uma nau à deriva: política, governabilidade e ... · territorialidade, entendido como a fixação...
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Winckler, C. R.; Faria, L. A. E. Uma nau à deriva: política, governabilidade e desenvolvimento .....
O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010
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Uma nau à deriva: política, governabilidade e
desenvolvimento no Rio Grande do Sul, desde 1980
Carlos Roberto Winckler*
Luiz Augusto E. Faria**
“Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: 'Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quere o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!’”
Mensagem (Fernando Pessoa, 1934)
Este trabalho trata da dimensão política do desenvolvimento no
plano regional. O que queremos compreender aqui é o nexo que vincula
as forças sociais e sua representação política, na forma das coalizões
criadas ao longo da história para exercer o poder sobre essa fração do
território brasileiro chamada Rio Grande do Sul, com o propósito de dar
uma direção específica ao desenvolvimento socioeconômico do Estado.
Para tanto, iniciamos com uma discussão sobre o próprio conceito de
desenvolvimento regional e suas determinações. O curso da análise
buscará levar em conta as condições que permitiram, em um momento
particular da história, a adoção de um caminho inovador e distinto do que
ocorria no resto do País, desde a última década do século XIX até os anos
40 do século XX, condições estas desaparecidas na segunda metade desse
século, quando a região foi subsumida ao desenvolvimentismo nacional.
Num segundo momento, trataremos de investigar como, em razão
da crise dos anos 80 do século passado, se abriu um novo momento
*Sociólogo, Técnico da FEE.
** Economista, Técnico da FEE.
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político marcado pela busca de uma alternativa. O choque das
contradições entre as diversas forças sociais atuantes no plano regional,
temperado pela negação do nacional-desenvolvimentismo e a ascensão do
neoliberalismo, abriu um período de disputas que adentrou a primeira
década do século XXI e segue inconcluso. Para além dos interesses das
classes e dos grupos sociais envolvidos, um dos temas centrais dessa
disputa responde pelo grau de autonomia que o novo momento guardaria
à formulação de um projeto regional. A época é a da vigência de impulsos
que vêm do mundo, da globalização, da integração no Mercosul, impulsos
que se combinam e se opõem à subordinação do desenvolvimento
regional ao movimento geral da acumulação em escala nacional. Num
movimento do mais geral e abstrato para o mais concreto, iniciamos pelo
tema região e desenvolvimento; seguimos adiante, refletindo sobre a
hipótese de o Rio Grande do Sul poder ser considerado uma região-mundo
cosmopolita; e avançamos para a discussão do significado das
administrações estaduais nos últimos 25 anos, suas iniciativas e o alcance
de seus projetos. Nesse percurso, a sociedade gaúcha passou da
originalidade norteada dos republicanos à subsunção sob o nacional-
-desenvolvimentismo, chegando à incapacidade de encontrar um rumo
próprio do período recente.
1 REGIÃO E DESENVOLVIMENTO
Há muitos anos, falamos em economia gaúcha, sociedade sul-rio-
-grandense, Brasil meridional e outros nomes que designam esse pedaço
do arranjo territorial brasileiro que tem sua localização confundida com a
unidade federada Rio Grande do Sul. Um olhar para as muitas reflexões
de intelectuais e instituições de pesquisa realizadas em um passado
recente, no e sobre o Rio Grande do Sul, por mais descuidado que fosse,
confirmaria a permanência de um tema: a especificidade e a relevância
analítica do que, em termos marxistas, poderia ser descrito como uma
formação econômico-social específica ou, na teoria dos sistemas, como
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uma totalidade. Quando a totalidade corresponde a um espaço
identificado como parte de um território nacional, como no presente caso,
estamos adentrando o terreno da análise regional. Neste trabalho,
buscamos também saber se, em relação ao objeto sociedade sul-rio-
-grandense no período histórico entre os anos de 1980 e 2009, há a
possibilidade e a pertinência de analisá-lo como uma formação social
específica, uma totalidade.
Se respondemos não à hipótese referida, adentramos um outro
campo da análise regional, o estudo não de uma totalidade, mas de
fenômenos que ocorrem em um espaço geográfico subnacional, que têm,
no entanto, suas determinações, em última instância, situadas em forças
e movimentos originados alhures. Se o lugar de origem dessa
determinação é a acumulação em escala nacional, como na posição de
Müller (1979),1 ou a acumulação em escala mundial, como defendido por
Wallerstein (2000), sua identificação vai depender, em larga medida, do
tipo específico de fenômeno em vista. No caso presente, como se trata
tanto da acumulação de capital quanto da reprodução social, seguimos a
sugestão de Lipietz, quando diz:
O desenvolvimento do capitalismo em cada país é antes de mais
nada o resultado da luta de classes internas, que acabam
esboçando regimes de acumulação consolidados por formas de
regulação apoiadas no Estado local (Lipietz, 1988, p. 34).
A questão é saber até que ponto, ou até quando, por “país”,
podemos entender um espaço subnacional como o Rio Grande do Sul.
O processo de desenvolvimento histórico desse espaço geográfico no
Cone Sul da América do Sul teria possibilitado a essa parte determinada
do que hoje é entendido como sociedade brasileira seguir uma trajetória
própria e distinta do que se passou em outras latitudes do País. Se isso
1 As ideias de Müller pertencem a toda uma tradição brasileira que teve no Cebrap e na
Unicamp seus formuladores mais conhecidos. Embora tenha adotado um referencial marxista, não deixou de ser tributária das ideias estruturalistas da CEPAL, com quem sempre dialogou na elaboração de uma crítica. Ver, por exemplo, Oliveira (1974) e Cardoso (1980).
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pode ser tomado como algo de relativo consenso, quando se olha para o
período que foi até a primeira metade do século XX, a História, desde
então, tornou problemática a assunção desse espaço geográfico como
uma totalidade sistêmica, quando visto sob a ótica das ciências sociais. No
período que abrange do advento da República, em 1889, até a Revolução
de 1930, o Rio Grande do Sul atravessou um momento histórico
extremamente rico, que muitos autores identificam como de uma
verdadeira revolução burguesa (Targa, 1984; Fonseca, 1983). Se a
tomada do poder por Getúlio Vargas após a breve guerra civil de 1930,
por um lado, possibilitou a extensão da experiência revolucionária sul-rio-
-grandense ao conjunto do País (Fonseca, 1998), por outro deu início ao
processo de perda de especificidade de nossa formação social regional, ao
inaugurar o processo de integração nacional. Toda uma rica literatura foi
produzida nas últimas décadas, em especial na FEE, questionando até que
ponto uma suposta sociedade ou economia gaúcha pode ainda ser tomada
como objeto de análise relevante.2
Mas, afinal, o que vem a ser o Rio Grande do Sul? Como qualquer
outro recorte geográfico, trata-se de um espaço construído, uma
territorialidade, entendido como a fixação de determinadas relações
sociais numa dada dimensão espacial (e temporal também). A questão
que precisa ser respondida é se esse recorte socioespacial pode, e deve,
ser compreendido como uma unidade de análise relevante que tenha uma
dinâmica própria. Se o território é um espaço produzido e a totalidade é
uma estrutura com determinações próprias, a espacialização das relações
sociais precisa identificar qual o escopo geográfico que abrange as
determinações de cada relação. Se nossa região é o Rio Grande do Sul
político, ou a sociedade sul-rio-grandense, ou a economia gaúcha,
estamos diante de três realidades sociais diferentes, objetos analíticos
diversos e com dimensões espaciais muito provavelmente distintas, sendo
2 Ver os clássicos FEE (1976, 1978), FEE (1983) e também o debate em torno deste último trabalho na revista Ensaios FEE, v. 4, n. 1 (1983).
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que, a cada uma delas, podemos, genericamente, atribuir o rótulo de
região.
A análise do fenômeno regional tem, como condição inicial de sua
realização, a necessidade de superar um viés comum às ciências sociais,
que se pode definir como nacionalismo metodológico. No que diz respeito
à dimensão espacial — e com poucas exceções, em especial a
Antropologia —, a unidade de análise geralmente se confunde com o
território do Estado nacional. Essa circunstância nos obriga a um esforço
teórico necessário de elaborar e sistematizar conceitos que sejam
ferramentas analíticas úteis para empreendermos o estudo de fenômenos
que se dão no plano que chamamos de regional. Essa é uma empresa
difícil, particularmente para a Economia: em primeiro lugar, em razão da
herança dos clássicos, que pensaram o sistema econômico como um nível
analítico pertencente à sociedade nacional. No século XX, esse viés foi
reforçado pela preferência à adoção de modelos matemáticos da corrente
neoclássica, para o que a própria metodologia de produção de
informações e estatísticas contribuiu enormemente.
Mas há também uma razão histórica para que isso seja assim. O
desenvolvimento do capitalismo na Europa foi uma das causas da
formação, no Velho Continente, do modelo político dos Estados-nação.
