análise dos Mecanismos de Capacitação

Secretaria da Economia Criativa

Marcos André Rodrigues de Carvalho

Equipe da SEC

Georgia Haddad Nicolau – Diretora de Empreendedorismo, Gestão e Inovação

Maria Suzete Nunes – Coordenadora-Geral de Ações Empreendedoras

Selma Maria Santiago Lima – Coordenadora de Formação para Competências Criativas

Apoio:

Diretoria de Direitos Intelectuais - SE

Marcos Alves Souza -- Diretor de Direitos Intelectuais

Francimária Bergamo – Coordenadora-Geral de Difusão e de Negociação em Direitos

Autorais e de Acesso à Cultura

FICHA TÉCNICA

Elaboração e Execução do Projeto

Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC – DF

Presidente do Conselho Regional

Adelmir Araújo Santana

Diretor Regional

Luiz Otávio da Justa Neves

Gerente do Centro de Educação Profissional – Educação a Distância

Múcio Fernandes

Gerenciamento e Supervisão do Projeto

Elidiani Domingues Bassan de Lima

Coordenador Pedagógico do Projeto

Alexandra Cristina Moreira Caetano

Elaboração de Conteúdo

Mariella Pitombo Vieira

Design Instrucional

Fábia Kátia Pimentel Moreira

Programação Visual

Glauber Cezar Pereira

Marlos Afonso Serpa de Lira

Ilustração

Eder Muniz Lacerda

Revisão

Maria Marlene Rodrigues da Silva

FICHA TÉCNICA

Sumário

CONCEITOS DE CULTURA ............................................................................................. 5

IDENTIDADE CULTURAL ................................................................................................ 7

DIVERSIDADE CULTURAL .............................................................................................. 9

CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL ............................................................................ 11

PROFISSIONAIS DA ORGANIZAÇÃO DA CULTURA ...................................................... 12

POLÍTICAS CULTURAIS ................................................................................................ 13

PRINCIPAIS ATORES SOCIAIS PROMOTORES DE POLÍTICAS CULTURAIS .................... 15

Os Estados nacionais .............................................................................................. 15

As organizações internacionais .............................................................................. 17

Iniciativa privada .................................................................................................... 19

Sociedade civil e ONGs ........................................................................................... 20

MECANISMOS E INSTRUMENTOS DAS POLÍTICAS CULTURAIS .................................. 21

As leis de incentivo à cultura .................................................................................. 22

Os fundos de cultura .............................................................................................. 23

Vale-Cultura ............................................................................................................ 24

Plano Nacional de Cultura ...................................................................................... 25

Sistema Nacional de Cultura – SNC ........................................................................ 26

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 28

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CONCEITOS DE CULTURA

O conceito de cultura é uma das categorias mais polissêmicas e controvertidas que

compõem o conjunto de conceitos no campo das ciências humanas. Desde que começou a

figurar nos empreendimentos teóricos de pensadores clássicos das ciências humanas, o

referido conceito tem sofrido profundas alterações no seu conteúdo e significado. Daí pode-

se concluir que não é tarefa simples buscar uma concepção de cultura que encerre um

sentido preciso e definitivo, “isto porque a palavra passou a ser usada para referir-se a

conceitos importantes em diversas disciplinas intelectuais distintas e em diversos sistemas

de pensamento distintos e incompatíveis” (WILLIAMS, 2007, p.117). Diante de tal citação,

não é de se estranhar a seguinte frase do teórico Raymond Williams: “Não sei quantas vezes

desejei nunca ter ouvido a maldita palavra cultura”.

Entretanto ao recorrer à genealogia do conceito talvez seja possível que se

compreenda mais claramente algumas das definições que hoje delineiam a ideia de cultura,

pois nos lembra Cuche (2002, p.17), “as palavras têm uma história e de certa maneira as

palavras fazem história” e buscar sua origens pode ser um passo importante na direção de

compreender as mutações semânticas dos conceitos e as transformações sociais que eles

revelam.

Grosso modo, o conceito de cultura sustenta-se em duas grandes tradições

intelectuais, uma de origem francesa, e outra de origem alemã.

Da tradição francesa, o conceito de cultura herdou os valores iluministas contidos

na ideia de civilização, entendida como um processo de progresso intelectual, espiritual e

material. Sendo assim, na França do século XVIII, cultura e civilização têm concepções muito

próximas e tomam como substrato a ideia de progresso. Como bem define Norbert Elias

(1994, p.24) “Civilização descreve um processo, ou pelo menos, seu resultado. Diz respeito a

algo que está em movimento, movendo-se incessantemente ‘para frente’”. Daí se

depreende o modo como a noção de progresso define a ideia de civilização, um movimento

rumo à evolução. Denys Cuche (2002), no entanto, chama a atenção para o fato de que

mesmo pertencendo ao campo semântico, cultura e civilização não são equivalentes:

“‘Cultura’ evoca principalmente os progressos individuais, ‘civilização’, os progressos

coletivos” (CUCHE, 2002, p.21). Mesmo que empregada de modos distintos, noção de

cultura mobilizada pelos franceses herda da ideia de civilização a ênfase no acúmulo de

saber para o aperfeiçoamento do espírito. Ou seja, o homem progrediria no processo

evolutivo se fosse liberado da ignorância através da obtenção de conhecimento viabilizada

pela educação. Para os pensadores iluministas, o conceito de cultura é a soma dos saberes

acumulados e transmitidos pela humanidade. Sendo assim, cultura era associada às ideias de

evolução, educação e razão e era empregada no singular, fato que revela o universalismo e o

humanismo que vigorava na época. Um homem culto, portanto, civilizado seria aquele

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detentor de vasto conhecimento e acúmulo de saberes, condição que lhe imputaria, por

consequência, refinamento nas condutas, boas maneiras, elegância e cordialidade nos

relacionamentos.

O que predomina na versão francesa da noção de cultura é uma ideia de

universalidade da humanidade, de unidade do gênero humano. O princípio que se privilegia

é o da busca por uma unidade possível, capaz de unir os homens nos que eles têm em

comum. Sendo assim, na noção de cultura dos franceses privilegia a unidade em detrimento

da diferença – uma versão distinta da concepção de cultura adotada pelos alemães, como

veremos a seguir.

Na tradição alemã, a ideia de cultura nasce do conceito de Kultur. Norbert Elias

(1994) esclarece que o conceito alemão de kultur se refere basicamente a fatos intelectuais,

artísticos e religiosos, diz respeito aos produtos (obras de arte livros, sistemas religiosos e

filosóficos), nos quais se expressa a individualidade de um povo. Sendo assim, numa direção

oposta a dos franceses, a noção de cultura dos alemães mobiliza a ideia de diferença, pois

enfatiza a questão das singularidades simbólicas e dos modos de saber e fazer dos diferentes

povos. Norbert Elias distingue com precisão as diferenças conceituais entre alemães e

franceses:

Até certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças nacionais entre os povos: enfatiza o que é comum a todos os seres humanos ou – na opinião dos que o possuem – deveria sê-lo (...) Em contraste, o conceito alemão de Kultur dá ênfase especial a diferenças nacionais e à identidade particular de grupos (...) Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma: Qual é, realmente, a nossa identidade? A orientação do conceito alemão de cultura, com sua tendência à demarcação e ênfase em diferenças e no seu detalhamento, entre grupos, corresponde a este processo histórico (ELIAS, 1994, p.25).

Depreende-se que a noção alemã de cultura enfatiza as diferenças nacionais, a

particularidade, em contraposição à noção francesa de civilização que porta um caráter

universalista.

