uma poética musical - como escrever letras de música

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Potica MusicalComo Escrever Letras de Msica

O primeiro estudo sistematizado no Brasil sobre o assunto

Magno Mello

Potica musical Afinando o instrumento Este estudo partiu de uma necessidade prpria de conhecer mais a fundo os elementos que esto por trs de uma boa letra de msica. Sou compositor h muitos anos, desde que peguei pela primeira vez num violo, quando aprendi trs acordes - e dali mesmo, comecei a criar as primeiras canes. Para mim, foi um passo natural, compor, criar. Mas, desde muito cedo percebi que se quisesse fazer algo bem feito, teria que ter muita informao. Foi quando, finalmente, comecei a buscar conhecimento formal sobre o assunto. Depois de muitos anos ensaiando o passo, deparei-me com pouqussimo material; basicamente, teses de mestrado e doutorado, sobre Chico Buarque, Noel Rosa, Caetano Veloso, msica brasileira em geral. Ainda assim, no eram teorias de profissionais que trabalhavam especificamente com a composio, o que acabava tornando o material de pouca aplicao prtica para um compositor em busca de crescimento. Havia tambm estudos e anlises, como os de Luiz Tattit, Jos Miguel Wisnick e Carlos Renn. No entanto, queria entender de forma sistematizada e mais completa possvel, como seria o funcionamento de uma letra de msica, do comeo ao fim, sob todos os aspectos possveis. Assim, comecei eu mesmo a separar, anotar e analisar cartesianamente todo fenmeno que ia encontrando pela frente. Comecei pelas estruturas externas, analisando como as letras se estruturavam em suas partes. Se havia alguma palavra ou onomatopia de introduo, se a cano comeava por uma parte A ou pelo refro, caso houvesse refro. Se havia uma parte B, uma ponte entre as partes A e B ou entre uma parte B e um refro; ou ainda, se havia uma terceira parte ou uma coda, com letra ou onomatopia. Procurei anotar todos os aspectos externos, j comeando tambm a observar como essas partes se juntavam, como se estruturavam, como as idias eram distribudas ao longo da letra e que desdobramentos semnticos e sonoros podiam trazer. Fiz o mesmo procedimento com algumas centenas de msicas. E ia tambm anotando fenmenos recorrentes de rima, mtrica, linguagem, ngulos de viso, sonoridade das palavras, metforas, desconstrues semnticas e/ou gramaticais, argumentao, momentos de tenso e relaxamento, como as palavras se juntavam, os tipos de narrativa - por imagem, por meio de cena, reflexo, relao etc - tipos de refro e tudo o que ia encontrando pela frente. Durante trs anos fiquei mergulhado nesse universo que se descortinava e me trazia informaes preciosas sobre a arte de se escrever letras de msica. No entanto, durante todo esse tempo, jamais me passou pela cabea que estaria desenvolvendo qualquer tipo de sistema de transmisso de conhecimento. Como disse, era um estudo pessoal, que empreendi por falta de informaes mais precisas e aprofundadas sobre a matria. Somente meses depois comecei a perceber que ali estava sendo criado algo didtico, um modo de se transmitir conhecimento.

Mas, sendo o estudo apenas para mim mesmo ou um sistema de transmisso de conhecimento, me transformei em um compositor ao longo desse tempo. E hoje, sinto que carrego essas informaes na alma, na pele e no corpo. Criar, portanto, continua sendo um processo intuitivo, afetuoso, como deve ser. Acredito que para se criar, o conhecimento deve vir de antemo, pr-adquirido; e claro, h ainda o aprendizado que se d no momento da criao. Entendo tambm que no devem existir frmulas para criao, sob pena de cair no lugar comum, em algo que no emociona. Criao que no vem da alma, jamais ser apreendida por outra alma. Por isso, caros leitores, este livro para ser lido, estudado e, uma vez apreendido, abandonado. Um ltimo aspecto: mesmo o estudo tendo sido feito debruado nas obras de muitos dos mais significativos compositores/letristas de todos os tempos no Brasil - e outros nem tanto - para se criar no devem existir verdades, muito menos regras e tudo o que est contido neste livro pode ser virado do avesso, negado ou abandonado a qualquer momento. E quem o fizer, ter razo em faz-lo, assim espero.

Iniciaremos nossos estudos com alguns conceitos de psiclogos que pesquisam a criatividade. So idias que podem contribuir na superao da primeira dificuldade que percebo, para que um artista criador progrida: a autodefesa. algo que pode levar o autor, por exemplo, falta de habilidade em abandonar as prprias idias, coisa que muitas vezes o impede de lapidar sua obra a contento. Acredito que outra grande dificuldade a falta de autoconhecimento. Quanto mais conhece seus processos criativos, mais o criador consegue se distanciar de seu objeto de criao. E esse afastamento uma das duas qualidades primrias para se inventar algo original. A outra o mergulho, a capacidade de doao afetiva ao produto criativo. Mergulho e afastamento, razo e emoo, abstrao e concretude. Vivenciar esses opostos, ao mesmo tempo, no uma das tarefas mais fceis. Mas o preo para quem deseja criar algo realmente singular; e com o acabamento que a arte requer. Conceitos: Torrance: criatividade um processo que torna algum sensvel aos problemas, deficincias, hiatos ou lacunas nos conhecimentos, e o leva a identificar dificuldades, procurar solues, fazer especulaes ou formular hipteses, testar e retestar essas hipteses, possivelmente modificando-as, comunicando os resultados. Koestler: criamos quando descobrimos e exprimimos idias ou formas de comportamento que sejam novos para ns e para o meio-ambiente. No pensamento criador a pessoa pensa simultaneamente em mais de um plano de experincia, ao passo que no pensamento comum segue caminhos usados por anteriores associaes.

C. Rogers: para se criar preciso, primeiramente, no ter atitudes defensivas, para poder expressar incertezas, dvidas, esclarecer problemas e compreender a significao das prprias experincias. Koestler: o associacionismo baseia a criatividade no relacionamento com o processo de tentativas e erros e o pensamento criativo na ativao de conexes mentais que continuam, at que surja a combinao certa ou at que o pensador desista. Hadamard critica o associacionismo dizendo que uma sujeio demasiadamente estrita a associaes passadas pode prejudicar a formao de novas idias Dentre os vrios critrios utilizados para avaliar a criatividade de testes psicolgicos destacam-se: sensibilidade para problemas, fluncia, flexibilidade, originalidade, habilidade para redefinir situaes, capacidade de anlise e de sntese, coerncia de organizao. Barron: de modo geral, o indivduo realmente criativo est sempre pronto para abandonar antigas classificaes e para compreender que a vida, particularmente a sua, rica de novas possibilidades. Para ser criativo o homem deve experimentar a vida de modo individual, explorando os prprios recursos e capacidades e, acima de tudo, enfrentar honestamente a vida. H possibilidades de haver srios bloqueios ao desenvolvimento da criatividade devidos a falta de conhecimentos e informaes, hbitos pessoais negativos, atitudes de pessimismo e de conformismo, falta de esforo pessoal e procura de critrios de julgamento esteriotipados. Isaac Linger: o que todos os artistas tm em comum uma curiosidade incomum sobre o carter e o comportamento humano. O prprio artista produz individualmente, cuja fonte o seu modo especial de ver o mundo.

Tcnica Parte 1 Captulo 1 Tema e ngulos de abordagemUma letra, portanto, deve ter razo de existir. Para isso, como vimos, preciso que se tenha em mos uma idia original, que comunique uma viso ou sentimento, abstrato ou concreto, capaz de causar interesse real e duradouro em outra pessoa, que no apenas o prprio compositor. E j comeamos a perceber que uma idia original, na maioria das vezes, depende mais das possibilidades de desdobramento do tema, do que de um assunto mirabolante. Saber enxergar essas possibilidades de desdobramento - ou as diversas maneiras de se olhar para a coisa - pode ser o maior diferencial na criao de um bom argumento. Lembre-se: no caso de letras de msica, to importante quanto o que falado, como falado, podendo ainda o segundo caso ter mais peso que o primeiro. Vejamos o seguinte exemplo: As rvores (Arnaldo Antunes e Jorge Benjor) As rvores so fceis de achar, ficam plantadas no cho As rvores so fceis de achar, ficam plantadas no cho Mamam do sol pelas folhas e pela terra Tambm bebem gua, cantam no vento E recebem a chuva de galhos abertos H as que do frutas e as que do frutos As de copa larga e as que habitam esquilos As que chovem depois da chuva, as cabeludas, as mais jovens mudas As rvores ficam paradas, uma a uma enfileiradas na alameda Crescem pra cima como as pessoas, mas nunca se deitam O cu, aceitam Crescem como as pessoas, mas no so soltas nos passos So maiores, mas ocupam menos espao rvore da vida, rvore querida rvore da vida, rvore querida Perdo pelo corao que eu desenhei em voc Com o nome do meu amor Percebemos que os autores desenvolveram idias variadas, a partir de uma temtica simples: rvores. E conseguiram agregar ngulos de viso sobre o assunto, valendo-se de conexes diversas, como por exemplo:

1 - Imagens: as rvores ficam paradas uma a uma enfileiradas na alameda. 2 Reflexes: so maiores, mas ocupam menos espao. 3 - Reorganizaes gramaticais e semnticas: mamam do sol pelas folhas e pela terra ou as que habitam esquilos. 4 - Relaes: perdo pelo corao que eu desenhei em voc com o nome do meu amor. Estes so apenas alguns dos muitos aspectos que podem estar por trs de uma letra de msica e que trataremos com maior aprofundamento ao longo deste livro. Por hora, deixemos registrado que uma boa letra tende a ser rica em desdobramentos e significados, por mais simples que seja a argumentao. Ao passo que uma letra mediana oferece poucas informaes e significaes.

Captulo 2 Naturalidade e sonoridade das palavras NaturalidadeTodas as palavras em uma letra de msica devem soar naturais. Temos como ouvintes, de forma mais ou menos assimilada, um conjunto previsvel de vocabulrio para as diferentes situaes sonoras. H casos mais evidentes de previso de vocabulrio, como no rap, no blues, no pagode etc. Mas, de uma forma ou de outra, para quase todo tipo de msica, ainda que inconscientemente, temos essa previso do conjunto de palavras que costumam soar mais naturais. Torna-se difcil, portanto, romper drasticamente com esse conjunto lxico ou conjunto de palavras. E justamente a que muitos compositores do seu primeiro passo em falso, ao tentar colocar fora palavras estranhas em determinadas sonoridades, ou palavras intrinsecamente duras, pouco musicais, por falta de discernimento ou por simples negligncia. Infelizmente, uma nica palavra mal colocada capaz de quebrar todo o encanto que deve se estabelecer entre o ouvinte e seu objeto sonoro, quase sempre causando um rompimento sem volta. Em outras palavras, imagine que o compositor convida o ouvinte a um passeio pelo desconhecido, pelos caminhos misteriosos de sua cano. O ouvinte, certamente, precisa sentir confiana nessa conduo, a cada centmetro avanado.

