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 Uma históri a do negro no B rasil 115 Capítulo V FUGAS, QUILOMBOS E REVOLTAS ESCRAVAS.

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As sociedades escravistas nas Américas foram marcadas pelarebeldia escrava. Onde quer que o trabalho escravo tenha existido,senhores e governantes foram regularmente surpreendidoscom a resistência escrava. No Brasil, tal resistência assumiu diversasformas. A desobediência sistemática, a lentidão na execuçãodas tarefas, a sabotagem da produção e as fugas individuaisou coletivas foram algumas delas. Fugir sempre fazia parte dosplanos dos escravos.

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  • Uma histria do negro no Brasil 115

    Captulo VFUGAS, QUILOMBOS

    E REVOLTAS ESCRAVAS.

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    As sociedades escravistas nas Amricas foram marcadas pelarebeldia escrava. Onde quer que o trabalho escravo tenha existi-do, senhores e governantes foram regularmente surpreendidoscom a resistncia escrava. No Brasil, tal resistncia assumiu di-versas formas. A desobedincia sistemtica, a lentido na execu-o das tarefas, a sabotagem da produo e as fugas individuaisou coletivas foram algumas delas. Fugir sempre fazia parte dosplanos dos escravos.

    Os cativos fugiam por vrios motivos e para muitos desti-nos. Castigo, trabalho excessivo, pouco tempo para o lazer, desa-gregao familiar, impossibilidade de ter a prpria roa e, bvio,o simples desejo de liberdade eram as razes mais freqentes queos levavam a escapar dos senhores. Por vezes os cativos se ausen-tavam apenas por tempo suficiente para pressionar o senhor anegociar melhores condies de trabalho, moradia e alimentao,para convenc-lo a dispensar um malvado feitor, a manter na mes-ma fazenda uma famlia escrava, a cumprir acordos j firmados ouat para conseguir ser vendido a outro senhor.

    Essas eram as chamadas fugas reivindicatrias, ausnciastemporrias do trabalho, das quais o fugitivo costumava retornarpor conta prpria depois de alguns dias. Ao fugir o escravo com-prometia a produo e colocava em xeque a autoridade do senhor.Isso quer dizer que as fugas no s traziam prejuzos econmicos,como expunham os limites da dominao senhorial. Diante da

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    possibilidade de no poder contar com a fora de trabalho dosfugidos e com a autoridade ameaada, os senhores eram, muitasvezes, levados a negociar, a ceder em alguns aspectos, embora acontragosto.

    Mas o escravo que fugia nem sempre retornava ao cativeiro.Em todo lugar a liberdade era a principal aspirao de quem viviaa triste experincia de ser escravizado. Ver-se livre, isento do con-trole e da subordinao a qualquer senhor foi o principal objetivode muitos homens e mulheres que, sozinhos ou em grupo, resol-viam escapar da escravido. Fugir era perigoso, difcil e, geralmen-te, dependia da solidariedade de outros escravos, libertos e livres.Era preciso algum que pudesse facilitar a fuga, fornecer abrigo,alimentao e trabalho para no levantar suspeitas. Os escravospodiam buscar refgio em fazendas, povoados e cidades, ondepodiam misturar-se aos negros livres e libertos, mas tambm re-corriam aos quilombos.

    Quilombos

    Quilombos, palenques, maroons so diferentes denominaes para omesmo fenmeno nas diversas sociedades escravistas nas Amri-cas: os grupos organizados de negros fugidos. No Brasil, essesagrupamentos tambm eram chamados de mocambos. Fugir dosenhor e se juntar a outros rebeldes foi uma estratgia de luta des-de que os primeiros tumbeiros aportaram na costa brasileira at asvsperas da abolio.

    Ao se referir a quilombo comum as pessoas imaginaremcomunidades exclusivamente negras formadas por choupanas depalha escondidas no meio da floresta, no alto das montanhas, lon-ge das cidades, fora do alcance dos senhores e onde se vivia ape-nas da prpria lavoura, da caa, da pesca e do extrativismo. Masno bem essa a histria de um grande nmero de quilombos noBrasil. Em todo o pas foram muitos os negros rebeldes reunidosem pequenos grupos nos arredores de engenhos, fazendas, vilas ecidades, em lugares conhecidos por seus senhores e autoridades.Como veremos mais adiante, era exatamente por se localizaremperto de ncleos de povoamento que os quilombos inquietavam

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    Anncios de fuga de escravo.

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    as autoridades e causavam tantos transtornos aos proprietrios deterras e escravos. Alm disso, um grande nmero de quilombosreunia no s escravos em fuga, mas tambm negros libertos, in-dgenas e brancos com problemas com a justia.

    Mas a predominncia da idia do quilombo como agrupa-mento exclusivamente negro, auto-sustentvel e isolado nas ma-tas brasileiras tem uma justificativa: Palmares. Palmares foi o maisduradouro e o maior quilombo da histria do Brasil. No semrazo, esse quilombo localizado na capitania de Pernambuco, emterritrio que hoje pertence ao estado de Alagoas, o mais famo-so e tem servido como uma espcie de modelo para se pensartodas as outras comunidades quilombolas. Do mesmo modo, Zum-bi foi feito smbolo de liderana negra no Brasil em detrimento deGanga Zumba, outro rei de Palmares que tambm enfrentou opoder colonial. Mas vejamos agora at que ponto o que idealiza-mos sobre o grande quilombo corresponde s discusses maisrecentes sobre o tema.

    Palmares

    Palmares foi uma comunidade quilombola que, no sculo XVII,ocupava a Serra da Barriga. Essa regio se estendia do rio So Fran-cisco, em Alagoas, at as vizinhanas do cabo de Santo Agostinho,em Pernambuco. Tratava-se de um terreno acidentado e de difcilacesso, coberto de espessa mata tropical que inclua a pindoba, umtipo de palmeira, da o nome Palmares. Se a vegetao dificultava odeslocamento dos caadores de escravos fugidos, chamados capi-tes-do-mato ou capites-de-assalto, e a abundncia de rvores fru-tferas, caa, pesca e gua potvel facilitava a sobrevivncia dos qui-lombolas, tambm exigia dos moradores habilidade para enfrentaros perigos e as dificuldades da vida na floresta. O mesmo ecossistemaque os protegia tambm os ameaava.

    Derrubada a mata, o solo era frtil e mido, prprio para oplantio de milho, mandioca, feijo, batata-doce e banana. A cana-de-acar tambm era ali cultivada para o fabrico de rapadura eaguardente. Experientes no trabalho agrcola, os negros manti-nham plantaes que lhes garantiam a subsistncia a ponto de o

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    Imagem contempornea de Palmares.

