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Quebrando o Silêncio Uma recolha de textos pessoais e desenhos de mulheres com autismo

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Quebrando o SilêncioUma recolha de textos pessoais e desenhosde mulheres com autismo

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Quebrando o Silêncio Uma recolha de textos pessoais e desenhosde mulheres com autismo

Contribuições

Introdução por Sylvia Kenyon ..................................................................................................................................

Alguns feitos por Daniela del Campo .....................................................................................................................

As minhas experiências educativas por RL ..........................................................................................................

Conseguir trabalho por Laura Williams ..................................................................................................................

Milagres por TH .......................................................................................................................................................

A minha infância em imagens por MX ...................................................................................................................

As minhas realizações na vida por MX ..................................................................................................................

Sair de uma situação abusiva por Robyn Steward ...............................................................................................

As minhas coisas por Amy W .................................................................................................................................

Começar a ultrapassar a fobia social por AM ......................................................................................................

Uma perigosa viagem pelos escalões educativos – ser a ovelha “invisível”,“negra” e “neurodiversa”! por Holly Judge ...........................................................................................................

O meu padrão de vida e de saúde em imagens por Patricia Cuadrado ..............................................................

Trabalho árduo por Kerry ........................................................................................................................................

Espiritualidade e relações por Michelle Frias ........................................................................................................

Inclusão por Patricia Castanha ...............................................................................................................................

Dificuldades na escola por Irenoula ......................................................................................................................

Eu por Omeh Egbe (com o apoio de Liz Miles) ........................................................................................................

Ilustração de capa por Sandra Serodio

Os meus agradecimentos às fantásticas participantes neste projeto, por expressarem pela palavra e pelo traço toda a sua sinceridade, criando estes contributos comoventes e inspiradores. Sem a vossa colaboração, não haveria Autism in Pink.

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Com o apoio da Programa Lifelong Learning da

União Europeia

Este projecto foi financiado com o apoio da Programa Lifelong Learning da União Europeia.

A informação contida nesta publicação vincula exclusivamente o autor, não sendo a Comissão responsável pela utilização que dela possa ser feita.

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IntroduçãoEmbora haja mulheres que falaram abertamente sobre o seu autismo, como Temple Grandin, Donna Williams e Rudy Simone, esta condição continua a ser considerada como maioritariamente masculina. Estas mulheres falam, mas regra geral ficam em silêncio, pelas mais diversas razões. Talvez tivessem tentado falar, sem conseguir ser ouvidas.

Muitas mulheres são ainda encaradas com descrença, quando sugerem sofrer de autismo, mesmo quando dispõem do diagnóstico.

“Não pode ser autista – é uma pessoa normal.” Mas o que é ser normal?

“Sofre de autismo moderado.” “Tem autismo de alto funcionamento.” Mas o que é o autismo moderado e o que significa autismo de alto funcionamento?

É seguramente melhor pôr de parte estes termos e definições inúteis e considerar as mulheres em si. Como é a sua vida, como se sentem, quais as suas dificuldades e os seus triunfos? O que as distingue das outras mulheres?

Este livro online não visa explicar como é a vida de todas as mulheres com autismo. Narra as histórias de mulheres individuais, que se inscrevem no espectro do autismo e foram diagnosticadas. E narra essas histórias nas suas próprias palavras e nas suas próprias imagens. Os relatos apenas foram editados para melhor fazer ouvir a sua voz.

ColaboradoresTodos os colaboradores deste livro são mulheres com autismo, que participaram no projeto de investigação do Programa Lifelong Learning, da União Europeia, Autism in Pink.

No âmbito desse projeto de investigação, as informações fornecidas pelas mulheres, as experiências por elas relatadas, as dificuldades e estratégias por elas partilhadas, foram consideradas no sentido da criação de uma Abordagem de Aprendizagem.

Mas aqui, a recolha é mais pessoal e o propósito é trazer vivência à abordagem de aprendizagem, ajudar a compreender como é realmente a vida para as mulheres que se voluntariaram a participar no Autism in Pink.

As colaboradoras provêm de Espanha, Portugal, Lituânia e Reino Unido.

Algumas fazem questão em dar a conhecer o seu verdadeiro nome, outras preferem usar um nome fictício ou pseudónimo ou parte do nome real. Não que se envergonhem de ser autistas, mas por serem por vezes negativamente julgadas por essa condição.

Assim, livre-se de preconceitos e leia o que se segue, procurando compreender como é a vida dessas mulheres com autismo.

Sylvia KenyonInvestigadora Principal e Editora desta recolha

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Alguns feitospor Daniela del Campo

Há alguns anos, durante o verão, o meu destino mudou repentinamente. A minha mãe disse-nos, a mim e à minha irmã, que encontrara uma escola especial em Los Angeles, que seria excelente para o meu desenvolvimento pessoal. Oferecia-me a possibilidade de viver no estrangeiro durante um ano!

De início, fiquei receosa, mas acabei por aceitar a nova situação e tive um dos melhores anos da minha vida. Estar em Los Angeles foi fantástico e fiz amigos como Aurel, Cara e Audrey. Aperfeiçoei o meu inglês e provei a mim mesma que certas situações novas são um desafio que vale a pena assumir.

