uma representação ao procurador-geral da república

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1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL EDUCAFRO EDUCAÇÃO E CIDADANIA DE AFRODESCENDENTES E CARENTES, Instituição mantida pela FAECIDH FRANCISCO DE ASSIS EDUCAÇÃO, CIDADANIA, INCLUSÃO E DIREITOS HUMANOS, inscrito no CNPJ/MF sob o nº 10.621.636/001-04, com sede na cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, na Rua Riachuelo, 342, Centro, CEP: 01007-000, ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE RECREATIVA GALPÃO DA CULTURA NEGRA GALCUNE ESTRADA DO CAFUNDÁ, 1757, BL 3/ 1009 -Tanque Rio de Janeiro-RJ CEP 22725.030 e CNPJ 08.733.880/0001-17; AGENTES PASTORAIS NEGROS APN’S RUA ALÉM PARAÍBA, 208- SALA 204, BAIRRO LAGOIAINHA Belo Horizonte/ MG - CEP 31.210-120 E CNPJ 60.562.170/0001-91; UNIÃO DE NEGROS PELA IGUALDADE UNEGRO Rua 13 de maio, 1016- Bela Vista - SP / CEP 01033-000 E CNPJ 08.538.344/0001-60; MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO MNU Rua do Curuzu 101 andar Liberdade Salvador-BA E CNPJ 47.309. 315/0001-89; ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL MAYLÊ SARA KALI - AMSK SCLN 413 Bloco D loja 22-s, subsolo, Asa Norte, Brasília DF/ CEP 70.876-540 E CNPJ 10.698.089/0001-65; CENTRO DE ARTESANATOS TIKUNA IÇAENSE RUA D. PEDRO I, 14 Centro (Vila Botânica / Sede) Santo Antônio do Içá - AM CEP: 69.680-000 E CNPJ 04.656.009/0001-06.

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Page 1: uma representação ao procurador-geral da República

1

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL

DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

EDUCAFRO EDUCAÇÃO E CIDADANIA DE AFRODESCENDENTES E

CARENTES, Instituição mantida pela FAECIDH – FRANCISCO DE ASSIS –

EDUCAÇÃO, CIDADANIA, INCLUSÃO E DIREITOS HUMANOS, inscrito no

CNPJ/MF sob o nº 10.621.636/001-04, com sede na cidade de São Paulo, Estado

de São Paulo, na Rua Riachuelo, 342, Centro, CEP: 01007-000,

ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE RECREATIVA GALPÃO DA CULTURA

NEGRA – GALCUNE ESTRADA DO CAFUNDÁ, 1757, BL – 3/ 1009 -Tanque – Rio

de Janeiro-RJ CEP 22725.030 e CNPJ 08.733.880/0001-17;

AGENTES PASTORAIS NEGROS – APN’S RUA ALÉM PARAÍBA, 208-

SALA 204, BAIRRO LAGOIAINHA – Belo Horizonte/ MG - CEP 31.210-120 E CNPJ

60.562.170/0001-91;

UNIÃO DE NEGROS PELA IGUALDADE – UNEGRO Rua 13 de maio,

1016- Bela Vista - SP / CEP 01033-000 E CNPJ 08.538.344/0001-60;

MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO – MNU Rua do Curuzu 101 – 1º

andar – Liberdade – Salvador-BA E CNPJ 47.309. 315/0001-89;

ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL MAYLÊ SARA KALI - AMSK SCLN

413 Bloco D loja 22-s, subsolo, Asa Norte, Brasília –DF/ CEP 70.876-540 E CNPJ

10.698.089/0001-65;

CENTRO DE ARTESANATOS TIKUNA IÇAENSE RUA D. PEDRO I, 14

– Centro (Vila Botânica / Sede) Santo Antônio do Içá - AM CEP: 69.680-000 E

CNPJ 04.656.009/0001-06.

Page 2: uma representação ao procurador-geral da República

2

Vêm por seu advogado, à presença de Vossa Excelência, com fulcro

nos artigos 1º, I e 2º, I, da Lei nº 9.882/99, combinado com o artigo 103, VII, da

Constituição, oferecer

REPRESENTAÇÃO

visando o ajuizamento por V. Exa. de ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE

PRECEITO FUNDAMENTAL . ADPF- (art. 102, Parágrafo 1º, CF e Lei nº 9.882/99),

pelo artigo 292 do Código de Processo Penal (Decreto Lei n. 3689 de 1941) e Portaria

nº. 553 de 2011 editada pela Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro que

regulamenta os autos de resistência.

A seguir, serão expostos os fundamentos da Representação

DOS FATOS

“O Auto de Resistência” parece instrumentalizar uma verdadeira violência

institucional, indicando, em última instância, a existência de verdadeiras

penas de morte extrajudiciais.1”

1 Veja em “Autos com ou sem resistência:Uma análise dos inquéritos de homicídios cometidos por policiais”. Disponível em http://portal.anpocs.org/portal/index.php?option =com_docman&task=doc_view&gid=1843&Itemid=229. Consultado em 10.01.2014.