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    prprio rei de Portugal, ao autorizar uma das expedies contraPalmares, recomendar que a data coincidisse com a poca de co-lheita dos quilombolas, para permitir o abastecimento da tropa.

    A estratgia de guerrilha dos palmarinos parecia infalvel.Eles se posicionavam em emboscadas e estavam sempre em mo-vimento numa rea que conheciam bem, ao contrrio dos seusperseguidores. Mas a forma de luta dos quilombolas apenas pa-recia infalvel, porque a cada expedio seus caadores tambmaprendiam a se deslocar na regio, prevenir ataques de surpresa earmar cercos. Foi o que se viu com a entrada do capito FernoCarrilho, um sertanista que j havia dado cabo de dois quilombosem Sergipe.

    A primeira ofensiva de Carrilho contra Palmares foi previs-ta para 1676, mas os senhores no conseguiram angariar verbaspara financi-la. S no ano seguinte foi possvel reunir recursospara que, partindo da vila de Porto Calvo, Carrilho atacasse umdos mocambos de Palmares, o Aqualtune. Surpreendidos, os qui-lombolas se retiraram para um novo agrupamento, em Subupira,colocando em ao a ttica guerrilheira. Carrilho no desistiu e,habilmente, evitou lanar suas tropas em conjunto, preferindopequenos ataques enquanto esperava por reforos. Depois de al-gum tempo a ele se juntaram mais 185 homens brancos e ndios,que sitiaram o grande mocambo do Amaro. Existiam ali aproxi-madamente mil casas e entre os moradores estava o rei Ganga-Zumba. Ao fim da campanha, Carrilho aprisionou dois filhos dorei, Zambi e Acaiene, chefes de mocambos e dezenas de outrosnegros, que foram distribudos entre os cabos da tropa. Entretan-to, o quilombo ainda no estava vencido, pois o rei havia escapa-do ao cerco.

    A vitria de Carrilho trouxe esperana para os senhores daregio, mas os onerou demasiadamente. Acabar com Palmaresexigia, alm de perseverana, muito dinheiro. Era caro e perigosoorganizar uma entrada. Exigia armas, munio, mantimentos, es-cravos para carregar a bagagem e remunerao para os combaten-tes. Desanimados com vitrias sempre parciais e com o custo dasexpedies, as autoridades coloniais resolveram propor uma tr-gua aos quilombolas de Palmares.

    Uma das maiores ameaas aos quilombos no interiordo pas eram as expedies militares conhecidas porentradas ou bandeiras. Elas podiam ser organizadas pelogoverno ou formadas por senhores empenhados em re-cuperar escravos fugidos ou em adquirir novos cativos.As bandeiras, geralmente, eram chefiadas por sertanis-tas, homens que conheciam bem o interior do pas eeram hbeis no recrutamento de ndios para as expedi-es. Dentre as muitas expedies desse tipo no pero-do colonial, as mais famosas foram comandadas porBartolomeu Bueno do Prado. Ele chefiou ataques con-tra quilombos no caminho entre Goas e So Paulo. Numadessas expedies, Bartolomeu Bueno do Prado teriarecolhido como trofu 3900 pares de orelhas.

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    O momento era propcio para a suspenso dos conflitos,julgavam os senhores. Os quilombolas estavam enfraquecidos de-pois da ofensiva do capito Carrilho. Ao receber a proposta desuspenso da guerra, o rei Ganga Zumba fez sua prpria anliseda situao. O chefe quilombola deve ter contabilizado as perdasj sofridas, s quais iriam se somar outras tantas em novos comba-tes, e por isso decidiu tentar um acordo com o adversrio. Paraviabilizar a negociao, Ganga Zumba enviou uma embaixada aRecife, acompanhada de um alferes que tinha sido mandado pelasautoridades coloniais para propor a paz.

    A chegada dos quilombolas a Recife, em 18 de junho de1678, causou espanto e tumulto: afinal, os enviados do rei de Pal-mares estavam ali para uma audincia com o governador dePernambuco, Aires de Souza e Castro. A proposta do governoprevia a concesso de uma rea para que os palmarinos pudessemviver em liberdade, plantando e negociando com os brancos. Emtroca tinham que se desfazer de suas armas, armadilhas e deixar deacolher futuros escravos fugidos. Se houve branco que no viuesse acordo com bons olhos, no faltou quilombola para repudi-lo. Zumbi foi um deles. Ele preferiu ignorar a trgua e continuar areceber cativos dispostos a viver longe dos seus senhores.

    Assim que ficou ciente da rebeldia de Zumbi, o governoorganizou a expedio de Gonalo Moreira para destruir Palma-res. O clima de tenso foi reanimado. Ganga Zumba foi mortopor envenenamento e Zumbi assumiu a liderana dos palmarinos.O novo rei conseguiu escapar do ataque de Gonalo Moreira, seescondendo no interior da mata, de onde planejava comandar no-vas ofensivas. Os fazendeiros agora propunham a rendio in-condicional dos rebeldes. Rendio e no mais acordo. Palmaresainda resistiria por algum tempo, mas a sonhada liberdade estavacada vez mais difcil.

    Dessa vez, para comandar as tropas foi contratado o paulistaDomingos Jorge Velho, bandeirante experiente no combate aosndios no interior do pas. Sua misso era destruir o grandequilombo. Em dezembro de 1692 a expedio de Jorge Velho che-gou a Palmares. No incio pareceu-lhe fcil destruir os mocambose aprisionar os rebeldes. Grave engano. Os quilombolas respon-

    Os acordos de paz entre poder colonial e autoridadesquilombolas no foram excepcionais nas Amricas. NaColmbia, Cuba, Equador, Jamaica, Mxico e Surinameforam firmados tratados nos quais, de modo geral, opoder colonial concedia a posse da terra a quilombo-las em troca da garantia de que novos escravos fugi-dos no seriam aceitos nessas comunidades. NoSuriname, ex-colnia holandesa, ainda hoje existe umadas maiores comunidades descendentes de quilombo-las, os saramakas, que celebraram tratados de paz comos holandeses em 1762.