Sinto orgulho pelos progressos conseguidos a nível das aptidões sociais. A vida fazia-me sentir revoltada, mas agora consigo gerir diferentes emoções e pensamentos. Aprendi algumas estratégias que me ajudam a lidar bem com os outros, como pensar em coisas agradáveis, quando algo não corre bem ou quando me sinto incompreendida.

Orgulho-me de um outro grande feito: conquistei um prémio artístico na minha cidade natal, em Espanha, que consistiu num ano de aulas de arte numa escola da especialidade. Tenho algumas obras patentes numa exposição na minha cidade natal e participei numa exposição internacional de arte, em Catânia, Itália. Sinto orgulho de quem sou.

“Sinto orgulho de quem sou.”

Pássaros do amor

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As minhas experiências educativaspor RL

Rudy Simone, autora de Aspergirls , refere que um dos traços comuns às mulheres com Síndrome de Asperger é que «mesmo tendo educação superior, enfrentam dificuldades quanto aos aspetos sociais da faculdade. Podem possuir vários cursos superiores incompletos.»

Tal traço descreve-me na perfeição. Atualmente, estou no segundo ano de um curso universitário e, no total, já iniciei seis cursos do ensino superior, apenas tendo concluído um. Apesar do bom desempenho nos estudos, as minhas dificuldades baseavam-se em problemas de rigidez de pensamento e de interação social. Tenho um estilo de pensamento inflexível e tendência para o perfeccionismo, defendendo modos de atuação obstinados. Mas acabei por me sentir sobrecarregada e esmagada pela carga de trabalho que me autoimpusera.

Tinha, frequentemente, dificuldade em começar a trabalhar, adiando e servindo-me de distrações para evitar trabalhar. Por vezes, conseguia forçar-me a entregar trabalho a horas, mas outras sentia-me paralisada, escondendo-me debaixo dos lençóis enquanto os prazos passavam a voar. Debatia-me com as prioridades estipuladas pelos diferentes módulos e parecia-me ter demasiadas coisas a fazer ao mesmo tempo – não apenas as exigências dos estudos, mas coisas como a família, os amigos, a saúde, os interesses.

Tinha uma baixa autoestima devida a fracassos nas relações sociais e abandonei o primeiro curso, acreditando não ser suficientemente competente em termos académicos. Era demasiado inibida para pedir ajuda, querendo projetar uma imagem de competência. Quando começou a ser difícil chegar às aulas a tempo, foi mais fácil ficar em casa e perder a aula, do que entrar atrasada numa sala cheia com o olhar de todos sobre mim.

Retomei o curso após um ano de pausa, mas acabei por repetir o segundo e terceiro anos, portanto inserida em turmas diferentes. Levei seis anos a concluir o curso, que normalmente é feito em três. O que tornou mais difícil estabelecer relações sociais com os colegas e nunca fiz grandes amigos. Esse fator também teve impacto sobre os estudos, uma vez que não conhecia as pessoas suficientemente bem para trocar apontamentos ou discutir questões relacionadas com o curso.

Os meus pontos fortes são ser perseverante e ter boa memória e atenção ao detalhe, o que compensou, em certa medida, as minhas fraquezas. Sinto-me satisfeita por ter finalmente concluído o curso com uma boa classificação. Presentemente, frequento outro curso universitário num domínio diferente e deparo-me como dificuldades semelhantes. No entanto, aprendi com a experiência e sinto-me mais confiante. Agora, acredito que os obstáculos que encontro são contrariedades menores possíveis de ultrapassar.

“Acredito que, mesmo ao encontrar obstáculos, eles serão menores e eventualmente ultrapassáveis.”

1 Simone, R. (2010). Aspergirls: Empowering Females with Asperger Syndrome. London: Jessica Kingsley Publishers. ISBN: 978-1849058261

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Conseguir trabalhopor Laura Williams

Consegui inscrever-me num curso de Comportamento Animal e estou no segundo ano de faculdade. Estou a gostar imenso do curso e fiz bons amigos. Os gatos fascinam-me e adoro passar tempo com eles. O meu sonho seria conseguir um trabalho relacionado com gatos, depois de concluir o curso.

Não me saio bem em entrevistas por uma série de razões relacionadas com o autismo. Posso parecer estranha, tímida, antipática, desinteressada ou esquecer-me simplesmente de referir os atributos positivos. Tudo fatores que desencorajam os potenciais empregadores.

Neste momento, tenho a sorte de ter conseguido uma posição como voluntária num centro de acolhimento para gatos, onde lido com estes uma vez por semana. Espero, através do voluntariado, impressionar os responsáveis com o meu trabalho árduo, dedicação, atenção ao detalhe e afinidade com os animais. Talvez, quando houver uma vaga para uma posição remunerada, reconheçam pelo trabalho desempenhado, que sou uma candidata adequada, mesmo não tendo uma prestação brilhante em entrevista. Se tal não acontecer, pelo menos terei tido o prazer de trabalhar com gatos.

Na faculdade, com um busardo

Uma amizade mais íntima do que o esperado!

Fazendo amizade no centro de acolhimento

Outro dos meus amigos do centro de acolhimento

“Mas agora tenho muita sorte.”