Durante o século XIX, o modelo foi replicado no continente americano,
como decorrência dos movimentos de independência das antigas colônias
europeias. Ao longo do século XX e seguindo adiante na virada do milênio,
essa alternativa se generalizou, com o avanço do processo de
descolonização nos demais continentes. O desaparecimento dos antigos
impérios na África e na Ásia, em grande parte aniquilados pelo
colonialismo europeu, os quais, por milênios, representaram um modelo
de organização política bastante efetivo, favoreceu mais ainda a
universalização do sistema dos Estados-nação. Além disso, outro impulso
veio da necessidade de proteção e autopreservação de grupos étnicos e
culturais ou de formações sociais específicas que veem na constituição de
seu Estado uma garantia de sobrevivência, como o mostram Bósnia-
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-Herzegovina ou Timor Leste. Mesmo os impérios que, de alguma forma,
se preservaram ou se reorganizaram, como Japão e China (ou Rússia?),
adotaram a forma de Estados nacionais.
Nosso objeto, a região, define-se como um espaço subnacional de
mesoescala: um território articulado que é o ponto de partida para uma
análise da dinâmica regional e inter-regional. É um espaço menor e menos
fechado do que o nacional, mas mais articulado e complexo no plano
socioeconômico do que os espaços locais das cidades e dos municípios.
Nesse território, concretiza-se um determinado padrão de
desenvolvimento, caracterizado por uma dialética abertura e fechamento,
a qual vai definir o grau de autonomia desse processo conformador de um
dado regime de acumulação e de uma dada modalidade de reprodução
social. No polo fechamento, a inserção (embeddedness) territorial define
definindo uma identidade e uma coesão específicas desse espaço
socioeconômico, que se plasmam em um dado arranjo institucional de
regulação. No polo abertura, um certo padrão de extroversão estabelece-
-se, quando se consolida um arranjo de trocas e vinculações externas.
Nossa hipótese de trabalho, a qual, de alguma forma, é um
pressuposto assumido pelo conjunto da pesquisa da FEE, é a de que a
unidade espacial Rio Grande do Sul tem relevância analítica para as
ciências sociais, particularmente para a Economia. E essa unidade
corresponde à dimensão aqui tratada como região, um espaço apropriado
por uma articulação de relações sociais, que, por sua vez, se
interconectam e recebem a influência ou até têm suas determinações
vinculadas às relações que se materializam no espaço nacional brasileiro.
E, por seu turno, as relações sociais que têm suas causalidades definidas
nas instâncias nacionais são sobredeterminadas por forças que operam
numa escala transnacional.
Iniciemos, então, com as definições necessárias para nos
aproximarmos do objeto formação social sul-rio-grandense, objeto
pertencente à categoria região. Essa categoria corresponde, como dito, a
um território de mesoescala, entre o plano nacional e o plano local. O que
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buscamos conhecer nesse objeto é a dinâmica que, nas últimas três
décadas, definiu as características de seu desenvolvimento. O que aqui
entendemos por desenvolvimento não se resume a um processo de
mobilização dos recursos existentes no plano regional para o
enfrentamento competitivo com outras unidades similares, a que se
agregariam as respostas às pressões surgidas nos ambientes nacional e
global e, também, a reação aos movimentos originados no plano local.
Neste trabalho, conceituamos região como um espaço de entrelaçamento,
em que diferentes relações sociais, cada uma com sua dimensão espacial
própria, se articulam para formar uma cristalização espacial única, uma
fixação espaçotemporal materializada num conjunto de estruturas sociais
que se enraízam no espaço e formam o território (Jessop, 2004; Novy,
2002; Swingedouw, 2004).
A abordagem que adotamos é a do institucionalismo territorial
(Jessop, 2004). Seu ponto de partida é a percepção de que as trajetórias
regionais são sensíveis à história e à geografia, os acontecimentos
passados condicionam o presente e seu futuro, os quais estão inscritos em
uma determinada dimensão espacial. Essa trajetória define um processo
de desenvolvimento que é multidimensional em suas determinações.
Tanto a escala regional como as relações inter-regionais importam; é da
natureza do desenvolvimento que se configure uma divisão inter-regional
do trabalho. Outro elemento central nesta abordagem é o do poder, pois o
Estado está necessariamente inserido na dinâmica econômica, política e
socioespacial, sua ação modela as estruturas regionais. Como lembra
Massey (1984), “[...] as estruturas espaciais são estabelecidas,
reforçadas, combatidas e transformadas através de embates econômicos e
políticos travados por empresários, trabalhadores e líderes políticos”.
Dizer que o desenvolvimento é um processo multiescalar significa
dar conta de que a ordem territorial que dele resulta é um arranjo
espaçotemporal que estabiliza a acumulação de capital em um
determinado período por uma dada organização institucional, assegurando
a reprodução social. Esses arranjos plasmam alianças sociais regionais
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que estão permanentemente sob tensão de fluxos de fora, na forma de
investimento, relações de comércio e conexões produtivas com
encadeamentos transregionais. Esses processos sociais, em seus
diferentes desdobramentos, estão permanentemente plasmando e
reconfigurando as relações de poder que se alimentam das disputas
econômicas e políticas em que o entrechoque de atores coletivos vai
produzindo um caminho de desenvolvimento para esse spatial fix.
Podemos identificar três níveis de determinação que dão forma à
fixação espaçotemporal regional. Em primeiro lugar, está a dinâmica
espaçotemporal da acumulação do capital. A definição de uma estratégia
regional de desenvolvimento implica o favorecimento diferenciado de
interesses de classe e grupos econômicos. A dicotomia “para dentro” ou
“para fora” implica uma escolha que altera as relações de poder regionais,
na medida em que são diferentes os benefícios auferidos pelos diversos
grupos em uma ou outra opção.
O segundo nível responde pela dinâmica espaçotemporal da
reprodução social, que põe no meio da cena o outro da acumulação, o
trabalho. Aqui, os temas da identidade regional, da permeabilidade
cultural, bem como as questões de raça, de gênero, de exclusão e/ou
inclusão, enfim, assumem uma importância central, pois a possibilidade
da reprodução social pressupõe sustentabilidade e um grau de
estabilidade sociopolítica que garanta a preservação dos principais
agentes. Também, por isso, o tema da preservação ambiental faz-se
presente. Nesse contexto, abre-se espaço para o acesso aos centros
decisórios de agentes sociais, subalternizados pelas relações de produção
capitalistas hegemônicas. Grupos de pressão e organizações sociais de
trabalhadores, ambientalistas, camponeses, sem-teto, sem-terra e outros
“sem” podem influenciar decisivamente a seleção das políticas e as opções
da sociedade. Esses dois níveis são decisivos na definição da composição
do bloco no poder.
No plano do que, em termos marxistas, chamaríamos
superestrutura, a geometria escalar da regulação e da governança, que
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historicamente plasmou a capacidade de o bloco no poder regional
controlar e dirigir o processo de acumulação do capital e a reprodução
social, vem modificando-se por diferentes processos. Num primeiro
momento, foi a integração nacional, obra inaugurada pela ascensão dos
gaúchos na cena política brasileira com a Revolução de 1930 e que
terminou por mudar, do plano das regiões para o plano do País, a escala
em que se dava o processo de acumulação de capital e em que se
assegurava a reprodução social. Um segundo momento faz concomitantes
dois processos, a integração regional sul-americana (Mercosul, Unasul) e
a globalização e a internacionalização econômicas com seu viés
financeirizado. Nesses dois momentos, determinações de fora passaram
não apenas a se sobrepor aos desígnios do bloco no poder regional como,
inclusive, a modificá-lo, sob a forma da interferência de agentes externos
nos processos regionais (por exemplo, a ação dos conglomerados
financeiros ou das grandes empresas industriais paulistas), do ingresso
desses agentes no tecido socioeconômico sul-rio-grandense (por exemplo,
a Petrobrás ou, mais recentemente, a GM), ou da desterritorialização de
agentes regionais que alcançaram incorporar-se a redes nacionais,
continentais ou mundiais (por exemplo, os grupos Randon e Gerdau), ou
que, por processos de fusão ou aquisição, se internacionalizaram (a
exemplo dos grupos Renner, SLC-Johns Deer e Supermercados Nacional-
Wallmart).
O entrelaçamento desses três planos dá forma a um padrão de
desenvolvimento. Seu desenrolar tem as características de um processo
de dependência do caminho (path dependency), no sentido de as opções
do passado limitarem as escolhas definidoras das possibilidades futuras.