Johann Gotfried Herder, um pensador que compôs o movimento do Romantismo

alemão no século XIX, foi um dos pioneiros a defender a tese da diversidade das culturas. A

particularidade da cultura de cada povo (suas conquistas intelectuais, artísticas e morais)

constituem o patrimônio de uma nação, sua expressão mais essencial, e o que lhe distingue

das demais. Assim, alguns estudiosos consideram que Herder foi o precursor da noção

relativista de cultura (CUCHE, 2002).

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Esta é uma inflexão conceitual relevante, pois irá definir o delineamento que a

noção de cultura irá ganhar a partir dos estudos antropológicos - linhagem na qual a ênfase

é dada na diferença entre os povos e não na busca por uma unidade possível. A antropologia

cultural americana contribuiu definitivamente para elevar o conceito de cultura a uma

espécie de categoria chave para as Ciências Sociais. Ao elaborar uma espécie de arqueologia

das ideais que orientaram a antropologia culturalista norte-americana, Renato Ortiz (2008)

observa que o tema da diversidade cultural estará nela presente desde seu início. O

antropólogo americano Franz Boas será um dos principais responsáveis por disseminar o

conceito particularista de cultura, ou seja, entendendo-o como modo de vida específico.

É interessante notar como a concepção antropológica de cultura, ou seja, a cultura

entendida como o conjunto de práticas e saberes que constituem os modos específicos da

vida de um povo, passa ser o conceito de cultura que irá predominar mais recentemente na

formulação dos princípios que orientam as políticas culturais. Exemplo dessa tendência, é a

ampliação da noção de cultura que o Ministério da Cultura passa a adotar desde a gestão do

Ministro Gilberto Gil. Em seu discurso de posse, Gil anuncia:

E o que entendo como cultura vai muito além do âmbito restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou de ritos de liturgia de uma suposta “classe artística e intelectual” (...) Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como um conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido dos nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. Dessa perspectiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercício de antropologia aplicada (GIL, 2003).

Diante do exposto, fica claro que a noção de cultura é polissêmica, complexa e

mutante, e suas constantes ressignificações semânticas são reflexo das transformações

históricas que as sociedades atravessam.

IDENTIDADE CULTURAL

O conceito de Identidade está associado em grande medida ao conceito de cultura.

Hoje em dia, os principais debates em torno da identidade nos remetem com frequência à

questão da cultura. Sintoma dessa correlação é que se entende hoje as crises culturais como

crises de identidade. Frequentemente se atribui a emergência da questão da identidade

como sintoma do enfraquecimento do Estado-nação, da intensa integração política

supranacional e de também à globalização da economia. Como esclarece Denys Cuche

(2002), a recente moda da identidade é o prolongamento do fenômeno da exaltação da

diferença que surgiu nos anos setenta, contexto que engendrou a apologia da sociedade

multicultural.

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No âmbito das ciências sociais, o conceito de identidade assume várias significações

e suas fronteiras são fluidas. Stuart Hall em sua já clássica obra, A identidade cultural na pós-

modernidade, propõe a sistematização da concepção de identidade em três momentos: a) o

sujeito do Iluminismo; b) o sujeito sociológico e c) o sujeito pós-moderno.

Originalmente, o termo em latim Identitate remete ao que é idêntico e exclusivo,

em relação às características individuais, e ao que possui elementos padronizados, em um

aspecto coletivo. Esse entendimento permeia todo o Iluminismo, e nesta época a identidade

de uma pessoa era vista como aquela que a caracterizava como “um indivíduo totalmente

centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, consciência e de ação cujo `centro´

consistia num núcleo interior (...) permanecendo essencialmente o mesmo (...) ao longo da

existência” (HALL, 2001, p.10). Forjava-se assim uma concepção individualista de identidade,

cujo centro do eu era a identidade da pessoa. Tal concepção de identidade, Stuart Hall

denominou de sujeito do Iluminismo.

Com a crescente complexidade do mundo moderno, a noção de identidade também

sofreu alteração. Nesse momento, segundo Hall (2001), começa a ganhar corpo o conceito

de sujeito sociológico, concepção segundo a qual o núcleo interior do sujeito não era

autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com outros sujeitos. De acordo

com essa concepção, a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. Nesse

sentido, conformava-se a concepção sociológica que preconizava que a identidade é

formada na interação entre o eu e a sociedade.

Hoje, devido às mudanças estruturais e institucionais proporcionadas pelo

fenômeno da globalização, a concepção de identidade também sofre mutações, uma vez

que o próprio processo de identificação, através do qual se projeta as identidades culturais,

tornou-se mais fluido, variável e complexo. Como alerta Hall (2001), o sujeito que antes vivia

sustentado numa identidade unificada e estável, vê-se agora atravessado por várias

identidades, muitas vezes contraditórias e mal resolvidas. Conforma-se a concepção de

sujeito “pós-moderno”, entendido como não tendo mais uma identidade fixa, essencial e

permanente. Nesse processo de transformações sociais, segundo Hall

a identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam(...) O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente (HALL, 2001, p.13)

O que se pode constatar a partir da breve consideração sobre a elaboração teórica

de Stuart Hall é que o conceito de identidade não é estático e acaba por refletir as contínuas

metamorfoses históricas, sociais, políticas pelas quais as sociedades passam ao longo da

longa trajetória do homem sobre a terra.

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DIVERSIDADE CULTURAL

A ideia de diversidade cultural, apesar de antiga, tem ganhado maior relevância a

partir da década de 1990 quando ela passa a comparecer como temática importante para a

agenda política internacional. Nesse sentido, é uma noção que não tem tanta tradição de ser

construída cientificamente no campo das ciências humanas e sociais, mas que tem sido

elaborada, em maior medida, por agentes políticos (organismos internacionais e governos)

responsáveis por elevá-la ao patamar de causa importante para a agenda da política

mundial. Desse modo, a noção de diversidade cultural vai ganhando uma conotação muito

mais normativa do que propriamente científica.

É de se destacar nesse processo o papel da Organização das Nações Unidas para

Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). A instituição acabou assumindo um papel de

protagonista na formação discursiva em torno da noção de diversidade cultural, pelo menos

desde o início da década de 1990. A noção de diversidade cultural é mais explicitamente

evocada pela UNESCO quando do lançamento do Relatório Nossa Diversidade Criadora, em

meados da década de 1990. No documento, o princípio da diversidade cultural é tomado

como um motor para o desenvolvimento humano e sustentável, assim como veículo para se

viabilizar o respeito às diferenças e a tolerância entre os povos. A atuação da UNESCO na

tarefa de tornar a questão da diversidade cultural como um tema candente para a política

mundial avança bastante no século XXI. Exemplo disso é promulgação de dois instrumentos

internacionais: a Declaração da Diversidade Cultural em 2001 e a Convenção para Promoção

e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais, em 2005. Através desses instrumentos a

UNESCO passa a fortalecer a noção de diversidade cultural entendida como um patrimônio

comum à humanidade, como um motor estratégico para o desenvolvimento, como um

veículo que possibilita a tolerância e respeito entre os povos, além de ser um vetor que

potencialmente pode diminuir as assimetrias e desigualdades nos mercados culturais

geradas pelos processos de homogeneização cultural que constituem a globalização.

Na Convenção de 2005, a diversidade cultural:

refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados (UNESCO, 2005, p.6).

Giuliana Kauk (2009) esclarece que a partir desse debate internacional a ideia

diversidade de é compreendida a partir de dois enfoques, a saber: articulada, por um lado,

com aspectos político-sociais, e, por outro, relacionada com o comércio e a economia.

