uma marca na parede

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Page 1: UMA MARCA NA PAREDE
Page 2: UMA MARCA NA PAREDE

[2]

UMA MARCA NA PAREDE

paulo alzamora

Page 3: UMA MARCA NA PAREDE

[3]

Esta peça em monólogo intercala as deixas

proferidas por uma actriz sozinha em palco, com a

audição dos seus pensamentos, a serem reproduzidos

pelo sistema de som da sala.

O ambiente cénico é o de um living com aberturas

para espaços contíguos, hall ou cozinha, cuja

existência se advinha mas nunca se vê.

A luz deve sugerir uma origem no espaço exterior,

passando ao longo da peça da tarde alta à semi-

penumbra da noite, com a iluminação artificial de

rua a entrar pela(s) janela(s).

A atmosfera deve reflectir um gosto de média/alta

burguesia e é importante que tenha pelo menos um

maple de orelhas com uma manta de croché aberta

sobre o assento e braços, para além de uma

televisão acesa.

O texto é omisso em sugestões relativas à mise-en-

scène ou à representação, no sentido de promover

total liberdade ao trabalho do encenador e ao

desempenho da actriz.

Como excepção há a referir uma pausa a meio da

peça sendo facultativo o seu aproveitamento para a

realização do tradicional intervalo.

Page 4: UMA MARCA NA PAREDE

[4]

Igualmente opcional é o cumprimento de outras

pausas, breves, identificáveis pela utilização de

reticências, e que pretendem unicamente sugerir

variações no ritmo da récita.

Esta peça terá sempre o seu texto em aberto

podendo ser acrescentada episódica ou

definitivamente em qualquer altura e por qualquer

pessoa, até em improviso por quem a represente, ao

que o autor ficará extremamente grato.

Page 5: UMA MARCA NA PAREDE

[5]

...ia jurar que tinha desligado o lume!

Vês?

Não te tenho dito?

O raio da cabeça, às vezes, já não parece a mesma!

...

A Cilinha está-me sempre a dizer pra não mexer no

fogão...

Estes filhos crescem e desatam a pensar que sabem

tudo e que nós somos uns incapazes!

...

E depois não se calam com o raio das instruções!

Põe-se a falar muito devagar, sempre a tocar-me no

braço...

Quase que fico com negras...

“Ta a ouvir mãezinha? Ta a ouvir mãezinha?”

E fala alto como se fosse surda!

Surda e lerda!

A mãezinha tem que isto, a mãezinha tem que

aquilo...

Page 6: UMA MARCA NA PAREDE

[6]

A mãezinha não pode isto e a mãezinha não pode

aquilo...

Sempre esta lengalenga!

O que vale é que quase não põe cá os cotos!

Mas diz que sim, que vem cá todos os dias.

Entrar e sair, se isso é vir cá!

Inda ta a meter a chave à porta e já a tou a ouvir

“tou cheia de pressa! Tenho tanto que fazer! É só

pra um olá!”

Nem “precisas de alguma coisa?”,

Nem “onde é que te posso ajudar?”,

Ou “vamos dar uma voltinha as duas?”

Ou qualquer coisa assim de mãe e filha!

Nada disso!

E se não vem, telefona, mas é a mesma coisa!

Levo mais tempo a chegar ao telefone do que o

tempo que duram as chamadas...

Por vezes até duram mas não é a falar de mim...

A não ser que seja pra me recriminar!

Page 7: UMA MARCA NA PAREDE

[7]

Pra isso ta plas curvas!

...

Pra isso e pras comparações com o Rafael!

É preciso ter lata!

Dizer-me na cara que só falta eu “erguer um altar

pró menino queridinho”, como ela lhe chama!

E ela sabe bem que isso me magoa, que eu nunca fiz

distinções...

Ah pois sabe!

Criamos nós os filhos pra isto!

Pra eles depois andarem de fita métrica e máquina

de calcular na mão...

Se ela tivesse a vida do irmão é que ia ver!

De certeza que não lhe sobrava energia pra vir cá

as vezes que vem só pra me mandar umas pedradas.

...

Nem sei como aquele rapaz não tem um esgotamento.

Sempre com aquelas olheiras...

E aquele aspecto bacilento...

Page 8: UMA MARCA NA PAREDE

[8]

Eu bem que lhe digo que tem que aliviar, que um

dia destes dá-lhe um treco...

Olha que o tempo passa pra todos! Não estás a

ficar novo, sabias?

“A mamã não se preocupe, a mim nada me pega! Já

sabe que eu sou um cepo!”

...

Tão franzino que ele era em pequenito!

...

Lembraste quando o paludismo quase o levou?

Quem?

Ora quem! O Rafael!

...

Embicaste em que tínhamos que ir contigo pra

Damba.

Era de estranhar que te lembrasses!

Passava-te tudo ao lado...

Ou quase tudo...

Page 9: UMA MARCA NA PAREDE

[9]

Quando ele nasceu inda pensei que arrepiasses

caminho, mas foi sol de pouca dura!

“Um pilas senhor Gervásio! É um pilas!

Temos que o regar!”

Foi isso!

Foi só o pretexto pra mais uns canecos!

A Damba pra ti, bastava ser só o boteco do

Gervásio

Terra medonha!

Só mosquitada!