Page 3: uma representação ao procurador-geral da República

3

I – DA PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL E DO COMBATE AO RACISMO

A Constituição da República de 1988 contribui significativamente para a

construção das normas de combate à discriminação. Neste sentido, nos últimos anos a

luta pela promoção da cidadania da população negra vem ampliando avanços sociais

importantes para a afirmação dos Direitos Humanos no Brasil. Dentre estes progressos

podemos citar o Dia da Consciência Negra (que é feriado em várias cidades do país), a

aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), da lei cotas nas

universidades (Lei 12.711/12) e nos concursos públicos (Lei 12.990/14), além da

obrigatoriedade do Ensino da História da África e Indígena nas escolas (Art. 26, A. Lei

9394/96)2.

Trata-se de um valioso processo de democratização que tem nas ações

afirmativas e no combate à discriminação o seu fio condutor, necessitando ser ainda

muito ampliado para que possamos desenvolver nossa República sem racismo.

Neste sentido, promover a igualdade racial e combater o racismo são

medidas republicanas necessárias para que não continuemos a banalizar injustiças e

discriminações incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

2 Com base na valorização dos povos que constituíram o Brasil, a Carta Magna marca um significativo avanço para a efetividade dos direitos fundamentais dos grupos tradicionalmente excluídos. Por diversos de seus dispositivos, a Lei Maior rompe com o mito da democracia racial, tornando o racismo crime (art. 5º, XLII) e assegurando o direito à diferença, ao reconhecer e valorizar as especificidades étnico-raciais, sociais, religiosas e culturais dos povos que ajudaram a formar a sociedade brasileira (art. 215). Veja o Manifesto em Defesa das Cotas. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian /ff1405200808.htm. Consultado em 18.01.2014.

Page 4: uma representação ao procurador-geral da República

4

II – DA VIOLÊNCIA POLICIAL CONTRA JOVENS NEGROS

Quando falamos em Consciência Negra, tão importante quanto promover

a inclusão é combater as práticas diretas de racismo que ainda persistem,

principalmente nas ações de órgãos públicos e privados. Uma triste constatação sobre

o impacto da discriminação institucional na sociedade é o grande número de jovens

negros mortos de forma violenta.

Dados do mapa da violência (2002-2012) comprovam que negros3

morrem 146,5% a mais do que brancos. Neste mesmo período, enquanto os

homicídios contra jovens brancos caíram 32,3%, entre os negros houve um aumento

de 32,44. Tal situação há anos vem sendo denunciada pelos órgãos de imprensa5 e

também por organismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos.6

A referida pesquisa mostra que a cada duas horas, sete jovens negros

são assassinados no Brasil. Diante desta constatação órgãos do Governo Federal

lançaram um Programa para tentar reverter o problema dos altos índices de mortes

violentas de jovens negros.7

3 Já é tese majoritária nos meios acadêmicos, governamental e ativista que negros correspondem à soma dos pretos mais os pardos. Do ponto de vista estatístico, as populações pretas e pardas têm características muito parecidas em indicadores de renda, de educação, saúde, saneamento básico, nível de emprego. Em suma, pretos e pardos são homogênicos, pois, vivem em condições muito parecidas, mas ainda muito distantes dos brancos em termos de bons indicadores de qualidade de vida. 4 Veja o Mapa da Violência. Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa 2014_JovensBrasil.pdf. Consultado em 12.01.2014. 5Veja a matéria “Morte de Jovens negros cresce 21% em 5 anos no País”. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/01/1570527-morte-de-jovens-negros-cresce-21-em-5-anos-no-pais.shtml. Veja também a matéria “Em Águas Lindas de Goiás, mortes de jovens negros é 15 vezes maior”. Disponível em http://g1.globo.com/goias/noticia/2014/11/em-aguas-lindas-de-goias-mortes-de-jovens-negros-e-15-vezes-maior.html. Veja ainda a matéria “Jovens negros da PB são 13 vezes mais assassinados que os brancos. Disponível em http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2015/01/jovens-negros-da-pb-sao-13-vezes-mais-assassinados-que-os-brancos.html. Veja por úlitmo a reportagem “Jovens e negros são as maiores vítimas de homicídio no Brasil”. Disponível em http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/bjovens-e-negrosb-sao-maiores-vitimas-de-homicidio-no-brasil.html. Todos documentos consultados em 14.01.2014. 6 Para colocar em evidência as altas taxas de mortes de jovens negros no país e cobrar ações concretas de enfrentamento do problema, a Anistia Internacional lançou a campanha Jovem Negro Vivo. Veja em https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo. Consultado em

11.01.2014. 7 Veja mais informações no site http://juventude.gov.br/juventudeviva#.VLdZgivF-Pk. . Consultado em 10.01.2014.

Page 5: uma representação ao procurador-geral da República

5

Vários fatores tentam explicar esses altos índices, mas uma das

principais causas desta seletividade mortal, em relação aos negros, decorre da

atividade policial.

Por todo país, em violentas operações policiais, jovens das favelas,

comunidades, periferias e demais regiões desassistidas pelo poder público, muitos sem

antecedentes criminais e, em sua maioria negros, são espancados, baleados e

assassinados pela polícia.

Uma pesquisa feita pela Universidade Federal de São Carlos revelou que

em São Paulo, por exemplo, a taxa de negros mortos pela polícia é três vezes maior do

que a de brancos. Os dados relevam ainda que 61% das vítimas da polícia no estado

são negras, 97% são homens e 77% têm entre 15 e 29 anos8.

