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Uma geometria sem vértices Denis Borges Barbosa

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Uma geometria sem vértices

Denis Borges Barbosa

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Índice Iniciando 4

Presidentes 5 Coup d’État 7 Ora direis.... 8 Da geometria etnográfica 11 Fora da Canastra 14 Um berro na tarde 16

Os oportunistas 19 Os adesistas 21 A nossa Cheka 23 Uma história real 25 A tecnologia a serviço da perfeição 30 Mateus, 4:9. 32

Outros Músicos 35 Villa 35 Tom 36 Nelson Freire 37 Dezessete minutos 38 Karabitchevsky 40 Aírton Barbosa 42 Francisco Mignone 44 Almeida Prado 45

Políticas 48 Glauber 48 Bueiro 50 Família 51 Vila Morena 53

Century House, fundos. 55 Treze de dezembro, 1969. 55 Os serviços irmãos 56 Pantera cor-de-rosa 59 Santo Inácio de Shangai 61 Westinghouse 64 A princesa e o efêmero 67

Capitães de indústria 69 A bolha do Nasdaq 69 Heróis da pátria 72 Europa, França e Bahia 73 A idade da razão 75 A idade da razão II 77 A Idade da Razão III 79 A Idade da Razão IV 81

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A Idade da Razão V 83 Como queríamos demonstrar 84 Uma barquinha de prata 87 Sex shop 89

Servidão pública 91 Lá como cá 93 A brocha da diplomacia 94 Maciste contra o resto do mundo 96

Gradus ad parnasum 100 A rosa e o espelho 100 Foca 105 Paschoal 110

Ministérios 113 Força da Natureza 116 Aqui, nem os honestos 121 Direita, volver! 122 Bacci 124

Passeios com o titio 126 O povo pusilânime 128 O povo selvagem 130 Sex & the City 132

La Pensée Sauvage 135 Gata mansa 135 A barganha 137 Pajelança 139 A outra margem do rio 140

Inteligentzia 143 Bandeira 143 Darcy 145 A ilha de Itaparica 149 Lobato 152 Vatel em Morvan 153

L’Art poétique 157 Sobre poesias oferecidas 157

O falso e o implausível 160 Falsificações 160 A procura de um contexto 160

Quando vendi o ouro do Brasil 166 Vinte ano de marasmo 166 O silêncio é de ouro 168 Tubarão 171

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Iniciando Arbitrïi libertas haec est, plane divinum quiddam praefulgens in anima, tamquam gemma in Auro. (Bernard de Clairvaux)

Aristóteles ensina que os autores graves falam das ações nobres e das boas pessoas, e tendem à tragédia; os de estofo mais trivial pintam seus personagens ainda mais para baixo do que o são na natureza, e escorregam para a comédia. Usando vários santos nomes em vão, conto na verdade fragmentos da histó-ria desses anos desde que comecei a ver o mundo.

Nem tudo aqui pode ser verdade. Nomes, datas e fa-tos passaram pela tentativa de o ser. Sempre que pos-sível, foram pesquisados para garantir a precisão. Alguns dos protagonistas dessas histórias, que as le-ram, se espantaram com os detalhes de minha recor-dação; o que faz refletir quanto à falibilidade do que ficou retido.

Entre estórias e histórias (na distinção que Guimarães Rosa gostava) vêm também outros segmentos e textos que resultam, como tudo neste livro, do simples pra-zer da escrita. Esses, verdadeiros também, se não nos fatos, no empenho da expressão.

Prazer também de contar causos, especificamente para meus filhos Ana Beatriz e Pedro Marcos, a quem, em todos os sentidos, isso aqui é dedicado.

Rio de Janeiro, Maio de 2004.

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Presidentes

Primeiro de todos, nunca visto, mas sentido ao longe, como uma espécie de gigante do João Pé de Feijão. De viés, na varanda dos meus avós, na Rua Silveira Martins, em 24 de agosto de 1954, muito cedo, um movimento de tanques na rua, bichos pesados e estra-nhos, da mesma cor dos bondes, mas atarracados e façanhudos. Depois, já sem os bichões esverdeados, muito, muito povo. O Presidente morrera, disse meu avô, sem precisar como. A agitação toda, vista da rua, era em frente do Palácio.

O Palácio. Naquele tempo, cercado de muralhas altas, casamatas e seteiras, com eventuais metralhadoras apontando para fora. Tudo escondido, nada visível, nem o parque público de hoje, muito menos o centro cultural. As mesmas águias de bronze no topo, mas naqueles tempos pareciam vivas, recém egressas do Lago Estínfale. Meu avô me levava ao passeio pela Silveira Martins, pela calçada oposta ao Palácio, até a Praia.

Na amurada ainda existente (o Aterro ainda não esta-va completo) vovô mostrava o ancoradouro do Presi-dente, onde Getúlio desembarcava entre cordões da Polícia Especial, galos de briga e campeões de luta livre de uniforme caqui e quepes vermelho-sangue. Aliás, mais que aos tanques, o adjetivo “façanhudo” era devido aos tais polícias, segregados do mundo num quartel ao lado do Convento de São Francisco, no Largo da Carioca. Só apareciam em torno de Getú-lio, ou para reprimir a populaça a bordoadas.

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Nunca vi o gigante do pé de feijão; nada mais do que os testemunhos ciclópicos da sua presença, e o povo de longe na sua morte. Mas eu soube do próximo Pre-sidente por uma cédula eleitoral caindo de uma janela na esquina da Rio Branco com Presidente Wilson, do mesmo prédio arredondado que continua lá. Possi-velmente de um centro eleitoral do Juscelino, cujo sobrenome estranhíssimo, nos meus cinco anos, tive dificuldade de ler. A minha babá, que me levava à Escola Deodoro, não podia me ajudar em nada, pois não lia, mas sentenciou: é coisa de político.

Anos depois, procurando locação para escritório, en-trei pela primeira vez no mesmo prédio. O senhorio, ansioso para mostrar a vista para a baia e a amplidão dos espaços, avisou que ali, naquela sala, Getúlio vinha encontrar-se com sua vedete preferida. Imagi-nei Juscelino subindo e Getúlio descendo nos mesmos elevadores. Talvez Getúlio tivesse encontrado a cédu-la nas mãos de sua amada; talvez, enfurecido, tivesse jogado pela janela; talvez, deçà et delà, pleurant comme une feuille morte, a cédula tivesse caído na minha mão com o nome intransponível de Kubitschek à mostra.

O dono do nome, encontrei-o depois de eleito, na inauguração de um parquinho de diversões no Aterro. A Capital Federal comportava presença de presidente em vernissage de roda gigante. Juscelino foi entrando, afagando uns, apertando a mão de outros, circundado pelos garotos da UNE que tinham algo a haver com o parque...e ganhei um cafuné de presente. Estava de terno de linho, e naqueles tempos antes do tecido sin-tético e do desodorante, mesmo o Presidente vivia amassado e um tantinho fedido.

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Em 1960, na Inauguração de Brasília, meu pai me acordou um instante antes da meia noite. A cerimônia fora longa, e eu adormecera no chão da Praça dos Três Poderes. O Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lis-boa, estava consagrando a nova capital num altar em frente ao Supremo, e Juscelino, de pé ao lado do vulto de batina vermelha, parecia uma espécie de santo de candomblé, um exu de casaca. No exato da meia noi-te, explodiu uma fumaceira de fogos, e tudo sumiu. Nunca mais vi Juscelino.

Coup d’État

Eugênia, amiga de minha mãe, era toda sardas. Lem-brava-me uma onça, mas das doces e boas. Quando bem menino, me trazia presentes, cuidadosamente embrulhados em caixas dentro de caixas, para aumen-tar a surpresa e o prazer. Mas a história começa anos mais tarde, quando o encanto dos brinquedos já havia passado.

Era uma época em que os jornais retratavam Jânio Quadros mais como charge do que nas colunas políti-cas; seu tempo tinha passado, a não ser pela descrença do voto popular. Tomava-se chá lá em casa, mais precisamente, suco de uva e pãozinho esquentado no forno, com queijo. Alguém falou no ex-presidente, e Eugênia, que já o era, virou onça. Avermelhou pri-meiro, depois ficou roxa. A um milímetro da apople-xia, Eugênia declarou: “é o pior dos cafajestes”. Ma-mãe concordou imediatamente, e depois perguntou o porquê.

Eugênia estivera em Portugal, numas férias difíceis de professora de música do Estado. Num jantar sozinho e quieto no hotel, pede a sobremesa. Jânio, que em

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Portugal ainda tinha graça, ouviu o sotaque brasileiro, olhou as sardas, esticou os olhos para as longas per-nas, e foi sentar-se na mesa de Eugênia. Sem pedir licença, mas ex-renunciante possivelmente tem privi-légios. Ela se assustou, deve ter corado entre as pinti-nhas de felina, moça solteira no exterior, a atenção de uma celebridade.

Só que a atenção foi além do fortuito. Atrás da arma-ção dos óculos, as botucas de fauno lambiam lasci-vamente cada sarda. Irresistível e invencível para o eleitorado, Jânio o seria para cada um dos eleitores.

Eugênia se levantou, inquieta. Ele veio junto, eleva-dor acima. Tentou despedir-se na porta, fingindo des-vanecimento político, mas só político. O instante era, porém de poucas sutilezas. Ela achou que abrindo a porta e entrando, com a dose certa de rispidez polida, seria o suficiente. Não foi – só teve uma mão para pegar o telefone e berrar, de longe, por socorro. O político foi arrancado do quarto como tinha sido do Planalto – pelo impacto de uma oportunidade mal avaliada.

Mas o livre consentimento democrático não devia ser muito interessante mesmo. Pelo menos para ele.

Ora direis....

Tinha-me preparado longamente para o evento. Me-ses de estágio no Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil, como foca, com direito a equilibrar bolas na ponta do nariz e comer sardinhas. Tinha-me empe-nhado muito pra conseguir, no jornal diário do Jam-boree de 1965 – um monumental acampamento internacional de escoteiros – o lugar de repórter.

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Mas ninguém me avisou que, de uniforme de escotei-ro, caneta esferográfica e bloquinho na mão, eu tives-se que ir ao Palácio Laranjeiras entrevistar, para meus três mil leitores acampados na Ilha do Fundão, o Ma-rechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Em meio a escoteiros escoceses de kilt vermelho, para-guaios com cara de pajé, americanos avermelhados de sol e de sentimento de superioridade, um repórter de dezesseis anos não era, aliás, o bicho mais estranho a ir ao Palácio.

O marechal chegou rápido, para um político. Feio, bizantinamente feio, lembrando muito as carrancas do Cinema Asteca da Rua do Catete. Pior, as carrancas das barcas do S. Francisco. Recebeu todo o povo no meio do salão, num terno verde oliva de puro hábito, solene como um totem de Messejana. Sorriu vaga-mente quando recebeu dos escoteiros chilenos uma estatueta do "Caballo de Quinchamalí". Enfim algo mais folclórico do que ele mesmo.

Castelo Branco Recebendo os escoteiros chilenos

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Em outubro de 1964, meses antes, ainda aprendiz de iniciante de foca, tinha redigido o obituário do De Gaulle, em visita ao Brasil. No momento em que o francês e Castelo Branco passavam juntos, no Rolls presidencial, pela Avenida Rio Branco, eu fora ver o desfile no oitavo andar do velho prédio do Jornal. O marechal de terno preto, cabelos escuros aos sessenta e cinco anos, mais De Gaulle, de quepe e uniforme marrom, comprido e barrigudo como uma pêra, pare-ciam completamente indefesos no carro aberto. Ima-ginei como faria sucesso meu artigo, se fosse publi-cado no dia seguinte.

Mas, no Palácio, Castelo estava enorme e perigoso. Entrevistar como? Perguntar o que?

Questão feita ainda mais difícil pela presença dos executivos profissionais escoteiros, com cara de puro medo ao darem comigo ali, de surpresa. Pelo teor dos meus artigos nos dias anteriores, um deles tinha vindo conversar, repleto de dedos, com A Revolução dos Animais de Orwel na mão, para me dar de presente. Esquerda e escotismo, era o recado, não se dão bem. Aumentei a agonia do emissário lembrando que Lord Baden Powell, o fundador dos escoteiros, era socialis-ta.

Quando acabaram as entregas de estatuetas chilenas, cheguei mais perto do tótem. Repentinamente, fui cercado de chefes com penachos de todas as cores. Senti mão no meu braço, resfolegos atrás de mim.“Presidente?”. Castelo olhou para mim. Declarei minha condição de jornalista; ele permaneceu totemi-camente quieto.

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Era meu momento de perguntar se viria outro Ato Institucional. Se seu mandato a ser prorrogado mais uma vez. Se Lacerda poderia candidatar-se a sua su-cessão. Meu momento de entrar na história. Mas saiu: “O que o senhor acha do escotismo?”. Não me lembro o que respondeu. Aliás, para alívio do escotismo bem-pensante, nenhum dos meus três mil leitores do dia seguinte deve se lembrar da opinião de Sua Excelên-cia, qualquer que tenha sido ela.

Da geometria etnográfica

Quem sabe francês? Disseram ao Ministro que era eu. E assim, numa quarta feira, no meio do expediente, recebi ordem de ir para o aeroporto, sem nem tomar banho. A mala, arrumada pela empregada, foi me encontrar no Galeão.

Antes, na sala do Presidente do INPI, o Ministro chamara os grados da autarquia. “Deixa-me ver a marca da gravata”. Em quase todos, havia a marca cartier. “Cartier não fabrica gravatas”, começou Ca-milo Penna. Todos sabiam disso. “Só aqui no Brasil alguém teve a ousadia de registrar essa marca para gravatas”. Concordância geral. “Não me venham di-zer que isso é legal, porque já sei que é”. Pois era. “Mas o Delfim precisa de dinheiro francês, e manda-ram dizer que só resolvendo a questão das marcas vêm francos para cá”.

E por isso fui embarcado à força e expulsando passa-geiro já com reserva confirmada, para Paris. Voando no mesmo dia, ia João Figueiredo para lá, de banho tomado e em seu próprio avião. Em Visita de Estado. Era janeiro de 1981.

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Paris oficial é outra coisa. Nada de navettes Air Fran-ce até o centro, depois viagem de metro com mala. Carros negros de longos capôs no aeroporto que te levam até o hotel de luxo na Rive Droite. Um peque-no problema: a diária de um advogado do Governo não chega nem perto do lobby do Grand Palais de Bourgogne. Metrô e malas, num terno suado do dia anterior.

Assim mesmo, Paris oficial é outra coisa. O Salon Napoleon III do L’Élysée iluminado e com couracei-ros da Guarda Republicana. Quarteto de cordas no jantar. Nenhum convidado com gravatas Cartier, mas muitos com jóias da marca. A elegância cavalheresca de Valery, lado a lado com os sapatos engraxadíssi-mos do nosso general de cavalaria. Uma revelação: salvo o consomé VGE, criação de Bocuse especial para o Presidente (deles), a comida palaciana não chega perto da dos grandes restaurantes.

A história, porém, não foi no Elysée, mas numa re-cepção da Embaixada do Brasil, à beira do Sena, no Cours Albert Premier.