Que valeu dares-me duas criadas?

Pra depois passares a vida a dizer que eu tinha

uma vida de princesa?

Não acontecia nada naquele fim do mundo, só por lá

passavam camionistas!

A Maquela inda lá foi cantar a Simone, uma vez.

De resto era uma povoação com uma estrada em terra

batida a meio e casas semeadas de cada lado.

Page 10: UMA MARCA NA PAREDE

[10]

Era a coisa a que chamavam hospital, a escola

primária, o posto de correios, a casa do

administrador...

...

Sítios havia em que lhe chamavam palácio,

Veja-se lá quanta pretensão!

Palácio!

...

A mercearia e a padaria,

Mais a bomba de gasolina,

Um campo rapado, com duas balizas,

O aeródromo, e pronto!

...

E tava feita uma cidade!

Eram todas iguais,

Todas!

Ou quase todas...

Esta nem o raio duma agência do Sotto Mayor

tinha...

Page 11: UMA MARCA NA PAREDE

[11]

...

E aquelas madamas?

Todas armadas a burguesas! Todas montes de

importantes!

A mulher do subchefe, a professora,

A mulher do médico, parolinha que eu sei lá...

A do tenente que, como eles iam mudando, elas

também estavam sempre a mudar...

Ao menos essas traziam as modas!

...

A do Administrador é que era o que se podia chamar

“uma senhora”. Também não passava cartuxo a

ninguém!

Se fosse hoje tinha feito a mesma coisa!

...

Ouviste tocar à porta?

É que me pareceu...

Fiquei na dúvida...

Page 12: UMA MARCA NA PAREDE

[12]

Agora ando nisto, de vez em quando perco-me nos

pensamentos...

E ou não ouço ou ouço a mais...

Mas tu também não estás melhor!

É como se cá não estivesses.

Não se pode contar contigo pra nada!

...

Vê lá que me fui pôr a pensar na Damba.

Ainda te lembras da viúva do merceeiro?

Boa rapariga! Teve aquele azar...

Engolido por uma jibóia! O desgraçado!

Ouviam-se muitas histórias, mas assim?

Acontecer ali?

Ao nosso lado?

...

Se é que foi mesmo...

Na verdade ninguém de lá o viu!

Page 13: UMA MARCA NA PAREDE

[13]

Plo menos pra mim não passou de um monte de terra

com uma cruz de madeira no topo!

Naquela terra, é assim, nunca se sabe...

...

Mas era uma mulher interessante, não era?

...

Não te lembras.

Não te lembras tu de outra coisa!

Ao menos vinhas de lá a cheirar a bien-être em vez

de tresandares aqueles sabonetes reles da sanzala!

Logo tu que em casa nem o old spice que te dei

punhas!

Sim! Ou tu achavas que eu não sabia?

Punhas-me duas das tuas frangas lá em casa, mesmo

debaixo do meu nariz e achavas que quando ias pra

roça eu não conseguia saber as coisas.

...

Que custava um bezerro ou outro para quem tinha

duas mil cabeças!

Page 14: UMA MARCA NA PAREDE

[14]

Pra mais com os patrões aqui pra metrópole a gozar

do bem bom, como iam supor que o capataz de

confiança era um javardo!

Também quem podia imaginar que para aqueles

monstros as filhas só valiam o raio de um bezerro!

Mas eram só umas meninas, canalha!

Umas meninas...

...

Saíste-me uma boa peça!

...

Inda anda a tua filha sempre a proteger o paizinho

dela.

Por isso é que eu evito completamente falar

contigo quando ela cá está.

Depois também já estou farta daquele discurso...

“A mãezinha tem que aceitar, mais dia menos dia

tem que aceitar o que aconteceu ao papá!”

Por vezes parece que já nem diz coisa com coisa!

“A mãezinha tem que deixar o papá ir! Deixe o papá

partir em paz mamã!

Page 15: UMA MARCA NA PAREDE

[15]

...

Mamã! o paizinho já não está entre nós!”

Queres acreditar nisto?

Eu nem queria acreditar quando a ouvi dizer isto!

A miúda anda meia desequilibrada!

...

Não está mesmo bem o raio da rapariga!

É que tou preocupada. Começo a estar convencida

que ela acha que tu morreste...

Mas se lhe for dizer alguma coisa já sabes como é.

...

Mas acho que ela precisava de fazer um

tratamento...

...

Agora também anda com outra mania. Não é que pensa

que sou eu quem está a ficar avariada da cabeça e

vai daí, pôs-me a vizinha a controlar-me?

Essa velha que só quer é bisbilhotice!

...

Page 16: UMA MARCA NA PAREDE

[16]

E não é que o raio da velha não me larga a porta!

Tem menos vintanos que eu mas de cabeça tem à

vontade mais sessenta.

Fogo!

Prefiro mil vezes a velhada rezingona nos

autocarros, a discutirem porque nenhum quer ir de

costas.

Às vezes dá vontade de distribuir uns açoites!

São piores que a canalha pequena!

Deus me livre de chegar a velha e fazer aquelas

figuras...

Se é práquilo só desejo que deus nosso senhor seja

meu amigo e me leve antes...

...

Mas a vizinha é obra!

...

E depois põe-se com aquele jeito de beata,

“Oh dona Luisinha quer que lhe faça um chazinho?

