uma historia da terra e do mar - katy simpson smith

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  • 7/23/2019 Uma Historia Da Terra e Do Mar - Katy Simpson Smith

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    DADOS DE COPYRIGHT

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    Katy Simpson Smith

    Uma histria da terra e do mar

    Traduo:Renato Marques

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    Copyright 2014 by Katy Simpson Smith

    Copyright da traduo 2014 by Editora Globo s.a.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada oureproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico,fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de

    dados, sem a expressa autorizao da editora.

    Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortogrfico da LnguaPortuguesa(Decreto Legislativo no 54, de 1995).

    Ttulo original: The Story of Land and Sea

    ditor responsvel:Eugenia Ribas-Vieiraditor assistente:Juliana de Araujo Rodriguesditor digital:Erick Santos Cardoso

    Preparao:Jane Pessoaeviso:Huendel Viana e Celeste Varella

    Diagramao:Negrito Produo EditorialCapa:Srgio Cam pantemagens da capa: David Lichtneker / Arcangel Images

    David et Myrtille / Arcangel Images

    1aedio, 2014

    cip-brasil. catalogao na publicaosindicato nacional dos editores de livros, rj

    S649hSmith, Katy SimpsonUma histria da terra e do mar / Katy Simpson Smith; traduo Renato Marques.

    1. ed. So Paulo: Globo Livros, 2014.228 p.: il.; 23 cm.

    Traduo de: The Story of Land and Seaisbn 978-85-250-5860-7

    1. Fico am ericana. i. Marques, Renato. ii. Ttulo.

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    14-15311 cdd: 813cdu: 821.111(73)-3

    Direitos de edio em lngua portuguesa para o Brasil adquiridos porEditora Globo s.a.Av. Jaguar, 1485

    So Paulo-sp 05346-902www.globolivros.com.br

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    Sumrio

    CapaFolha de rostoCrditosDedicatriaEpgrafeParte I (1793)

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    Parte II (1771-1782)123

    Parte III (1793-1794)

    12

    otas

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    Para meu pai

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    Existe uma terra que deleite puro,

    Um reino de santos imortais;

    O dia infindo e baniu o escuro,

    S h prazeres, no se ouvem ais.

    L a primavera eterna reside,

    E as flores nunca ho de murchar;

    A morte, qual mar estreito, divide

    Essa terra celestial do nosso lar [...]

    Mas os tbios mortais encolhem-se de temor,

    Assustados com a travessia desse estreito mar,

    Estancam margem, tomados de tremor,

    Falta-lhes a coragem de se lanar [...]

    Se subir pudssemos onde Moiss ergueu as tbuas

    E contemplar a vasta paisagem,

    Nem a torrente do Jordo, nem da morte as frias guas,

    Nada enfim nos afugentaria da paragem.

    Isaac Watts

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    Parte I

    1793

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    os dias de agosto, quando as tempestades no mar aoitam a costa da Carolinado Norte, ele arrasta at o vestbulo um colcho de palha e narra filha histrias,verdadeiras e inventadas, sobre a me dela. As venezianas de madeiraestremecem, e Tabitha dobra cobertores ao redor deles para construir um abrigoaconchegante contra a tormenta. Ele sempre fala dos seus dias de flerte, datimidez da me dela. distncia ela parecia um pinheiro espigado; somentequando chegou perto ele pde v-la tremer.

    Ela estava com medo? Feliz diz John. Ns dois estvamos felizes.

    Ele observa Tab erguer a colcha at o queixo, embora nem mesmo atempestade seja capaz de soprar para longe o calor do vero. Ela est esperando

    para ouvir os seus segredos. Mas difcil descrever a sensao de estar ao ladode algum a quem se ama, na praia, ao entardecer. Ele no tinha de ver Helen

    para saber que ela estava l. Alguma coisa no corpo dela atraa o dele, atravs doar mido entre os dois.

    Quando voc for mais velha diz ele, e ela assente, habituada resposta.

    Por que o senhor nunca me fala sobre o navio? ela pergunta. Todasas coisas que o senhor deve ter visto com ela.Ele percorre com os olhos o vestbulo, v as sombras chicoteando as ripas e

    pousa um dos dedos sobre a boca. Consegue ouvir algum pssaro?Tab desliza at a cozinha para pegar um naco de po na penumbra do

    temporal. Ela vai continuar perguntando at ele contar. De novo enrolada nascolchas, ela aninha-se junto dele. Enquanto o vento agita as palmeiras e a chuvaderrete o vidro da janela, John entoa uma de suas canes de marujo para

    seren-la. Tabitha pede, aos berros: Mais alto!, e ele pe-se de p,desequilibrando-se em cima do colcho, e rege com as mos bronzeadas amelodia. Sua voz ecoa pelos cmodos silenciosos.

    Ele no conta a ela sobre o dia em que embarcou com Helen em um naviocujo capito ele conhecia de seus dias de pirata, uma pequena sacola entre osdois, e ambos enrodilharam-se sob a amurada at que a fragata iou ncora eenfunou as velas e manobrou por entre os baixios baa afora. Somente quando oimediato deu uma piscadela, eles se levantaram Helen cambaleante,

    agarrando-se a ele em busca de apoio, rindo feito uma menina, os cabelosesvoaando-se ao vento e viram a cidade encolher aos poucos, at que j no

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    passava de um pedao de madeira flutuante, um borro marrom e dourado junto orla.

    Ele no conta a Tab sobre a beleza da me, que pelejava para encontraralguma dignidade numa embarcao em alto-mar, com camadas de imundcie.Durante um ano eles ficaram a bordo daquele navio, casaram-se e, por fim, elacarregava a semente de uma criana dentro de si, e Helen transformou-se de

    uma espcie de santa imaculada numa mulher de pele morena, tostada pelo sol,que arrepanhava as saias para ajud-lo a esfregar o convs, e cujas mosenvolviam as suas quando noite ele pescava no costado do navio. Essa mulher

    poderia realmente voltar a viver no mundo de novo? As imprecaes queaprendeu, o bronzeado de sua pele, o modo como sua risada ficou mais

    barulhenta, como se competisse com as ondas.O que Tabitha h de ser quando se tornar uma mulher?Depois da tempestade, eles caminham pela praia para ver o que o oceano

    deixou para trs. Folhas e galhos cados pelo caminho. Semienterrada na areia ha carapaa rachada de um caranguejo-ferradura. Tab raspa com as unhas a pelefina como papel do lmulo e o deixa l, para as ondas o devorarem de novo.

    1793, e eles vivem em Beaufort numa casa de quatro cmodos, dois em cimae dois embaixo, construda por um primo sem filhos que negociava madeira emorreu esmagado por um pinheiro que desabou. Uma quadra ao norte da gua,

    trs quadras a leste da loja onde John vende miudezas. No vero as portas ficamescancaradas, a da frente e a de trs, e a brisa salgada serpenteia corredoradentro. Quando h trovoada, as janelas rugem. O quarto da menina no andar decima d para o charco e cheira a peixe de manh e, tarde, pega toda a luz dosul. Nas noites sem lua ela dorme com o pai por medo de bruxas voadoras.

    A sra. Foushee dirige a escola na cidade, onde as crianas, a maioriameninas, passam o tempo se suas mes no forem pobres ou no estiverem

    prestes a dar luz. As mozinhas delas roam as ranhuras das carteiras de

    madeira e deslizam por entre as pginas dos livros de ortografia. As letrasdanam para elas. A sra. Foushee esposa de um soldado e dorme na cama delee ouve o marido lembrar-se da Guerra de Independncia, mas na sala de aulaela se enfada de suas obrigaes. Passa a maior parte do dia sentada, e faz comque as crianas lhe tragam as tarefas. Deixa as alunas sarem antes da hora ou seesquece de cham-las para o jantar. Mata o tempo com seus bordados, chupa

    balas, e s vezes cochila. De mansinho as meninas chegam perto de sua cadeirapara espiar, algumas afagam o brocado rosa de suas saias, outras afanam fios docabelo prateado cados no seu colo e os queimam para sentir o cheiro. As

    plpebras da mulher so cadas; seus lbios, ainda grossos na meia-idade, ficam

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    entreabertos, flcidos. Ela deu aulas para a me de Tab tambm.Aos nove anos, Tabitha sabe o alfabeto e a maioria das palavras pequenas e

    sabe contar xelins e pence nos dedos. capaz de tocar trs melodias no rgo daigreja, e se fosse levada para a Frana, saberia pedir po e gua. Tambm, todoo conhecimento da sra. Foushee resume-se a isso. Na maior parte dos dias Tabdeixa que a mulher durma e que as outras alunas faam tranas nos cabelos. Ela,

    por sua vez, atravs da porta aberta, crava os olhos no oceano, que ela conhecemelhor do que conhece sua me.

    A cidadezinha est mais velha agora, do modo como algumas cidadesenvelhecem; a maioria dos jovens cresceu. Alguns foram para a guerra emorreram, e outros tomaram posse de suas pequenas heranas e se mudaram

    para Wilmington ou para Raleigh. Quando o primo de John morreu, nenhumoutro parente voltaria para reivindicar a casa em Beaufort. Mas John tinha umaesposa grvida, e o mar no era lugar para um recm-nascido. As famlias

    remanescentes na cidade vivem numa faixa estreita de terra paralela ao mar,espao de apenas algumas ruas. As que tm dinheiro amealharam os camposadjacentes para cultivar arroz ou extrair madeira, e, para alm das plantations,[1]pntanos e florestas, estendem-se pelo interior. Uma nica estrada rasga esseerm o e liga Beaufort a New Bern. A cidade parece estar lentamente matando a simesma.

    Tab no conhece muitas crianas. H as alunas da sra. Foushee, algunsmeninos esfarrapados que pertencem aos roceiros pobres dos confins da cidade,

    e os filhos dos escravos, que ela consegue identificar nos campos por suapequenez. Eles so meios degraus nas longas fieiras de corpos dobrados.Raramente vm cidade e, quando o fazem, no levantam os olhos. Tab sabeque o pai tem alguns conhecidos entre os escravos, mas ela no acha isso toinslito. Fios silenciosos percorrem a cidade em todas as direes, e Tab no cega. Porm, ele j amais os leva para conhec-la, e nunca fala diretamente comeles. Tab desconhece as regras acerca disso. s vezes uma mulher entra na lojacom ovos para vender e traz a reboque um menininho, do mesmo tamanho deTab. John olha para eles com firmeza, e a mulher devolve o olhar duro, mas as

    palavras que eles trocam so na maioria das vezes triviais. O menino tenta tocarem tudo que h na venda. Tateia os tonis e as enxadas e as sacas de milho secocomo se fossem seda. Ele sorri para Tab, como se soubesse tudo que ela sabe.Mas Tab no amiga dele, tampouco amiga das meninas empoadas da sala deaula da sra. Foushee ou dos meninos que atiram pedras nos arrabaldes da cidade.Ela tem o pai.

    as manhs de vero em que a sra. Foushee est doente ou o sangue de Tabitha

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    est fervendo, a menina caminha at os charcos ao longo da orla e nada combraadas lentas at o banco de areia entre a enseada e o oceano. Deita-se sobreos pedregulhos, braos e pernas esticados, os dedos dos ps e das mosenterrando-se na quentura. De olhos fechados, ela v batalhas travadas na gua.

    avios franceses, britnicos, e fantasmas com canhes ribombando ebandeiras tremulando, suas formas precrias iluminadas pelas nuvens cmulos

    do vero. Rajadas de artilharia pintam o poente.Ela cava canais na praia para deixar a gua entrar e constri fossos e ilhas

    de defesa. Folhas de carvalho golpeiam-se umas s outras, e pedaos de musgosaltam para a superfcie da gua salgada, corpos lanados de chofre no mar.Seixos, que so balas de canho, aterrissam sobre as folhas, condenando-as aonaufrgio, despachando seus destroos para as profundezas onde os caranguejos-de-pedra faro furos em seu casco, afundando-as ainda mais. No hmisericrdia nessa brincadeira.