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No que se refere aos aspectos político-sociais, o princípio da diversidade se traduz

pela defesa do respeito à pluralidade das culturas e pelo reconhecimento das identidades

culturais e diferenças entre os povos. No tocante à relação entre cultura e comércio a ideia

de diversidade é mobilizada como um vetor que pode proporcionar um equilíbrio no

mercado de bens culturais, que, por sua vez, é marcado por fortes desigualdades e

concentração, tanto no âmbito da produção como no do consumo de bens e serviços

culturais. Essa desigualdade é facilmente identificada pela atual configuração do mercado

cultural que é fortemente marcado pelas assimetrias existentes entre os principais polos de

produção simbólica (Estados Unidos e União Europeia), classificados como os centros

exportadores de bens culturais, e os polos de consumo (América Latina, África e Ásia),

classificados como os centros de importação. É em nome da preservação e promoção da

diversidade que muitos estados nacionais e instituições transnacionais passaram a defender

a elaboração e execução de novas políticas públicas de cultura. Como defendido pela

Convenção da UNESCO, aos Estados nacionais cabe o papel de intervir em mercados

culturais para promover a sustentabilidade da produção nacional, assim como um

intercâmbio equilibrado entre as culturas.

Com a inflação do uso do termo diversidade cultural nos últimos anos, a noção vem

se transformando numa espécie de categoria que vem servindo a diferentes finalidades.

Como ressalta Mattelart (2005, p.133), a crescente audiência da diversidade cultural tende a

se tornar uma referência pela busca do que ele denomina de “novo ordenamento do

planeta”. O autor contextualiza essa tendência da crescente invocação da ideia de

diversidade cultural: “governos invocam em seu próprio favor. As agências do sistema das

Nações Unidas trazem-no para sua ordem do dia. As associações profissionais e o

movimento social se mobilizam em seu nome”.

Como bem alerta, Kauark (2009, p.61), com o uso exacerbado da noção de

diversidade cultural corre-se “o risco de o conceito perder importância e esvaziar-se de

qualquer conteúdo crítico ou produtivo caso sua utilização torne-se muito ampla e

indiscriminada, podendo ser aplicada a toda e qualquer forma de diferença cultural,

atribuindo o mesmo valor a todas elas”.

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CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL

O sistema cultural é composto por conjunto de práticas, instituições e atores sociais

(artistas, criadores, intelectuais, intermediários, gestores) que lhe conferem complexidade

na sua configuração, e, portanto, torna-se um desafio descrevê-lo sem correr o risco de

cometer imprecisões.

No exercício de compreensão da dinâmica do sistema cultural, Albino Rubim (2008)

elaborou uma interessante tipologia identificando os principais atores e práticas sociais que

lhe compõem. A classificação sugerida pelo autor se organiza nas seguintes instâncias:

Criação, inovação e invenção: essa instância é representada por artistas, cientistas

e intelectuais, vinculados aos universos culturais, acadêmicos ou populares e são

considerados como os atores sociais essenciais ao sistema cultural dada a sua capacidade de

reinvenção e renovação das expressões artísticas e culturais.

Difusão, divulgação e transmissão: Professores e comunicadores são os principais

atores sociais na tarefa de viabilizar a divulgação, transmissão e difusão da cultura. Sem o

dispositivo de uma contínua disseminação das expressões culturais, o acesso aos bens

culturais estaria prejudicado, impactando diretamente no processo de democratização da

cultura.

Circulação, intercâmbios, trocas, cooperação: os processos de circulação, troca,

intercâmbio e cooperação são fundamentais para estimular o diálogo intercultural e,

consequentemente, renovar e inovar a criatividade das expressões culturais dos diferentes

países. A Convenção da UNESCO para diversidade cultural, por exemplo, conferiu especial

atenção ao tema da cooperação e diálogo intercultural como mecanismo para promover a

diversidade cultural.

Análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão: A produção cultural deve

também passar pelo crivo da discussão e avaliação pública. A crítica cultural é um

importante instrumento de mediação entre os produtores de cultura e seus consumidores,

pois estimula a reflexão e favorece o debate público em torno de ideias e práticas. Cabe aos

analistas, críticos, estudiosos, investigadores e pesquisadores a função de crítica e reflexão

acerca da produção cultural de um país.

Fruição, consumo e públicos: A esfera da fruição e do consumo é o momento onde

se completa o circuito da produção cultural, uma vez que se refere à instância em que os

bens culturais são fruídos e consumidos pelos públicos. O ato da recepção dos bens porta

em si um caráter de universalidade, tendo em vista que todo cidadão é potencialmente um

consumidor de cultura. Mas há de se destacar também que a fruição e consumo de cultura é

profundamente condicionada pela existência de políticas culturais democráticas que

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garantam o acesso às produções culturais, bem como por um eficiente sistema de educação

que viabilize formação da população. Como alerta Rubim (2008, p.51), “mesmo a fruição e o

consumo, talvez a esfera mais larga de participação, pode ser obstruído por requisitos

econômicos, sociais e educacionais que limitam tal acesso”.

Conservação e preservação: uma função clássica para o setor cultural e é

geralmente desempenhada por museus, bibliotecas e centros culturais. Essas instituições

são fundamentais para preservar a herança cultural e democratizar o acesso ao patrimônio

(material e imaterial) acumulado por determinada sociedade. No Brasil, o Instituto do

Patrimônio Histórico (IPHAN) é a principal instituição pública que desenvolve políticas e

programas de preservação do patrimônio material e imaterial do país.

Organização, legislação, gestão, produção da cultura: Em sua análise, Rubim

considera que esta instância é umas das mais difíceis de serem percebidas e credita a isto ao

fato de que só recentemente foi institucionalizada profissionalmente. A organização do

campo cultural, segundo o autor, se dá numa escala tanto macro, quanto micro. Ele sugere

então três patamares diferentes desta esfera: a dos formuladores e dirigentes, dedicados à

tarefa mais macro de elaborar das políticas culturais; a dos gestores dedicados à

administração de instituições ou projetos culturais mais permanentes e estruturantes e, por

fim, a dos produtores culturais, mais diretamente ligados a projetos de caráter mais

eventual e microssocial.

PROFISSIONAIS DA ORGANIZAÇÃO DA CULTURA

Rubim (2008) destaca ainda que, por se constituir tardiamente, a área da

organização da cultura padece de uma clareza e precisão das denominações das categorias

profissionais que lhe compõem. Os profissionais ganham distintas denominações em

diferentes países. Nos Estados Unidos e na França, por exemplo, predomina a categoria

gerente e administradores culturais, na Espanha as categorias mais utilizadas são de

animadores e promotores culturais e há ainda expressões como mediadores culturais,

engenheiros culturais e programadores culturais. No Brasil, a categoria dos profissionais

ligadas à organização da cultura, começa a se fortalecer, sobretudo, com o advento das leis

de incentivo que, pela sua lógica, estimularam a emergência de uma nova categoria

profissional: os produtores culturais. Tais profissionais teriam como função a captação de

recursos, elaboração de projetos e a produção de eventos. Para Rubim, a predominância dos

produtores culturais como os principais profissionais do campo cultural é um reflexo da

importância que o marketing cultural acabou ganhando na década de 1990 quando as leis de

incentivo à cultura eram quase que exclusivamente o modelo de política cultural adotado

pelo Estado na época. Tal contexto dificultou a formação de profissionais ligados à gestão da

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cultura de forma mais macro e abrangente. Em sua análise, Rubim ainda chama atenção

para o fato de que o campo de atuação dos profissionais da cultura pode se ampliar tendo

em vista a mudança no papel do Estado ocorrido recentemente, quando passou a ocupar um

papel mais ativo a partir da implementação de um conjunto efetivo de políticas culturais.