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Milagrespor TH

Em criança, falaram-me de milagres e fiquei impressionada. Indicavam que esse Deus era poderoso e maravilhoso. Depois, descobri que havia uma falha nesse caráter maravilhoso dos milagres. Se esse Deus era tão maravilhoso e omnisciente, devia poder planear coisas que funcionassem corretamente. Com um planeamento e desígnio corretos, não haveria necessidade de todas essas soluções excecionais para corrigir os casos problemáticos.

Quando o questionei, mandaram-me calar. Quando insisti, mandaram-me calar de novo ou arriscar-me a levar um estalo. Assim, permaneci não esclarecida e deixei de me impressionar com os milagres. Enquanto os meus colegas de escola e de credo expressavam admiração por eles, eu via-os simplesmente como correção rápida envolvendo casos problemáticos.

Mais tarde, tornei-me programadora informática. A criação subtil de soluções de programação envolvia regras que permitissem um fluir natural dos processos, à semelhança de uma boa canalização num edifício que transporta os fluidos como e quando necessário.

Uma má criação de programação envolvia a inserção de «remendos» deselegantes para corrigir problemas inesperados, como um edifício que requer baldes colocados estrategicamente sob fendas e o arrancar do estuque para aceder a canos tornados inoperantes.

Para mim, os milagres são como esses remendos necessários para repor tudo em funcionamento – uma solução deselegante para um problema causado por um mau planeador ou artífice. No essencial, embora o milagre seja sempre benéfico, não devia ser sequer necessário.

“Basicamente, apesar de um milagre ser bom, não deveria ser necessário começar por ele.”

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A minha infância em imagens por MX

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As minhas realizações na vidapor MX

Desde criança que sou artista. Nem imaginam a quantidade de folhas com desenhos que guardo na minha coleção, para não falar nas pinturas. Aos 17-18 anos, comecei a estudar Arte e, com a ajuda da professora, desenvolvi um estilo artístico próprio. Algumas das minhas pinturas já saíram de Espanha, com destino a Nova Iorque, Veneza e Londres.

Anos depois, encontrei um espaço onde exibir a minha primeira coleção de desenhos: As Damas de Tinta (The Ink Ladies). Foi uma das realizações da minha vida que mais prezo e continuarei a trabalhar para chegar mais longe na exibição da minha arte.

A conclusão dos estudos foi outro dos meus objetivos de vida conseguidos. Muitas foram as perturbações que me assaltaram na escola primária, no ciclo preparatório e no liceu, na escola de cozinha e na escola de costura. Mas mesmo quando alguns professores me disseram que podia desistir se achasse que era demais para mim, recusei. Que realização poderá haver na obtenção de objetivos, se não houver obstáculos?

As minhas realizações foram algo por que valeu a pena lutar! E quero continuar a estudar quando arranjar trabalho, para poder fazer tudo o que sonho.

“As minhas realizações foram algo pelo que valeu a pena lutar!”

Costura

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Sair de uma situação abusivapor Robyn Steward

Em 2010, abandonei a casa que partilhava com uma pessoa que me tratava de forma abusiva e mudei-me sozinha para um apartamento, pela primeira vez. Tinha tido alguma experiência a viver em instituições, mas esta era a minha primeira vez sozinha.

Algumas das primeiras coisas que levei para o meu novo lar foram pinturas. Comecei a pintar aos 22 anos, constituindo um importante meio de expressão e de alívio. No Reino Unido, há uma empresa de venda por catálogo (transação online, mas com um espaço físico onde levantar as encomendas), a Argos, que tem uma publicidade televisiva. Esta mostra um homem sentado na sua sala, de início vazia à exceção da cadeira em que se encontra sentado, um telefone e o catálogo da Argos. À medida que o anúncio avança, vai surgindo mais mobiliário, uma vez que o homem usa o telefone para comprar itens para a sua casa. Foi um pouco como me senti. Tive de ligar à companhia do gás, da eletricidade e a várias outras pessoas para tornar a minha casa operacional.

Se já passou por uma situação de abuso, poderá identificar-se com o sentimento de traição em relação ao sujeito abusador. Sentia-me culpada por ter partido e por ter contado o que se passava. E também tinha medo de não ser capaz de fazer coisas sozinha. Os abusadores são, muitas vezes, amáveis de tempos a tempos, para confundir a vítima e persuadi-la a ficar.

Todas essas circunstâncias decorrentes de passar a viver sozinha resultaram em depressão: tive de frequentar um psiquiatra, dois assistentes sociais e um terapeuta artístico. Larguei os antidepressivos após 18 meses. Os antidepressivos podem ser benéficos para muitos, mas para mim o efeito era demasiado.

Em vez disso, passei a ir ao ginásio cinco vezes por semana e usei o livro de mapeamento da disposição positiva da Dr.ª Liz Miller para controlar as minhas emoções. Por outro lado, tinha objetivos de comportamento diários, semanais e mensais, com um sistema de recompensa pela sua obtenção. Também foi importante preencher o meu tempo durante o dia com atividades intelectualmente estimulantes. Esta abordagem altamente estruturada produziu resultados em mim.