Estabelece-se ali, portanto, uma relao ntima e delicada. E qualquer passo em falso por parte do condutor, pode fazer com que essa confiana se quebre e o passeio chegue ao fim. Mas vejamos um caso curioso de palavras estranhas, que agrupadas num mesmo conjunto semntico criam identidade entre si, extrapolando com sucesso essa linha tnue do bom gosto e do equilbrio sonoro: O Pulso (Tits) O pulso ainda pulsa, o pulso ainda pulsa... Peste bubnica, cncer, pneumonia Raiva, rubola, tuberculose e anemia Rancor, cisticircose, caxumba, difteria Encefalite, faringite, gripe e leucemia... E o pulso ainda pulsa, e o pulso ainda pulsa Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia lcera, trombose, coqueluche, hipocondria Sfilis, cimes, asma, cleptomania... E o corpo ainda pouco, e o corpo ainda pouco (assim:) Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia Hrnia, pediculose, ttano, hipocrisia Brucelose, febre tifide, arteriosclerose, miopia Catapora, culpa, crie, cimba, lepra, afasia... O pulso ainda pulsa e o corpo ainda pouco Ainda pulsa, ainda pouco (assim:)

Dificilmente imaginamos palavras como cisticircose, toxoplasmose ou mesmo cimbra, soarem naturais em uma letra de msica. Mas, no caso acima h uma particularidade. Unidas pelo mesmo universo semntico e a partir de uma proposio reconhecvel ok, vamos falar de doenas cria-se um sentido para tais palavras agruparem-se lado a lado, o que pode causar uma ressignificao sonora em nosso inconsciente. Palavras que por si s soariam rudes e pouco musicais, tornam-se palatveis e at, por assim dizer, agradveis de ouvir. E h tambm o caso de autores como Chico Buarque, entre outros, muitas vezes se utilizarem de palavras como escafandristas ou estuporador e ainda assim obter timos resultados sonoros. Nesses casos, trata-se primeiramente de discernimento sonoro. Mas tambm de conhecimento da lngua e legitimidade do uso da palavra, de haver forte razo

semntica para ela estar ali presente; embora, na maior parte das vezes, isso ainda no implique em nenhuma garantia de sonoridade aceitvel.

SonoridadeNo caso de letras de msica, a sonoridade muitas vezes mais importante que o significado. Como negar que absurdos semnticos so apresentados todos os dias a milhes de pessoas, muitas vezes sem que elas percebam, ao passo que a menor deficincia sonora suficiente para causar repulsa no ouvinte, quebrando o que Sthendal diria ser a imitao do perfeito? Parece haver, portanto, mais conhecimento nos ouvidos do que na alma ou intelecto de um cidado desatento. E muitos artistas se salvam ou conseguem garantir a sobrevivncia, justamente por isso. claro que na criao no se deve abrir mo nem de uma coisa nem de outra, mas se tivesse que escolher entre a cruz e a espada, ficaria com a sonoridade, pois sem isso no h msica. Felizmente, estamos aqui para tentar desenvolver o mximo dessas duas potencialidades. Trataremos, porm, da semntica mais frente, cuidando agora de detectar quais os principais elementos causadores de m sonoridade.

Cacfatos e SemicacfatosOs cacfatos e semicacfatos esto entre os principais e mais evidentes causadores de perda de sonoridade numa letra de msica. Cacfato, segundo consta em dicionrio, significa: figura de linguagem caracterizada por ambigidade ou som desagradvel provocado pela combinao de duas palavras. Definio do Houaiss: som feio, desagradvel, imprprio ou com sentido equvoco, produzido pela unio dos sons de duas ou mais palavras vizinhas. Exemplos de cacfatos: Um mamo Boca dela No pensei nunca nisso Existe uma herdeira J que tinha resolvido O irmo ps a culpa nela Amo ela L, onde abunda a pita e a doce flor no cume cheira

Nunca ganho nada Marcou gol de bicicleta Governo confisca gado Bem, so apenas alguns exemplos de como causar danos sonoridade de uma frase. Olhando para essas frases que beiram o ridculo, mal conseguimos imaginar o quanto podemos incorrer nesse mesmo erro a cada letra que escrevemos. Em maior ou menor grau, isso acontece o tempo todo e, o pior, na maior parte das vezes sem que percebamos. Mas est l e sempre estar contribuindo para enormes danos na sonoridade. J dizia Renato Russo em Daniel na Cova dos Lees: ...assim que teu cheiro forte e lento... Em termos de sonoridade numa letra de msica, nenhum erro mais recorrente que o cacfato, assim como nenhum outro fenmeno consegue causar dano maior. Por isso, muito importante que se faa mapeamento de possveis cacfatos ou semicacfatos ao longo de toda a letra. Sempre haver alguns. Semicacfatos Semicacfatos so recorrncias menos evidentes, mas que tambm levam significativa diminuio de qualidade sonora. Como exemplos mais radicais de semicacfatos podemos citar palavras com terminao em s, seguidas de outras palavras que comeam pela mesma consoante. Ex: almas soltas. Ou ainda, palavras terminadas com vogal, seguidas por outras iniciadas pela mesma vogal. Ex: leva afinal. E tambm palavras terminadas em r seguidas por outras iniciadas por vogais. Mas em nenhum desses casos deve-se ter tanta preocupao, apenas ficar atento, pois boa parte das melhores letras j escritas abarcam essas pequenas deficincias de forma quase imperceptvel. Vale lembrar, porm, que mesmo no sendo to evidentes, h outros diversos tipos de semicacfatos, ou seja, qualquer palavra unida outra que soe de forma duvidosa pode ser considerada como tal e deve ser repensada. Mais exemplos de cacfatos ou semicacfatos: Triste, s, sem cho Passos bons, to sos Ando preso ao cho Do oculto gro Hoje foi dia de ensaio geral Na vez passada foi diferente F demais no cheira bem Ela tinha muito jeito Mstico cl Charme teu Colo teu

Cuidado com negativasManuais de redao costumam sugerir que na maior parte das vezes deve-se tomar o caminho da afirmao ao se construir uma frase ou argumento. Por exemplo: ao invs de se usar no atravesse a rua sem olhar para os lados, devese dizer, se possvel, olhe para os lados ao atravessar a rua ou atravesse a rua olhando para os lados. Em geral, a afirmao tende a ser mais objetiva e pode conter mais elementos de significado. Ex: em vez de no faa aquilo, faa isso. O segundo caso pode conter duas informaes importantes: faa isso, portanto no faa aquilo. No primeiro caso h apenas uma possibilidade. Lembrando que a letra se fortalece quando mais informaes esto contidas em menor espao. Mas no caso de letras de msica, ou mesmo em prosa, a negativa acontece o tempo todo. Portanto, no o caso de deixar de us-las, de modo algum, mas apenas estar atento para as possibilidades que se tem mo. E como criar tambm quebrar regras, h quem j tenha feito boas letras abusando das negativas: no lalala lalala, no lalal lalal e no lalal lalal, e aproveitando o gancho para criar esse tipo de proposio ldica, com base na negao. Exemplo: Onde Ir (Vanessa da Mata) Eu no sei o que vi aqui Eu no sei pr onde ir Eu no sei porque moro ali Eu no sei porque estou Eu no sei pr onde a gente vai Andando pelo mundo Eu no sei pr onde o mundo vai Nesse breu vou sem rumo S sei que o mundo vai de l pra c Andando por ali Por acol Querendo ver o sol que no chega Querendo ter algum que no vem... (continua)

Cuidado para no pesar em Trr, brr, crrPalavras, postas lado a lado, que apresentam muitas slabas que tm em seu ncleo a letra r, tambm podem pesar a sonoridade. Ex: O trabalho do cravo crescer. Ex: Pregava o prego cravando na trave o trapzio

. Felizmente, isso tambm no regra e sempre a fragilidade pode se tornar poder de fogo. At porque so combinaes que usamos em larga escala e sem isso perderamos muitas possibilidades de expresso. Portanto, mais uma vez, deve-se apenas estar atento e lembrar que cada caso um caso nico, sendo sempre o bom discernimento o fator principal em cada escolha.

Cuidado com repetio de palavrasRepetir palavras numa mesma frase tende a enfraquecer o texto. Ex: Outra coisa que disse outro dia Mas em outros casos pode fortalec-lo Ex: minha, s minha

Motz el SonMotz el son palavra e som - o resultado sonoro da unio da palavra com a melodia, mais especificamente da slaba (vogais e consoantes) com a nota musical. Deparei-me pela primeira vez com este termo lendo um livro chamado Conversas com Igor Stravinski. Gnio musical, Stravinski tambm era provido de grande capacidade intelectual e elaborao silgica, e certamente, devia ter interesse por temas variados, como a maioria dos grandes artistas que conseguem ultrapassar a prpria arte. Mais tarde, encontrei tambm o termo em Ezra Pound, que alm de grande poeta e livre terico, era msico e se preocupava bastante com o fenmeno - e j o identificava como diferencial nos poetas-msicos da Provena do sculo XII, incio do trovadorismo. Mas o fato que do ano 1100 para c, ningum at hoje se aprofundou no tema. Embora no haja nenhum tipo de estudo registrado sobre o fenmeno, fato que ele existe e pode fazer muita diferena na qualidade do som. Sabe-se apenas que determinadas consoantes e ainda mais as vogais, podem soar mais ou menos agradveis e/ou naturais, dependendo da curva meldica ou nota, ou melodia a que esto atreladas. Em meus workshops, com experincias in loco, consigo resultados claros de percepo do fenmeno entre meus alunos. Aqui nestas pginas, mesmo sem a possibilidade do udio, vamos tentar chegar a uma melhor compreenso dessa unio sonora e seus resultados. Ainda assim, pode-se dizer que esses resultados so abstratos e em grande parte de leitura subjetiva, ou seja, as impresses costumam variar muito de pessoa para pessoa. Por outro lado, uma vez apreendido, este conceito passa a ser uma ferramenta importante na busca por melhores sonoridades.

Vamos pegar como exemplo a primeira estrofe de Garota de Ipanema, uma cano bastante conhecida da maioria de ns: Olha que coisa mais linda, mais cheia de graa ela menina que vem e que passa Num doce balano a caminho do mar Em primeiro lugar, vamos observar como se comportam sonoramente as palavras atreladas melodia e de modo mais especfico, como soam as combinaes de vogais ou, no caso, a sequncia das vogais ao longo da melodia. Mantendo a mesma mtrica da melodia, escreverei a seguir outras palavras, buscando outros tipos de vogais e no me importando com o significado, apenas com a sonoridade e a mtrica. Sobre aquele poema que julgo ser forte Foi s a labuta de um fraco suspiro Um osso rodo, um pobre frisson Bem, foram as palavras mais sofrveis que consegui neste momento, se bem que sempre pode ser pior. J percebo que algumas vogais e tambm consoantes, mas principalmente vogais, encontram-se em lugares completamente prejudiciais sonoridade. Logo de incio, enquanto o olha da letra original, faz claro movimento de abertura com suas vogais + a, sendo esta ltima a mais aberta de todas. A palavra sobre e suas vogais + , j inaugura a letra com claro movimento de fechamento. O mais linda do original tambm contrasta significativamente com poema, que tem som mais fechado, menos ensolarado, por assim dizer. E finalmente, ainda na primeira frase, a palavra julgo me soa bastante agressiva com relao s suas vogais, mas tambm pelas consoantes, sem contar a falta de encaixe da palavra nesta melodia e talvez em muitas outras melodias. Na segunda frase as palavras labuta e suspiro, com suas organizaes de vogais e tambm de consoantes, no soam nada bem. E por fim, osso rodo: o + o + o + i + o, soam ainda pior. Sem contar a palavra frisson, que, em outra melodia, pode at soar aceitvel (com ressalvas pessoais), aqui me parece totalmente desencaixada quanto sonoridade de suas vogais, para a ocasio. Enquanto na letra original temos na nota de fechamento da estrofe a vogal mais aberta de todas, o a, de mar (vem ar, vem mar, arrrrr), no segundo exemplo temos a segunda vogal mais fechada, que o , de frisson, o que escurece a melodia. Lgico que no podemos deixar de observar a grande quantidade de semicacfatos como julgo ser forte, fraco suspiro, osso rodo e pobre frisson; so muitas combinaes infelizes de palavras. Como disse, ainda que no seja um fenmeno a princpio claramente observvel e sua leitura muitas vezes seja subjetiva, acredito ter ficado claro, nessas poucas palavras, quanta diferena sonora pode fazer o uso dessa ou daquela vogal e/ou consoante. Portanto, importante que tambm se faa um mapeamento de possveis fragilidades no Motz el Son, a cada letra construda.

