uma historia do negro no brasil

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    UMA HISTRIA DO NEGRO NO BRASIL

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    A345 Albuquerque, Wlamyra R. de

    Uma histria do negro no Brasil / Wlamyra R. de Albuquerque,

    Walter Fraga Filho. _Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais;

    Braslia: Fundao Cultural Palmares, 2006.

    320p.

    ISBN: 85-88070-022

    1. Negros - Histria - Brasil. 2 Escravido - Brasil. 3. frica -

    Histria. 4. Brasil - Civilizao - Influncias africanas. 5. Discriminao

    racial - Brasil. I. Albuquerque, Wlamira. II. Fraga Filho, Walter. III.

    Universidade Federal da Bahia. Centro de Estudos Afro-Orientais. IV.

    Fundao Cultural Palmares.

    CDD - 305.896081

    Presidente da RepblicaLus Incio Lula da Silva

    Ministro da Cultura

    Gilberto Gil

    Fundao Cultural PalmaresUbiratan Castro de Arajo (Presidente)

    Universidade Federal da Bahia-UFBA

    Reitor da UFBANaomar Almeida

    Diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais-CEAOJoclio Teles dos Santos

    Coordenador e consultorJoo Jos Reis

    Reviso

    Maringela de Mattos NogueiraEditoraoBete Capinan

    CapaNildo e Renato da Silveira

    Tratamento de imagensZeo Antonelli

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    UMA HISTRIA DO NEGRO

    NO BRASIL

    Wlamyra R. de Albuquerque

    Walter Fraga Filho

    Centro de Estudos Afro-OrientaisFundao Cultural Palmares2006

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    Apresentao

    ALei 10.639, sancionada em 9 de janeiro de 2003 pelo Presi-dente Lus Incio Lula da Silva, alterou a Lei de Diretrizes e Basesda Educao Nacional e incluiu a obrigatoriedade do ensino daHistria e Cultura Afro-Brasileira em todos os currculos escola-res. Este advento criou a imperiosa necessidade de produo dematerial didtico especfico, adaptado aos vrios graus e s diver-sas faixas etrias da populao escolar brasileira.

    Considerando o atendimento demanda de projetos edu-cacionais empreendidos pelas associaes culturais e pelos gru-pos organizados do Movimento Negro, notadamente os cursosde pr-vestibular, os cursos profissionalizantes e os cursos notur-nos em geral, a Fundao Cultural Palmares, entidade vinculadaao Ministrio da Cultura, adotou como prioridade a produo de

    suportes pedaggicos apropriados aos jovens e adultos, pblicoalvo destes projetos. Para tanto foi estabelecido um convnio coma Universidade Federal da Bahia, atravs do Centro de Estudos

    Afro-Orientais-CEAO, para a realizao de concursos nacionaispara a elaborao de dois vdeos documentrios e de trs livros,um dos quais este volume que apresentamos.

    O resultado exitoso deste projeto deveu-se participaode todos os especialistas que integraram as comisses julgadoras,ao empenho administrativo da Profa. Mestra Martha Rosa Queirs,

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    Chefe de Gabinete da Fundao Cultural Palmares e do Prof. Dr.Joclio Telles, Diretor do CEAO-UFBA. Agradecemos especial-mente liderana acadmica do Prof. Dr. Joo Jos Reis e da Profa.Dra. Florentina Souza.

    Para assegurar o acesso de todos educadores aos resultadosdeste projeto, desde j esto franqueados os respectivos direitosde reproduo a todos os sistemas pblicos de ensino e a todosempreendimentos educacionais comunitrios.

    Acreditamos que o ensino da Histria e da Cultura Afro-

    Brasileiras representar um passo fundamental para um convviosocial caracterizado pelo mtuo respeito entre todos os brasilei-ros, na medida em que todos aprendero a valorizar a heranacultural africana e o protagonismo histrico dos africanos e deseus descendentes no Brasil.

    Ubiratan Castro de ArajoPresidente

    Fundao Cultural Palmares

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    Sumrio

    Introduo 9

    Captulo I

    Histria da frica e a escravido africana 11

    Captulo II

    frica e africanos no trfico atlntico 37

    Captulo IIIEscravos e escravido no Brasil 63

    Captulo IV

    Famlia, terreiros e irmandades 93

    Captulo V

    Fugas, quilombos e revoltas escravas 115Captulo VI

    Negros escravos, libertos e livres 143

    Captulo VII

    O fim da escravido e o ps-abolio 171

    Captulo VIIILutas sociais nas primeiras dcadas do sculo XX 201

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    Captulo IX

    Cultura negra e cultura nacional:

    samba, carnaval, capoeira e candombl. 223Captulo X

    Desigualdades raciais e luta anti-racista 253

    Captulo XI

    O Movimento Negro no Brasil contemporneo 279

    Consideraes finais 307

    Crdito dos textos, ilustraes e mapas 315

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    Introduo

    Escrever um livro sobre a histria do negro no Brasil para estu-

    dantes do ensino mdio implica em vrios desafios. O maior de-safio condensar em algumas pginas uma histria que extrapolaas fronteiras nacionais, incluindo a frica e outras regies das Am-ricas. Como o leitor ir notar, tratar da histria do negro no Brasilimplica em: 1) visitar o passado das sociedades africanas antes doseuropeus ali chegarem; 2) considerar o contato entre povos e cul-turas diferentes que se encontraram no territrio que veio a ser o

    Brasil; e 3) discutir a experincia de africanos e seus descendentesno Brasil desde o sculo XV at os dias atuais.

    Por no ser possvel dar conta de tudo, a organizao doscaptulos e mesmo a discusso dos temas resultaram de algumasescolhas. Desde j alertamos que nem todos os temas, episdios,personagens relevantes para a histria do negro no Brasil foram

    debatidos, narrados ou identificados nas pginas a seguir. H acon-tecimentos, personagens e lugares desse passado que sequer men-cionamos. Estamos, portanto, cientes de que contaremos aquiapenas uma verso possvel da histria do negro brasileiro. Masesperamos ter deixado claro que, nestas pginas, os negros ocu-pam o centro da cena, o que no comum nos livros de histriaconvencionais. Que fique claro: os negros no fizeram sozinhos a

    histria de nosso pas, mas neste livro essa histria contada daperspectiva do negro.

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    s vezes tivemos que abordar assuntos complexos, que ain-da esto confinados a grupos restritos de pesquisadores, entre osquais ns mesmos. As pesquisas histricas esto a todo temporevelando novos documentos e exigindo novo olhar sobre assun-tos j consagrados, como o trfico, o trabalho ou as rebelies, mastambm discutindo outros temas, como a famlia e a religio es-cravas. Por isso, traduzir numa linguagem accessvel para um p-blico mais amplo debates feitos por especialistas tambm foi umgrande desafio e ns esperamos ter conseguido isso.

    Apesar de este livro dever muito a outros pesquisadores dahistria do negro, seus autores assumem inteiramente as escolhastemticas e interpretaes aqui apresentadas. Mesmo porque noser absurdo se aos olhos mais apurados dos especialistas da reafor localizada alguma impreciso, lacuna ou omisso inevitveisem trabalhos de sntese como este. A variedade e especificidadedos temas aqui analisados expem o livro a tal risco.

    Um dos objetivos deste livro contribuir para a divulgaoda caminhada dos negros atravs da histria do Brasil. Como nuncaantes, vivemos uma poca em que a preocupao com as desigual-dades raciais tem provocado a busca de solues, em especial aadoo de polticas pblicas visando o combate ao racismo e aconquista da justia social. Este livro faz parte desse esforo, pois

    consideramos que a histria aqui contada educa a sociedade brasi-leira no sentido de abraar a causa da igualdade de oportunidadepara todos.

    Mas o nosso principal objetivo colaborar para que os ne-gros sejam reconhecidos como grandes atores da histria destepas. Esperamos que ao final do texto o leitor ou a leitora, inde-

    pendente da cor de sua pele, se reconhea como parte dessa lon-ga, turbulenta, sofrida e criativa trajetria. Desejamos uma boaviagem pelos caminhos dessa nova histria do Brasil.

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    Captulo IHISTRIA DA FRICA

    E A ESCRAVIDO AFRICANA

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    Ahistria do negro brasileiro no teve incio com o trfico deescravos. uma histria bem mais antiga, anterior escravidonas Amricas, vida de cativo no Brasil. Trata-se de uma saga quese cruza com a aventura dos navegadores europeus, principalmenteos portugueses, e com a formao do Brasil como pas. Conhecera histria da frica fundamental para entender como foi poss-

    vel que milhes de homens, mulheres e crianas fossem aprisio-nados e trazidos nos pores de navios destinados s Amricas.Por isso, para compreendermos a trajetria dos negros brasileiros preciso saber como e por que o continente africano se tornou omaior centro de disperso populacional do mundo moderno.

    Quando, no sculo XV, os europeus desembarcaram na fri-ca eles se deram conta de que estavam diante de modos de vidabem distintos dos seus. Entre os africanos a organizao social eeconmica girava em torno de vnculos de parentesco em famliasextensas, da coabitao de vrios povos num mesmo territrio, daexplorao tributria de um povo por outro. A vinculao por

    parentesco a um grupo era uma das mais recorrentes formas de sedefinir a identidade de algum. Isto quer dizer que o lugar socialdas pessoas era dado pelo seu grau de parentesco em relao aopatriarca ou matriarca da linhagem familiar. Nessas sociedades acoeso dependia, em grande parte, da preservao da memriados antepassados, da reverncia e privilgios reservados aos mais

    velhos e da partilha da mesma f religiosa.

    Na frica havia imprios poderosos como o Mali, reinosbem consolidados como o Kongo (que no deve ser confundido

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    com o atual pas Congo), mas tambm pequenas aldeias agrupa-das por laos de descendncia ou linhagem. Ainda havia os gru-pos nmades de comerciantes, agricultores e pastores que se des-locavam sempre que as condies climticas ou as oportunidadesde negcios assim os obrigassem. Mesmo porque o continenteafricano caracterizava-se pela desproporo entre o enorme terri-trio e o pequeno contingente populacional. Entretanto, a expan-so de reinos, a migrao de grupos, o trnsito de caravanas demercadores, a disputa pelo acesso aos rios, o controle sobre estra-

    das ou rotas podiam implicar em guerra e subjugao de um povoa outro.