Nunca considerei seriamente voltar para o sujeito abusador, por recear colocar outros em perigo, além de que regressar não me permitiria impedi-lo de abusar de outros. As mulheres que regressam não gostam de ser abusadas, simplesmente sentem a opressão e domínio dos abusadores. O processo de recuperar a própria vida pode ser difícil e assustador e, por vezes, insuportável para quem cura as feridas provocadas por todo o tipo de abuso.

“Processo de recuperar a própria vida pode ser difícil e assustador.”

2 Miller, L. (2011). Mood Mapping: Plot Your Way to Emotional Health and Happiness. Emmaus: Rodale. ISBN: 978-1905744770

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As minhas coisaspor Amy W

Vivo com a minha mãe. O meu quarto é o meu mundo privado e é muito importante para mim. Aí guardo as minhas coisas e é um abrigo para mim. Gosto de ter privacidade nas minhas atividades, por isso a porta está sempre fechada. Aí sinto-me feliz com os meus livros, a minha música, as minhas revistas e material de desenho.

Há certos pertences que são muito importantes para mim. E dei-me conta de que quando perco alguma coisa (uma meia ou um brinco), sinto ruir o “todo”. Há algo que falta e isso perturba-me. Gosto de ter tudo junto e completo.

Sinto-me feliz com aquilo que tenho, embora gostasse de comprar todas as roupas que quisesse. Não ligo muito à moda, mas faltam-me algumas peças para condizer com outras e completar conjuntos.

Aprecio bastante o facto de ter ligação à Internet. Posso navegar, ver séries televisivas e filmes online e descarregar música quando quero, sem ter de o partilhar com ninguém. Também aprecio o meu tablet, onde posso assistir a vídeos do YouTube, à noite na cama, e o meu telemóvel que uso para ouvir música e como minicomputador.

As medusas deixaram de me interessar há quase dois anos e tive vários outros interesses, durante algum tempo. Por fim, quando achava que era louca pelo Espaço… uma paixão ainda maior surgiu na minha vida: o Stitch!

Essa criatura azul de Lilo & Stitch: pequenina, peluda, azul, de orelhas desmedidas. Adoro-o! Os seus negros olhos amendoados fascinam-me, bem como o grande sorriso e as orelhas de morcego. A sua força extrema, a sua capacidade de trepar paredes e tetos, especialmente quando dispõe de um segundo par de braços, duas antenas na cabeça e três espinhos nas costas (geralmente recolhidos); mais parece uma criatura extraterrestre… E eu adoro-o! É uma coisa tão intensa e obsessiva… como era com as medusas. É o que mais gosto no mundo.

Fiquei tão feliz por sentir uma paixão extrema de novo, depois de um ano e meio sem nada de especial. Vi o filme, mas ainda antes disso fiquei impressionada com a personagem, fui atraída pelos seus olhos e o sorriso largo semeado de dentes afiados. Vi-o e zás! Tudo começou.

Adoro sentir paixões extremas. Fazem-me sentir viva e motivada, ávida de escrever sobre elas.

Já tenho muita coisa do Stitch. Tenho os quatro filmes, a série televisiva, um peluche, uma T-shirt, três pósteres na parede, o tema de fundo do computador, do tablet e do smartphone e desenhos que fiz. Desde que me apaixonei por ele, tenho-o por toda a parte.

Tenho vídeos do Stitch no meu tablet e telemóvel. Montes deles, completamente gastos, de tantas as vezes que os vi. Também assisto à série televisiva no YouTube. Adoro-o! Faz-me sentir tão feliz! Como quando adorava as medusas… é exatamente o mesmo sentimento.

“O meu quarto é o meu mundo.”

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Começar a ultrapassar a fobia socialpor AM

Vivo com os meus pais na cidade de Coimbra, no centro de Portugal. Tenho Síndrome de Asperger e visão reduzida, embora não seja cega. Como não vejo muito bem, desconfio sempre das outras pessoas. Sou saudável, à exceção dos problemas de visão. Estão-me sempre a dizer que eu podia ser mais independente, se conseguisse ultrapassar as minhas fobias sociais. E que podia ter uma melhor qualidade de vida.

Tenho 23 anos e terminei o liceu. Tive bons resultados, mas desde que o concluí, não tive vontade de prosseguir os estudos. Tenho medo de ir para longe de casa. Sinto-me insegura. Por isso não gosto de sair.

Confronto-me com a minha família, pois querem que eu prossiga os estudos. Finalmente, decidi seguir um curso profissional nos serviços administrativos da escola secundária, onde estudei. Assim, permaneceria num contexto familiar. Mas o curso não decorreu sem problemas. Não gostei do meu monitor, porque tinha incapacidade física e eu não gosto de pessoas com incapacidade física. Estranho, não? Quando eu própria tenho uma incapacidade.

Durante o ano escolar, participei num espetáculo do Conservatório de Música e dancei e representei com outras pessoas com incapacidade. Tive a oportunidade de interagir com outras pessoas e foi uma boa estratégia para me ajudar a ultrapassar a fobia.

A peça abordava a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Incapacidade. O rapaz que dançou comigo era uma pessoa muito competente, diagnosticado com Síndrome de Asperger.

Quero investir mais tempo em teatro e peças musicais. Gosto muito. Adorei a peça e, agora, sinto-me mais segura longe de casa. No entanto, não sei se o consigo fazer sozinha.