    Finda a batalha, soobradas as folhas, Tabitha procura tesouros. Ela costurouna frente de seus vestidos bolsos enormes a fim de levar para casa conchasrosadas e espinhas de peixe secas. Costumava deixar seus achados em um poono centro da ilha, mas uma tempestade esparramara tudo. Agora ela os levaconsigo. Seu quarto fica uma baguna com o entulho do oceano. Ela pisa em algo

    pontiagudo e , de dentro de uma fenda onde a gua se infiltrou, tira um pedao delato lascado. Um fragmento de armadura, ela supe. Seu pai, sem saber o que melhor para ela, deixa a menina zanzar a esmo.

    No lusco-fusco, o pntano fica prpura e pesado. No banco de areia, o lodo

    enrugado da margem est lustroso. Os abetouros sacodem os canios. Uma fieirade nuvens mergulha rumo a oeste, acobertando a ltima borda rosada. QuandoTab desliza para dentro da gua escura, pincelada de prata, uma exploso degaivotas ala voo, grasnando. Na superfcie, ela abre os olhos e deixa-se boiar, oscabelos flutuando. O movimento de seu corpo junta gua. Uma forma diminuta eescura passa debaixo dela, e ela ergue depressa a cabea, arfando. Uma mechade cabelo roa sua boca quando ela sorve o ar. Tab comea a dar chutes e aesticar os braos e, em poucos minutos, est de novo afundada at os tornozelos

    no barro marrom, as mos buscando agarrar talos para tirar os ps da lama. Seusbolsos ainda esto pesados com os tesouros. Suas pernas molhadas recolhemareia ao longo de todo o caminho de volta para casa.

    Aos domingos, Asa chega em um terno marrom. Embora ele e John raramentefalem de Helen, os olhos verdes de Asa trazem lembrana os dela. Ele carreganas mos um livro e espera pela neta no vestbulo. John pede para ele se sentar, eele faz que no com a cabea, olhando fixamente para a porta dos fundos aberta.

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    John pergunta a Asa como anda o crescimento das rvores, e ele responde:Sofrvel. John deixa o sogro l, de p, e se retira para a sala de estar a fim deler os sem anrios. Mais tarde, ainda pela m anh, John vai perambular pelo portoe saudar os navios que atracam, procurando velhos amigos em meio stripulaes. Tabitha desce as escadas num vestido apertado, o nico sem bolsos, ed a mo ao av, sem sorrir. Ela despede-se de John, e eles percorrem a p os

    cinco quarteires at a igreja. O prdio de tijolos vista e se equilibra compouca firm eza sobre pilares de pedra. Asa anglicano, m as o anglicanismo estmorrendo, e sua velha igreja foi tomada pelos metodistas. A maior parte dosanglicanos refugiou-se nessa capela menor, onde se realinharam com osepiscopais. Ele no d conta de se manter a par de todos os nomes docristianismo. As pessoas ainda esto buscando o que costumavam saber. Aqui noh vitrais e as tbuas do assoalho esto empenando. A igreja tem uma pequenatorre quadrada e uma cpula com um sino, mas da rua pode-se ver que esto

    inclinadas.Sentado no banco da igreja com a neta, Asa anseia por almofadas. Quandoera menino, os cultos religiosos eram realizados no frum; ele tinha uma Bbliacom as bordas das folhas douradas e seu traseiro podia apoiar-se sobre um coximenquanto ouvia a palavra do Senhor. Mas agora os filhos esto indo embora,abandonando as fazendas dos pais, e as igrejas deixam a desejar. A cidade

    pretendia construir um canal para ligar os dois rios na direo de New Bern, paraque os barcos pudessem passar com mercadorias, mas os homens que detinhamas verbas relutaram em gast-las, e Beaufort que poderia ter controlado o

    comrcio interno estagnou, e depois comeou a afundar. A bondade do mundoque ele conhecia minguou; a sensao de comunidade que eles tinham sob o jugorgio converteu-se em egosmo. Os homens agarram-se ao dinheiro e no virtude. Todos os homens que ele conhece so reles bandidos. Ele espera queDeus estej a vendo.

    Tabitha, que balana as pernas quando obrigada a se sentar, chuta a partede trs do tornozelo de Asa, cuja perna, por reflexo, bate no banco da frente. O

    pastor hesita, depois retoma o sermo. Asa belisca o pulso da menina e a fulmina

    com o olhar.De p diante do plpito, o reverendo Solomon Halling gesticula suavemente.

    O plpito feito de pinho, entalhado com uma flor enorme e outras menores, quetalvez tambm sejam cruzes de quatro ptalas. Asa sempre se pergunta se soobra de uma m ulher. Halling vem de New Bern algumas vezes por ano; em geraleles ouvem os membros do conselho paroquial ou entoam cnticos entre si. Acongregao diminuiu pela metade nos ltimos anos. Em vez de se sentaremtodas reunidas na frente, as pessoas se mantm nos lugares de costume, osespaos entre elas aumentando. Halling lembra aos ouvintes o que serepiscopal, que meramente o anglicanismo sem a submisso monarquia.

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    Algumas mulheres se remexem nos bancos, inquietas. Uma criana espirra ecomea a chorar, por isso Halling recorre a um hino. As pessoas ficam de p, eas que ganham a vida beira-mar alisam seus coletes de l. Enrubescem aoouvir o som da prpria voz.

    Durante os hinos, Asa sempre ouve a filha ausente. Outrora a limpidez dotom da voz dela o fazia se lembrar de sua prpria perversidade. Ele um dos

    homens que vo igreja para se punir, embora, claro, haja prazer nessapenitncia. Quando olha de relance para a neta, ela parece uma estranha.

    Depois que os paroquianos ofertaram suas oraes e foram exortados bondade e doao, o reverendo dr. Halling se posiciona nos degraus capengas etroca apertos de mos. Nesse domingo, Asa lhe d meia libra para a nova igrejae empurra Tabitha frente para apertar a mo do reverendo. Embora novato na

    parquia, o pastor um homem extenuado, com cs crespas sobre os om bros eolhos castanhos embotados. Durante a guerra ele atuou como cirurgio, e depois

    de remendar os corpos dos homens, cuidar de suas almas deixou-o por fimesgotado. Quando sorri, seus dentes resvalam no lbio, por isso ele est sempreajustando a boca a fim de aquiet-la.

    Minha neta diz Asa, a mo firme sobre o om bro dela. Tabitha esfregaa palma das mos no vestido. Ela e o pai so instveis na f.

    Halling meneia a cabea. Ela tem o prprio hinrio? Ele entra de novo na igreja, frustrando um

    bando de velhotas que cantarolam baixinho atrs dele, e momentos depoisretorna com um livro marrom em frangalhos e o entrega a Asa. Sobretudo

    Watts diz ele. Receio que eu sej a a nica orientao dela diz Asa.Halling balana a cabea e estende a mo aberta, a palma para cima.

    Voc se esquece do Senhor. Volta-se para a multido, que ainda estabsorvendo a presena da ordenao.

    Tab puxa o av pela mo. As mars esto encrespando, e ela pode sentir ocheiro da safra de peixes, pode ouvir os buracos arfantes que os caranguejosfazem na areia.

    No cam inho de volta para casa, ele segura o livro, indagando-se se certodeixar uma criana pag possuir a palavra de Deus. Qual o propsito de irrigarcampos incultos? Asa gostaria que houvesse um ministrio durante o ano todo.Seu Deus volvel, e ele nem sempre compreende as trajetrias das vidas aoseu redor. Procura apenas evidncias de justia. Procura razes pelas quais temsido to punido.

    No vero de 1783, aps um ano de dissipao, sua filha Helen voltou paraele. Havia sido seduzida por John, um reles soldado, casou-se sem a bno do

    pai, abandonou a herana para partir com o soldado num navio de bandeiranegra, e voltara para casa com uma criana no ventre. Asa esperou que o punho

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    de Deus desabasse sobre o marido da filha. Enquanto John construa prateleirasnovas na loja da qual comprara uma parte, Asa esperava que o marteloescorregasse e golpeasse a mo dele, que a tbua rachasse sua cabea. Duranteas borrascas de agosto, quando John e Helen ficavam de p junto gua, braosentrelaados, um corpo aquecendo o outro, Asa esperava que os vagalhestragassem John, deixando sua filha sozinha na praia. Ele a queria de volta,

    intocada. Espreitou enquanto ambos consertavam a casa deixada pelo primo deJohn, pintando-a de branco, enchendo-a de quinquilharias e sobras do mar,arando o pedregulho do lado de fora para plantar batata e milho. Jamais os viutristes ou ensimesmados. A alegria deles era a marca do diabo.

    Quando a hora dela chegou em outubro, uma tempestade veio de repente dosudeste e atiou as ondas. Asa quis levar a filha para dar luz no interior, longeda costa, a fim de proteg-la em meio s rvores, mas Helen aferrou-se casaque ela e John tinham adornado. Se o seu filho ia conhecer o mundo, ela queria

    que conhecesse tudo, tanto a ventania quanto a brisa. Apesar dos pedidos deHelen, Asa recusou-se a orar por ela. Ele havia rezado pela esposa durante umatem pestade parecida, durante a mesma passagem mortal, e a vida dela tinha sidoarrebatada. Ele no era capaz de rezar de novo, no da mesma maneira. Masquando Helen entrou em trabalho de parto, ele foi at ela, e esperou com ela, oque no havia feito pela prpria esposa, e a cena toda era um espelho, como seDeus estivesse lhe mostrando o que ele deixara escapar da primeira vez.

    Ele e John carregaram gua para a parteira, rasgaram panos de linho,carregaram mais gua. No disseram uma palavra sequer, e quando John lhe

    estendeu a mo, Asa rechaou o gesto. Homem nenhum deveria testemunhar oparto, mas Asa insistiu; no permitiria de novo que mulheres assumissem ocontrole nesse momento. Os dois ficaram no canto do quarto de braos cruzados,olhos fitos no cho. Espiando por sobre o ombro da parteira, cujas mos estavamatarefadas com pano e gua e toque, Helen implorou ao pai que lhe dissesse seaquilo era o que normalmente acontecia, e se a me dela tinha sentido a mesmacoisa. Ela voltou a ser uma menina, e precisava da voz dele. Ele fez que sim coma cabea e disse que estava tudo certo, embora no tivesse visto a esposa em

    trabalho de parto e no soubesse o que era normal, mas sim, no havia motivopara se preocupar, e sem dvida Helen tinha a fora necessria. Mas ela noestava ouvindo.