Mais ainda, as contradições sociais em sua dinâmica resolutiva
desenrolam-se num processo que se pode descrever como path shaping,
desenho do caminho. Se é certo que os acontecimentos pregressos pré-
-selecionaram as opções possíveis para as escolhas do tempo presente,
também o futuro resultará da reconfiguração das relações de poder em
processo e está, em larga medida, inscrito nas idealizações que se
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materializam em projetos e bandeiras de luta adotados por classes e
frações de classe que disputam a hegemonia da sociedade. O grau de
autonomia do desenvolvimento regional vai depender do poder relativo
das forças sociais regionais no enfrentamento das pressões e no
estabelecimento de alianças com agentes extrarregionais, sejam
nacionais, sejam internacionais.
2 O RIO GRANDE DO SUL É UMA REGIÃO-MUNDO? UMA RESPOSTA
EM DOIS TEMPOS
Fenand Braudel (1998) cunhou o termo região-mundo (région
monde), para identificar certos espaços geográficos que se apresentaram
como locus especial de entrelaçamento das redes de longa distância que
conformavam a extensão geográfica do que chamou economia-mundo
(économie monde). Uma economia-mundo é uma trama de interconexões
entre atividades produtivas e comerciais distantes, mas interdependentes,
e que conformam um território no sentido de um espaço socioeconômico
fechado. Tais espaços são lugares especiais de transposição não apenas de
fluxos de valores econômicos, mas de costumes, hábitos, conhecimento e
convicções ideológicas, culturais, religiosas e de valores morais.
Por essa razão, podemos afirmar que, nessas regiões-mundo, se
cria e consolida um espírito do mundo, compartilhado pelas sociedades
locais, regionais ou nacionais de diversas origens ou matrizes
socioculturais, mas representativas dos polos mais dinâmicos sob a
perspectiva histórica da economia-mundo. O espírito do mundo é o
movimento ideológico e cultural que conduz a transformação das
estruturas socioeconômicas e o arranjo institucional da regulação no
sentido de promover a acumulação de capital e assegurar a reprodução
social, preservando a coerência entre regulação e acumulação, que
definem um modo de desenvolvimento bem-sucedido historicamente. O
liberalismo livre-cambista foi o espírito do mundo durante o período da
hegemonia britânica na segunda metade do século XIX e no começo do
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século XX. Nas regiões-mundo da periferia do sistema, como Buenos
Aires, Rio de Janeiro ou Montevidéu, as elites compartilharam esses
valores como a direção necessária para ordenar a governança
estabilizadora do estilo de desenvolvimento que adotaram e que fazia o
processo de acumulação na periferia ser não apenas dependente, mas
comandado pelos impulsos oriundos do centro hegemônico. Esse modelo
lhes trazia, como contrapartida, as benesses de um regime
agroexportador subordinado à expansão industrial da Inglaterra, que lhes
permitia apropriar-se de uma parcela do excedente econômico. Se, para
sua geração, labutavam os trabalhadores na produção destinada ao
mercado externo, o excedente apenas se realizava nos fluxos do comércio
internacional, onde se convertia em dinheiro.
Na fase de declínio de sua hegemonia, o liberalismo inglês viu-se
desafiado e finalmente derrotado por um outro movimento ideológico
contraposto, inspirador de transformações políticas profundas, ao ponto
de mudar o lugar de algumas dessas regiões periféricas na divisão
internacional do trabalho. Com grande influência do pensamento
positivista francês, mas também sob outras roupagens progressistas e
cientificistas e com forte viés autoritário, os novos valores cosmopolitas
encontraram uma tradução regional ou nacional isolacionista e
protecionista, adepta de um Estado forte, indutor e regulador de um
desenvolvimento não só autônomo como — às vezes, como no caso
alemão — desafiante à posição hegemônica do Reino Unido.
Nesse espaço meridional, o progressismo positivista veio dividir o
bloco no poder em Buenos Aires e Montevidéu, onde se iniciaram os
processos de modernização social e econômica que estão na raiz do
desenvolvimentismo latino-americano, nas primeiras duas décadas do
século XX (Faria, 2004).3 O caso brasileiro foi diferente e mais retardado
3 No Uruguai, foi um dirigente do oligárquico Partido Colorado, José Batlle, que iniciou o processo de modernização a partir de 1904. No caso da Argentina, Hipólito Yrigoyen, da UCR, foi eleito, em 1916, como oposição à oligarquia rural. Ambos representaram o ingresso da sociedade urbana e industrial e das classes médias no protagonismo político de seus países.
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no tempo, tendo sido inaugurado após 1930. Esse atraso tem a ver com a
grande resistência da oligarquia agroexportadora a qualquer alteração do
status quo, a qual bloqueou a possibilidade de mudança por meios
políticos e institucionais. O peculiar da forma brasileira foi a
impossibilidade de uma opção progressista ascender ao centro nacional do
poder (Rio de Janeiro como locus de seu exercício e São Paulo como sua
fonte) até que tal desfecho fosse promovido, manu militari, por uma
insurgência revolucionária. Entretanto a organização política federalista da
República, nascida como forma engenhosa de abrigar as diferenças entre
as oligarquias regionais, deu oportunidade ao surgimento de um processo
político absolutamente novo no espaço subnacional sul-rio-grandense.
A partir da Constituição de 1891 e consolidado com a vitória sobre
o levante federalista de 1893, teve início um ciclo histórico extraordinário
que transformou o Rio Grande do Sul numa região-mundo cosmopolita e
progressista, precursora do que só foi possível no plano nacional sob a
força das armas na Revolução de 1930. As mudanças assemelhavam-se
ao batllismo uruguaio e ao radicalismo argentino e tiveram como
principais características um aspecto redistributivo, principalmente pela
reforma tributária (imposto sobre a propriedade); pela ascensão do
Estado ao comando do processo de desenvolvimento, com estatizações na
área de infraestrutura (ferrovias, portos); por, de alguma forma, tratarem
de incluir as classes trabalhadoras na vida social, com o reconhecimento
de suas demandas e a proteção aos pequenos proprietários rurais; e por
alcançarem alijar a oligarquia exportadora pastoril da posição hegemônica
mantida até então sobre a política regional. Além de uma forte presença
das classes médias, a participação de empresários do comércio e da
indústria, com fortes vínculos com a agricultura familiar da zona colonial,
e um apoio pouco efetivo politicamente desses pequenos agricultores, os
quais, por serem imigrantes, em geral não votavam, conformaram o novo
bloco no poder.
Se, num primeiro momento, o regime autoritário implantado logrou
impor a exclusão da oligarquia pastoril e avançar no processo de
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transformação radical do modo de desenvolvimento regional, a resistência
desse setor acabou por provocar uma guerra civil, pacificada através do
Acordo de Pedras Altas, em 1923. A partir de então, inaugurou-se um
período novo, marcado pela conciliação e pelo retorno da oligarquia ao
bloco no poder.4 Os interesses dos agropecuaristas exportadores voltaram
a receber atenção das autoridades estaduais. Apesar desse resultado,
podemos defender a ideia de que, nisso que se configurou como um
primeiro tempo da História regional, a experiência sul-rio-grandense pode
ser interpretada como a de constituição desse território como uma região-
-mundo.
O segundo tempo de nossa análise é o tempo presente, tempo
produzido pelo percurso histórico nacional-desenvolvimentista, quando —
subsumido ao processo de acumulação e reprodução social que passou a
se desenvolver em escala nacional — o Rio Grande do Sul foi perdendo
suas especificidades. Mais ainda, como ficou escancarado na crise de
1981, o próprio caráter nacional do desenvolvimentismo precisa ser
relativizado (Furtado, 2003) não apenas pela alienação ao exterior de uma
parcela importante do poder decisório sobre a economia brasileira, mas
pela dependência financeira em razão da permanência da fragilidade
externa em todo o período, o que fez sua crise assumir a forma de crise
de endividamento internacional. Integração nacional e internacionalização
são as marcas a descaracterizar as “excelências regionais” gaúchas, para
citarmos uma expressão de Braudel (1998).
Nesse novo tempo, o retorno da questão regional surge de forma
difusa no debate intelectual, nos debates legislativos, no bojo do debate
sobre incentivos fiscais, sobre a crise fiscal e sobre o federalismo
4 Fenômeno semelhante ocorreu no plano nacional e em prazo bem menor como resultado do acordo que pôs fim ao levante paulista de 1932. Se, por 30 anos, os republicanos gaúchos controlaram sozinhos o Estado regional, sua tomada do Governo Federal foi bem mais difícil, e a conciliação teve de ser realizada muito de início. Isso não impediu que uma expressiva modernização tivesse lugar, mas sempre pagando um preço à permanência da oligarquia rural no bloco no poder. Permanência esta esvaziada de poder econômico pelo próprio novo padrão de desenvolvimento então iniciado, mas encruada nas estruturas de poder até hoje.