No meio da negociação com os franceses de um tra-tadinho só para resolver os problemas das marcas legais, mas inconvenientes, telefona o Ministro. O físico José Israel Vargas, mineiro como Camilo Penna e também futuro ministro, que estava negociando os assuntos de interesse do ministério, atende; vem me chamar.

Ouço longe a voz rápida e mineira de Camilo Penna: outro ministro, este vindo com o Presidente, estava conseguindo levar para seu estado nordestino um fa-brica de automóveis. Automóvel é coisa do nosso

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ministério, não do nordestino. Não aceitava localiza-ção de montadora sem participação dele. Que eu fa-lasse ao Presidente já, e passasse a mensagem. Toda.

Sai catando onde estava Figueiredo. Através de um amigo do Itamarati, descobri a tal recepção. Da Rue de Stalingrad, onde estava nas minhas negociações, até a embaixada não era perto. Dinheiro para táxi es-cassíssimo. Metrô mais uma vez, na hora do rush, nariz protegido contra os hábitos locais.

Amarfanhado, proletário, friorento, estou no salão da embaixada. Comparando com o Elysée, um lugarzi-nho estiloso e amável, e só isso. Meu amigo, que, apesar de ter vindo de Brasília só para a visita, conse-guira me guindar para dentro do prédio, repassa o encargo para Raul de Taunay, esse diplomata lotado em Paris mesmo. É quem me leva até o fim do salão, onde estava o Presidente.

Ele e uma roda de generais brasileiros, uma coleção de gente feia e troncha, coisa feita mais catastrófica pelo ambiente clássico da embaixada. Lembrei de Dona Carlota Joaquina e seu séquito de abastemas. Figueiredo parecia até composto e arrumadinho, em comparação.

O recado era urgente. A fábrica nordestina estava para ser assinada naqueles momentos. Mas ninguém interrompe um General-Presidente da Revolução quando ele está falando de assuntos de alta cogitação:

“Não sei se vocês já notaram como a bunda das fran-cesas é diferente. As das nossas são redondinhas, com jeito de macio, empinadas, oferecidas. Bunda combi-nando com sandália de dedo. Aqui não. Para começar,

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são hexagonais. Bem estruturadas. Projetadas para andar de sapato alto, sem abalo. Bundas de elegância e não de tentação....”

Quietos, atentos, eu e os generais iamos aprendendo do melhor da política internacional do Brasil. A fábri-ca de automóveis nunca foi para o Nordeste. E nunca mais consegui olhar para um traseiro europeu sem me lembrar do Presidente

Fora da Canastra

Odylo Costa, Filho, tinha um pasto na Av. Ruy Bar-bosa. Ou assim ele dizia da sala de seu apartamento. União de dois espaços de dois prédios contíguos, cada um deles imenso, a moradia dava uma impressão de uma estância ou fazenda, com duplicações infinitas de banheiros.

Pois foi no meio de uma das touceiras de capim-limão do Odylo que encontrei José Sarney, num momento de escassez de bigodões. Ia jantar com o amigo, e estirava-se num sofá com cara de preguiça. Só conhe-cia, da sua obra já vasta, uma receita de arroz de cuxá, mas era suficiente.

Uma antiga colega de escritório estagiara com Sarney quando ele, num intervalo negro da história política, resolvera ser advogado na banca do Saulo Ramos. Nunca confessou ter tido qualquer coisa com o gas-trônomo de S. Luiz, mas a discrição dela conotava muito ruidosamente. Algo como se a forma dos bigo-des fosse indicativa de alguma coisa. Mais ou menos isso.

Dez anos depois, numa cerimônia no Planalto, já de bigodes grandes, ele ainda não me convencia. Havia

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uma certa gentileza no seu trato, uma elegância rara nos políticos que eu conheci, homenageando meu ministro já a um passo da morte, afundando no cargo. José Hugo Castelo Branco me levou para despedir-se do Presidente, ele me olhando longamente, estra-nhando e achando me reconhecer. “Estivemos juntos na casa do Odylo Costa Filho, Presidente”. Ele fez que lembrasse.

Poucas semanas depois, estava numa das alas térreas do Planalto, trabalhando no projeto do decreto-lei das licitações com os colegas da Consultoria Geral da República. Coisa de minúcia, trabalhosa, carecendo de simulações e modelos de cada safadeza e roubalhi-ce que o brasileiro possa inventar. Pois às tantas o clima no palácio mudou. Nossa sala dava, em jane-lões de parede inteira, para um espaço interno do Pla-nalto. Soldadinhos de verde e fuzil FAL apareceram correndo. Um urutu, o blindado brasileiro dos exérci-tos de Saddan Hussein, apontou bem à vista.

Raymundo Noronha, Consultor da República, foi ver o que era. Fiquei sozinho na sala. E sozinho estava, quando vi pousar, um pouco mais além, um helicópte-ro. Sarney e ajudantes de ordem saem por uma porta lateral, na ventania das pás da aeronave, que não pa-rara os motores. O grupo acelera o passo, o helicópte-ro abre a porta de correr, e o Presidente se adianta. Mas, no momento que ia entrar, pára. Encosta a mão na fuselagem, e pousa a testa sobre a mão. Um mo-mento só, mas todo ele expressão.

Os ajudantes o tomam pelo braço. Sobem, e a máqui-na voa longe. Os soldados se deslocam, o urutu vai embora.

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Raymundo volta, eu aviso que o Presidente tinha vo-ado há um instante. Era bom ir embora também, diz ele. A rodoviária de Brasília estava em chamas, o povo na rua, irado, vindo para o Planalto.

Saí numa praça vazia, o Supremo apagando as luzes, soldados poucos e confusos. Fui andando pela Espla-nada dos Ministérios, cada vez mais perto do fogo, com a curiosa sensação de, pela primeira vez na vida, estar do lado de lá da passeata.

Um berro na tarde

Quase todas as mulheres que conheci se apavoram quando eu choro. E Marcelo Alencar fez a mesma cara que elas, quando abri o berreiro ao ouvir que o metrô passaria a ser do Município.

O Prefeito tinha tocado no assunto com cuidado. Sa-bia da minha oposição ao deslocamento do transporte subterrâneo do Rio da administração do estado, a quem estava afundando de dívidas, para desequilibrar o tesouro da cidade. Nenhuma razão havia para isso, disse Marcelo, a não ser uma intimação do Governa-dor, seu líder de toda vida, que queria arrumar sua casa. A União passaria para o estado os trens urbanos, financiando o buraco orçamentário deixado pelo me-trô; e este seria repassado ao Município. Eu tinha de negociar os detalhes jurídicos com Siqueira Castro, chefe de gabinete de Brizola.

Quando todos documentos ficaram prontos, porém, meses de encarniçamento depois, Marcelo estava do-ente. Recém operado, vinha pouco e mal ao Gabinete. Ao receber, inesperadamente, a intimação de que os acordos iam ser assinados pelo Presidente Collor, foi

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avisar em casa que ia se atrasar para o jantar, e D. Célia vetou. Ele não viajava mesmo.

O enviado seria o chefe de gabinete do Prefeito, um ex-político dos tempos do Onça, que fora deputado fluminense no tempo em que Tenório Cavalcanti usa-va capa branca. Como de nada sabia, devia eu ir de escolta.

O aviãozinho de Brizola foi assim cheio. Siqueira Castro, ele, o dois municipais, e uns ajudantes de or-dem para ajudar não sei em que. Para minha surpresa, Brizola era cordial, lembrando muito a solicitude de Afonso Arinos, e como ele, perguntando de minhas raízes familiares, minhas ambições, minhas opiniões (não escondi: “discordo disso tudo, Governador”).

Já Collor, posando para a mídia, estava o mestre de cerimônias do Oscar. Distante, falsamente afável, empolando o discurso burocrático, inflando de Histó-ria a assinatura de dois convênios muito comezinhos. À minha vista, parecia amarelo, doentio, suarento, seboso. Assinou os documentos com prestidigitação. Esperou mal e mal Brizola assinar, entregou a cópia ao representante municipal com um jeito de “dépeche toi, vermine”, e saiu da sala com a mesma solenidade de um domador de circo.

Brizola foi cercado imediatamente pela imprensa. Fulgurava pela atenção. O estado ia resolver todos os problemas com os acordos: orçamento, desenvolvi-mento, futuro, povo fluminense, trabalhadores – foi desenrolando o seu discurso de sempre. Recolhi mi-nhas cópias dos acordos, conferi as assinaturas, sentei num canto, e por cacoete de advogado, comecei a ler

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a papelada. Soltei um “puta que pariu” que foi ouvido até na televisão ao vivo.

Collor, como o escorpião da fábula, havia mudado tudo. Os meses de negociação sofrida, deixados de lado, tinham sido substituídos por um papel inteira-mente novo, em que Brizola ficava com todos os en-cargos dos trens, sem contrapartida, e a cidade, habi-tuada mesmo com a limpeza urbana, com os dejetos finais. Disso ninguém tinha sido avisado. Havíamos assinado a mais impoluta e imarcescível de todas as fraudes.

Brizola ouviu meu impropério. Interrompeu as entre-vistas, veio andando sozinho para meu lado. Que é, meu filho. Ouviu. Leu desconfiado para confirmar. Avermelhou. Pôs um lenço vermelho metafórico no pescoço, conjurou uma boleadora do espaço, e avisou em torno que estava subindo, no ato, para se entender com o Presidente. Só para mim, fez com os lábios, sem soltar som; “ca-lhor-da”. Era com o Collor.

Até hoje o metrô não veio para o Município. Na pró-xima vez que visitou a Prefeitura, Brizola mandou me chamar, agarrou meu pescoço no meio da multidão de entusiastas de sempre, e declarou aos brados que eu valia ouro. Meses depois, quando a cesura entre Bri-zola e Marcelo já estava incontornável, uma reunião do secretariado municipal que tentava evitar o arma-gedom sugeriu a intermediação dos brizolistas da Prefeitura. “Manda o Denis falar com o Governador”.

Marcelo Alencar discordou, com um sorriso trocista, sabendo da minha incompatibilidade funda com o pedetismo: “Denis não é brizolista, Brizola que é de-nista”.

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Os oportunistas

De Santa Maria até o Rio de Janeiro, trouxe, de ôni-bus, o saco de arroz. Quarenta quilos, um sinal de pura dedicação. Pôs o saco em cima da minha mesa, e fez cara de quem pede clemência. Um vizinho estava copiando sua marca, logo daquele arroz tão perfeito, tão escolhido, o melhor do Rio Grande. O saco era um presente, para que eu lançasse os raios do Gover-no sobre o vizinho safado.

Senti uma certa delicadeza no lavrador gaúcho. En-tranhado na sua cabeça devia estar que funcionário público só se move à força de agrado, e dar o seu ar-roz precioso era infinitamente mais elegante do que dinheiro vivo. Tentei ser o mais suave que sabia, ao explicar que o crime dele era impossível. Um funcio-nário do INPI não tinha como fazer um contrafator parar de copiar a marca dele em Santa Maria. Só o juiz da comarca. Voltasse, procurasse o advogado da confiança dele, e entrasse com uma ação contra o vizinho.

“Mando mais, doutor. De caminhão!”. Não houve como convencê-lo. Cismou que eu o rejeitava porque era pouco. Espantou quando eu sugeri que desse o arroz para os pobres da igrejinha da Rua Sacadura Cabral, ali perto. Saiu, ressentido e confuso.

Horas depois, me localiza na sala de colegas. Pede licença, se achega, puxa umas notas e moedas do bol-so, e oferece: “uma cervejinha para o doutor”. Era mesmo o preço de uma garrafa de chope. Todo mun-do já sabia da história do gaúcho, e quando eu o pus

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para fora da sala com energia, ninguém segurou o riso.

Minutos depois, ele só ousou enfiar meio rosto pela porta entreaberta: “doutor, no natal lhe mando uma sidra!”. Fingi que ia correr atrás dele, e o rizicultor desceu correndo escadas abaixo. Provavelmente pen-sando que pobre não consegue mesmo nada do Go-verno.

Nem todos colegas tinham bom humor. Meu vizinho de porta, um capitão de mar-e-guerra fuzileiro, refor-mado, mas ainda tão inflamado como nos seus dias de treinamento com os marines, passou por coisa pareci-da com um empresário paulista. Só se viu um homem de terno correndo pelo corredor, uivando, com o fuzi-leiro atrás de pistola calibre 45 em punho.

Qual é o método correto de lidar com esse povo, para quem foge da expectativa cínica, é matéria discutível. Murilo Cruz Filho, economista estudioso do assunto como matéria de ciência, sugeria afogar a oferta em demanda. Se o corruptor saca de um cheque, deve-se chamar todo mundo em torno, esgotar a carteira de cheques, procurar o que ele tem nos bolsos, tirar os óculos do rosto, os sapatos dos pés; segundo tal tese, antes de chegar na roupa de baixo o corruptor já de-sistiria, em plena fuga.

Provei a tese como certa na Câmara Municipal do Rio. Numa solenidade com todos os procuradores, um ex-colega da Faculdade, então vereador, me puxou num canto. Vinte e cinco mil para soltar um contrato. Só a idéia me divertiu imensamente. O contrato em questão estava com um colega ferocíssimo e instável.

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Procurador de Município, como fuzileiro, tem porte de arma, e tiro em vereador dá só crime de dano.

Peguei-o pelo braço, e fui até o lugar onde os procu-radores se concentravam. Pedi silêncio. Fizeram, a-chando que era troça. Avisei: o vereador está ofere-cendo vinte cinco mil para cada procurador que soltar um contrato. Riso geral. O edil me olhou cheio de ódio e me insultou sete gerações. Mas nunca mais tive ofertas parecidas.

Os adesistas

Para quem gosta do serviço público, e estoca bom humor para os tempos de necessidade, trabalhar no Governo é um prazer só. Nenhum filme do National Geographic, com suas cores fortes e bichos estranhos, vale o espetáculo de quando mudam os ventos da política, e a passarada troca de plumagem. Quem era arara azul antes da eleição, com a abertura das urnas vira o mais discreto dos pombos de praça; o patinho desengonçado vira pavão.

Mas o caso aqui não é de mudança de voto, mas de política. No meio do Governo Sarney, alguém decide que era preciso abrir a economia, desregulamentar, globalizar, antecipar tudo que se fez no governo se-guinte. O couvert desse novo banquete seria a criação de áreas no país onde não houvesse intervenção de Governo, imposto, justiça do trabalho, hora extra, câmbio controlado, nada. Colônias de extraterrestres em Baturité.

Pois havia poucos entendidos no assunto. Mas um economista do Governo, funcionário já antigo, havia escrito um minucioso estudo sobre as Zonas de Pro-

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cessamento de Exportação – o nome oficial das colô-nias de marcianos. Comparando dados e efeitos de coisas similares no México e na Ásia. Jorge Murad, genro de Sarney e promotor da política nova, ouviu falar do estudo. Chamou o estudioso. Prometeu co-mandos e poderes, glória num só estampido.

O sábio voltou para o Rio desesperado. O estudo, longamente embrenhado nos fatos e estatísticas, man-tinha total equanimidade acadêmica. Ponderava as vantagens, apontava os desastres, analisava os suces-sos. Era só na conclusão do trabalho que, com a frieza da ciência e algidez da consciência crítica, expressava sua opinião final. O Brasil não precisava de Zonas de Processamento de Exportação.