    Escravido domstica

    Nesses confrontos era comum que os vitoriosos fizessem alguns

    escravos dentre os membros de um vilarejo vencido em luta ar-mada. Era a chamada escravido domstica, que consistia em apri-sionar algum para utilizar sua fora de trabalho, em geral, na agri-cultura de pequena escala, familiar. Se a terra era abundante, masrareava mo-de-obra, esse tipo de escravido servia para aumen-tar o nmero de pessoas a serem empregadas no sustento de umafamlia ou grupo. Afinal, a terra de nada valia sem que se tivesse

    gente empregada no cultivo de alimentos. Os escravos eram pou-cos por unidade familiar, mas a posse deles assegurava poder eprestgio para seus senhores, j que representavam a capacidadede auto-sustentao da linhagem. No por acaso, nesse tipo decativeiro se preferia mulheres e crianas. A fertilidade das mulhe-res garantia a ampliao do grupo. Da que era legtimo as escravas

    se tornarem concubinas e terem filhos com os seus senhores.Seguindo a mesma lgica, a incorporao dos escravos nafamlia se dava de modo gradativo: os filhos de cativos, quandonascidos na casa do senhor, no podiam ser vendidos e seus des-cendentes iam, de gerao em gerao, perdendo a condio ser-

    vil e sendo assimilados linhagem. Assim o grupo podia crescercom o nascimento de escravos, fortalecendo as relaes de paren-

    tesco e aumentando o nmero de subordinados ao senhor. A in-tegrao dos cativos tambm explica a predileo pela escraviza-

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    o de crianas, visto que elas mais facilmente assimilavam regrase constituam vnculos com a famlia do seu senhor.

    No era s na guerra que se corria o risco de ser escraviza-do. Em muitas sociedades africanas, o cativeiro era a punio paraquem fosse condenado por roubo, assassinato, feitiaria e, s ve-zes, adultrio. A penhora, o rapto individual, a troca e a compraeram outras maneiras de se tornar escravo. As pessoas podiam serpenhoradas como garantia para o pagamento de dvidas. Nestasituao, caso seus parentes saldassem o dbito, extinguia-se o

    cativeiro. Tais formas de aquisio de cativos foram mais ou me-nos comuns em diferentes perodos e lugares da frica. O rapto eo ataque a vilas se tornaram mais freqentes quando o trfico deescravos tomou grandes propores.

    Em algumas sociedades, a exemplo do povo Sena deMoambique, a escravido tambm era uma estratgia de sobrevi-

    vncia quando a fome e a seca se faziam desastrosas. A venda outroca de um indivduo da comunidade podia garantir a sobrevi-vncia do grupo, inclusive de quem era escravizado. A troca dealgum por comida era uma forma de evitar a extino do grupo.Certamente estamos falando de um recurso extremo, porque serescravo naquelas sociedades to fortemente estruturadas por la-os de parentesco significava ser exilado, torna-se um estrangeiro,

    muitas vezes tendo que professar outra f, se comunicar em outroidioma, estar alheio s suas tradies. Sentenciar algum escravi-do era acima de tudo desenraiz-lo e desonr-lo.

    Desde que os rabes ocuparam o Egito e o norte da frica,entre o fim do sculo VII e metade do sculo VIII, a escravidodomstica, de pequena escala, passou a conviver com o comrcio

    mais intenso de escravos. A escravido africana foi transformadasignificativamente com a ofensiva dos muulmanos. Os rabes or-ganizaram e desenvolveram o trfico de escravos como empreen-dimento comercial de grande escala na frica. No se tratava maisde alguns poucos cativos, mas de centenas deles a serem trocadose vendidos, tanto dentro da prpria frica quanto no mundo ra-be e, posteriormente, no trfico transatlntico para as Amricas,

    inclusive para o Brasil.

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    A escravido islmica

    Com a expanso islmica a histria da frica ganhou novos ru-

    mos. Desde os fins do sculo VIII, os rabes, partindo da regiodo Golfo Prsico e da Arbia, disseminaram o islamismo pela for-a da palavra, dos acordos comerciais e, principalmente, das ar-mas. Eram as guerras santas, asjihad, destinadas a islamizar popu-laes, converter lderes polticos e escravizar os infiis, ou seja,quem se recusasse a professar a f em Al. Um dos primeirospovos a se converter ao islamismo, na frica do Norte, foi o povo

    berbere. As cfilas, como ficaram conhecidas as grandes carava-nas que percorriam o Saara, eram formadas principalmente porberberes islamizados. Foi assim, seguindo a trilha desses comerci-antes, que o islamismo ganhou adeptos na regio sudanesa, nasavana africana ao sul do deserto do Saara.

    A adoo do camelo como principal meio de transporte foi

    decisiva na expanso do islamismo na frica, porque possibilitouaos berberes percorrer grandes distncias e suportar as duras con-dies da vida no deserto. As caravanas pareciam cidades em mar-cha. Guias, soldados, mercadores e centenas de camelos e escra-

    vos percorriam as trilhas merc da pouca gua disponvel nospoos, do clima ameno dos osis e da resistncia dos animais.

    Transitar no deserto era, alm de exaustivo, uma peripciaperigosa: corria-se o risco de enfrentar tempestades de areia, de seperder entre dunas ou de sofrer ataques de assaltantes. Eram lon-gas viagens por rotas que, no sculo IX, ligavam Marrocos, Arg-lia, Lbia, Tunsia e o Egito s margens dos rios Senegal e Nger,ao sul da Mauritnia e ao lago Chade. J na metade daquele sculoos escravos eram os principais produtos dos caravaneiros do Saara,

    que por ali transportaram cerca de 300 mil pessoas.As cfilas rumavam do Norte da frica para as savanas

    sudanesas carregadas de espadas, tecidos, cavalos, cobre, contasde vidro e pedra, conchas, perfumes e, principalmente, sal. Noretorno, depois de meses, traziam ouro, peles, marfim e, cada vezmais, escravos. Calcula-se que, entre 650 e 1800, esse trficotransaariano de escravos vitimou cerca de 7 milhes de pessoas,sendo que 20 por cento delas morreram no deserto.

    Um tero do territrio do continente africano ocupa-do pelo deserto do Saara. So 8,6 milhes de km2. OSaara estende-se do litoral atlntico da frica ao Mar

    Vermelho. Nessa parte rida, porm, se localiza umadas regies mais frteis do globo: a faixa de terra ba-nhada pelo rio Nilo.

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    Rotas comerciais atravs do deserto de Saara.

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    Durante a viagem, os caravaneiros muulmanos acampavamnas fronteiras das cidades ou aldeias sudanesas e no deixavam decumprir os seus rituais religiosos. Rezavam cinco vezes ao dia, mastambm adivinhavam chuva, confeccionavam amuletos, previam ofuturo, administravam remdios aos doentes locais e, claro, faziamnegcios. Tudo sempre de acordo com os preceitos islmicos. Nes-sa interao, o Isl dos mercadores ia encontrando ora uma maiorreceptividade, ora a firme resistncia das populaes sudanesas adep-tas de crenas tradicionais. Em muitos lugares a f em Al e o culto

    aos ancestrais conviveram, noutros a converso ficou restrita aosoberano e aristocracia, enquanto as pessoas comuns continua-vam a professar as crenas herdadas dos antepassados. Mas tam-bm se viu a converso de populaes inteiras, fosse para escapardo risco do cativeiro, j que apenas os infiis podiam ser escraviza-dos, fosse por sincera convico religiosa.

    O Coro no condenava o cativeiro. Para os seguidores doprofeta Maom, a escravizao era uma espcie de misso religio-sa. O infiel, ao ser escravizado, ganhava a oportunidade da con-

    verso e, depois de devidamente instrudo nos preceitos islmicos,tinha direito a voltar a ser livre. Entretanto, no bastava se conver-ter para ter direito a alforria. Havia razes bem mais comerciais ebem menos altrustas a justificar o crescimento do nmero de

    escravos no mundo muulmano. Primeiro, porque uma vez escra-vizado o indivduo nem sempre dispunha de tempo e condiespara ser educado de acordo com as leis islmicas, e segundo, por-que o trabalhador escravo era fundamental para a viabilidade docomrcio dos mercadores muulmanos.

    A intensificao do comrcio de longa distncia exigia o

    aumento do nmero de cativos. Alm de produto de troca, o es-cravo era o carregador nas exaustivas viagens. Estava a seu encar-go o transporte das barras de sal, dos fardos de tecidos, dos cestosde tmaras, das armas, dos objetos de cobre. Na outra ponta dasrotas comerciais a procura por escravos s aumentava. Quantomais escravos eram capturados outros tantos eram necessrios parapreencher vrias ocupaes no mundo rabe. Podiam ser

    concubinas, agricultores, artesos, funcionrios encarregados daburocracia, domsticas, teceles, ceramistas. Mas era principalmen-

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    te como soldados que os cativos passavam a ser indispensveis.A conquista de territrios e o domnio de lderes locais dispos-tos a interpretar sua maneira a lei islmica, requeriam mais emais soldados. Assim, medida que aumentavam os territriossubmetidos aos muulmanos, crescia a necessidade de control-los, bem como de realizar novas conquistas.

    Todo o mundo rabe foi se revelando um bom mercadopara os cativos trazidos no s da frica, mas tambm da ndia,China, Sudeste da sia e Europa Ocidental. Viam-se, por isso,

    pessoas capturadas em diversos lugares nos mercados de escravosdo mundo muulmano. Mas foi a frica negra quem mais abaste-ceu os mercados de escravos, principalmente depois da ocupaodo Egito e do Norte da frica pelos rabes. Ainda no sculo IX, ocalifado de Bagd chegou a contar com 45 mil escravos negrostrazidos pelos comerciantes berberes. A partir do sculo X, o n-mero de escravos provenientes da frica subsaariana excedia emmuito o de turcos e eslavos. E essa tendncia s se acentuou aolongo do tempo, tanto que no sculo XVIII aproximadamente715 mil pessoas foram capturadas na frica negra e escravizadasno Egito, Lbia, Tunsia, Arglia e Marrocos. Esse trfico voraz degente de cor preta explica a presena de negros nas populaesrabes.

    Desse modo, a escravido domstica africana foi dando lu-gar escravizao em larga escala. A partir do sculo XV, com apresena europia na costa da frica, esse processo ganhou di-menso intercontinental e fez da frica a principal regio expor-tadora de mo-de-obra do mundo moderno. Todas as grandesnaes europias de ento se envolveram no trfico e disputaram

    acirradamente sua fatia nesse lucrativo negcio. Holandeses, fran-ceses, ingleses, espanhis e, principalmente, portugueses lana-ram-se na conquista dos mercados africanos.

    A escravido crist

    A procura por especiarias e ouro guiava os navegadores portugue-

    ses. Das riquezas africanas eles tinham notcias desde 1415, quan-do conquistaram Ceuta, importante centro comercial no extremo

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    norte da frica. Contava-se que no interior do continente haviacidades de ouro e rios que transbordavam pedras preciosas. Des-de ento, os barcos lusitanos tomaram a direo dos ventos quepudessem lev-los costa africana, onde chegaram em meados dosculo XV.