Ou uma sopinha?”

Ou isto inho ou aquilo inha?

Page 17: UMA MARCA NA PAREDE

[17]

Mas ela ta a falar com algum bebé?

E também quem disse aquela lambisgóia que me podia

tratar por Luisinha?

Que porra!

Quê!?

Nunca me tinhas ouvido dizer palavrões?

Há muita coisa que não sabes de mim!

...

Digo porra e digo merda! Mas digo mais ainda!

Sempre disse...

...

Noite após noite com uma cama só pra mim...

...

Como se eu tivesse deixado de ser mulher...

...

Se só tinha um corpo pra descobrir, podes crer que

descobri...

E aí digo muitos palavrões!

Baixinho...

Page 18: UMA MARCA NA PAREDE

[18]

Muitos e dos piores, mesmo daqueles!

E não sei porquê, acabo ao murro à tua almofada e

aos filhos-da-puta!

Muitos...

Seguidos...

Filho-da-puta, filho-da-puta, filho-da-puta...

...

Se tivesse aqui a miúda lá tava eu a ter que

gramar mais um sermão!

“Oh mamã, pró que lhe deu! E se estivesse aqui

alguém?”

E se estivesse aqui alguém?

Sempre a merda das aparências!

Parece na Damba!

Uma cambada de infelizes a acharem que eu é que

era a coitadinha...

Como se as caçadas dos maridos delas fossem só de

pacaças e gazelas!

...

Page 19: UMA MARCA NA PAREDE

[19]

Tou a ser má-língua...

Se calhar faziam como eu, se calhar faziam de

conta...

O Rafael é que não ia ligar pevas se ouvisse a mãe

a dizer palavrões, até ia achar graça de certeza.

Esse aí sai mesmo ao meu lado...

Felizmente!

...

E não me anda a atazanar, a querer jogar-me pra um

canto!

Essa tu inda não sabes pois não?

Essa é a última da tua filha!

Se passa aqui meia hora, vinte e cinco minutos são

pra me dizer que “agora há umas casas muito boas,

com todas as condições...

Com uns funcionários especialistas...

Com enfermeiros e médicos,”

E mais isto e mais aquilo!

Ela deve pensar que sou uma insensível cruel! Como

se não cuidasse ainda bem de ti!

Page 20: UMA MARCA NA PAREDE

[20]

“Ah, porque d’hoje amanhã caio à cama, e a vida ta

difícil...”

E ela não vai ter tempo e não se pode dar ao luxo

de arriscar o emprego!

Que “o Filipe continua com aquela vida de cão!”

Que “o Rafael e a Carla é o que se sabe, que não

ligam nenhuma e não se pode contar com eles!”

...

Pois, já cá faltava criticar o irmão e a cunhada!

...

Que “os miúdos tão numa fase de exigirem muito

acompanhamento” e ela é sozinha, não tem ajuda de

ninguém!

Bem! Quem a ouvisse ficava lavado em lágrimas!

...

Mas é assim, se tu quiseres tas à vontade que eu

não me importo!

Se quiseres ser empacotado num desses sítios, é

contigo.

...

Page 21: UMA MARCA NA PAREDE

[21]

Eu cá, ninguém me arranca daqui!

...

E fico sozinha?

E depois?

Onde está a estranheza?

Como é que eu estive quase sempre?

Nunca te preocupaste, nem quando andavas lá pela

fazenda às chicotadas aos desgraçados dos

trabalhadores,

Nem na sanzala a besuntares-te nas tuas pretitas,

A emprenhar as desgraçadas das crianças!

Sabe-se lá quantos irmãos têm os filhos que me

fizeste!

...

Nem quando andavas a ajudar os pides a traficar os

dentes dos pobres dos elefantes!

Sujeito a levar um balázio dos turras, como tu

lhes chamavas...

Pois, dava-te jeito a protecção deles pra outras

coisas né?

Page 22: UMA MARCA NA PAREDE

[22]

...

Mesmo aqui foste para feitor daquela herdade lá

pra cascos de rolha como se não houvesse mais

nada...

Pouco ralado que os filhos continuassem a crescer

a ver o pai só aos fins-de-semana...

E só nalguns...

E pouco te ralaste que eu ficasse sozinha!

...

Achas então que não me aguento?

Achas mesmo que sou mulher para me desorientar?

Não me ficaste a conhecer nem um bocadinho, pois

não?

Se calhar nem a mim nem a mais nenhuma!

Por acaso é algo que me causa espanto...

Como é que alguém arrebanha tantas mulheres e o

seu egoísmo não lhe deixa uma réstia de

curiosidade para saber como é o seu íntimo!

É assim como dizer que se gosta de pão mas do pão

só lhe conhecer o sabor pelo lamber da côdea...

Page 23: UMA MARCA NA PAREDE

[23]

No fundo tu só és tipo de conhecer uma casa por

fora. Entrar lá dentro? Ta quieto! É o entras!

Quem sabe está assombrada!

É isso, cagufa!

Cagufa, é o que tu tens!

De quê?

Ora, que te caia a pose...

De descobrires que afinal és pequenino...

...

Pois olha, sabes, já era tempo de me conheceres!

E ainda tens tempo!

Jogaste fora o passado mas sobra-te o futuro todo

do mundo!