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    deram prontamente aos ataques. O bandeirante sequer conseguiutranspor uma primeira cerca construda a alguns quilmetros domocambo do Macaco, a capital palmarina. Cansados e famintos,os paulistas e alagoanos comandados por Jorge Velho tiveram querecuar. Em Porto Calvo ficaram por longos dez meses espera demunio para que pudessem voltar carga contra Palmares.

    quela altura a tropa contava com pouco mais de seiscentosndios e quarenta e cinco brancos. Eram necessrios reforos. Emjaneiro de 1694, juntaram-se ao grupo Zenbio Accioly de Vas-concelos, Sebastio Dias e Bernardo Vieira de Melo com peas deartilharia e cerca de trs mil homens recrutados em todaPernambuco e vilas alagoanas.

    Ainda assim foi preciso um cerco de mais de vinte dias aoquilombo, que estava guarnecido por uma cerca trplice de 5.434metros de comprimento. Pouca serventia teve a artilharia dos as-saltantes, sequer uma brecha se fazia notar com os tiros. Mas do-minar os rebeldes acuados foi uma questo de tempo. Zumbi, aquem, em 1675, o Capito Gonalo Moreira chamou de general-das-armas do quilombo, resistiu junto a seus comandados at 5de fevereiro de 1694. Naquela noite, ao perceber que estava sendoderrotado, ele e outros quilombolas tentaram sair sem serem per-cebidos da fortaleza de Macaco. Tarefa impossvel para um grupoto grande. Descobertos beira de um penhasco, mais de quatro-centos homens e mulheres foram mortos ou aprisionados logonas primeiras horas da madrugada. Outros tantos que permanece-ram no mocambo tambm foram assassinatos, mas o rei no esta-va entre eles.

    Haviam passado mais de 65 anos de combates, porm omais importante quilombo brasileiro e o maior das Amricas foravencido. Zumbi permaneceu escondido na mata que to bem co-nhecia. Mas no dia 20 de novembro de 1695 ele foi capturado aolado de apenas vinte homens, que em pouco tempo foram truci-dados. Para o rei quilombola foi reservada a decapitao. Sua ca-bea foi espetada em um poste da praa principal do Recife, comoexemplo para outros rebeldes.

    O fim de Palmares foi comemorado com missas e festaspelos proprietrios de escravos em Recife, Salvador e Rio de Ja-

    Calcula-se que em meados do sculo XVII viviam emPalmares cerca de onze mil pessoas. A maior autorida-de era o rei, Ganga Zumba, e depois Zumbi, que go-vernava auxiliado por chefes distribudos em diferentesmocambos. Os homens, que eram a maioria, se ocu-pavam da agricultura. J a organizao e supervisodos trabalhos cabiam s mulheres. O excedente daproduo era entregue pelas famlias aos chefes dosmocambos para que fosse armazenado para poca desecas, pragas e ataques, ou negociado com os comer-ciantes das redondezas.

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    neiro. Os senhores passaram a usar Palmares como argumentopara a necessidade de polticas mais rgidas de controle sobre osnegros. Os episdios na Serra da Barriga tiveram como conseq-ncia a criao do cargo de capito-do-mato, ou de assalto, paracomandar os ataques aos quilombos e perseguir escravos fugidos.

    Palmares mudou a forma como o combate fuga era orga-nizado. At ento, contra as fugas individuais os senhores toma-vam as suas prprias providncias. Era cada qual cuidando de si edos seus. Mas depois de Palmares todos estavam mais atentos,mais vigilantes. Se os fugitivos se juntassem pondo em perigo aordem local, aliciando outros escravos, alm dos capites-do-mato,recorria-se de pronto s milcias e tropas da administrao coloni-al. Pela mesma razo, tornaram-se mais freqente as expediesblicas para explorar os sertes em busca de quilombolas custada cmara e dos moradores locais. A represso ficou mais refina-da, mas nem por isso, como logo veremos, muitos outrosquilombos deixaram de existir onde quer que existissem escravos.

    E o quilombismo continuou

    Assim que o ouro foi descoberto em Minas Gerais, no final dosculo XVII, um grande nmero de escravos passou a compor apopulao local. Durante a maior parte do sculo XVIII a popula-o escrava jamais foi inferior a trinta por cento do conjunto doshabitantes. E, embora j em 1750 a atividade mineradora estivesseem franca decadncia, a mo-de-obra escrava era largamente utili-zada na agricultura, assim como na produo de acar, aguarden-te e rapadura. A regio montanhosa de difcil acesso, o grandenmero de escravos e a liberdade de movimento que a atividadedo garimpo lhes proporcionava favoreceram o grande nmero dequilombos em toda a rea mineradora: Minas Gerais, Mato Gros-so e Gois.

    Ao longo de todo o sculo XVIII, os proprietrios e se-nhores se queixavam de roubos, raptos e assassinatos promovidospor quilombolas em toda a regio. Sabe-se que um quilombo emparticular preocupava as autoridades coloniais, o quilombo doAmbrsio. Ele se estabeleceu na regio do Alto So Francisco,

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    uma zona de cerrado em Minas Gerais. Ali viviam mais de seis-centos cativos que se diziam obedientes apenas a seus prprios reie rainha. Em 1746 foram enviados para combat-lo quatrocentoshomens comandados por Antnio Joo de Oliveira. A batalhadurou sete horas, o quilombo foi arrasado e seus moradores cap-turados.

    A mesma capacidade de recuperao vista em Palmares tam-bm aconteceu no Ambrsio. Casas, fossos e torres de vigilnciaforam reconstrudos pelos rebeldes que conseguiram escapar datropa de Antnio Oliveira. Anos depois, em 1759, nova tropa com-posta por outros quatrocentos homens, em sua maioria ndiosborors, foi organizada para a mesma misso. Desta vez os quilom-bolas amargaram a derrota. Depois que o quilombo foi finalmentedestrudo, o chefe da expedio, Bartolomeu Bueno do Prado, foipremiado com grande quantidade de terras. A concesso de terrasera uma das maiores recompensas pela destruio de quilombos.

    O quilombo do Ambrsio no era um esconderijo comple-tamente isolado dos ncleos urbanos. Como no eram comumenteas comunidades quilombolas de menor porte. Foram muito maiscomuns, no Brasil colonial e imperial, os pequenos grupos de ne-gros fugidos instalados em reas prximas de onde viviam os seussenhores. A prpria definio de quilombo vigente na colnia traztal evidncia: qualquer habitao com cinco ou mais negros fugi-dos assentados em local despovoado, o que inclua os arredoresdas fazendas, vilas e cidades. Outra definio de quilombo era areunio de mais de quatro escravos que, vindos das matas, promo-vessem roubos e homicdios, assim como escravos que vivessemfortificados.