“Penso que agora me sinto mais segura para poder sair de casa.”

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Uma perigosa viagem pelos escalões educativos – ser a ovelha “invisível”, “negra” e “neurodiversa”!por Holly Judge

No trabalho final do meu curso de Arte, pintei um rebanho de ovelhas antropomórficas, todas seguindo na mesma direção. Para representar a sua diversidade, adornei-as de acessórios simbolizando aspetos como o percurso de vida, grupo étnico, nacionalidade e género. Porém, uma ovelha, exibindo o mesmo nível de unicidade que os demais membros do rebanho, seguia na direção oposta, no meio do êxodo caótico, olhando para trás por entre um volumoso envoltório de pelo.

«Acharam que eu era surrealista, mas não. Nunca retrato sonhos. Retrato a minha realidade», dizia a minha artista favorita, Frida Kahlo. A minha própria obra simbolizava os meus sentimentos de jovem deprimida, socialmente ansiosa e isolada, e ainda assim é, em certa medida. No entanto, comecei a subir os degraus da transição e, ao deparar-me com um maior leque de possibilidades, os constrangimentos diminuem.

Dizem-me: “A maioria das pessoas experimenta depressão, isolamento, ansiedade social em algum momento da vida. Não és diferente delas.”

Perguntei-mo muitas vezes. Passei por um período de negação e confusão, após o meu diagnóstico. Sem o meu conhecimento ou dos meus pais, a enfermeira escolar referenciou-me, ao observar que as minhas aptidões sociais eram fracas em comparação com o meu nível de inteligência geral. Tive dificuldade em aceitar de imediato os critérios de diagnóstico rígidos (serei mesmo eu?) e senti culpa, quando não experimentei a sensação de alívio descrita nos relatos pessoais que li.

Foram necessários anos de autorreflexão para compreender o diagnóstico. Talvez eu tivesse sido indiferente às hierarquias sociais e dessintonizada das necessidades/desejos/tendências não expressos dos grupos de pares. Que forças atraem as pessoas aos grupos? É um mistério. Por vezes, desinteressei-me totalmente da interação, optando por atividades solitárias. Talvez, por vezes, tenha dificuldade em recordar/seguir instruções. Mas, ao mesmo tempo, sinto uma inquietação emocional básica, ao nível individual, e o reconhecimento das expressões faciais e da empatia nem sempre coloca problema.

Há dez anos, deparei-me com o website de uma mulher dentro do espectro. Era uma perspetiva pessoal que parecia ter que ver comigo – a descrição das suas diferenças transcendia os estereótipos superficiais. Conseguia, definitivamente, identificar-me com as suas questões de forma esclarecedora. Quando dizia aos outros que se encontrava no espectro, comentavam que parecia normal apesar de tudo, mas se não dizia nada, era rotulada como estranha, estúpida e antipática. Investigações posteriores em mulheres e o envolvimento neste projeto confirmaram-me que este não é um cenário incomum.

O degrau mais importante no meu percurso de transição foi frequentar o University College de Londres (UCL) e viver sozinha. Levou-me seis anos e a melhoria de notas de E para A em Química e de D para A em Biologia, para o conseguir. Sofro de uma combinação fatal de dislexia e traços de

“O meu sonho para o futuro é obter um conhecimento mais profundo dos diferentes estilos de cognição e de aprendizagem.”

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défice de atenção, que teve um impacto significativo na minha vida académica e capacidade de aprendizagem.

Em resultado disso, o meu sonho para o futuro é obter um conhecimento mais profundo de diferentes métodos cognitivos e de aprendizagem, e associar esse conhecimento a estratégias educacionais em desenvolvimento, para ajudar outros a maximizar a aprendizagem.

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O meu padrão de vida e de saúde em imagenspore Patricia Cuadrado

Em casa

Gosto do bosque

No campo Gosto de passear

Quando me dói a barriga, não gosto de fazer nada

No médico

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Trabalho árduo por Kerry

Sempre soube que queria trabalhar com crianças. Com o decorrer do tempo, vejo que comunico bem mais facilmente com crianças e não sinto a mesma ansiedade e pressão à conformidade, que sinto com a maioria dos adultos. As crianças são naturalmente mais tolerantes e não fazem juízos. Não tenho a capacidade de compreender totalmente as complexidades da comunicação adulta e a minha linha de pensamento é mais próxima da criança. Os adultos (em particular, as mulheres) têm muitos sentidos ocultos no que dizem e fazem., e a expectativa é que eu os venha a compreender – e não compreendo, frequentemente. Preciso que os outros comuniquem direta e claramente comigo e as crianças são, em geral, melhores nisso do que os adultos.

Fui naturalmente atraída para o ensino, uma vez que gosto de partilhar o meu conhecimento com outros e é muito gratificante ver alguém compreender um conceito, que não compreendia. Olhando para trás, não foi a melhor escolha de carreira. Talvez se tivesse sido diagnosticada com Síndrome de Asperger mais cedo, tivesse feito escolhas totalmente diferentes, mas visto que muitos clínicos gerais não compreendiam o autismo nas mulheres, só fui diagnosticada depois dos 20, ou seja há uns anos. Sim, estou rodeada de crianças todos os dias e sigo um horário muito estruturado (embora, frequentemente, haja mudanças de última hora, o que é muito stressante). Mas a minha necessidade de perfeição significa que me sinto mais feliz, quando atinjo os padrões mais elevados. É claro que seria impossível para qualquer um atingir a perfeição em 100% do tempo, por isso fico frequentemente desapontada comigo mesma e receosa do desapontamento dos outros.