    E foi grande o assombro dos africanos que viviam emArguim regio do atual Senegal ao sul do Cabo Branco , aonotarem que barcos enormes e estranhos se aproximavam da cos-ta. Embora j estivessem acostumados com a presena estrangei-

    ra dos rabes, a viso dos europeus e de embarcao to grandedeve ter-lhes causado estranheza. Havia homens brancos na fri-ca, mas no como aqueles; existiam grandes barcos usados para otransporte de pessoas e mercadorias, mas nenhum com as dimen-ses das caravelas.

    Os portugueses, desde que principiaram as grandes navega-

    es, compreenderam a importncia de ter intrpretes na tripula-o. Os tripulantes mauritanos, os marujos mouros, malaios e in-dianos eram to necessrios numa viagem quanto os conhecedo-res da direo dos ventos, das correntes marinhas, da posio dasestrelas e do litoral africano. certo que os primeiros encontrosentre portugueses e africanos no foram amistosos. Flechas enve-nenadas de um lado e mosquetes de outro fizeram algumas baixas,

    entretanto, coube aos tradutores dos portugueses estabelecer con-tatos amistosos com a gente da terra. E, ali, nas proximidades dorio Senegal tratava-se de gente e terras que faziam parte do imp-rio jalofo.

    Logo, os europeus mostraram interesse em conseguir ouro,j os reis jalofos queriam os produtos que costumavam adquirir

    com os caravaneiros do deserto: armas, tecidos, manufaturas doMarrocos e do Egito, contas de vidro de Veneza e, sobretudo,bons cavalos j equipados para a montaria, fundamentais para ven-cer guerras e ostentar poder e riqueza. Os portugueses no conse-guiram o ouro to desejado, mas zarparam abastecidos de escra-

    vos, como faziam os mercadores do Saara. Realizados os primei-ros negcios, a curiosidade acerca do destino dos cativos embar-

    cados tomou conta dos africanos.

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    As principais regies africanas envolvidas no trfico transatlntico de escravos

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    Mali e Songai

    No sculo XVI dois grandiosos imprios rivalizavam noNorte da frica ocidental, Mali e o Songai. O imprioMali reunia, j no sculo XIII, vrios povos que deviamobedincia e tributos ao mansa, tambm conhecidocomo makinke (senhor da terra e da chuva) dos man-dingas. O domnio mali se estendia do deserto savanaafricana, e do litoral atlntico ao interior do continenteo que lhe garantia controlar a extrao de ouro e osportos caravaneiros. Com a decadncia do imprio Mali

    dos mandingas, o Songai foi se estruturando como oltimo grande Estado mercantil do Sudo ocidental.Assim como os mandingas, os songais consolidaramseu poder estreitando os vnculos com o centro religio-so muulmano, Meca. A estrutura administrativa do rei-no de Songai era bastante complexa: o territrio eradividido em quatro vice-reinos, havia um sistema regu-lar de arrecadao de impostos, prevalecia o sistemade pesos e medidas rabe e um exrcito que chegou acontar com cerca de cinqenta mil escravos. O suces-

    so do comrcio dos portugueses no litoral contribuiupara a decadncia do imprio songai, mais voltado parao comrcio transaariano.

    J sabemos que o comrcio de escravos na frica existiaantes da chegada dos europeus. Ali mesmo nas proximidades dorio Senegal, os reis jalofos h muito participavam do comrcio

    transaariano fornecendo escravos, ouro, malagueta, plumas e pe-les de animais. Mas ento as coisas mudaram de rumo. O embar-que dos cativos, naquele barco assombrosamente grande, trouxeinquietao aos africanos. Havia, por exemplo, uma crena entreos africanos de que os europeus eram ferozes canibais, capazes dedevorar a carne negra e guardar o sangue para tingir tecidos ou

    preparar vinho.Desconfiados de que os europeus podiam prejudicar seus

    negcios, nada lhes foi facilitado. Nenhum chefe poltico fran-queou-lhes o acesso s zonas aurferas no interior da frica, nemos comerciantes os introduziram nas rotas transaarianas. Mas oseuropeus persistiram. Arguim foi escolhida para servir deentreposto comercial. L, construram a primeira feitoria portu-guesa fortificada na frica em 1445, para onde pretendiam desvi-ar o comrcio transaariano.

    A persistncia portuguesa foi bem recompensada. Aos pou-cos, foram sendo vencidas desconfianas, combinados preossatisfatrios, e foram crescendo os negcios com os africanos que

    viviam nas proximidades do rio Gmbia, gente do poderoso Im-

    prio do Mali. Tanto que, por volta de 1460, tinham com eles boasrelaes comerciais. Mas o principal objetivo dos portugueses, queera se apropriar do comrcio transaariano, ainda no havia sidoalcanado. To pouco tiveram acesso s minas de ouro, como so-nhavam.

    A Costa do Ouro

    Ao longo dos sculos XVI e XVII, novas perspectivas de negci-os surgiram para os portugueses com o comrcio de cabotagemrealizado entre portos no muito distantes, na regio conhecidacomo Costa do Ouro. Para que mercadorias valiosas, como nozde cola (semente com propriedades medicinais, que mastigada re-

    fresca a boca, reduz o cansao, a fome e a sede), obtivessem bonspreos era preciso percorrer longas distncias. Entre o produtor e

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    Castelo de So Jorge da Mina

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    o consumidor final havia uma srie de intermedirios, o que en-carecia os produtos, embora garantisse a vitalidade do comrciointerno africano. Os portugueses se deram conta do funciona-

    mento dessa rede e do valor do escravo como moeda de troca.Passaram ento a comprar africanos para vender a outros africa-nos, beneficiando-se da velocidade das caravelas no transporteao longo da costa.

    Ao sucesso comercia l dos portugueses passou acorresponder o infortnio do continente africano. No litoral, a

    venda de escravos passou a determinar a prosperidade e a foramilitar de uns e a misria de outros grupos africanos. O comrciocom os europeus reforou o poder de chefes dispostos a guerrearcontra povos inimigos com o nico intuito de faz-los cativos. Apresena portuguesa redimensionou a vida de populaes litor-neas que, at ento, no tinham poder econmico e poltico signi-ficativo e que passaram a ter na captura de cativos uma atividadecorriqueira, sistemtica. A guerra produzia o cativo e o comrciodistribua o escravo. O leitor deve estar lembrado que antes dessainvestida comercial lusitana os grandes negcios da economia afri-cana aconteciam no interior e no norte da frica, dependiam daresistncia dos camelos e da habilidade dos caravaneiros do Saara.

    Para os portugueses, com a prosperidade dos negcios, era

    urgente o estabelecimento de mais feitorias no litoral africano,fortalezas muradas e protegidas com canhes que desencorajassema aproximao de outros europeus e abrigassem mercadorias, in-clusive escravos. O castelo de So Jorge da Mina foi a mais impor-tante delas. Em 1482, onde hoje a Repblica de Gana, foi erguidaa slida construo feita de pedra e cal, do mesmo modo que asedificaes europias. A imponncia do forte deixava evidenteque os portugueses tinham planos ambiciosos, que pretendiampermanecer por muito tempo na regio, e os fantes (ou fantis) eacs (ou akans) moradores locais , temerosos, tentaraminviabilizar ou pelo menos adiar a construo. Dificultaram a con-cesso da terra, cobraram altos tributos, restringiram o acesso agua potvel e, ainda, atacaram os homens ocupados com a obra.

    Apesar dos contratempos, ao final de oito anos a fortalezaestava pronta, tendo dois fossos, altas torres e potentes canhes

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    prontos para atacar invasores e abrigar com segurana at mil ca-tivos. Mas a fortaleza no se mostrou to segura. Em 1637, a Com-panhia Holandesa das ndias Ocidentais a tomou de assalto, vi-

    sando controlar o comrcio negreiro da regio para abastecer Per-nambuco, sob o seu domnio desde 1630. Naquela poca, a eco-nomia pernambucana, baseada nos engenhos de acar, era gran-de consumidora de escravos africanos.

    Enquanto dominaram o castelo, os portugueses atraram paraa vizinhana outros astutos negociantes, os mandingas, que com-

    pravam dos lusitanos escravos e tudo mais que pudessem reven-der aos caravaneiros do deserto. Formava-se, assim, uma rede co-mercial que inclua os portugueses, mas tambm ampliava os lu-cros dos comerciantes africanos. Por outro lado, a fortaleza facili-tava o deslocamento dos moradores do forte ao longo do litoral,atravs da navegao de cabotagem, o que propiciava a negocia-o direta com os reinos mais ao sul.

    Os europeus levavam sal para uns, arroz, tecidos de l e pa-nos de algodo para outros e, em contrapartida, recebiam ouro eescravos, que, por sua vez, eram trocados por outros produtos, aexemplo da pimenta. Estima-se que, entre 1500 e 1535, os portu-gueses levaram para o castelo de So Jorge entre dez e doze milescravos. Muitos deles foram entregues pelos mandingas, e mui-

    tos outros adquiridos no Golfo do Benim, onde as caravelas por-tuguesas passaram a navegar com mais freqncia a partir do finaldo sculo XV. Em 1479, por exemplo, numa s viagem quatro-centos cativos vindo do Golfo do Benim foram trocados por ourono castelo de So Jorge.

    A Costa dos Escravos

    Antes de os portugueses comearem a comercializar no Golfo doBenim no havia grandes reinos africanos em regies florestais. Aexuberante floresta tropical dificultava a penetrao comercialnessas terras. O reino do Benim foi uma exceo. Nos ltimosanos do sculo XV, uma expedio portuguesa foi capital do

    reino e l se deparou com uma grande cidade com ruas largas ecompridas e muitas casas. Mas, no h dvidas de que a expanso

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    desse reino foi acelerada com a sua incorporao ao comrcionegreiro nos sculos XVI e XVII.

    No Benim o controle comercial era do rei que comprava evendia sal, peixe seco, noz de cola, couros, tecidos e cobre. Cientes deque o monoplio sobre o comrcio garantia ao rei do Benim umaconsidervel fora poltica, os portugueses tentaram convert-lo aocatolicismo. Era uma forma de aproximar aquele reino africano dolusitano. Mas, ao rei do Benim no interessava ter compromissos ex-clusivamente com Portugal, j que outros europeus tambm cobia-

    vam integrar-se ao esquema comercial do lugar. Franceses, ingleses eholandeses tambm lhes propuseram acordos mercantis. A atitudedo rei do Benim deixa claro que os termos desses acordos comerciaisno dependiam apenas da habilidade dos europeus, tambm estavama merc dos interesses dos diferentes povos africanos.