No Rio de Janeiro para cada 100 mil habitantes, 3,6 negros são mortos

pela polícia, contra 0,9 brancos. Uma pesquisa feita pelo PNUD velou que os pretos

compõem 11,1% da população fluminense, mas são 32,4% dos mortos pela polícia.

Entre os brancos o quadro se inverte: são 54,5% da população e 19,7% dos mortos

pela força policial. Já para os pardos, 34% da população do Rio de Janeiro, a

incidência de mortes é de 21,8%, também acima da porcentagem registrada entre

brancos. Os cálculos foram feitos a partir de 1.538 ocorrências envolvendo morte de

opositores pela polícia, entre janeiro de 1998 e setembro de 2002.9

O mesmo estudo revelou que a matança de negros pela polícia se

reproduz em todo País. Entre pessoas pretas, as taxas mais elevadas são as de

Roraima (138,2 homicídios por 100 mil habitantes), Rondônia (120,7), Mato Grosso

(96,8), Rio de Janeiro (96,2), Acre (88,5), Mato Grosso do Sul (86,1) e São Paulo

(83,1).

A pesquisa aponta que os negros são a maior parte das vítimas tanto em

Estados com altas taxas de homicídio quanto nos Estados em que os números são

inferiores à média nacional. As discrepâncias são maiores nas faixas etárias entre 15 e

39 anos – com destaque para aquela entre 20 e 24 anos, em que a taxa de homicídios

dos homens de cor preta supera os 200 por 100 mil habitantes.

8 Veja mais detalhes no site http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/Sum%C3%A1rio-Executivo_Desigualdade-racial-e-seguran%C3%A7a-p%C3%BAblica-em-SP.pdf. . Consultado

em 15.01.2014. 9 Veja a matéria “Negro é vítima maior de crime e polícia”. Disponível em http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/negro_e_vitima_maior_de_crime_e_policia.pdf. . Consultado em 10.01.2014.

Page 6: uma representação ao procurador-geral da República

6

Resta, portanto, provado, de acordo com os dados acima, que uma

das principais causas do alto número de mortes de jovens negros no Brasil é a

atividade policial. A situação é tão grave que se fala em genocídio da juventude

negra no País. 10

Historicamente, a justificativa mais usada pela polícia para tentar explicar

esses elevados índices de letalidade em relação à população negra é a chamada

resistência à prisão seguida de morte. Contudo, ultimamente os Movimentos

Sociais, diversas pesquisas e reportagens midiáticas vêm demonstrando o lado

perverso e antijurídico por detrás do procedimento que se convencionou chamar de

auto de resistência.

III - DO USO ILEGÍTIMO DO AUTO DE RESISTÊNCIA COMO UMA DAS MAIORES

“JUSTIFICATIVAS” DA MORTE VIOLENTA DA JUVENTUDE NEGRA

Resistência é crime previsto no artigo 329 do código penal.11 O auto de

resistência é o documento produzido pelos policiais para descreverem a dinâmica do

fato e comprovarem que o suposto criminoso resistiu à prisão, por vezes, desferindo

grave ameaça contra a vida dos agentes de segurança que, em legítima defesa,

revidam ao ataque vindo a ferir ou até mesmo a matar o suposto agressor.

O referido procedimento possui respaldo legal no artigo 292 do código

de processo penal, vindo a ser regulamentado, geralmente pelas legislações dos

órgãos de segurança pública dos estados12.

10 Sobre este assunto veja Juventudes contra Violência, Disponível em http:// juventudes contraviolencia.org.br /plataformapolitica/quem-somos/eixos -programaticos/enfrentamento-ao -genocidio-da-juventude-negra/. Veja também “A violência contra jovens negros no Brasil”. Disponível em http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-violencia-contra-jovens-negros-no-brasil/. Documentos consultados em 14.01.2015. 11 Artigo 329 do Código Penal “Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio”. 12 Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

Page 7: uma representação ao procurador-geral da República

7

O auto de resistência é preenchido pelo policial executor da ação e por

testemunhas que, geralmente, também são policiais envolvidos na operação.

O auto de resistência, um documento muito importante, mas de fácil

produção pelos policiais, na prática tornou-se o principal meio probatório no

inquérito policial para justificar as mortes, sobretudo, as de jovens negros

(decorrentes da ação policial) como sendo em legitima defesa13.

Isto porque embora sejam homicídios, as mortes derivadas da ação da

polícia são classificadas separadamente, como mortes com “exclusão de ilicitude”,

pois, supostamente cometidas em legítima defesa ou com o objetivo de “vencer a

resistência” de suspeitos de crime14.

Como visto acima, alguns estudos acadêmicos embasados, inclusive

empiricamente, demonstraram que temos um altíssimo índice de mortes violentas de

jovens negros decorrentes de ação policial, justificadas por meio dos autos de

resistência.

As pesquisas também comprovam que por conta de sua fácil produção,

os autos de resistência permitem aos maus policiais transformarem verdadeiras

execuções em ações praticadas em legitimas defesas15.