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brasileiro e decorre de mudanças nos ambientes mundial e brasileiro que
afetaram profundamente a dinâmica regional, colocando novos problemas,
que escapam, em certa medida, da forma como se pensava, até então, o
processo de integração nacional. Os elementos estruturais que afetam a
dinâmica regional são: (a) o processo de internacionalização do capital e
das finanças, que refaz a lógica de gestão nacional relativamente
soberana, vigente até meados dos anos 70; (b) a crise do regime de
acumulação; e (c) a crise do Estado nacional e de suas bases de
financiamento.
A nova dinâmica regional reflete-se em inúmeros debates, entre eles
os referentes à concentração e/ou desconcentração, à centralização e/ou
descentralização; ao tema da competitividade espacial seletiva de
investimentos; ao tema das diferentes frações burguesas e suas
conexões, ou não, com circuitos internacionais no espaço regional; e ao
tema da fragmentação do território nacional, bem como à questão dos
movimentos sociais e identitários de diferentes colorações.
A dialética nacionalização e/ou internacionalização afetou
profundamente os interesses organizados no plano regional. A oligarquia
pastoril exportadora transformou-se em caudatária do processo de
crescimento do mercado interno, decorrente da urbanização e da extensão
do regime de trabalho assalariado. A agropecuária colonial passou por um
processo de diferenciação intenso, internacionalizando-se, inicialmente,
através da produção de soja e, mais adiante, pela notável expansão da
avicultura e da suinocultura, embora tenha mantido seu foco tradicional
na produção de alimentos para o mercado interno.5 O fenômeno hoje
chamado de agronegócio resultou tanto dessa diferenciação da
agropecuária colonial, em que um contingente de agricultores alcançou
ascender economicamente, quanto de mudanças trazidas pelos chamados
granjeiros, empreendedores de origem urbana que investiram em
lucrativos negócios rurais, e pelos arrozeiros, que, na região central do
5 Ver De colonos a agricultores familiares: uma trajetória de resistência no volume 2 desta obra.
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RS, foram pioneiros daquela que foi a primeira cultura da chamada
agricultura empresarial sul-rio-grandense. Esse processo alcançou um
novo patamar de profundidade após a abertura e a desregulamentação
dos anos 90, que provocaram o virtual desaparecimento de um sistema de
preços nacional para as culturas agropecuárias.6
O capital industrial manteve seu processo de acumulação em
associação subordinada à indústria concentrada em São Paulo, como
fornecedor principalmente de bens intermediários e, nesse processo,
perdeu relevância no cenário brasileiro (FEE, 1976). A crise e a abertura
neoliberal que se seguiram mudaram o quadro na direção da
internacionalização subalterna.7 Primeiro, como parte do esforço
exportador iniciado na segunda metade dos anos 70, houve uma reação
ao desequilíbrio do balanço de pagamentos e à impossibilidade de
continuar a financiá-lo com recurso ao endividamento. Disso, resultou o
grande crescimento do segmento de couro e calçados, que chegou a ser o
mais importante da indústria regional nos anos seguintes. A partir de
1990, a internacionalização se aprofundou como uma reação à intensidade
da crise no âmbito regional.8 O processo de fusões e aquisições traduziu-
-se em redução da participação de proprietários gaúchos no comando do
capital industrial e comercial aqui localizado, principalmente pelo ingresso
de capitais estrangeiros, bem como pela crescente importância desses
capitais nos novos investimentos realizados no Estado. O fenômeno foi
particularmente intenso nos ramos metal-mecânico, redes comerciais e
supermercados, infraestrutura, energia e comunicações, produção de
commodities industriais e beneficiamento de produtos agropecuários.
Ao par dessa extroversão ainda maior da economia regional, os anos
90 deram lugar a uma grande mudança da relação entre o Estado regional
6 Ver O agronegócio gaúcho entre os anos 1980 e 2008 no Volume 2 desta obra
7 Ver Reestruturação da indústria gaúcha sob a ótica da reordenação da economia mundial e também A evolução dos investimentos diretos de empresas gaúchas no exterior no volume 2 desta obra.
8 O desempenho da economia do RS ficou abaixo da média nacional por todo o período 1980-99. Ver Economia gaúcha na visão das contas regionais — 1985-2009 no Volume 2 desta obra.
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e a economia. Um primeiro passo foi dado ainda na década de 80, com o
comprometimento do Tesouro Estadual no movimento de criar subsídios
ao setor privado, tanto para mitigar os efeitos da crise, quanto para
favorecer a internacionalização. A crise fiscal aprofundou-se como
consequência e, mesmo com a ampliação da base tributária em razão da
nova Constituição Federal, tornou-se crônica. O segundo passo foram as
privatizações e a mudança do marco regulatório, que transferiram para
capitais privados o controle de boa parte da infraestrutura no Estado,
através de contratos externamente vantajosos para os concessionários.
Desses dois movimentos, resultou uma importante mudança de posições
relativas dentro do bloco no poder, com a ascensão de novos grupos (por
exemplo, comunicações) e o declínio de alguns tradicionais (por exemplo,
calçados).
Ao final do processo, o desmonte do Estado desenvolvimentista era
quase absoluto. Diferentemente do que se dera no plano federal, a
capacidade de intervenção, já reduzida pela ditadura militar
centralizadora, ficou ainda mais comprometida — e não que os grupos
dominantes tenham relegado à irrelevância o exercício do poder no plano
regional, como comprova o continuado crescimento do volume de
subsídios.9 O que o a crise financeira internacional revelou foi a
interpretação equivocada do espírito do mundo em sua leitura neoliberal.
Mas isso não foi privilégio das elites gaúchas, cujo pecado maior foi seu
menor grau de compreensão de seus próprios interesses a longo prazo.
Sua adesão quase unânime a um liberalismo radicalizado10 serviu como
ideologia dessa segunda rodada de perda de importância econômica e
social relativa, decorrente da internacionalização. Segunda, pois a
primeira havia sido a causada pela integração nacional.
Na cena internacional, desenrolava-se a escalada da
contrarrevolução neoliberal, a qual buscava definir um novo conteúdo
9 Ver A crise das finanças públicas gaúchas no Volume 2 desta obra.
10 Ver Novas formas de ação política do empresariado gaúcho nas últimas décadas no Volume 3 desta obra.
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para o espírito do mundo na era da globalização. Ao neoliberalismo,
confrontava-se o que veio a se constituir como uma nova referência para
a esquerda internacional, desorientada desde a queda do Muro de Berlim,
o movimento por alguns chamado de alter-globalização. Organizado sob a
bandeira de “Outro mundo é possível”, em oposição ao “Não há
alternativa” formulado pela líder dos conservadores britânicos Margareth
Thacher, uma grande rede internacional de organizações da sociedade
civil constituiu-se em agente político internacional. Símbolos da
globalização, o Fórum Econômico Mundial de Davos e sua principal
criatura, a liberalização comercial e financeira mundial, tendo como ícone
a OMC, foram escolhidos como seus alvos principais, denunciados numa
onda de protestos mundo afora.
Como eco desses movimentos, à época, instaurou-se, no Rio Grande
do Sul, um confronto político que dividiu a sociedade quase ao meio. Sua
manifestação mais aguda foi a oposição entre petismo e antipetismo,
iniciada em 1989, quando Olívio Dutra inaugurou sua gestão à frente da
Prefeitura de Porto Alegre, sucedida por quatro mandatos consecutivos
nos quais representantes do Partido dos Trabalhadores ocuparam o Paço
dos Açorianos. A experiência da Administração Popular na capital sul-rio-
-grandense foi apropriada por esse processo, que a apresentava como a
prova de que havia lugar para alternativas. Não por outra razão, Porto
Alegre foi escolhida para sediar o Fórum Social Mundial, primeiro evento
de uma sequência que vem articulando a continuidade desse movimento
mundial desde então.
Nesse processo histórico, um participante sobressai-se pela
importância, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Originado das mobilizações pela reforma agrária no interior do RS, cujo
marco é o legendário acampamento da Encruzilhada Natalino, o MST é
parte central da proposição do espírito do mundo alternativo que ganhou
contornos mais precisos na experiência de democracia participativa em
Porto Alegre. A essa emergência de novos atores na cena regional,
levantou-se uma contraposição com contornos radicalizados,
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principalmente em sua resistência às iniciativas de transposição da
experiência porto-alegrense para o plano do Estado entre 1999 e 2002.
Compreender essas circunstâncias leva nossa análise a dar conta do
papel cumprido pela administração pública na solução e na condução
dessas contradições. Para tanto, na seção a seguir, buscamos uma maior
aproximação da etapa recente do desenvolvimento regional, analisando o
significado e o alcance das políticas públicas adotadas no período como
resposta à crise do desenvolvimento e na busca de alternativas para
superá-la. Nesse itinerário, os projetos e as iniciativas das sucessivas
coalizões políticas que ocuparam o Palácio Piratini no período fornecem
um mapa para o entendimento dos interesses contemplados e daqueles
preteridos nas diversas tentativas empreendidas. Mais ainda, para além
das opções políticas, a própria efetividade das propostas no sentido da
capacidade de significar uma alternativa historicamente possível também
deve ser considerada, mais ainda pela presença, ao longo de todo o
período, de uma insuficiência crônica de financiamento do setor público,
raiz de um endividamento crescente e de difícil gestão.