Que no teu caso que até nem fazes um caraças, pode

ser uma eternidade!

Fica então a saber, que eu não me desoriento!

Eu não me perco...

Nessas alturas faço como sempre fiz.

Page 24: UMA MARCA NA PAREDE

[24]

Quando a vida me enrola e me sinto a girar sobre

mim mesma como um pião, regresso aquele palácio a

cair de velho,

Com aqueles estuques todos trabalhados...

Àquele espelho sem fim, à barra ao longo do

espelho...

Céus como era grande tudo...

Ou como eu era pequena!

Volto aos demi-pliés, aos arabesques, às

pirouettes...

Sim, às piruettes!

E à marca na parede,

Uma marca na parede, uma qualquer,

Mesmo que seja uma osga ou uma lesma...

...

O corpo gira, a cabeça também...

A cabeça sai em ultimo mas chega primeiro!

Tudo tão rápido!

Muito rápido mesmo!

Page 25: UMA MARCA NA PAREDE

[25]

É como se os olhos nunca descolassem de lá!

...

Pela vida fora sempre encontrei a minha marca na

parede...

Quanto mais perdida mais me encontrava num único

interesse, num único objectivo...

Num projecto...

Tu? Só se for pra rir!

Não vou poder dizer nunca que sim!

Como eu gostava que tivesses sido como um farol,

Mesmo que prácenderes eu tivesse que te fazer

muitos sinais...

Que estava a naufragar...

Mas que estivesses lá!

Eu ao menos sabia que naquele ponto da costa havia

um...

...

Arrancaste-me três vezes a um ninho!

A minha mãe bem que me dizia!

Page 26: UMA MARCA NA PAREDE

[26]

“Pra que te leva ele daqui?

Atrás dum sonho? Aqui também pode sonhar!

O negócio do teu pai vai bem...”

...

Mesmo a ti...

Ela também te disse que não lhe levasses a

filha...

“Criada com tudo, habituada a tudo!

Aqui o Rodolfo também tem futuro!

As conservas vão continuar a dar, as pessoas vão

continuar a precisar de comer...

Se um dia pensar em ter um negócio seu lembre-se

disto!”

Mas tu nada!

“Aquilo vai ser um mundo!” Era só o que dizias...

...

A mim bem que me avisou!

“Há qualquer coisa neste rapaz, não sei, aqueles

olhos sempre a bailar e...

Page 27: UMA MARCA NA PAREDE

[27]

Sei lá...

Parece que não têm fundo de tão claros que são!

E porque não acabas tu o piano e o liceu?

Nunca se sabe se te vem a fazer falta!”

Falta? Falta pra quê?

Pra ser dona de casa e criar filhos?

Oh mama!

...

Pois é!

Ela parecia que adivinhava...

...

Pois é...

Se não tivesse sido o velho piano lá de casa bem

que tínhamos passado fome!

“Luisinha, olha que este moço também não é da

mesma condição que tu!”

Condição? Oh mama... a mamã não ta a ver bem as

coisas, pois não?

Que condição?

Page 28: UMA MARCA NA PAREDE

[28]

No liceu chamam-me peixeira!

Isso é que é a minha condição!

Só quando a Cilinha começou a namorar é que acabei

a perceber tudo o que ela me queria dizer.

...

Ta-me a apetecer um chazinho. Agora depois de

reformada é que me deu pra lanchinhos...

E pra gulodice!

É que se ficasse pelo chá, mas não!

É que é o chá e o sconezinho!

Daqueles que faço quando o Rafael cá vem.

Também queres?

Ah, sem cerveja não escorrega!

Pois...

Era de estranhar que me fizesses companhia...

...

(pausa)

...

Page 29: UMA MARCA NA PAREDE

[29]

...é como te dizia, arrancaste-me ao ninho mais do

que uma vez, é verdade, mas uma coisa é certa,

daquele ninho eu havia de sair mais tarde ou mais

cedo.

E Luanda até começou por ser bom.

...

Só que a tabaqueira também não era vida pra ti!

Tar prali a controlar os que por sua vez

controlavam a maquinaria estava a sufocar-te,

nera?

Tadinho!

Precisavas ser livre, não eras homem pra um

emprego das oito às seis...

E também não era ali que estava o futuro!

“O futuro está no mato!

O futuro ta pra norte no café e no gado, mulher!

Aqui nunca te vou poder dar a vida que tu

mereces!”

E que vida é que eu merecia?

Havia melhor?

Page 30: UMA MARCA NA PAREDE

[30]

Claro que havia!

Chegares cedo a casa, por exemplo, em vez de ires

pró tasco, pró sete e meio e pra lerpa...

Ou pensas que eu não sei que derretias muito

dinheiro?

Um tipo que inda não estava casado nem há sete

meses...

...

“Olha mulher, despedi-me hoje!”

Assim!

A sangue frio!

Sem falares nada comigo antes!

Aliás, foi com tudo assim. Pouco mais de dois anos

e meio em Luanda e mudamos três vezes de casa!

E nem uma eu decidi ou escolhi!

Só as via quando íamos levar a primeira leva de

imbambas, que por sorte eram poucas...

Inda bem que não alcancei naquela altura, senão ia

ser o bom e o bonito!

...