    Por isso, no se pode entender a prosperidade do trfico deescravos sem levar em considerao a combinao de interesses entreeuropeus e africanos. bem verdade que as naes europias tenta-ram manter o controle sobre as regies produtoras de escravos, mas otrfico africano era um negcio complexo e envolvia a participao ecooperao de uma cadeia extensa de participantes especializados,que inclua chefes polticos, grandes e pequenos comerciantes africa-nos. H estimativas de que 75 por cento das pessoas vendidas nas

    Amricas foram vtimas de guerras entre povos africanos.A avidez por escravos reorganizou de tal maneira o mapa

    poltico africano que alguns reinos experimentaram o apogeu nossculos XVII e XVIII graas ao trfico negreiro. Foi o caso dosreinos de Daom, Sadra, Achanti e Oi. At o sculo XVI, Oiera apenas uma cidade-estado iorubana que tinha na agricultura ena tecelagem as suas principais atividades. Dedicava-se especial-mente fabricao de tecidos, os famosos panos-da-costa que

    viriam a ser to apreciados pelos negros na Bahia. Mas as ativida-des agrcolas e artesanais perderam importncia diante do trfico.No final do sculo XVI, as cidades iorubanas participavam toativamente desse comrcio que a regio do golfo de Benim pas-sou a ser conhecida como Costa dos Escravos.

    Formou-se ali um mercado bastante competitivo. Entre osvendedores de escravos, principalmente os iorubs e daomeanos

    Por falarem variaes do mesmo idioma, adorarem aalguns deuses em comum, compartilharem a mesmaorigem mtica e ocuparem o mesmo territrio (entre osudoeste da Nigria e o sudeste da repblica de Benim)vrios reinos, a exemplo de Queto, Egba, Oi e Ijex,passaram a ser denominados pelos missionrios euro-peus de iorubs. At o sculo XIX, o termo s se referiaao povo de Oi. Oi subjugou vrios outros reinosiorubanos, alm de vizinhos como o Daom, Nupe eBorgu. O poderoso reino de Oi entrou em colapso a

    partir do final do sculo XVIII, devido a conflitos inter-nos e externos. A sua capital foi parcialmente destrudae abandonada por volta de 1830.

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    Esculturas em bronze do Benim

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    competiam pelas mercadorias europias. Entre os compradores,a concorrncia no era menos acirrada. Nos portos da Costa dosEscravos, ingleses, holandeses, franceses, portugueses e brasilei-

    ros abarrotavam os navios de gente destinada a ser exportadapara as Amricas. De fato, nenhuma grande nao europia ficoufora deste que era o negcio internacional mais rentvel da poca.Os africanos escravizados, moradores de pequenas aldeias cada

    vez mais distantes do litoral, eram vtimas de assaltos e guerras.

    Presas pelo pescoo umas s outras, essas pessoas eram le-

    vadas para os mercados onde aguardavam os compradores, s ve-zes por meses. Eram ento trocadas, no sculo XVIII, principal-mente pelo fumo de rolo produzido na Bahia, produto muito pro-curado naquela regio e que garantia a primazia dos brasileiros.Mas o sucesso comercial no impediu que o reino iorub corresserisco. Com a expanso do reino vizinho, o Daom, vrios territ-rios subordinados a Oi passaram a ser saqueados e a ter os seus

    habitantes escravizados. Desse modo, de implacveis caadoresde escravos, os iorubs foram transformados eles mesmos em ca-tivos, principalmente a partir do final do sculo XVIII.

    O reino do Daom foi fortemente centralizado e se desen-volveu a partir de 1700 com o prprio trfico atlntico. Como eraimprescindvel a um reino to intimamente dependente do co-

    mrcio de escravos, ali se concentrava um poderoso exrcito ar-mado de mosquetes, encarregado de ampliar as fronteiras e captu-rar escravos, inclusive, no final do sculo XVIII, entre as popula-es sob o domnio do reino de Oi. O trfico era to fundamen-tal para o reino de Daom que em 1750, 1795 e 1805 foram envi-ados embaixadores daomeanos Bahia com a incumbncia defirmar acordos de monoplio comercial para o envio de cativos.Como veremos no prximo captulo, os negcios entre as elitesdo Daom e os proprietrios baianos garantiram a regularidadedo trfico de escravos para o Brasil. Nesta mesma poca, os por-tugueses j negociavam com os povos da frica centroocidental,e com eles estabeleceram vnculos polticos e religiosos mais es-treitos e negcios bem lucrativos, como veremos a seguir.

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    Kongo Angola

    Era 1483, quando o navegador Diogo Co, procurando conhecer

    melhor a costa africana, chegou foz do rio Zaire, onde estavaestabelecido o poderoso reino do Kongo. Rapidamente se espa-lhou entre os habitantes locais a notcia de que barcos enormes,que mais pareciam pssaros gigantescos, estavam nas proximida-des do reino. A novidade vinda do mar trouxe inquietao. Naregio do Kongo-Angola pensava-se que os europeus vinham deoutro mundo, que eram seres sobrenaturais. Acreditava-se que entre

    o mundo dos vivos e dos mortos havia uma linha divisria, aCalunga. Da que quando algum morria o seu esprito atravessavaa fronteira entre a vida e a morte navegando numa zona transit-ria que seria o oceano. Para eles, os homens brancos que desem-barcaram com Diogo Co podiam ser espritos de antepassados

    voltando para casa.

    A recepo aos portugueses foi calorosa. O mani-snio (oumani Nsoyo), governante da provncia litornea do reino, os aco-lheu festivamente. Os navegantes tambm se mostraram entusi-asmados e curiosos. Queriam conhecer o rei, para quem traziampresentes. Com tal fim foram enviados alguns mensageiros ci-dade real, Mbanza Kongo. O rei, o manicongo, deve ter ficadobastante surpreendido com a presena daqueles brancos que di-

    ziam ter cruzado o oceano. Talvez por isso, ao invs de mand-los de volta a seus navios, os manteve em seu palcio.

    Assim, os mensageiros tiveram a oportunidade de saber queo reino do Kongo era uma estrutura poltico-administrativa bemcomplexa e centralizada. A autoridade mxima era o manicongo,escolhido por um conselho de nobres que ocupavam os cargos de

    secretrios reais, administradores provinciais, coletores de impos-tos, juzes e oficiais militares. J a economia estava assentada naatividade agrcola e pastoril, embora houvesse grandes mercadosregionais para o comrcio de sal e produtos de ferro, nos quais amoeda usada era um tipo de concha da regio da ilha de Luanda,cuja coleta era monoplio real.

    Ao perceber que os mensageiros enviados ao rei tardavam avoltar, Diogo Co resolveu tomar quatro refns e lev-los diante

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    do rei de Portugal, com a promessa de traz-los de volta depoisde algumas luas. Assim foi feito. Quando retornaram para oKongo os quatro africanos estavam vestidos como europeus e

    falando portugus. Se os mensageiros que ficaram na cidade realdo Kongo tinham muito para contar a Diogo Co, no erampoucas as novidades que os raptados relataram ao manicongo.Haviam visto muitos outros barcos enormes, armas e riquezasque podiam assegurar o poderio de quem as possusse.

    Ambicioso, o manicongo Nzinga avaliou que era funda-

    mental firmar acordos com aqueles viajantes e, em 1489, enviounuma das caravelas de Diogo Co vrios presentes e uma embai-xada ao rei portugus, d. Joo II. O objetivo dos embaixadores eraclaro: solicitar autorizao para que rapazes do reino africano pu-dessem ser educados na Europa, conseguir que padres catlicosfossem enviados ao Kongo, assim como mestres no ofcio da car-pintaria, pedraria e agricultura. O rei portugus no tardou a aten-der aos pedidos. Uma aliana com outro soberano to poderoso edisposto a se converter ao catolicismo parecia a oportunidade idealpara fincar os ps naquela regio da frica.

    Por sua vez, o rei do Kongo visava apropriar-se dos conhe-cimentos, tcnicas e at hbitos e costumes europeus que pudes-sem fortalecer ainda mais o seu reino. O manicongo, uma de suas

    esposas e um filho foram batizados numa igreja de pedra e cal quemandou erguer em 1491. Daquele dia em diante ao rei do Kongofoi dado o nome de d. Joo I, a sua mulher, Leonor, e ao seu filho,

    Afonso. certo que houve quem se negasse a aderir ao catolicis-mo, dentre eles, um outro filho do rei, Mpanzu a Kitima, mas estefoi vencido por Afonso na disputa pela sucesso do trono. Vitriafacilitada pela ajuda militar portuguesa na forma de cavalos e ar-mas.

    Alm de propagar o catolicismo, d. Afonso sempre semostrava interessado em aproximar o Kongo de Portugal tam-bm por meio dos costumes, lngua, ensino e conhecimentotecnolgico. Contudo, ao fim de dcadas de negociao, os portu-gueses no tinham honrado o compromisso de ensinar aos

    congueses como se construir grandes barcos a vela, to poucomoinhos e veculos de roda. As novidades ficaram restritas ao

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    Captura de escravos na frica, segundo imaginada por artista norteamericano.

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    cultivo do milho, da mandioca, batata-doce e amendoim vindosda Amrica. Em contrapartida, alm do auxlio militar, sempreque necessrio d. Afonso contou com os portugueses para

    incrementar o comrcio do cobre, trocado por mercadorias euro-pias que, por sua vez, eram repartidas entre os chefes de distritosdo reino. Esses chefes faziam o mesmo com os lderes das aldeias,que por sua vez tambm dividiam com os cabeas de grupos fa-miliares. Desse modo estava assegurada uma rede de lealdade ca-paz de sustentar o poder do rei, que governou entre 1506 e 1543.

    Mas, aos poucos, o controle dos negcios foi escapandodas mos reais. Burlando a sua vigilncia, administradores provin-ciais comearam a negociar com os portugueses sem qualquer in-termediao. Ironicamente, quanto mais as elites do Kongo dese-javam os produtos europeus, como queria d. Afonso, mais riscocorria o seu reinado. Nas ltimas dcadas do sculo XVI, comea-

    va a ruir um dos mais estveis reinados da frica centro-ocidental.J a demanda por produtos europeus crescia de tal modo que co-bre e peles j no eram suficientes para saldar as dvidas com oscomerciantes portugueses.

    At ento a escravido no Kongo era do tipo domstico,embora nas cidades fosse comum que um nmero significativo deprisioneiros de guerra estivesse a servio da nobreza. Mas, aos pou-

    cos, os cativos passaram a ser usados como meio de converso damoeda local para a portuguesa, sem o intermdio da nobreza e dorei. No decorrer do sculo XVII, mais e mais escravos foram envol-

    vidos nas transaes entre chefes polticos e mercadores africanoscom os portugueses, que os aceitavam de bom grado. Multiplica-ram-se na regio as guerras com o nico fim de capturar mais pes-soas a serem embarcadas nos navios portugueses.