    Vila Rica, atual Ouro Preto, capital da capitania de MinasGerais, era cercada por esses pequenos quilombos, que traziam pre-ocupao para os proprietrios de escravos ocupados na mine-rao. Entre 1710 e1798, pelo menos 160 quilombos foram identi-ficados em Minas Gerais. A geografia e as caractersticas da ativida-de mineradora contribuam para tanto. A regio montanhosa, n-greme, ainda pouco explorada e rica propiciava a reunio de gruposde quilombolas especialistas na cata de ouro, que podia render osuficiente para a compra da alforria. Por isso era possvel que o

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    Capito-do-mato conduzindo um escravo fugido.

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    escravo permanecesse fugido apenas enquanto acumulava a somanecessria para a compra de sua prpria alforria e de seus parentes.Depois, ele mesmo ou um intermedirio propunha ao senhor umbom negcio pela sua liberdade.

    Nesse sentido, nem sempre o negro que fugia tinha em vis-ta negar a escravido. Os mocambos tambm podiam ser lugaresonde visitar velhos conhecidos ou parentes, se divertir, descansar,cantar, danar e retornar senzala na manh seguinte ou depoisde alguns dias. Nesse caso o quilombo tambm podia ser um lugarde passagem, abrigo temporrio no qual a escravido nem sempreera negada, embora fosse sempre desafiada.

    O fato de reunir gente em trnsito no diminua os riscosque os quilombos representavam para a ordem escravista. Nasreas mineradoras, eles traziam instabilidade para uma regio ondea grande circulao de riquezas exigia muita segurana. Organiza-dos e refugiados nas montanhas, os quilombolas exploravam mi-nas, cultivavam alimentos, mas tambm podiam ameaar viajan-tes, controlar a entrada e sada de pessoas e mercadorias nas vilase roubar comboios transportando ouro. Nas muitas vilas e cida-des da regio era possvel se misturar populao negra escrava eliberta, constituindo alianas, fazendo negcios ou convencendooutros escravos a se aquilombarem.

    Era o que se observava no lugar conhecido por Chapadados Negros, em Gois. L o rei quilombola se chamava Bateeiro,nome que deriva de batia, a gamela de madeira usada na lavagemdas areias aurferas ou do cascalho diamantfero. Sua liderana sobrecerca de seiscentos escravos fugidos estava de alguma maneira li-gada habilidade na extrao e comrcio de minrios. Com igualhabilidade, os alimentos excedentes produzidos na Chapada dosNegros eram comercializados com os lavradores e os mascatesque circulavam pelas vilas e cidades das redondezas levando mer-cadorias e notcias. Essa importante rede de relaes garantia asobrevivncia do quilombo. Em vrias ocasies os quilombolasconseguiram se posicionar para o conflito, ou mesmo abandonara regio, porque contaram com informaes precisas sobre o des-locamento de tropas. Para que um quilombo sobrevivesse era ne-cessria a habilidade de seus habitantes em negociar o forneci-

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    Principais quilombos mineiros no sculo XVIII

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    mento de alguns produtos e servios especficos, inclusive infor-maes sobre as aes dos perseguidores.

    S era possvel aos quilombolas comercializar o que extra-am do garimpo nas montanhas se estabelecessem vnculos comgente escrava, liberta e, principalmente, livre. Em Gois alm deservir para a compra de cartas de alforria, o ouro era trocado comcomerciantes por armas, munio, cachaa e tecidos. Se havia en-tre os livres quem tivesse interesse e empenho em combater osquilombos, tambm existia quem se favorecesse com a ao deles.Taberneiros, mascates e negros de ganho tinham boas relaescom calhambolas como tambm eram chamados os negrosfugidos , contanto que lhes oferecessem boas oportunidadesde negcio. Era tal artifcio que garantia aos quilombolas venderna cidade do Rio de Janeiro, em meados do sculo XIX, a madeirapor eles extrada nas florestas da regio de Iguau.

    Nos mocambos se refugiavam no s escravos, mas tam-bm ndios em conflito com brancos ou com outros ndios, bran-cos pobres, entre os quais quem queria escapar do recrutamentomilitar, como aconteceu na poca das lutas pela independncia naBahia (1822-23), da revoluo Farroupilha (1835-41) e da guerracontra o Paraguai (1864-70). Por conta desse conluio, como sedizia na poca, entre aquilombados e homens livres ou libertospreviam-se duras penas para quem no denunciasse ou quem des-se guarida a escravos fugidos. O governo proibiu, em 1764, que naregio mineradora as negras de tabuleiro forras e escravas pudes-sem negociar em reas onde fosse fcil o extravio de ouro. V-se,portanto, que as comunidades quilombolas no estavam isoladasda sociedade, ao contrrio, interagiam com ela.

    A existncia de quilombolas livres, embora parea estranha,no foi incomum. No sul da Bahia, em Barra do Rio de Contas,atual Itacar, foi descoberto, no comeo do sculo XIX, oquilombo do Oitizeiro, onde conviviam escravos e gente livre.Tratava-se de um quilombo agrcola, protegido por grandemanguezal, cuja principal atividade era a produo de farinha demandioca. Tendo como esconderijo os stios de uma pequena vilade lavradores, os quilombolas trabalhavam nas roas de mandiocalado a lado com pessoas livres e libertas, seus coiteiros. Coiteiro

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    era como se denominava quem induzia escravos a fuga, os abriga-va e fazia negcios com eles ou os tinha em seu servio.

    Ali no Oitizeiro, um grande nmero de moradores tinhaquilombolas como meeiros ou empregados em suas plantaes.Mas, pode-se perguntar qual a vantagem para um escravo fugir doseu senhor para ficar a servio de outro? Provavelmente, havia umacordo: os escravos fugidos trabalhavam e eram recompensadoscom proteo, comida, alguma remunerao ou o acesso a umpedao de terra, na qual podiam plantar a sua prpria roa. Dessemodo, aquilombar-se no stio de um homem livre podia ser a opor-tunidade para ganhar algum dinheiro com a venda da farinha demandioca. Em Palmares tambm se observou esse tipo de arran-jo. Para Domingos Jorge Velho, certo desembargador Cristovode Burgos devia ser indiciado pela Coroa portuguesa porque, sen-do proprietrio de terra nos arredores do quilombo, era colonodos negros, ou seja, se utilizava da mo-de-obra dos palmarinos.