13 Art. 23 do Código Penal - Não há crime quando o agente pratica o fato:I - em estado de necessidade;II - em legítima defesa;III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. 14 A tipificação penal aplicada no Registro de Ocorrência é o “homicídio”, previsto no artigo 121 do Código Penal, combinado com o artigo 23 do mesmo, que prevê a “exclusão de ilicitude: 15 Veja em CANO, Ignácio. Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER,1997. Ver também em VERANI, Sérgio. Assassinatos em Nome da Lei. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996. Veja também em “Autos de resistência”:uma análise dos homicídios cometidos por policiais na Cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Disponível em http://www.necvu.ifcs.ufrj.br/images/Relatorio%20final% 20Autos%20de%20Resist%C3%AAncia.pdf ; A biopolítica dos autos de resistência. Disponível em http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/18771/18771_5.PDF; Autos com ou sem resistência: Uma análise dos inquéritos de homicídios cometidos por policiais”. Disponível em http://portal.anpocs.org/portal/index .php?option=com_docman&task=doc_view&gid=1843&Itemid=229; veja também em “Autos de resistência cresceram 158% entre junho e julho deste ano” http://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/

100036082/autos-de-resistencia-cresceram-158-entre-junho-e-julho-deste-ano. Documentos

consultados em 10.01.2014.

Page 8: uma representação ao procurador-geral da República

8

Várias matérias jornalísticas vêm demonstrando maus policiais forjando a

cena do crime e justificando assassinatos, contra criminosos e inocentes em sua

maioria negros, com o auto de resistência16.

Está aqui a base da tese desta representação. Conforme os estudos e

fatos que estamos trazendo, afirmamos que por todo o Brasil, muitos maus policiais

transformam assassinatos (de jovens pobres - na maioria negros - das periferias,

favelas e demais localidades desassistidas) em ações praticadas em legitima

defesa, mascarando, forjando, falsificando a cena do crime, encobrindo atos ilícitos e

garantindo a impunidade.

Segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, apenas quatro

Estados da Federação divulgam amplamente o número de mortes decorrentes de atos

praticados por policiais civis e militares (Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo

e Santa Catarina) e, nestes, entre janeiro de 2010 e junho de 2012, houve 3086 mortes

em confrontos com policiais, sendo 2986 registradas por meio dos denominados autos

de resistência (ou resistência seguida de morte) e 100 mortes em ação de policiais civis

e militares.17

Por conta do que estamos descrevendo, cresce de modo significativo, em

todo país, a luta pelo fim do auto de resistência. Audiências públicas, manifestações,

protestos e demais atos capitaneados pelos Movimentos Sociais pautaram o

problema18.

16Veja a notícia “vídeo feito pela polícia do rio de Janeiro mostra PMs forjando local de operação em favela do Rio”. Disponível em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/05/11/video-feito-pela-policia-do-rio-mostra-agentes-forjando-auto-de-resistencia.htm; Veja também a matéria Video mostra PMs do Rio forjando operação em favela. Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/05/video-mostra-pms-forjando-local-de-operacao-em-favela-do-rio.html. Consultados em 15.01.2014. 17 Resolução n. 08 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Disponível em http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cddph/resolucoes/2012/resolucao-08-auto-de-resistencia. Consultado em 10.01.2014. 18Veja em “Audiência pública debate barreiras de acesso a jovens negros à justiça”. Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/noticia/6405-audiencia-publica-no-cnmp-debate-barreiras-de-acesso-dos-jovens-negros-a-justica; Veja também em “Entrevista com Sandra Carvalho e Juliana Farias, da Justiça Global, sobre a mudança nos “Autos de Resistência”. Disponível em http://br.boell.org/pt-br/2013

Page 9: uma representação ao procurador-geral da República

9

Podemos afirmar que hoje há um movimento nacional pelo fim dos autos de

resistência, contando inclusive com o apoio de Instituições Internacionais de proteção

aos Direitos Humanos19.

A questão dos autos de resistência tornou-se um problema para a

segurança pública nacional, por força disto:

1- O Governo Federal por meio do Conselho de Defesa dos Direitos da

Pessoa Humana criou a Resolução número 08/12 com vistas a abolir designações

genéricas, como “resistência seguida de morte”, em registros policiais, boletins de

ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crime20;

2- No Congresso Nacional tramita na Câmara dos Deputados o projeto de

lei 4471/12 que visa alterar os artigos. 161, 162, 164, 165, 169 e 292 do Código de

Processo Penal modificando os procedimentos investigatórios no caso de morte

violenta por ação policial acabando com os autos de resistência seguidos de morte; 21

3- No Senado Federal uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) está

sendo criada para investigar o assassinato de jovens no Brasil. 22

4- No Rio de Janeiro a Chefe da Polícia Civil do Estado editou a Portaria

nº. 553 de 2011 que estabelece as diretrizes básicas a serem observadas pelas

autoridades policiais, na apreciação de fatos apresentados como ensejadores da

lavratura do denominado "auto de resistência", e dá outras providências;

/01/30/entrevista-com-sandra-carvalho-e-juliana-farias-da-justica-global-sobre-mudanca-nos-autos. Consultados em 09.01.2014. 19 Veja a Carta Aberta da ONG Human Rights Watch às autoridades públicas de São Paulo. Disponível em

http://www.hrw.org/node/117664. . Consultado em 15.01.2014. 20 Resolução n. 08 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Disponível em

http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cddph/resolucoes/2012/resolucao-08-auto-de-resistencia. Consultado em 06.01.2014. 21 Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=556267 22 Veja em Senado terá CPI para investigar assassinatos de jovens. Disponível em http://www12.senado.gov.br/ noticias/materias/2015/03/04/senado-tera-cpi-para-investigar-assassinatos-de-jovens?utm_source=mídias-sociais &utm_medium=midias-sociais&utm_campaign=midias-sociais. Consultado em 20.01.15.