Mas no se assuste! O olhar vai ficando mais aguado e o tempo gasto nesse tipo de observao diminui consideravelmente.

Letras mais rtmicasUm ltimo aspecto observado quanto sonoridade das palavras que letras mais rtmicas se utilizam mais de consoantes de ataque como: P / T / K / Q / B etc, e menos de consoantes como M, N, V, S e outras. Mas como devemos sempre lembrar, no h regras para a composio. Neste caso trata-se apenas de uma observao de recorrncias.

Captulo 3 MtricaImaginemos uma letra de msica e que por detrs dela h uma melodia. Seguindo essa mesma lgica vem a pergunta: o que h por detrs da melodia? A resposta : mtrica ou rtmica da melodia. Muitas vezes ao fazermos uma letra ou uma melodia, no atentamos para a qualidade da mtrica. Percebemos a mtrica e ao criar, certo, sabemos que ela est l, ainda que de modo mais ou menos inconsciente. Mas poucas vezes paramos para observar sua qualidade, se mais ou menos interessante, se carrega algum valor semntico, se mais ou menos previsvel, o quanto varia de uma estrofe para outra, de uma frase para outra, se varia, ou mesmo se pode ser melhorada. A mtrica tambm um possvel elemento causador de interesse, mesmo que o ouvinte no se d conta. Mas ela est e sempre estar impressa na letra e sempre ser ouvida e assimilada, de forma mais ou menos consciente. Vejamos o caso desta conhecida cantiga de roda: (Atirei o Pau no Gato - autor desconhecido) Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to No morreu rreu-rreu, Dona Chica-ca Admirou-se-se, do berro, do berro que o gato deu Para evitar uma abordagem mais formal e a idia ficar ao alcance de todos, evitaremos o uso de partitura e a substituiremos por simples tas (ta), ou ainda mais simples, usaremos a letra T que, como j vimos, uma consoante que oferece bom apelo rtmico. A mtrica em T ficaria assim: T TT TT TT T T

TTT TT TTT TT TTT TT TTT TT TTT TTT TTTT Ficou clara a idia? Cada T corresponde a uma slaba ou nota musical. Percebemos a, que se trata de uma mtrica bem simples, comum, bastante previsvel e repetitiva, como geralmente convm a uma cantiga de roda. S o motivo TTT TT se repete quatro vezes seguidas. E a durao de cada slaba, ou nota, quase sempre a mesma. um caso de pouqussima variao. Esse tipo de mtrica colocada em uma cano adulta, digamos assim, seria algo bem pobre, que despertaria pouqussimo ou nenhum interesse, podendo ainda prejudicar e muito a transmisso de qualquer idia semntica. Vejamos agora outro caso: A Novidade (Gilberto Gil) U U U U U U U AA (4X) A novidade veio dar a praia Na qualidade rara de sereia Metade o busto de uma deusa maia Metade um grande rabo de baleia A novidade era o mximo Do paradoxo escondido na areia Alguns a desejar seus beijos de deusa Outros a desejar seu rabo pra ceia Oh... mundo to desigual Tudo to desigual O, o, o, o, o o Oh... de um lado esse carnaval De outro a fome total O, o, o, o, o o E a novidade que seria um sonho O milagre risonho da sereia Virava um pesadelo to medonho Ali naquela praia, ali na areia A novidade era a guerra Entre o feliz poeta e o esfomeado Estraalhando uma sereia bonita Despedaando o sonho pra cada lado Oh... Mundo to desigual...

Passaremos a chamar agora nossa organizao em Ts, de mapa mtrico. Faremos, portanto, a seguir, o mapa mtrico desta cano. Para isso, dividiremos a letra em partes, Intro, A, B, Refro Coda e assim por diante - outro aspecto a ser visto mais frente desde a introduo, neste caso feita com o uso de onomatopias, at a finalizao. E, para facilitar, no repetiremos mtricas iguais numa mesma estrofe. A Novidade (Gilberto Gil) Mapa Mtrico Intro (em onomatopias) TTTT TTT TT (4x) Parte A TT TT TT TT TTT (4x) Parte B TT TT TT TT TT TT TT TT TT TT TT TT TTT TTT T TTT TTT T TT TTT T TT

Refro T TT TT TT TT TT TT TTTT T T T TT T TT TT T T TT TT TTTT T T Este apenas um modelo simples para se fazer mapeamento mtrico. Pode haver outras formas mais elaboradas, ou com o uso da pauta, o que fica a critrio de cada um. Percebemos que h uma mudana constante na mtrica da letra apresentada e os padres rtmicos j soam bem mais complexos e imprevisveis que no exemplo anterior. Temos a, ao longo da letra, cerca de dez variaes. Esse movimento, geralmente, importante para trazer letra novos causadores de interesse, por menos aparentes que sejam. Muitas dessas mudanas se do nas passagens de uma parte para outra, mas isso no regra. Vimos tambm que a mtrica no refro se desdobra, as notas se alongam, tm maior durao, e diminui o nmero de palavras por minuto. Isso no costuma ser exceo, algo muito recorrente em refres, uma vez que costumam ser mais sintticos que o restante da letra. Diria que acontece em cerca de 70% dos refres. Mas tambm no regra e nem deve ser. apenas observao.

Apenas um exemplo contrrio. Aqui a mtrica do refro dobrada em relao ao restante da letra: Andando por entre os becos / Andando por em coletivos / Ningum foge ao cheiro sujo / Da lama da Manguetown -Manguetown (Chico Science/Lucio Maia/ Dengue) Uma ltima dica: para se fazer mapas mtricos sem o uso da partitura, importante que se escolha canes conhecidas, para que depois essa organizao em Ts faa algum sentido, na hora da leitura. Se conseguir fazer mapas mtricos com pelo menos dez canes, a qualidade de seu trabalho, neste sentido, crescer significativamente, assim como a ateno para o fenmeno. Uma boa mtrica fortalece a melodia e, no menos, transmite de forma mais interessante os significados. Vimos neste ltimo exemplo que uma boa letra, geralmente, apresenta algumas ou muitas variaes mtricas. Mas, como nas artes, regras so apenas indicadores de caminhos e nunca verdades absolutas. Vejamos um caso bastante contrrio ao anterior e nem por isso menos feliz:

Construo (Chico Buarque) Amou daquela vez como se fosse a ltima Beijou sua mulher como se fosse a ltima E cada filho seu como se fosse o nico E atravessou a rua com seu passo tmido Subiu a construo como se fosse mquina Ergueu no patamar quatro paredes slidas Tijolo com tijolo num desenho mgico Seus olhos embotados de cimento e lgrima Sentou pr descansar como se fosse sbado Comeu feijo com arroz como se fosse um prncipe Bebeu e soluou como se fosse um nufrago Danou e gargalhou como se ouvisse msica E tropeou no cu como se fosse um bbado E flutuou no ar como se fosse um pssaro E se acabou no cho feito um pacote flcido Agonizou no meio do passeio pblico Morreu na contramo atrapalhando o trfego... Amou daquela vez como se fosse o ltimo Beijou sua mulher como se fosse a nica E cada filho seuomo se fosse o prdigo Atravessou a rua com seu passo bbado Subiu a construo como se fosse slido Ergueu no patamar quatro paredes mgicas Tijolo com tijolo num desenho lgico

Seus olhos embotados de cimento e trfego Sentou pr descansar como se fosse um prncipe Comeu feijo com arroz como se fosse o mximo Bebeu e soluou como se fosse mquina Danou e gargalhou como se fosse o prximo E tropeou no cu como se ouvisse msica E flutuou no ar como se fosse sbado E se acabou no cho feito um pacote tmido Agonizou no meio do passeio nufrago Morreu na contramo atrapalhando o pblico... Amou daquela vez como se fosse mquina Beijou sua mulher como se fosse lgico Ergueu no patamar quatro paredes flcidas Sentou pr descansar como se fosse um pssaro E flutuou no ar como se fosse um prncipe E se acabou no cho feito um pacote bbado Morreu na contra-mo atrapalhando o sbado Quantas variaes mtricas temos a? Nenhuma. H apenas uma nica mtrica, ao longo de toda a letra, que se repete algumas dezenas de vezes. Mapa mtrico: TT TTTT TTTT T T TT H a, porm, uma arma rarssima. Essa mtrica, por si s, um elemento semntico concreto; sugere algo mecnico, repetitivo, meio robotizado, alienado, que exatamente do que trata a letra (semicacfato): a escravido e a insatisfao gerada pela vida operria, pelo cotidiano que esmaga a subjetividade etc. So casos raros, mas que evidenciam ainda mais a importncia da mtrica que h por trs da melodia ou do verso. E mesmo que no houvesse essa arma, como no caso de outra cano do mesmo autor, O que ser, e suas pouqussimas variaes mtricas: (trecho de O Que Ser Chico Buarque) O que ser, que ser? Que andam suspirando pelas alcovas Que andam sussurrando em versos e trovas Que andam combinando no breu das tocas Que anda nas cabeas anda nas bocas Que andam acendendo velas nos becos Que esto falando alto pelos botecos E gritam nos mercados que com certeza Est na natureza

Ser, que ser? O que no tem certeza nem nunca ter O que no tem conserto nem nunca ter O que no tem tamanho*Observemos tambm o nmero significativo de repetio de palavras e expresses: Que andam..., ou O que no tem...; apenas nessa primeira estrofe.

Outro exemplo parecido se d neste caso: Admirvel Chip Novo (Pitty) Pane no sistema, algum me desconfigurou Aonde esto meus olhos de rob? Eu no sabia, eu no tinha percebido Eu sempre achei que era vivo Parafuso e fluido em lugar de articulao At achava que aqui batia um corao Nada orgnico, tudo programado E eu achando que tinha me libertado. Mas l vem eles novamente e eu sei o que vo fazer: Reinstalar o sistema Pense, fale, compre, beba Leia, vote, no se esquea Use, seja, oua, diga Tenha, more, gaste e viva Pense, fale, compre, beba Leia, vote, no se esquea Use, seja, oua, diga... No senhor, Sim senhor, No senhor, Sim senhor H neste ponto selecionado em negrito algo semelhante ao caso de Construo: mtrica robotizada, ao se tratar de um assunto afim.

Mtricas mais relaxadasVimos nos exemplos anteriores mtricas bem amarradas, que apresentam um certo padro, mesmo com suas variaes. Mas existe tambm a possibilidade de mtricas mais relaxadas, soltas, despadronizadas. Esse parece ser um fenmeno moderno, em canes. O interessante que isso se d numa poca em que os procedimentos, comportamentos etc, de modo geral, esto mais padronizados do que nunca.

Mas no me parece estranho surgir esse tipo de abordagem mtrica numa poca como a nossa. A msica reflete seu prprio tempo, seus interesses, suas buscas e angstias. E quer romper, do contrrio, no pode ser chamada de arte. Liberdade mtrica: Bob Dylan assim j a exercia, mas ainda havia padres reconhecveis. De Joni Mitchell, j no se pode dizer o mesmo. No Brasil, creio que Renato Russo foi um dos primeiros no rock; na mpb h inmeros casos, j desde os anos 60/70:

Tempo Perdido (Renato Russo) Todos os dias quando acordo No tenho mais o tempo que passou Mas tenho muito tempo Temos todo o tempo do mundo... Todos os dias antes de dormir Lembro e esqueo como foi o dia Sempre em frente, no temos tempo a perder... Nosso suor sagrado bem mais belo Que esse sangue amargo E to srio e Selvagem! Selvagem! Selvagem!... Veja o sol dessa manh to cinza A tempestade que chega da cor dos teus olhos castanhos... Ento me abraa forte, me diz mais uma vez Que j estamos distantes de tudo Temos nosso prprio tempo Temos nosso prprio tempo Temos nosso prprio tempo... No tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora O que foi escondido o que se escondeu E o que foi prometido, ningum prometeu Nem foi tempo perdido, somos to jovens... To Jovens! To Jovens!... Como vimos, h alguns padres recorrentes, mas bem poucos. E h outros casos do mesmo autor ainda mais radicais quanto liberdade mtrica.