    As relaes entre quilombolas e grupos indgenas oscila-vam entre o conflito e a cooperao. Eram as circunstncias e osbenefcios para uns e outros que davam o tom desse relaciona-mento. Em Gois, por exemplo, os caiaps muitas vezes captura-vam os quilombolas e os entregavam nas vilas em troca de ferra-mentas, tecidos e comida. Era, inclusive, muito comum que osndios fizessem parte das expedies de caa a negros fugidos. Osxavantes e caiaps de Gois destruram mais quilombos do que asexpedies dos bandeirantes. Houve mesmo um tempo, no inciodo sculo XVIII, em que os xavantes consideravam todos os ne-gros livres ou escravos como inimigos.

    Cabe lembrar que foi uma fora majoritariamente formadapor ndios que destruiu Palmares em 1694. Alguns grupos, comoos Cariris, formavam batalhes regulares, com comandante,fardamento e armas, destinados a capturar quilombolas. Tal alian-a com os brancos se explica pelo pagamento de recompensas,retribuio de favores e pela rivalidade que muitas vezes se estabe-lecia entre ndios e quilombolas que disputavam reas de caa eminerao, alm de mulheres. Essa disputa por mulheres decorriado pequeno nmero delas nos quilombos, o que muitas vezes le-vava os quilombolas a rapt-las nas aldeias indgenas.

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    Em Mato Grosso, o quilombo do rio Manso, por volta de 1865,contava com duzentos e sessenta homens maiores de 16 anos e ape-nas vinte mulheres e treze crianas. Essa desproporo entre homense mulheres tambm se observava nas senzalas, mas era ainda maiornos quilombos. E, se na regio predominasse a atividade mineradora,a disparidade se fazia ainda mais aguda. Era o caso do Mato Grossono sculo XVIII. E mesmo no quilombo de Iguau, no Rio de Janei-ro, regio de cultivo de cana-de-acar e outras atividades agrcolas,que tambm empregava a mo-de-obra feminina, foram encontradosonze homens e apenas uma mulher, a mulata Rosa, que usava roupasmasculinas e participava dos ataques aos stios das redondezas. Essadesigualdade numrica explica o rapto, pelos quilombolas, de mulhe-res em geral escravas, mas tambm indgenas.

    Nem sempre os ndios estiveram ao lado dos perseguidoresdos quilombolas, muitas vezes estavam entre os moradores dosmocambos. Mesmo em Palmares havia tanto ndio quilombola quan-to entre as foras de assalto. No quilombo do Quariter no MatoGrosso, no sculo XVIII, as alianas entre quilombolas e comuni-dades indgenas preocupavam as autoridades locais. Com a troca deconhecimentos sobre a vida nas matas, o uso de plantas venenosas,prticas curativas, estratgias de guerra e formas de cultivo, garantia-se a sobrevivncia em regies inspitas e condies adversas.

    O quilombo do Quariter teve cerca de trs dcadas de exis-tncia, at por volta de 1795, quando concentrava mais de cempessoas, entre negros e ndios, que cultivavam grandes plantaesde milho, feijo, mandioca, amendoim, batata, car, frutas, fumo ealgodo. Ao ser atacado pela bandeira de Francisco Pedro de Melo,a maioria dos moradores era de filhos de negros e ndios nascidosali. A longevidade desses quilombos mistos de ndios e negrospossibilitou a um grupo de quilombolas capturado em Curu, nobaixo Amazonas, alegar que nunca havia tido senhor por teremnascido nas matas. Ao contrrio de seus pais, eles nunca haviamconhecido os dissabores da escravido.

    J o quilombo do Catuc, em Pernambuco, nasceu no con-texto da independncia nacional, foi duramente perseguido em1827, mas se reestruturou na dcada de 1830, poca de muitasrevoltas e disputas polticas entre brancos e mestios livres. Esses

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    Quilombo Buraco do Tatu, Bahia, 1763

    Um dos documentos mais importantes sobre quilombosno Brasil a planta do quilombo Buraco do Tatu, nacidade de Salvador. O Buraco do Tatu j existia haviavinte anos, quando foi destrudo por uma expedio mi-litar, comandada por portugueses, em 2 de setembrode 1763. Ao relatrio da tropa sobre o ataque e a des-truio do quilombo foi acrescida uma planta, que des-creve a organizao fsica do Buraco do Tatu e retrataalguns quilombolas.

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    conflitos facilitavam o surgimento e o crescimento dos quilombos,porque o controle sobre os escravos ficava mais relaxado. Cientesdisso, assim que as disputas polticas se acomodavam os senhoresreforavam a carga repressiva, na tentativa de reverter os avanosda rebeldia negra. Foi o que aconteceu com os quilombos deIguau, no Rio de Janeiro.

    Em Iguau, a maioria dos cativos estava empregada na produ-o de alimentos, extrao de lenha e fabrico de tijolos. A regio de extensa plancie, com riachos e pntanos que favoreciam a for-mao de mocambos. Em 1812, havia quilombolas que viviam alidesde o final do sculo XVIII. Eles eram acusados de atacar e piratearembarcaes que navegavam nos rios Sarapu e Iguau, o que faziacom que alguns mestres de embarcao pagassem pedgio em car-ne e farinha para navegar. A conivncia de mercadores, escravosremadores e lavradores, alm do difcil acesso s regies onde osquilombolas se escondiam, dificultavam a ao da polcia.

    As autoridades riograndenses estavam igualmente preocupa-das com negros fugidos. Temiam as revoltas, principalmente emPelotas, onde havia uma grande concentrao de escravos nascharqueadas, as fazendas de produo de charque. O quilombolaManoel Padeiro, com o ttulo de general, chefiou, em abril de 1835,cerca de doze a quinze fugitivos africanos e crioulos em vrios as-saltos a chcaras na serra dos Tapes. Na ocasio pareceu ainda maisgrave o fato dele ter seqestrado quatro mulheres, inclusive umalivre, Senhorinha Alves, filha de um pardo livre. Depois de umaexaustiva perseguio, Manoel Padeiro foi capturado e morto.

    Enfim, os quilombos foram a forma mais tpica de resistnciaescrava coletiva. Em vrias regies do Brasil ainda podem ser loca-lizadas comunidades remanescentes de quilombos. S a partir de1995, quando ocorreu o primeiro encontro dessas comunidades, ogoverno brasileiro passou a identific-las e iniciar a legalizao daposse das terras ocupadas pelos descendentes dos quilombolas.

    Embora menos freqentes, as revoltas escravas tambmcomprometeram seriamente a paz e a propriedade dos senhores eo poder das autoridades. Os cativos rebeldes puseram em perigo aordem escravista, principalmente na Bahia, durante as trs primei-ras dcadas do sculo XIX.