    Enquanto a tormenta abria caminho fora por entre as ruas de Beaufort,uma criana chegou: vermelha e furiosa e berrando mais alto que os uivos dovento. A parteira aninhou a recm-nascida dentro de um cesto e comprimiu

    panos com vinagre sobre as feridas da me. Postados alm da rstia de luz davela, John e Asa fitaram os fios de cabelo colados s bochechas brancas deHelen, ouvindo sua respirao fraca. Ela comeou a chorar.

    Asa foi embora de manh, depois que o vendaval se dispersou para o norte,

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    e levou consigo o corpo da filha. Disse que voltaria para levar a criana viva.Quando vai igreja, Asa carrega no corao uma lista de pecados, espera

    de perdo.

    O vero amalgama-se com o outono. Mariquitas amarelas e revoadas de tristes-pias chegam aos pntanos salgados, e maaricos voam a esmo ao longo dosalagadios, procurando buracos. Nas florestas em torno de Beaufort, os sumagrestornam-se vermelho-fogo, e as uvas silvestres crescem roxas e carnudas. Emoutubro, as noites finalmente esfriam.

    Tab no consegue dormir na noite que antecede seu aniversrio de dez anos.Alguma coisa que parece um biscoito seco raspa sua garganta. Ento elaajoelha-se junto janela, enrolada no xale da me, e traa contornos nas

    estrelas, desenhando com a ponta dos dedos ces e carruagens na vidraa fosca,o queixo escorado no peitoril. Ela fecha os olhos, imaginando o modelo de navioque talvez aparea embrulhado em papel pardo ao amanhecer. Tem trs mastrose feito de finos painis de madeira trabalhada tingida de marrom-escuro. Aolongo dos conveses h redes penduradas. O velame de linho grosseiro, e um

    pequeno timo gira atrs do mastro da mezena. A estibordo h um pequenoalapo, embutido nas pranchas, que se pode erguer para espiar dentro do porode carga, cuja barriga vazia ela encheria de detritos. Bolotas, plumas, musgo. Elaviu o navio numa loja em New Bern em sua ltima visita com o pai para

    comprar tecido para a loja. Tab fez questo de ficar imvel diante da vitrine atque o pai, passos largos frente, desse pela falta dela e se virasse.

    Navios, ? disse ele, e tocou com delicadeza a gola do vestido dela. Me conte alguma coisa de novo disse ela, e enquanto se afastavam do

    reluzente navio de brinquedo, ele comeou a contar outra histria sobre a medela, e Tab sabia que o pai tinha entendido, que tinha visto o desejo nos olhos delae compreendido.

    Na charrete que os levou de volta para casa, o pai escondeu um enorme

    pacote debaixo do assento e piscou para ela. Tudo que ela tinha de fazer eraesperar que o embrulho chegasse a suas mos.

    s vezes John dorme em seu quarto do outro lado do corredor oblquo, de frentepara Tabitha, mas h noites em que pode sentir na cam a o cheiro do corpo damulher e, ento, leva os cobertores para o andar de baixo. Encontra um espaoentre a moblia na sala de estar mveis que a esposa ganhou dos pais e queeles receberam dos pais dele tambm , sobre tapetes trocados ou roubados de

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    navios que ele saudou na mar cheia, sob pinturas planas de rostos e de crianassegurando ovelhas encolhidas, entre cristaleiras com garrafas de vidro, ouroespanhol, balas de mosquete, uma coroa enferrujada, sinos. Os resqucios de

    butim que agora so tesouro somente para uma criana. H nessa sala umespelho com um dorso de prata descascado, e s vezes nesses espaos Helenaparece, vestida de azul, os cabelos pretos entranados atrs da cabea, cachos

    brotando. Seus olhos verdes de cor profunda. John fala com ela, ou sente medo, omodo como os olhos dela o seguem, e ento leva os cobertores para a sala dalareira, onde h panelas com banha alinhadas ao redor do borralho e prateleirasque expem vveres secos, rolos de tecido, sacos de farinha. onde ele guarda oexcedente da loja. Quando os fregueses pedem semente de mostarda, aqui queele os traz, ou diz que ter de fazer uma encomenda especial e por isso ganhaalguns pence extras. Jamais passaram necessidade, ele e a filha. E ainda assim ofantasma dela se move por entre os cmodos, lembrando-o do que lhes falta.

    Na noite da vspera do aniversrio de dez anos de Tab, John dorme no sofverde e baixo na sala de estar. Est de frente para um retrato da av de suaesposa de quando ainda era moa e que em nada se parecia com Helen, demodo que ele pode imaginar que amou algum completamente diferente.

    Ele acorda no meio da noite, como sempre faz, ouvindo a voz delachamando-o. Sai de casa, atravessa a estradinha de terra, caminha at o brejo,onde fecha os olhos e deixa o vento atingi-lo; em meio aspereza da guasalgada e da sujeira da margem, sente de novo o odor exuberante dela. Jadormeceu aqui antes, mas a filha assustou-se ao no encontr-lo dentro de casa,

    por isso agora ele mais cuidadoso. O luto, adem ais, esvaneceu e deu lugar aondas de melancolia, impresses sem ligao com nenhuma dor especfica a noser a conscincia de uma constante. Ele no sente dor alguma, seno a dor dequem est vivo.

    As rs coaxam no breu, famintas de chuva. Se bandos de pssaros migramperto das estrelas, talvez os espaos entre aqueles pontos de luz no sej amescurido, e sim os corpos dos pssaros; talvez a verdade seja que no hausncia de luz, somente estrelas e pssaros. Quando ele cam inha de volta para a

    casa, v um vulto mido junto janela no andar de cima. A cabea da filhaadormecida, colada ao vidro. Ento h noites em que nenhum dos dois conseguedormir numa cama. isso que ela fez com eles.

    John no teve famlia, por isso cada ato de am or e de desamor o surpreende.Seus pais morreram antes que ele os conhecesse, e John foi criado por parentesque tinham suas prprias famlias para cuidar. Cresceu entre uma e outra famlia,numa fazenda, sem laos com ningum. Quando partiu para o mar pela primeiravez, o primo em segundo grau de sua m e lhe entregou um saco com biscoitos evoltou para os campos antes mesmo que John alcanasse a metade do caminho.Quando John regressou como soldado, ningum o recebeu com um abrao. Ele

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    pergunta a si mesmo se para homens que tiveram pais m ais fcil ser pai.Em outubro, cotovias-do-prado descem s praias e ilhas, e os sabis-da-praia

    iluminam os primeiros dias de outono com canes. A estridncia da manh um sinal de que o aniversrio de Tabitha est prximo, de que o tempo est

    passando. Nesses dias, quando John v a filha zanzar dentro de casa, com bolsosempanturrados e os cabelos escapando dos grampos, ele se d conta de que no

    fez direito. No foi um pai e uma me para ela. Afinal, ela uma mulher seno ainda, em breve ser , e ele deixou que a filha crescesse assexuada eindmita. Devia ter convidado mais amide a sra. Foushee, ou a sra. Randolph, acriada de seu sogro. Elas poderiam mostrar menina como fazer ch.

    Algumas semanas antes, ele e a filha viajaram na charrete para New Berne, enquanto Tab espiava as vitrines e jogava pedras no palcio do governador, elecomprava suprimentos para a loja. Tecido, sabo, remdios. Esfregando afazenda entre os dedos, escolheu tecidos simples para seus fregueses de Beaufort,

    riscado e talagara, serguilha, um damasco pesado. Mas havia uma seda quereluzia. Azul, com padres em rosa e verde, e cujo lustro era como o da pele desua esposa. Comprou uma metragem para uma menina de dez anos, mandouembrulhar em papel pardo, e no dia seguinte viajaram de volta. Ela tinha visto osorriso orgulhoso dele. Ser pai no tinha fim. No havia fase em que no se

    pudesse melhorar. Passaram por pntanos, pradarias e outeiros cobertos de mato,e enquanto guiava seus cavalos pelas estradinhas enlameadas, John olhou desoslaio e viu a filha encolher-se e pegar no sono, o rosto contra a lateral dacharrete.

    Ele retorna a casa, lama nas solas dos ps descalos, e enquanto o sol passade roxo a cinza, coloca no fogo uma panela de canjica salgada, condimentando-acom banha velha e pimenta.

    Ela dorme encostada no peitoril, sua respirao enevoando a janela em ritmoconstante. O brilho da lua no cu comea a minguar. A cabea dela repousa

    sobre um brao estendido, pressionado contra o vidro gelado. Seus joelhos estodobrados, e uma das mos enrodilha-se, parecendo segurar um copo vazio. Elaest sonhando com gua; sempre sonhando com gua.

    L embaixo John mexe a canjica. Despeja dentro da panela de ferro umacolherada de banha e observa a gordura mover-se devagar em meio aos grosde milho. Quando Tab era mais nova, o pai da esposa dele em prestava-lhes a sra.Randolph, que cozia comida de verdade na cozinha perto do poo. Mas comotoda mulher-feita, ela o fazia lembrar-se de Helen. Agora os anexos da casa soo lar das galinhas soltas que Tab no deixa que ele mate, por isso John compragalinhas mortas no mercado. s vezes ela cozinha, s vezes ele. John de ccoras,

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    as mos segurando a concha, e encara o fogo. As chamas se movem feito umamulher.

    O aroma almiscarado da gordura sobe as escadas, e Tab desperta. Seu rostose contrai num princpio de choro. Seu corpo di por dormir encostada parede,embora s vezes essa dor seja melhor do que acordar numa cama macia. Seu

    bafej o cobriu com uma camada de gelo a parte mais baixa da janela. Ao sul no

    h amarelos clidos, somente um cinza-fosco que clareia quando ela vira acabea para um lado e depois para o outro. Quando uma gara-branca-pequenase sacode em voo lento alm do pntano longnquo, branco-plido contra cinza-

    plido, ela se lembra de que seu aniversrio.

    Tabitha desce as escadas descala, sentindo a cabea cheia de pedras pontudas.

    Ela segue o perfume do caf da manh. John est ajoelhado ao p da lareira,segurando a concha. Ela se encosta no batente da porta e fecha os olhos. Johnvira-se ao ouvir os diminutos rudos dela, e sorri.

    Vejam s esta desconhecida, uma m enina de dez anos. O que ela desej a? Canj ica, por favor diz ela e pudim. Tab senta-se numa cadeira e

    pousa a cabea sobre a mesa, que recende a sal e banha velha. Voc podia ter ficado na cama diz John. No estou me sentindo muito bem diz Tab.John enche de mingau duas tigelas de prata que exibem os arabescos do

    braso da famlia da esposa, e apalpa a testa e as bochechas da menina parasentir-lhe a temperatura.

    de dormir ao lado da janela, creio eu. Oferece a ela uma colher. A quentura vai ajudar.

    Ela come enquanto ele esboa uma imagem do dia. Prope uma cam inhadaao longo da praia. Quando ela pergunta sobre a sra. Foushee, John diz que hoje odia deles dois. Nem mesmo Asa pode se intrometer. Inclusive d a entenderque h um presente. Ela sorri ao pensar no navio de madeira com o alapo no

    convs. Eles se amam ainda mais por serem apenas os dois. A me umfantasma em quem ela pensa com carinho, como algum anjo do Milton que o pail em voz alta, mas ela no consegue imagin-la nessa casa, braos e pernasmovimentando-se nesse ar salgado. Assim como no gostaria que Deus vivesseem seu quarto, melhor tambm que a me se mantenha incorprea.