Uma dica do letrista Hermnio Belo de CarvalhoUma vez, assistindo a um programa de entrevista na tv, vi o compositor Hermnio Belo de Carvalho apresentar uma tcnica interessante, de como se criar uma letra para ser musicada. Ele busca uma cano conhecida, ou qualquer cano, e reeescreve a letra em cima da mesma mtrica da letra original.

Ex: guas de Maro (Tom Jobim) pau / pedra / o fim do caminho um resto de toco / um pouco sozinho um caco de vidro / a vida, o sol a noite / a morte / o lao / o anzol... Reescrevendo o trecho - com a mesma quantidade de slabas ou notas: Eu vim / de longe / pra viver esse amor No sabia o perigo / mas o mar me levou E eu cheguei decidido / e o sonho cresceu Mas agora percebo / de que nada valeu Temos a, portanto, outra letra, feita sobre a mesma mtrica. Agora, esqueamos a melodia de guas de Maro e faamos outra melodia para esta letra, e com outra distribuio mtrica, qualquer uma. Ou, mandemos a letra para outra pessoa musicar, sem dizer sobre qual mtrica foi feita. Neste caso, no h a menor chance do compositor saber de qual msica se trata. E a melodia que far em cima da letra certamente ter uma mtrica bem diferente de guas de Maro. A letra pode ser musicada de muitas maneiras e com muitas variaes mtricas. Fica a a dica de quem j escreveu letras de clssicos da msica brasileira e provvel que algumas dessas tenham sido escritas sobre mtricas outras, to conhecidas quanto. E para finalizar o captulo, segue uma ltima dica para melhorar a capacidade de elaborao mtrica. Pegue um dicionrio qualquer e brinque com duas ou trs, ou quatro palavras seguidas, inventando diferentes mtricas. Ex: capacete, capacidade, capacmetro ou vulco, vulgar, vulgaridade, vulgarismo, e por a vai. Qualquer conjunto de palavras serve. At mesmo de textos em prosa. O importante brincar com as possibilidades, quem sabe colocando tambm alguma melodia. Dessa brincadeira j podem surgir novas idias de canes, nunca se sabe.

Captulo 4 RimaCinco tpicos sobre rima: 1 A rima no obrigatria 2 Evite rimas bvias 3 Utilize tambm rimas por aproximao sonora 4 Palavras em outras lnguas podem oferecer boas rimas 5 Rimas em junes ou separaes de palavras e rimas por acentuao. A rima no obrigatria. E pode aparecer, ou no, a qualquer momento da letra. No existe, portanto, padres definidos para a rima, pode-se comear uma letra com rimas e de um ponto para frente suprimi-las. Da mesma forma, pode-se iniciar uma letra sem rimas e num certo trecho inclu-las, e depois suprimi-las novamente. Ou pode-se utilizar rimas ao longo de toda a letra. Ou o contrrio, escrever uma letra inteira sem qualquer rima. Exemplos: Meu Mundo Ficaria Completo (Com Voc) (Nando Reis) - trecho No porque eu sujei a roupa bem agora que eu j estava saindo Nem mesmo porque eu peguei o maior trnsito e acabei perdendo o cinema No porque no acho o papel onde anotei o telefone que eu t precisando Nem mesmo o dedo que eu cortei abrindo a lata e ainda continua sangrando No porque fui mal na prova de geometria e periga d'eu repetir de ano Nem mesmo o meu carro que parou de madrugada s por falta de gasolina No por que t muito frio, no por que t muito calor O problema que eu te amo Neste caso as rimas entram e saem, sem obedecer a nenhum tipo de padro. Por Enquanto (Renato Russo) trecho Mudaram as estaes e nada mudou Mas eu sei que alguma coisa aconteceu Est tudo assim to diferente... Se lembra quando a gente Chegou um dia a acreditar Que tudo era pr sempre Sem saber que o pra sempre, sempre acaba...

Aqui se d um caso parecido com o anterior: rimas entram e saem. ndios (Renato Russo) - trecho Quem me dera ao menos uma vez Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem Conseguiu me convencer que era prova de amizade Se algum levasse embora at o que eu no tinha Quem me dera ao menos uma vez Esquecer que acreditei que era por brincadeira Que se cortava sempre um pano-de-cho De linho nobre e pura seda Quem me dera ao menos uma vez Explicar o que ningum consegue entender: Que o que aconteceu ainda est por vir E o futuro no mais como era antigamente. Quem me dera ao menos uma vez Provar que quem tem mais do que precisa ter Quase sempre se convence que no tem o bastante Fala demais por no ter nada a dizer. Quem me dera ao menos uma vez Que o mais simples fosse visto como o mais importante Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente... At este ponto da letra h apenas duas recorrncias de rimas, sendo uma delas, brincadeira / pura seda, por aproximao sonora, e a outra, ter / dizer, exata. Creio j termos exemplos suficientes para demonstrar a opcionalidade das rimas.

Rimas bviasAs rimas, segundo a gramtica, podem ser de quatro ordens: rica, pobre, rara ou preciosa. No caso de letras de msica, porm, devemos esquecer essas classificaes por um nico motivo: rima, som. importante, entretanto, ficar sempre atento s rimas bvias e/ou muito recorrentes. A cada dcada, geralmente na msica mais popularesca, temos uma lista de rimas que se repetem ao limite, em muitas e muitas canes. Vivemos a dcada de rimas como amor / calor, paixo / emoo, peito / perfeito... So tipos de rimas que, a princpio, devemos evitar, pois tendem a diminuir a singularidade de uma letra.

Mas, como todas as regras podem ser quebradas, no auge da rima amor / calor, quando esta j havia aparecido em metade dos pagodes romnticos e sertanejos modernos, surge o compositor Nando Reis com o amor o calor que aquece a alma, quase como uma provocao. Reafirmou a rima com veemncia, fazer soar algo bem mais fresco do que quando inserida nos outros tipos de canes citados. O que nos leva a pensar que h poder em se bancar com propriedade uma idia, por mais estranha ou comum.

Rimas por aproximao sonora ou rimas internasChegamos num ponto importante. So as rimas por aproximao sonora. Que formalmente so chamadas de rimas internas. Alm de serem muito mais recorrentes do que imaginamos, podem trazer excelentes resultados letra, tanto pela imprevisibilidade, quanto pelas sonoridades incomuns que costumam apresentar. Costumam ser rimas elegantes. E aumentam significativamente as possibilidades de se rimar. Eis alguns casos mais comuns: Feliz / partir / aqui / assim, todas essas terminaes rimam entre si, por aproximao sonora. Par, paz, pai, tambm. O mesmo se d com palavras terminadas em: - Eu e er - valeu / fazer - o e om - cano / batom - Om e or som / cor - Em e er ningum / saber - Em e ei tambm / lei - Or e ou sabor / restou - Or e l amor / futebol - Ou e l virou / farol Estes so apenas alguns exemplos, mas h muitas outras possibilidades de aproximao sonora que oferecem rimas agradveis e sensatas aos ouvidos. Alguns exemplos em canes - trechos: Olhei at ficar cansado De ver os meus olhos no espelho Chorei por ter despedaado As flores que esto no canteiro Os punhos e os pulsos cortados E o resto do meu corpo inteiro H flores cobrindo o telhado

E embaixo do meu travesseiro H flores por todos os lados H flores em tudo que eu vejo (Flores - Tony Bellotto / Srgio Britto / Charles Gavin / Paulo Miklos) No me elegeram chefe de nada O meu carto de crdito uma navalha (Brasil Cazuza) Eu posso estar sozinho Mas eu sei muito bem aonde estou Voc pode at duvidar Acho que isso no amor (Ser - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonf) Enquanto o tempo Acelera e pede pressa Eu me recuso fao hora Vou na valsa A vida to rara... (Pacincia - Lenine e Dudu Falco) A banda cover do Diabo acho que j t por fora O mercado t de olho no som que Deus criou Com trombetas distorcidas e harpas envenenadas Mundo inteiro vai pirar com o heavy metal do Senhor (Heavy Metal Do Senhor - Zeca Baleiro) O goleiro um homem de elstico S os dois zagueiros tem a chave do cadeado Os laterais fecham a defesa Mas que beleza uma partida de futebol (Partida De Futebol - Samuel Rosa e Nando Reis) Garotos no resistem Aos seus mistrios Garotos nunca dizem no Garotos como eu Sempre to espertos Perto de uma mulher So s garotos (Garotos - Leoni) Solido lava Que cobre tudo Amargura em minha boca Sorri seus dentes de chumbo... (Dana da Solido - Paulinho da Viola) Esttuas e cofres e paredes pintadas Ningum sabe q que aconteceu... Ela se jogou da janela do quinto andar

Nada fcil de entender... (Pais e Filhos - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonf) Pra onde essa onda vai? De onde essa onda vem? Eu no sei o que ela me traz Mas o meu desejo que me leve tambm (Onde Anda a Onda - Paulinho Moska) Tambm uso: Me diz quanto querer pode existir Eu sei que vou sofrer, mas fico mesmo assim (Vou me iludir - Magno Mello / Pedro Morais) Olha essa que interessante: De que ele o sol inunda O mar quando se pe Imagem moribunda De um corao que foi (J. de Deus) Experimente tambm: Admito / comigo Apressado / cigarro Banquete / gente Como percebemos, as possibilidades so muitas e geralmente trazem alguma originalidade s rimas. Portanto, arrisque-se! S tome cuidado para no forar a barra, o que serve tambm para qualquer outro tipo de rima. Se ficar evidente que a rima forada, adeus ouvinte.