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    Revoltas escravas

    Durante a primeira metade do sculo XIX, os escravos da Bahiaficaram conhecidos em todo pas pelas rebelies que promoviam.Eles deixavam claro que no iriam se sujeitar sem luta. Naquelemesmo perodo a vitria negra em So Domingos, atual Haiti,deixou os senhores em desassossego. No podia ser diferente, poisnaquela ilha do Caribe uma revoluo escrava, iniciada em 1791,marcou o fim da escravido e a criao de um pas independente.Temia-se que o desfecho haitiano enchesse de nimo os escravosdaqui. E esse no era um medo infundado, pois h registro de queno Brasil escravos e libertos sabiam sobre as aes dos rebeldesem So Domingos e os tinham como exemplo.

    A Bahia era, na primeira metade do sculo XIX, o maiorprodutor de acar no Brasil. No Recncavo baiano, como sedesigna a regio que circunda a Baa de Todos os Santos, estavamos engenhos mais produtivos. Trata-se de uma regio formadapor mangues, baixios, tabuleiros, ilhotas e vales margeando o mar.So terras frteis e propcias para o cultivo da cana-de-acar. Todaa atividade dos engenhos era movida pelo trabalho escravo dosafricanos e crioulos. A grande concentrao de escravos tornou oRecncavo baiano especialmente propenso a revoltas escravas. Defato, ali a rebeldia escrava deixava os senhores em sobressalto.

    Alguns levantes, talvez a maioria deles, no passaram da faseda conspirao. Em 1807, por exemplo, Salvador foi palco de umaconspirao planejada para o dia 28 de maio, durante as comemo-raes de Corpus Christi. Naquela noite, depois da festa, os rebel-des pretendiam incendiar a Casa da Alfndega e uma igreja. Ins-taurada a confuso, os escravos empossariam seu prprio gover-nador, convocariam outros negros, eliminariam os brancos porenvenenamento e queimariam as imagens catlicas numa grandefogueira no meio da praa. Em seguida, uma fora rumaria paraPernambuco, onde tambm havia uma numerosa populao es-crava, e l se juntaria a outros escravos para formar um reino inde-pendente no interior.

    Os rebeldes eram africanos de origem hauss, que ocupamum territrio no norte da atual Nigria, gente que fora escravizadaem meio a uma jihad ou guerra santa muulmana. Os amuletos

    Em 1791, em meio Revoluo Francesa a aboliofoi decretada nas colnias da Frana, inclusive no Haiti.Mas quando Napoleo Bonaparte assumiu o poder aescravido foi restabelecida. Os ex-escravos haitianosno aceitaram a volta do cativeiro e, sob a liderana deToussaint L Ouverture, enfretaram as tropasnapolenicas. Os franceses controlaram os revoltosose prenderam L Ouverture. Mas sob a liderana de JeanJacques Dessalines os haitianos resistiram e em 1804assumiram o controle do pas. Os franceses foram ex-pulsos ou mortos, a independncia foi proclamada edecretou-se de novo o fim da escravido.

    No territrio hauss, norte da atual Nigria, foi defla-grada, em 1804, uma jihad pelo xeque de origem fulani,Usamam dan Fodio. Essa guerra santa produziu mui-tos prisioneiros que acabaram sendo vendidos para otrfico atlntico.

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    que usavam, a idia de queimar a igreja e as imagens catlicas soindicaes de que a investida rebelde hauss combinava objetivospolticos e princpios religiosos, como na frica. Isto no foi ex-clusivo dos rebeldes de 1807. Religio e solidariedade tnica fo-ram elementos presentes em outras insurreies do perodo.

    A lealdade de um escravo a seu senhor abortou a revolta cin-co dias antes da data marcada. Os chefes da rebelio eram sete eforam quase todos presos pelos homens do governador, o condeda Ponte, durante uma reunio num casebre de um negro liberto.Eles traziam consigo algo em torno de quatrocentos arcos e fle-chas, facas, pistolas, espingarda e um tambor. Depois das investiga-es presididas pelo prprio conde da Ponte, foram identificadostreze envolvidos. Para alguns coube a pena de aoites em praa p-blica, para outros o degredo para Angola, mas todos os escravos naBahia tambm pagariam o preo pela revolta fracassada, pois foramproibidas festas africanas e restringida a circulao de libertos.

    Uma nova rebelio escrava dois anos depois demonstravaque a poltica repressiva do conde da Ponte no fora to eficiente.O plano previa fuga em massa, unio entre escravos de Salvador edo Recncavo, alm de cerco capital baiana. A primeira aoconsistiu em organizar, em 4 de janeiro de1809, a fuga de um gru-po de escravos residentes em Salvador para se juntar a um outroque j estava aquilombado desde 26 de dezembro de 1808. Dessavez no houve delatores, apesar do grande nmero de envolvidos,mais de oitenta pessoas entre homens e mulheres. Entretanto, osrebeldes no conseguiram escapar do ataque de soldados e capi-tes-do-mato. A maioria foi presa, morta, marcada a ferro ou chi-coteada publicamente, mas alguns continuaram a vagar pelo inte-rior da capitania, roubando, matando e incendiando fazendas.

    A regularidade das revoltas parecia demonstrar que o Brasilpodia mesmo vir a ser o prximo Haiti das Amricas. A ameaarebelde na Bahia se repetiu em 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, 1828,1830 e 1835, perodo em que aconteceram cerca de trinta revoltas,a maioria delas promovida por escravos hausss e nags, estesltimos africanos iorubs. A mais sria delas aconteceu em 1835.Em janeiro daquele ano a capital foi surpreendida pela dennciade que os mals como eram conhecidos os nags muulmanos

    O conde da Ponte assumiu o governo da Bahia em 1805.Sob a sua administrao foram executadas aes maisduras contra escravos rebeldes e vrias medidas de con-trole da rotina dos escravos. Dentre elas o toque de re-colher mais cedo para os escravos que estivessem nasruas sem autorizao de seus senhores e a proibiodos batuques.

    O conde dos Arcos governou a capitania da Bahia en-tre 1810 e 1818. Nesse perodo a Bahia vivia um mo-mento de prosperidade econmica, o que permitiu arealizao, em Salvador, de obras importantes como oPasseio Pblico, a Casa do Comrcio e a BibliotecaPblica. O conde dos Arcos, ao contrrio do conde daPonte, considerava os senhores baianos excessivamen-te rgidos com seus escravos. Esse governador julgavaque o excesso de castigos, a restrio do tempo parao lazer e a alimentao de m qualidade s provoca-vam a rebeldia escrava.