O que se há de reconhecer, portanto, é que o campo da organização da cultura é

bastante dinâmico e envolve um vasto leque de instituições, de programas, de projetos, de

empreendimentos, de bens e serviços a serem geridos e administrados. A gestão cultural

vem cumprir o papel então de mediar a relação entre os diversos atores, as instituições e os

domínios envolvidos no processo de produção cultural. É esta mediação que irá possibilitar a

produção, a distribuição, a comercialização e consumo dos bens e serviços culturais,

articulando assim os criadores, os produtores, as instituições e os públicos (BAYARDO, 2008).

O campo cultural é essencialmente complexo e dinâmico, mas na

contemporaneidade sua complexidade vem crescendo em virtude das profundas

transformações que a sociedade vem enfrentando, principalmente no que se refere às

inovações tecnológicas da informação e da comunicação. Se antes o campo da cultura estava

identificado em maior medida às expressões artísticas e ao patrimônio, com o advento das

novas tecnologias, sobretudo, presencia-se uma expansão de novas formas de produção

cultural, tornando suas fronteiras de atuação mais abrangentes e fluidas. Tal cenário impõe

novas demandas e, por consequência, exige atualização do perfil dos gestores culturais que

agora terão que lidar com novas questões, próprias de um tempo marcado por constantes

transformações tecnológicas. Desse modo, o gestor cultural terá que estar preparado para

lidar com temas emergentes, tais como: propriedade intelectual, direitos autorais,

patenteamento dos saberes tradicionais e a biopirataria, só para citar alguns deles mais

diretamente ligados ao impacto das novas tecnologias.

Diante do exposto, depreende-se que aos gestores culturais se impõe a necessidade

de novos padrões de formação profissional a fim de enfrentar os desafios impostos pela

nova dinâmica do setor cultural que alarga seus horizontes e exige novas formas de atuação

profissional.

POLÍTICAS CULTURAIS

As políticas culturais, entendidas, num sentido mais lato, como um conjunto de

intervenções do Estado voltado para promover a produção, distribuição e o consumo dos

bens culturais é um fenômeno antigo. Contudo, só mais recentemente o tema das políticas

culturais começa ganhar relevância e passa a se tornar cada vez mais instrumentos de

investimentos tanto por instituições públicas como pela iniciativa privada. Ademais, o

debate sobre as políticas culturais vem se tornando objeto de investigação na academia,

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onde se observa um significativo crescimento de estudos voltados para questões relativas ao

referido tema. O papel do Estado, formação de profissionais da cultura, gestão cultural,

economia criativa entres outros são temas que passam a ser debatidos academicamente

numa perspectiva multidisciplinar.

O crescimento desses estudos tem provocado um aprofundamento conceitual

acerca da própria noção de políticas culturais. Talvez o que venha se constituindo como um

consenso é a ideia de que as políticas culturais não podem ser remissivas à apenas a atuação

do Estado no fomento à produção cultural. Hoje cada vez mais os interpretes do fenômeno

das políticas culturais reconhecem que instituições não-estatais (empresas privadas, ONGs,

etc.) são também atores que promovem políticas de cultura. A identificação de políticas

culturais como ação estatal, como observa Alexandre Barbalho (2005) é tributária a uma

visão estreita do significado de público, comumente entendido como sinônimo de Estado.

O conceito de política cultural proposto pelo sociólogo Néstor Garcia Canclini

amplia a noção ao contemplar em sua definição a atuação de outros agentes que não

apenas o Estado. O sociólogo ainda reconhece a necessidade de a noção tornar-se ainda

mais ampla tendo em vista o contexto de globalização, condição na qual os processos e

fluxos culturais tornam-se ainda mais complexos. Nas palavras do autor, as políticas culturais

podem ser entendidas como:

Um conjunto de intervenções realizadas pelo estado, por entidades privadas ou grupos comunitários organizados com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. Mas esta maneira de caracterizar o âmbito das políticas culturais necessita ser ampliada tendo em conta o caráter transnacional dos processos simbólicos e materiais da atualidade (CANCLINI, 2001, p. 65).

Podemos afirmar que a relevância que as políticas culturais vêm ganhando é um

reflexo da crescente importância que a própria esfera da cultura alcança nas últimas

décadas. Inúmeros são os sintomas da crescente centralidade que a cultura vem assumindo

no ambiente da globalidade. Dentre esses sintomas, destacamos: a proliferação de estudos

nos quais o tema da cultura é abordado pelos mais variados campos do conhecimento

(antropologia, sociologia, economia, geografia, administração, comunicação, arquitetura,

entre outros) ao articularem cultura e identidade, cultura e desenvolvimento, cultura e

economia; as tensas negociações de bens culturais em acordos comerciais travados no

âmbito de organizações internacionais, a exemplo da Organização Mundial do Comércio;

questões políticas que derivam da irrupção de conflitos de matiz étnico e religioso nos

quatro cantos do planeta, provocando assim a ascensão de debates em torno das diferenças

culturais.

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PRINCIPAIS ATORES SOCIAIS PROMOTORES DE POLÍTICAS CULTURAIS

É nesse cenário então que as políticas culturais vêm recebendo atenção cada vez

maior tanto por parte do Estado quanto por outras instituições ampliando assim a

participação de atores sociais envolvidos na formulação e implementação de políticas para a

cultura. Como propõe Rubim et al (2006), o próprio Estado já não pode mais ser concebido

como um ator monolítico, mas como um complexo sistema de múltiplos atores. A existência

de governos nacionais, supranacionais e infranacionais é uma das faces deste processo de

complexificação da intervenção estatal. Sendo assim, na contemporaneidade, a própria

lógica de governança política impõe negociações mais complexas que articulam os estados e

diferentes atores sociais. O campo das políticas culturais segue a mesma tendência. Uma

plêiade de atores sociais comparece ao lado dos Estados como agentes que propõem e

implementam ações e programas de fomento e promoção das atividades culturais.

Baseado no estudo, Atores sociais, redes e políticas culturais de autoria de Albino

Rubim, Iuri Rubim e Mariella Pitombo, a seguir abordaremos o papel dos principais atores

sociais que hoje atuam no campo da cultura promovendo políticas culturais.

Os Estados nacionais

O centralismo dos Estados nacionais na conformação da vida social manifestou-se

pela sua prerrogativa idiossincrática de imputar sentido e ordem à sociedade, uniformizando

e homogeneizando temporalidades, gestos e falas. A própria formação das identidades

nacionais, muitas vezes um processo violento de esterilização das diferenças culturais, é um

reflexo desse poder específico dos Estados em classificar, normatizar e articular as mais

diferentes searas da vida social em uma totalidade. Desse modo, a materialização do Estado-

nação foi possível mediante a demarcação de fronteiras de determinado território, que por

sua vez era definida por sua história, composição étnica, cultura comum e crescente

importância na unificação da língua. Como chama a atenção Pierre Bourdieu (1996), ao

estabelecer sistemas de normatização e classificação, através do sistema escolar, da

burocratização de procedimentos e de um sistema legal, o Estado assumiu a prerrogativa de

“moldar estruturas mentais” edificando assim o sentido totalizador contido na ideia de

identidade nacional, tendo no sistema escolar seu veículo mais potente em diversos países,

em especial nos desenvolvidos.