O desastre podia ser total. Cópias do trabalho tinham sido distribuídas. A opinião era sabida. Mas, para a felicidade do novo todo-poderoso, não havia ainda a Internet. Papel é papel. Nos próximos dias, o cientista saiu à cata de todas as cópias da apostasia. Stalin não reescrevera a história a cada edição da Enciclopédia Soviética? Galileu não se tinha retratado da astrono-mia? Por que não teria o direito de repensar, sobran-ceiro, com a plena autonomia científica, as conclu-sões de seu estudo?

O trabalho, no fundo, era fácil. Era só substituir a última folha, logo antes da assinatura. Uma única palavra, uma só, teria de ser repensada. Na frase “É, assim, de concluir-se que na materialidade de seu contexto econômico o Brasil não precisa, absolutamente, de Zonas de Processamento de Exportação” retirar-se-ia o inútil e rebarbativo “não”.

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Conciliando-se assim com a nova fé e a eterna ciência econômica, o novo czar da desregulamentação devol-veu cada cópia do estudo. Nunca tinha havido o desli-ze da juventude.

Um dia, a nova legislação criando as Zonas fica pron-ta. Menos radical do que se esperava. Por exemplo, mantinha a aplicação, mesmo na plenitude das Zonas, da Lei Áurea. Alguém teria de ser culpado pela tergi-versação. O czar detalha nos jornais o triunfo de suas teses e cai de fogo e ferro contra o Ministro da Indús-tria e Comércio, que tinha conspurcado a linda e pura idéia da liberdade absoluta com restolhos de interven-ção do Estado. Alvo ideal: o Ministro tinha morrido há uma semana.

Escrevi ao Globo. José Hugo Castelo Branco, cava-lheiro, pairando acima do bem e do mal pela consci-ência do seu destino próximo, merecia defesa. Porém, mais do me permitir fazer justiça ao meu Ministro, a longa carta na página de editoriais deu o gosto de contar essa história. Cópias da primeira versão de seu estudo ainda existiam. A tecnologia é solerte, e pre-serva a imagem inegável de uma assinatura ao pé de um “não”, solar e eterno como a visão de Copérnico. Depois da carta, the rest is silence.

A nossa Cheka

Guardião a moralidade e da democracia, o Serviço Nacional de Informações funcionava durante os vinte anos da Revolução em pequenos núcleos nos Ministé-rios e entidades federais. Pois subi dois andares pela escada para mostrar, entontecido de fúria, a carta que acabara de receber de uma das 500 maiores empresas americanas. No papel pesado, com timbre em relevo,

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do CEO da companhia, a carta mencionava um jantar de empresários em Nova York, na semana anterior, no qual eu havia sentado ao lado do Presidente da multinacional. E, das gentilezas, passava a pedir o número da minha conta bancária.

Tão inacreditável, que mostrei a carta em torno. Du-videi do meu inglês. Fiz com que traduzissem para mim. Um colega mais esperançoso sugeriu falar com o povo do SNI.

O Comandante, chefe do núcleo não estava. O substi-tuto, civil, escondeu rápido a unha do pé que andava cortando quando entrei na sala blindada. Falei da car-ta. Entreguei. O agente olhou para o papel sem co-mentar. Que eu explicasse; ele não conseguia ler o inglês. Expliquei. Continuou sem atenção, com o pé numa das gavetas da mesa, com jeito de quem quises-se continuar com a tesoura. Disse que ia falar com o Comandante. Eu esperasse.

Eu ia saindo, e ele comentou: essas coisas são sempre assim. Que não me amofinasse não.

O Comandante nunca mais tocou no assunto. Baixi-nho, redondinho, me lembrava sempre o Raguenau, pasteleiro poeta do Cyrano de Rostand. Um dia, vem a minha sala, preocupado. Fora a causa de um cata-clismo, sem nem saber porque.

Espiando as coisas numa outra repartição, encontrara certos procedimentos duvidosos. O financeiro estava aplicando as verbas do Orçamento no Open Market, para se proteger da inflação. O Comandante voltou para sua sala. Estudou. Não conseguiu saber se isso era certo ou não. Para saber melhor, abriu sua porta

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de ferro, atravessou o corredor, e foi falar com o fi-nanceiro da própria autarquia em que estava lotado. Para manter a confidencialidade da fonte, não deu detalhes de onde a coisa acontecia. Soube que real-mente não podia. Contra a lei. Voltou para sala, feliz.

O caos que resultou, ele não entendia. O diretor fi-nanceiro, crendo-se pego, desceu para confessar ao presidente da autarquia. Ele também fazia o mesmo, mas a pequena diferença que em causa própria. Aque-la dinheirama toda ali, inútil, com a inflação corrosiva de todo dia. Era até pecado. Se o Governo não queria, e ficava satisfeito de ter no fim do mês o mesmo valor nominal, que havia de errado?

O dia virou um jardim zoológico. Urros e barridos. Uma secretária sapientíssima havia sentido o clima, e subtraído docemente a arma do paletó do presidente. Além das ofensas ululadas à família do diretor finan-ceiro, o que mais se ouvia enquanto o Comandante contava sua história triste era o rugido “onde está meu 38?”.

Uma história real

Bonn estava entupida de bandeirinhas vermelhas com uma seção branca e uma cruz outra vez vermelha. Ninguém no carro da Embaixada sabia que coisa era aquela – talvez uma versão soviética, mas cristã, da Cruz Vermelha.

Quando estacionamos no pátio do Ministério da Eco-nomia, havia uma pequena algazarra na porta do pré-dio - uns poucos repórteres e fotógrafos, mais alguns exemplares daqueles animais grandes, mas com jeito de retacos, que cheiram sempre a segurança. E vinha

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saindo um homem escuro e imenso, monumental em quatro sentidos, embrulhado numa roupa tribal colo-ridíssima. Pareceria uma lua escarlate, se a lua fosse tão imponente 1.

Fomos chegando perto. A imensi-dão do homem estava de conversas com um alemão louro e posudo. Ao nos ver, o alemão mencionou “our Brazilian friends now”. Sem se afastar do colosso, nos acolheu com uma amabilidade feita de ma-téria plástica: era o Ministro. Apre-sentou-nos à peça a seu lado: era sua majestade o Rei de Tonga, Tau-

fa'ahau Tupou IV. O Embaixador Ivan Batalha co-menta suavemente em português: “um rei tão grande num país tão ínfimo, se ele se vira na cama, a popula-ção tem de pedir passaporte”.

Foi-se o Rei, numa caravana de Mercedes negros cin-tilantes, e acompanhamos o Ministro até uma sala palacial, com uma longa mesa de reuniões coberta de pano verde. No meio da mesa, caixinhas de charutos e fósforos. Em 1979, fumar em uma sala fechada não era nenhum espanto.

Só que tudo ali, para mim, era surpresa. Estava aca-bando um tempo comprido em Genebra, numa reuni-ão da UNCTAD, já sem nem migalhas de dinheiro,

1 “We used to provide two business class seats for the King of Tonga. But he's lost quite a bit of weight and now occupies only one”, encon-trado em http://www.pacificislands.cc/pm102003/pmdefault.php?urlarticleid=0028 , visitado em 14/3/03.

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quando me chegou a ordem por telex. Devia rumar para Bonn, reunião da Comissão Mista Brasil-Alemanha. Veio a passagem, mas ninguém falou em diárias.

Foi assim que cheguei ao aeroporto de Frankfurt, de noite, sem um centavo no bolso. Esperava, ou, pelo menos, tinha esperanças que alguém viesse me bus-car. Nada. Nenhum cartaz com meu nome. Pois fui a um ônibus com destino a Colônia, e declarei ao moto-rista, no meu parcíssimo alemão: “Mein Herr, Ich habe keine Geld”. E ele, com uma suprema indiferen-ça, me mandou subir no carro, que era o Governo que pagava mesmo.E, dia seguinte, estava em Bonn, que era então a capital da Alemanha Ocidental. Cidade pequena, quieta, nada lembrando as capitais que eu conhecia.

O Ministro era o Conde Lambsdorff, sério, evangéli-co, intolerante. Num texto de ficção, ou num filme de Hollywood, usaria monóculo - era exatamente esse o seu estilo, se a moda ainda comportasse. Não era um homem particularmente alto, mas conseguia olhar todo mundo de cima, com um ar de longínqua des-crença (Von himmel hoch, lembrou-me, dos corais de Bach BWV 606). Mais suave, embora não menos distante, era o Presidente do Conselho do Dresdner Bank, Hans Friderichs, presente à reunião e dizendo-se muito interessado no Brasil. Com eles, vinte ou mais funcionários e empresários alemães.

Pois, do alto dos céus, o Conde desferiu um raio. O que o Brasil precisava, antes de tudo, era acabar com a corrupção. O rato da corrupção rói as entranhas do Estado, e o capital, especialmente o capital alemão,

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não sabe viver com essa cloaca tão típica dos países não desenvolvidos. Podíamos ter certeza que a cola-boração do Governo e da empresa alemã só iria real-mente acontecer em cheio, se erradicássemos essa mancha da alma brasileira.

Perfeito para a hora do charuto, depois de um longo jantar de porco e cerveja. Absurdo para o início de uma reunião bilateral, sem nenhum escândalo nem rumor na agenda; mau início de uma conversa que se pretendia amigável e construtiva. Meu sangue ferveu. Pedi permissão ao Embaixador Batalha, a meu lado para responder na lata. Contra-parente de meu com-padre, violinista conhecido, o embaixador sussurrou: que eu fosse em frente, já que não era diplomata.

Sete anos de colégio alemão tinham-me preparado para o instante. Não pela língua, pois o protocolo pe-dia traduções, mas pelo conhecimento etnográfico. O momento merecia resposta igual e reversa. No estô-mago.

E fui falando das perversões das empresas alemães que constroem seu fluxo de comércio de jeito a não pagar imposto no Brasil - na época não havia os me-canismos de reprimir a transferência de preços, pela qual as importações caras e exportações baratas eli-minam o lucro das subsidiárias. O planejamento fiscal não desculparia a imoralidade de não contribuir com as necessidades do povo brasileiro, pagando imposto. Falei da polidez de eleger, no contato dos povos, o que de melhor cada um podia contribuir, como no caso da Alemanha, o tributo a Bach e a Goethe, es-quecendo as máculas de um passado mais recente. E que, como servidor do Governo Brasileiro, eu tinha

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orgulho e honra do meu ofício, e desconhecia as ra-zões pelas quais o senhor conde tinha começado o dia com esse tema.

O embaixador, sério e sem olhar para mim, ia me conduzindo com tapinhas de incentivo e pressões de freio sob a mesa. Senti como se fosse um huskie pu-xando trenó. Acabei num silêncio. Longo. Então al-guém começou a recitar estatísticas.

De noite, na Embaixada (que, tão pequena era Bonn, ficava numa cidade vizinha) houve festa. Depois de quatro semanas sozinho e Genebra, foi o prazer en-contrar três colegas de turma da Faculdade - todos que tinham escolhido a carreira diplomática. Tinham ouvido do meu destampatório, e não parecia que tinha sido coisa nada ruim. No fim do jantar, Hans Frideri-chs, do Dresdner, recebeu uma condecoração brasilei-ra.

Nos anos seguintes, a fúria com o Conde Lambsdorff não abateu. Piorava até, quando sabia de casos que davam razão a sua arrogância. Em 1982, porém, uma notícia no Le Monde Diplomatique contava da derro-cada do Conde. Envolvido num episódio feiíssimo de corrupção, fora derrubado do cargo e estava respon-dendo processo crime. Era o chamado Escândalo Flick 2.

2 Como explica o texto do American Institute of Contemporary German Studies da John Hopkins University: “By letting donations pass through the secret channels of organizations like the SV, the party leadership avoided heavy tax payments and kept substantial parts of its financial resources hidden from political adversaries within the CDU, as well as from opposing parties like the SPD. As party president since 1973, Helmut Kohl had been accused of fostering the system of secret funds

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Hans Friderichs, do Dresdner, tinha pedido incentivos fiscais e, quando o Conde concedera, retribuíra o ca-valheirismo com imensas contribuições à sua campa-nha eleitoral 3. Er, die Schläge bügeln, mit Eisen wird angeschlagen.

A tecnologia a serviço da perfeição

Em 1984, o mecanismo da licença compulsória de patentes por falta de uso do titular foi usado pela pri-meira vez no Brasil. Recaindo sobre um produto quí-

but denied knowing about it when questioned by a Bundestag investiga-tion committee (Untersuchungsausschuß). A number of second rank party officials – like Walther Leisler Kiep, CDU treasurer at the time, Otto Graf Lambsdorff, F.D.P. economics minister, and Flick-manager Eberhard von Brauchitsch – were convicted for tax evasion and paid heavy fines.” Vide http://www.aicgs.org/at-issue/CDUAffair.shtml , visitado em 15/03/04. 3 Die eingängigste Parallele ist die zum Vorstandssprecher der Dresdner Bank Hans Friderichs, der sich in den achtziger Jahren vor Gericht zu verantworten hatte. Friderichs, unter dessen Leitung die Bank 1982 mit einer Milliarde Mark Betriebsgewinn wieder an das Ertragsniveau des guten Bankjahres 1975 angeschlossen hatte, bekam 1983 seinen Vertrag für weitere fünf Jahre verlängert. Das war bereits während der laufen-den Ermittlungen der Staatsanwaltschaft in der sogenannten Flick-Parteispendenaffäre. Zehn Jahre zuvor, also Mitte der siebziger Jahre, hatte der Flick-Konzern Daimler-Benz-Aktien im Wert von 2 Milliar-den Mark verkauft und diesen Erlös reinvestiert. Für die Wiederanlage beantragte das Unternehmen beim Bundeswirtschaftsministerium Steu-erbefreiung. Die Anträge wurden als "volkswirtschaftlich besonders förderungswürdig" genehmigt. Zur gleichen Zeit erhielt die damalige Regierungspartei FDP über ihre Wirtschaftsminister Otto Graf Lambs-dorff und Hans Friderichs großzügige Spenden. Die Staatsanwaltschaft ermittelte wegen des Verdachts der Bestechung und der Steuerhinter-ziehung.” Vide http://www.faz.net/s/RubEC1ACFE1EE274C81BCD3621EF555C83C/Doc~EBE1C934DC5DE4D51950892F5D0D9FC40~ATpl~Ecommon~Scontent.html , visitado em 15/03/04.

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mico importantíssimo de grande emprego geral, o episódio ganhou projeção internacional imediata.

Solicitada a licença por uma empresa nacional, o IN-PI deferiu o pedido sem que a dona da patente se opu-sesse. Depois, no entanto uma saraivada de ações judiciais de todos os lados foi detonada, mas a licença permaneceu intacta. Em outubro de 1984, o Congres-so Americano chegou a se manifestar sobre a questão num voto específico. Medida da importância da coisa.