Page 31: UMA MARCA NA PAREDE

[31]

Tudo bem que a última até era numa zona bem

simpática,

Nada a ver com o casebre lá prá Boavista com as

barrocas pela frente!

Mas mesmo a Rampa do Liceu já estava condenada!

“Inda vais viver em Alvalade!”

Rico Alvalade!

Terceira palhota ao virar da picada logo depois da

pitangueira! Foi o que foi!

...

“Nem tudo foi mau pois não?”

Não...

Não, nem tudo foi mau...

Se queres saber até houve coisas boas.

De algumas até tenho saudades...

Por vezes até tenho saudades da tristeza das

chuvadas e das cacimbadas.

Parecia que a natureza me acompanhava no choro...

...

Page 32: UMA MARCA NA PAREDE

[32]

Mas é sobretudo dos cheiros que mais tenho

saudades...

Do cheiro da terra molhada e do capim queimado...

Mesmo do peixe seco que eu nem conseguia sequer

comer...

...

Ah, se eu pudesse! Como eu comia agora um safu...

Como aquele amargo doce tem a ver com o estado da

minha alma!

...

Mas aquilo que me ficou como de mais divino,

Mas que nunca to direi, nem torturada,

E pelo qual voltava à Damba,

Já amanhã...

O cheiro do pãozinho acabadinho de cozer de quando

estive grávida!

...

O mais certo é que tivesse sido assim em qualquer

lugar mas nunca o vou saber...

Page 33: UMA MARCA NA PAREDE

[33]

Jamais serei capaz de roubar esse cheiro àquela

parvónia...

...

Na verdade o meu ódio àquela terra começava

lentamente a conviver em harmonia com a magia com

que ela me estimulava o enraizamento.

Sempre foram mais de sete anos...

...

“Vá, vá, depressa!

Tens vinte minutos pra meter qualquer coisa nossa

e dos miúdos numa mala!

Vamos despacha-te!”

Foi assim!

Sempre à tua velha maneira!

Foi novamente arrancar o dente sem anestesia!

Todo esbaforido, os olhos todos arregalados!

“A coluna sai daqui a bocado, não temos tempo pra

nada!”

Valia a pena fazer perguntas?

Page 34: UMA MARCA NA PAREDE

[34]

Não, não valia... não eras tipo com respostas,

nunca foste...

Então e aquelas presas que tinhas no arrumo e que

eram pra nossa velhice?

As respostas que não deste, dou-tas eu agora!

Os teus amigos pides piraram-se a tempo plo Zaire

e tanto quanto soube não salvaram só a pele...

Disseram-te alguma coisa? É o dizes!

E tu achaste até mais não, que ias ser um herói e

salvar os cafezais dos teus patrões.

Palerma!

Ás vezes até dás ânsias!

...

Salvaste a pele mas foi preciso em troca sacares

das duas pedrinhas que trazias no tacão das botas.

Como é que eu sei isso tudo?

Ingénuo!

Pensares que no meio daquelas mulheres todas, não

haveria plo menos uma a ficar minha amiga...

E que os maridos das outras não abriam a boca...

Page 35: UMA MARCA NA PAREDE

[35]

Eras uma boa maneira de desviarem as atenções

deles próprios...

E as duas raparigas que puseste lá em casa?

Foram as minhas primeiras filhas, e as filhas

contam muita coisa às mães, sabias?

...

Aquela imagem...

Ah, aquela imagem...

Parece uma segunda armação de óculos que não

consigo arrancar da cara nem mesmo quando durmo...

Nem quando sonho...

Aquelas duas miúdas de mãos cruzadas à frente da

barriga, cabeças baixas a olhar por cima...

E a parecerem cada vez mais pequenas...

Cada vez mais distantes...

...

E a cadelita a correr atrás do jipe até à

exaustão, adivinhando tudo...

...

Page 36: UMA MARCA NA PAREDE

[36]

E o que veio a seguir?

Uma hora?

Mil horas?

Apodrece-se numa hora?

Apodrece-se em mil?

Foi isso que me ficou na cabeça...

Gente a monte apodrecendo lentamente... como fruta

esquecida na fruteira.

Pilhas de gente dentro dos veículos da coluna...

Pilhas por aquele aeroporto fora...

Era como as pilhas de cadáveres que vimos ao longo

da estrada só que estes pareciam mais mortos!

...

E tu? Estiveste lá?

Não me lembro de te ter visto!

Aliás não vi ninguém!

Eu estava tão morta quanto os outros...

Uma cópia de mim via-te a ti ou a uma cópia de ti

andando meio frenético de um lado pró outro...

Page 37: UMA MARCA NA PAREDE

[37]

Fumando, fumando, fumando...

Por vezes desaparecias...

Se calhar tinhas que dar apoio à cópia da viúva...

...

É!

Não vou gozar...

Acho que é mauzinho da minha parte pensar que para

ti não foi pesado também...

Afinal, ao contrário de nós os três, tinhas um

sonho em concretização.

...

“Estive hoje nos patrões e eles gostavam de me

integrar cá!

Têm boas informações da forma como eu dirigia a

chitaca e querem que eu vá pra uma das herdades no

Ribatejo.

É que andam por lá gajos a ocupar aquilo!”

Eh lá! Que se passava!

Tavas doente?

Page 38: UMA MARCA NA PAREDE

[38]

Uma explicação! Contaste-me?