    Ao mesmo tempo, os portugueses intensificavam o comr-cio de escravos com Ndongo (Angola), vizinhos e vassalos doKongo, sem a intermediao de d. Afonso. Eles imaginavam queencontrariam, naquelas terras, minas de prata. A pretensocolonialista j era evidente em 1575, quando as terras diante dailha de Luanda foram consideradas uma capitania portuguesa. Logo

    os moradores do lugar entenderam que, ao construrem casas, igrejae fortificaes, os portugueses visavam se fixar na regio, e reagi-

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    ram. A cada investida portuguesa para o interior do continentecorrespondiam ataques de hbeis chefes polticos, a exemplo darainha Jinga (ou Nzinga). No mais, ainda existiam outros inimigos

    bem poderosos: as febres, a escassez de comida, os insetos, a esti-agem e a frustrao diante da inexistncia de prata e ouro nasproximidades.

    Os portugueses concluiriam, ento, que a empreitada con-quistadora no valia a pena e resolveram concentrar suas forasno comrcio de escravos, atividade que seguramente lhes rendia

    muito lucro e menos trabalho, pois eram os prprios moradoresde Luanda que se lanavam caa de cativos. Luanda rapidamentese tornou uma grande feira de comrcio de gente. Angola, desdefins do sculo XVI at a primeira metade do sculo XVIII, foi omaior fornecedor de escravos para as Amricas portuguesa e es-panhola. Entre 1575 e 1591 foram embarcados da regio de An-gola mais de 52 mil africanos para o Brasil.

    A frica Oriental

    A busca dos portugueses por riquezas e rotas comerciais fazia comque eles rondassem incessantemente toda a costa africana. Semdvida, foi na frica ocidental que a presena portuguesa foi mais

    evidente. Mas eles tambm se aventuraram, no sculo XV, na cos-ta africana banhada pelo oceano ndico, onde se impressionaramcom a semelhana daqueles portos, ruas e casas com as que exis-tiam em Portugal e Espanha. Eles se deslumbraram diante dasconstrues com vrios andares e terraos, que lhes eram to fa-miliares. No porto de Mombaa, o movimento incessante dosbarcos transportando ouro, prata, prolas, seda, vidros, especiari-as os deixaria ainda mais fascinados.

    Sofala, Moambique, Zanzibar e outras cidades-estado esta-vam na fronteira do mundo islmico. Eram cidades integradas sredes comerciais do oceano ndico, controladas pelos muulma-nos que, apesar do encantamento dos portugueses, no viam osrecm-chegados com bons olhos. A presena de estranhos no

    era bem vinda, e disso os portugueses logo souberam, haja vista ahostilidade com que foram recebidos. Entretanto, no sculo XVI,

    Jinga ou Nzinga Mbandi (1581-1663) foi a rainha quedurante treze anos lutou contra os portugueses emAngola. Em 1621, a rainha Jinga de Mutamba, seguidapor uma vistosa comitiva, props uma al iana aos por-tugueses. Em troca da paz aceitou certas condies,

    inclusive a converso ao catolicismo. Ela foi batizadacom o nome de Dona Ana de Souza, na igreja matrizde Luanda, em 1622, mas no aceitou pagar tributoscomo exigiam os lusitanos. No ano seguinte, empreen-deu outra guerra contra os portugueses e mandou umaembaixada ao Papa Alexandre VII pedindo o reconhe-cimento do seu reino. Esquecendo o padroado, o papaenviou-lhe uma carta com orientaes para que seureino fosse cristo, junto com vrios missionrioscapuchinhos italianos. Mas a rainha foi derrotada fren-

    te de suas tropas, e suas duas irms, as princesasCambe e Funge, foram levadas para Luanda e batizadascom os nomes de Brbara e Engrcia. Quando, em1641, os holandeses saram do norte do Brasil e ocu-param Luanda, Jinga aliou-se a eles contra os portu-gueses. Mas em 1648, Salvador Correa de S retomouLuanda dos holandeses, com uma armada sada doRio de Janeiro. A rainha Jinga morreu em 17 de de-zembro de 1663, quando teria cerca de 80 anos. Amemria dos cortejos e lutas das suas tropas continuapresente nos congados brasileiros.

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    algumas dezenas de portugueses j haviam se embrenhado nointerior da regio combatendo os mouros, resistindo a doenas,negociando com os reis africanos, pregando a f crist e instalan-

    do feitorias, onde era considervel o nmero de escravos empre-gados na lavoura e na criao de animais.

    Mas era o ouro, a prata e o marfim que mais os incentivavama permanecer num territrio dominado por muulmanos. Forammuitos os embates entre portugueses e mouros pelo controle dosprincipais centros comerciais Quiloa, Mombaa, Massapa,

    Melinde e Moambique. Essas disputas desestabilizaram redes co-merciais milenares. A cobrana de tributos, os saques, incndios eas rebelies contra os lusitanos, alm das investidas dos holandesese ingleses, ameaavam a prosperidade da atividade mercantil.

    Os portugueses tentaram manter a hegemonia na regioconstruindo fortificaes. Ergueram uma na ilha de Moambique,que era a capital dos estabelecimentos portugueses na frica Ori-ental, e em 1593 foi edificada em Mombaa a maior delas, a forta-leza de Jesus. Esta fortaleza sofreu ataques de grupos muulma-nos, foi cenrio para revolta de escravos e abrigou aliados polti-cos, e embora tivesse sido mantida sob o controle dos portugue-ses, isto no lhes garantiu as riquezas que almejavam: ouro e prataem grande quantidade. Como se via na parte ocidental da frica,

    foi com escravos que os aventureiros portugueses, holandeses eingleses conseguiram acumular fortuna.

    A saga dos africanos seguia seu curso: por um lado, elesbuscavam integrar-se com lucro no circuito comercial atlntico,por outro, viviam a trgica experincia da escravizao em massa.No h dvidas de que os comerciantes africanos eram os elosmais fracos nesse circuito, pois viviam permanentemente na de-pendncia do grande traficante europeu ou brasileiro. Os negci-os do trfico movimentaram a economia numa dimenso global,mas as suas conseqncias foram brutais para as sociedades afri-canas.

    Alm dos incalculveis sofrimentos causados pela separaoforada de indivduos de suas comunidades e famlias, aquele co-

    mrcio promoveu o esvaziamento demogrfico de muitas regiesda frica. Ao privar as comunidades de indivduos adultos, o tr-

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    fico transplantava s Amricas algo muito necessrio na frica:o trabalho do africano. No mais, a presena dos europeus nocontinente africano representou tanto a integrao da frica ne-

    gra ao grande circuito comercial do Atlntico, quanto determi-nou os rumos das sociedades do Novo Mundo, que inclua a re-gio que veio a se tornar o Brasil.

    EXERCCIOS:

    1. Comente a seguinte afirmativa: a escravido doms-

    tica consistia em aprisionar algum para utilizar asua fora de trabalho na agricultura de pequena es-cala.

    2. Analise de que maneira a expanso islmicaredimensionou a escravido na frica.

    3. Comente as relaes comercias entre portugueses e

    africanos do reino do Kongo.

    Bibliografia:

    COSTA E SILVA, Alberto.A manilha e o limbambo a frica e a escravido de 1500a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundao Biblioteca Nacional, 2002.

    REIS, Joo Jos. Notas sobre a escravido na frica pr-colonial. Estudos Afro-

    asiticos, n 14 (1987), pp. 5-21.THORNTON, John. A frica e os africanos na formao do mundo Atlntico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

    VAINFAS, Ronaldo e SOUZA, Marina de Mello e. Catolizao e poder no tem-po do trfico: o reino do Congo da converso corada ao movimento Antoniano,sculos XV-XVIII. Tempo, n 6 (dez de 1998), pp. 95-118.

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    NO TRFICO ATLNTICO

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    A frica do trfico brasileiro

    Os nmeros no so precisos, mas estima-se que, entre o sculoXVI e meados do sculo XIX, mais de 11 milhes de homens,

    mulheres e crianas africanos foram transportados para as Amri-cas. Esse nmero no inclui os que no conseguiram sobreviverao processo violento de captura na frica e aos rigores da grandetravessia atlntica. A maioria dos cativos, cerca de 4 milhes, de-sembarcou em portos do Brasil. Por isso nenhuma outra regioamericana esteve to ligada ao continente africano por meio do

    trfico como o Brasil. O dramtico deslocamento forado, pormais de trs sculos, uniu para sempre o Brasil frica.

    A retirada violenta de africanos de suas comunidades, condu-zidos para trabalhar como escravos em terras distantes, foi a solu-o encontrada pelas potncias coloniais europias para povoar eexplorar as riquezas tropicais e minerais das colnias no Novo Mun-do. A colnia portuguesa (o Brasil) dependia de grande suprimento

    de africanos para atender s necessidades crescentes de uma econo-mia carente de mo-de-obra. A migrao transatlntica forada foia principal fonte de renovao da populao cativa no Brasil, espe-cialmente nas reas ligadas agricultura de exportao, como cana-de-acar. Submetida a pssimas condies de vida e maus-tratos, apopulao escrava no se reproduzia na mesma proporo da popu-

    lao livre. Era alto o ndice de mortalidade infantil e baixssima aexpectativa de vida. Alm dos que morriam, o trfico repunha os que

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    saam do sistema atravs da alforria ou da fuga para os quilombos.Assim, havia demanda constante de escravos africanos, algo que seintensificava nos perodos de crescimento econmico.

    Mas antes de investir maciamente no trfico africano, oscolonos portugueses recorreram explorao do trabalho dos po-

    vos indgenas que habitavam a costa brasileira. A escravido foi umtipo de trabalho forado tambm imposto s populaes nativas. Ondio escravizado era chamado de negro da terra, distinguindo-oassim do negro da guin, como era identificado o escravo africa-

    no nos sculos XVI e XVII. Com o aumento da demanda por tra-balho no corte do pau-brasil e depois nos engenhos, os coloniza-dores passaram a organizar expedies com o objetivo de capturarndios que habitavam em locais mais distantes da costa. Atravs daschamadas guerras justas, comunidades indgenas que resistiram converso ao catolicismo foram submetidas escravido.

    Por volta da segunda metade do sculo XVI, a oferta de es-cravos indgenas comeou a declinar e os africanos comearam achegar em maior quantidade para substitu-los. Diversos fatores le-

    varam substituio do ndio pelo africano. As epidemias dizima-ram grande nmero dos que trabalhavam nos engenhos ou que vi-

    viam em aldeamentos organizados pelos jesutas. A fuga dos ndiospara o interior do territrio provocou aumento dos custos de cap-

    tura e transporte de cativos at aos engenhos e fazendas do litoral.Alm do mais, o apresamento no atendia ao interesse da

    Coroa portuguesa de ligar o Brasil ao comrcio europeu e africa-no. O apresamento de indgenas era uma atividade exclusiva doscolonos, dele ficava de fora o grande comerciante sediado emPortugal ou aquele que atuava no trfico africano. Para completar,

    nenhuma comunidade indgena se firmou como fornecedora re-gular de cativos, o que dificultou a formao de redes comerciaisque pudessem atender demanda crescente de mo-de-obra.