Lançando mão dessa prerrogativa de controle simbólico, o Estado assumiu o papel

de planejador, organizador e gestor dos mais variados setores da vida social. No plano da

cultura não foi diferente. Seja através da institucionalização do sistema escolar, da

apropriação das mídias ou da implantação de órgãos administrativos específicos voltados

para a formulação, gestão e implementação de políticas culturais, coube aos Estados

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nacionais a tarefa de promover diretamente programas e ações sistemáticos de cultura.

Nesse sentido, os Estados nacionais são os atores sociais mais tradicionais no fomento às

políticas culturais.

Evidentemente o grau de centralidade estatal na cultura varia de acordo com o

modelo de intervenção adotado pelos diferentes países. Em termos paradigmáticos, já se

tornou quase senso comum lançar mão da França e dos Estados Unidos como referências

exemplares de gestão pública do campo da cultura. A França representa o centralismo do

Estado e, na contraposição, os Estados Unidos têm como tradição o liberalismo ou

participação reduzida do Estado na organização da sociedade. A cultura é tratada muito

ciosamente pela França, onde o Estado intervém de forma incisiva na sua organização. Não

por acaso, o primeiro Ministério dedicado aos assuntos deste campo, é implantado naquele

país, em 1959. Os Estados Unidos, por sua vez, adotam um tipo de intervenção bem

reduzida, deixando a “mão invisível” do mercado regular a dinâmica do campo cultural.

Entre um polo e outro, variadas formas de intervenção estatal se manifestam, fruto de

contextos históricos específicos, que acabam revelando a maneira singular como os Estados

concebem e conduzem a política e a cultura em seus países.

Na América Latina, o Estado nacional exerceu um papel crucial na estruturação e

dinamização de toda a sociedade, inclusive na esfera cultural. O processo de autonomização

da esfera cultural no continente latino-americano traz desde a sua origem a possibilidade da

diluição das fronteiras e das hierarquias simbólicas que marcaram fortemente a distinção

entre as chamadas alta-cultura e cultura midiática. Na América Latina, a formação de um

mercado de bens simbólicos se deu no rastro do processo mais amplo de modernização dos

países, mediante o forte estreitamento das relações entre o Estado e o capital privado,

sobretudo o internacional, este representado pelas indústrias culturais.

Como consequência, em solo latino-americano, o Estado acabou por assumir um

papel central na organização e gestão do circuito da produção, difusão e consumo cultural.

Encarnando a nação, o aparelho estatal contribuiu para forjar a identidade cultural dos

países bem como assumiu o papel de patrono oficial das artes e da cultura. Guardando as

idiossincrasias sócio-históricas dos diferentes países, pode-se considerar que a política

cultural desenvolvida sob o signo dos regimes nacionalistas e desenvolvimentistas, até

meados da década de 1970, apresentou um perfil homogêneo entre os diferentes países da

região, qual seja: um modelo “conservacionista” ou “preservacionista”. Ao Estado mecenas

coube fomentar aquelas atividades que tinham dificuldades em se autossustentar segundo

critérios de mercado, esboçando o que o sociólogo brasileiro Sergio Miceli (1984) cunhou de

tendência previdenciária da iniciativa pública na área cultural. Este modo específico de

intervir contribuiu para a vigência de políticas voltadas para atividades de preservação e

conservação do patrimônio histórico e de fomento da cultura das elites.

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Com o fim dos regimes ditatoriais na maioria dos países latino-americanos e com a

emergência de uma nova ordem econômica mundial globalizada, o mundo passa a

presenciar uma espiral de transformações políticas e econômicas. Como consequência, o

Estado nacional passou a perder paulatinamente seu lugar de quase único protagonista da

vida social. Com a globalização, a organização do tempo e do espaço social vem sendo

estabelecida em grande medida pelo fluxo frenético de capital, bens, tecnologias e

comunicações. Diante desse contexto, o papel do Estado é redefinido, sua natureza e suas

esferas de operação se alteram. O chamado “mercado” e a sociedade civil, nacionais e

globais, passam a compartilhar e disputar este lugar de protagonismo da vida societária -

para o mal e para o bem.

Contudo, se é notória a tendência de participação de outros atores na promoção de

políticas culturais, faz-se necessário reconhecer também que o Estado ainda exerce um

papel fundamental na promoção de políticas mais democráticas e republicanas, papel esse

que o mercado, por exemplo, guiado precipuamente pela lógica do retorno financeiro, não

pode cumprir. Sendo assim, cabe ao Estado financiar e promover principalmente aqueles

setores que não conseguem se autossustentar apenas pelo mercado. Há instituições e

expressões culturais que são mantidas majoritariamente pelos Estados, mesmo naqueles de

tendência mais neoliberais como os Estados Unidos e a Inglaterra. Mesmo nesses países,

museus, orquestras, bibliotecas, as ações de preservação e conservação do patrimônio

histórico são financiados com recursos públicos. Sendo assim, uma atuação consistente do

Estado na promoção de políticas públicas pode garantir uma maior diversidade da produção

das expressões culturais e artísticas, uma vez que potencialmente irá estimular linguagens e

produções que não tenham apelo comercial e que portam um caráter mais experimental e

de vanguarda. Ademais, o Estado ainda tem prerrogativa de dirimir as assimetrias e

desigualdades de acesso aos bens culturais mediante a implementação de políticas que

garantam uma maior democratização do consumo dos bens e serviços culturais.

As organizações internacionais

As organizações internacionais, também chamadas de supranacionais ou

transnacionais, começam a ganhar prevalência no cenário político internacional,

principalmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial, período em que vai se

consolidando um sistema internacional de cooperação multilateral com as feições tal qual o

conhecemos hoje. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, constitui-se

no principal marco da conformação de uma arquitetura institucional voltada para as relações

internacionais. A partir de então, uma constelação de entidades transnacionais foi sendo

instituída, tendo como princípio basilar o diálogo entre os países e a concretização da paz

mundial.

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A natureza dessas entidades tem uma ampla variação e seu escopo de atuação

envolve áreas igualmente variadas como: economia, trabalho, saúde, educação, ciência e

cultura. Em um exercício de tipificação, pode-se classificá-las como organismos

especializados da ONU; organizações de cooperação econômica e organizações regionais.

Na área da cultura, essas instituições têm também exercido um importante papel

para o fomento do diálogo entre as nações, a cooperação internacional e a integração

regional e sub-regional. Algumas delas foram constituídas especialmente para o tratamento

de questões voltadas para a educação, cultura e ciência. Citamos os exemplos da UNESCO,

da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e do Convênio Andrés Bello (CAB). Ainda

que não tenham como principal foco de atuação questões culturais, existem também

instituições não especializadas que se ocupam na implementação de ações voltadas para o

campo cultural, como é o exemplo da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do

MERCOSUL, que criou em 1996, um protocolo específico de integração cultural: o

MERCOSUL Cultural.

As entidades multilaterais, com destaque para UNESCO, têm exercido o importante

papel de trazer à tona o tema da cultura para a agenda mundial, sustentada em dois eixos

principais: na defesa da diversidade cultural, com base princípio de respeito às diferenças, e

na correlação entre cultura e desenvolvimento, ou seja, entendendo o papel da cultura

como suporte imprescindível para o desenvolvimento humano das sociedades. Através da

realização de inúmeros fóruns, conferências e encontros, as entidades acabam por se

constituir em uma espécie de “elites intelectuais”, formuladoras de princípios e normas

traduzidas em uma variedade de resoluções, de declarações e de acordos, derivados desses

fóruns de discussão.