Não!

Não pode ser, tavas doente, só podia!

Perguntei alguma coisa?

Não!

Aliás como sempre!

Se estivesse decidido já estava.

Nessa altura inda não tinha começado a

ressuscitar...

Mas não tardou!

...

Pela primeira vez senti que não tinha sido

abandonada, fechada num cubículo...

Mas no meio de um caminho...

E eu tinha que achar um destino.

...

Como o fiz?

Ora, disse-te há bocado!

Page 39: UMA MARCA NA PAREDE

[39]

Aguentar era a minha marca na parede nessa altura!

Aguentar as idas inconsequentes ao IARN...

Aguentar a selvajaria descontrolada nos fardos de

roupa usada, na Cruz Vermelha...

Aguentar que aqueles sacos de serapilheira

bordados a lã, que eu deixava à consignação nas

lojas, não dessem mais que uns míseros escudos...

Aguentar os insultos nos transportes públicos...

Parecia que trazíamos escrito em nós...

Vai pra tua terra retornada ordinária! O teu lugar

é lá no meio dos pretos!

...

Aguentar que até os miúdos fossem hostilizados...

Aguentar sobretudo não ter força para aguentar!

...

Quase que me fui abaixo...

...

Uma semana quase, sem sair da cama...

Page 40: UMA MARCA NA PAREDE

[40]

Levantava-me pra lhes ir fazer uma sopa e voltava

pra lá...

O miúdo aninhava-se caladito aos meus pés...

...

Como saí desse transe?

Inda tou pra descobrir!

Só sei que, um dia, ouvi um ruído...

Baixinho...

Lá estava ele encostado à ombreira da porta...

Não pode ser! Não posso continuar a deixar que

isto aconteça!

Dei um salto, e...

E, e olha, reinventei-me!

Reinventei-me mas só pra mim e pra eles! Só pra

nós três!

...

Quanto tu te lembravas que tinhas mulher e filhos,

então eu vestia-me da velha Luisa!

Não era preciso grande esforço...

Page 41: UMA MARCA NA PAREDE

[41]

Bastava pôr uma cara serena e sorridente às

refeições e abrir-te as pernas ao deitar...

Um objecto!

Sim, era sim, aliás, acho que sempre fui...

Mas mais nesta fase em que a idade já estava

estampada por todo o lado...

Um objecto...

“Quê! Não queres, é? Não me digas que tas de

chico! Sorte a minha!”

Traste! Só assim não achatavas a pança em cima de

mim, a olhar pró florão da cabeceira como se

naquele ornato residisse o motivo mais

interessante daquele quarto...

Eu não passava de uma boneca onde vinhas

despejar...

“Agora! Aquilo não passam de dois figuinhos

mirrados pendurados ao pescoço!”

Vinhas poucas vezes, quando vinhas tinha que

aturar as tuas tainadas de cartas e tar práli na

cozinha a fazer coisas pros burgessos dos teus

amigos, e inda gramar com este tipo de

comentários!

Page 42: UMA MARCA NA PAREDE

[42]

Por aqui se vê o canalha que és!

Ordinário!

Badalhoco!

...

Mas fiz mais do que isto...

Acho que até fiz sempre mais que a minha

obrigação.

Soubeste sempre o que se ia passando com os teus

filhos...

Do que fosse minimamente importante...

E que não te provocasse reacções...

“Violentas?”

Inda perguntas?

Sim, violentas! Sempre violentas!

Todas!

...

Mesmo as que passavam pelo silêncio...

Esse silêncio nada tinha a ver com o silêncio das

tuas ausências...

Page 43: UMA MARCA NA PAREDE

[43]

Um transportava a acidez que nos corroía numa

tensão latente...

O outro era segregado por uma espécie de glândula

da paz que regulava o nosso bem-estar interior...

...

Pois é...

Foi assim que fui vendo o mundo a mudar,

Lentamente...

Ou a crescer...

Ou a perder a ingenuidade, acho que foi mais

isto...

Hoje acho que a revolução se deu dentro dos olhos!

Só nos meus?

Bem! Sei lá!

Provavelmente!

Nos meus pelo menos deu-se!

Talvez tenha tido muita coisa a ajudar.

Fez-se muito com muito pouco, nessa época. Hoje é

só burguesismos a esvaziar-nos...

Page 44: UMA MARCA NA PAREDE

[44]

...

Nunca como agora tive dúvidas sobre o carácter das

pessoas...

Não consigo deslindar pureza em ninguém...

...

Meã culpa, meã culpa...

O que se passou comigo também se passou com os

outros, eu sei...

Bem, nem com todos! Tu manténs-te fiel ao que

sempre foste!

“E isso não tinha nada de bom?”

Sim, tens razão, nisso também houve coisas boas.

Nunca faltaste com dinheiro...

A maior parte das vezes não chegava pra nada, era

o que era, mas sempre deste.

Também tinhas pra lá a tua fulaninha, lá pró

Ribatejo, mas pelo menos não fizeste de mim a tua

criada.

Durante anos não te lavei umas cuecas que fosse...

...

Page 45: UMA MARCA NA PAREDE

[45]

Como é que eu soube dessa mulher?

Ela tinha-te quase sempre mas isso não lhe

chegava. Ela queria sempre!