3 O ESTADO REGIONAL E A CONDUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
A crise econômica, fiscal e financeira do Estado brasileiro,
persistente desde meados dos anos 70, as tentativas de sua
reestruturação, a globalização econômica, as novas formas de inserção na
economia internacional e o processo de descentralização entre diferentes
esferas de poder são temas que passaram a ser incorporados pelas
classes dominantes regionais e por suas elites dirigentes nas instituições
políticas e econômicas. Os efeitos da incorporação desses temas são
claros na dimensão subnacional, aparecendo na redefinição das formas de
intervenção do Estado central, no aumento de responsabilidades locais,
com o processo de descentralização, e na abertura econômica, que força a
discussão, nesse espaço, de alternativas de desenvolvimento por parte
das elites locais.
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Os projetos regionais não podem ser vistos sob uma perspectiva
autárquica, mesmo porque, a partir da Revolução de 1930, se efetivou
uma centralização real do poder na União Federal, que desencadeou uma
relativa integração econômica do espaço territorial nacional. Se, como já
mencionado, na chamada República Velha havia a coincidência dos
espaços jurídico-constitucionais com os espaços de dominação
socioeconômica e política, o que fazia desses espaços regionais territórios
no sentido de seu fechamento, no pós 1930 essa ordem territorial se
alterou. Emergiu, então, uma constelação de estados com um centro
estabelecido, cujo motor econômico está localizado na Região Sudeste,
particularmente em São Paulo, e teve início a modernização capitalista,
que não segue um curso relativamente homogêneo, do centro econômico
para a periferia. Não obstante isso, a crescente nacionalização da
economia brasileira parecia justificar o discurso da progressiva irradiação
do chamado modelo paulista. Mercados regionais foram, pouco a pouco,
integrados por meio da política de substituição de importações. O projeto
industrialista impôs-se no País a partir de então, originando o Estado
desenvolvimentista, que, sob diferentes formas políticas, sobreviveu até
os anos 80. Sob a égide desse Estado, no período democrático e com
cores populistas, procurou-se incentivar a integração social e territorial,
veículo da dominação do capital monopolista sobre os diferentes espaços
regionais que foram sendo convertidos em periferia do centro hegemônico
do País, São Paulo.
3.1 A elite econômica e o Estado regional
A história da industrialização no âmbito regional presidiu a
construção de uma perspectiva industrialista hegemônica no plano das
ideias, mesmo que efetivada sob um pacto conservador com as frações
oligárquicas rurais. Definido na década de 20, após processo
revolucionário cruento, no Rio Grande do Sul, o pacto conservador
emprestou ao imaginário social a falsa representação de uma identidade
agrária absolutamente divorciada da realidade socioeconômica. O Estado
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acompanhou o mesmo processo de mobilidade populacional que
transformou o Brasil, entre os anos 40 e 80, de uma sociedade agrária em
uma sociedade urbana,11 viu, nesse período, a participação da
agropecuária no PIB declinar aceleradamente, enquanto a indústria
alcançava um peso acima da média nacional.12
Na República Velha — sob a condução de elites modernizantes de
inspiração positivista, portanto antiliberal, como visto —, o Rio Grande do
Sul antecipara em seu espaço socioeconômico projetos políticos de
intervenção estatal indutora do desenvolvimento industrial. Levando-se
em conta o que foi referido na primeira seção, isto é, que estruturas
econômicas, sociais e políticas possuem a resistência do tempo, é a
sedimentação desses processos que condiciona o presente. É nesse
sentido que se compreende o quanto o desenvolvimentismo possui fundas
raízes no Rio Grande do Sul e, também, como o projeto modernizante
regional se articulou à economia nacional, processo que teve como
resultado a especialização da economia gaúcha na produção de bens
intermediários. O caminho que se abriu, se se revelou dependente dos
acontecimentos passados, conduziu a uma condição subalterna o espaço
regional, não desejada pelos dirigentes do processo, na medida em que,
como resultado, ficou reduzida sua capacidade de poder definir o percurso
do caminho à frente.
Em meados dos anos 50, o crescimento de disparidades
intrafederativas era visto como um problema nacional. A criação da
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1956,
foi uma tentativa de reverter o processo centrípeto de quebra da
Federação. Todavia já aí não havia coincidência entre regiões e
administração política, instaurara-se uma nova geografia, tratava-se, de
fato, de uma federação de regiões. Esse processo levou à criação do
11 Ver Tendências demográficas e perspectivas futuras da população Gaúcha ,no Volume 3 desta obra.
12 Ver Economia gaúcha na visão das contas regionais — 1981-2009 no Volume e desta obra.
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Conselho de Desenvolvimento do Sul (Codesul) e do Banco Regional de
Desenvolvimento (BRDE), em 1961, instituições voltadas para o
desenvolvimento da Região Sul. Nessa época, no RS, discutia-se a
estagnação econômica e social, uma vez que o Estado vinha perdendo
participação na economia nacional. Para a superação dessa situação, era
vista como imprescindível a ação da União.
A crise de 1964 não deu solução de continuidade a essa articulação,
limitando-se a afastar os transbordamentos populares indesejados,
mantendo a autonomia dos grupos dominantes. Porém, ao mesmo tempo,
ao aprofundar o grau de concentração e centralização do capital, produzia
limites ainda mais estreitos ao exercício dessa autonomia. Foi, pois, no
período autoritário que ocorreu o processo de desregionalização da
economia, sob a égide do “capital financeiro em geral”, conduzido por
mecanismos fiscais e financeiros concentrados na União e pelo papel
incentivador das estatais federais, o que provocou, paradoxalmente, um
processo relativo de desconcentração industrial e de redefinição de pactos
políticos regionais, continuado mesmo no decorrer da crise dos anos 80.
O esgotamento da forma de Estado desenvolvimentista, dada a crise
no regime de acumulação13, exigiu, por parte das frações hegemônicas, a
redefinição do tripé capital monopolista estrangeiro, capital nacional e
setor estatal, que sustentava o Estado até então vigente, o que conduziu,
como consequência, à reorganização da sua estrutura e de sua incidência
sobre as formas institucionais, com evidentes repercussões no plano
regional. Desde o primeiro momento, o capital financeiro teve não apenas
preservada como ampliada uma posição dominante no bloco no poder
nacional, situação que a financeirização global só veio a reforçar no
período subsequente.
Em terras sul-rio-grandenses, o processo de repactuação entre
diferentes frações burguesas foi mais tardio e cristalizou-se com o
13 A crise é multivariada, mas tem como eixos centrais a queda do crescimento pelo esgotamento do processo de substituição de importação e a fragilidade externa resultante do excesso de endividamento. Em síntese: o padrão de crescimento tornou- -se incapaz de se reproduzir endogenamente.
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governo de Antônio Britto, do PMDB, entre 1995 e 1998, estreitamente
ligado aos setores empresariais locais, representados pela Federação das
Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS) e pela Federação das
Associações Comerciais do Rio Grande do Sul (Federasul), que abrange o
setor comercial e o de serviços, e também aos meios de comunicação e à
imprensa. A FIERGS tivera participação discreta nos debates, nos anos 70,
quando da crise do regime militar, sustentáculo do Estado
desenvolvimentista pós 1964, porém, nos 80, procurou escapar de seus
limites meramente corporativos de defesa de interesses específicos. Nesse
sentido, foram criados o Instituto de Estudos Empresariais do Rio Grande
do Sul (IEE), com a finalidade de aproximar a burguesia gaúcha do ideário
neoliberal, e o Instituto Liberal, voltado à divulgação junto ao público dos
princípios neoliberais (Gros, 1990).
A FIERGS procurou articular a defesa de seus interesses com outras
entidades representativas da burguesia gaúcha: a Federasul e a
Federação da Agricultura (Farsul), representante dos grandes
proprietários rurais — tradicionais e aqueles ligados ao “agribusiness” —,
visando renovar, sob os novos tempos, o pacto conservador regional.
Nesse sentido, buscou influir no processo constituinte que se abriu com a
redemocratização, agindo, juntamente à Confederação Nacional de
Indústria (CNI), nos capítulos atinentes aos direitos trabalhistas e sociais.