Palavras em outras lnguas tambm podem trazer boas rimas.s vezes nos esquecemos dessa possibilidade ou, simplesmente, podemos ter alguma antipatia por esse tipo de recurso, mas palavras estrangeiras tambm podem rimar com palavras de nossa lngua. Alguns exemplos - trechos:

...De passaporte rasgado Sem ter nada que me ajeite Coqueiros varam varandas no Empire State (A Ponte - Lenine e Lula Queiroga)

Alzira bebendo vodka defronte da Torre Malakof Descobre que o cho do Recife afunda um milmetro a cada gole (Alzira e a Torre Lenine) A rima acima um caso duplo: em outra lngua e por aproximao sonora Tocarei seu nome pr poder falar de amor Minha princesa, art-nouveau (Sina - Djavan) Outra aproximao sonora I dont want to stay here I want to go back to Bahia (Quero voltar pra Bahia - Paulo Diniz / Odibar) Minha sugesto : I love you / bvio

Rimas em junes ou separaes de palavras um caso incomumH ainda outra possibilidade de se fazer rimas, embora bem mais remota, na juno ou separao de palavras. Apresentamos aqui os exemplos como curiosidade e pela simples observao do fenmeno. Trilhos Urbanos (Caetano Veloso) Pena de pavo de Krishna Maravilha vixe Maria me de Deus... O prximo exemplo um pouco mais simples, mas ainda assim bastante incomum: (Maracatu Atmico - Nelson Jacobina / Jorge Mautner) Atrs do arranha-cu tem o cu, tem o cu E depois tem outro cu sem estrelas Em cima do guarda-chuva tem a chuva, tem a chuva Que tem gotas to lindas que at d vontade de com-las

Captulo 5

CoernciaQuanto mais percebemos as manifestaes humanas nuas e cruas por trs desse vu ingnuo de miticismo, misticismo, dogmatismo e outros ismos que pretendem estabelecer regras de conduta, mais concluimos que o ser humano , sempre foi e sempre ser, paradoxal. Coerncia no homem algo construdo para tentar sanar o medo do que no queremos ver.* Mas vivemos sob princpios lgicos, do contrrio, nem mesmo haveria a msica. A msica s compreensvel em nosso sentimento por ser organizao lgica. At nossos sentimentos e sofrimentos se do por organizao lgica. E, no fim das contas, a lgica prev coerncia. Ento, ligando s letras de msicas: elas tambm so construdas com base na lgica, portanto, requerem alguma coerncia. Organizamos a coerncia em trs partes: 1 Coerncia Lxica 2 Coerncia Semntica 3 Coerncia de Continuidade

1 Coerncia Lxica relativa ao tipo de vocabulrio utilizado, ao longo de toda a letra, e tambm da relao da letra com a imagem sonora, ou seja, com a msica em si. O primeiro cuidado a se tomar nesse sentido manter o mesmo universo lxico, ou o mesmo tipo de vocabulrio, do comeo ao fim da letra. Por exemplo: Tudo estava to perfeito Nosso amor daquele jeito Refluindo devagar... A palavra refluindo no condiz com o resto da linguagem utilizada, por se tratar de termo pouco coloquial, menos afetivo, mais racionalizado, e dificilmente poderia caber numa letra de amor, que de antemo j sugere algo mais emocional ou mesmo fsico. Sem contar a esttica duvidosa do termo, que por si s, a meu ver, j causa significativa perda de sonoridade. Outro exemplo (a linguagem de rap): Chegado, t na hora de correr o mundo afora

Para ver a diferena, o conceito, a crena O outro lado de si mesmo espalhado pelo mundo Muitas lnguas diferentes, japons, bielo-russo Esquea esse negcio de dinheiro pelo menos por enquanto Ainda temos vinte anos e se no viver agora A gente fica sem histria sem passado, sem memria, sem futuro Ou um futuro de pouqussimo horizonte Com a cabea entupida de minhoca misturada com fofoca. O texto vinha se apresentando de forma razoavelmente coerente, em linguagem de rap, com algum atrito em bielo-russo, mas ainda assim avanando com alguma legitimidade, at... entupida de minhoca? numa linguagem de rap? E, para piorar: fofoca? So palavras ou termos impensveis nesse tipo de linguagem, que podem soar, mais que risveis, at ofensivos aos ouvintes do gnero e mesmo para o ouvinte comum. O que chama ateno para outro tipo de perigo: a utilizao de grias e ou termos ultrapassados, ou mesmo neologismos infames e trocadilhos baratos. Esses procedimentos ilegitimam, desqualificam, afetam negativamente no s a letra da msica, como a prpria figura artstica de quem a estiver interpretando. Isso acontece tambm com argumentos, como veremos mais frente.

E com relao imagem sonoraComo dissemos, para cada tipo de msica h uma ampla, porm limitada previso de vocabulrio - sempre h espao para experimentaes, claro. Mas, experimente colocar versos de Homero num samba de raiz. Ou poemas mais speros de Augusto dos Anjos numa balada romntica. Essa idia extrema apenas para lembrar que a sonoridade da msica, por si s, j sugere um tipo de vocabulrio. E de toda importncia saber ouvir que palavras e que sonoridade de palavras a msica requer. Por exemplo: um rap requer um linguajar mais urbano, descolado, aceita mais grias, palavras mais speras, em alguns casos. J uma cano de amor tende a aceitar menos grias e a linguagem no precisa necessariamente ser urbana, muito menos descolada. Tambm, como vimos, no pode ser muito intelectualizada, sob pena de se perder a afetividade. Um pagode ou mesmo um samba de raiz, dificilmente aceitariam uma palavra como escafandristas. J um samba fino, quem sabe. Enfim, numa letra de msica, toda palavra utilizada deve fazer parte de um mesmo ambiente lxico, semntico e sonoro. Isso quer dizer que qualquer palavra, sonoridade e/ou sentido mal colocados, podem invalidar sua composio de modo irreversvel. Numa letra de msica, no se pode negociar com o acabamento.

2 - Coerncia SemnticaCom relao coerncia semntica, ou de significado, nada mais importante que a legitimidade do argumento. Essa uma das grandes diferenas entre bons compositores e o restante: a solidez do que est sendo dito, por mais simples que seja. No estamos falando de grandes elaboraes intelectuais, nada disso, apenas de algo humanamente crvel; lembrando que o argumento tambm pode ser abstrato, sonoro, alegrico etc. Palavras que se juntam para criar rtmicas interessantes ou colaboram beneficamente para maior explicitao da msica, ainda que no carreguem em si sentido algum, tambm podem ser considerados bons argumentos. Um exemplo: Aa (Djavan) A paixo, puro af Mstico cl de sereia Castelo de areia, ira de tubaro Iluso, o sol brilha por si Aa, guardi Zum de besouro, um im Branca a tez da manh Isso humanamente crvel, no por trazer verdades semnticas, antes o contrrio, a tez da manh no branca, se levarmos ao p da letra uma idia alegrica, metafrica, refere-se claridade da manh. Mas o autor deixa claro que se trata de um jogo de palavras sem maiores conseqncias. E mesmo assim consegue ligar idias afins: puro af, sereia (e seu canto sedutor, ilusrio), castelo de areia, ira de tubaro, iluso, o sol, tudo isso, concreta ou abstratamente, pode se conectar com a idia que temos de paixo; ainda que o compositor no esteja preso a isso, como vemos na continuao. Aa e guardi so apenas palavras com boa musicalidade, assim como o termo zum de besouro etc. Existe um nico porm na letra, que a expresso mstico cl, j pontuada; a meu ver, isso no soa bem. No mais, no h muito risco em se dizer palavras soltas numa cano, contanto que tenham boa sonoridade. A questo torna-se perigosa, porm, quando se tenta dizer alguma coisa e no se consegue. Ou quando se diz inverdades. Tambm quando se fala o que j foi amplamente falado e da mesma maneira que foi falado. H ainda o perigo de se levantar bandeiras e a questo do absolutismo. E, por fim, o aproveitamento de espao.

Observemos caso a caso: A - Quando no se d conta do argumento: Letra de msica no texto acadmico, portanto a solidez de um argumento no exige rigor cientfico. Uma coisa dar conta de um silogismo filosfico e a outra dar conta de amarrar poeticamente a proposio apresentada. Peo licena para usar um exemplo de minha prpria autoria, coisa que farei em bem poucas situaes ao longo do livro. Mas aqui vem a calhar. O mundo resultado dos contrrios: essa a proposio inicial da letra. Apresentei, portanto, uma questo, que pode levar o ouvinte a se perguntar, ainda que inconscientemente: sim, e da? Ento, terei que dar conta de desenvolver o assunto de modo a torn-lo aceitvel, acreditvel e interessante, se quiser prender meu ouvinte. Qualquer passo em falso e minha argumentao vai por gua abaixo e a cumplicidade com o ouvinte, tambm. A questo no das mais simples, meio filosfica, sociolgica etc. Mas tenho a vantagem de isso ser apenas uma letra de msica, portanto, no tenho que necessariamente dizer grandes verdades. Ento, l vou eu: De Cada Lado (Magno Mello/ Pedro Morais/ Kadu Vianna) - trecho O mundo resultado dos contrrios Da fora dos lees e dos otrios Da selva de monistas e sectrios Das pedras no caminho O mundo a flor e o espinho Viver ser na multido sozinho Um passo para frente outro abandonado No mundo uma iluso de cada lado. Bem, nenhuma grande verdade, mas nenhum rompimento com a proposio e sempre procurando agregar novos pontos de vista em diferentes ngulos de abordagem, para que o argumento e a identidade da letra se fortaleam a cada verso. H duas palavras incomuns, perigosas monistas e sectrios - que por algum motivo tendem a soar naturais; talvez por haver certa gravidade no texto e na prpria melodia. Vejamos agora o seguinte exemplo: A vida feita de despedidas logo o amor me contagia. Percebemos claramente que lgica no est bem amarrada, uma coisa no conseqncia da outra.

um argumento forado. Isso acontece em muitas letras, at de amigos compositores; poderiam chegar l, mas acabam deixando por menos, negligenciando o sentido. Torna-se, portanto, um argumento duvidoso, improvvel, no convincente. Um outro exemplo: Em muitas vezes procurei tentar achar onde eu errei em coisas que no tm porqu (...) No me importa, mas no tem como voltar , eu no vou mais me importar Qualquer coisa faz sua idia mudar A gente ainda pode se entender (trechos de Regina Lets Go! - Badaui / Portoga) Observamos na letra acima que h grave contradio no argumento. O autor diz: No me importa mais, no tem como voltar e dois versos depois: A gente ainda pode se entender. Este prximo argumento pode ser o que chamamos de licena potica, mas ainda assim muito perigosa: Eu nunca mudei, s no estou igual... (Alm de Mim - Diego Ferrero / Gee Rocha / Fi Ricardo) A inteno acima no ruim, mas as palavras parecem no ter traduzido a idia, e o entendimento ficou outro, a no ser com alguma boa vontade por parte do ouvinte em compreender o que os autores quiseram dizer. E aqui a argumentao confusa e as idias so conectadas fora: Faz tempo que a gente no aquele mesmo par Faz tempo que o tempo no passa s voc estar aqui At parece que adormeceu O que era noite j morreu (...) At parece que o amor no deu At parece que no soube amar Voc reclama do meu apogeu Do meu apogeu E todo o cu vai desabar (trechos de Temporal - Leandro Lehart) E se estvamos falando em outro captulo de palavras duras, pouco musicais, eis um bom exemplo: apogeu.

B - Quando se diz inverdades.