Então vai daí, que fez?

Escreveu-me uma carta!

Nunca imaginaste não é?

No entanto, uma daquelas coisas habituais nestas

coisas.

Que te amava muito e que tinha a certeza que tu

também a amavas muito e que eu te deixasse livre

pra seres feliz...

Te deixasse livre pra seres feliz?

Livre?

Feliz?

Ao menos ela sabia várias coisas que eu não

sabia...

Se calhar nem tu sabias!

Acho que tu não sabias que não eras livre!

Nem que não eras feliz...

Page 46: UMA MARCA NA PAREDE

[46]

Sobretudo que não eras feliz...

...

Coitada!

Coitada! É só o que me lembro de ter pensado...

Na volta é mais uma a desperdiçar os melhores anos

da vida, se é que existe uma escala pra avaliar

isso!

Será que já se terá dado conta de quem tu és?

Se calhar deu.

Foi só dar-te uma coisa má e cá tavas tu encafuado

neste pardieiro, atirado pra esse canto...

Manta nos joelhos... Televisão todo o dia a

ladruzir coisas que eu acho que não te dizem

nada...

Que eu acho que não são sequer do teu mundo...

...

“Luísa traz-me água!

Luisa ajeita-me aqui a perna!

Page 47: UMA MARCA NA PAREDE

[47]

Então tu não vês que não consigo segurar nada

nessa mão! Como é que queres que descasque a

maçã?”

Mas a terapeuta disse que...

“Mas essa gaja sabe alguma coisa disto?

Esses chulos só servem pra nos sugar o djimbo!”

E eu também não passava de uma burra, não era?

Que acreditava nas baboseiras que essa malta

dizia?

“Devias era ficar como eu pra saberes o que custa!

Diaba!”

...

Sacana!

Como és sacana!

...

Que sabia eu de ter um espírito forte? De se ser

esforçado?

Que é isso de ser preciso lutar? Que sabia eu o

que era isso? Lutar!

Pois...

Page 48: UMA MARCA NA PAREDE

[48]

Não sabia nada...

Pois, é verdade, já me esquecia, tu acabas-te por

me dar a vida que eu merecia! Fizeste de mim uma

princesa!

Pois, o resto foi ficção!

Continua da escola preparatória, foi ficção!

Pois, já sei... podia ter arranjado melhor!

Isso não era ficção, pois não?

Uma mulher a chegar aos quarenta, que não tinha

concluído o liceu, que nunca tinha trabalhado...

...

Se ao menos me tivesses deixado aceitar a ajuda do

meu pai, enquanto a fábrica deu!

Mas puseste-te com a porcaria de um orgulho

estúpido!

Sim estúpido!

Perfeitamente estúpido!

Não estás habituado a que te fale assim, né?

Page 49: UMA MARCA NA PAREDE

[49]

Então, e vais-me dizer que não foi estúpido também

não deixares que eles pagassem a pós-graduação ao

Rafael?

Se a oportunidade tivesse surgido à miúda, de

certeza que Estrasburgo já não ia ser nem muito

longe, nem muito caro. Aí até te ias desunhar pra

arranjar o dinheiro...

Nunca saberemos até que ponto lhe cortas-te as

pernas...

...

Mas tudo correu bem!

Tu podes nunca reconhecer, e nunca vais mesmo

reconhecer, mas eu levei o barco a bom porto!

Se eles são gente hoje, fui eu.

Fui eu e foram essas coisas!

Foram as lições de piano, foram os lavores até

altas horas da noite e foi esse trabalho na

escola!

Se não fosse ele não tinha hoje uma reforma,

Que tu, nada!

Nadinha mesmo!

Page 50: UMA MARCA NA PAREDE

[50]

E nada de jeito me vais deixar!

Se é que eu te sobrevivo...

...

Por falar nisso, no outro dia sonhei que tinha ido

a um funeral.

Tavamos lá todos...

A tua filha agarrada a mim, toda de negro, num

pranto que metia dó...

O Rafael, de mão dada com a Carla, muito sério,

olhava pra longe...

Parecia que não estava lá...

E tu ali no caixão...

Sim! No meu sonho eras tu quem tinha morrido!

...

Estranhamente pareceste-me bonito como quando eras

novo.

Como quando na Damba saías do jeep com a tua

balalaica, os teus calções de explorador e as

botas de lona da tropa!

Como eras bonito antes de te deixares desleixar...

Page 51: UMA MARCA NA PAREDE

[51]

...

Não faltava nada no meu sonho...

Foi o sonho mais real que me lembro de ter.

Raramente me lembro dum sonho e deste lembro-me

como se tudo se tivesse passado realmente.

Com as pessoas no fim a virem-me dar as

condolências, todas pesarosas...

Lamento muito! Era um bom homem o seu marido!

Nem num sonho a ironia que a minha vida tem sido

me largou.

...

Depois, um bocado retiradas do magote de gente, lá

estavam duas mulheres, que nunca se abeiraram...

E dois rapazes já espigadotes...

Uma delas, podia jurar que era a viúva do

merceeiro!

Bastante velhota já!

Muito acabada mesmo!

...

Page 52: UMA MARCA NA PAREDE

[52]

Céus!

Como eu detesto estas merdas!

Estes rituais!

Como é que se sonha como uma coisa que se odeia?