Sua opinião era a de que a ampliação desses direitos então debatida era
anacrônica e não compatível com a modernidade. Posteriormente, tentou,
na reforma constitucional de 1993, tornar a Constituição mais próxima aos
interesses empresariais. Sua capacidade de mobilização foi exemplar, ao
organizar o Movimento pela Liberdade Empresarial, que foi criado em
1987 e reuniu 105 entidades representativas de diferentes setores
empresariais em torno da pauta da defesa irrestrita da “livre iniciativa”.
É desse período a formação do Mercosul — o Tratado de Assunção
foi firmado em 1991 —, a qual foi recebida com muitas reservas. Em que
pese ao discurso favorável à abertura da economia, ao afastamento do
Estado da economia e a uma maior inserção na economia mundial, houve
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um movimento de rejeição e desconfiança, tendo em vista a percepção de
que interesses importantes pudessem ser afetados pela abertura do
mercado local aos vizinhos sul-americanos. Tal atitude não foi apenas
dirigida ao Mercosul, mas também aos demais estados federados, na
medida em que a integração nacional também ganhava novo ímpeto
dentro da reconfiguração de interesses provocada pela crise. Nesse
movimento, explicita-se ser o neoliberalismo mais um ideário que apenas
solda ideologicamente diferentes interesses e menos uma prática efetiva,
pois a posição das diversas frações da burguesia gaúcha frente a um
mercado competitivo pode variar, oscilando entre pressões no sentido de
medidas protecionistas ou posições favoráveis ao livre comércio, a
depender da capacidade de cada setor (Cadoná, 2002).
O Estado desejado pela burguesia gaúcha foi, portanto, o Estado
que não se colocasse como obstáculo à livre iniciativa e que fosse “leve”,
como se evidenciou nas propostas de revisão constitucional em 1993,
quando concentrou suas críticas no “peso da carga tributária” e no “custo
Brasil” dos direitos trabalhistas e sociais, vistos como um herança
retrógrada. Mas também deveria ser o Estado capaz de promover e
favorecer seus interesses, portanto, com margem de intervenção efetiva
na economia. No centro disso, o orçamento público mantém-se como
objeto de cobiça.
Não bastasse a crise do Estado desenvolvimentista e a necessidade
de se realizar uma reforma de Estado adequada às novas implicações da
acumulação e da territorialidade, a forma de atuação do Estado regional
como ente político tornara-se mais complexa após a Constituição de
1988, dada a presença, no cenário político, de questões referentes ao
plano do poder local, cujo raio de intervenção fora ampliado pela
Carta14 — o municipalismo sempre foi expressivo no Rio Grande do Sul —,
além da participação civil nas demandas regionais, participação, de resto,
reconhecida pela Constituição. A isso se acrescem reivindicações sindicais,
14 A nova constituição, pela primeira vez na história do País, reconheceu os municípios como entes da Federação.
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partindo do próprio Estado em crise — o movimento dos professores é o
mais vigoroso —, e do plano da sociedade civil, visando a uma
reorientação da ação do Estado no sentido de redistribuição da renda e de
expansão e universalização das políticas sociais de educação, saúde,
assistência e segurança.
À época, houve, também, a emergência dos movimentos sociais
rurais, mobilizados a partir do final dos anos 70 e início dos 80, com sua
pauta específica de resistência ao processo de concentração e
internacionalização da agricultura: Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento das
Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) — hoje, Movimento das Mulheres
Camponesas — e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Esses
atores procuraram criar formas alternativas ao modelo rural empresarial
de desenvolvimento com base na grande propriedade, através de
agroecologia, associações de cooperação, assentamentos de reforma
agrária, dentre outras formas, ao mesmo tempo procurando influir nas
políticas de Estado (apoio técnico, financiamento, obras de infraestrutura).
3.2 O tema do desenvolvimento regional nas administrações
estaduais
O debate dos impasses do desenvolvimento regional já se
encontrava no Governo Pedro Simon, do PMDB, entre 1987 e 1990, tendo
continuidade com Alceu Collares, do PDT, entre 1991 e 1994. O final dos
anos 80 revelou, com toda clareza, as razões mais profundas do
endividamento estadual, que remonta aos anos 50 e que teve, como
causa principal, a quase ausência de investimentos federais no Estado,
forçando o poder público a responsabilizar-se por iniciativas e obras
necessárias ao projeto de desenvolvimento regional. A essa realidade,
somou-se a redução da arrecadação, em razão do baixo crescimento e de
uma evolução desordenada das despesas. Na sequência, a crise financeira
foi reforçada pela política econômica federal voltada à estabilização de
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preços, que lançou mão da elevação da taxa de juros, fazendo crescer os
serviços da dívida (Faria, 1994). As estatais acabaram por ser afetadas
pela fragilidade financeira e pelo endividamento crescente, à medida que
serviram no combate à inflação através da política de ajuste de preços e
tarifas públicas subavaliados, benéficas ao setor privado. As dificuldades
financeiras agravaram-se com a recorrência do financiamento do déficit
público regional junto ao setor financeiro estadual (Banrisul), que emitia
moeda na forma de crédito ao Tesouro do Estado com a contrapartida da
oferta de mais títulos da dívida pública. Além disso, a margem de
manobra era ainda mais reduzida, devido à dependência da receita
praticamente a um único tributo, o ICMS, à centralização da política
tributária e à política de isenções. Os Governos Simon e Collares, numa
gestão que pode ser descrita como apenas paliativa da dívida pública,
puderam beneficiar-se da inflação, que reduzia os salários reais e as
demais despesas e permitia ganhos no mercado financeiro. A criação, em
1991, do Sistema Integrado de Administração do Caixa Único (SIAC)
facilitou conjunturalmente a gestão.
Em que pese às dificuldades da crise financeira, caberia
ressaltarmos, no Governo Simon, algumas iniciativas, como a criação da
Secretaria Especial Para os Assuntos Internacionais (SEAI), que tinha os
propósitos de assessorar o Governador nas relações com outros países
(em particular, com os da Bacia do Prata) e com organismos
internacionais e de captar recursos e apoiar o setor privado em projetos
com participação externa, conforme o Decreto nº 32.515, de 15.03.1987
(Salomon; Nunes, 2007). A inciativa mostrava uma percepção correta da
importância de uma ação na frente externa face ao processo de
transformação profunda decorrente do fenômeno da globalização. A
Secretaria foi mantida pelo Governo Collares e até fortalecida, apesar dos
conflitos de competência com outras esferas da Administração, como foi o
caso do setor voltado à negociação de recursos com agências
internacionais no âmbito da Secretaria de Coordenação e Planejamento.
Já no Governo Antônio Britto, ocorreu a fusão das áreas de indústria e
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comércio e de assuntos internacionais, dando origem à Sedai em 1995,
voltada precipuamente à atração de investimentos e à promoção da
indústria e do comércio. A manutenção dessa estrutura paradiplomática
do Governo Simon até o Governo Britto evidencia a crescente
complexidade da ação estatal no âmbito regional, rompendo com os
limites clássicos de suas competências — um elemento de fato estrutural,
pois teve continuidade mesmo em governos com outra compreensão do
desenvolvimento regional, como o governo de Olívio Dutra, do PT, de
1999 a 2002. O que variou foi o enfoque dado à atração de investimentos
estrangeiros: para quais setores, sua forma de financiamento, países a
serem considerados, montante de subsídios por conta do Tesouro do
Estado e sua integração na estrutura produtiva regional.
No plano da gestão pública, ocorreu a emergência de uma nova
configuração regional, conformadora de uma nova escala espacial, surgida
da agregação de comunidades locais. Impulsionada por uma miríade de
organizações interessadas na fixação dessa escala como definidora de um
processo de desenvolvimento regional local ou endógeno, a inciativa
concretizou-se na experiência dos Conselhos Regionais de
Desenvolvimento (Coredes) — reconhecidos pelo Governo Collares em
1994 — e correspondeu à passagem que articulou propostas
democratizantes da Constituição Federal de 1988 e da Constituição
Estadual de 1989 com processos de descentralização e propostas de
reforma do Estado, processos nem sempre congruentes em seus
propósitos.
Todavia o que havia sido essencialmente novo nesse período fora o
trânsito de setores do PMDB a uma visão liberalizante no plano regional,
em adesão à linha que se fizera hegemônica no plano nacional desde o
Governo Collor, no início dos anos 90. Esse passo significou o
afastamento, para um plano secundário, de setores peemedebistas de
corte nacional desenvolvimentista, com apoio na média burguesia. A crise
local, agravada pelas políticas de estabilização nacionais (Plano Real),
provocou o deslocamento, num primeiro momento não explícito, da
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hegemonia política e econômica para setores industriais monopolistas
locais com expressão além do circuito regional, caso do setor siderúrgico,
do setor de material de transporte e da burguesia agrária exportadora,
cujos interesses se coadunaram com a perspectiva liberalizante do
Governo Britto. A Mensagem do Governador à Assembleia
Legislativa de 1999 (RS, 1999) explicitou os propósitos dessa
perspectiva, de resto coerente com as políticas do Governo nacional,
quando anuncia a intenção de
[...] dar início a um vigoroso programa de modernização
institucional, concessões e reforma patrimonial, para cuja
concepção buscou auxílio nas melhores experiências disponíveis,
dentre elas a do Banco Mundial, com o qual foi contratado um
projeto específico, denominado, justamente, de Projeto de Apoio à
Reforma de Estado (RS, 1999).