Mas a história acontece no meio da guerra, quando chovem raios e nevam trovões. Um vice-presidente da subsidiária da dona da patente começa a circular em torno dos dois advogados encarregados do caso. Es-colados, bem avisados do clima, tomam todos os cuidados do bom senso. O executivo da multinacional tinha o exato porte e aparência daqueles fenícios do Asterix, e vinha mesmo das regiões do Levante – so-taque e tudo.

Por bom tempo, o fenício vinha acompanhado dos seus (aliás, excelentes) advogados. Um dia, porém, quando a situação para o seu lado começava a prete-jar, veio o convite: uma conversinha after hours, quem sabe com a assistência jurídica de um whisky on the rocks. Um dos dois advogados do Governo era uma moça, e o convite (a ela...) podia ficar na exata fronteira do interesse pessoal.

Mas pensou-se muito. Recusar o convite conotando o aspecto romântico era simples, mas o ar não era de sedução pessoal. O consenso administrativo era de que se devia dar corda. Longa. Aceitou-se o convite, mas na repartição. Qual o scotch de preferência do fenício?

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Telefonemas urgentes a Brasília, e veio a autorização. O ínclito Serviço ia grampear tudo. E durante toda tarde, fiozinhos e aparelhinhos foram instalados. Se houvesse luz além de som, teríamos uma árvore de natal em maio.

Mas SNI era serviço público como qualquer outro. A verba acabara – para comprar fita cassete. Isso, dou-tor, tem de arranjar. Por isso não seja: o contínuo foi comprar na esquina, com dinheiro meu, tudo que o Orçamento da União carecia.

E vem a noitinha. A repartição esvazia. Pontual e amável em sua camuflagem de bom moço, chega o fenício. Senta. Fala do tempo. Discute filmes. A gar-rafa de whisky começa a ser acariciada. A conversa vai lenta e suavemente deslizando para as inclemên-cias da vida pública. Até se espanta que se possa ter uma garrafa tão boa, com o que pagam aos funcioná-rios. Alias, é coisa mesmo de todo Governo deixar coisas tão, mas tão importantes nas mãos de quem recebe tão pouco.

Neste momento há um toc-toc na porta. O contínuo, aflito, uma flor de tão prestativo, põe a cabeça pela porta entreaberta: “- Doutor, está gravando bem?”.

Mateus, 4:9.

Sempre me intrigou a história da tentação no deserto. “Todos os reinos do mundo, e a glória deles; e disse-lhe: Tudo isto te darei”. Como a oferta, de quem ob-viamente não dispunha o oferecido? Um dia, no fun-do de uma gruta, sob um convento grego da ilha de Patmos, pertinho da costa turca, encontrei a resposta:

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a primeira Epístola de João, 2:15. Quem oferecia era o Príncipe do Mundo.

Pois o deputado parecia exatamente um príncipe em toda sua munificência. No Florentino de Brasília, almoço de sala cheio, eu e um colega, titular de uma autarquia, convidados pelo parlamentar sob uma a-genda obscura. Aliás, um príncipe da obscuridade. Avisado, o Ministro fizera um risinho de quem co-nhece o mundo e as pessoas e mandara: “vão sim, depois me contem”.

Os obumbramentos dele começavam (dizia-se) por uma expulsão das forças armadas. Montado nessa glória, que no tempo podia soar bem no eleitorado, ele se fizera deputado pela oposição, sem cuidar de explicar as razões do convite a se retirar de sua Força. Dois anos depois de nossa história, ganharia outro convite, agora dos novos colegas, para se retirar do Congresso. O TCU adoçaria o bilhetinho azul com uma continha de uns trinta milhões de dólares de ca-fezinho, água mineral e outras coisinhas não pagas. Mas isso tudo era futuro.

No almoço, já no couvert¸ o deputado foi franco e direto. Teríamos tanto para resolver tal e tal proble-ma. Na mesa vizinha, espaço de meio metro, ao al-cance da audição apesar da brouhaha do restaurante, estava o Ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer. Atrás de mim, em outra mesa, um velho co-nhecido, o secretário–executivo da Previdência. O príncipe da escuridão não tinha medo de nada.

A ousadia era tanta, que entendeu o silêncio borbu-lhante de raiva como momento de barganha. Ofereceu mais: se o montante era impróprio, então ele garantia

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dez mil votos para quem quer que nós gostássemos de eleger. Exatamente como se dispusesse de toda a gló-ria eleitoral do mundo.

Meu colega levantou da mesa derrubando a cadeira no chão. Mais pesado, demorei um mícron a seguir. Aproveitei para reerguer a cadeira: já havia gente olhando para nós. Do lado de fora, antes de entrar no táxi, meu colega uivou: “puuuuuuuto!”.

Passa-se ano e pouco. Meu ministro morre, vem o seu sucessor para a posse. Com o novo titular, peixe pilo-to na solenidade de transmissão, o príncipe. Cintilan-te, furta-cor antes de furtar outras coisas em seu novo instante de poder.

Pensando nos dias de nevoeiro que viriam, corri para o avião que me levaria ao Rio e a um novo cargo pú-blico, conseguido por concurso e à prova das oscila-ções da política, Do meio do corredor, veio o magnata das trevas. Um monte de papel na mão. Cara de quem enfim ia pegar esse insolente que recusara as benesses que pretendia outorgar. Cara de quem, no fim, sempre vence. “Denis, pega essa papelada e tira duas cópias para mim, já”.

Gostoso o momento. “Deputado, pega essa resma e...” – fui geograficamente até o fim. Peguei o elevador e deixei, naquele instante, o serviço jurídico da União.

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Outros Músicos

Villa

Villa Lobos era uma presença cotidiana. Minha mãe falava dele, que a contratara aos dezesseis anos em 1930 para a Prefeitura, sempre com o respeito pelo colega genial, mas num tom de quem se refere a um moleque. Nunca o perdoara pelo abandono da mulher de direito, como ela professora do Serviço de Educa-ção Musical e Artística do Distrito Federal, em favor de outra pessoa, menos capaz como musicista. Mas no fundo, muito orgulho pelo conterrâneo. Quarenta e sete anos após sua morte, o seu retrato autografado permanece na parede de minha mãe.

Eu o vi uma vez só, quando ia passeando pela mão de D. Cacilda, na Rua Graça Aranha – em frente ao Clu-be Ginástico Português, onde ele costumava almoçar todo dia. Para mim, enorme, pela fama e pela aura, maior ainda pela bengala. A maestrina e o Maestro ficaram de conversa uns minutos, sem pressa.

Eis que vem alguém conhecido: nosso vizinho do andar de cima, com seus óculos sem aro e seu bico de pardal. Manuel Bandeira. Toca no ombro do Villa, e pergunta: “- Com o que?”. “Com ovos”, é a resposta. Bandeira sorri e vai continuando o passeio. Villa ex-plica: “estávamos almoçando e trocando receitas ou-tro dia, veio um chato e cortou nossa conversa...”

Um dia, os dois tinham se juntado para cometer uma das mais horrendas músicas da cultura brasileira. A

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melodia é inominável; a cumplicidade de Bandeira foi assim:

Amigo, seja bem vindo, a casa é sua, não faça ce-rimônia. Vá pedindo, vá mandando, seja seu tudo que tenho de meu, e mais a divina graça. Amigo seja bem vindo!!!!!

Tom

Poço Fundo, distrito de S. José do Rio Preto, era um feudo dos Brasileiro de Almeida. Dos meus padrinhos de casamento Heloísa e Marcelo Brasileiro de Almei-da Madeira, do seu primo também músico Antonio Brasileiro de Almeida Jobim, e de vários outros jo-bins.

Marcelo e Heloísa tinham comprado uma fazendola de cento e tantos anos, pequena, acolhedora, ainda com todo madeirame antigo. No telhado, Marcelo deixava madeira secando para fazer instrumentos – cornettos, tentativas de flauta doce, serpentões que até tocavam mesmo. Às tardes todas, o torno enorme, sofisticado a mais não poder, ia mugindo a bocca chiusa enquanto Marcelo dava feição aos instrumen-tos que, quando a luz do dia acabava, ele vinha tocar comigo. Isso, quando davam certo.

Quando voltei de Nova York em 1981, trouxe um teclado pequeno, mas, nos tempos, coisa nova e curi-osa. Num daqueles fins de tarde, estávamos Marcelo, Heloísa e eu, o teclado fingindo cravo, para fazer um pouco do livro de Ana Magdalena Bach. Tom Jobim enfia a cara pela porta aberta e avisa que “queria tam-bém”.

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Ele se senta, olha desconfiado a engenhoca, como se fosse um coleóptero novo, testa os sons de tudo que a Yamaha tinha embutido no instrumento, e escolhe ...sapos. Saiu a primeira das invenções a duas vozes de Bach. Coaxando.

A casa de Heloísa e Marcelo ficava do lado de cá da estrada; do lado de lá fica o rio. Tom tinha uma casa de madeira, pendurada na beira d’água, dormia no som do marulho (quem sabe, riulho?). Mas cismou de fazer outra casa, morro acima, numa linha reta con-tando de seu quase-barco para os altos. Aplainou o terreno. Fez planos.

Num dia de março eu e Danusia Barbara íamos pas-seando pelo feudo familiar. Chovia muito há dois dias, e a estiada parecia frágil. Tom descia pela estra-da enlameada, vindo dos altos de sua casa futura. Pa-pel na mão, vinha escorregando preguiçoso. Pediu opinião. Que achávamos do “É madeira de vento, tombo da ribanceira... é o mistério profundo”.

Danusia falou de Drummond. Tom ouviu, com jeito de quem não queria comparação, mas espanto. E fo-mos ouvindo a letra ainda incompleta que falava da-queles dias, daqueles tocos, daquela estradinha cheia de lama, de lama, de lama, do projeto da casa, do Jo-ão filho do Marcelo, do fundo do poço de Poço Fun-do.

E as águas de março continuaram a chover direto mais três dias.

Nelson Freire

Conheci Nelson Freire na casa de Jacó Herzog. Quie-to e muito duende, um saci falsamente tímido. Che-

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gou do Caribe uma noite, direto do avião para o jantar no Jacó, depois de uma quinzena de fazer coisa ne-nhuma, a léguas de qualquer piano. Antonio Guedes Barbosa, pianista como ele, mais extrovertido e mais instável, não agüentou a calma. “Nelson, você tem concerto amanhã, não estudou nada”. Nelson sentou no piano, cara de saci, e tocou, duas vezes mais rápi-do do que o tempo da partitura, o concerto do dia se-guinte. Sem perder um dedo, uma dinâmica, uma suti-leza. Antonio urrava com a injustiça da vida.

Parece que a concentração total, mas brincalhona, que Nelson tem na sua música às vezes vai contra ele. Estava tocando com a Filarmônica de Viena e Zubin Mehta. Um concerto de Mozart em que se tem uma longa improvisação do pianista (chama-se "cadên-cia"). Hoje em dia, os pianistas apenas decoram im-provisações feitas por outros. Não o Nelson. Pois em-barca ele na cadência, e se perde. Vai longe. Esquece o tom ao qual deveria voltar. Zubin esperando. Mãos cruzadas sobre a batuta, e um sorriso de safadeza crescendo. "Esse aí vai se foder por inteiro". Passa o tempo, e Nelson desesperado. Zubin, que podia sus-surrar uma dica do tom, quieto. Quando já está quase mijando nas calças de desespero (a expressão é do Nelson) consegue voltar ao tom, entra num longo trilo para ir acertando os arpejos, e o Zubin com cara de Mefistófeles fala para toda a orquestra ouvir: "Wel-come Home!"

Dezessete minutos

Ravel discutiu com Toscanini, depois de um concerto, reclamando da rapidez da execução que o maestro infligira a seu Boléro. Ele deve durar dezessete minu-

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tos, não mais nem menos (a mulher de Ravel confes-sou que era o tempo dele na cama...). Toscanini se defendeu dizendo que, nesse tempo lento, a peça fica-va insuportável. Ravel respondeu na lata: “mas minha intenção é que seja mesmo insuportável”.

Pois Chico Batera voltou ao Brasil depois de anos de Sergio Mendes, decidido a ser sério. Chegava de bos-sa nova enlatada para americano ouvir. Depois de gravar com Michel Legrand, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Elis Regina, Quincy Jones, Tom Jobim, João Gilberto, música popular não tinha mais graça. Foi dar aulas na Pro Arte, com uma clientela crescente. Resolveu fazer concurso para a Orquestra Sinfônica Brasileira, que procurava percussionistas. Queria usar casaca no trabalho.

A questão é que, no concurso, a peça de confronto (a que todos concorrentes devem tocar, além do que escolherem mostrar) era o Bolero. Dezessete minutos de total controle de mão e pulso, na precisão absoluta daquele ta-ta-ta-ta, ta ta, ta ta que entra pelo ouvido até o fundo da medula, e depois desce. Ravel fazia isso com dois tamborins, mas a OSB usava caixa-clara, que é uma coisa inventada para alucinar um batalhão em marcha, até o ponto que os soldados pre-firam morrer de tiro a continuar com o barulho.

Chico começou a treinar em casa. Era pouco. Acos-tumado à variedade, aos solos, à criação de batidas no universo do sincopado, aquela série absolutamente precisa era uma dificuldade inacreditável. Passou a ensaiar também na Pro Arte, enquanto um aluno não vinha, depois do expediente, emendando dezessete minutos a outros dezessete, sem parar. Nas proximi-

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dades do concurso, imergiu no estudo. Dispensou os alunos. Atrás da porta fechada de sua sala, repetia catatonicamente o ta-ta-ta-ta, ta ta, ta ta..........

Dois dias seguidos durou o estudo final. A escola, numa pequena casa da Rua Sebastião de Lacerda, em Laranjeiras, parecia fremir ao ritmo de Ravel. As Ca-sas Casadas, vizinhas, tremiam e pateavam no ritmo. As luzes dos postes começaram a tremelicar acompa-nhando as baquetas. E lá ia Chico Batera.

Lá pelas cinco da tarde no segundo dia, Elza Schach-ter entrou de pé na porta trancada. Pequenina, delica-da, professora de piano de mocinhas esperançosas, dava aula na sala em frente. Era do tipo que conver-sava com planta e convencia gato a sair de poltrona só com murmúrio. Pois Elza rebentou o fecho, veio ui-vando um “fora!”, e começou a arremessar a bateria do Chico pela janela. Para o bem de todos, a sala era no andar térreo.

Chico não ousou abrir a boca. Rápido, calado, ele mesmo se jogou pela janela, recolheu seus cacos, e saiu para nunca mais voltar. Acabou a música clássi-ca.

Karabitchevsky

Marcelo Madeira entrou pela porta do meu quarto umas sete e meia da manhã. Dormindo, sem óculos, não entendi nada. Marcelo discreto, mas firme. Acor-da, que temos concerto agora. Como é que ele entrou sem chave na minha casa?

Danusia e o coelho Rudá. A porta aberta da cozinha, dando para o quintal. Marcelo não é de explicar mui-to. Tinha se esquecido de avisar, mas tínhamos con-

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certo agora com a Orquestra Sinfônica Brasileira, no João Caetano. Marcelo, concerto de que? Bach, o quarto de Brandemburgo. Mas – sem ensaio? À pri-meira vista?

Havia uma desculpa – era o Música nas Escolas, e na platéia só haveria estudante de escola pública. Senti como se fosse meu Pearl Harbor pessoal, com todos os naufrágios. Serve só para as memórias.