Acho que quanto mais se aproximam certas coisas na

nossa vida mais ela nos prepara pra essas

coisas...

Como eu gostava de morrer num kimbo e ter uma

batucada durante três dias!

Ah, como eu gostava de acabar a vida com uma

grande festa!

Será que chegaste a perceber que esse é que era o

grande futuro que o mato nos podia trazer?

Essa é que podia muito bem vir a ser a ultima

marca...

...

Às vezes venho aqui pra janela só pra olhar pro

vazio...

Mesmo que, com carros a passar...

E com corpos de pessoas.

Page 53: UMA MARCA NA PAREDE

[53]

Por vezes deixo-o assim, vazio...

Ao vazio...

Deixo-o vazio!

...

Como nunca consigo segurar o pensamento, lá vou

vagueando, mas sem o perturbar...

Mas a maior parte das vezes não aguento e aterro

lá em baixo, assim, tipo pai natal, de saco

carregadinho de vidas pra distribuir.

Encher os corpos de pessoas pra que fiquem mesmo

pessoas.

E como são boas as vidas que eu distribuo!

Como são felizes!

Não há doentes ou desempregados. Não há criminosos

ou traidores ou aproveitadores!

Como são românticos os casalinhos!

Como eles as amam e as cortejam, lhes dão atenção

e as cobrem de importância!

Como são amáveis uns com os outros os velhinhos

nos autocarros!

Page 54: UMA MARCA NA PAREDE

[54]

...

Por vezes fico ali até os olhos se começarem a

render ao sono.

Outras sento-me também a ver televisão...

Só que agora já não me rala que não gostes do que

ponho!

Toda a vida tive que aturar a tua tirania do

comando!

...

A televisão é outra maneira de mergulhar em vidas

emprestadas...

Os livros também são, embora, fique sempre com a

sensação inversa,

É como se comesse ostras...

As folhas são a concha donde sugo avidamente as

personagens.

E para cada uma que eu digiro parece que alguém

deixa de existir lá em baixo...

Assim como uma bola de sabão a rebentar...

...

Page 55: UMA MARCA NA PAREDE

[55]

Inda bem que nós não servimos para personagens de

um livro...

Já viste a quantidade de vezes que alguém nos

inalava que nem uma droga...

Com um efeito alucinógeno a bater nefastamente nas

paredes dos crânios dos leitores...

Sim! Não estás a pensar que um escritor nos ia

descrever assim como somos, pois não?

É que nem pra drogas prestamos!

Nem tu és suficientemente bera nem eu

suficientemente infeliz para darmos numa boa

história.

Não agora que já não vivo no terror...

Como é que agora o escritor ia conseguir

transcrever-me apavorada, com o medo, qual sombra

chinesa, reflectido nas íris...

Não agora que o chicote já não está pendurado com

duas voltas no cabide do longo corredor da

Damba...

Não agora que as tuas ameaças não ecoam mais nos

meus ouvidos...

Page 56: UMA MARCA NA PAREDE

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“Havia de ser comigo. Aquele Arnaldo é de bom

tempo. A mulher arma-lhe uma maca do caraças e o

molenga fica de mãos nos bolsos! Havia de ser

comigo, havia!”

Como? O que disseste? Não ouvi! Vês? Agora não

ouço!

Menos ouço quando sei que tu também tens cagufa...

Não me conheces e isso dá-te medo...

Não me parece que o escritor inspirasse o seu

herói num frouxo!

...

Algumas vezes ainda me sento ao piano com o meu

Strauss e fantasio valsando naqueles vestidos

compridos naqueles salões maravilhosos...

É um desperdício sonharmos acordados com coisas

que não sejam bonitas!

Depois de crescidos há muito poucas coisas que nos

façam regressar ao universo das histórias

infantis...

...

Faz tempo que deixaste de ir também pra cama.

Page 57: UMA MARCA NA PAREDE

[57]

Em boa hora o fizeste.

Já não tenho a energia de outros tempos e começava

a custar-me bastante mudar-te.

Mas sabes, nunca, mas mesmo nunca, me vou embora

sem antes te aconchegar a manta...

Porque o faço?

Não, não confundas, não é isso!

Há muito que qualquer tipo de sentimento deixou de

poder ser justificação.

Só que não sou mulher de rancores!

Sabes, eu não condeno ninguém...

Não tenho esse poder...

Ninguém tem!

...

Mas se tivesse?

Se tivesse?

...

Ora, se tivesse condenava-te!

...

Page 58: UMA MARCA NA PAREDE

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Condenava-te sim...

...

Enquanto eu existisse...

Ou até o vazio lá de fora me invadir a cabeça...

...

Ia ser essa a tua perpétua...

Ficares aí sentado, preso a essa poltrona...

E...

...

E a teres que me ouvir tudo...

...

Chamar-te pulha e patife e todos os insultos que

me saltassem à boca...

Todas as vezes que o fel e a raiva me subissem à

língua...

...

Condenava-te a teres que ouvir tudo, tudo, tudo...

Tudo aquilo que inda me sangra no peito!

Page 59: UMA MARCA NA PAREDE

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OUTROS TÍTULOS DO AUTOR

Salpicos da Memória – 2010

Por Uma Nesga – 2011

Poemas Turbações – 2012