Dentre as principais ações desenvolvidas por essas instituições, destacam-se:

1. A formulação de diagnósticos sobre a dinâmica cultural contemporânea e as

culturas em regiões específicas;

2. A promoção de redes de cooperação em cultura;

3. A prestação de assistência técnica na execução de programas e projetos na

área cultural desenvolvidos em parceria com os Estados-membros;

4. A compilação e sistematização de dados relativos às políticas culturais;

5. A promoção da formação e capacitação de recursos humanos voltados à

gestão cultural;

6. O fomento aos programas de preservação do patrimônio cultural (material e

imaterial);

7. A realização de inventários e registros do patrimônio material e imaterial e

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8. A publicação de estudos e investigações sobre o campo da cultura. Muitas

dentre estas atividades têm incidência acentuada sobre as políticas culturais

desenvolvidas na região.

Iniciativa privada

Evidentemente a atuação de empresários e empresas no campo da cultura não é

uma novidade, ela tem uma longa trajetória. Ainda que as origens do mecenato remontem

às ações desenvolvidas pelo Império Romano, tendo na figura de Caio Clínio Mecenas sua

fonte inspiradora, o fomento à atividade artístico-cultural foi abraçado também por uma

variedade de atores ao longo de sua história, a exemplo, da Igreja Católica, dos reis, da

aristocracia, da burguesia (RUBIM, 2005). Já no início do século XX, as corporações

empresariais também passaram a desenvolver programas voltados para o estimulo às artes

e à cultura, e iniciativas como as dos empresários americanos, como Rockfeller, Ford,

Carnegie, ressoam até hoje como experiências emblemáticas na inauguração de um modo

de atuação específico no campo cultural.

A partir de meados do século XIX, a esfera cultural vem passando por expressivas

transformações econômicas, processo que tem reconfigurado significativamente suas

fronteiras. A mercantilização da cultura é momento relevante deste processo. Desse modo,

as empresas privadas têm atuado como importantes agentes formuladores de políticas

culturais, seja pela via da mercantilização da cultura; seja através de práticas de patrocínio

cultural (direto e indireto) ao financiar projetos elaborados por terceiros; seja na realização

de programas e projetos culturais estimulados por iniciativa própria, geralmente inscritos

em políticas mais amplas marketing e comunicação. Na década de 90, por exemplo, no Brasil

experimenta-se uma crescente utilização do marketing cultural pelas organizações como

ferramenta de comunicação empresarial 1.

Ainda que o objetivo principal das empresas ao patrocinar atividades de cunho

cultural seja movido por interesses específicos, deve-se ressaltar também que o

desenvolvimento de ações do gênero são reflexos das demandas da sociedade civil que

atualmente reivindica com maior rigor uma postura mais responsável por parte das

empresas em relação à sociedade. O poderio das organizações empresariais na área cultural

1 As motivações que levam as empresas a investir em cultura podem ser encontradas na pesquisa

encomendada pelo Ministério da Cultura do Brasil, intitulada “Diagnóstico dos Investimentos em Cultura no Brasil” (1998). Segundo os empresários, os aspectos que motivam o investimento cultural são: a consolidação da imagem institucional (65,04%); a agregação de valor à marca da empresa (27,64%); o reforço do papel social da empresa (23,58%); os benefícios fiscais (21,14%); o retorno de mídia (6,50%) e a aproximação do público alvo (5,69%).

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no Brasil pode ser medido pela tendência de instituírem suas próprias organizações

culturais. Hoje grandes empresas possuem seus próprios museus, teatros e fundações de

fomento à produção cultural, um sinal do poder alcançado pelas instituições empresariais

em áreas de interesse público. Como consequência, tais agentes ganharam também a

prerrogativa de formular e implementar políticas culturais. No Brasil, contudo se conforma

uma situação bastante peculiar: o crescimento da atuação das empresas privadas no

fomento à cultura é estimulado pelo próprio Estado, uma vez que grande parte das ações é

subsidiada pelas leis de incentivo à cultura. Um exemplo desse fenômeno é que as

fundações e organizações de cunho cultural das empresas privadas, na sua maioria, são

mantidas através da isenção de impostos, viabilizada pelas leis de renúncia fiscal.

Ainda que se configure um quadro um tanto quanto paradoxal, as empresas

privadas passam a ser um dos importantes agentes que conformam a esfera da cultura na

contemporaneidade. Sua atuação não exclui, mas, muitas vezes, pode entrar em conflito

com a atuação estatal na promoção e fomento às atividades culturais. Entretanto, um dos

desafios do mundo contemporâneo é que Estado, mercado e sociedade civil estejam

contemplados de modo complementar nas políticas culturais e subordinados aos interesses

públicos da sociedade. Atendidas estas e outras prerrogativas, pode-se pretender realizar

políticas culturais atualizadas e democráticas.

Sociedade civil e ONGs

A categoria sociedade civil, muito em voga na atualidade, não é recente.

Pensadores políticos como John Locke, Hegel, Marx e Antonio Gramsci já haviam se

debruçado sobre o tema. A partir de meados do século XX, a concepção de sociedade civil

vem sendo construída em torno do debate sobre os processos de democratização. Segundo

Sorj (2005, p.19):

A discussão atual sobre a sociedade civil está relacionada com seu papel na representação dos cidadãos, na construção de valores coletivos, na constituição do sistema político e nos modos como os cidadãos podem influenciar o destino da sociedade, através da participação na esfera pública, por oposição às formas tradicionais de representação política.

A partir da década de 1990, a força evocativa do lema “por um mundo melhor”, fará

a noção de sociedade civil ganhar fôlego em termos globais, impulsionada pela emergência

das organizações não-governamentais (ONGs). Ainda que tecida por uma variedade de

princípios ideológicos, de direita e de esquerda, a sociedade civil parece convergir para um

ponto em comum: a crise de representação nas democracias contemporâneas. Grosso

modo, pode-se dizer que a sociedade civil representa uma espécie de espaço intersticial

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entre o Estado e mercado, configurado especialmente para atender as demandas sociais não

contempladas por um e outro ator social.

A proliferação das ONGs, a partir a década de 90, apresenta-se como o fenômeno

mais visível da constituição desse “novo” espaço social, cunhado de sociedade civil. São

entidades criadas com vistas ao atendimento de causas sociais, porém, se diferenciam dos

demais tipos de associação da sociedade civil, pois não se apresentam como instituições que

representam formalmente determinados segmentos sociais.

No plano da cultura, o papel dessas instituições não é desprezível. Acompanhando a

pauta internacional acerca do tema da cultura, agenda essa estabelecida e veiculada,

sobretudo, pelos organismos supranacionais, a sociedade civil e as ONGs desenvolvem

importantes ações e programas referentes à promoção e defesa da diversidade cultural; à

inclusão social de crianças e adolescentes através da cultura; à defesa de minorias étnicas e

de gênero; ao desenvolvimento local e comunitário associado à cultura etc.

Ao contarem com recursos carreados pelos organismos internacionais, pelas

instituições de cooperação europeia, por doações de empresas privadas e também por

recursos públicos remetidos pelos próprios Estados, essas entidades tornaram-se um

importante agente na formulação e implementação de políticas culturais, somando-se à

diversidade de atores que hoje congrega a esfera cultural.

Como a própria concepção de cultura foi sendo ampliada no processo de mudança

social ocorrido nas ultimas décadas, extrapolando os limites das atividades comumente

identificadas a uma “cultura de elite”, hoje se tornou mais fácil correlacionar projetos de

cunho cultural com causas sociais mais abrangentes como inclusão social, direito das

minorias ou defesa da identidade cultural de um grupo específico. O mais interessante é

notar a estreita interdependência que vai se constituindo entre todos esses atores sociais

envolvidos no campo da cultura.