    Mesmo assim, a escravido indgena perdurou por muito tem-po em vrias regies da colnia. Sem poder importar africanos emgrande nmero, os colonos paulistas durante muito tempo se con-tentariam com a escravido indgena. Foi o apresamento de ndios

    que os empurrou para os sertes inexplorados e inspitos. No Pare no Maranho o escravo indgena foi largamente utilizado at os

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    ltimos anos do sculo XVIII, quando o trfico africano passou asuprir regularmente as duas capitnias. No territrio que corres-ponde ao atual estado do Amazonas, onde se desenvolveu uma eco-

    nomia baseada na coleta de plantas nativas, as chamadas drogas doserto (cacau, salsaparrilha, baunilha, etc.), a utilizao do trabalhoescravo indgena se estendeu at o sculo XIX.

    A preferncia pelos africanos fez com que os portuguesesse voltassem para o trfico na frica. Na segunda metade do scu-lo XVI, com o aumento da procura por escravos no Brasil, o tr-

    fico passou a condio de grande negcio e fonte de vultososlucros nas duas margens do Atlntico. A partir de ento, o trficodeixou de ser apenas uma entre as vrias atividades ultramarinasiniciadas com os descobrimentos para se transformar no neg-cio mais lucrativo do Atlntico Sul.

    No decorrer do tempo, traficantes com bases comerciaisem Portugal foram gradativamente perdendo espao para trafi-cantes radicados no Brasil. No sculo XVIII, o comrcio paraBenguela e Luanda j era feito diretamente do Brasil, sem a inter-mediao exclusiva de comerciantes portugueses. Por isso mes-mo, os traficantes constituram parte importante dos grupos do-minantes da colnia, ocupando postos polticos estratgicos paraa manuteno e ampliao do comrcio de gente.

    At a sua proibio, em 1850, o trfico transatlntico fezgrandes fortunas no Brasil. Nas cidades porturias, os traficantesgrados exibiam riqueza e poder morando em residncias luxuo-sas, fazendo parte de irmandades religiosas e ocupando cargospblicos nas cmaras municipais. Participando dos governos dascidades e das provncias, eles eram tambm considerados os ho-mens bons da elite.

    Na idia dos europeus, o trfico era justificado como instru-mento da misso evangelizadora dos infiis africanos. O padre

    Antonio Vieira considerava o trfico um grande milagre de NossaSenhora do Rosrio, pois retirados da frica pag, os negros teri-am chances de salvao da alma no Brasil catlico. No sculoXVIII, o conceito de civilizao complementar a justificativa re-

    ligiosa do trfico atlntico ao introduzir a idia de que se tratavade uma cruzada contra as supostas barbrie e selvageria africanas.

    No sculo XIX, Joaquim Pereira Marinho foi um dos maisdestacados traficantes baianos. Ele recebeu da corte t-tulos de baro, visconde e conde, foi membro fundadordo Banco da Bahia e fez parte da poderosa irmandadeda Santa Casa de Misericrdia. Outro grande traficante,Antnio Pedrozo de Albuquerque, possua muitas casas,ouro, prata, engenhos e escravos. Alguns traficantes bra-

    sileiros se estabeleceram na frica. O mais famoso de-les foi o baiano Francisco Flix de Souza, que residiu nacidade de Uid, na atual Repblica do Benim.

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    Neste sermo, proferido em 1633 perante escravos de umengenho do Recncavo baiano, o padre Antnio Vieira justifica otrfico africano:

    Comeando, pois, pelas obrigaes que nascem do vosso novoe to alto nascimento, a primeira e maior de todas quedeveis dar infinitas graas a Deus por vos ter dado conheci-mento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vos-sos pais e vs viveis como gentios, e vos ter trazidos a esta,onde, instrudos na f, vivais como cristos, e vos salveis.Fez Deus tanto caso de vs, e disto mesmo que vos digo,

    que mil anos antes de vir ao mundo, o mandou escrever nosseus livros, que so as Escrituras Sagradas.

    O povoamento do Brasil atravs do trfico

    Atravs do trfico africano os portugueses puderam colonizar o terri-

    trio que mais tarde passaria a se chamar Brasil. Sem a participaodos africanos dificilmente os portugueses conseguiriam ocupar as terrasdescobertas no processo de expanso martima. No sculo XVI, nohavia populao suficiente em Portugal para levar frente a ocupaoda colnia. Foi atravs da importao macia de africanos que oslusitanos conseguiram defender o territrio da cobia de outras

    potencias coloniais, que tambm tinham planos para ocupar e explo-rar as riquezas tropicais aqui encontradas.

    Foram os africanos e seus descendentes, juntamente comos indgenas escravizados, que desbravaram matas, ergueram cida-des e portos, atravessaram rios, abriram estradas que conduziamaos locais mais remotos do territrio. Na marcha para o interior,guerrearam com povos indgenas que se opunham ao avano co-

    lonizador ou se associaram aos nativos quando fugiam para a matapara formar quilombos. Eram tambm os escravos que conduzi-am tropas e carretos que tornaram possvel o intercmbio entre ointerior e as cidades litorneas.

    Desde meados do sculo XVI grande nmero de africanosdesembarcou em cidades litorneas como Salvador, So Vicente

    (So Paulo), Rio de Janeiro, Recife. A partir desses primeiros n-cleos de povoamento, a ocupao avanou para o interior, seguin-

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    do direes diversas. Para onde fossem, os colonizadores levavamescravos africanos.

    Na primeira metade do sculo XVIII, quando colonizado-

    res avanaram para o Mato Grosso em busca de ouro, alm deinstrumentos de minerao levaram tambm escravos africanos.

    A vila de Cuiab rapidamente acumulou densa populao escrava.Em 1726, a vila ganhou seu pelourinho, smbolo do poder muni-cipal e o local onde publicamente se castigavam escravos. Ali otrabalho escravo tornou-se to importante que um dos impostoscobrados pela Coroa portuguesa, a capitao, baseava-se na quan-tidade de escravos que possuam os mineiros.

    J na regio amaznica, a constituio de um trfico negrei-ro regular s se tornou possvel em meados do sculo XVIII coma criao de uma companhia de comrcio que detinha a exclusivi-dade do fornecimento de escravos. Na poca, cerca de dezoitoembarcaes transportavam africanos para os portos de So Lus

    e Belm. Grande parte dos cativos era destinada s lavouras decacau, o principal produto de exportao da regio.

    Levados pela busca do ouro, pela criao de gado e pela explo-rao das drogas do serto, os colonizadores reproduziram nosnovos ncleos de povoamento o mesmo modelo escravista praticadonas regies litorneas. Foi na condio de escravos que africanos eseus descendentes chegaram aos locais mais remotos da colnia. Mas,apesar da escravido, os africanos foram atores culturais importantese influenciaram profundamente as formas de viver e de sentir daspopulaes com que passaram a interagir no Novo Mundo.

    Os europeus os trouxeram para trabalhar e servir nas gran-des plantaes e nas cidades, mas eles e seus descendentes fize-ram muito mais do que plantar, explorar as minas e produzir ri-

    quezas materiais. Os africanos para aqui trazidos como escravostiveram um papel civilizador, foram um elemento ativo, criador,visto que transmitiram sociedade em formao elementos valio-sos da sua cultura. Muitas das prticas da criao de gado eram deorigem africana. A minerao do ferro no Brasil foi aprendida dosafricanos. Com eles a lngua portuguesa no apenas incorporounovas palavras, como ganhou maior espontaneidade e leveza.

    Enfim, podemos afirmar que o trfico fora feito para escravizarafricanos, mas terminou tambm africanizando o Brasil.

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    Portos negreiros

    O trfico transatlntico promoveu o povoamento do Brasil porgente vinda de diversas regies do continente africano. A metr-pole portuguesa adotou a poltica de misturar escravos de diferen-tes regies e etnias para impedir a concentrao de negros damesma origem na colnia, os quais, solidrios na cultura e falandoa mesma lngua, podiam se rebelar mais facilmente. Essa polticanem sempre era seguida risca, pois a depender das relaes co-merciais na frica, os traficantes tendiam a transportar escravos

    que em sua maioria vinham duma mesma regio.Foi por isso que, no sculo XVI, a maioria dos escravos

    trazidos para o Brasil vinha da regio da Senegmbia, denominadaGuin pelos portugueses. Dali os portugueses deportaram mem-bros de vrios povos, como os manjacas, balantas, bijagos, mandi-gas, jalofos, entre outros. Mas, no decorrer daquele sculo at aprimeira metade do sculo XVIII, os chefes polticos e mercado-res do territrio presentemente ocupado por Angola fornecerama maior parte dos escravos utilizados em todas as regies do Bra-sil. A clebre frase do padre Antnio Vieira, quem diz acar, dizBrasil, e quem diz Brasil diz Angola, ilustra muito bem as liga-es da mais rica colnia portuguesa na Amrica com aquela re-gio da frica. Luanda, Benguela e Cabinda eram os principais

    portos de embarque.A regio de Angola foi a principal rea exportadora de pes-

    soas para as provncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, So Pau-lo, Rio Grande do Sul. Mas cativos de outras regies africanastambm vieram a parar. Depois de 1815, quando os ingleses in-tensificaram seus esforos para acabar com o trfico transatlnti-co, os traficantes do Rio de Janeiro concentraram suas operaesna costa oriental, na regio que abrange o que so hoje o sul da

    Tanznia, o norte de Moambique, Malau e o nordeste de Zmbia.Os escravos da costa oriental da frica eram aqui conhecidos comomoambiques.

    J os traficantes envolvidos no comrcio baiano, respons-veis pelo suprimento de escravos para vrias regies nordestinas,

    a partir de meados do sculo XVIII e at o fim do trfico em1850, se concentraram sobretudo no comrcio com a regio do

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    Rotas de navegao no Atlntico Sul.

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    Golfo do Benim (sudoeste da atual Nigria). Atravs do Golfo doBenim, os traficantes baianos importaram escravos aqui denomi-nados dagoms, jejes, hausss, bornus, tapas e nags, entre outros.

    Estes grupos eram embarcados principalmente nos portos deJaquin, Ajud, Popo e Ap, e mais tarde Onim (Lagos). No Rio deJaneiro, Minas Gerais, So Paulo e Rio Grande do Sul os escravosoriginrios daquela regio eram chamados de minas.

    O fato de ter vindo de uma mesma regio, falar a mesmalngua e pertencer a uma mesma nao foi fundamental para a

    sobrevivncia dos africanos no Brasil. Desse modo, eles puderamreconstruir redes de amizade, famlias e comunidades. Mas issono impediu que africanos de etnias diferentes se relacionassem ecriassem novas alianas. O enfrentamento das adversidades daescravido muitas vezes favoreceu a unio de grupos tnicos divi-didos na frica por antigas rivalidades. A multiplicidade de povose etnias para aqui transportadas por fora do trfico fez do Brasil

    um espao privilegiado de convergncia de tradies africanas di-versas que ainda hoje continuam, umas mais que outras, a moldare colorir culturalmente o pas.