Dificilmente haver inverdades, quando no h a inteno de dizer verdades. Vejamos o seguinte verso: Toda folha elege um algum que mora logo ao lado (Todo Carnaval Tem Seu Fim Marcelo Camelo) claro que isso no verdade e o autor se vale de absolutismos: toda folha.... Mas s uma forma de dizer, percebe-se claramente ao longo da letra, que no h inteno de afirmar nada, apenas trazer uma imagem vaga, de segundos cadernos e suas idias cotidianas tona. H a questo da romantizao: Assim como o oceano s belo com luar Assim como a cano s tem razo se se cantar Assim como uma nuvem s acontece se chover Assim como o poeta s grande se sofrer Assim como viver sem ter amor no viver No h voc sem mim e eu no existo sem voc.( Eu No Existo Sem Voc - Tom Jobim / Vincius de Morais - trecho) Neste caso, se analisssemos literalmente o que foi dito, poderamos dizer que h inverdades e absolutismos perigosos. Mas a tambm est claro que no h a pretenso de se dizer verdades filosficas, apenas verdades do amor: viver sem ter amor, no viver, ou eu no existo sem voc. Vejamos, porm, este exemplo: Tudo est errado O mundo que era perfeito Est to mudado Antes, todo mundo era feliz legitimo dizer que tudo est errado? Pode ser, embora tambm seja perigoso. Mas pode ser usado como desabafo, algo bem coloquial, uma total desiluso com relao vida etc, como figura de linguagem, portanto. Na segunda frase o autor diz: o mundo que era perfeito.... E a perguntamos: o mundo j foi perfeito? Quando? Ainda assim, forando um pouco a barra, claro, pode ser uma espcie de licena potica, algo bblico, relacionado ao den. foroso, mas por hora, deixemos por menos (eu no deixaria). Mas o que dizer de antes todo mundo era feliz? Para isso, definitivamente, no h desculpa, no h como, um argumento falso, pois nem mesmo no den todo mundo era feliz, Caim e Eva que o digam; o que tambm,

no mnimo, j coloca em xeque a proposio anterior de que alguma vez o mundo tenha sido perfeito. Percebe o tamanho da fragilidade desses argumentos? muita afirmao perigosa para pouco espao. Vejamos agora este caso: Afinal, se todo amor segue por tneis que no se encontraro S no mar o claro e o escuro se diluem A primeira questo : o que o autor estava tentando dizer? Mesmo havendo algum sentido, h que se racionalizar demais sobre a proposio e o verso tende a perder o carter artstico de atingir algum lugar emocional. Mas, por mais que seja uma viso pessimista sobre o amor, isso real? Todo amor segue por tneis que no se encontraro? H legitimidade nesta afirmao absolutista? Ou seria uma dessas letras de sonoridade sem maiores consequncias? Bem, est claro que a inteno no essa. E ainda, abrir a frase com afinal, como se isso fosse bvio. E, s no mar o claro e o escuro se diluem? Outra afirmao confusa e absolutista. Lembre-se: estamos falando de significado. Pode ser que haja uma tima melodia por trs da letra e a msica funcione para ouvidos mais desatentos. De qualquer maneira, essas (des)informaes estaro sempre l, a cada vez que a cano for executada. E a inconsistncia tende a se tornar mais e mais evidente. C Absolutismos na argumentao Complementando o item B, percebemos que muitas inverdades podem surgir a partir de absolutismos na argumentao. Primeiro, porque mesmo as regras mais rgidas tendem a ter excees. Neste caso, palavras como todo e tudo so as mais crticas. E sempre algo que pode soar prepotente, taxativo, inflexvel. Mas, claro, como dissemos, estamos falando em situaes de sria argumentao, mais reflexiva, que tenha inteno real de definir e/ou estabelecer verdades. Relembrando alguns casos aqui j apresentados, percebemos que o problema com o absolutismo no necessariamente se aplica a intenes mais brandas: Toda folha elege um algum que mora logo ao lado Que todo grande amor s bem grande se for triste Assim como uma nuvem s acontece se chover Mas pode pesar muito em intenes mais srias: Antes todo mundo era feliz

Todo amor segue por tneis que no se encontraro S no mar o claro e o escuro se diluem

E podemos usar sem medo: Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode s 6 horas da manh... Todo dia o sol da manh vem e me desafia Toda menina baiana tem um jeito que Deus d s amor, s o amor, que conhece a verdade

D - Quando se fala o que j foi amplamente falado e ou da mesma maneira que foi falado. Quando se inicia uma letra ou pensa-se numa temtica, importante observar a recorrncia pregressa do assunto, o quanto j foi falado, de que maneiras foi falado e, finalmente, se vale mesmo a pena desenvolver a questo. Um exemplo: viver o momento, o agora: no h nada mais batido em termos de temtica. E no que no seja um pensamento interessante. Mas assunto to explorado, que dificilmente valeria a pena usar algo do gnero em uma letra de msica. No caso do tema ter pouco apelo reflexivo, como em muitas das letras romnticas, essa exigncia diminui consideravelmente. At mesmo o vocabulrio pode soar algo j ouvido milhares de vezes e ainda assim o assunto ser de razovel interesse, mas por fatores puramente afetivos. No sendo este o caso, o melhor ficar atento para que sua criao no venha ao mundo j como subproduto. E - O perigo de se levantar bandeiras H grande risco de uma letra tornar-se piegas, quando se levanta bandeiras. Ex: Vamos vencer nossas dores, vamos pintar nossas cores. A menos que: 1 O autor ou intrprete transmita uma aura de liderana intelectual e ou moral, como no caso de Renato Russo ou Raul Seixas etc. 2 O argumento ao redor da idia seja slido o suficiente para convencer o ouvinte de modo irrefutvel. 3 A temtica seja de ideologia branda:

Vamo Bat Lata (Hebert Vianna) Vamo bat lata, tonel, garrafa d'agua Vamo bat no pulso da artria da rua Vamo bat palma at de madrugada Vamo pr'aquela praa da verdade nua Vamo de tamanco pro cubano No aperto do abrao do suvaco do po Quatro sete sete cinco meia No batuque samba funk da alegria arrasto T desorientada, voc no sabe nada Moleque de rua e a nova lngua de Brown Pega no meu brao, aperta minha mo Vamo no balano funk do lotao Vamo bat lata, tonel, garrafa d'agua Vamo bat no pulso da artria da rua Vamo bat palma at de madrugada Vamo pr'aquela praa da verdade nua Vamo de tamanco pro cubano No aperto do abrao do suvaco do po Quatro sete sete cinco meia No batuque samba funk da alegria arrasto. Variao sobre o mesmo caso: Muito cuidado tambm na utilizao de argumentos como: faa isso, faa aquilo, Seja assim ou assado... arriscado dizer s pessoas o que fazer, a no ser que os argumentos sejam slidos, voc seja um lder nato (outro semicacfato), a argumentao seja de ideologia branda ou se tratar de alguma espcie de romantizao. F - Aproveitamento de espao, capacidade de sntese, mais significados por metro quadrado, palavras inteis. O verso tende a ser bem mais compacto, mais denso, que a prosa. Portanto, requer maior capacidade de sntese. Se j no caso da prosa, como vimos no comeo do livro, bons autores recomendam que se corte toda e qualquer palavra intil, no caso do verso algo que deve ser levado em mxima considerao. Felizmente, para o verso, e ainda mais no caso da msica, h diversos outros tipos de ferramentas causadoras de interesse, que no apenas o contar a estria no esquecendo que o estilo do autor um dos grandes causadores de interesse na prosa, assim como o no verso, claro. Por isso, em letras de msica, quando pensamos em aproveitamento de espao, capacidade de sntese, a fim de se atingir mais significados em menor espao,

pensamos no s em signos semnticos concretos, mas tambm em signos abstratos, rtmicos, sonoros etc. E a cada frase que colocamos no papel, devemos nos perguntar: 1 - O argumento agrega? 2 - De que forma? 3 - Diz algo que importa? 4 - Traz alguma reflexo e ou sonoridade interessantes? 5 - Tenciona ou relaxa? 6 - Faz danar? 7 - Brinca no ouvido? 8 - Liga-se a outras idias do texto, ainda que abstratamente? Vejamos dois exemplos de aproveitamento de espao nas seguintes estrofes: Podem os homens vir, que no vo me abalar Os ces farejam medo, logo no vo me encontrar No se trata de coragem, mas meus olhos esto distantes Me camuflam na paisagem, dando um tempo pra cantar (Me Deixa - Marcelo Yuka trecho) Temos a um aproveitamento de espao bastante significativo. H um constante desenrolar de idias, argumentos psicolgicos refinados e nenhum desperdcio de palavras. So idias reconhecveis pela maioria das pessoas e com ngulos de abordagem incomuns: os ces farejam medo, logo no vo me encontrar, quem no sabe do que se trata, por mais sutil que seja este pensamento? E isso mexe com muita gente; mexe no s com esse, mas tambm com outros medos e questes que se desdobram dentro de ns. E a continuao: no se trata de coragem, mas meus olhos esto distantes, me camuflam na paisagem..., outro argumento bem sutil, sobre a invisibilidade da distrao, do no estar nem a, termo que por si s j corrobora com a idia. A pessoa no est l, portanto, no pode ser vista ou farejada. Isso tambm nos remete clebre frase de Paulo Leminski: Distrados venceremos, pessoas com um mnimo de formao intelectual e humana, compreendem a proposio. Tudo isso para dizer algo bem coloquial, cotidiano, mas que pode ser o desabafo de qualquer um, especialmente pela correria e pelo excesso de compromissos instaurados em nossas vidas: Me deixa, que hoje eu t de bobeira. Isso tem afetividade. Percebe quanta significao pode conter essa estrofe?* bom lembrar que no estamos com foco no julgamento, mas na anlise, portanto, no estamos dizendo que este compositor melhor que aquele ou vice-versa, no estamos aqui para isso. Todo compositor tem seus bons e maus momentos e h gosto para tudo.

O outro caso:

O vazio um meio de transporte pra quem tem o corao cheio Cheio de vazios que transbordam seus sentidos pelo meio Meio que circunda o infinito, to bonito, de to feio Feio que ensina e que termina comeando outro passeio (Paulinho Moska Cheio de Vazio trecho) Gosto da sonoridade desta primeira frase. Mas, quando vou buscar algum sentido, por mais que tente, no o encontro. Ainda que a sonoridade seja agradvel, para mim est claro que no se trata de uma ferramenta sonora, alegrica ou algo do gnero; h uma sentena, pretende ser um aforismo e no apenas um jogo de palavras, um apelo rtmico ou de colagem. Em certos momentos chego a pensar que pode significar algo, mas, definitivamente, no o encontro. Se houver alguma coisa a, para mim est muito distante e j tive que racionalizar demais e perdi o restante da letra. Se tiver qualquer coisa a ver com meditao transcendental, de se buscar o vazio, isso no seria necessariamente apenas para quem tem o corao cheio, mas para qualquer um que quiser buscar esse vazio. Pode ser por ignorncia, mas no vejo outra possibilidade. Bem, apenas uma: pode ser aluso direta ao ttulo: cheio de vazio. Se for uma receita de bolo de como encher o vazio com mais vazio, ainda passa. De outro modo, no tenho como me apegar frase, no reverbera nada dentro do meu conhecimento ou sentimento. A segunda frase tambm me parece muito distante em termos de significado. vazios que transbordam seus sentidos pelo meio? No consigo me reconhecer nisso, por meio de nenhum signo, no faz sentido para mim, nem mesmo me faz danar. A terceira frase ainda menos palpvel: meio que circunda o infinito, to bonito, de to feio. O infinito feio? Ou mesmo bonito? Como isso pode se movimentar, reverberar, numa alma ou crebro humanos? Com base em que? Nem mesmo como exerccio de dialtica, pois no parte de algo reconhecido pela mente. E, finalmente, feio que ensina e que termina comeando outro passeio. Na vejo a razo dessa estrofe existir. Apenas percebo que, neste caso o artista se salva pela sonoridade, ponto em que no percebo maiores danos (mais um bom e velho semicacfato). Quem se apega a esta cano, portanto, pela msica em s, pela melodia, arranjo ou pela voz do intrprete etc; improvvel que seja pela letra e estamos falando de letra. Percebemos a diferenas relevantes de como ocupar os espaos de uma letra de msica. Como palavras inteis podem afetar o texto. Exemplos: 1 - J estou pronto pra poder partir No primeiro caso, no tem porque existir na frase a palavra poder. Se a suprimimos, nada se perde. Se a mantemos, a frase fica poluda. Se a questo for a mtrica da melodia, muda-se a mtrica ou tenta-se construir a frase de outra forma ou encontra-se alguma palavra que fortalea ainda mais a idia; mas

nunca deixar por menos. Depois de muito tentar, se no der por um determinado caminho, mesmo que esteja quase l, jogue a frase fora e tente por outro. 2 - Sei que um dia talvez eu v me arrepender. Aqui a coisa fica ainda mais perigosa, pois afeta semanticamente a idia, alm de se incorrer em grave erro gramatical. Ou uma coisa: sei que um dia vou me arrepender, ou outra: Talvez um dia eu v me arrepender. No tente impor um argumento fora. Bem, tratamos mais longamente este assunto de coerncia semntica, por acreditar que a se apresentam os problemas mais sutis, menos visveis, que requerem maior capacidade de raciocnio, alm de muita sensibilidade. E tambm a onde se invalida boa parte das letras de msica. Vale lembrar mais uma vez que os significados de uma letra devem estar coerentes com a imagem sonora, com o que a msica diz por si s. No s palavras, mas tambm determinados assuntos no cabem em determinados tipos de msica. E, por fim, para se obter bom acabamento semntico, ou de qualquer outra espcie, preciso questionar a prpria letra de todas as formas possveis, para que no haja buracos.