MECANISMOS E INSTRUMENTOS DAS POLÍTICAS CULTURAIS

Para implementar as políticas culturais, o Estado pode lançar mão de uma

variedade de instrumentos e mecanismos destinados a regulamentar, fomentar e viabilizar a

cadeia da produção artístico-cultural. Como esses mecanismos são diversos e variam de país

para país, iremos focar numa breve análise de instrumentos de financiamento e gestão das

políticas públicas de cultura brasileiras mais recentes.

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As leis de incentivo à cultura

As leis de incentivo à cultura são suportes de política cultural, criadas pelo governo

brasileiro em meados da década de 80 e que tinham como objetivo estimular o mercado a

participar do fomento à cultura, através da isenção de impostos.

A primeira legislação brasileira de incentivos fiscais, a chamada lei Sarney, teve vida

curta, durando apenas quatro anos, de 1986 a 1990. Foi uma lei que pelos seus frágeis

dispositivos organizativos abriu espaço para críticas por parte do meio cultural, como

também foi alvo de acusações de fraudes fiscais, quando se levantou a hipótese de desvio de

verbas. Em que pese todos os problemas, a Lei Sarney foi o pontapé inicial para a formação

de uma tradição que viria a se fortalecer no país na década seguinte, a saber: a de se instituir

as leis de incentivo à cultura como um dos principais pilares da política oficial do Estado.

A Lei Sarney foi extinta em 1990, quando Fernando Collor de Mello assumiu a

presidência do país e revogou todas as leis de incentivo fiscal federal em vigência no Brasil.

Naquele momento, o país começava a vivenciar mais intensamente um modelo de gestão

identificado ao neoliberalismo econômico. Em consonância com esse projeto econômico

adotado pelo governo Collor, inicia-se um período de intervenção do Estado na área da

cultura identificado também por uma forte tendência neoliberal, sustentado numa ideologia

que se pautava na crença que a atividade cultural – assim como os demais setores

produtivos –, poderia autogerir-se, regulada apenas pelas leis do mercado.

É na gestão Collor que se dá a promulgação, em 1991 da Lei Rouanet – assim

denominada por ter sido elaborada pelo então Ministro da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet.

Esse mecanismo foi inspirado na Lei Sarney e seus princípios eram praticamente os mesmos:

estimular a participação da iniciativa privada no fomento à produção cultural brasileira,

através da concessão de benefícios fiscais aos potenciais patrocinadores. A Lei Rouanet

naquele momento compreendia o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), um

programa mais amplo que tinha como objetivo implementar a concessão de incentivo fiscal

aos contribuintes que investissem em projetos culturais. Em seu âmbito de funcionamento,

o PRONAC contemplava três mecanismos de financiamento à atividade cultural: o Fundo

Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) e o

Incentivo a Projetos Culturais. Os FICART não foram operacionalizados e o FNC também teve

funcionamento restrito. Cabe mencionar ainda que durante o governo Itamar Franco foi

criada, em 1993, uma outra importante lei de incentivo à cultura, a Lei do Audiovisual que,

juntamente com a Lei Rouanet, viriam a se tornar os principais mecanismos federais de

financiamento à cultura no país durante os oito anos de governo de Fernando Henrique

Cardoso (1994-2002), tendo Francisco Weffort à frente do Ministério da Cultura. A gestão

Weffort ficou identificada por uma atuação preponderantemente liberal na condução das

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políticas oficiais para o setor cultural do país, tendo em vista que as políticas culturais

implementadas na época se restringiram basicamente às leis de incentivo a cultura.

A Lei Rouanet, como se sabe, ainda está em vigor no país e continua sendo um

importante instrumento de fomento à cultura e, do mesmo modo, uma fonte permanente

de polêmica tendo em vista a destinação dos seus usos. Desde a gestão de Gilberto Gil vem

se propondo a reforma da Lei com a finalidade de dirimir algumas distorções geradas pela

sua própria lógica de funcionamento. Distorções essas traduzidas em altos índices de

concentração tanto regional2, quanto no número de proponentes beneficiados. Diante de

tais distorções, foi proposta uma a reforma da lei conduzida mais enfaticamente durante a

gestão do Ministro Juca Ferreira. Entretanto, a proposta gerou imensa resistência por parte

de alguns produtores culturais, atravancando assim o processo de reformulação do

instrumento. O projeto de reforma ainda não foi aprovado e encontra-se atualmente em

tramitação no parlamento. O projeto de reforma prevê a criação do Procultura em

substituição à Lei Rouanet e tem por propósito os seguintes fins: equilibrar a concentração

de recursos distribuídos; estimular o investimento privado; ampliar os segmentos da

produção cultural contemplados.

Mesmo reconhecendo a importância das leis de incentivo como mecanismo de

financiamento para produção cultural, a lógica de funcionamento desse instrumento acabou

criando uma situação ambígua, a saber: ainda que a parte majoritária dos recursos

destinados a financiar atividades culturais seja de origem pública (cerca de 80% em média),

paradoxalmente, a decisão final sobre os projetos a serem financiados cabe ao mercado, que

por sua vez, é movido por interesses particulares. Através desse mecanismo, o Estado

brasileiro acabou estimulando uma política privatizante disseminada no interior do aparelho

estatal (VIEIRA, 2004).

Os fundos de cultura

Os fundos de cultura são mecanismos de financiamento direto do Estado às

produções culturais. Os fundos em princípio têm a finalidade de favorecer “as manifestações

culturais de menor expressão econômica a oportunidade de financiamento público, uma vez

que normalmente não interessam à iniciativa privada nem se enquadram na sistemática de

outros mecanismos”. (BRASIL, 2010, p.152). Desse modo, os fundos de cultura, por essência,

2 Segundo dados do Ministério da Cultura, em 2007, as regiões Sul e Sudeste ficaram com 80% da verba

captada. O Centro-Oeste ficou com 11%, o Nordeste com 6% e ao Norte coube apenas 3%. De 2003 a 2007, 3% dos proponentes concentraram 50% do volume captado.

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têm o objetivo de promover a diversidade cultural, garantir a descentralização de recursos e

promover projetos que sejam de interesse público.

No âmbito do Ministério da Cultura, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) é o

mecanismo de financiamento a fundo perdido destinado a subsidiar diretamente os projetos

culturais. O FNC é disciplinado pela Lei Rouanet e tem como finalidades

estimular a distribuição regional equitativa dos recursos a serem aplicados na execução de projetos culturais e artísticos; favorecer a visão interestadual, estimulando projetos que explorem propostas culturais conjuntas, de enfoque regional; apoiar projetos dotados de conteúdo cultural que enfatizem o aperfeiçoamento profissional e artístico dos recursos humanos na área cultural, a criatividade e a diversidade cultural brasileira; favorecer projetos que atendam às necessidades da produção cultural e aos interesses da coletividade, aí considerados os níveis qualitativos e quantitativos de atendimento às demandas culturais existentes, o caráter multiplicador dos projetos através de seus aspectos socioculturais e desenvolvimento com recursos próprios. (BRASIL, 2010, p.155)

Geralmente os recursos mobilizados pelos fundos são destinados aos artistas e

realizadores culturais mediante a implementação de editais específicos, dedicados ao

financiamento de determinadas linguagens artísticas e manifestações culturais. No Brasil, a

política de editais tem crescido muito nos últimos anos e foi estimulada

preponderantemente a partir da gestão de Gilberto Gil a frente do Ministério da Cultura. A

política de editais, apesar de sofrer muitas críticas, tem servido para oxigenar a produção

cultural nacional mediante o fomento a um conjunto variado de manifestações culturais e

artísticas produzidas pelo país.