Mas Karabitchevsky amou. “Vigoroso, vivo”. Na verdade, troncho e ofegante, estilo será-que-chego-no-fim-do-compasso? Ria para nós durante o Andan-te, as duas flautas doces se acertando no meio do sus-to, como se fossemos patos voando para a Groenlân-dia por engano. Nos allegri, atochava na velocidade, se divertindo com minha cara de dor. Colocou-nos na série completa das escolas, alguns anos seguidos, e no Ciclo Bach.

Na Cecília Meirelles, o maestro nos dava tratamento de gala: casacas e um ensaio de dez minutos. Rebo-cou-nos ao camarim (desta vez, meu parceiro era Homero de Magalhães filho, hoje maestro em Paris), para mostrar de onde copiava sua interpretação – de Karl Richter. Para o povo de música antiga, era como fazer chorinho com a banda do Oktober Fest.

O dia dele chegaria. Em 1975, no Festival Internacio-nal de Curitiba. Isaac, que adorava a praça pública, criou, durante o festival, um concerto no meio do calçadão da rua central, toda tarde. Um dia, nosso turno de deliciar as massas, Karabitchevsky apareceu de oboé debaixo do braço. Desta vez queria tocar. Salivamos de antegozo. Tirei do fundo da mala um

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concerto em trio de Vivaldi, flauta doce, oboé e fago-te – o em sol maior, RV 103. Lindo.

Isaac afinou, olhou a partitura, e – zaz! Não demos tempo nem para ele tomar ar. Aqueles fogos de artifí-cio de puro aparato, tão inacreditavelmente eficazes, que Vivaldi sabe fazer. O maior de todos os farsantes. Para o público, encantamento; para o músico, dedos e língua para todo lado.

Karabitchevisky fungava, sem tempo nem de respirar. Suava caudalosamente. Estava morrendo de saudades da batuta. O oboé grasnava feito pato. No presto final, comia semicolcheias às mancheias, certo que ia ficar com gases. Roxo.

Nas palmas, Isaac nem se levantou. Turvo. Odioso. Eu e o fagotista, Ricardo Rappaport, enchemos o ma-estro de tapinhas de incentivo. Vigoroso, vivo!.

Aírton Barbosa

A TV Continental, canal 9, Ficava na Rua das Laran-jeiras, onde hoje funciona uma revendedora de auto-móveis. Decrépita, caquética, os iluminadores traziam e levavam as lâmpadas de casa. Uma câmara só. No banheiro não tinha nem água, cortada por falta de pagamento.

Mas era lá que Aírton Barbosa, fundador do Quinteto Villa Lobos - tão cedo foi ele de uma vida talentosa -, tinha um programa vespertino de música clássica. Ou melhor – de jazz. Era improviso de começo ao fim. Lógico que ao vivo, e sempre no susto.

Bom que era a dois passos da Pró Arte. Tarde de quinta feira, principalmente chovendo e com pouco

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aluno, o gostoso era ver se Aírton tinha um lugarzi-nho para tocar nas ondas hertzianas, com a delícia de seu fagote habilidoso e sensível, perfeito na leitura à primeira vista.

Um dia dos de temporal, Aírton, meu compadre Flá-vio Aprigliano e eu tínhamos anunciado um programa de Sammartini, divertimento grande para duas flautas e o baixo contínuo em fagote. O locutor, magro, mal vestido, faz o preâmbulo, o iluminador tira a lâmpada do bolso e coloca no holofote, e eu começo a tossir como um condenado. Era a chuva toda que eu pegara.

Simpatia, água morna, nada cura a tosse. O locutor, aterrado, alonga o início que não se encaixa em nada. Vem alguém com um xarope líquido. Uma colher. Duas. Vira a porra do vidro todo. E lá entramos no ar do jeito que dava.

Deu. Nada de tosse. No meio da segunda sonata, no largo ma non pesante, começamos eu e Flávio a im-provisar, como o estilo do barroco italiano exige. Mas saiu uma vontade funda de fazer um jazzinho. Um pouco be-bop. Flávio acompanhou, de surpresa. Afi-nal, na audiência da TV Continental na tarde de quin-ta tempestuosa não havia nem mamãe. Cheio de dis-sonâncias estranhíssimas. Aírton Barbosa me olhou atravessado.

Mas a tarde estava maravilhosa. Que alegria em to-car! Giuseppe Sammartini, o autor das sonatas, que antes sempre eu achara chatinho, estava tão talentoso, tão inteligente. Lindo mais que tudo, o relógio verde do estúdio, agora com a cor de um lado, globo flutu-ante no espaço, e o quadrante de outro, sem cor algu-ma, só máquina.

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“Beladona”, descobriu meu pai, que veio me recolher hora e meia depois. Uma dose cavalar no xarope.. Completamente dopado, eu continuava longe. Aírton acabara o programa fazia tempo, e eu continuava to-cando em pleno séc. XVIII.

Francisco Mignone

Eram os anos 30’e lugar de mulher era na cozinha. Nem isso, pois “a cozinha”, entre os músicos, é o naipe da percussão, e seguramente nenhuma mulher seria admitida numa orquestra para tocar prato e tím-pano.

Mas Dona Cacilda estava se formando maestrina pela Escola Nacional de Música, e na banca se sentava o já famoso Francisco Mignone. Com outras duas colegas na turma dos alunos de Francisco Braga, o composi-tor do Hino da Bandeira, mamãe ia se somando às poucas mulheres que completavam curso superior num país sem universidades. Com o agravante de ser curso de comando: o trabalho do maestro era dirigir uma centena ou mais de homens – e isso em público.

Mignone, voluntarioso e alto, tinha de engolir a força as mudanças da sociedade, mas resistia como pudes-se. O que podia, no caso da mamãe, era objetar aos um metro e quarenta e cinco centímetros da Dona Cacilda. Os pequeninos não tinham entrada no reino dos céus, ou pelo menos no Olímpio do podium. Re-provada por estatura.

Mignone não contava com a ferocidade da nova ma-estrina. Fora imolação em gasolina, todos os protestos individuais e coletivos aconteceram, até que a con-gregação superasse o veto dimensional de Mignone.

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Nas décadas em que ela regeu orquestra, coro ou ban-da, Mignone jamais figurou no programa – “é um compositor grande demais para minha batuta”.

Desde criança, me acostumei a ver, no podium de mamãe, um caixotinho extra. Quando, no Campo do Vasco, teve a incumbência de dirigir trinta mil pesso-as, orquestras e bandas tudo junto, num coro escolar ciclópico como aqueles que Villa Lobos regia, quan-do ocupava o cargo que passara a ser dela, veio tro-tando atrás da maestrina um contínuo de caixote em punho. Cacilda galgou podium e caixote, na agilidade de preá que tinha, e dominou as massas com a minús-cula intensidade de uma Rainha Mabe.

Anos depois, na passagem de governo municipal en-tre o Prefeito Marcelo Alencar e César Maia, o mestre da banda da cidade veio chorar no meu ombro. Tinha que reger no gramado, e, sem podium, ninguém da banda o veria. O mestre era pequenino, mas nada comparável a minha mãe.

Mandei um garçom catar um caixote de cerveja nas cozinhas do Palácio da Cidade, e o novo prefeito to-mou posse sob os sons de Cidade Maravilhosa, o hino carioca, sob auspícios da Brahma e de Francisco Mig-none.

Almeida Prado

Sempre de terno, paulista medular, Almeida Prado teve a suprema desdita de ter de dividir um quarto de hotel comigo, no Festival Internacional de Curitiba de 1975. Sofria, discreto mas insone, meu ronco no quar-to ao lado.

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Mas tomou-se de amores pela flauta doce. Ouvindo meus estudos para os concertos de cada dia, aprendeu timbre e extensão, e acabou compondo um quarteto para flauta doce. Seria estreado ali mesmo, com Eli-zabeth Seraphim Presser, Homero de Magalhães Fi-lho, Helder Parente – e eu, na flauta baixo.

Para quem nunca viu o instrumento, a flauta tem um metro e pouco de tamanho, e parece um pequeno fa-gote, principalmente pelo longo bocal tubular que vai do topo da flauta até os lábios do músico. A flauta baixo Küng, suíça, tem na extremidade de cima uma tampinha, como todo o instrumento, de madeira cla-ra, mas pesada. Uns cem gramas de tampa.

Ligeiramente dodecafônica, a peça de Almeida Prado explorava tudo que um quarteto de flautas doces pode dar: sons, ruídos e murmúrios. No último compasso, o autor pôs um signo que, em quinze anos de música antiga, eu nunca vira. Explicou: vocês quatro toquem aí, para encerrar a peça, a nota mais aguda e mais em fortíssimo que o instrumento conseguir.

Foi no Paiol, teatro circular de Curitiba, bom pela acústica meio de igreja, e capaz de umas cento e pou-cas pessoas. Para nós, os músicos, enfrentar peça no-va, contemporânea, estréia mundial, era um fascínio. O público, meio espantado com uma música nunca dantes soprada em nossos instrumentos de duzentos anos de idade. Todo mundo, flautistas e platéia, car-regados pelo fluxo de som estranho e poderoso.

No acorde final, então, o entusiasmo explodiu. Lite-ralmente: soprando com tudo que eu tinha para chegar na nota que Almeida Prado queria, a tampa catapultou no espaço. O petardo subiu, fez ogiva no pé direito

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altíssimo, e desceu mortalmente. Só uma deusa grega do Acaso poderia explicar como é que dentre centena e tanto de platéia, a tampa foi cair na cabeça do com-positor.

Almeida Prado, com o galo subindo na testa e o rosto em fogo, ascendeu ao palco, recolheu as partituras, e nunca mais pudemos tocar o Quarteto de Curitiba para Flautas Doces.

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Políticas

Os encantamentos nos anos 60’ eram monásticos. Por isso mesmo, o fim da infância, a adolescência toda, o vestibular e um naquinho da Faculdade, passados juntos nos vários enredamentos do carinho e da ami-zade. Lá pelo segundo ano de Direito, cada um em sua Faculdade diferente, a encontro na porta do Fó-rum. Ela, com seu caderninho de estagiária, eu com o meu.

“Vamos estudar hoje Bukharin, não quer vir?”. Não queria. Meu xodó era Althusser e todos os estrutura-lismos. Era Godelier, até um pouquinho de Régis De-bray para o folclore. Mas não ia nas profundezas em que ela transitava.

Foi então que ela sumiu. Naqueles tempos, ninguém temia seqüestro de bandido, mas do outro lado. Ouvi no ares que era isso, e me contorci de culpa e medo. Minha enamorada fora para os fundos da ditadura.

Mês e pouco depois a reencontro. Quieta. Abracei, que era tudo que a timidez e os tempos deixavam. Ela sussurou: eles me tiraram. Eu sabia o que.

Glauber

Era o ano seguinte do Golpe Militar, mas ainda não mostrara as garras. Pacificamente, meu grupo escotei-ro saiu, de ônibus e do que dava, para subir o Pico da Bandeira, que até há pouco era tido pelo mais alto do Brasil. No sopé da subida, a cidade de Caparaó, e mais perto ainda, o vilarejo de Caparaó Velho.

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Um rua só, comprida e de barro; quatorze igrejas de tudo que é convicção. E um povo quieto e pouco curioso. Chegando no fim do dia, de uma viagem longa pelo interior de Minas, tínhamos que ficar em algum canto para começar a subida no dia seguinte, cedo. Conseguimos um par de mulas, um guia, tudo acertado para a madrugada. Havia uma sombra de Governo só em Caparaó Velho: o guarda florestal. E na sua casa, num chão de tábuas carcomidas de tão velhas, estiramos os sacos de dormir.

Foi escurecendo. Nem sombra de eletricidade, a vila foi desaparecendo naturalmente na noite. Mas, pelas oito, algo começou a mudar. A venda em frente ati-çou o lampião. Gente a cavalo e a pé veio vindo pela rua, parecia que de longe. Homens de chapéu e pele-rines longas e pretas. O jeito exato do Antonio das Mortes no filme de Glauber – mas aquilo era a verda-de do sertão.

Apontou uma viola, canto de homem rouco e afinado. Os homens de capa preta fizeram roda, em silêncio. Perto de cem, talvez até mais. Mulher nenhuma a vista, terra de muita recolhida. Na luz distante do lampião da venda, um cenário espectral de ópera ex-pressionista.

Depois de muito tempo, começa o comício. O sono veio vindo, e não reconheci de que se falava. Uns tempos depois, a guerrilha de Caparaó nasceu por ali. Consta que foi uma sangueira só.

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Bueiro

Alguém disse: "aí vem eles". E, dobrando a esquina num meio galope preguiçoso, eles vieram. A passeata parou num instante de surpresa, e começou a se des-fazer pelas transversais. Quem havia trazido rolhas para desmontar a cavalaria recuava lentamente espa-lhando os cones de cortiça pelo asfalto. Nenhum ca-valariano caiu.

Comecei a descer a rua da Assembléia correndo o quanto podia. Os ventos traziam de longe o gás lacri-mogêneo e o estampido das bombas. Corria e lembra-va-me de um conto de Gorki: o povo em torno tio Palácio de Inverno, os cossacos em linha, atirando. Um cavalariano passou â frente e cortou minha fuga com a massa do animal.

Olhou-me rapidamente, escolheu um menino de terno e gravata a meu lado, desceu a folha do sabre com força: Um restaurante português, ali perto, onde eu costumava almoçar: era tomar a rua da direita. Cor-rendo ainda. Esta parte da cidade estava deserta, mas a porta do restaurante — e todas as portas — fecha-das. No meio da rua, um bueiro meio destampado. Entrei no esgoto.

A chapa de ferro pesou, fazendo meu corpo todo doer no esforço de trazê-la para o lugar. Fechada a tampa, a câmara ficou escuríssima, mas o cheiro, ali em bai-xo, não era tão ruim quanto esperava: era de limo, água retida em poça, ar viciado. Havia também a pungência do gás lacrimogêneo e fumaça de cigarro.

Havia o cigarro: via agora ponta acesa, a meia altura, no escuro. Meu companheiro tragou lentamente e, na

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luminosidade acrescida, pude ver que usava óculos. Tinha tido medo, e me tranqüilizei, com os óculos. Perguntou — era voz de mulher — se eu estivera também na passeata. Sussurrava, e não parecia nervo-sa.

Neste momento, ouvimos o ruído das patas no calça-mento, em cima; vinham a passo: não nos teriam vis-to. Afastaram-se. Ela ficou calada, alguns minutos, e depois me contou, falando ainda muito baixo, que a haviam levado para conhecer- os esgotos de Paris, quando criança. Ofereceu-me um cigarro; acendeu-o. Na chama do isqueiro era uma mulher bonita.

Sentei-me a seu lado — em uma manilha —e conver-samos. Por uns instantes, tentei reconhecer o espaço em que estava, tateando: encontrei registros, encana-mentos, limo numa parede de cimento úmido. Ela colocou sua mão sobre a minha, para mostrar o quan-to estava com frio: a pele era macia e animal

Saímos de lá quando já eram passadas as oito. Subi primeiro, ajudei-a; sem nosso esforço conjugado, ti-rando a tampa do lugar, não teríamos conseguido sair. As ruas estavam vazias, e de nosso bueiro até o ponto do ônibus não vimos nenhum policial: caminhamos de mãos dadas, para não parecer manifestantes. À luz da rua, ela era ainda uma mulher bonita.