    A boca de Tab fica seca e uma bolha se aloja na garganta. Ela engole emseco diversas vezes, depois arrota. Olha para o pai, como que buscando umaresposta. Um mar avoluma-se dentro dela. Rapidam ente ela se levanta e vai parao canto, onde grnulos quentes e gua azeda do estmago jorram de sua boca.Um fio ferruginoso atravessa a poa no cho.

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    John a leva de volta para a cadeira. Molha um pano na bacia de gua e oestica na testa dela, depois pega outro para limpar o vmito e o sangue. Comeaa entoar uma cantiga de trabalho. Quando a respirao dela se aquieta, ele acarrega escada acima para a cama. Ela abre os olhos quando ele a deita sobre olenol.

    Vamos mandar buscar o doutor Yarborough diz ele, e fica l parado,

    braos pendurados, at ela adormecer de novo.

    Quando ela acorda ao cair da tarde, h quatro homens inquietos em seu quarto.Um escorado na cabeceira da cama, outro segurando de leve o seu pulso, dois de

    p num canto, grisalhos, murmurando. As costas dela se com primem de dor,como se algo estivesse crescendo l. H estilhaos em sua cabea. Ela no

    consegue desvencilhar o pulso da mo que o segura. O quarto parece aquoso. Ohomem de culos sentado solta a mo dela e esfrega com o dedo a lateral doprprio nariz. Olha para o hom em aos ps dela, que, quando se move, assume aforma do pai. Um deles diz: Agora s nos resta esperar, e os outros trshomens assentem.

    John acompanha o doutor at a porta, e Asa se aproxima com o membro doconselho paroquial. Ele no fala com clareza, mas ela acha que o homem a estabenoando. Embora tenha dez anos de idade, ela se sente muito jovem, e sbia o suficiente para saber que a morte s chega para as mes, e isso ela tem

    planos de nunca ser. Quando Tab pisca, o homem est ensopado, como se o av otivesse resgatado do mar, e h gramas do pntano grudadas em seu crniocareca. Os olhos do homem so as rbitas vazadas de um peixe-manteiga. Os

    pulsos terminam em lulas. Quando ela abre de novo os olhos, o quarto est sescuras e vazio. Seu travesseiro est mido, e seus joelhos doem. Ela encolhe as

    pernas contra o peito para depois estic-las e, nessa bola de dor, faz o corpo rolarpara o cho. Sabe que o baque vai acordar o pai, mas daqui ela pode ver a lua,puxando e em purrando o oceano, am assando-o ao longo da costa. Ela ouve suas

    vozes e acalma-se na friagem das tbuas do assoalho.Quando John aparece no vo da porta, ela pede para ele deix-la onde est.

    Quando o sol nasce, esto ambos no cho do quarto. Tab est sonhando com oque existe debaixo dgua. Ela acorda e se lembra de toda a dor, que trespassasuas costas e joelhos e provoca tremores em seus msculos e uma arruaa emsua barriga. Arrasta-se escada abaixo e vai para os restos do jardim de sua mee vomita sangue mais uma vez.

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    Asa a encontra l, em volta de uma rosa centiflia.Na cam a de novo, enrolada em colchas pesadas dem ais para delas

    escapulir, Tabitha escuta os homens l embaixo. Tem a sensao de que estdesmaiando, embora saiba que, se estivesse, no saberia distinguir. Nosinterstcios entre saber e no saber, ela v a me sentada na beira da cama, uma

    perna balanando sob o colcho. Tab sabe que uma das duas deve ter dez anos.

    Ambas tm cachos pretos entranados e afastados dos rostos plidos. Os olhos dame so verdes, e Tab acha que os seus so castanhos. O vestido da me

    branco e fino. Ela estende a mo para toc-lo, mas seus dedos curvam-se sob opeso das colchas. A me no est sorrindo; se isso fosse um sonho, a me estariasorrindo, ento deve ser real. Quando move os olhos, sua cabea tem umespasmo, por isso ela os fecha e saboreia a sensao do peso da me ao seu ladona cama.

    Em Long Ridge ela receber melhores cuidados diz Asa. Ele nomeou essaplantation de terebinto depois que sua mulher morreu ao dar luz e um roceirolhe disse que uma terra sem nome chamariz do demnio. Fica a quase doisquilmetros a oeste da cidade, uma casa branca plantada entre hectares de

    pinheiros ao norte e uma clareira relvada que desce em declive at a gua, aosul. Uma casa branca no meio do nada.

    Ela fica. John no est olhando para Asa, mas para os juncos

    oscilantes na orla inferior da cidade. Eles se agitam de um lado para o outro enada dizem acerca da direo do vento.

    No sof, Asa cruza uma das pernas e deixa a mo cair sobre a mesinhalateral, que guarda resqucios da vida de sua filha. Uma alfineteira, uma presilhade cabelo, uma pequena miniatura sobre marfim que ele chegou a julgar quetinha sido pintada para ele, antes de saber que a filha havia se apaixonado. Com o

    polegar, aperta a cabea dos alfinetes na almofadinha. Fao isso pela criana, voc entende. No tenho inteno nenhum a de

    puni-lo.John se vira da janela e apura os ouvidos, atento a qualquer rudo no andar

    de cima. No foi o mar que m atou Helen. No diz Asa , mas foi voc, o que d no mesmo. No instante em

    que diz isso ele sabe que no verdade, mas boa a sensao de infligir dor, etambm no de todo uma inverdade.

    Ento despreze Tab tambm . John vai at a mesinha e pousa o dedosobre a alfineteira, para que Asa recolha a mo de volta ao seu colo. O senhor bem-vindo, mas minha filha vai ficar comigo. O doutor Yarborough est

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    cuidando dela, e se houver algum perigo, ser o mesmo tanto l como aqui.Asa pe-se de p.

    E quanto alma da sua filha? Vai perm itir que ela v para o outro m undosem um pastor presente? Quase diz: Voc no vai orar por ela? Ao culparJohn, ele est culpando a si mesmo.

    John se detm na escada, de costas para Asa.

    Tab no vai a lugar algum. E se por meio das almas que elas continuamvivendo, ento eu sou o guardio das almas delas.

    A sra. Foushee chega com um bolo de limo, mas no pede para ver a menina.John a conduz sala de estar, onde ela se senta e polidamente o aguarda selevantar de novo para buscar uma faca e dois pratos. Ela corta fatias grossas.

    O senhor sabe o quanto gosto de sua famlia diz ela. Antes de se casar,a sra. Foushee ensinara a Helen as primeiras letras. Embora a professora tenhadeixado sua marca na maior parte dos jovens de Beaufort, ela e Helen haviamsido ntimas. Ela intercedera a favor de John quando dos primeiros galanteios.Porm, como outras amigas de Helen, depois de sua morte ela se afastou. Est

    pensando nisso agora, enquanto passeia os olhos pela sala bagunada. Tenteificar de olho em Tabitha, mas ela do tipo independente, no? No minhainteno negligenci-la, tampouco ao senhor, certam ente. Tenho certeza de que osenhor vai me informar caso eu possa ser til de alguma maneira. Se a menina

    precisar de alguma orientao feminina. Ela terminou sua fatia e pousou osolhos no restante do bolo de limo sobre a mesinha lateral.

    John pergunta se ela quer m ais um pedao. No posso, no seria adm issvel. realmente para Tabitha, Deus a

    abenoe. O senhor sabe que meninas dessa idade esto sempre ficando doentes.Faz parte do processo de crescimento. Logo ela vai encorpar e virar uma m oa etanto, o senhor ver. Como se estivesse removendo migalhas, a sra. Fousheealisa suas amplas ancas, demonstrando qual a aparncia exata de uma mulher.

    A me dela era assim tambm . Pequenas queixas. Apesar de ter ummarido em casa, ela nutre pelos rapazes da cidade um afeto que no de todomaternal. Sente falta dos homens que durante a guerra ficaram aquartelados emBeaufort William Dennis, Daniel Foot, coronel Easton. E que depois foramfazer a vida em lugares mais prsperos. De todos os soldados, John o nico que

    permaneceu. A perda sabe como paralisar at mesmo os valentes. Ela estende amo e afaga o joelho dele. Ela vai sair dessa, o senhor no se preocupe.

    Quando a mulher vai embora, John fica grato pela quietude. Nos primeiros

    anos aps a morte de Helen, ele achou que poderia se sentir solitrio, mas Tab tudo que ele quer como companhia. Sobe as escadas levando uma fatia de bolo,

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    mas a filha est dormindo, a boca aberta.

    Yarborough retorna tarde e apalpa com suas mos frias o corpo da m enina. Elaadormeceu de novo, embora no haja sossego nela. John senta-se num canto,

    numa cadeira com assento de junco, e observa o rosto do mdico. Yarboroughabre a boca de Tab, inspeciona a lngua. Levanta suas plpebras, que ainda estoimveis e flcidas. Esfrega os dedos na plida parte interna dos braos, procurade sangue. Ele a examina como uma criana que belisca o jantar, mesmosabendo o que est servido.

    Quando o mdico se vira, John est balanando a cabea. Febre amarela diz Yarborough. Talvez ela melhore. O mais

    provvel, de fato, que ela melhore . Mas o perigo est na recada. Repouso

    absoluto, lquidos, sossego. Nada a ser feito? pergunta John. Rezar responde o mdico. O pastor de New Bern retoma a sua rota

    amanh. Melhor convid-lo para dar uma passada aqui e dizer umas palavras.John fica sozinho no quarto da filha. Ele se lembra de ter a idade dela, de

    amar a Deus e ser devoto. De acreditar numa bondade sem fim, e na ira para osindignos. Mesmo a bordo do navio, com seu canho apontado para outratripulao, seus pecados poderiam ser purificados. Mas, quando do nascimentode sua menina, ele havia se esquecido de invocar o Senhor. Tinha olhos somente

    para a esposa, o ventre dela, a filha. E sem as oraes dele, ela tinha sido levada.Foi a que ele comeou a conhecer Deus como uma criana vingativa que, seignorada, rouba seu brinquedo favorito. Por isso ele nada ofereceu a Deus.Incapaz de culpar a filha, John compreendeu que Ele era o nico a ser punido.

    John tinha deixado Asa enterrar Helen no adro da igreja, mas as asas depedra acima do nome dela pareciam-lhe uma marca da vitria de Deus.

    enhum parente dele encontraria repouso l. Ele s era feliz, Helen s erasaudvel, firme e forte, no mar aberto. Era a terra que matava, no o mar.

    Quando Tabitha acorda, John no consegue se aproximar, por medo. Quer comer alguma coisa? Canja? Ela mexe a cabea tentando dizer

    no. Yarborough diz que amanh voc j vai estar subindo em rvores. Elese levanta e volta a se sentar, a cabea nas mos, os dedos cravados nas razesdos cabelos. Olha para os veios no cho da casa que ele no construiu mas ocupa.

    Tab v apenas uma silhueta movendo-se aflita. Quer velejar um pouco? ele pergunta.Agora ela se lembra do navio de brinquedo embrulhado em papel pardo, e

    nesse pensam ento h clareza, um pequeno foco no nevoeiro.