3 - Coerncia de ContinuidadeUma letra de msica no requer a mesma rigidez de continuidade da prosa. claro que h casos de prosa que quebram todas as regras e previses de continuidade. Mas, no caso de uma letra, no h nenhum tipo de regra quanto sua estruturao, especialmente se nos lembrarmos das possibilidades de colagens de palavras ou frases, e mesmo letras de leitura subjetiva e linguagem no linear (assuntos que veremos mais frente). Se bem que, na maior parte das vezes, preciso se ter alguma coerncia nesse sentido. Observe a seguinte estrofe: O jeito que eu te olho pra dizer do meu amor Espero que o dia seja calmo como a flor Parece que voc j se esqueceu do meu amor. Vemos a, colocados lado a lado, trs versos que no se conectam. Podem at parecer de incio que sim, pois so frases romnticas, sendo a segunda um pouco menos. Mas, ao olharmos com um pouco mais de ateno, percebemos que no so idias afins, cada uma diz respeito a coisas bem diferentes. H, como disse, letras que so construdas a partir de colagem de frases, que muitas vezes no esto ligadas semanticamente.

Aqui neste exemplo, porm, a inteno no essa e fica claro que h fragilidades quanto seqncia de pensamentos. Isso dificulta o ouvinte a compreender o motivo da brincadeira, que idias o autor est querendo passar. O material torna-se, portanto, ilgico, vago, de pouco interesse, no liga idias a outras idias. A continuidade trabalha para um suave desenrolar de sensaes, colabora para uma viagem mais fluida, sem grandes trancos e barrancos. No exemplo acima vemos rompimentos semnticos abruptos, idias dspares querendo se juntar fora. Isso tambm acontece em grande escala nas artes plsticas, entre pintores de pouco talento para as cores. Consegue visualizar os resultados? As trs frases poderiam fazer parte da mesma letra, sem problema algum, mas precisariam de complementos entre elas, que possibilitassem a conectividade das idias. preciso, portanto, ficar atento seqncia dos pensamentos. Outro exemplo: Enquanto o pensamento percorre o silncio Voc vai embora, no sabe se volta No sei se da cidade, do pas, da escola Mas difcil alcanar a pacincia

Aqui percebemos dois problemas. Primeiro, o fechamento abrupto da estrofe: mas difcil alcanar a pacincia, veio do nada, ou de algum lugar muito distante. prximo ao exemplo que vimos acima. Mas h outro perigoso deslize, muito recorrente entre compositores medianos: continuidades mal executadas, mal escritas, ainda que no ocorra nenhuma quebra semntica. Neste caso, acontece na terceira frase: no sei se da cidade, do pas, da escola. Chamaria o evento de continuidade forada. Muitas vezes isso acontece para que se consiga encaixar a letra na mtrica da melodia. Mas, uma coisa torcer e distorcer a lngua, rearranjar a gramtica em favor de solues poticas, alegorizar os sentidos, quanto a isso no h problema algum. A outra o mau uso das palavras. Dependendo do caso, a msica pode salvar esse tipo de mau uso. Corro sem hesitar Daqui pra qualquer lugar No posso mais perder tempo A favor do vento E nunca contra a mar.

No exemplo acima temos duas partes distintas da msica, a primeira anterior ao refro e a segunda, o prprio refro. Se lssemos o texto como prosa ou como poesia, ou mesmo se as frases fizessem parte da mesma estrofe, o rompimento seria incmodo, imagino. Mas neste caso, por termos duas partes distintas musicalmente, ainda que as partes venham em sequncia, h um virar de pgina que permite esse tipo de quebra e pode trazer sensao de fluidez letra. H um caso mais extremo e muito curioso: O Segundo Sol (Nando Reis) Quando o segundo sol chegar Para realinhar as rbitas dos planetas Derrubando com assombro exemplar O que os astrnomos diriam se tratar de um outro cometa No digo que no me surpreendi Antes que eu visse voc disse e eu no pude acreditar Mas voc pode ter certeza de que seu telefone ir tocar Em sua nova casa que abriga agora a trilha includa nessa minha converso Eu s queria te contar, que eu fui l fora e vi dois sis num dia E a vida que ardia sem explicao. Essa cano fez grande sucesso na voz de Cssia Eller e foi cantada e adorada por milhares de pessoas; mesmo apresentando o que poderia ser um srio problema de continuidade. Mas a que entra a msica. Observando mais atentamente a primeira estrofe, percebemos que a mesma abruptamente interrompida. O autor no termina de dizer o que comeou, para no meio da idia e logo em seguida entra com outra frase em situao bastante diferente. O que acontecer quando o segundo sol chegar? a resposta que falta. O rompimento total e fica por isso. Mas isso no impediu a cano de se tornar um hit. E no se trata de um pblico ignorante, mas at razoavelmente elitizado. Ser que ningum percebeu? Fao essa pergunta aos alunos em meus workshops. A resposta no, ningum percebeu. A msica, portanto, e s a msica, parece que deu conta de amarrar a letra. Mas este apenas um caso que deu certo; poderia dar muito errado. E ser que ningum percebeu a enrolao de palavras nesta passagem: Mas voc pode ter certeza de que seu telefone ir tocar Em sua nova casa que abriga agora a trilha includa nessa minha converso. Perguntando aos alunos, a resposta positiva, muita gente j havia percebido, mas a passagem incomodou a bem poucos. Por qu?

Porque, ainda que falte alguma semntica concreta, sobra em semntica alegrica, rtmica. H um interessante desenrolar de palavras que danam no ouvido. Isso, como dissemos anteriormente, por si s, agrega, causador de interesse. E o autor ainda termina com a palavra converso, que est conectada a outras idias do texto. H algo religioso, portanto, nessa imagem dos dois sois. Est em nosso inconsciente, est na bblia, em desenhos msticos, nas estrias mticas de praticamente todas as antigas tribos indgenas da Amrica Latina, alm de estar presente na prpria astronomia, claro. Enfim, uma imagem misteriosa, que mexe com coisas dentro de ns que nem saberamos dizer, mas isso acontece. Quando o segundo sol chegar uma idia transmitida por meio de imagem e tem grande poder de reverberao, de desdobramento dentro de ns. algo que pode ser muito atraente para o ouvinte. Tratamos neste captulo a questo da coerncia. Como demonstrado, um ponto onde podem acontecer muitos deslizes, de vrias ordens. Queremos apresentar um ltimo exemplo, que certamente deixar muita gente de cabelo em p, incluindo a muitos amigos compositores. Mas o fato que a grande maioria dos compositores medianos no consegue alcanar essa qualidade de coerncia em suas letras. Esbravejem o quanto quiser, mas a pura verdade. E os que mais torcero o nariz, so justamente aqueles que mais cometem erros nesses sentidos. Baba Baby (Kelly Key) Coitado! Coitado! Voc no acreditou, voc nem me olhou Disse que eu era muito nova pra voc mas, Agora que cresci voc quer me namorar Voc no acreditou, voc sequer notou Disse que eu era muito nova pra voc, mas Agora que cresci voc quer me namorar No vou acreditar nesse falso amor Que s quer me iludir, me enganar, isso ca! E pra no dizer que eu sou ruim, vou deixar voc me olhar S olhar, s olhar, baba Baba! Olha o que perdeu! Baba! A criana cresceu! Baba! Bem feito pra voc, ! Agora eu sou mais eu! Isso pra voc aprender a nunca mais me esnobar Baba baby, baby, baba, baba, Baby, baba

Baba baby, baby, baba, baba, baby, baba baba ba Baby baba baba BA, baby baba baba baby

Observaes: 1 A letra clara 2 Os argumentos so crveis e coerentes 3 A idia central tem a capacidade de reverberar em muita gente. 4 A letra combina com a imagem sonora 5 A letra combina com a imagem artstica da intrprete. 6 mantido o mesmo tipo de vocabulrio ao longo de toda a letra. 7 Faz-se bom uso de gria - ca condizente com o restante da linguagem 8 A letra apresenta boa continuidade, fluida. Apesar de a letra apresentar todas essas qualidades, no estamos afirmando que boa artisticamente. Mas como estamos tratando, neste momento, de aspectos puramente tcnicos, sirva a quem servir.

Vimos, at agora, importantes fenmenos que existem por detrs de uma boa letra de msica. Esses elementos, em maior ou menor grau, dependendo de cada situao, so potenciais causadores de interesse, podendo ser tambm o contrrio, se mal utilizados. Por isso, devemos lembrar a importncia do acabamento em todas as frentes at agora observadas, uma a uma. Uma boa letra de msica produto de muitas horas de trabalho, salvo em raras ocasies, com as quais no devemos contar. Mas tambm no podemos perder de vista a fluidez do sentimento, das idias que surgem do corao, e devemos sempre tomar o cuidado para no nos engessarmos com excesso de teorias. O sentido da caminhada, assim parece, sempre em direo da maior naturalidade sonora e semntica. Em outras palavras, a complexificao do procedimento em busca da simplificao do resultado. como servir aquele jantar perfeito, no qual se gastaram horas, ou at mesmo dias, em sua elaborao, e parecer ter sido produzido em minutos. Lembrando tambm que simplicidade no simploriedade e no h problema algum em se fazer letras complexas, contanto que sejam fluidas e atinjam a alma ou o corpo do ouvinte; que reverberem de alguma forma no sentimento humano, seja ela qual for, e que sejam humanamente crveis.

Captulo 6 ClarezaQual a brincadeira? Toda letra de msica uma combinao ldica de elementos, que se unem para transmitir sentimentos, sensaes, reflexes, vises etc. Porm, para que essa transmisso ocorra de fato, preciso que o ouvinte reconhea a proposio ldica apresentada, que entenda a brincadeira, para que possa brincar tambm ou tornar-se cmplice do jogo - em outros casos, como no esporte, d-se algo parecido: dificilmente voc se interessar em assistir uma partida de futebol americano pela tv, se no souber as regras do jogo. O que no quer dizer que essa informao tenha que ser mastigada, explcita; alguma indicao j o suficiente. Por exemplo: Qualquer Coisa (Caetano Veloso) Esse papo j t qualquer coisa, voc j t pra l de Marraqueche Mexe qualquer coisa dentro, doida, j qualquer coisa doida dentro mexe No se avexe no, baio de dois, deixe de manha, 'xe de manha, pois Sem essa aranha! Sem essa aranha! Sem essa, aranha! Nem a sanha arranha o carro, nem o sarro aranha a Espanha Mea: Tamanha! Mea: Tamanha! Esse papo seu j t de manh. Berro pelo aterro, pelo desterro, berro por seu berro, pelo seu erro Quero que voc ganhe, que voc me apanhe. Sou o seu bezerro gritando mame. Esse papo meu t qualquer coisa e voc t pra l de Teer Mesmo a letra sendo muitas vezes um desenrolar de palavras soltas, o autor deixa claro essa proposio: vamos brincar de desenrolar palavras, de devanear, de sentir as sonoridades obtidas a partir desse jogo de palavras, de deixar falar o intuitivo, de sentir os jogos rtmicos etc. No caso dessa letra a brincadeira est at bem explicada, j comeando pelo ttulo e tanto quanto pela frase: esse papo seu t qualquer coisa e voc t pra l de Teer. Mas nem esse tipo de explicao necessrio; na maioria das vezes, a letra diz por si s e qualquer porta de entrada basta para que o sentido da brincadeira seja reconhecido.