Ao emergimos do esgoto, havia um padre velho, de batina, que parou para nos ver. Fiquei com medo que nos denunciasse.

Família

Há um lobby no Palais des Nations, em Genebra, ma-cio de curvas e amável de sofás. Bom de sentar e pro-

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sear enquanto as potestades da terra se acertam nos bastidores. Com os portugueses dedicados a serem europeus, apesar dos analfabetos sem hábito de tomar banho no Minho, o que sobra para o papo é o angola-no, escondido num canto. Boa gente, se fosse brasilei-ro seria de Uberaba ou Uberlândia, meio assim meio assado, não mais africano do que eu mesmo.

Falamos de vinho. A história era recente, coisas logo depois da independência, quando se decidiu parar com os Dão, os Alvarinho e os Setúbal que vinham de terrinha. Supridor único das coisas de comer e beber, o supermercado brasileiro (mas não muito) Pão de Açúcar trouxe vinho de garrafão, marca Mosteiro. Angola toda passou a beber a zurrapa. Um dia, Sarai-va Guerreiro, Ministro de Figueiredo, vai visitar Lu-anda. Desembarca do avião da Varig, e vê de longe o povo, carregando faixas e berrando. Sabia que não era de boas vindas, e pensou no governo militar de direita que deixara em casa. Mas nas faixas se lia: "Abaixo o Vinho Mosteiro!".

E a vida, num país dividido entre três ou mais fac-ções, muito dinheiro e muita miséria ao mesmo tem-po? Ele ia se virando. O empreguinho no Governo, de diretor de marcas e patentes, era bom, viajava às ve-zes, como agora. Mas e a guerra? Era antiga, primeiro contra Portugal, agora entre os grupos internos. Coisa corriqueira. Não tinha medo de alguma das facções tomar o poder? Ele mesmo não tinha. Pusera um filho na Unita, outro no MPLA, ele ficava ali no meio, e-quilibrando, quem subisse haveria de protegê-lo.

Era mesmo de Uberaba.

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Vila Morena

Conversávamos com o presidente da Associação In-ternacional de Sommeliers, que, em Portugal, dizem-se escanções. Um velho senhor de aspecto ainda mais antigo, terno formal e olhinhos brilhantes.

Tinha sido Ministro da Saúde no antigo regime de Marcelo Caetano. Passeara pelas colônias, aprovei-tando os últimos momentos do Império Português do Ultramar. Em Angola, recebido pelo Governador Ge-ral no antigo palácio do Séc. XVIII, chegou ao fim do banquete oficial sem grandes interesses. Mas, depois da comida, serviram-lhe um Madeira.

Inacreditável. O vinho mais fantástico de toda sua vida de vinhos fantásticos. O ministro tomou seu co-po, e recolheu, na mesa, os restos dos vizinhos. O governador percebeu, num homem tão fino, o que devia de ser o Madeira, para levá-lo ao absurdo da impolidez de beber restos.

Pois o levou aos porões do Palácio. Mostrou a parede derrubada fazia pouco. Do outro lado, tinham achado duas caixas de vinho Madeira, da qual vinha a garrafa servida. A data na caixa era dos tempo de D. Maria I. Datas em vinhos feitos em solera, como os Madeira, são um pouco imprecisas, mas nunca mais do que uns cinquenta anos para lá ou para cá. Era um tesouro de todo lado que se olhasse.

O governador tinha duas caixas, deu uma ao Ministro. Foi levada com unção e cuidado. Dez garrafas de pre-ciosidade insuperável.

Vem a Revolução dos Cravos. O Ministro, ainda no cargo, mas na sua quinta do interior, recebe telefone-

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ma da mulher: o Exército viera buscá-lo na casa ofi-cial em Lisboa. Iam catá-lo onde estivesse. O clima era de tanques na rua, quem sabe haveria fuzilamen-tos.

Sobravam oito garrafas. Era o Ministro e quatro fi-lhos. Desarrolharam todas. Entornaram todas, ma-mando o néctar do nunca-mais. Quando chegaram os tanques, o Ministro berrava urras à revolução, no mais sagrado porre da História, desde que Noé entrara bêbedo no Antigo Testamento.

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Century House, fundos.

Treze de dezembro, 1969.

O restaurante em Genebra era muito mais caro do que era bom. Como quase todos na cidade. Um dia, logo além da fronteira, em Divonne, perguntei a um padei-ro francês porque a bisnaga do outro lado era tão ru-im, comparado com o deslumbre dourado que ele assava. “- Ils sont des calvinistes”, foi a resposta. Mas o vinho aqui era bom: um Mouton Rotschild velho o suficiente para aposentar as tristezas.

Já meu companheiro de jantar era sibarita e abastado o suficiente para pedir outra garrafa. E um Beaume de Venice na sobremesa. E só assim, pairando em delí-cias, que se explica minha pergunta. “Dizem que você matou Leopoldo Goldennicht – é verdade?”. O sorriso na resposta deve ter sido fruto do Kirsch que vinha com o café.

Nada disso. Ele não matara ninguém. Quando avisa-ram que o AI-5 ia ser assinado, os sábios previram um impacto no câmbio. Saíra uma equipe do setor econômico do Serviço recolhendo uns operadores do mercado, para evitar uma fuga de dólares, e a infor-mação é que o tal do Goldennicht era o maior. Meu conviva, em pessoa, tinha ido buscar o banqueiro, e colocado numa sala do oitavo andar do velho prédio do Ministério da Fazenda na Rua Debret. Tinham que saber tudo sobre o mercado de câmbio – o interroga-tório prometia.

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Mas não houve interrogatório. Quando ele voltou à sala, com uma equipe da Receita, o banqueiro havia desaparecido, apesar da guarda da Polícia Federal na porta. Uma gritaria no pátio interno logo chamou a atenção: espalhado como uma estrela no chão, lá es-tava o corpo do banqueiro. Os homens da Polícia des-ceram pelas escadas correndo, mas o homem estava irremissivelmente morto.

A história do meu companheiro de Genebra continu-ou, em sua verossimilhança vinhosa. Quando ele ia saindo do Ministério da Fazenda no seu jipe militar, confuso e assustado com a morte de Goldennicht, um rapaz de motocicleta fez sinal para que parasse. Num sotaque carregado, de estrangeiro, o recado foi o se-guinte:

"-Não foi suicídio. O assunto é do Mossad, e não de vocês. Pode avisar aos outros”. E o motociclista su-miu no trânsito.

Os serviços irmãos

O cliente estava numa situação de desespero. Depois de anos desenvolvendo uma tecnologia indisponível para compra, e colocar o produto no mercado com dificuldade, tinha entrado no mercado um concorrente do Equador com preços devastadores. Mas como?

Dumping. Resposta padrão. Quando alguém quer ex-cluir os competidores do mercado, vende mais barato do que o custo. A gente corrige isso, pedindo que a Alfândega coloque uma tarifa suplementar sobre a importação, até corrigir o abuso. Simples.

Simples até aí. Provar a existência de dumping é outra coisa. É preciso determinar quais são os custos do

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fabricante, ou o preço que ele pratica no seu mercado, ou em terceiros mercados. É preciso convencer as autoridades brasileiras com sua prova. É preciso pas-sar por um processo longo, cheio de economistas e burocratas. É preciso se esgueirar entre os interesses comerciais do país para fazer valer seu interesse pes-soal. Trabalho complexo.

Os tempos eram anteriores à Internet. As pesquisas se faziam por modem e telefone internacional, em bases de dados no exterior. Mas aos poucos foi sendo pos-sível descobrir que, anos antes, uma determinada pa-tente fora licenciada para o Equador para o tal produ-to. Lendo a patente, os engenheiros destrincharam os insumos, as quantidades necessárias para cada peso do produto final. Um ex-colega de Columbia, advo-gando em Quito, nos deu a estrutura de custos traba-lhista e de impostos. A listagem dos produtos de ex-portação de portos americanos nos deu a quantidade adquirida e o preço dos produtos principais. Havia dumping mesmo.

Agora que eram elas. O Equador não era membro do GATT; e só havia previsão de dumping dentro do acordo internacional. A lei antitruste também falava em dumping¸, mas nunca tinha sido usada. E o povo que tinha de fazer cumprir a lei não quis nem saber do caso tão novo quanto obscuro. O cliente arfava e su-cumbia. Urgência!

Três juízes depois, sem conseguir absolutamente nada (dumping? Tesconjuro!), eu estava com a papelada debaixo do braço, passeando pelos corredores do Ita-marati, em Brasília. Muita simpatia, gentileza sem limites, gente interessada, mas com cara de desconso-

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lo. Deixa o documento. Entra com a cópia no proto-colo. As relações bilaterais com o Equador andavam estranhas. Difícil.

Por essas alturas, a nossa pesquisadora tinha ficado curiosa. Como uma fábrica do terceiro mundo, em-presa de capital nacional equatoriana, conseguia ven-der muito tempo por preço mais baixo do que o cus-to? Foi pesquisar de novo nas bases de dados de peri-ódicos o nome do insumo principal, e encontrou uma declaração do presidente do exportador no Senado americano, seguido de uma matéria no Christian Sci-ence Monitor, um jornal de Boston. Havia suspeitas que o produto exportado para a América do Sul esta-va sendo desviado para fabricação de coca. Os nossos engenheiros já tinham indicado que a importação do tal produto era muito, mas muito maior do que a ne-cessária para a produção da fábrica. Fechado o círcu-lo.

Pois os documentos que foram para o Itamarati dizi-am dessa nova descoberta. No tempo das tentativas anteriores, para os juízes e as autoridades antitruste, não havia esse dado. Uma semana depois, um amigo diplomata telefonou para me sugerir: mande a pape-lada para os homens de inteligência do governo. En-dereçasse para um colega dele servindo lá.

Mandei. Quinze dias depois, telefonaram da Secreta-ria de Assuntos Estratégicos. O Almirante Flores que-ria conversar. Intelectual, crítico, inteligente, o nosso chefe do serviço secreto era conhecido e famoso, mesmo nos tempos da redemocracia.

Tempos antes, já tinha defrontado o almirante numa questão judicial. Era homem de decisão. Cortante,

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preciso. Absoluto. Ele não se lembrava de mim, mas sim do caso. Parecia mais um imortal da Academia, vagamente aparentado com Papai Noel, do que um oficial das forças armadas. A sala no Planalto, mo-desta, poderia ser de um gerente de Recursos Huma-nos.

Espantou-se com o meu relatório. Como conseguira todos aqueles dados? Expliquei. Com um computa-dorzinho, ligado por modem no telefone internacio-nal. Qualquer um conseguiria, se tivesse sido treinado como engenheiro de patentes. E o custo? Pouco: a conta telefônica, a assinatura dos bancos de dados, a hora do pesquisador.

O almirante segurou meu braço. Ele achava impres-sionante. O pessoal dele não tinha essa sofisticação. Nem ele os poderes para resolver o caso. Mas a in-formação tinha sido levada “aos serviços irmãos”. Não prometia nada.

O dumping acabou de repente. Quem quiser pode imaginar toda a versão Paramount das operações es-peciais: helicópteros em rasante, fuzileiros camufla-dos descendo pelas cordas no meio da noite, explo-sões abafadas e clarões obscurecidos. Eu mesmo nun-ca ouvi falar de nada disso.

Mas o fim é inglório: logo depois, os chineses entra-ram no mercado a um preço ainda mais inexplicável, e meu cliente fechou as portas.

Pantera cor-de-rosa

Conheci a máquina em 1979, na Delegação do Brasil em Genebra, na Rue Carteret: dois monstrengos do tamanho de armários barrocos, verde-acinzentados.

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Era tudo mecânico como um relógio de cuco e tão antigo quanto os próprios cucos. Parecia as fotos da Turing Bombe, a máquina criptográfica inglesa dos anos 40´. Nunca cheguei próximo o suficiente para vê-la realmente funcionando: os monstros tinham sala própria e portas fechadas e só eram visíveis de relan-ce.

Não era o tempo ainda dos computadores pessoais. O mainframe da PUC do Rio, um Leviatan eletrônico posto entre os pilotis do térreo, era o único que eu conhecia. Logo depois imergi nos arcanos da infor-mática, mas, na época, em matéria de equipamento similar, só tinha intimidade com os pianos de cauda. Apesar disso, dava para sentir que as máquinas do Itamarati tinham um jeito de Dragões da Independên-cia da criptografia.

Os punhos-de-renda sabiam da deficiência. Desde 1975 havia gente trabalhando no Itamarati para criar uma alternativa nacional e moderna àquelas peças de museu. Dois anos depois a coisa ganhou nome: o pro-jeto Prólogo. Dizem que logo depois de assumir o Governo, João Figueiredo tinha tentado uma operação de café em Londres, e atribuiu o colossal insucesso às máquinas do Itamarati, cujo código era uma peneira de papel crepom. Daí em diante, o projeto foi tocado para frente como uma biga de corrida.

Em 1982, por razões insondáveis, um pedaço do pro-jeto estava operando em New Jersey. Funcionava como uma empresa comercial, comprando e expor-tando coisas muito especializadas. Tudo ia muito bem, não fosse pelo fato de ser tripulada por oficiais brasileiros, importados para New Jersey como adidos

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militares na Delegação do Brasil junto à ONU e no Consulado em Nova York.

Um dia, passou o leão americano e pediu as declara-ções de imposto de renda. Não tinham: eram possui-dores do excelso e rubro passaporte diplomático. Fo-ram diplomaticamente lembrados que adido militar não abre empresa comercial em New Jersey para comprar, montar e vender eletrônicos. Multados até a medula. Descobertos até as cuecas. James Bonds pe-gos como se fossem Al Capone. A Prólogo de New Jersey passou imediatamente a Posfácio.

Santo Inácio de Shangai

Miguel Osório de Almeida, o diplomata e economis-ta, dizia sempre que o médico e acadêmico de mesmo nome era seu tio. Amaral Peixoto, que foi seu chefe em Washington no tempo do Juscelino, o descreve como “homem muito inteligente e brigão”. Concordo com os dois ápodos, mas com os subordinados seu jeito de fazer briga era tão gentil, apesar de firme, que acabava sendo gostoso.

Qual a ideologia do embaixador? Difícil dizer. Com Rômulo de Almeida, Jesus Soares Pereira, Roberto Campos, Aluízio Afonso Campos, Cleantho de Paiva Leite e Oscar Lorenzo Fernandes, foi da equipe de planejamento econômico - desenvolvimentista - do Governo Vargas. Dizia-se que tinha sido ativo na consultoria econômica de Roberto Campos nos anos 60´, de quem realmente foi colega na renegociação da dívida no governo Jânio; mas a História indica que no primeiro dia de 1964 foi cumprir seu dever de avisar João Goulart, com San Tiago Dantas e Renato Ar-cher, da posição difícil do Governo em face do inte-

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resse financeiro americano. Eu o vi interromper um discurso terceiro-mundista do então Conselheiro A-demar Bahadian, da forma mais abrupta que se possa imaginar, mas depois teve a delicadeza de reunir a delegação e informar que o corte tinha sido pedido, pelo telefone, pelo Ministro do Planejamento Delfim Neto, direto de Washington.