Sofrer de Síndrome de Asperger significa que devo ter atenção em não me deixar levar para lá dos meus limites. A preparação é essencial à minha sobrevivência. Sou provavelmente um dos professores mais organizados. Passo as férias escolares a trabalhar incansavelmente para me assegurar de ter tudo planeado e preparado, até às férias seguintes. A maioria dos professores faz trabalho extra aos fins-de-semana ou pela noite dentro, mas eu não o posso fazer. A cada dia sou incitada até aos limites da minha capacidade, através de uma encenação sem fim para transmitir uma imagem de «normalidade», que me deixa exausta. Tenho de reservar as noites e fins-de-semana para recuperar ou atingirei um estado tal, em que não conseguirei trabalhar – felizmente é raro acontecer. A maioria das ocasiões sociais terão de esperar pelas férias escolares. É claro que grande parte das pessoas, mesmo as que conhecem o meu diagnóstico, não entendem essa necessidade. De todo!

Considero as pessoas como grandes baterias. Estas são gastas durante a semana e recarregadas ao fim-de-semana. Outras baterias conseguem recarregar, enquanto socializam (talvez recarregando mais rapidamente). Mas a minha bateria deixou de recarregar quando socializo, pelo que tenho de passar muito tempo sozinha. Sinto que a culpa que me é imposta por não socializar, mesmo por aqueles de quem gosto, é bastante injusta, quando não tenho controlo sobre isso.

O maior problema na minha carreira é, de longe, trabalhar com outros adultos. Diariamente, tenho de comunicar com os pais, outros professores, assistentes e membros da administração (entre outros). Há tanta coisa que pode ser dita, de tantas e tão diversas maneiras. Por exemplo, um pai pode apenas perguntar-me sobre o meu

“A minha necessidade de perfeição significa que me sinto mais feliz quando atinjo os padrões mais elevados”

“Ter Síndroma de Asperger significa que devo ter atenção em não me deixar levar para lá dos meus limites.”

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fim-de-semana ou ser bastante agressivo sobre algo que lhe desagrada. Um professor pode ficar perturbado por algo que se passou e necessitar de conforto. Eu posso precisar de expressar o meu descontentamento sobre algo que outros fizeram; posso precisar de dar instruções a um assistente, um membro da administração pode conversar comigo no gabinete ou discutir uma questão importante que requer atenção urgente. Cada uma dessas situações exige de mim uma resposta diferente e deve ser avaliada corretamente, se quiser transmitir uma imagem responsável, interessada e competente.

Tendo a abordar cada situação com neutralidade e, depois, a reproduzir o comportamento do outro, pois é provavelmente o tipo de resposta que espera de mim. Assim, se ele se rir muito, também o faço, se estiver muito sério, assim estarei também. Para muitos, isso é natural, mas eu tenho de pensar conscienciosamente tudo, com cuidado para não dizer ou fazer a coisa errada, na situação errada (que me aconteceu muitas vezes antes).

Um outro fator de acrescida dificuldade é que cada pessoa é totalmente diferente. Tenho de aprender como cada pessoa individual responde em cada situação. Alguns são muito tolerantes em qualquer situação (o meu tipo favorito de pessoa), enquanto outros são imprevisíveis e, embora reajam de uma forma certa vez, da próxima poderão fazê-lo de modo totalmente diferente. Sou extremamente sensível a mudanças, igualmente nas pessoas. Ouvi dizer que os autistas não são totalmente alheios às marcas sociais, como se julgava. O oposto é provavelmente verdade: são tão sensíveis a cada mudança de expressão facial, tom de voz e gesto, que rapidamente se sentem sobrecarregados, não conseguindo processar toda a informação ao mesmo tempo. É seguramente como eu me sinto. Percebo as mais pequenas mudanças, mas não consigo processar a informação suficientemente rápido para entender o que me tentam transmitir. Acabo por ter de adivinhar para tentar preencher as lacunas e, frequentemente, chego às conclusões erradas ou fico perturbada por algo que não é real.

O meu espectro de emoções é bastante mais restrito do que o da maioria, o que causa problemas. Se alguém mostra uma emoção fora da gama que eu domino, entro em pânico e sinto a necessidade premente de fugir da situação, de qualquer maneira. Não consigo lidar com pessoas transtornadas ou irritadas e não sei como responder em tais situações. Também não sei como lidar quando eu própria sinto essas emoções, acabando inevitavelmente lavada em lágrimas, o que muitos não compreendem – enquanto profissional e adulta espera-se que saiba controlar as minhas emoções.