Page 10: uma representação ao procurador-geral da República

10

5- No Estado de São Paulo a Secretaria de Estado da Segurança Pública

baixou a Resolução nº 5/2013 estabelecendo parâmetros aos policiais que atendam

ocorrências de lesões corporais graves, homicídio, tentativa de homicídio, latrocínio e

extorsão mediante sequestro com resultado morte. A Resolução também fixa diretrizes

para a elaboração de registros policiais, boletins de ocorrência, notícias de crime e

inquéritos policiais decorrentes de intervenção policial;

Registre-se que por conta da grande pressão feita pelos Movimentos

Sociais e pela mídia, os referidos Estados da Federação, que possuem altos índices de

mortes decorrentes de ação policial (justificadas com o auto de resistência), criaram

tais procedimentos administrativos tentando minorar o problema, ou seja, impedir que

maus os policiais promovam execuções e depois as justifiquem como sendo feitas em

legítima defesa.

Por mais que possamos reconhecer os recentes esforços de apenas dois

Estados da Federação, por conta do que estamos narrando, devemos fazer algumas

constatações:

1- que a prática de atirar no “suspeito” pobre e negro e depois assegurar

a impunidade do crime, com base no auto de resistência, tornou-se um hábito

cristalizado entre os maus agentes da segurança pública, por força do artigo 292 do

Código de Processo Penal, que acaba dando azo à naturalização, à banalização ou

justificativa forjada de execuções e demais ações violadoras dos Direitos Humanos;

2- que as medidas adotadas pelos Governos, com vistas a impedir que o

auto de resistência seja utilizado para encobrir execuções, são insuficientes para

resolver o problema, pois, ainda subsistem numerosos assassinatos cometidos pela

polícia sendo mostrados todos os dias nos meios de comunicação23;

23 Veja a carta que a Instituição Human Rights Watch faz ao Governador de São Paulo na qual se demonstra que as recentes medidas tomadas pelo Governo não estão surtindo os efeitos esperados já que os índices de mortes praticados pela polícia persistem. Disponível em

http://www.hrw.org/node/117664. . Consultado em 10.01.2014.

Page 11: uma representação ao procurador-geral da República

11

3- que os jovens negros das periferias, favelas e demais áreas

desassistidas pelo poder público no Brasil são as maiores vítimas dos chamados autos

de resistência;

4- que é urgente a promoção de novos e legítimos padrões de ações dos

agentes de segurança pública no Brasil (de acordo com que estabelecem os princípios

das Nações Unidas para a prevenção efetiva e investigação de execuções sumárias,

arbitrárias e extralegais)24.

5- que a questão é nacionalmente relevante e já está mais do que

maduro o debate sócio político sobre a necessidade e urgência de acabarmos com os

autos de resistência, ou seja, com a possibilidade de que assassinatos cometidos por

agentes da segurança pública fiquem impunes;

6- que é imperiosa a provocação da jurisdição constitucional sobre a falta

legitimidade dos autos de resistência frente à Constituição Cidadã de 1988.

IV – DA NÃO RECEPÇÃO DO ARTIGO 292 DO CÓDICO DO PROCESSO PENAL E

DO AUTO DE RESISTÊNCIA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA

DO BRASIL DE 1988

IV.1 - DO DISPOSITIVO LEGAL E ATO NORMATIVO IMPUGNADO

(Artigo 292 do Código de Processo Penal - Decreto Lei n. 3689 de 1941- e Portaria nº.

553 de 2011 editada pela Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro).

Os autos de resistência estão fundamentados legalmente no artigo 292

do Código de Processo Penal (Decreto Lei n. 3689 de 1941).

24 Veja neste sentido As Normas e Princípio das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal. Disponível em file:///C:/Users/renato/Desktop/auto%20de%20resistencia/ Norma%20Justi% C3%A7a%20criminal%20ONU.pdf. Consultado em 11.01.2014.

Page 12: uma representação ao procurador-geral da República

12

Artigo 292 Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à

prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o

executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios

necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que

tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

Tal artigo, por sua própria dicção, se constitui histórica, social e

jurídicamente ultrapassado, pois, não resiste aos Cânones democráticos de nossa

atual ordem jurídica, trazidos pela Carta da República de 1988, vejamos:

O referido artigo que consubstancia o auto de resistência emana da

Ditadura Varguista do Estado Novo, um dos períodos mais autoritários e violentos da

nossa história.

Como aponta excelente estudo da lavra do professor da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro e Desembargador do Tribunal de Justiça Fluminense, Sergio

Verani25, o auto de resistência foi regulamentado em 2/10/1969, em plena Ditadura

Militar, pela Superintendência da Polícia do então Estado da Guanabara, através da

Ordem de Serviço “N”, n° 803, na qual se dispensava a necessidade de Prisão em

Flagrante dos policiais ou de inquérito nas circunstâncias previstas no artigo, 292 do

CPP.

O Estudo aponta ainda que em 1974, uma portaria do Secretário de

Segurança daquele Estado detalhou os procedimentos a serem adotados pela Polícia

Judiciária de modo que não autuassem em flagrante os policiais, centrando-se na

25 Este grande jurista é o pioneiro no Estudo crítico dos autos de resistência como maneiras de forjar e justificar execuções cometidas por policiais. A ele rendemos nossas homenagens. Ver em VERANI, Sérgio. Assassinatos em Nome da Lei. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996.