    A travessia atlntica

    O escravo apresado no interior africano era obrigado a percorrerlongas distncias at alcanar os portos de embarque no litoral.Muitos no resistiam longa caminhada, s doenas e aos maus-tratos. Nos portos eram alojados em grandes barraces ou emcercados. Ali permaneciam muitos dias e at meses espera deque as cargas humanas dos navios fossem completadas e os cati-

    vos partissem para um mundo completamente desconhecido.Nesse perodo de espera, era grande o nmero de mortes, pois oscativos eram alojados em construes muitas vezes precrias, in-salubres, mal ventiladas e pequenas. Em alguns perodos, cerca de40 por cento dos negros escravizados em Angola pereciam aindaem solo africano. Mas os prepostos africanos do trfico sabiamque os cativos no deviam permanecer durante muito tempo nos

    portos de embarque. Alm das perdas por doenas, temiam que aconcentrao de escravos nos barraces facilitassem revoltas.

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    Marcas tnicas africanas, segundo o viajante alemo Johann M. Rugendas.

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    O africano Mahommah G. Baquaqua viveu a experin-cia do trfico e a relatou em um livro publicado em 1854:

    Quando estvamos prontos para embarcar, fomosacorrentados uns aos outros e amarrados com cordaspelo pescoo e assim arrastados para a beira do mar.O navio estava a alguma distncia da praia. Nunca ha-via visto um navio antes e pensei que fosse algum ob-

    jeto de adorao do homem branco. Imaginei que ser-amos todos massacrados e que estvamos sendo con-duzidos para l com essa inteno. Temia por minhasegurana e o desalento se apossou quase inteiramentede mim.Uma espcie de festa foi realizada em terra fir-me naquele dia. Aqueles que remaram os barcos fo-ram fartamente regalados com usque e, aos escravos,serviam arroz e outras coisas gostosas em abundn-

    cia. No estava ciente de que esta seria minha ltimafesta na frica. No sabia do meu destino. Feliz de mimque no sabia. Sabia apenas que era um escravo,acorrentado pelo pescoo, e devia submeter-me pron-tamente e de boa vontade, acontecesse o que aconte-cesse. Isso era tudo quanto eu achava que tinha o di-reito de saber.

    Relato de Mahommah G. Baquaqua sobre o interior de

    um navio negreiro:Fomos arremessados, nus, poro adentro, os homensapinhados de um lado e as mulheres do outro. O poroera baixo que no podamos ficar em p, ramos obri-gados a nos agachar ou a sentar no cho. Noite e diaeram iguais para ns, o sono nos sendo negado devidoao confinamento de nossos corpos. Ficamos desespe-rados com o sofrimento e a fadiga.Oh! A repugnncia ea imundcie daquele lugar horrvel nunca sero apaga-das de minha memria. No: enquanto a memria man-

    tiver seu posto nesse crebro distrado, lembrarei daqui-lo. Meu corao at hoje adoece ao pensar nisto.

    Completado o nmero de escravos a serem transportados,os africanos eram conduzidos aos navios negreiros, tambm cha-mados de tumbeiros. Antes de entrar nas embarcaes, eles eram

    marcados a ferro quente no peito ou nas costas com os sinais queidentificavam a que traficante pertenciam, uma vez que em cadabarco viajavam escravizados pertencentes a diferentes donos. Nointerior das embarcaes, por segurana, os cativos eram postos aferros at que no se avistasse mais a costa africana. As condiesdas embarcaes eram precrias porque, para garantir alta rentabi-

    lidade, os capites s zarpavam da frica com nmero mximo depassageiros. O nmero de cativos embarcados em cada navio de-pendia da capacidade de suas instalaes. Nos sculos XVI e XVII,uma caravela portuguesa era capaz de transportar cerca de 500cativos e um pequeno bergantim podia transportar at 200. Nosculo XIX, os traficantes utilizaram os navios a vapor, o que re-duziu o tempo das viagens. Nos ltimos anos do trfico, a mdia

    de escravos transportados por navio era de 350.Os comerciantes tinham interesse em alojar o maior nmero

    possvel de escravos nos navios, e essa prtica tornava a viageminsuportvel. Muitas vezes aumentar o nmero de cativos implicavaem diminuir a quantidade de vveres disponvel para cada um. Ge-ralmente os escravos eram alimentados uma vez por dia. Em 1642,

    um holands que atuava no trfico em Luanda informou que osmercadores portugueses costumavam alimentar os escravos comazeite e milho cozido. A pouca ingesto de gua durante a viagemgeralmente provocava desinterias e desidratao. Alm da fome eda sede, havia o sofrimento por ter deixado para trs seus entesqueridos, com pouca chance de voltar a rev-los.

    No sculo XVII, a travessia de Angola para Pernambuco

    durava em mdia trinta e cinco dias, quarenta at a Bahia e cin-qenta at o Rio de Janeiro. No sculo seguinte, o uso de embar-caes menores e mais velozes diminuiu a durao das viagens. Atravessia de Angola para o Rio de Janeiro podia agora durar trintae cinco a quarenta dias, nmeros que se mantiveram no sculoXIX. Se os ventos no fossem favorveis essas viagens podiam se

    estender por mais dias. Nesse caso, o drama dos cativos se agrava-va diante da falta de vveres suficientes e da propagao de mols-

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    Disposio dos escravos no interior de um navio negreiro.

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    tias. Mesmo que rpida, a travessia era infinitamente penosa paraos cativos.

    A Coroa portuguesa tentou por diversas vezes regulamentar

    a atividade dos negreiros, coibindo a superlotao, garantindo otratamento mdico a bordo e comodidades mnimas para o trans-porte dos cativos. Mas, muitas vezes, a taxa de mortalidade duran-te a travessia do Atlntico era extremamente elevada. Por exem-plo, a galera So Jos Indiano, aportada em outubro de 1811, noRio de Janeiro, oriunda de Cabinda, perdeu 121 de seus 667 escra-

    vos, mais o capelo e trs marinheiros. Estimativas mais recentescalculam entre 15 a 20 por cento de mortos durante uma viagemnormal, mas no era incomum haver 40 a 50 por cento de perdas.

    Pode-se imputar as mortes a bordo a fatores como escassezde alimentos e gua, maus-tratos, superlotao e at mesmo aoterror da experincia vivida, que debilitava fsica e mentalmenteos africanos. Alm disso, o trfico colocava os africanos em con-tato com doenas para eles desconhecidas e para as quais aindano haviam criado defesas suficientes. Ao colocar em contatopovos de diversas regies da frica e mais tripulaes brasileiras eeuropias, os navios negreiros funcionavam como verdadeirosmisturadores de enfermidades tpicas de cada continente. Em casode contagio de febre amarela, tifo ou varola era grande o nmero

    de mortes no apenas entre os cativos, mas tambm entre a tripu-lao. Havia ainda a morte provocada por suicdio e no forampoucos os cativos que puseram fim existncia precipitando-seno mar. Mesmo considerando o alto ndice de mortalidade, o tr-fico era um negcio bastante lucrativo.

    Sobreviveram poucos relatos sobre os horrores vividos pe-los africanos no interior dos tumbeiros. Em dezembro de 1649,frei Sorrento, capuchinho italiano, bordo de um negreiro con-tendo mais de novecentos escravos, escreveu: aquele barco [...]pelo intolervel fedor, pela escassez de espao, pelos gritos cont-nuos e pelas infinitas misrias de tantos infelizes, parecia um in-ferno. No incio do sculo XX, o escritor paraibano Jos Lins doRego recordou uma ex-escrava chamada Galdina, que viera da

    Costa da frica ainda criana e contava os horrores e traumasvividos a bordo de um navio negreiro. Contava vov Galdina:

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    Ah! Como doa nas costas o chicote do homem que manda-va nos negros. De manh se subia para ver o sol. Todosestavam nus e fedia o buraco onde tinham que dormir. Mas

    de noite ouvia um rumor de bater de asas. Asas brancas quevoavam para cima dela. Era o vo das almas que no podi-am voar para o cu. Todas as noites elas vinham bater pelasjanelas do barco. Elas s podiam voar para o cu, saindo daterra. Os corpos dos que eram lanados na profundeza domar no davam almas nem para o cu nem para o inferno[...]. De noite ainda vejo os pssaros grandes em cima dotelhado do quarto. As almas ainda no me abandonaram.

    O relato da ex-escrava reproduzido pelo romancista mostraque o trauma da travessia atlntica estava relacionado tambm preocupao com o destino das almas dos que morriam. Como

    vimos no captulo anterior, para muitos povos provenientes daregio congo-angola, o lugar prprio para os espritos era junto

    com os vivos, seus descendentes. A morte no mar e no interiordos tumbeiros impedia que os espritos retornassem para pertode seu povo e aldeia de origem. Assim, os sobreviventes pareciamestar fadados a serem acompanhados pelas almas penadas dosque morreram no mar, longe da terra dos ancestrais.

    Ao longo da angustiante travessia, os cativos estabeleciamlaos de amizade entre si. Chamavam-se malungos uns aos ou-tros, uma amizade que gerava profunda solidariedade e verdadei-ras obrigaes de ajuda mtua. Em 1836, um africano forro orga-nizou o retorno frica de 200 escravos alforriados baianos. Ses-senta deles fizeram parte do carregamento do navio Emlia, pro-

    veniente de Onim, que os desembarcara junto com o organizadordo retorno na Bahia em 1821.

    Desconfiana, medo e hostilidade reinavam a bordo dos na-vios negreiros. A viagem era cercada de muitos cuidados. Para afas-tar os riscos de motins, os mais inquietos eram acorrentados nospores. Relatos de motins a bordo dos negreiros so raros, mas orisco de ocorrerem no era algo descartado pelos que atuavam na-quele ramo de negcio. Em 1823, cativos transportados num ne-greiro que seguia para a Bahia se rebelaram em alto mar sob a lide-rana de um negro ladino, isto , um que falava portugus. Mortos

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    e dominados os tripulantes, os rebeldes alcanaram a costa baianaatravs da percia de escravos marinheiros.

    Os escravos novos eram geralmente do sexo masculino, entre

    10 e 30 anos de idade, a maioria na faixa dos 20. A mo-de-obrados homens jovens era mais valorizada no mercado brasileiro. Ossenhores preferiam comprar homens em idade de produzir, e osafricanos que controlavam o mercado do trfico na fricadeliberadamente reduziam a oferta de mulheres e de crianas commenos de 10 anos aos traficantes brasileiros. Mulheres e crianaseram mais valorizadas no mercado interno africano. A maioriados estudos sobre o trfico mostra que havia desequilbrio cons-tante de pelo menos dois homens para cada mulher.