Penso que as expectativas são dos maiores obstáculos a enfrentar em ambiente de trabalho para quem sofre de Asperger. Porque pareço ‘normal’, espera-se que eu exiba comportamentos ‘normais’. Por dentro, sinto-me longe de normal. O problema é que muitos têm uma visão estereotipada do paciente de Asperger. Por essa razão, tenho de ter muito cuidado em relação a quem revelo o diagnóstico. Ser professora e sofrer de Síndrome de Asperger é um tópico delicado. Embora preferisse ser totalmente franca quanto ao diagnóstico, não me parece sensato fazê-lo. Em particular, os pais duvidariam das minhas capacidades e, provavelmente, escolheriam focar-se nos aspetos negativos em detrimento dos positivos. Na minha opinião, e na daqueles que me viram em sala de aulas, sou uma professora excecional, com muito a oferecer à profissão. Queria chegar a diretora de escola, pois sou incrivelmente ambiciosa, mas percebi rapidamente que as minhas capacidades de comunicação não são suficientemente fortes. Atualmente, ocupo uma posição de liderança e, com o apoio da escola, estou a obter bons resultados. Agora, estou mais satisfeita do que nunca na carreira, o que se deve sobretudo ao entendimento excecional por parte da escola em que trabalho.

“Porque pareço “normal” espera-se que eu exiba comportamentos “normais”. Por dentro sinto-me longe de ‘normal’.”

“Soube que era a escola indicada para mim quando o diretor me disse que o diagnóstico não era importante – ele testemunhara as minhas capacidades como professora e isso bastava-lhe.”

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Revelei o diagnóstico, assim que me foi proposta a posição. Soube que era a escola indicada para mim, quando o diretor me disse que o diagnóstico não era importante – ele testemunhara as minhas capacidades como professora e isso bastava-lhe. Discutiu comigo a melhor forma de me ajudar no trabalho e, desde então, sempre atendeu às minhas necessidades e sempre me apoiou totalmente. Sinto-me incrivelmente afortunada, sabendo que muitos empregadores não são tão atenciosos e compreensivos.

Nas alturas mais negras, lamento sofrer de autismo de alto funcionamento. Ser muito inteligente pode ser frequentemente um impedimento, uma vez que me apercebo de todas as possibilidades, consequências e oportunidades perdidas, o que me pesa bastante. Muitas vezes, desejava nunca ter sofrido de Asperger, mas depois recordo-me de que seria uma pessoa totalmente diferente e eu gosto de quem sou. Só não gosto de como exige tanto esforço para se conseguir as mais pequenas coisas. Levo uma vida razoavelmente «normal», mas isso em detrimento da minha saúde física e mental. Sinto-me muito frustrada quando profissionais da área da saúde fazem declarações como: «Não pode sofrer de Síndrome de Asperger, pois tem um emprego, uma casa e um marido». Se pudessem viver a minha vida por um só dia, não diriam tal absurdo!

Sempre me resignei com o facto de ter de deixar o ensino, antes de iniciar a minha própria família, pois não vejo como as duas facetas poderiam coincidir com sucesso. Estou sempre no limite, e isso sem a enorme responsabilidade e o inevitável stress de ter os meus próprios filhos. No meu atual emprego, foi a primeira vez que senti que talvez fosse possível, mas nenhum emprego é eterno, tudo muda constantemente, e essa é a parte mais difícil de lidar para alguém com Asperger.

Assim, de momento, desfruto da minha felicidade e da posição que ocupo. E tentarei não pensar na incerteza do futuro. Acima de tudo, continuarei a tentar educar o mundo quanto ao que realmente significa ser uma mulher com autismo.

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Espiritualidade e relaçõesby Michelle Frias

Todos falavam do Halloween e planeavam usar um tabuleiro de Ouija.

Fiquei calada, sorrindo por dentro. Tinha muita experiência de magia e essa forma de contactar os mortos é bastante perigosa. Eles não sabiam nada dos mortos.

Decidi ficar ali, para me divertir se alguma coisa acontecesse. Parece cruel, mas se alguém me desse ouvidos, poder-lhes-ia dar conselhos.

No entanto, todos me tratam como atrasada mental.“Oh almas perdidas”, pensei eu. O professorde escultura ria por diferentes razões. Ele não acreditava em atividade paranormal, dizia que os que acreditavam eram estúpidos. Ao ouvi-los, senti-me assim:

Por isso estou sozinha, à margem do grupo de arte. Eles falam entre si e o grupo tem ideias idênticas sobre a vida, mas, pobres coitados, necessiitam de fazer coisas perigosas para se sentirem importantes. Não sabem o que é sentir-se só, como um escravo, ao longo de toda a infância. Deixaram-me sozinha, a chorar e a implorar pela sua amizade. Pedi para fazer parte do grupo de arte, mas ninguém me atendeu. Tentei falar-lhes, mas passam por mim como se eu fosse invisível. Se sofrerem, não sentirei pesar, porque o seu jogo é magoarem-me todos os dias e, mesmo assim, mantenho os lábios cerrados.

O meu sangue ferve sempre que penso em como aqueles idiotas vão implorar pelas suas

vidas.

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Inclusãopor Patricia Castanha

Ser uma jovem autista não é tarefa fácil.

A inclusão é uma bela palavra. No entanto, é apenas isso – muitos usam-na, mas poucos a praticam.

Quando era pequena, não tive problemas no jardim infantil ou na primária. As crianças pequenas aceitam as ciranças diferentes bastante bem. A situação piora à medida que se avança na idade. Os outros adolescentes, alguns professores e a maioria dos adultos não querem incluir uma criança autista e nem sequer fazem um esforço para entender o que significa ser autista.