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incriminação do opositor morto pelos crimes cometidos, para que ficasse

comprovada a extinção de punibilidade dos agentes da segurança pública.

Esse procedimento serviu de paradigma para todo o Brasil, de modo que

as autoridades judiciárias costumam assumir, desde o inicio das investigações, a

versão de que os policiais atiraram em legítima defesa. Daí por diante toda

investigação, do inquérito ao processo penal, é contaminada tornando-se quase

impossível desconstituir a falsa versão apresentada pelos maus policiais e se chegar à

veracidade dos fatos.

Hoje, ao menos no Estado do Rio de Janeiro, subiste o uso do auto de

resistência por meio da Portaria nº. 553 de 2011 editada pela Chefe da Polícia Civil

do Estado. A norma estabelece as diretrizes básicas a serem observadas pelas

autoridades policiais, na apreciação de fatos apresentados como ensejadores da

lavratura do denominado "auto de resistência", e dá outras providências;

Mas na realidade, esse problema afeta o país inteiro. Os desdobramentos

feitos pelos órgãos de segurança pública dos estados brasileiros, a partir da

interpretação que deram e continuam dando ao artigo 292 do CPP, naturalizaram

durante anos uma série de procedimentos inconstitucionais que acabaram por criar

como rotineira a cultura nefasta de primeiro atirar no suspeito (pobre e negro) depois

forjar a cena do crime, ameaçar testemunhas criar facilmente, do inquérito policial ao

processo penal, a situação de excludente de ilicitude, por conta das referidas normas

permitirem que isto ocorra26.

26 Veja a matéria jornalística sobre a produção forjada dos autos de resistência pela polícia.

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/05/15/para-especialista-forjar-auto-de-resistencia-e-pratica-comum-no-rio-relembre-casos.htm. Veja também o escandaloso número de mortes justificadas com auto de resistência pela Polícia do Rio de Janeiro. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,mortos-em-autos-de-resistencia-passam-de-10-mil-em-11-anos-

no-rio,463234. Consultados em 15.01.2014.

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IV.2 - DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL PENAL E

FILTRAGEM CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 292 (AUTO DE RESISTÊNCIA)

A Constituição de 1988 com base na dignidade da pessoa humana impõe

o respeito aos direitos fundamentais por todo ordenamento27. Assim, o processo de

constitucionalização do Direito tem como desdobramento a releitura de toda a ordem

jurídica a partir de uma ótica pautada pelos valores constitucionais - a chamada

filtragem constitucional – isto implica na inclusão no texto constitucional em temas

outrora ignorados, ou regulados em sede ordinária28.

Neste sentido, o Código de Processo Penal está desatualizado em

relação à Constituição de 198829. É pacífico na doutrina mais abalizada, que vários dos

dispositivos do referido Código não resistem a uma adequada filtragem constitucional30.

É o caso do artigo 292 do CPP que entrou em vigor na época da ditadura

Vargas (1941), bem como os atos normativos que desde a ditadura militar buscam

sempre regulamentá-lo pró auto de resistência, fazendo prevalecer já no inquérito

policial, a versão de que houve resistência à prisão e que os agentes de segurança

agiram em legitima defesa.

Isto ocorre também porque, via de regra, ao longo da investigação policial

e do processo, duvidar da versão apresentada pelos policiais comunicantes da

27 Veja neste sentido, BARROSO, Luis Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. Consultado em 10.01.2014. 28 Neste sentido, veja SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil, riscos e possibilidades. Disponível em www.direitoesubjetividade.files.wordpress.com. Consultado 15.01.2015. 29 Há anos tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 8045/10, que estabelece o Novo Código de Processo Penal. A reforma foi criada com o objetivo de adaptar a legislação atual – que é da década de 1940 – à Constituição de 1988. 30 JR, Aury Loppes. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol. 14°ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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ocorrência é conduta atípica nas práticas rotineiras da polícia bem como do Poder

Judiciário, prevalecendo-se a fé pública dos agentes de segurança.

Existem, ao menos, três situações fáticas que dificultam o surgimento da

verdade real nestes casos:

1- A dinâmica social: os fatos violentos, via de regra, ocorrem em

comunidades pobres e periferias, favelas e demais áreas onde as

pessoas historicamente vivem reféns de criminosos e amedrontadas

por maus policiais;

2- A dinâmica do inquérito: o código não prevê instrumentos de

investigação mais técnicos e modernos que permitam contradizer a

versão apresentada pelos maus agentes de segurança pública;

3- A dinâmica processual: por conta dos fatos anteriores o auto de

resistência se desenvolve como a rainha das provas fazendo com que

o Judiciário chancele a versão de legítima defesa absolvendo os maus

policiais.

Os fatos descritos acima legaram historicamente um ciclo vicioso de

horror para as vítimas, de sofrimento para as famílias, de impunidade para os

maus policiais, de impotência para a Justiça e de vergonha para a República.

Um simples auto de resistência – documento de fácil produção - assinado

por duas testemunhas, que também são os policiais, é o suficiente pra fazer deste

procedimento, a rainha das provas, do inquérito ao processo penal. Historicamente

estimulando assassinatos e garantindo a impunidade por meio da falsa tese da legitima

defesa.