A Gestão Britto procurou efetivar o ajuste fiscal com base em amplo
processo de privatizações e realizar uma política agressiva de atração de
capitais, fundada em incentivos fiscais e monetários concentrados em
alguns setores. Emblematicamente, pode-se citar a instalação da
montadora General Motors em Gravataí, significando uma aposta na
mudança do perfil da economia regional. Foram extintas algumas estatais
que eram consideradas concorrentes da iniciativa privada, como a Cohab,
a Cedic e a Crtur, atuantes nos setores de habitação, fomento regional e
turismo, e, a seguir, realizaram-se processos de concessão ao setor
privado de terminais do Porto de Rio Grande e de polos rodoviários.
Culminado o processo, foram vendidas as “joias da coroa”, a grande e
altamente rentável Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações
(CRT), monopolista das telefonias móvel e fixa no Estado, e a maior parte
da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a qual, na preparação
de sua privatização, fora desmembrada em quatro partes, das quais duas
foram alienadas por meio de leilão de privatização, e outra, responsável
pela geração, entregue ao Governo Federal como compensação de
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dívidas, restando em mãos do Estado a parte mais comprometida
financeira e operacionalmente.
Coerente com a visão de que forças locais não teriam capacidade de
impulsionar o desenvolvimento regional, o Governo deu novo impulso à
“guerra fiscal”15, no sentido de atrair grandes capitais que, nessa visão,
mudariam sensivelmente a economia regional, dando-lhe a
competitividade necessária para uma inserção vantajosa na economia
globalizada. Concretamente, o Fundo Operação Empresa (Fundopem),
criado em 1972, transformou-se de mecanismo de política industrial em
mecanismo de renúncia fiscal, projetando dificuldades futuras ao Tesouro
do Estado, dificuldades agravadas pela política macroeconômica federal,
que isentava as exportações do ICMS, e pela renegociação da dívida
pública com o Governo Federal, através do Programa de Reestruturação e
Ajuste Fiscal dos Estados de 1998, o que resultou em um
comprometimento de uma parcela significativa das receitas com o
pagamento da dívida, tendo o Tesouro Nacional como credor16. De
qualquer forma, os resultados concretos dessa opção não foram
animadores sob o ponto de vista das contas públicas. De acordo com a
Mensagem do Governador à Assembleia Legislativa de 1999,
ocorreu um sensível aumento do estoque da dívida pública, os fundos
resultantes das privatizações não foram aplicados nas áreas sociais e
apenas parte foi utilizada para o pagamento da dívida pública. Ipsis literis,
“[...] o governo decidiu trocar patrimônio por desenvolvimento”, em
outras palavras, “[...] usar os recursos da privatização na atração das
maiores empresas automobilísticas do mundo” (RS, 1999). Nessa fase,
portanto, foi dada ênfase aos aspectos patrimoniais da reforma do Estado.
Na sequência, deveria ser implementada a chamada “segunda
geração de reformas”, a gerencial, iniciada pelo Governo Federal através
da implementação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado,
15 Incentivos fiscais e outras benesses foram instrumento amplamente utilizado pelos estados e mesmo pelos municípios em boa parte dos anos 90 e início do século XXI.
16 Ver A crise das finanças públicas gaúchas no Volume 2 desta obra.
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O ambiente regional. (Três décadas de economia gaúcha, v.1). 2010
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em 1995, a qual acabou concretizando-se em um conjunto de emendas
constitucionais e leis entre 1998 e 2000, as quais incorporavam ao serviço
público critérios de gerenciamento privado, instituíam as parcerias
público-privadas para ocupação de espaços de prestação de serviços ou
fornecimento de infraestrutura e realizavam reformas no sistema de
previdência, além de normatizarem procedimentos administrativos sob a
diretiva da responsabilidade na gestão fiscal.
Acompanhando esse processo de repactuação entre classes e
frações dominantes, tinha lugar um crescimento da atuação dos
movimentos sociais no campo e na cidade, que encontraram canal de
expressão política em partidos vinculados à esquerda do espectro político.
O Governo seguinte, de Olívio Dutra, do PT, entre 1999 e 2002, expressou
uma inflexão ao eleger justamente essas forças sociais ascendentes como
suas interlocutoras privilegiadas. Foi então inaugurada uma nova relação
do Estado com os movimentos sociais, do que fez parte, por exemplo, a
criação da Secretaria Especial de Reforma Agrária, a qual buscou influir,
em que pese a limites inclusive institucionais, na política de reforma
agrária, procurando articular ações com o Governo Federal.
O projeto da Frente Popular, dirigida pelo Partido dos Trabalhadores,
apontava num sentido diverso ao que fora iniciado na gestão anterior e
que poderia ser descrito, no plano da economia, como de promoção das
“excelências regionais”. Buscou reforçar os sistemas locais de produção
com ênfase nas pequenas e médias empresas, criou incentivos à
agricultura familiar, estabeleceu um programa de reforma agrária, definiu
diretrizes para a política científica e criou a Universidade do Estado do Rio
Grande do Sul, dentre outras iniciativas. As políticas de fomento e seu
principal instrumento, o Fundopem, foram redirecionadas para as
pequenas e as médias empresas, para a alta tecnologia, para
complementação de lacunas na estrutura produtiva regional e para as
“vocações gaúchas”, como o setor de couro e calçado ou a agroindústria.
No plano administrativo, a maior novidade foi a incorporação
adaptada — com base nas experiências municipais de governo em Porto
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Alegre — do Orçamento Participativo (OP) estadual. Inicialmente, a
proposta sofreu resistência de parte dos Coredes, pois viam uma
justaposição de finalidades. O projeto, entretanto, visava oportunizar a
participação universal dos cidadãos, através das Assembleias Públicas
Municipais, que tratavam fundamentalmente da decisão sobre obras e
serviços públicos e aproveitavam a regionalização dos Coredes em sua
organização. Com base nessas assembleias no plano municipal — ou de
bairro, no caso de alguns poucos grandes municípios —, prioridades
decididas eram consolidadas no nível microrregional dos espaços
geográficos definidores dos Conselhos Regionais, nos quais eram eleitas
as prioridades e os delegados do Conselho Estadual do Orçamento. Não
chegou a ocorrer uma fusão de procedimentos entre o OP e os Conselhos
Regionais de Desenvolvimento, bem mais uma espécie de intersecção.
Ainda nesse âmbito da gestão, o Governo estabeleceu novos
critérios para algumas carreiras de servidores públicos, como os policiais
militares e o magistério, onde procurou diminuir a distância salarial entre
os estratos burocráticos.17 Outra proposta foi a tentativa de mudança da
matriz tributária, que visava, além de reforçar as receitas, incidir tanto no
âmbito distributivo como no do desenvolvimento, ao estabelecer
diferenciais de alíquotas do ICMS e de outros tributos. Nesse caso, a
iniciativa esgotou-se como projeto, pois foi rejeitada pelo Legislativo
O Governo seguinte, de Germano Rigotto, buscou restaurar a
agenda de Antônio Britto, embora sem o mesmo ímpeto. Uma série de
iniciativas o demonstra, a começar pela retomada da guerra fiscal para
atração de investimento externo. Seguiram-se a revisão dos critérios do
Fundopem, transformado em Fundopem-integrar, cujos benefícios
voltaram a se concentrar nas grandes empresas (96,5% do total) e na
Região Metropolitana; o recuo no fomento aos sistemas locais de
produção; o esvaziamento dos programas de apoio à agricultura familiar;
e o abandono do projeto estadual de reforma agrária.
17 Ver O impasse da burocracia estadual gaúcha no Volume 2 desta obra.
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Além disso, sua base social pressionava por uma segunda etapa da
reforma do Estado. As quatro grandes entidades empresariais do Estado,
Farsul, Fiergs, Federasul e Fecomércio, mais a Polo RS — uma agência de
desenvolvimento em parceria público-privada —, lançaram o documento A
Crise do Estado: Reformas Para Racionalizar a Máquina Pública
(FARSUL, 2004), onde um conjunto de medidas era proposto. Sem
disposição de enfrentar o ônus político de várias dessas propostas, as
mudanças mais importantes adotadas no campo da gestão pública
resumiram-se à descontinuação do Orçamento Participativo, o qual foi
substituído por um sistema de consulta popular em urna para eleição de
obras prioritárias no âmbito de cada um dos Coredes, numa iniciativa que
reforçava as alianças do Palácio Piratini com as lideranças municipais.