Esteticar (Esttica do Plgio) - Tom Z / Vicente Barreto / Carlos Renn Pense que eu sou um caboclo tolo boboca Um tipo de mico cabea-oca

Raqutico tpico jeca-tatu Um mero nmero zero um z esquerda Pateta pattico lesma lerda Autmato pato panaca jacu Penso dispenso a mula da sua tica Ora v me lamber traduo inter-semitica Se segura milord a que o mulato baio (t se blacktaiando) Smoka-se todo na esttica do arrasto Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esteti ca estetu Ca esttica do plgio-i Pensa que eu sou um andride candango doido Algum mamulengo molenga mongo Mero mameluco da cuca lel Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso Fiapo de carne farrapo grosso Da trupe da reles e rala ral Ainda devemos nos lembrar de que a msica por si s j carrega suas semnticas abstratas, j significa algo, mesmo sem uma letra. E muitas letras, mesmo a princpio parecendo no ter significado intrnseco algum, tantas vezes colaboram para exaltar a msica, a musicalidade, para explicit-la ainda mais, coisa que j podemos chamar de significado. Nesses casos especficos, da letra trabalhar exclusivamente para a sonoridade da msica, isso tambm tem que ficar claro, mesmo de forma abstrata. Mas fica mais difcil entender a proposio de uma passagem como essa: Ainda que outra manh, velha cor, lento pedao de amor. por isso que a gente fala, a saudade roubando a sala No nosso tron s entra macul. Primeiro, porque as frases parecem no se conectar entre si. tambm difcil perceber a que outro sentido mais amplo estariam conectadas. Portanto, se existir alguma inteno em comunicar algo, e deve existir, o sentido ficou muito distante; no mnimo faz com que a idia tenha que ser demasiadamente racionalizada e dificilmente este produto poder ser chamado de arte. Uma coisa no ter que deixar explcita a informao, a outra no indicar caminho algum para que o ouvinte possa entrar na brincadeira, ou essa indicao ser to distante a ponto de no poder ser compreendida pelo sentimento, ainda que o sentimento passe tambm pela razo, sem dvida. No fim das contas, por estranho que parea, a frase que tende a soar mais clara : no nosso tron s entra macul, por ser, mesmo de forma bastante abstrata, a nica que consegue indicar algum caminho; algo como: no nosso clube s entra determinado tipo de pessoa. As outras, mesmo depois de alguma racionalizao, no remetem a algo que se possa experienciar ou se apegar afetivamente.

J neste prximo caso, apesar da linguagem no linear assunto que veremos mais adiante e de versos muitas vezes non sense ou descontrudos, podemos captar sensaes e emoes, ainda que abstratas ou at paradoxais. Mesmo com suas informaes em gotas, organizadas de modo atemporal, podemos de alguma forma nos reconhecer na letra e compreender a brincadeira; o que no quer dizer que todos vo se reconhecer neste tipo de proposio. Apenas existe a possibilidade, pois h indicaes de caminhos, ao contrrio do exemplo anterior. Exemplo: Cad teu suin Marcelo Camelo Cad teu repi, quem teu padrin onde que tu to, Cad teu suin? guitarra no po, desista mole quem que te indi, cad teu suin? com que sobreno, melhor ir sain dou nem mais minu, to nem mais Ainda tem a cora, gentinha atrevi da c sua vi, da c seu suin guilhotina? eu que controlo o meu guidom! Com ou sem suin, com ou sem suin Com ou sem suin guich s de vem, da l toma no tamanha revan, cheio de vingan santinha Cecili, andou me esquecen dou rima por p, ho de ter o suin acerta esse tom, zera essa reza aumenta o vo, calma com andamen to insatisfeito, mara q venh aquel refr, ho de teu suin guilhotina? eu que controlo o meu guidom! Com ou sem suin, com ou sem suin Com ou sem suin

Captulo 7 Estruturas Poticas ExternasToda ou quase toda cano, msica, ou letra, apresenta estrutura externa reconhecvel e facilmente classificvel. Essa classificao um modo prtico de se separar as partes - A, B, C, refro, ponte, solo, especial, coda etc - a fim de facilitar a compreenso da funo de cada seo e tambm do todo. ainda importante por nos apresentar diversas possibilidades que temos ao estruturar externamente uma cano e ou uma letra, pois muitas vezes tendemos a nos

engessar em poucos caminhos. Ex: A, B, refro, talvez um C, e em menor nmero, uma coda, para finalizar. Mostraremos a seguir algumas possibilidades: Com refro: A, B, refro So mais utilizadas em linguagem de Pop e Rock, mas so tambm encontradas na MPB: Sina (Djavan) A Pai e me, ouro de mina Corao, desejo e sina Tudo mais, pura rotina, jazz Tocarei seu nome pr poder falar de amor Minha princesa, art-nouveau Da natureza, tudo o mais Pura beleza, jazz B A luz de um grande prazer irremedivel neon Quando o grito do prazer aoitar o ar, reveillon Refro O luar, estrela do mar O sol e o dom, qui, um dia a fria Desse front vir lapidar O sonho at gerar o som Como querer caetanear o que h de bom A, B, A, B, Refro Resposta (Samuel Rosa / Nando Reis) A Bem mais que o tempo Que ns perdemos Ficou pr trs Tambm o que nos juntou... Ainda lembro Que eu estava lendo S pr saber O que voc achou B Dos versos que eu fiz Ainda espero Resposta... A

Desfaz o vento O que h por dentro Desse lugar Que ningum mais pisou... Voc est vendo O que est acontecendo Nesse caderno Sei que ainda esto... B Os versos seus To meus que peo Nos versos meus To seus que esperem Que os aceite... Refro Em paz eu digo que eu sou O antigo do que vai adiante Sem mais eu fico onde estou Prefiro continuar distante...

A, refro, B, C (ou Especial): Aqui temos outra estrutura muito utilizada. Homem Primata (Tits) A Desde os primrdios at hoje em dia O homem ainda faz o que o macaco fazia Eu no trabalhava, eu no sabia Que o homem criava e tambm destrua... Refro Homem Primata, capitalismo Selvagem, Oh! Oh! Oh! Homem Primata, capitalismo Selvagem, Oh! Oh! Oh! A Eu aprendi, a vida um jogo Cada um por si e Deus contra todos Voc vai morrer no vai pr'o cu bom aprender: a vida cruel... Refro Homem Primata, capitalismo Selvage Oh! Oh! Oh! Homem Primata, capitalismo Selvagem, Oh! Oh! Oh! B Eu me perdi na selva de pedra Eu me perdi, eu me perdi... C ou Especial "I'm a cave man, a young man I fight with my hands (with my hands) I am a jungle man, a monkey man

Concrete jungle! Concrete jungle!" Outros exemplos: Um Mbile no Furaco (Paulinho Moska) / Ser (Legio Urbana) / Homem Primata (Tits) / Brasil (Cazuza). A, frase de transio (ponte), refro Neste caso no h uma parte B, apenas uma (ou duas) frase que faz a passagem do A para o Refro: Com Que Roupa (Noel Rosa) A Agora eu vou mudar minha conduta Eu vou luta, pois eu quero me aprumar Vou tratar voc com fora bruta Pra poder me reabilitar Ponte Pois essa vida no est sopa, e eu me pergunto Refro Com que roupa? Com que roupa eu vou? Pro samba que voc me convidou. * A mesma estrutura se repete no restante da letra

Refro, A, B Aqui a letra se inicia pelo refro, como se fosse uma introduo da estria. Tambm observa-se que na volta da parte A a letra modifica; mas mantida a mesma melodia e mesma mtrica. Por isso, chamamos essa parte de A (A linha). O mesmo acontece na volta da parte B, que passa a ser chamada de B. Relampiano (Lenine e Paulinho Moska) Refro T relampiano. Cad nenm? T vendendo drops no sinal pr algum T relampiano. Cad nenm? T vendendo drops no sinal pr algum E t vendendo drops no sinal... A Todo dia dia, toda hora hora Nenm no demora pra se levantar...

Me lavando roupa, pai j foi embora E o caula chora, pra se acostumar B Com a vida l de fora do barraco... Hai que endurecer um corao to fraco Pr vencer o medo do trovo Sua vida aponta a contramo... Refro T relampiano. Cad nenm? T vendendo drops no sinal pr algum T relampiano. Cad nenm? T vendendo drops no sinal pr algum E t vendendo drops no sinal... A Tudo to normal, todo tal e qual Nenm no tem hora pra ir se deitar... Me passando roupa do pai de agora De um outro caula que ainda vai chegar... B mais uma boca dentro do barraco Mais um quilo de farinha do mesmo saco Para alimentar um novo Joo Ningum A cidade cresce junto com nenm...(2x) Refro T relampiano. Cad nenm? T vendendo drops no sinal pr algum T relampiano. Cad nenm? T vendendo drops no sinal pr algum E t vendendo drops no sinal...

Ver tambm V Morar Com o Diabo (Riacho) A longo, refro diferenciado em paralelismo A letra a seguir estruturada com uma parte A, longa, seguida por refro. Isso acontece trs vezes no decorrer da letra: A, refro, A, Refro, A, Refro. No h parte B, nem introduo, nem mesmo uma coda, apenas A e refro. O refro, no entanto, diferenciado um do outro por uma tcnica chamada paralelismo, que prev a substituio de apenas algumas palavras, enquanto outras so mantidas. Neste caso deve-se observar tambm que o motz el son da estrofe preservado, as palavras mudam, mas a sonoridade das vogais mantida, a fim de no se perder a identidade sonora j apresentada ao ouvinte. Meu Mundo Ficaria Completo (Com Voc) (Nando Reis)

A No porque eu sujei a roupa bem agora que eu j estava saindo Nem mesmo porque eu peguei o maior trnsito e acabei perdendo o cinema No porque no acho o papel onde anotei o telefone que eu t precisando Nem mesmo o dedo que eu cortei abrindo a lata e ainda continua sangrando No porque fui mal na prova de geometria e periga d'eu repetir de ano Nem mesmo o meu carro que parou de madrugada s por falta de gasolina No por que t muito frio, no por que t muito calor Refro O problema que eu te amo No tenho dvidas que com voc daria certo Juntos faramos tantos planos Com voc o meu mundo ficaria completo Eu vejo nossos filhos brincando E depois cresceriam e nos dariam os netos A A fome que devora alguns milhes de brasileiros Perto disso j no tem importncia A morte que nos toma a me insubstituvel de repente dela, j nem me lembro A derrota de 50 e a campanha de 70 perdem totalmente seu sentido As datas, fatos e aniversariantes passam Sem deixar o menor vestgio Injrias e promessas e mentiras e ofensas caem fora pelo outro ouvido Roubaram a carteira com meus documentos Aborrecimentos que eu j nem ligo No por que eu quis e eu no fiz No por que no fui E eu no vou Refro (refro linha) O problema que eu te amo No tenho dvidas que eu queria estar mais perto Juntos viveramos por mil anos por que o nosso mundo estaria completo Eu vejo nossos filhos brincando com seus filhos E depois nos trariam bisnetos A No porque eu sei que ela no vir que eu no veja a porta j se abrindo E que eu no queira t-la, mesmo que no tenha a mnima lgica nesse raciocnio No que eu esteja procurando no infinito a sorte Para andar comigo Se a f remove at montanhas, o desejo o que torna o irreal possvel No por isso que eu no possa estar feliz, sorrindo e cantando No por isso que ela no possa estar feliz, sorrindo e cantando No vou dizer que eu no