    O conde da Ponte e o conde dos Arcos representavamformas diferenciadas de governar uma sociedade es-cravista. Enquanto um julgava que maior controle so-bre os escravos inibiria iniciativas rebeldes, o outro con-siderava que amenizando as duras condies docativeiro a paz estaria garantida. Nem um nem outroacertou. A escravido era suficiente para provocar aresistncia escrava, embora no fosse a nica razopara esta.

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    - tramavam um grande levante. A organizao dos rebeldes sur-preendeu os brancos.

    Os mals estavam se reunindo desde o ano anterior. Tinhaminstitudo um lder, o africano Ahuna, e costuravam adeses juntoaos cativos do Recncavo. Como muulmanos que eram muitossabiam ler e escrever em rabe e sonhavam com uma Bahia gover-nada por africanos. O plano era fazer a revolta num domingo defesta religiosa, dia de grande nmero de escravos nas ruas, isentosdo controle dos seus senhores.

    Mais uma vez o plano rebelde chegou ao conhecimento dosbrancos por negros delatores. Pelo menos trs libertos africanos Domingos, Guilhermina e Sabina se incumbiram de de-nunciar a trama s autoridades. Ciente dos acontecimentos, a po-lcia se armou e comeou a busca por suspeitos. Pouco depois,cinqenta a sessenta mals foram flagrados no subsolo de um so-brado no centro da cidade enquanto comiam e tramavam os lti-mos detalhes da rebelio. Ao perceberem que haviam sido desco-bertos, eles enfrentaram a patrulha e fugiram pelas ruas da cidade,s escuras, armados com facas e espadas.

    A denncia precipitou um plano de rebelio que ainda estavasendo preparado. Aos gritos, eles acordaram outros africanos, ata-caram a cadeia pblica onde estava preso um mestre muulmano,Pacfico Licutan. Ali encontraram tambm soldados preparados parao confronto. Talvez os rebeldes julgassem que Al no lhes faltariadeste lado do Atlntico, e para garantir a proteo divina, encheramos bolsos e penduraram nos pescoos amuletos com rezas e tre-chos do Alcoro escritos em rabe. Mas os mals foram derrotados.Na manh seguinte contaram-se mais de setenta mortos espalha-dos pelas ruas de Salvador. Entre os partidrios do governo foramnove: quatro pardos, um crioulo e quatro brancos.

    A eficincia da polcia baiana em 1835 demonstrou que assucessivas rebelies escravas serviram como cursos intensivos decontra-inssureio. As foras policiais rapidamente vigiaram o por-to, as ruas e chafarizes, reforaram a guarda do palcio do gover-no, revistaram casas de africanos, inquiriram suspeitos e patrulha-ram as imediaes da igreja do Bonfim, onde havia muita gentereunida festejando Nossa Senhora da Guia.

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  • 138 Uma histria do negro no Brasil

    Depois de uma investigao minuciosa, as autoridades toma-ram conhecimento da sofisticada rede organizada pelos africanosmals na Bahia. Mais de quinhentas pessoas foram indiciadas e pu-nidas com aoites, prises, deportaes, sendo quatro executadaspor fuzilamento em praa pblica. A revolta dos mals trouxe apre-enso em todo o pas. Alm do medo de que a revoluo no Haiti serepetisse no Brasil, agora tinha-se um exemplo bem mais prximodo quanto a paz dos brancos podia ser perturbada. No foi toaque na maioria das provncias, principalmente nas de maior popula-o cativa, a exemplo do Rio de Janeiro e Minas Gerais, foramadotadas medidas mais duras de controle da escravaria.

    Em Minas Gerais, desde 1833 as autoridades e senhores es-tavam mais vigilantes em relao a rebeldia escrava. Eles estavamconvencidos da necessidade de maior aparato policial e de leisque inibissem as repetidas e ousadas aes rebeldes. Uma dessasaes, ainda que pouco conhecida, foi a revolta de Carrancas, em1833. Carrancas ficava a 286 km ao sul de Belo Horizonte e, entre1833 e 1835, dos seus 4.053 habitantes, 61,5% eram escravos.

    A rebelio teve incio na fazenda Campo Alegre, proprieda-de de Gabriel Francisco Junqueira, importante poltico da regio.Era o dia 13 de maio de 1833 e, como de costume, o filho do donoda fazenda, Gabriel Francisco de Andrade Junqueira, foi supervi-sionar o trabalho dos escravos na roa, quando foi atacado e mor-to por trs escravos, Ventura, Diogo e Julio. Logo em seguida,um grupo de oito rebeldes rumou para uma fazenda vizinha, aBela Cruz, que pertencia mesma famlia. L o grupo, acrescidode mais uns trinta escravos, matou todos os brancos. Em seguida,foi a vez da fazenda Bom Jardim, mas dessa vez os rebeldes foramsurpreendidos pela resistncia do proprietrio que, tendo reunidotodos os seus escravos na sala principal da casa-grande, revidou oataque com sucesso.

    A ousadia foi mesmo a marca dessa revolta. O objetivo dosrebeldes era matar todos os brancos da freguesia de Carrancas etomar posse de suas propriedades. Os Junqueira deviam estar emp de guerra com seus escravos, o que explicaria terem sido oprincipal alvo da fria dos rebeldes, que mataram dez integrantesdessa famlia. Depois de controlados, os revoltosos receberam

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  • Uma histria do negro no Brasil 139

    punio exemplar. Entre os envolvidos, dezessete foram conde-nados pena de morte por enforcamento.

    O escravo tropeiro Ventura Mina, que planejara os passos darevolta ao longo de aproximadamente um ano, foi morto no con-fronto. Ventura havia sido eleito rei dos escravos, o que reafirmao seu papel de lder dos vinte e um africanos e nove crioulosindiciados pelas autoridades judicirias. Mas outros escravos tam-bm foram muito importantes na organizao da revolta, dentreeles os crioulos Roque e Jernimo. Ambos eram tropeiros e viaja-vam com certa freqncia para a cidade do Rio de Janeiro, onde acrise poltica do perodo regencial animava a rebeldia escrava. Aquelaera uma fase delicada da histria do Brasil. A instabilidade polticano pas, durante o perodo regencial (1831- 1840), dividiu os bran-cos e debilitou o controle sobre os cativos, dando-lhes espao paraque recorressem a rebelies armadas contra a escravido.