    A preponderncia masculina nos navios negreiros teve comoconseqncia o desequilbrio entre o nmero de homens e mu-lheres na populao escrava da colnia. Havia escassez de mulhe-res nas regies de grandes plantaes de cana e de caf, algo que

    perdurou at o final da escravido. No sculo XIX, em regiescafeeiras do Rio de Janeiro, para dez escravos, seis ou sete eramhomens. Nos grandes centros urbanos, havia dois escravos parauma escrava. Esse fenmeno teve efeito inverso nas reas queexportavam escravos. Em Angola, por exemplo, durante a pocado trfico, o numero de mulheres superava o de homens.

    A chegada dos sobreviventes ao Brasil

    Aps a longa travessia ocenica, os africanos desembarcavam nosportos do Brasil. Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza, Belme So Lus eram os grandes portos importadores e redistribuidoresde escravos para diversas regies da colnia. No sculo XVII, Salva-

    dor e Recife se firmaram como os grandes centros distribuidoresdos africanos que desembarcavam na colnia. Daqueles centros, osafricanos seguiam para o norte, para o Maranho, Par, Rio Amazo-nas e para o Mato Grosso. No final do sculo XVII e comeos doXVIII, com a descoberta de ouro e diamantes nas Minas Gerais, oRio de Janeiro passou a dominar a distribuio do grande volumede escravos destinados s minas. Mas tambm de Salvador muitosescravos seguiam a p at a regio mineira.

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    No sculo XVIII, Belm e So Lus tornaram-se centrosimportantes de venda de africanos para toda a regio amaznica.Muitos dos africanos desembarcados em Belm eram trazidos di-

    retamente da frica, mas, no incio do sculo XIX, muitos outrosvinham do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Cear. De Belmos cativos marchavam por terra ou eram conduzidos por barcospara as regies mais interiores da Amaznia.

    Aps o desembarque, as autoridades alfandegrias contavam-nos por sexo e anotavam o nmero de crias (assim eram chama-

    das as crianas escravas) que acompanhavam as mes. Depois depagarem impostos sobre os escravos acima de trs anos de idade, ostraficantes levavam os africanos em grupo para o local do leilo. Sehouvesse compradores suficientes, eram imediatamente leiloadosperto da alfndega. Mas a maioria dos cativos seguia para os arma-zns situados geralmente prximos s reas porturias daqueles cen-tros urbanos. No Rio de Janeiro, a rea porturia conhecida como

    Valongo concentrava dezenas de sobrados que funcionavam comodepsitos onde eram alojados os africanos recm-chegados. Ali haviaarmazns que alojavam trezentos a quatrocentos cativos.

    Devido aos rigores da travessia, os africanos chegavam qua-se invariavelmente magros e debilitados, com feridas na pele,brotoejas e sarna. As crianas geralmente apresentavam barrigas

    inchadas em conseqncia de vermes e da desnutrio. Quando aepidemia de oftalmia, uma inflamao dos olhos, disseminava-sea bordo, era comum os vendedores puxarem pela corda extensasfilas de escravos quase ou completamente cegos, amarrados e tro-peando uns nos outros at os armazns.

    No Valongo permaneciam por vrios dias ou semanas recu-perando-se da viagem e espera de comprador. Muitos no resis-tiam e morriam nesse perodo de espera. Era alta a taxa de morta-lidade nos primeiros meses que se seguiam ao desembarque, uma

    vez que os africanos chegavam bastante debilitados e no possuamdefesas para muitas molstias existentes no Novo Mundo. A mor-talidade era to alta no Valongo que um cemitrio foi ali pertoconstrudo para sepultamento de africanos recm-importados.

    Os que sobreviviam tinham que enfrentar a preparao paraa venda, inspeo e compra. Ao chegar ao mercado, eram banha-

    Relato de Mahommah G. Baquaqua sobre seu desem-barque numa praia deserta perto de Recife em tornode 1845:

    Quando desembarquei, senti-me grato Providnciapor ter me permitido respirar ar puro novamente, pen-samento este que absorvia quase todos os outros. Pou-co me importava, ento, de ser um escravo, havia mesafado do navio e era apenas nisso que eu pensava.Alguns escravos a bordo sabiam falar portugus. Havi-am vivido no litoral com famlias portuguesas e faziamo papel de interpretes. No eram colocados no porocomo ns, mas desciam ocasionalmente para nos di-zer uma coisa ou outra. Estes escravos nunca sabiamque seriam despachados at o momento em que eramcolocados a bordo do navio. Permaneci nesse merca-do de escravos apenas um dia ou dois, antes de servendido a outro traficante na cidade que, por sua vez,me revendeu a um homem do interior, que era padeiroe residia num lugar no muito distante de Pernambuco.Quando um navio negreiro aporta, a notcia espalha-secomo um rastilho de plvora. Acorrem, ento, todos osinteressados na chegada da embarcao com sua car-ga de mercadoria viva, selecionando do estoque aque-les mais adequados aos seus propsitos, e compran-

    do os escravos na mesmssima maneira como se com-pra gado ou cavalos num mercado. Mas, se num car-regamento no houver o tipo de escravo adequado snecessidades e desejos dos compradores, encomen-da-se ao Capito, especificando os tipos exigidos, quesero trazidos na prxima vez em que o navio vier aoporto. H uma grande quantidade de pessoas que fa-zem um verdadeiro negcio dessa compra e venda decarne humana e que s fazem isso para se manter,dependendo inteiramente desse tipo de trfico.

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    dos e limpos. Negros da mesma nao raspavam cabelos e barbasuns dos outros. Para esconder doenas da pele e faz-los parecermais jovens, os negociantes s vezes passavam leo sobre a pele.

    Tendo em vista que os africanos chegavam magros, os comercian-tes aumentavam a quantidade de alimentao engordante para re-cuperarem logo peso e parecerem sadios. Uma vez que muitosacreditavam que os europeus praticavam o canibalismo, pode-seimaginar o terror dos recm-chegados quando eram forados acomer mais e mais.

    Alm de alimentar os africanos, tratar de suas enfermidadese vacin-los, os comerciantes tentavam melhorar a sade mentaldeles para evitar o suicdio. A doena mais temida era o escorbuto,conhecida tambm como o mal-de-luanda, provocada pela defici-ncia profunda de vitamina C. Alm de obrigarem os cativos aconsumirem frutas, os comerciantes os foravam a danar, por-que associavam a letargia mental que acompanha o escorbuto e

    outras doenas nutricionais saudade de casa. Para convencer oscompradores de que os escravos no estavam deprimidos, com ofamoso banzo, os negociantes davam-lhes estimulantes (gengibree tabaco) para anim-los.

    Casas comerciais e negociantes licenciados em escravos no-vos, que traficavam grande quantidade de africanos, exibiam-nos

    nas portas de casas ou armazns. Assim que estavam prontos paravenda, os negociantes colocavam anncios nos jornais informandoao pblico que um novo carregamento estava disponvel. No diamarcado, os feitores organizavam suas mercadorias humanas paraexpor aos compradores em geral, por idade, sexo e nacionalida-de. Quando organizados por idade, os mais velhos, entre trinta equarenta anos, sentavam-se na fileira de trs; os mais qualificados,entre quinze e vinte anos, ocupavam os assentos do meio; mulherese crianas ficavam nos assentos mais baixos ou no cho.

    Uma vez escolhido o escravo ou escrava, vendedor e com-prador discutiam preos e condies de venda. Caso no tivessedoenas, o homem adulto normalmente era vendido por preo maisalto do que mulheres e crianas menores de dez anos. Os fazendei-

    ros que compravam todo um lote de escravos muitas vezes em-penhavam colheitas futuras de caf ou acar para pag-los.

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    Desembarque de escravos africanos no Rio de Janeiro.

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    O mercado de escravos no Brasil era regido por determina-dos cdigos, leis e acordos tcitos entre vendedores e compradores.

    Tendo em vista que muitos africanos morriam logo aps chegar,

    muitos compradores preferiam adquiri-los, sob condio, por umperodo determinado at que se decidisse pela compra definitiva. Sedentro de quinze dias o escravo novo morresse, ou se o compradordescobrisse alguma deformidade, doena crnica ou conduta inde-sejvel, havia a opo legal de devolv-lo e receber um outro.

    A maior parte dos recm-chegados era destinada a compra-

    dores do interior do Brasil. Eram comprados por intermediriosou agentes de fazendeiros, conduzidos s regies interioranas,enfrentando muitas vezes outra jornada longa, que podia durardias e at semanas por via terrestre ou martima. Do Rio de Janei-ro, por exemplo, os africanos eram redistribudos para as provn-cias de So Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Gois, SantaCatarina, Paran e Rio Grande do Sul. Do Rio Grande podiam ser

    contrabandeados para o Chile, Bolvia, Argentina e Uruguai. Dacidade da Bahia, os escravos tambm seguiam direes diversas.Pela Estrada Real, que ligava a Bahia a Minas, Mato Grosso e Gois,marchavam imensos comboios de escravos conduzidos portropeiros.

    Alm das grandes casas comerciais, pequenos e mdios

    comerciantes operavam com a venda de escravos no Brasil. Essanegociao ficava a cargo de comerciantes especializados na ven-da de escravos pelo interior. Na verdade, essa ltima etapa do cir-cuito do trfico, o elo final da longa cadeia iniciada nas florestas esavanas africanas, ficava nas mos de centenas de pequenos trafi-cantes. Alm dos comerciantes que compravam numerosos escra-

    vos e os remetia para fazendeiros fora da cidade, os tropeiros e

    mascates compravam pequenos lotes e os revendiam nas vilas efazendas do interior.

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    Interior de um armazm onde africanos novos eram expostos venda.

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    Fim do trfico transatlntico

    Desde o incio do sculo XIX, o trfico africano de escravos vi-nha sofrendo forte presso para ser abolido. Externamente, a In-glaterra era o pas que tinha posio mais agressiva contra o trfi-co, isto depois de ter-se beneficiado enormemente dele. A Ingla-terra foi, de fato, a segunda potncia traficante no Atlntico, per-dendo apenas para Portugal/Brasil em nmero de escravos trans-portados em seus navios. Mas, em 1807, pressionado por um for-te movimento abolicionista dentro de suas fronteiras, o parlamento

    ingls decretou o fim do trfico para suas colnias na Amrica e,em 1833, aboliu tambm a escravido. Como potncia mais pode-rosa da poca, a Inglaterra pretendia impor a mesma deciso so-bre os demais pases. O Brasil foi o grande alvo dos ingleses, noapenas por ser o maior importador de escravos, mas principal-mente por ser forte concorrente da exportao de acar das co-lnias inglesas do Caribe.

    Em 1810, o governo ingls obteve do prncipe regente por-tugus, d. Joo VI, ento estabelecido no Brasil, a promessa derestringir o trfico em seus domnios. Em 18