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    a segunda noite em que Tab est adoentada, John deixa a filha por uma horasob os cuidados do dr. Yarborough e caminha para o leste, longe da cidade erumo plantation de Cogdell, contgua a Long Ridge, e d a volta at ashabitaes dos escravos, atrs dos arrozais. Sabe qual o barraco dela. Umhomem atende a sua batida, e manda chamarem Moll. A mulher que vem at a

    porta ainda jovem e forte, tem os cabelos amarrados num pano vermelho e o

    rosto sem cicatrizes. Um beb se move junto ao seu peito, abre e fecha as mos,agarrando dobras de tecido, procurando leite.

    Qual o problem a? pergunta Moll. No importa que h anos ele nofala com ela, ainda que outrora ela o tenha considerado quase um irmo.

    Sinto vergonha de vir aqui desse jeito diz ele. Faz dez anos que Helen,sua esposa, m orreu, e essa mulher segurando o beb tinha sido propriedade dela,sua criada, sua confidente, sua amiga. Contudo, agora que ele est aqui de p,no sabe se Moll teria se esforado para essa amizade. Minha filha est

    doente. O que ela tem? Eles no sabem . Talvez febre am arela.Um menino emaranha-se no quadril de Moll para ver o visitante, mas ela o

    empurra barraco adentro. No entendo muito de ervas ela alega. E ningum aqui pode fazer

    muita coisa com a febre.Ele assente.Ela v que ele deseja mais alguma coisa. Est com pena dele. Sente falta de

    Helen, mas no deve coisa alguma nem a John nem filha dele. Depois damorte de Helen, seus caminhos se separaram; Moll tinha a batalha de sua prpriavida para travar. Trabalhava nos campos, no era um anjo da guarda. As

    preocupaes dele no eram maiores que as dela. O beb comea a chorar: umalonga e penetrante slaba que se dissolve em soluos.

    A gente no pode fazer nada com a febre amarela ela repete. Peaa a lgum outro curandeiro.

    Eu no sabia diz ele, apontando para o beb. Meus parabns.

    Ela espera que ele enrubesa, que v embora, que pea licena e se retire,mas ele no se move. John tambm est esperando alguma coisa. Se solidariedade, bateu no barraco errado.

    E o menino? Davy diz ela. Posso v-lo?Com a mo livre ela coa a cabea coberta, depois chama o filho. O menino

    corre de novo at a porta, quase saltitando. John fica exausto de ver tanta energiafrentica. Ele meneia a cabea uma vez. O menino repete o gesto, trs vezes.

    Moll, segurando o beb com uma mo frouxa, pousa a outra sobre a cabea

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    de Davy, percorre o couro cabeludo dele, apertando-o, como se tateasse embusca de pontos fracos. O m enino chacoalha a cabea para se desvencilhar, masMoll leva a mo at o pescoo dele para mant-lo no lugar.

    John seria capaz de ficar a li durante dias a fio vendo a me amar o filho. Onde voc arranjou seu casaco? quer saber o menino, apontando um

    dedo na direo do peito de John.

    John olha para baixo e diz que foi feito por um alfaiate em New Bern. Qual o nome dele? Caso um dia eu queira um.John espera para ver se ele est caoando, mas os olhos da criana esto

    felizes e srios, por isso John lhe diz o nome.De dentro do barraco o marido de Moll chama por ela, que pode ouvir as

    vozes das filhas aumentando de volume at descambar em briga. Ela embala obeb para acalm-lo, a mo ainda envolvendo os ombros de Davy.

    Sinto muito no poder ajudar diz ela. Deveria dizer que vai rezar pela

    menina, mas no diz.Ele esfrega o rosto e vai embora.

    De manh Tab no consegue parar em p. A tontura converte seu corpo empontos vibrteis. John enrola a menina na colcha, ergue o fardo m ido e carrega-o escada abaixo para descansar no sof enquanto enfia farinha e batatas numembornal e junta algumas moringas de gua. Para salv-la do cemitrio, deve

    lev-la para o mar. Outrora ele levou a me dela, e estar na gua a fez florescer.Tab vai melhorar longe do alcance da religio de Asa. Ele olha para o embrulhode papel em cima das prateleiras na sala da lareira e se pergunta se daquela sedato delicada seria possvel fazer um vestido a bordo de um navio desregrado,com viles como costureiras. No, a seda ficar aqui para quando elesretornarem. A filha voltar saudvel e uma mulher.

    Nessa manh a viso de Tab est lmpida, e em bora o corpo rejeite suaorientao, ela est suficientemente bem para empolgar-se com o que o dia lhe

    reserva. Est trilhando o caminho da me. domingo e os navios esto atracados. Navios mercantes e navios-baleeiros

    e navios fantasmas cujas tripulaes conhecem o pai dela. Quando a sra.Foushee l histrias sobre eles, ela os chama de bucaneiros. Homens perversosque atraem embarcaes para saque-las, que amarram mulheres aos mastros eas obrigam a berrar para assim chamar a ateno das marinhas de guerra. Johnconta muito pouco desses tempos, por isso as cenas na cabea de Tab so fruto desua imaginao. Ela tem dez anos, idade em que os malvados so os heris. Ela passou da fase dos contos infantis moralizantes.

    No meio da noite, quando ela tinha gritado de dor, John disse que eles iriam

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    para o mar com uma tripulao sombria. Ela seria a rainha do navio, e com seucetro os guiaria at as ndias. Acar, ouro, periquitos, praias sem lodo nemmato. Ele falou do azul e do amarelo das ilhas e do sol que ensopava os ossos e demulheres indmitas que preparavam poes para seus amantes. Tab disse que elano tinha am ante, e John pediu que ela ficasse imvel e em silncio.

    Agora ela o v fuando pela casa, fechando janelas e pegando tralhas, e

    gostaria de ser mais bonita para causar boa impresso como a dama de umnavio. Sente que seu rosto ficou diferente, pois o pai no olha diretamente paraela.

    Assim que est pronto, John amarra o embornal s costas e ergue a menina,ainda enrolada na colcha, e com o p fecha a porta de sua casa. Deixou um

    bilhete para Asa, outro para seu scio na loja. Helen o teria instrudo a parar,diria que ele ainda no pensou numa centena de coisas; e uma escova para oscabelos de Tab? Se ele parasse, no seria capaz de voltar a se mover. Ele sempre

    foi guiado por um instinto soterrado, que lhe trouxe a esposa e lhe trouxe a filha,por isso John confia nele agora e no volta para pegar uma escova de cabelospara Tab.

    Ele a carrega, fazendo paradas ao longo da estrada para ajeitar o peso, at oporto, onde os nicos homens so estrangeiros de olhos cansados; os santos dacidade esto fazendo seus preparativos para a igreja. Ele deita delicadamente amenina no cho, encostada a um poste de amarrar cavalos, e vai procurar seuvelho companheiro Tom, que aporta ali de tempos em tempos. Perguntando porele em meio a tripulaes esfarrapadas, encara feies e olhares vazios. Dirige-

    se a um navio de guerra que ainda est embarcando provises, e o capito atque bastante corts, mas no viu o amigo de John.

    Precisa de braos extras?O capito faz que no com a cabea.

    Naveguei por dois anos antes da guerra, depois prestei bom servio aoExrcito. Posso mostrar as cartas diz ele, mas no possui carta alguma.

    Sinto muito o capito diz.Numa escuna menor, pedem para ver suas credenciais, ento ele se apruma

    e com um olhar enfurecido diz que trabalhou em navios duas vezes maiores epela metade da paga, e eles o enxotam .

    Ele deveria voltar para a filha, que talvez estivesse com frio, mas noconsegue se afastar das docas. No capaz de enxergar outros caminhos. Ummarujo passa por ele com uma pilha de redes e uma barba familiar, e John

    pergunta mais uma vez por seu amigo, que lhe daria passagem em qualquerbarco.

    O marinheiro estaca e ajeita o fardo. O Tom foi enforcado. Foi pego por alguma coisa. Roubar raes, talvez.

    Como John no responde, o marujo segue adiante, arrastando uma corda atrs

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    de si.John encara com olhos semicerrados o horizonte ao sul e o nvel do mar.

    Tom Waldron? Ele cuidava do mastro para m im.John se vira e v um jovem cavalheiro com um fino nariz aristocrtico

    fumando um cachimbo, a m o livre brincando com os babados de sua gola. Hezekiah Frith diz ele, inclinando a cabea. Procurando passagem?

    Voc no ia querer me levar. Tenho uma filha, doente. E para onde vo? Longe daqui, s isso. As ndias.Frith d um piparote no cachimbo, depois endireita as mangas do casaco.

    Estou precisando de um homem. Em que navios voc esteve? OMohawk, o Victory , o Tryon. Mas uma mulher No tenho supersties a esse respeito. Gosto delas como disfarce. E a febre.

    Tem os um mdico a bordo. Mantenha-a separada e bem arejada. Fritholha de relance para a estrada e avista o flcido pacote feito de retalhos. Menininhas diz ele. Estamos indo para Bermuda, pegando o que quisermosao longo do caminho. Voc assume o posto de Tom, sem pagamento. E nada deroubar. Nosso negcio pequeno, com poucos danos. Deixamos vocs na ilha, ese voc voltar para o mar, ofereo paga. Aceita esse acordo?

    John v sua vida morta recobrar o alento. Lembra-se de embarcar comoutra m ulher num navio, de carregar Helen no adoentada, mas uma noiva

    para o convs, o sorriso dela refletido no sol, o mar que no era vasto o bastantepara espelhar o afeto de am bos. Aqui est ele de novo, sfrego, porque egostaacerca da filha. No pode perder outra parte de sua famlia. Mas Tab tambm

    parece ansiar por isso. Em sua paternidade, e le a est protegendo da morte e deDeus e do sofrimento, e por isso faz o que todo homem faria. Aperta a mo deFrith e leva a filha a bordo do Fanny e Betsy, uma corveta de trs mastros ecasco de cedro. Do convs, eles ouvem os dobres dos sinos de Beaufort.

    Dentro da pequena igreja, Asa est sentado no ltimo banco. Assim que terminaro culto, vai agarrar o dr. Halling e lev-lo at a casa branca na praia para falarsobre sua neta. John perdeu a f, mas Tab ainda uma planta verde emcrescimento, aspirante ao Senhor. Ele no conseguiu salvar a filha, mas vai salvaressa pequena relquia dela. Ainda h tempo de se redimir. Ele abaixa a cabeaenquanto o pastor visitante faz seu sermo. Deveria mudar-se para uma cidadegrande, onde poderia ouvir semanalmente o evangelho. Deus est sempre

    ouvindo, mas Asa no pode escutar sua voz o suficiente.Os fiis levantam-se para o hino. Logo Tab estar de novo ao lado dele, seu

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    pequeno hinrio nas mos, a voz dela ressoando sua jovem f. Eles entoamversos sobre o paraso e suas delcias, sobre o estreito mar que separa os vivos eos mortos. As mos de Asa comeam a tremer. Ele respira fundo e ouve o peitosoltar sua expirao. As vozes se erguem.

    Mais dobres dos sinos liberam a congregao para um clido meio-dia deoutubro. Dos degraus da igreja, pode-se ver o porto l embaixo, onde um nico

    navio est prestes a zarpar para o mar aberto.