Qualquer que fosse seu estilo de pensar, o que tenho certeza é de seu humor livre e vivo. A história é dele, com as imperfeições de uma memória de quase 25 anos.

Miguel Osório era Cônsul Geral em Hong Kong lá pelos anos 1975. Num tempo em que não se tinham embaixadas na China de Mao, o posto era importan-tíssimo. Política, econômica e estrategicamente. Um dia, chegam ao consulado uns jesuítas portugueses. Viviam no fundo do continente, na tarefa difícil e perigosa de atender os católicos locais em meio a um regime pouco religioso. Mas por que visitar o consu-lado brasileiro?

Eles tinham sempre ajudado a terrinha, com notícias e informações. Agora, a terrinha tinha ficado tão comu-nista quanto os chineses do lado. Como ajudar a sal-vá-la, senão continuando a mandar as notícias?

Essas coisas não se rejeitam nem se mandam embora. Perguntei ao embaixador - o que o Brasil poderia ga-nhar com essas coisas? Informação e ouro, disse o economista, tanto se consome quanto se troca. E o mercado, pelo visto, esquentou muito. Brasília se es-pantou pela riqueza dos tesouros jesuíticos, os tercei-ros interessados muito mais, e o consulado em Hong

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Kong começou a entrar na esfera da lenda. Causou ciúmes crescentes.

Em particular, em Tóquio. Posto lá, estava um velho conhecido de Miguel, famoso pela criatividade e espí-rito artístico. Tinha até feito os planos para um novo tanque para o Exército. E, para contracenar com os tenores de Hong Kong, passou a fazer um clipping dos jornais japoneses em tudo que falava sobre a Chi-na continental - mais, certamente, do que a imprensa internacional. Escolhendo exatamente o que não se falava no New York Times e no Frankfurter Zeitung, o colega de Tóquio atribuiu as novas a uma fonte obscura e romanesca.

Ali pertinho, porém, onde se liam os mesmos jornais japoneses, a cenografia não convenceu. A tal “fonte secreta” foi virando o grande motivo de diversão. Miguel lia e apostava: as “fontes” vão atacar. Um tempo depois, nosso homem em Tóquio resolveu visi-tar Hong Kong. Miguel acendeu-se de idéias.

Quando o avião chegou de Tóquio, o carro do consu-lado não estava à vista. O diplomata esperou, desa-pontou-se, e tomou um carro de um chinês, dos que se oferecem no aeroporto. No meio do caminho, entre as vielas intrincadas da ilha, o motorista parou. Virou-se para o passageiro. Apareceu com um inglês espanto-samente bom para quem, no aeroporto, só balbuciava. Que o diplomata tomasse cuidado. As brincadeiras dele como espião estavam desagradando gente muito perigosa. Era o primeiro e último aviso. Fez com que o brasileiro descesse do carro, e sumiu.

Um tempo depois, o homem de Tóquio chegou ao Consulado, carregando as malas. Tinha todos sinais

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possíveis do pavor que sentia. Miguel e os colegas (que tinham encenado tudo) representaram o papel de solicitude e espanto. Como esse mundo é perigoso! O recém vindo tomou o próximo avião de volta. As fon-tes secretas secaram imediatamente. Miguel Osório de Almeida ria, anos depois, da peça que pregara.

Westinghouse

A primeira usina nuclear brasileira, como muitos se lembram, foi fornecida pela Westinghouse. Outra igualzinha, mas com anos de retardo, estava sendo construída em Krsko, na Slovenia. O que se aprendia com uma, servia a outra. Mas como todas as informa-ções nessa área têm cara de sigilo, ninguém falava aos iugoslavos o que estávamos fazendo em Angra.

Ou falava? Rasto Makus, um funcionário iugoslavo com quem estive algumas vezes em reuniões da UNCTAD e jantou comigo uma vez em minha casa, achava que sim. Mais do que achava - tinha nomes e fatos. Eu custava a acreditar que houvesse informa-ções dignas de venda sobre Angra I, salvo os erros e enganos da fornecedora - afinal, eu era de Furnas, e o tempo em que eu efetivamente estivera na empresa, só tinha ouvido murmúrios e gemidos acerca da qua-lidade da usina.

Numa novela publicada em 1996, mas escrita muito antes, o momento da conversa com Makus (sob nome de Andeij) sobre Krsko (disfarçada de Ljubliak) está retratado assim:

Andreij continuava distraído com os gansos: "Tiens! La grande mère oie la bas, elle semble enragée, une vielle

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dame enragée". Não falei nada de Kretschmar ao iugoslavo; talvez por is-so Andreij tenha retomado o tema do projeto da usina nuclear de Ljubliak, "igualzinha à de Angra dos Reis"; ago-ra, sem a névoa, sua voz aguda e estri-dente parecia ir mais longe. Kretsch-mar escutava? Tinha escutado até ago-ra? O certo é que Andreij escolheu a-quele instante, ainda parado no mesmo lugar, para me passar um envelope a-marelo - e isso o alemão não podia deixar de ver.

- "Voila les papiers de ton ami brési-lien".

Meu amigo não era: não conhecia nin-guém que oferecesse os planos de ins-talação da primeira usina nuclear brasi-leira à venda, ou pelo menos pelos quinze mil dólares que Andreij havia mencionado. De tudo quanto sabia, es-tas informações não eram secretas, principalmente no caso de uma "usina de referência", como Angra seria para Ljubliak: o padrão internacional de construção. Alguma coisa estava erra-da, e não era só Kretschmar esconden-do o rosto na ponte do Rhône

Kretschmar, coitado, era só um delegado da Alema-nha Oriental, mal vestido e de péssimos dentes. Nun-ca o vi fora das reuniões da UNCTAD. As informa-

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ções sobre o engenheiro brasileiro que estava queren-do vender informações de cocheira aos iugoslavos foram-me passadas muito mais prosaicamente, no refeitório do Palais des Nations, no momento que eu e Rasto comíamos bolos de cenoura na sobremesa. Ca-da pedaço vinha com uma cenourinha de marzipan, imensamente mais charmoso e memorável do que o tal engenheiro, cujo nome já esqueci completamente.

Mas, o que fazer com a informação? Escrever uma novela farsesca de espionagem acabou sendo uma idéia factível, mas no momento eu tinha certos deve-res profissionais. Quais? Na volta ao Brasil, perguntei aos meus superiores. Sugeriram entregar ao Serviço Nacional de Informações. Fiz um memorando com a cópia do papel que Rasto Makus tinha me dado, e enviei, não para o Serviço, mas pelas vias competen-tes. Sumiu. Anos depois, designado para a Comissão de Revisão do Plano Nuclear, encontrei a pessoa em questão num cargo de relevância. Nada acontecera.

Na novela, porém, tomei minha vingança com toda sanha de ficcionista:

Eu devia ter imaginado que, ao lado do olímpico Professor Salles, com suas cãs de prata e sua gravata de Oxford, viria a cara turva e torta do engenheiro X. O destino quis que todos os vilões desta história tivessem o aspecto que melhor lhes convêm, e o engenheiro X é o pior de todos. Albino, mas de um branco encardido, claudicante e mane-ta, ele tem um sotaque cearense borbo-tante e um nome de família espantoso.

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Para ser breve, é o signatário da carta de Ljubliak.

Para ser ainda mais breve, ele foi atin-gido na testa por um tiro de metralha-dora. Nem chegou a passar pela alfân-dega.

A princesa e o efêmero

Margareth Walker me cativou num instante: pelo tin-tilar de prata. Uma medusa de centenas de cabos de cabelos entretecidos, e na ponta de cada um o penden-te de metal, longo e oco, um sininho de fada. O rosto intenso e nigérrimo, os dentes brancos, os lábios cor-de-rosa. Os colegas africanos diziam que era uma princesa tribal, ela se confessava juíza.

Margareth era uma krahn, tribo do interior que há pouco chegara ao poder na Liberia, suplantando os antigos escravos americanos exportados para o país em 1847. Era jovem demais para a magistratura, mas só havia uma faculdade de direito, e raríssimos krahns se formavam. Na nossa turma de Columbia havia mais dois africanos, o mais solar deles um nigeriano extremamente inteligente. O inglês de Margareth era o de menos sotaque, talvez porque os escravos reex-portados tivessem levado para seu país um som mais americano.

Ela ficaria vermelha, se pudesse, cada vez que eu a chamava de silver princess; mas um mês depois de começarem as aulas, desapareceram os sininhos de prata. Era infinitamente caro, em Nova York, manter o que as mucamas da família faziam na casa de seus

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pais. Protestei muito, ela ficou triste, pus de lado meu prazer antigo.

Nos meses do curso, vi que Margareth fora seduzida pela hipótese de ficar. Diplomacia não era impossível para quem pertencia ao momento dominante, e mes-mo antes do golpe krahn de 1980, havia poder e di-nheiro de família. Mas no momento da colação de grau, num dia de maio em que nevava no pátio do campus, fui me despedir e ela avisou que voltava. Sem magistratura. Ía advogar.

Só sete anos depois tentei entrar em contato com ela. Um cliente precisava de uma bandeira liberiana para seu navio. Ressuscitei os telefones e telex: nada. De-pois de semanas de tentativa, liguei para nosso colega nigeriano, Ignatius Chibututu. Margareth, onde? Ele se espantou que eu não soubesse. Os krahns tinham caído. Margareth, levada para uma praia de Monró-via, fora fuzilada e jogada no mar. Imaginei-a envolta nos seus sininhos de prata: a bala entrando e saindo em dois tintilos de efemeridade.

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Capitães de indústria

A bolha do Nasdaq

Quando a insensatez deixou sua marcha militar de sempre, e começou a fazer cooper em Wall Street, com a maré dos negócios de Internet, o impacto me chegou suave e inesperadamente. Missionários do Nasdaq desembarcaram sem avisar, querendo adquirir empresas brasileiras de Internet, para justificar, peran-te os investidores americanos, a imagem de um negó-cio em perpétua expansão.

Um velho baiano, comunista histórico, meu professor de Economia na faculdade, deliciava-se em contar a história da Bolha dos Mares do Sul, de 1720, quando milhares de investidores europeus jogaram dinheiro em negócios sem fundamento, com promessas de retorno astronômico. Era, dizia o baiano, o capitalis-mo em seu aspecto mais circense. Os holandeses, mais críticos talvez do que o resto, chamavam a isso winhandel¸ ou negociar vento.

Além disso, o velho Borges, meu bisavô materno, no Encilhamento¸ tinha posto tudo que tinha na bolsa, e tudo perdera, inclusive a vida e a burguesia confortá-vel da família. Sua mulher, envergonhada pelo suicí-dio do marido e talvez mais ainda pela miséria súbita, morrera romanticamente de desgosto em trinta dias. O avô Abílio, mais velho dos irmãos, teve de empregar-se como grumete num navio do Lage, depois como carteiro, para recuperar, em menos de duas gerações, o status perdido na ventania.

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Uma vez só indulgi em jogos de bolsa. No dia anteri-or a meu casamento em 1971, um colega de escritório se entusiasmara tanto com o que estava acontecendo naqueles dias, que me garantira retorno certo num investimento. Dez dias depois, voltando da lua de mel, o título que estivera a 14 cruzeiros soltava bolhas da profundidade dos sete centavos. Cobrei a garantia; perdi o colega, e mantive a lição.

Pois só se amarrando nos mastros, como Ulisses, se agüentava o vento da Internet. Tendo que analisar, como outros advogados de 26 países, os novos lan-çamentos de ações e outros títulos da empresa no Nasdaq, constatei que bilhões e bilhões de dólares podiam ser obtidos em dois ou três meses do público americano. Com uma facilidade inacreditável. Isso, apesar de veementes avisos, em caixa alta, nos pros-pectos das operações, submetidos às regras estritas da regulação americana, de que o setor e a empresa nun-ca tinham tido lucro, de que não haveria perspectiva desse a qualquer tempo previsível, e de que os risco de débâcle eram grandes e incontornáveis.

Meu velho professor de Economia parece que estava certo. Quando, ao fim do trajeto, toda a bolha se pul-verizou, os tribunais e agentes reguladores nada viram de estranho nessa mágica, encenada para adultos e cientes. Todos avisados, todos partícipes de uma es-perança na qual ninguém cria e todos se aproveita-vam.

Esse ambiente de ousadia e espanto era povoado por uma espécie própria, um tanto hominídeos, pela von-tade do proveito econômico, mas com a íntima sensa-ção de pertencer a outro espaço de imponderabilida-

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de. Os preços pagos aos brasileiros (e aos demais ob-jetos de aquisição no resto do mundo, presumo) eram acima e além do bom senso; projetava-se o valor futu-ro das empresas com uma largueza de ciclone, e a fábula da menina do leite me vinha à memória a cada fechamento de compra de empresa. Nunca se pagou tanto a tão poucos por coisa nenhuma. Nunca o hábito e os conselhos de prudência dos advogados foram mais ignorados pelos clientes.

Da fauna que desembarcou no Brasil no tempo da farra do Nasdaq, nenhum espécime superava o pa-quistanês Nadir Desai. Emigrado para o Canadá, co-meçou a vida vendendo jeans da mala do seu carro, estacionado nas esquinas, evoluiu por ínvios negó-cios, acabou fazendo o sucesso de um provedor de Internet dos pequenos. Na mágica daqueles tempos, foi subitamente guindado a Presidente de uma multi-nacional, divisão América Latina, provavelmente porque o Paquistão fica a esquerda do Chile e a direi-ta das Guianas.

Foi trazido do Galeão numa limusine branca, como se estivesse casando com uma marani, acompanhado de seguranças. No meu escritório, sentou-se à cabeceira da imensa mesa de reuniões, bateu palmas como se estivesse nos tempos do Raj, e comandou: “cookies and coke”. Todo mundo saiu às pressas para atender o potentado. A moça do cafezinho, voltando do serviço, comentou: “tão imponente, mas parece um caixeiro da Rua da Alfândega”.

Também marajesco seu estilo de negociação. Inter-rompeu uma exposição de um vendedor de uma em-presa paulista, que prometia ser longa e cheia de deta-

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lhes, e determinou: “You time is over. Now, give me just a figure”. Os vendedores, espantados, pediram um tempo. Voltaram, disseram seu preço. O nababo, num monossílabo de pura guilhotina: “No” E levan-tou-se da mesa, sem cumprimentar ninguém, reuniu os seguranças, tomou a limusine, e nunca mais foi visto.

Seu credo era de um liberalismo radical. Entendia que, quando o acionista põe dinheiro na mão dele, dá permissão para fazer o que quiser com o dinheiro. Montar restaurante, apostar em cavalo, etc. O poder do executivo era absoluto. O consultor jurídico da sua empresa, docemente sugeriu que esse estilo poderia levá-lo a uma ação penal promovida pelos acionistas: “you don´t care about jail?", O paquistanês, sem nem se dar conta: "building jails is a good investment too".