Quando me inscrevi num clube de natação, a minha mãe não mencionou o autismo, uma vez que era política do clube não admitir o uso da piscina por crianças com incapacidade. Ninguém sabia que eu era autista. Apenas me achavam muito tímida. Frequentei aulas de natação e aprendi a nadar. Só muito mais tarde descobriram que eu era autista e, nessa altura, não tiveram a coragem de me mandar embora, porque já me conheciam bem.

A mesma situação repetiu-se num parque aquático, durante as férias. Eu queria ir nadar com os golfinhos, mas constava das regras de admissão que as crianças com autismo não eram permitidas. Mais uma vez, a minha mãe omitiu o facto de eu ter autismo, para que pudesse concretizar o meu sonho.

Em julho passado, concluí o liceu e decidi, de acordo com os meus pais, candidatar-me a um curso profissional para flautistas. De novo, os meus pais omitiram a minha condição.

Os exames de instrumento correram bem, mas não fui admitida após a entrevista, porque revelei ser autista. O mesmo se passou quando me candidatei a um curso para técnica de biblioteca.

Finalmente, consegui inscrever-me num curso profissional de secretariado, na escola que agora frequento. Aceitaram-me sem problema. Os meus pais queixaram-se ao Ministro da Educação e so Secretário de Estado em relação à discriminação de que eu fora alvo. No entanto, o problema não foi adequadamente resolvido.

Apesar de todos os obstáculos, tenho conseguido contornar as pedras que vão surgindo na estrada da minha vida e sinto-me uma jovem realizada e feliz!

“Sinto-me uma jovem realizada e feliz!”

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Dificuldades na escolapor Irenoula

Quando se é criança, temos de deixar a nossa casa todos os dias para ir para a escola. É aí que começa o tormento para uma menina com uma desordem do espectro autista. Desde o primeiro instante em que se entra na sala de aulas, deixamos de ser nós mesmos. Perdemos a nossa identidade e temos de nos sentar em silêncio, aprender coisas que não nos interessam e esquecer aquelas que nos dizem alguma coisa. Somos forçados a estar rodeados de pessoas com quem nada temos em comum e a passar imenso tempo com elas, quer queiramos quer não. De cada vez que não conseguimos acompanhar o ritmo definido pelo professor, somos castigados, punidos ou troçados. Quem disse que apertar os atacadores dos sapatos e entender o passar do tempo num relógio era tarefa simples? Somos comparados com os colegas a cada dia, mas para quê?

No atual sistema educativo avançado, a competição parece ser valorizada acima da cooperação: o triunfo do indivíduo acima da colaboração de um grupo. Copiar, como base da aprendizagem, é essencialmente errado, mas menosprezar alguém é ignorado. Quem está errado? O professor ou o aluno? O nosso valor é avaliado pelas notas, mas estas não refletem o nosso conhecimento. Pior, tudo em posto em jogo num teste, num único dia. Não é verdade que todos podem ter um mau dia e acordar com uma dor de cabeça ou ficar em branco? Aparentemente, não. Ou provavelmente ninguém quer levantar a voz contra este inflexível sistema educativo do século XIX.

As raparigas com uma desordem do espectro autista são almas livres presas em frascos de vidro selados, observadas através dos reflexos produzidos pelos focos externos da sociedade, que colidem com a sua frágil, embora inexorável prisão. Esses reflexos apenas acentuam as sombras. Se as libertarem dos frascos, verão que têm luz própria! Ninguém as poderá ensombrar, pessoal ou profissionalmente. Basta estar disposto a compreender que há tantas maneiras diferentes de viver e ver a vida, quantas as pessoas diferentes que existem à face da terra.

A pessoa que escreve estas palavras possui duas placas base distintas e dois sistemas operativos distintos no cérebro. A primeira, a minha própria placa base, a real, não necessita de reparação, está livre de vírus e tem uma grande quantidade de programas instalados. A segunda, a placa societal, apresenta inúmeras falhas operacionais e vírus, que têm de ser constantemente removidos, possuindo um único programa para todas as áreas de vida, baseado na hierarquização da sociedade.

PERDIDA. Se alguém me encontrar, avise-me, por favor.

“As raparigas com uma perturbação do espectro do autismo são almas livres presas em frascos de vidro fechados.”

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Eupor Omeh Egbe (com o apoio de Liz Miles)

Sou uma mulher com autismo e...tenho muitos talentos e muitas capacidades.Posso trabalhar...

posso cozinhar... posso costurar... posso cantar... posso dançar... posso representar... sou artística...

Tenho uma família dedicada e um lugar na minha igreja e na minha comunidade.

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Conheci pessoas muito importantes. Pessoas famosas, também!

Tenho as minhas esperanças. Tenho os meus sonhos.

Sou uma mulher com autismo e...

Com aceitação e compreensão, espero, um dia, realizar os meus sonhos se tornem realidade!

“Com aceitação e compreensão, espero que um dia os meus sonhos se tornem realidade!”

© Royal Household/John Swannell.

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Com o apoio da Programa Lifelong Learning da

União Europeia