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    O balano ajuda Tabitha a adormecer, seu corpo dolorido envolto numa redefeita de corda e lona numa cabine ao lado da do capito, sob o convs de r. Elaouve o murmrio do pai na porta contgua, o suspiro de pranchas acima dela, a

    bulha de gaivotas atravs da janelinha aberta no alto da parede da cabine.Pressiona a orelha contra a lona da rede. Atravs do tecido, consegue ouvir ossinos.

    Frith escala John para um dos turnos de vigia, apenas duas horas. Nesse meio-tem po, o marujo vai limpar o convs com seus confrades. John pergunta qual arota, e o capito desenrola um mapa sobre a mesa. John posta-se de lado e noolha para o mapa, mas para o rosto de Frith. Ele cutuca a pele abaixo dos olhos,crava os polegares na carne a trs das orelhas. Balana. John no capaz de dizerse o capito ainda tem conscincia de sua presena. Parece que os olhos dele noesto se movendo de um lado a outro do papel, mas sim fixos nas profundezas dooceano pintado.

    Vamos direto para a ilha? pergunta John, numa voz alta demais.Frith pousa uma das mos abertas sobre o mapa, cobrindo as rotas, e encaraJohn com um olhar penetrante.

    Quantos anos tem a m enina? Dez responde John. Ainda no tem idade para atrair seus homens.

    Diga isso a eles. Ele j esteve a bordo de navios em que qualquer coisa desaias era uma tentao. No mar as semanas passam e a moral definha. Mascertamente homem nenhum se exporia ao perigo da febre.

    Frith concorda com a cabea. Eu tenho uma de cinco anos, Fanny. O navio est indo atrs dela, ento? No o que eu tenho em mente. Frith rasga a borda do mapa. O

    plano o rum. Vamos primeiro para o sul. O poro de carga ainda est vaziodemais para irmos para casa.

    Quando John volta cabine, Tab est sentada na rede feito um caranguejopreso em uma arm adilha, as pernas arqueadas na altura dos joelhos. Ela estarfando, tentando vomitar.

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    o convs, John est curvado atrs de um esfrego, trabalhando na imundcieque cresceu desde a manh. O porto de Beaufort se dissolveu feito um reflexo ese foi, tendo o horizonte engolido seu lar. Eles singraram atravs dos baixios, eagora a gua esverdeada tornou-se escura e cinzenta, uma fundura invisvel. Oshomens a bordo so desconhecidos. Quando mais jovem, John tinha sido oousado moo do convs, o que lanava e recolhia cabos e amarras, o que se

    inclinava sobre a amurada para sentir as raj adas de gua. Mas depois de dez anosem terra firme, suas mos adquiriram a consistncia do papel, de tanto lidar commoedas e tecidos. Elas se esfolam em volta do cabo de madeira do esfrego.

    Ele raptou a filha e levou-a consigo a bordo de um navio negro, longe deDeus e da medicina, sem outra esperana a no ser uma ilha distante, cujoalcance provavelmente vai exigir a morte de homens tarimbados. Embora aguerra tenha acabado, esses homens ainda continuam lutando. No h motivos

    para trazer uma criana a bordo de uma corveta, exceto egosmo e uma reao

    tresloucada perda. Se John teve uma viso da filha como a me, absorvendo omar aberto, a culpa apenas de sua prpria cegueira obstinada. Tab umamenina; est doente. John no pode recriar o que j aconteceu. Consegueimaginar Helen como uma jovem encorajando a aventura dessa menina, rindodo subterfgio dele, mas, e como me? John jamais a conheceu como me.Talvez ela tivesse assumido o protecionismo feroz que John agora est violando.Ele traiu a mulher que e la teria se tornado.

    Ele torce o esfrego num canto do navio. Vai desembarcar em Charleston,depois que o ar marinho tiver feito o seu trabalho, em seguida viajaro de volta

    para casa, devagar, por etapas, e quando ficar mais velha, Tab se lembrar dissocomo algo perdido e precioso, o corao sonhador de uma infncia feliz. Quandolhe perguntarem como foi tornar-se uma mulher sem me, ela dir: Mas eutinha meu pai, e pensar em quepes de marinheiros e nas estradas pantanosascorrendo em meio aos arrozais, as garas dando passos delicados. Um lentocrculo de sua casa para a gua e de volta atravs das Carolinas.

    Por isso ele embarcou noFanny e Betsy, por ela, para arranc-la fora deuma morte bblica, um passamento autorizado nos braos famintos de Deus, ou

    foi seu anseio de privar-se da terra firme que o arrebatara como uma mar? Elese lembra de Asa, aps o nascimento de Tabitha, arrastando para longe o corpoda esposa.

    O discurso dos pssaros esmorece enquanto a j anela vai escurecendo, e tudo queTab consegue ouvir o insistente impacto aquoso das ondas sobre o cedro. Depois

    de um cochilo, ela acordou na penumbra, e por isso no sabe dizer que soleira dodia est atravessando. O odor de suor e carne salgada um lembrete de que ela

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    no est em sua casa, nem na casa de quem quer que seja, mas numaembarcao de pilhagem. Se seus joelhos no doessem tanto, o pensamento afaria sorrir.

    Um homem espreme-se pela porta e, incapaz de se erguer ou de virar ocorpo na rede, Tab supe que o seu pai.

    Mdico do navio, senhorita e uma mo morena e peluda se estica e

    tateia a rede buscando o seu pulso. Ela cola os braos junto ao corpo. Calminha agora diz ele, e com um puxo violento agarra o seu brao. Mantmos dedos sobre o pulso da menina, e luz da vela que ele segura na outra mo,Tab v um grande rosto redondo e hirsuto, repleto de pelos eriados, dasobrancelha orelha, do nariz ao queixo.

    Barba Negra sussurra Tab. A sra. Foushee havia lhe mostrado umretrato do homem.

    Febre amarela, m e disseram . isso que est afligindo a senhorita? Ele

    apoia um cotovelo na lateral da rede, que pende e quase a derruba. Agoradeixe-me dizer o que eu sei sobre a febre. Ela vem quente e fria, no , e encheos braos da pessoa de urticria de cima a baixo. noite, os vapores deixam ocorpo e vo embora danar com o diabo, eu vi isso com meus prprios olhos, vimesmo, e de m anh eles voltam para se instalar de novo, exaustos, e quando asurticrias ficam azuis. Nas damas os ps comeam a sapatear, e isso tambm obra do diabo. Olha para ela com ternura, para os olhos dela, que ainda estoarregalados. Os ps da senhorita esto sapateando?

    Ela faz que no com a cabea.

    Ora, a cura, a senhorita me pergunta. Muita gente vai dizer que aplicaruma sangria, e isso talvez funcione, mas eu daria primeiro um caldo paraacalmar os pulmes, e um pouco de pasta de mostarda para diminuir asurticrias.

    Tab sussurra de novo. O que foi, minha senhorita? Eu no tenho urticria nenhuma. Ah, isso s com o tempo. A senhorita no se preocupe. Descanse, vou

    mandar o seu papai trazer o caldo. Ele ergue o corpo apoiado sobre a rede, eela comea a balanar de novo. nimo, minha senhorita. Curei metade doshomens que no matei.

    Quando John retorna cabine, as mos cobertas de bolhas e as costas latejandode dor, Tab est no escuro, desperta e em silncio. Sob a rede dela h uma

    pequena poa de vmito. Ele leva uma das mos testa da menina e fecha osolhos.

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    Isso no estar m orrendo, ? pergunta ela.Ele se afasta, acende uma vela, encontra um trapo velho em meio s pilhas

    de bugigangas da cabine e limpa os vestgios da doena. No h sol que voc no vai ver. Que tal isso como promessa?Ele busca o caldo na mesa do rancho, com uma colher o recolhe de uma

    tigela de estanho e o leva boca da filha, cuja cor de um rosa plido.

    O que a gente vai ver nas ilhas? pergunta ela.John enceta mais uma vez a sua lista de maravilhas: elefantes, ele promete,

    e canela. As paisagens que ela no viu so as que a animam.A cabine abafada e quente, iluminada por uma vela bruxuleante em cima

    de uma prateleira. Sombras so maiores que objetos. Um cacho de cabelodesgruda-se do rosto suarento de Tab e projeta na parede um monstro marinhoserpentiforme. No silncio mtuo, ambos podem ouvir o tinir dos canecos namesa do rancho, as erupes de humor profano, o infinito marulho do oceano.

    O senhor avisou o vov?John pondera. Tinha deixado a carta ao lado da miniatura de Helen na salade estar, onde Asa a notaria. Em suas visitas o velho sempre procurava a

    pequena pintura, segurando-a nas mos sem pre que podia. Tinha umapossessividade que abarcava a sua casa, suas terras e suas mulheres. E tudo o queno pertencia a ele pertencia a Deus. Asa ficaria feliz de ver sua menina no

    paraso, lugar que ele talvez considere mais seguro que Beaufort, m as John nopossui esse tipo de f. Ele no seria capaz de deixar o corpo da filha com umhomem que no se importa com ele, cuja viso de Deus implica a recuperao

    de Seu rebanho. John acredita na carne. Seu amor no sobrevive transubstanciao alguma.

    Um marinheiro encontrou sua rabeca e est marcando um ritmo simplespara uns poucos danarinos bbados. Logo John deve assumir seu posto na proa,vigiando as estrelas mais uma vez e atentando para os movimentos no breu.Antes de conhecer Helen, nos perodos de pirataria, tinha passado um ano em um

    baleeiro e aprendeu as mais nfimas ondulaes da gua, o pontap revelador dosesguichos das ondas ociosas, um zumbido submerso. Aqui no precisa procurar

    coisa alguma a no ser outros mastros. Pe numa prateleira o caldo inacabado deTab e come sua prpria rao de biscoito seco e lima-da-prsia. Os olhos de Tabfecharam-se de novo e ele mais uma vez pousa os dedos sobre a bochecha dela.Seu rosto adquiriu novamente um revestimento febril. Suas roupas esto midas.O cacho solto ainda est longe da testa, tremulando na brisa leve que se infiltrafurtivamente pela janela da cabine. Ele a beija e a deixa s, sem o que osfervorosos chamariam de esperana.

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    o tombadilho ele encontra Blue Francis, o cirurgio do navio, que perguntasobre sua filha. John agradece por ele t-la exam inado. O mdico sorri e balanaa cabea hirsuta.

    Se as mulheres so a perdio dos marinheiros, ento creio que as jovensso tesouros. As pequenas so as luzes que amenizam a nossa escurido, no verdade?