Se faz necessário e urgente que a estrutura do Código de Processo Penal

de 1.941 seja adequada e, portanto, conformada à nova ordem constitucional vigente.

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Nessa tarefa, existem princípios que fundam a instrumentalidade constitucional e

conduzem a uma releitura de todos os institutos do processo penal.

Há portanto, necessidade de instrumentalizar constitucionalmente o

processo, neste caso, garantindo maior eficiência, contraditório e respeito aos direitos

fundamentais31,

Na verdade o auto de resistência deveria ser apenas mais um elemento

levado ou não em consideração em todo contexto probatório. Mas da maneira com a

qual o artigo 292 do CPP estabelece e vem sendo utilizado historicamente, o referido

auto se torna a rainha das provas permitindo que verdadeiras execuções sejam

justificadas como legitima defesa.

Dessa forma, ao fazermos uma filtragem constitucional do artigo 292 do

CPP (auto de resistência) seus regulamentos e os desdobramentos processuais por ele

ensejados, perceberemos que os mesmos são "incompatíveis com os tempos

democráticos", pois, afrontam os princípios elencados na Constituição de 1988,

mormente à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), à vida (artigo 5º, caput ) à

segurança (artigo 5º, caput ) à legalidade (artigo 5º, II, CF), ao devido processo legal

(artigo 5º, inciso LIV), à não discriminação (artigo 3º, IV e artigo 5º XLI e XLII), à

inadmissão de provas ilícitas no processo (artigo 5ºLV) e aos princípios da

administração pública (artigo 37).

De igual modo o artigo 292 e os procedimentos desencadeados por

ele estimulam a violação dos Direitos Humanos. Eles são de toda forma

inconstitucionais, eis que, contrários à ordem jurídica inaugurada em 1988.

Ressaltamos que o Brasil é signatário dos princípios das Nações Unidas

para a prevenção efetiva e investigação de execuções sumárias, arbitrárias e

extralegais, adotado em 24 de maio de 198932:

31 Veja neste sentido, BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1nov. 2005 .

Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Consultado em 10.01.2014.

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“Os governos devem proibir por lei todas as execuções extralegais, arbitrárias ou sumárias e devem zelar para que todas essas execuções sejam tipificadas como delitos em seu direito penal e que sejam sancionáveis com penas adequadas que levem em conta a gravidade de tais delitos [...]” Ainda com relação a estes princípios das Nações Unidas, sobre a condução da investigação: Deve haver uma investigação completa, imediata e imparcial de todos os casos suspeitos de execução sumária, arbitrária e extralegal, inclusive de casos em que a queixa de parentes ou outros relatos confiáveis sugiram óbito por razões anormais nessas circunstâncias. Os Governos devem manter oficiais de investigação e procedimentos a fim de realizar tais inquéritos. O propósito da investigação deve ser determinar as causas, as razões e a hora da morte, o autor do crime, e qualquer ato ou prática que possa ter causado a morte. Deve incluir ainda autópsia adequada, coleta e análise de qualquer prova física ou documental, bem como relatos de testemunhas. A investigação deve distinguir entre morte natural, morte acidental, suicídio e homicídio.

Desta forma, temos que acabar com a possibilidade dos maus agentes de

segurança pública transformarem as execuções de pobres e negros em legitimas

defesas. O modo mais eficaz para fazermos isto é expurgando o artigo 292 do Código

de Processo Penal e seus regulamentos (como a Portaria nº. 553 de 2011 editada

pela chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro) do ordenamento jurídico

pátrio.

Na realidade demonstramos que por força dos referidos dispositivos

temos uma imensa teia de inconstitucionalidades que se desdobram em uma

multiplicidade de atos e omissões estatais, implicando em séria ofensa aos direitos

fundamentais, sobretudo de jovens negros, do inquérito policial ao processo penal.

Urge que a jurisdição constitucional seja acionada.

32 Veja neste sentido, veja As normas e Princípio das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal. Disponível em file:///C:/Users/renato/Desktop/auto%20de%20resistencia /Norma%20Justi%C3%A7a%

20criminal%20ONU.pdf. Consultado em 19.01.2014.

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V - DOS PRECEITOS FUNDAMENTAIS DESRESPEITADOS

A inconstitucionalidade das referidas normas (Artigo 292 do Código de

Processo Penal - Decreto Lei n. 3689 de 1941- e Portaria nº. 553 de 2011, editada

pela Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro) decorre da violação aos

preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), à vida

(artigo 5º, caput ), da segurança (artigo 5º, caput ) da legalidade (artigo 5º, II, CF),

do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV), da não discriminação (artigo 3º,

IV e artigo 5º XLI e oLII), da inadmissão de provas ilícitas no processo (artigo

5ºLV) e dos princípios da administração pública (artigo 37).

De fato, em um Estado Democrático de Direito, regido por uma

Constituição em cujo vértice situa-se o princípio da dignidade da pessoa humana, os

direitos e garantias fundamentais devem ser protegidos pelo Estado33.

Neste sentido, a atuação eficiente do poder público (artigo 37, CF) na

apuração das circunstâncias em que ocorrem os homicídios que exterminam a

juventude negra, deve ser feita do inquérito policial ao processo penal como

ressaltamos. Devendo os procedimentos administrativos assegurar as garantias

individuais e coletivas próprias a um Estado Democrático.