Embora representadas por outra sigla, o PSDB, as mesmas forças
sociais seguiram dirigindo o Estado no Governo Yeda Crusius, iniciado em
2007. Essa continuidade, entretanto, deu lugar a uma clara mudança de
atitude, inaugurando-se um estilo de gestão bem mais disposto a
enfrentar resistências e desgastes políticos. Com isso, foi posta em
marcha o que se poderia classificar como uma tentativa tardia de dar
consecução à segunda etapa da reforma do Estado. Tardia, em primeiro
lugar, pela própria conjuntura da época, mormente na América do Sul,
onde a crise do neoliberalismo dera oportunidade ao surgimento de um
movimento político alternativo, causador de uma sequência de mudanças,
que empurraram o continente para a esquerda. Em segundo, também
tardia, porque as condições estruturais da administração pública deixavam
exígua margem à continuidade dessas políticas. Pouco espaço restara para
as privatizações, a manutenção dos serviços públicos já tão precarizados
restringia a possibilidade de ampliar a renúncia fiscal, além de o ciclo de
crescimento iniciado em 2005 requerer não apenas um aumento da taxa
de investimento do Estado, como também representar mais demanda pela
ampliação de serviços públicos.
As prioridades do Governo, entretanto, concentraram-se na
implementação dessa segunda etapa da reforma do Estado, que teve
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como foco principal a busca obstinada de equilíbrio orçamentário, o déficit
zero. Para tanto, empreendeu-se uma renegociação da dívida estadual
com o Banco Mundial, na qual uma parcela significativa, aquela
classificada como “extralimite”, foi refinanciada com redução de custo, e,
concomitantemente, foi posta em prática uma política dura na área da
receita pública, contrariando uma antiga prática de perdões e anistias aos
devedores de impostos. Também foi adotada uma iniciativa de reforma
nos métodos de gerenciamento, com vistas à sua adequação a objetivos
privados de eficiência. Além de mudança nos critérios de controle e
execução de despesas, um tema delicado foi abordado, o elevado
comprometimento do orçamento com gastos de pessoal. No final de 2009,
uma proposta foi apresentada, com vistas a uma mudança profunda dos
planos de carreira dos servidores, proposta que tinha por finalidade uma
total reformulação dos critérios de progressão funcional e remuneração,
substituindo o quase automatismo impessoal vigente pelo princípio da
meritocracia sob avaliação de desempenho.
É difícil a aferição da relevância dessas iniciativas para o processo
de desenvolvimento regional. Um orçamento equilibrado não tem efeito
sobre a demanda efetiva além de, se seu equilíbrio cobrar baixo
investimento, reduzir o efeito multiplicador do gasto. Quanto à adoção de
critérios privados para a gestão, há que se considerar a própria
especificidade do serviço público, cujos parâmetros de eficiência são, por
sua natureza, distintos dos do setor privado18. O reduzido alcance dessa
visão empresarial do Estado acaba por ser um limitador do próprio alcance
das políticas públicas, dos investimentos sociais e das iniciativas que
serviriam para alavancar o desenvolvimento. Sua insuficiência, decorrente
18 Embora a corrente da chamada “escolha pública” se tenha proposto a analisar a ação do Estado sob a perspectiva da maximização de retornos da microeconomia, sua contribuição à ciência é vazia de qualquer significado. O apego ao individualismo metodológico apenas consegue reduzir a prática política ao clientelismo. Desconhece que a política é essencialmente um campo da ação coletiva, dominado por princípios morais e interesses difusos, hegemonizado por ideologias, convicções às vezes pouco racionais e fantasias utópicas, onde o papel dos indivíduos é absolutamente restrito. É o lugar do poder, um conceito absolutamente desconhecido da economia convencional desde que retirou o aposto política de sua denominação.
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da subordinação à premência da contenção de gastos, é um efeito
concreto dessas políticas restritivas mantidas ao longo do tempo. A
própria busca do déficit zero está integrada nessa visão. Uma eventual
redução de custos deveria estar condicionada aos objetivos e às
necessidades da consecução das atividades-fim da administração com
maior eficiência. Da mesma forma, o difícil enfrentamento do elevado
custo da dívida pública foi tentativamente solucionado através de um
empréstimo junto ao Banco Mundial, que, se teve custos inferiores aos
cobrados pelo contrato anterior com o Tesouro nacional, envolveu outras
condicionalidades, que retiraram raio de manobra à administração
estadual.
Um pergunta que fica para a compreensão do real significado dessa
gestão estadual é se ela apenas reflete um processo truncado, uma
disputa extemporânea pela preservação de uma agenda superada pela
história, ou se nasce de um aspecto estrutural ao RS, dado seu grau
maior de internacionalização. Aparentemente, o retorno da lógica dos
incentivos e da guerra fiscal não traz, de resto, novidade, mas, na medida
em que não parece claro um projeto de desenvolvimento, tampouco indica
um horizonte definido. Nessa perspectiva, a proposição do tema irrigação
talvez seja a maior originalidade da administração nessa área, na medida
em que o déficit hídrico climatológico é, reconhecidamente, um grande
obstáculo ao avanço da agropecuária empresarial no Estado.
Os riscos diante de um horizonte nebuloso são, como já visto na
história recente, uma completa perda de perspectiva de longo prazo,
causadora de uma situação anômica em que cada setor das elites locais e
seus representantes políticos defendem, junto ao aparato de Estado, seus
interesses imediatos. Essa circunstância é a própria definição da crise
política e da ingovernabilidade.
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CONCLUSÃO
Os últimos 30 anos da história sul-rio-grandense presenciaram uma
reestruturação liberalizante do Estado, que rompeu com práticas de
intervenção pública de origens longínquas, posto que inauguradas nos
fundamentos da República positivista gaúcha. A crescente adoção de
critérios privados na forma de condução dos negócios públicos veio negar
princípios estabelecidos desde o final do século XIX, como a
impessoalidade, o bem comum, a separação público-privado e a
autonomia da administração, diante dos interesses mais imediatos das
classes sociais em que se organiza a população.
Em seu lugar, a noção de competitividade fez-se cada vez mais
presente. No limite, buscou-se, a partir de fins dos anos 80 em diante e
em consonância com o processo nacional, criar as condições de
instauração de um modelo regional competitivo. Nesse percurso, apesar
da cobertura do grande véu ideológico da “modernidade”, assistiu-se a um
verdadeiro assalto ao Estado por parte de grupos de interesse
ascendentes, seja oriundos das classes dominantes regionais, seja vindos
de fora do RS. O orçamento público, por sua importância econômica, foi
redefinido, valores neoliberais foram impostos à administração, grupos e
frações de classe articularam-se para estabelecer um novo spatial fix
entre as relações sociais e a territorialidade, definidor de uma nova
articulação social controladora do território gaúcho.
A análise da reconversão da ação estatal entendida como a
capacidade de gestão e intervenção do Estado na organização da
sociedade e da economia está relacionada aos conceitos de espaço e de
formas institucionais, compreendidos como força estruturante de
regulação do regime de acumulação e da reprodução social. A depender
da forma concreta do Estado em sua escala, criam-se pressupostos
institucionais adequados a diferentes regimes de acumulação do capital.
Assim, o Estado regional articula, em maior ou menor grau, seus
compromissos não apenas com os processos de mercantilização da
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economia local, como também com sua maior inserção na economia
nacional e internacional.
A trajetória do Estado do Rio Grande do Sul, no período aqui
considerado, revelou a profundidade da fratura que rompeu toda a rede
de articulações entre atores sociais regionais, nacionais e internacionais,
estabelecida inicialmente na República Velha e transformada pelo
processo de integração nacional do pós 1930. Desde a crise de 1981 e
passando pela tentativa de estabelecer um novo modelo nos anos 90, o
rumo do desenvolvimento regional permanece indefinido.
Se a rota apontada pelo neoliberalismo mostrou-se incapaz de
orientar a navegação através das águas revoltas da globalização, o mapa
proposto pelos movimentos sociais ainda não teve seu desenho
terminado. O que parecia ser o novo espírito do mundo a iluminar as
pretensões sul-rio-grandenses de continuar sendo uma região-mundo no
limiar do novo século, a contrarrevolução neoliberal, soçobrou
definitivamente na crise de 2008, e, em seu rastro, ficaram incertezas. Os
pilotos do futuro terão de esperar a ação dos reais protagonistas das lutas
sociais que definirão a nova rota. De momento, podemos apenas esperar
que alguns sinais auspiciosos, como a redução das desigualdades, o
crescimento econômico e a inclusão social, sejam traços definidores do
amanhã.
Mas o leme está partido, e o mapa, borrado pelas águas da
globalização.
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