    Do mastro, John no avista nada. As ondas prximas do navio tm a coramarela de velas ardendo, as mais distantes so prateadas. Ele sabe que hcorpos abaixo dele. Sob o lbio do oceano nadam cardumes de cavalas ecorvinas, abaixo delas, as baleias, mergulhando para encontrar comida, e abaixodestas, todos os indizveis, as serpentes, o kraken, o congro gigante. O que Johnaprendeu da Bblia so os trechos que Asa recitava para ele e os fragmentos quefalam dos marinheiros, a histria do Leviat de J, quefaz ferver o abismo comouma caldeira,/ e transforma o mar em queimador de perfumes./Deixa atrs de si

    uma esteira brilhante/ como se o oceano tivesse cabeleira branca;[2] John v afrigidez do monstro se espalhar por toda a extenso da gua, o desconhecido, o

    perigo universal espreita.Quando era jovem, John achava que a noite acobertaria aqueles que o

    roubariam de sua cama, aqueles que o escolheriam como prmio em meio aopunhado de primos entre os quais ele dormia. noite, as sombras agrupavam -see no deixavam um centmetro a descoberto. Somente quando foi para o mar que John encontrou de novo a luz, em esfregaos concentrados no cu e na gua,

    cobrindo e perfurando a escurido. Ele tinha ensinado Tabitha a ver isso. Ele alevara para os charcos ao anoitecer para que ela pudesse apurar a viso, pudesseassistir ao sol se pr e se reconstituir. Agora ela parece no temer nada.

    Depois de uma exploso de gargalhadas vinda dos beliches dos marinheiros,da popa vem um ruidoso fragor. O contramestre est andando a esmo. Esseshomens parecem estar muito alm do escopo de John. Embora outrora tenha sidoto desordeiro e despreocupado como os imediatos, agora ele se v girando emcrculos em torno de um nico conjunto de imagens filha, Deus, mulher, casa

    , e seu fardo j am ais se atenua.O ar marinho que abre os pulmes o mesmo que esfola a pele at

    descam-la. No existe verso dessa pea em que John tenha desempenhadobem o seu papel. Ele escolheu a via temerria, e as estrelas esmaecidas solembretes do lar para onde todos iro, professe ele f ou no. Se que Helenaguarda em algum lugar, l que ela est esperando a filha.

    Um barulhento tumulto de marujos e baldes e cabos iados desperta Tab. O sol j

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    orra janela adentro sobre as prateleiras e as barricas e sobre o leito vazio deJohn, a um canto. Ela se sente fraca, mas tambm faminta. Seus msculos, quehaviam se retesado, afrouxaram de novo, e ela instigada, emocionalmente,

    pelo desej o de ficar de p. Na tentativa de se desembaraar do firme abrao darede, ela vai ao cho, e tenta se agarrar a ela com mos de pudim. No hvmito aqui da noite anterior. Ela senta sobre as pranchas at sua viso aclarar-

    se, depois se pe de p como um novilho. O balano do navio familiar aos seusps, e ela agarra a corda da rede em busca de apoio. No h espelho na cabine,mas, trocando de mos na corda para manter o equilbrio, ela solta os cabelos,

    puxa-os para trs e os prende na fita amarfanhada. As pernas oscilam. O fim dafebre deixou-a tonta. Desiste de ajeitar a aparncia, mas aqui no h ningum ano ser um bando de marinheiros desgrenhados; se ela quiser juntar-se companhia deles, no um pouco de sujeira que vai impedi-la. Ela abre a portada cabine, desliza devagar por um estreito corredor e passa pelos aposentos do

    capito e sobe trs degraus e sai para a glria da luz do sol e do oceano. Ela uma cativa, a escrava de mal-afamados bucaneiros, o topo do mastro de umnavio de viles. Seus pulmes absorvem o sal e as gotas da liberdade.

    Os conveses esto vivos de homens e movimento, velas estalando e cordassendo puxadas e amarradas, silhuetas escalando mastros, o mar chacoalhando onavio em um plano infinito e sem cho sob um cu arredondado. assim queuma cidade de verdade deveria ser, um formigueiro de atividade descoberto. Elaentra na balbrdia e ziguezagueia lentamente entre os homens s voltas com seusafazeres. Gaivotas deixam um rastro de espuma. Toda onda parece quebrar

    sobre as costas de um peixe. Tab est tonta, mas certa de que agora conseguefazer qualquer coisa com seu corpo. O que havia mantido seu pai por tanto tempolonge desses homens maltrapilhos e perfeitos? Da casa deles em Beaufort, tudoque podiam avistar era areia e pntano e um mar sossegado e silente. Aqui no

    Fanny e Betsy, at mesmo o oceano um distrbio.

    Ela se equilibra encostada no mastro da mezena. Por cima do estalido dasvelas retesadas pelo vento, os homens esto cantando. Ela enlaa os dedos nocordame. Um assobio vindo do cu chama a sua ateno, e ela espia um marujo

    empoleirado num mastro entre as velas mestras e as de joanete, as pernasdependuradas como as de uma criana. Ele acena para Tab, e em seuentusiasmo para responder ela fica na ponta dos ps.

    Um marujo enrolando cordas junto aos ovns de estibordo berra: Johnny, a sua senhorita est zanzando por a!Seu pai vem trotando pela proa, agarra Tab pela cintura e a coloca a um

    metro do mastro, onde, sem a madeira para se agarrar, ela cambaleia. Paraescor-la, o pai lhe agarra o brao.

    O que voc est fazendo de p, Tab? John sente a testa da filha. Eu me sinto cem vezes melhor diz ela, e se pendura no casaco dele.

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    O senhor viu o navio? J esteve em toda parte? Vou lev-la de volta para a cabine e pedir para o doutor exam in-la. Voc

    precisa ficar quietinha John a abraa. O navio estar aqui quando vocficar boa de vez. Eu sou o responsvel por sua sade.

    De volta cabine escura, jogada na rede, Tab deixa Blue Francis apalpar suascostelas e lhe exam inar a parte de trs das orelhas.

    Parece que as urticrias deram uma trgua. Eu nuncative urticria Tab alega. Mocinhas no se preocupam com as urticrias. Essas danadas deixam

    manchas no rosto, no verdade? E depois uma dificuldade agarrar um bompartido, eu no sei disso? Eu m e casei com uma dona que tem essas m anchas, e

    seria difcil imaginar uma moa mais bonita, exceto a senhorita. Uma penadeix-la para trs, faz um bom par de anos que no a vejo, mas imagino que aessa altura ela j ajeitou direitinho as coisas e mantm uma chaleira no fogoesperando o meu regresso. Daqui a um ano, mais ou menos, assim quechegarmos a Barbados de novo.

    Tab peleja para se sentar. Ela negra, doutor? No consigo encontrar mais sintoma nenhum na senhorita, e os

    batimentos do seu coraozinho esto fortes. Nem sequer tive de usar a pasta demostarda, que em todo caso no temos a bordo, mas provavelmente, paraalgum como a senhorita, eu poderia comprar em Charleston. De vez em quandoFrith me d alguns pence para comprar isto ou aquilo. O melhor capito que eu conheci, o jeito que ele deixa a gente agir. Uma vez fui cirurgio de um navio

    da marinha de guerra, uma fragata, e os homens da Rainha no te dariam umfrasco de infuso de casca, no dariam, no. Dizem que os homens sob a

    bandeira negra no passam de uns patifes, mas aqui posso tratar uma senhoritacomo bem me aprouver. E agora a senhorita est na ponta dos cascos, novinha

    em folha. Pode mandar me buscar se alguma outra coisa acontecer, se entraruma farpa na sua unha, ou se dos conveses a senhorita comear a enxergarsereias.

    Este aqui o navio mais feliz do oceano, no ? pergunta ela.Do vo da porta iluminado, o doutor olha de soslaio para a menina.

    Se a senhorita diz que feliz o lugar onde homens morrem .Depois que o doutor sai ela fica em silncio.Ela no pensou em batalhas, em ataques, em doenas, em sede e fome. Em

    balas de canho aterrissando e rachando as pranchas do convs principal,alojando-se com baques estrondosos no casco. Os tubares espera para devorar

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    marujos quando o navio vier a pique. Ela teve febre amarela e agora estmelhor. Sua me embarcou em um navio como este e era uma rainha. Somentea terra capaz de matar as pessoas. Somente a solidez e a longa imobilidade e osilncio pesado podem pr as pessoas de joelhos e esmag-las at morrerem porfalta de ar. O mdico no deveria se preocupar com ela, mas sim com a mulherdele confinada na terra, que est sujeita a morrer no parto enquanto o sol reluz

    nessa gua salgada.De sua rede ela pode ver apenas o cu atravs da pequena janela. Uma

    solitria andorinha-do-mar voa rasante, gritando. Tab sair de novo de seu quartoe perguntar ao pai sobre seu presente de aniversrio, mas depois de um brevesono. A caminhada da cabine at o mastro, e o retorno, deixaram uma agradvellanguidez nas pernas. Ela abre as mos, deixando um espao para segurar onavio de brinquedo de New Bern, o filho de madeira desta imponente nau.

    Ela acorda tarde sentindo-se ainda mais forte. No tombadilho, procura ocozinheiro e o encontra dormindo atrs de um caldeiro de ferro onde umensopado est fervendo. O aroma saboroso, denso e pouco ranoso. Ela volta

    para o sol levando sua tigela e biscoito seco, e acha espao entre dois tonis paraficar a uma distncia segura dos cabos. Duas dzias de homens parecem estarogando algum jogo com espirais de cordas, enormes velas de linho e o alto-mar.

    A corveta avana, mas Tab no sabe dizer em que direo esto se movendo, ou

    se crculos esto sendo transcritos no lugar de uma rota em frente. Sempre queela olha para o sol, m ais um passo para o meio-dia.

    Mesmo com o vento, o ar est mais quente aqui do que na orla de Beaufort.Ela enfia no bolso do vestido um prego torto. Chegando a Bermuda, no vaiencontrar somente conchas e carapaas de caranguejo, mas as carcaasencalhadas de monstros marinhos com presas de marfim. Vai ajudar o pai aconstruir uma casa l, e tudo que ela fizer ser como um eco da me, e assimJohn ficar contente de novo. Essa a vida para a qual ele foi talhado, a vida de

    que Tab o mantivera afastado. As mulheres, com sua morte, com seus partos,no so marinheiros aptos. Mas Tab firma um pacto, no morrer e tampoucogerar vida, e pede que o Deus de seu av sirva de testemunha. Asa sempre lhedissera que, se ela fosse boa, Deus seria sua derradeira morada, e embora adescrio do av fosse insossa, ele dizia que sua me a estava esperando l. Tabno sabe ao certo se boa, mas sabe que em seu antigo lar o pai estavadesassossegado, infeliz, fatigado. Nada vicejava naquela orla a no ser a sra.Foushee e a igreja, e o fantasma de uma me que para sempre, a cada dia, seriauma recm-morta.

    Em seu canto entre os tonis, Tab diz a Deus que ser boa, que buscar

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    aventura e assim redimir a ausncia da me, e nesse momento, com o sol nosemblante como uma mo clida, ela escolhe acreditar em Sua promessa devida eterna. Para selar o pacto, Tab canta um dos hinos de Asa. Ela v John juntoao mastro enchendo de plvora dois barriletes, e embora no possa v-losorrindo, sabe que aqui ele feliz, e livre.

    John trabalha com uma alegria renovada. Sua filha recobrou a vida, uma vtimada febre que se tornou criana de novo. Ele sabe que a febre amarela temsempre essa pausa, esse adiamento, alvio temporrio que leva os entes queridosa nutrir esperana, e que depois disso os pacientes se curam ou morrem. Masvendo o corpo dela em movimento, as pernas tropeando desajeitadas peloconvs oscilante, ele engole a esperana e a deixa arder dentro de si. Arrancou a

    filha da devota areia movedia de Beaufort e agora, no ar livre e lmpido, asalvou. Fez pela filha o que no pde fazer pela me dela. Uma paz instala-sedentro dele enquanto carrega os barriletes de plvora para a coberta guarnecidade canhes. O navio um porto seguro, e mesmo em meio a duas dzias doshomens mais rudes, ele no teme pela filha. Ela menos uma mulher do que umanjo rarefeito, o espectro da me que partiu.