Não podemos aceitar uma democracia em que não há procedimentos

adequados e controles eficazes para se exigir a correta conduta de agentes públicos.

33 Veja BARROSO, Luis Roberto, op cit.

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Em suma, há necessidade de fazermos uma filtragem constitucional

no artigo 292 do CPP e demais regulamentos de modo a alcançar a verdade real,

expurgando as leis e procedimentos antidemocráticos cristalizados nas ações

dos maus agentes de segurança pública.

Assim daremos mais visibilidade às atividades praticadas pelos agentes

de segurança pública de modo a fortalecer seus controles externos, o que é uma

exigência do regime pátrio esculpido em nossa Constituição, bem como dos tratados

internacionais de proteção aos Direitos Humanos que o Brasil se comprometeu a

cumprir34.

VI - DO CABIMENTO DA PROPOSITURA DE ADPF PELO CONSELHO FEDERAL

DA OAB

A Lei 9.882/99, que regulamentou o artigo 102, parágrafo 1° da

Constituição da República, diz: “Art. 1° Parágrafo único”. Caberá também arguição de

descumprimento de preceito fundamental:

“I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;”

Por outro lado, encontramos a legitimidade jurídica do Conselho Federal

da OAB para promover a jurisdição constitucional perante o Supremo Tribunal Federal

34Veja as Normas e Princípios das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça

Criminal. Disponível em http://www.unodc.org/documents/justice-and-prisonreform/projects/UN_

Standards_ and_Norms_CPCJ_-_Portuguese1.pdf. Consultado em 18.01.2014.

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neste caso esculpidas nos artigos 103, VII; 133 da Constituição e no artigo 2º, I, da

Lei nº 9.882/99.

Além disso, a OAB pelo seu histórico de lutas em defesa do Estado

Democrático de Direito está diretamente envolvida neste caso, pois, é indispensável à

administração da Justiça e defesa das instituições democráticas.

O cabimento de ADPF ainda se faz necessário por conta de não inexistir

qualquer outro meio processual hábil a sanar, com efetividade real, o estado de

lesividade emergente do ato impugnado que permite na prática, a violação dos direitos

fundamentais (morte) de milhares jovens, em sua maioria negros, mediante à violência

e à impunidade dos maus agentes de segurança pública.

A Constituição de 1988 promoveu mudanças significativas no Direito

Brasileiro, uma das mais importantes envolve o fenômeno constitucionalização do

Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo, os

relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento.35

No que tange à questão racial, promover a igualdade e combater as

discriminações, tal qual estabelece a nossa Constituição, é dever do Estado. Neste

sentido, acabar com o auto de resistência que instrumentaliza há décadas uma

verdadeira violência institucional impunível, (sobretudo contra jovens negros) é

medida urgente para que não continuemos a tolerar desigualdades e ações

incompatíveis com o estado democrático de direito.

35 Neste sentido veja SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Disponível em https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source =web&cd=1&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F%2Fdireitoesubjetividade.files.wordpress.com%2F2010%2F08%2Fdaniel-sarmento-o-neoconstitucionalismo-no-brasil1.doc&ei=Qh_AVLSYD6rhsAS3w4DoDg&usg=AFQjCNG7q_I5uMd_Y9HfeimBGxxr9F8SuQ&sig2=USCVHUXpXiHBt15paevEdw. Consultado em 10.01.2014.

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DO PEDIDO

Em face do exposto, espera o requerente que o Conselho Federal da

OAB ajuíze Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante o Supremo

Tribunal Federal, com pedido de que a Corte profira decisão dotada de eficácia erga

omnes e efeito vinculante, para que:

1 - declare revogado o artigo 292 do Código de Processo

Penal (Decreto Lei n. 3689 de 1941) eis que o auto de resistência

não foi recepcionado pela Constituição de 1988

(especificamente em face aos preceitos constitucionais da

dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), à vida (artigo

5º, caput ), da segurança (artigo 5º, caput ) da legalidade

(artigo 5º, II, CF), do devido processo legal (artigo 5º, inciso

LIV), da não discriminação (artigo 3º, IV e artigo 5º XLI e oLII),

da inadmissão de provas ilícitas no processo (artigo 5ºLV) e

dos princípios da administração pública (artigo 37)

2- Declare a inconstitucionalidade Portaria nº. 553 de 2011

editada pela Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, eis

que regulamenta o referido artigo 292 do Código de Processo

Penal (Decreto Lei n. 3689 de 1941) mas ainda permite, em afronta

aos preceitos mencionados.

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Precisamos acabar com a justificativa forjada da matança violenta e

generalizada da juventude, em especial de jovens negros.

Rio de janeiro, 22 de janeiro de 2014.

Pede Deferimento.

Apóiam este documento

Coletivo Nacional de Juventude Negra - Brasília

Rede Amazônica Negra - Manaus

Articulação de Mulheres Negras – AMNB – Porto Alegre

Forum Nacional de Mulheres Negras - Salvador

Movimento Nacional de Direitos Humanos- MNDH – Rio de Janeiro

Associação Beneficente Recreativa Galpão da Cultura Negra – GALCUNE - Rio de Janeiro

Federação Árabe Palestina do Brasil – FEPAL - Curitiba

Associação Internacional Maylê Sara Kali – AMSK