    A ateno redobrada movimentao dos escravos, espe-cialmente os africanos, e as crticas continuidade do trfico atln-tico passaram a ser mais contundentes depois dessas revoltas. Masa maior conseqncia delas foi a certeza de que a escravido eraincompatvel com a harmonia social, e que ficar a merc da lealda-de de alguns negros delatores no era a melhor poltica de salva-guarda. Foi nesse contexto que a lei de 10 de junho de 1835 foiidealizada. A lei determinava que caberia a forca ao escravo queatentasse contra a vida do seu senhor, seus familiares e feitores. Alei era dura, inflexvel e foi aplicada aos envolvidos na revolta deManoel Congo, em Vassouras, Rio de Janeiro, em 1838.

    Nesta revolta os escravos amotinados pareciam confirmar adesconfiana dos senhores acerca da predisposio dos quilombo-las sedio. O incio do levante foi a fuga de escravos de diversasfazendas da regio de Pati dos Alferes, entre os dias 6 e 10 de no-vembro de 1838, quando foi morto um capataz. Os quase duzentosfugitivos eram crioulos e africanos que se esconderam nas matascom alimentos, armas, munio e ferramentas de trabalho roubadasdas fazendas. A liberdade, contudo, durou pouco. No dia 11 de no-vembro a Guarda Nacional e o Exrcito, comandado por Lus Alvesde Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, deram fim ao quilombodo ferreiro Manoel Congo que, como previa a lei de 1835, foi con-

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    denado forca. Embora s tivesse durado alguns dias, o feito doscativos em Vassouras passou a fazer parte da memria local sobre aescravido.

    A relao entre instabilidade poltica e revoltas escravas ficouclara no Maranho, com a exaltao dos escravos em meio revoltaconhecida como Balaiada (1838-1841). Assaltos, assassinatos de fei-tores e roubo de armas e munio faziam crer que estava sendoorganizada uma insurreio capaz de reunir gente dos mocambos edas senzalas maranhenses naquele momento de crise poltica. Se-nhores e governantes tinham bons motivos para se assustar.

    Em 1839, mais de dois mil negros liderados pelo libertoCosme Bento das Chagas se estabeleceram numa fazenda s mar-gens do rio Preto, cujo dono foi obrigado a conceder cartas dealforria aos seus duzentos escravos antes de ser morto. Em 1840,de novo Lus Alves de Lima e Silva foi enviado para a regio coma misso de pr fim quela situao. Derrotado, Cosme, junto commais duzentos quilombolas, tentou atravessar as fronteiras da pro-vncia do Maranho, mas foi capturado e executado em 1842. Em1846 foi a vez das autoridades da provncia de Pernambuco desar-ticularem uma sociedade secreta de negros acusada de tramar umainsurreio escrava na cidade do Recife. O lder, chamado de Di-vino Mestre por cerca de trezentos seguidores, era o crioulo Agos-tinho Jos Pereira. A seita considerava que a Bblia j anunciava ofim da escravido, cobrava dzimos dos fiis e dizia que os santoscatlicos eram apenas esttuas. Apesar da afronta que a crena doDivino Mestre representava para a Igreja catlica, o que mais as-sustou as autoridades policiais foram os versos, que falavam darevoluo no Haiti, encontrados na casa de um dos seus discpu-los. Nos versos a expresso moreno usada, tudo indica, para signi-ficar o conjunto dos afro-descendentes.

    Aps o declnio do trfico e sua extino em 1850, as revol-tas foram rareando e prevaleceu um percurso mais calmo na resis-tncia escrava. Houve excees, claro, a exemplo do episdioprotagonizado por quilombolas no interior do Maranho que, em1867, conclamaram os cativos a promover a abolio. Assim comofizeram os moradores do quilombo de Vila Matias em Santos, naprovncia de So Paulo, onde, sob a liderana do Pai Felipe, incor-

    Trechos dos versos subversivosdo Divino Mestre:

    Herdeira pela naturezaDe digna estimaoDesta nobre cor morenaO primeiro foi Ado

    ...

    Queiram a nao poderosaDe morenos e africanosDefragou no BrasilDentro do pelo de cana

    ...

    Homens sem humanidadeLembra-te do futuroD liberdade aos morenosE temei a uma nuvem escura

    ...

    Oh! grande a cegueiraDesta gente BrasileiraNo olha para o HaitiE para a Amrica Inglesa

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    poraram-se luta abolicionista j nos anos 80 do sculo XIX. Defato, como veremos adiante a rebeldia escrava recrudesceu nasvsperas da abolio.

    Mas no s de revoltas e quilombos foi a resistncia escravano Brasil. muito importante dizer que na vida cotidiana os es-cravos estabeleceram maneiras midas de resistir tecidas na rotinado trabalho. Vale repetir que o escravo descontente podia formarquilombos e promover revoltas, mas tambm podia sabotar a pro-duo do senhor, fingir estar doente para diminuir sua jornada detrabalho, envenenar as pessoas da casa-grande, desobedecer siste-maticamente e at negociar sua venda para um outro senhor quemais lhe agradasse. De toda maneira, o que estava em jogo eracontinuar autor da sua prpria histria, apesar da escravido.

    EXERCCIOS:

    1. Comente a seguinte frase: ao fugir o escravo com-prometia a produo e colocava em xeque a autori-dade do senhor.

    2. Os quilombos estabelecidos nas reas mineradoraspunham em risco o comrcio de ouro, entretantomuitos comerciantes tambm tinham os quilom-bolas como parceiros. Como podemos analisar asrelaes entre as comunidades quilombolas e apopulao livre e escrava?

    3. Por que a Revoluo do Haiti trouxe preocupaespara as autoridades brasileiras?

    Bibliografia:ANDRADE, Marcos Ferreira. Rebelio escrava na Comarca do Rio das Mor-tes, Minas Gerais: o caso Carrancas. Afro-sia, n 21/22 (1998-99), pp. 45-82.

    CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife,1822-1850. Recife: Editora Universitria da UFPE, 1998.

    GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de quilombolas: mocambos e comunidades desenzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

    KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). So Paulo:Companhia das Letras, 2000.

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  • 142 Uma histria do negro no Brasil

    MATTOSO, Ktia de Queirs Mattoso. Ser Escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense,1982.

    MOURA, Clvis. Rebelies da senzala. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1988.

    REIS, Joo Jos e GOMES, Flvio dos Santos Gomes. Liberdade por um fio histria dos quilombos no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.

    REIS, Joo Jos, e SILVA, Eduardo. Negociao e conflito a resistncia negra no Brasilescravista, So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    REIS, Joo Jos. Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. SoPaulo: Conpanhia das Letras, 3003.

    SCHWARTCZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001.

    Videos/filmes

    Quilombo (1984). Direo Cac Diegues. 119 minutos

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