Vale-Cultura

Mecanismo mais recente de fomento a produção cultural, o Vale-cultura foi

regulamentado pela lei n. 12.761 de 27 de dezembro de 2012 e pelo Decreto n. 8084 de 26

de agosto de 2013. Este instrumento tem a finalidade de estimular o consumo cultural dos

trabalhadores brasileiros que recebem até cinco salários mínimos mediante o repasse de

benefício no valor de R$ 50 mensais. Serão as empresas que irão oferecer o Vale-cultura a

seus empregados e terão, como contrapartida, uma dedução de até 1% do imposto devido.

Através do beneficio, os trabalhadores poderão consumir bens culturais tais como: CDs,

DVDs, livros, revistas, como também poderá usá-lo para ir a teatros, cinema, circo, shows,

museus, etc.

O governo prevê a movimentação de R$25 bilhões na cadeia produtiva da cultura.

Como é um instrumento muito recente, torna-se difícil avaliar os reais impactos para a

movimentação da economia da cultura. Mas há de se reconhecer que é um passo

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importante para democratizar o acesso aos bens e serviços simbólicos à população

brasileira.

Plano Nacional de Cultura

Os planos de cultura são importantes instrumentos de planejamento a longo prazo.

No Brasil, historicamente, as gestões públicas da cultura não têm privilegiado a adoção de

planos gestão a longo prazo, diferentemente das áreas de Educação e Saúde, por exemplo,

que já contam planos bem consolidados. Paradoxalmente, foi durante a ditadura militar, no

governo Geisel (1974-1978) que o país lançou mão, pela primeira vez, de um plano de gestão

para a cultura de abrangência nacional.

É somente nos anos 2000 que a discussão em torno da necessidade de um plano

nacional de cultura volta à tona mediante uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de

autoria do então deputado federal Gilmar Machado (PT/MG). Sendo assim, a proposição da

criação de um plano nacional de cultura surgiu como uma iniciativa da Câmara dos

Deputados e não do Ministério da Cultura. Como observa Félix (2011), houve pouco

envolvimento por parte do então Ministro da Cultura Francisco Weffort de implantar o Plano

Nacional de Cultura (PNC). A autora atribui a falta de interesse pelo PNC por parte do MinC

às seguintes razões: o modelo de gestão em voga na época que preconizava uma

intervenção reduzida do Estado (Estado-mínimo) na organização da vida social; as diferenças

políticas entre o PT (partido do deputado proponente da PEC) e o PSDB, partido então

Presidente Fernando Henrique Cardoso; a falta de articulação do MinC com as demais

estruturas de governo e com a própria sociedade; a limitação do conceito de cultura

utilizado na época(essencialmente ligado às artes)

O debate sobre a implantação de um plano de gestão de longo prazo para cultura

será retomado a partir do mandado do Ministro Gilberto Gil, quando é aprovada a Emenda

Constitucional, n.48, que incluiu a instituição do PNC ao artigo 215 da Constituição Federal.

Após percorrer um longo caminho nos parlamentos (Câmara de Deputados e Senado

Federal), o PNC é instituído pela Lei 12.343 de 2 de dezembro de 2010.

O Plano tem por finalidade o planejamento e implementação de políticas públicas

de longo prazo (até 2020) voltadas à proteção e promoção da diversidade cultural brasileira.

Os objetivos do PNC são: o fortalecimento institucional e a definição de políticas públicas

que assegurem o direito constitucional à cultura; a proteção e promoção do patrimônio e da

diversidade étnica, artística e cultural; a ampliação do acesso à produção e fruição da cultura

em todo o território; a inserção da cultura em modelos sustentáveis de desenvolvimento

socioeconômico e o estabelecimento de um sistema público e participativo de gestão,

acompanhamento e avaliação das políticas culturais.

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O PNC é um importante instrumento de gestão que poderá abrir caminhos para a

concretização do Sistema Nacional de Cultura, com a efetiva integração de fóruns, conselhos

e outras instâncias de participação federais, estaduais e municipais e promoverá a constante

atualização dos instrumentos de regulação das atividades e serviços culturais, assim como

sinalizará critérios e perspectivas aos sistemas de financiamento e de execução das políticas

públicas de apoio à cultura.

Sistema Nacional de Cultura – SNC

A ideia de criar o Sistema Nacional de Cultura – SNC – já estava incluída no

programa de governo da coalizão que venceu as eleições para a presidência da República em

2002. A inspiração para o SNC, que reúne a sociedade civil, os entes federativos da República

Brasileira – União, Estados, Municípios e Distrito Federal – com suas respectivas políticas e

instituições culturais, veio dos resultados alcançados por outros sistemas de articulação de

políticas públicas instituídos no Brasil, particularmente o Sistema Único de Saúde – SUS. A

experiência do SUS mostrou que o estabelecimento de princípios e diretrizes comuns, a

divisão de atribuições e responsabilidades entre os entes da federação, a montagem de um

esquema de repasse de recursos e a criação de instâncias de controle social asseguram

maior efetividade e continuidade das políticas.

O élan que motivou a criação do SNC era dar maior centralidade e institucionalidade

à política cultural. Buscava-se ainda retirar a política cultural da situação em que se

encontrava: estrutura administrativa precária; orçamentos insuficientes; baixa capilaridade

no tecido político e social do país; pouca participação nas principais decisões de governo. De

lá para cá, muitos passos foram dados. Ações paralelas no âmbito do MinC, como a criação

dos Colegiados Setoriais – música, teatro, dança, artes visuais, circo e livro e leitura – e a

reestruturação administrativa do ministério foram uma das iniciativas para institucionalizar o

SNC.

O objetivo geral do SNC é formular e implantar políticas públicas de cultura na

perspectiva de longo prazo, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade civil,

promovendo o desenvolvimento social com pleno exercício dos direitos culturais e acesso

aos bens e serviços culturais. O SNC é previsto para ser integrado pelos sistemas municipais,

estaduais e distrital de cultura, e pelos sistemas setoriais, que foram e serão criados. A

Política Nacional de Cultura e o Modelo de Gestão Compartilhada constituem-se nas

propriedades específicas que caracterizam o SNC. Os princípios e fundamentos que orientam

o SNC são: diversidade das expressões culturais, universalização do acesso aos bens e

serviços culturais, fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens

culturais, cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na

integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações,

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transversalidade das políticas culturais, autonomia dos entes federados e das instituições da

sociedade civil, transparência e compartilhamento das informações, democratização dos

processos decisórios com participação e controle social, descentralização articulada e

pactuada da gestão, dos recursos e das ações.

A plena implantação do SNC é um enorme desafio ser enfrentado pelo Ministério da

Cultura tendo em vista a complexidade e extrema desigualdade das estruturas

administrativas voltadas para o setor cultural no Brasil, nos seus diferentes níveis: federal,

estadual e municipal. Contudo, o SNC pode vir a se transformar num precioso instrumento

de política cultural para o país na medida em que ele pode vir a propiciar uma melhor

aplicação dos recursos, a descentralização política e administrativa, o planejamento

articulado de ações e programas entre os níveis federativos (governo federal, estados e

municípios) e a consequente redução das desigualdades observadas no país (FÉLIX, 2011).

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