    Como marujo sem paga a bordo de uma corveta de bandeira negra, semoutro propsito a no ser incurses de pilhagem, as obrigaes de John so

    poucas. Ele esfrega o convs descoberto, enrola cordoalhas, s vezes encarapita-

    se nos ovns para amarrar as velas mestras, mas nunca as de joanete, que so daalada de outro homem. Arruma os beliches no convs de proa, onde dorme orestante dos homens, e d uma mo ao cozinheiro, que no tem ajudante. Elesrateiam a carne-seca e a cevada, repartem o malte e as limas-da-prsia. Johnno falou com Frith desde que zarparam, embora somente uma fina parede de

    pranchas separe suas cabines no tombadilho superior.Ele assume alguns servios apenas para manter as mos ocupadas, para que

    no seja flagrado danando com a filha do traquete ao mastro da mezena.

    Depois que os barriletes de plvora esto seguros l embaixo, ele cuida dascosturas soltas entre as pranchas do convs, encontrando algodo e estopa nos

    pores e ca lafetando as frestas com tiras de pano e piche. um trabalho que sefaz sentado e que no requer nada alm de mos persistentes e uma escovinha.Ele deveria fazer isso quando o navio est a tracado e seco e a m adeira encolhida,mas seus dedos precisam de uma tarefa. Aqui, agachado perto do gurups, ele

    pode olhar para toda a am plitude doFanny e Betsye observar a pequena colniade homens e a menina de dez anos, que se esgueira por entre os grupos

    azafamados, abaixando-se para pegar o que John supe ser um tesouro. A visodela e de suas mos curiosas traz de volta a esposa de John. Ela foi a primeira a

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    saber quais objetos eram importantes.Anos antes, ele e Helen e a m ais diminuta verso de Tab estavam a bordo de

    um navio igual a este. O ventre da esposa avolumava-se at formar um pequenotambor. Ele perguntou que tipo de me ela seria, e ela perguntou que tipo de paiele seria, e ambos riram, no tendo guias. O navio rumava para o norte, de novo

    para casa, carregado de mercadorias roubadas, mas naquele dia, no azul e

    dourado do vero, eles atracaram em Antgua. Os homens foram para a cidade,alguns gastaram moedas com mulheres, outros as gastaram em bugigangas paraas mulheres que haviam deixado para trs: cocos esculpidos, tigelas pintadas,ossos. Levantariam ncora na manh seguinte, acreditando o capito que era

    possvel escapar das doenas que medravam nas ndias.Na cabine que dividiam, que mal tinha dois metros de largura, com uma

    rede pendurada por cima da outra, a tarde cintilava nas paredes. Helen oarrastara para l enquanto os homens marchavam em fila para desembarcar. Ele

    perguntou se ela no queria ver Antgua, e ela o beijou e disse que no, Johntambm no quis. Essa cabine era o refgio de Helen quando o navioempenhava-se em combates com navios mercantes no oceano; emborararamente corressem perigo, ela ainda receava a criminalidade.

    Venha ver disse ela, a mo segurando com firm eza o brao dele.O rosto franco dela o fazia se lembrar da infncia. Havia uma cano que os

    meninos entoavam para provocar as meninas. Sej a boazinha, meu bem, sej a boazinha, e no se esquea De que uma longa, longa ausncia no h de bagunar a minha cabea

    ela sorriu.Ambos tinham sido crianas um dia; e ali estava ela, carregando no ventre

    uma criana.Ela o fez se sentar de pernas cruzadas no cho. Seus cabelos pretos tinham

    reflexos de bronze. De uma prateleira ela retirou uma caixa com fecho de metale sentou-se diante dele, as solas descalas dos ps coladas uma outra, sua

    barriga, uma bolinha sob as saias. Ele esticou a mo para toc-la.Ela estendeu a sua.

    Queria te mostrar disse ela.Helen tirou da caixa uma srie de objetos estranhos estranhos no porque

    fossem incomuns, mas porque tinham ido parar dentro de uma caixa, reunidospor uma nica mo. Primeiro ela mostrou o boto, tirado do casaco dele quandoela o estava remendando, e depois um pedao de vidro polido de Granada. Uma

    bala de mosquete. Oito centmetros de corda puda de quando os cabos e vergasforam ajustados. Ele riu ao ver um caroo de ameixa.

    Voc me beijou com a fruta ainda dentro da boca disse ela. Ele no selembrava.

    Esses eram os seus tesouros, os pedaos de vida que ela colecionava para

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    lembrar-se da vida, as recordaes da experincia. Sua histria da terra e domar. Ele ficou curioso para saber por que ela precisava dessas coisas, queeventualidade ela estava prevendo.

    Ela disps tudo sobre o cho de madeira, por ordem de tamanho. Ele abriuos braos, e ela se arrastou at ele, os dois ou trs emaranhados num napertado. John beijou as orelhas dela e disse que no havia necessidade de

    lem branas, de tanto que a am ava. Ela aninhou a cabea no pescoo dele.Um marujo apareceu por l com peixe fresco recm-assado na praia, e eles

    acomodaram-se numa das redes e comeram o peixe com as mos, e Johnencostou a cabea na barriga dela e ouviu, enquanto ela olhava para a fileira detesouros, do sino de lato at a minscula prola rachada, e a luz deslizou janelaafora e mar adentro, e a tumultuosa algazarra dos homens acompanhou o sonodeles.

    Agora ele cauteloso, para no esquecer as coisas.

    Ele tapa outra fresta com fiapos de estopa. Esse mundo azul e marrom ebranco. O cu e a gua com seus vagos tons de palidez e profundidade refletemsomente um ao outro. Essa a pureza que existia entre ele e Helen, e aqui estela de novo, apenas esperando para ser aceita e retomada.

    Ao cair da noite, ele encontra Tabitha encarapitada no enfrechate, como umaaranha na teia, e ele a arranca de l, um pacotinho risonho. Eles juntam-se aos

    outros na mesa do rancho e John ajuda o cozinheiro a servir um novo ensopado enacos de po seco. Assim que a refeio distribuda, ele senta Tab e, usando seucorpo como escudo, protege a menina da brutalidade de boa parte dos homens.Excetuando o cirurgio do navio, eles no tm uma afeio especial pelamenina, e julgam que ela no muito diferente de um grumete jovem demais

    para ter suas, e de menos serventia ainda. No moderam a linguagem porconta de sua presena.

    Blue Francis bate sua caneca na mesa duas vezes.

    Se fantasmas que vocs querem anuncia numa voz rouca, e os outrosreviram os olhos e bufam, preparando-se para um longo relato, fadado a sermentiroso. Escutem, escutem pede ele. Suas costas curvadas erguem-semais que os ombros, e ele apoia-se na mesa com os braos estendidos sobre amadeira manchada de gordura.

    John o interrompe. Nada sangrento, Frank. Voc est se esquecendo dos mais jovens. Ele

    mantm uma das mos nas costas da filha enquanto engole o resto do ensopado.O mdico d uma piscadela para Tab e se volta para a plateia.

    Foi noBonny Jane, h m uitos e muitos anos, no

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    Quando voc era s um velho berra algum. Isso mesmo, apenas eu e a sua meretriz devolve ele.Com um cutuco John tenta tirar Tab da mesa, mas ela implora para ficar.

    Era um navio negreiro e estvam os nos aproximando de Charleston paravender os escravos, com mais da metade deles ainda em boa sade.

    E os outros? sussurra Tab, e John pende a cabea para um lado

    querendo dizer atirados ao mar. Eles gem iam e se lamuriavam , claro, por isso o navio inteiro parecia

    um boi com a garganta cortada, mas depois de semanas ouvindo os queixumes jestvamos acostumados, no dvamos a mnima. Na ltima noite antes dechegarmos ao porto, o capito mandou o Little Tom subir no mastaru do joanete

    para ficar de olho nas luzes, e o Little Tom tremeu feito vara verde, nunca se viuum menino tiritar tanto de medo. Ele jam ais tinha visto um negro antes e achavaque eles estavam cantando pela sua alma. Blue Francis perscruta Tab, que

    estende o pescoo atrs de John. Ele era mais ou menos da sua idade,senhorita. Ora, Tom estava acostumado com fantasmas, pois no havia navio queno tivesse um marinheiro morto zanzando pelo convs, o pescoo quebrado porter desabado do topo do mastro, ou a cabeleira toda pairando sobre a gua que oafogara. Por isso, quando ouvi o menino comear uma gritaria e o vi descendoligeiro as vergas feito um homem perseguido, achei que ele tinha avistadoalguma coisa concreta. Ele correu direto para a cabine do capito dizendo queestava chovendo negros cujas mos golpeavam-lhe a cabea. Olhei para cima enada vi, por isso fui atrs dele e gritei que esse tipo de coisa no existia, mas ele

    guinchava e sacudia as mos para l e para c, e agora todos os homens haviamacordado e saram para ver. O Little Tom irrompe na porta do capito, e que odiabo me carregue se o capito no se ergueu de um salto da cama e com a

    pistola em punho no lhe acertou um tiro queima-roupa que o transfixou. Fazuma pausa para um efeito dramtico. Alguns dos marujos esgaravatam osdentes. Segurei-lhe a cabea enquanto a sua vida se esvaa, e ele disse: BlueFrancis, tinha uns negros chovendo em mim, eles estavam caindo do cu diretoem cima de mim, me arranhando e gemendo e chamando meu nome, e antes

    que eu tivesse tempo de dizer que eram apenas fantasmas, a cabea dele tomboue ele morreu bem ali.

    Ento os negros vo para o cu e o resto de ns est condenado aoinferno? pergunta aos berros um dos homens, e h um tinir de canecas etigelas de estanho. Enquanto Tab aninha-se no colo do pai para impedir o prpriocorao de bater to depressa, um dos homens comea a martelar um ritmo namesa e dois outros se levantam e danam com passos pesados. A tripulao entoa

    palavras que Tab nunca ouviu, e John a leva de volta para a cabine, atravessandoo convs recm-calafetado, sob as estrelas alvas.

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    Mais uma vez confinada em sua rede, Tab pergunta ao pai por que alguns corposvo para o cu e outros para o inferno. Ela sabe desses lugares por meio de Asa,mas por que alguns marinheiros seriam condenados ao inferno e os escravos no,e por que os fantasmas eram sempre malvados?

    Foi s uma histria diz ele. Os fantasmas no existem de verdade, existem?

    John ajeita os cabelos dela, que sem a escova esto ficando embaraados. Quando uma pessoa morre, s o corpo dela. Existe uma coisa dentro

    que continua viva para sempre. As nossas almas Tab diz. Almas, espritos, fantasmas. Lembranas. Eu me lembro sempre da sua

    me. E ela est no cu, o senhor no acha? Alguns o cham am assim diz John. Onde quer que haj a bondade,

    l onde ela est, eu imagino.Tab fecha os olhos e fala num sussurro: E