Heróis da pátria

Um amigo meu, pianista e bissexual, foi autor do maior ato de amor e coragem que já vi na vida. Aca-bou preso em lugar da namorada. Desciam os dois pela Ladeira do Ascurra, ela fumando maconha; quando veio a polícia, ele tomou para si o flagrante. Fui visitá-lo (com Danusia) muitas vezes, no xadrez da delegacia no Catete.

A sua total concentração e consolo, atrás das grades, era o seu projeto empresarial para quando fosse solto: abriria uma loja em Ipanema, com o nome Smoke Flower. Aonde as pessoas iriam, exatamente como o nome diz... Acabou na verdade construindo uma pro-dutora de rádio de programas internacionais, diligen-te, cuidadosa, de altíssima qualidade, que jamais ven-deu qualquer produto.

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Europa, França e Bahia

Há momentos em que toda a experiência do advogado não ajuda. Por que o cliente, uma multinacional fran-cesa, não tomava as enérgicas providências judiciais que devia? Como se deixava agravar um problema grave, até mais do que isso, por décadas?

Passam-se os anos, e nada redime o impasse. Os me-morandos, cada vez mais nervosos, pegam o avião para Paris e desaparecem inteiramente na sede mun-dial do grupo. As explicações para a inércia vão apa-recendo, no sussurro dos corredores. Interesse escuso. Paixão homossexual. Não era Sherlock Holmes que dizia que “when you have excluded the impossible, whatever remains, however improbable, must be the truth”? Um dia, o executivo principal da empresa no Brasil me chama num canto. Longe da secretária e dos audi-tores. Descobrira a razão de tudo. E tudo se resumia na Bahia.

Vinte e cinco anos antes, o agora Presidente mundial do grupo fazia sua estréia na subsidiária de Salvador. Tinha sido um caso de paixão com a cidade, a gente e a cultura. Se pudesse, ficaria em Salvador para sem-pre.

Mas sua filha fica doente. Mandada para a França, foi repassada pelo avesso em todo tipo de exame. Médi-cos de longos bicos e experiência milenar se espan-tam. Num faroeste, os abutres começariam a posar nas árvores mais perto.

O francês se transtorna. Abre-se com o dono da em-presa brasileira com quem fazia joint venture. Assim,

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não conseguia trabalhar nem pensar. O parceiro pediu detalhes. Fez um olhar misterioso. Levou o francês a um canto do Recôncavo, onde se curavam mesmo os males mais diabólicos do quimbanda. Faz com que o pai da menina beba coisas inominadas e receite ejacu-lações em nagô. E nesse preciso momento, em Aix en Provence, a filha se levanta. Corre para a janela, Pede para brincar.

Um quarto depois, a gratidão continuaria? Gratidão nada. Uma vez ameaçado pelo meu escritório, o par-ceiro avisara ao agora Presidente mundial: o que se desfez refeito poderá ser. Outras mandingas haveria. Ninguém ameaça um empresário baiano.

Bom, era uma informação. Como dizia o jurista Karl von Clausewitz, a informação é o fundamento de to-das as ações e idéias da advocacia 4. Já o jurista Nel-son Rodrigues contava que só há futebol na Bahia porque os dois times empatam em pai-de-santo.

E, sorte nossa, tínhamos o nosso. Clientes chegaram a reclamar de um dos nosso estagiários, que fizera a cabeça há pouco, com direito a tosa e turbante branco: antigamente, advogados não se vestiam desse jeito. Pedi um memorando. Fundamentos táticos para a ação judicial et cœtera com todos os fundamentos esotéricos. Que não se esquecesse dos pés de página. Em inglês, por favor.

Desta vez o Presidente reagiu. Telefonou, direto de Paris. Agradeceu; quase chorou. Prometeu fidelidade eterna aos seus advogados. A Bahia era muito perigo-

4 Sobre a Guerra, cap. VI.

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sa, advogar assim devia ser heroísmo. E a ação enfim foi proposta.

Uma coisa é a cabeça do cliente, outra do juiz, pro-verbialmente imprevisível. Depois de captar a autori-zação do cliente, mandei fazer tudo bem secular – invocações só as da Súmula do Supremo. Bruxa e polícia, não se mexa com elas, nem para fazer o bem.

Semana passada, outra advogada nossa foi à Bahia. A antiga sede da multinacional está assombrada por uma suicida loura, que vaga pelos corredores no meio da noite. Estamos ainda pesquisando a jurisprudência.

A idade da razão

Heitor entendia de fretes. Naqueles tempos pré-Bill Gates, era impossível descobrir antecipadamente quanto se iria pagar pelo transporte marítimo. Tabelas descomunais, que variavam continuamente conforme o destino, o tempo, a carga, o peso, o perigo da carga e dos mares. Tudo regulado pelo Governo, mas in-transponível.

A idéia era vender transparência aos clientes e cobrar uma porção da economia. Se antes se pagava 100, e agora 60, só devido à ciência do Heitor e seus amigos, uma nesga iria para a empresa. Qual empresa? A que Heitor estava me colocando como presidente.

Quem nunca foi presidente, não sabe o que é bom. Uma sala vasta, com um mapa mundi atrás do mesão, em cores vivas – dois metros por quatro de pura ce-nografia. Cadeira alta de couro preto. Telefones de cores diferentes. Até um secretário-boy-faz-tudo em meio expediente para comandar.

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Por enquanto, minha tarefa era mandar as milhares de cartas anunciando nossos serviços - e esperar o retor-no de 8-9% que os livros de marketing prometiam. De graça, só pela economia conseguida, parecia um alvo possível.

Ah, sim: acordar meus sócios. “Norma, tira seu mari-do da cama, isso aqui é sério”. Com os solteiros era mais complicado. Reuniões seriíssimas. Aos poucos, o tema principal, logo único, era o medo: nosso inves-timento em correio e impressos não tinha retorno ne-nhum. Dois telefonemas de desespero tinham conse-guido clientes, uma enorme indústria de fumo, e uma fábrica de tratores. Só. Das cartas, nada.

Com o dinheiro dos clientes dava para sobreviver um pouquinho – mas pouquinho mesmo. Aos vinte e poucos anos, todo mundo recém formado, tudo que tínhamos fora investido na propaganda, aluguel e o secretário. Ainda bem que havia o secretário. Mas exigia-se agilidade. Adaptação das despesas aos in-gressos.

Heitor foi falar com o dono da sala, um velho expor-tador e importador judeu, que gostava de Mozart e das sutilezas da vida intelectual. Charme nosso, en-cantamento dele. Um músico clássico, solista da OSB no Ciclo Bach; um economista que falava até holan-dês, filho de embaixador; o filho operoso e dedicado de um almirante da ativa – nunca o velho senhor tive-ra locatários tão interessantes.

Foi assim, charmosamente, que saímos do Salão do Mapa Mundi para a saleta ao lado, dividindo o espaço com a máquina de contabilidade. Um trambolho e-norme, muito parecido com um torno mecânico, mas

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que fazia marcenaria nos números. No terço que so-brava, a mesa única, repartida com o secretário (que bom que ainda tínhamos o secretário).

Um dia (mas isso seriam meses depois) descobri que a caixa da sociedade estava sendo também subven-cionada pela sublocação da mesa, after hours, para outros propósitos e outros serviços. Como? Minha surpresa era que a mesa, apesar de grande, era durís-sima. O nosso sócio explicou: com um saco de dormir macio, e umas almofadas, tudo trazido de casa, dava para o gasto.

Certo. Mas isso teria de ser contabilizado como recei-ta não-operacional.

A idade da razão II

Agilizar, primeiro; depois, diversificar. Heitor, talento inato de executivo, não deixava de ler o Newsweek e de gerar novas idéias de negócio. Se nossos serviços de consultoria de fretes estavam, por assim dizer, va-garosos, por que não aproveitar as oportunidades do mercado internacional? Agilidade.

Primeiro foram as salsichas. O Federal Drug Admi-nistration tinha proibido corantes artificiais nos wie-ner würste. Só naturais.

Heitor cintilou: colorau, ou melhor, aquela tintura de pintar índio tamoio que se chama urucum era coisa brasileira. Índio tamoio é brasileiro, não é? Vovó pin-tava seu arroz com a tintura, entre rosado e vermelho, e explicava que colorau mesmo era outra coisa, pi-mentão vermelho moído, como usado em Portugal.

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Anate, Anato, Anoto, Açafroa, Açafroeira-Da-Terra, Achiote, Bixa, Caraza, Diteke, Diteque, Iricuzeiro, Quesri, Quisafu, Urucueiro, Urucuuba, Urucuzeiro, Ururu. Vermelho, em tupi. Uma pesquisa rápida defi-niu a coisa como bixa orellana, da família das bixá-ceas. O nome devia ter-nos chamado atenção. Quer dizer, o orellana.

Mas o que nos valia mesmo era o denodo. Eu e o Hei-tor saímos recolhendo urucum. Na região de Maricá, perto do Rio, plantava-se urucum à beça. Parece que a planta só cresce em muito sol, muita poeira, terra de lagarto. Num carro cada vez mais empoeirado, vamos tentar ver preços. Conseguir amostras. Quando a ou-sadia subiu, propor a compra de colheitas.

Calculamos as margens. Com os preços internos, mais os fretes, o nosso urucum ia fazer festa com as salsichas americanas. Um urucum em cada frankfur-ter. Uma bixa em cada lanche.A nossa marca nos e-normes containeres vermelhos: a ilustração de Hans Staden de um canibal assando o inimigo num mo-quém. Mandamos oferta e amostra.

A resposta veio em forma de salame. Urucum brasi-leiro é anêmico (ou era... depois o Brasil virou o mai-or exportador do mundo de tinta de pintar tamoio). Salsicha ficava amarela desbotada. Em vez de frank-furter, com aquela cor de alemão encervejado, peki-ner ou shangainer. Prestava não. Boa mesmo era a venezuelana, equatoriana, desses lugares onde Fran-cisco de Orellana explorou. Os plantadores telefona-vam e Heitor dizia que fora viajar.

O próximo Newsweek falava de caramujos. Escargot estava na moda – as celebridades pediam os bichinhos

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(que um colega guloso e chucro definira, num restau-rante do Quartier Saint Séverin, como “chicletes de alho”) nos restaurantes de Manhattan. Califórnia se-guia a tendência.

Mas o que servia para Manhattan e San Francisco, a espécie Grand Gris, ninguém tinha no Brasil. Só um americano doido de Jacarepaguá. Que não vendia para esses pobres empresários, mas só para as cele-bridades do Newsweek. Aliás, para as celebridades do New Yorker.

Anos depois, o americano de Jacarepaguá se revelou sendo meu mestre em Columbia. Professor Black dava introdução ao Direito Americano, e, comigo, começou a falar logo do Brasil. Tinha uma fazendi-nha no Rio. Só podia ser ele. Era.

A Idade da Razão III

Enfim, a Xerox tinha encontrado seu ômega. De x a x, um trajeto de inglória. Ou assim dizia a Newsweek.

Um juiz de Nova York havia decretado que a patente do toner da Xerox estava sendo abusada – competido-res que queriam também vender o tal do toner esta-vam sendo impedidos pela patente, e isso impedia a competição pela própria copiadora, cuja invenção básica já estava em domínio público. Assim, licença compulsória judicial do toner. Os preços tinham des-pencado inacreditavelmente.

Para esse negócio, não bastava empoeirar nossos car-ros. Indispensável soterrar de charme o nosso senho-rio. Trabalhando há décadas com coisas convencio-nais e seguras, com auxílio apenas de um cunhado ex-marinheiro, arquétipo do pirata rude e debochado, o

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Dr. Jaime tinha o dinheiro, o conhecimento das buro-cracias e a argúcia do comércio.

Umas tardes de conversa sobre a economia desse mundo de hoje, das teorias macro e micro e da retóri-ca de todo tamanho – Heitor o Sedutor – nos valeram o entusiasmo e o risco do nosso locador. Os olhinhos do Dr. Jaime, atrás dos seus óculos de Benjamim Franklin, espraiavam em entusiasmo.

Capital não é tudo. Precisaríamos ter o braço secular do marketing. Mário Márcio, nosso outro sócio, re-crutou das ruas um gerente de vendas da própria Xe-rox, que se dispôs a largar por um naco de nosso em-preendimento. Fechava-se tudo num plano detalhado de estratégia: importação, armazenamento, distribui-ção, lista de clientes e conhecimento de pessoas, e, para terminar com fogachos e retretas, um preço im-batível.

E assim foi. Xerox é uma coisa mágica, essencial-mente incompreensível. Não fosse pelo toner, um pó escuro, meio cor de carapaça de besouro, que se põe nas entranhas da máquina, dava até medo da coisa. O pó, imagina-se, vai fazer os pretinhos das letras, pela ação precisa de duendezinhos pintores, agilíssimos, poliglotas, ganhando comissão por cada folha. Nos meus quinze anos, foca do Jornal do Brasil, ia ver a gráfica, as calandras de chumbo sendo derretidas para fazer os tipos, fastidiosamente compostos em paginas, transportadas em moldes de papelão para as rotativas. Nasceu daí – e do presente de uma edição de Lorca vinda da famosa prensa manual do João Cabral de Melo Neto -, o meu encanto pela arte de imprimir.

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O encanto, transformado em um tanto de medo, vai para o fax, bicho que também precisa de sua ração de toner. Vi o primeiro desses monstrengos na sala do cafezinho do escritório onde trabalhava em Nova York. Grande como um pombal, e fazia tremer a es-tante inteira com uma traquitana mecânica que, lentis-simamente, vinha esvaindo as páginas do escritório de Londres. Assustadora. Fabiani Rizzato é uma que também sente que fax é só vudu: mandar um papel assinado para Salzburgo e receber imediatamente a cópia contra-assinada gela a minha espinha, e a dela.

Pois era nesse mundo esotérico que estávamos en-trando. Nas reuniões de fim do dia, Dr. Jaime se es-merava em ardilosidades, o nosso vendedor detalhava seu controle da clientela, cada apelido de infância dos gerentes de compras, o gosto em calcinhas das namo-radas. Nós contra o gigante multinacional, gigante, aliás, só antes de entramos no mercado, coitados de-les.

Inteirinho, o carregamento morreu no armazém do cais do porto. Deve estar lá até hoje, talvez reaprovei-tado para pintar carro alegórico de escola de samba. A Xerox avisou ao público que comprando toner nosso, perdia-se a garantia. O nosso mágico de vendas desa-pareceu no dia que o navio encostou no píer, e nunca mais foi visto.

A Idade da Razão IV

Todo poderosa que fosse a Xerox, era nada perante a sedução do Heitor. O Dr. Jaime, que morrera nos cus-tos do toner, resplandeceu de novo com a Newsweek da próxima semana. Desta vez era coisa conhecida,

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segura, sólida, sem problemas de monopólio e truste. Era só arroz.

A Colômbia estava à beira da fome. Mais do que tu-do, arroz. O Governo, atento, procurava suprimento no mercado internacional. O velho Jaime mandou telex para o Rio Grande do Sul, checou navio, ofere-ceu à Colômbia. Rápido e tranqüilo. Margem peque-na, mas sem incertezas. Pela informação, nós, os só-cios ocultos, teríamos uma partezinha. – algo para complementar a receita do aluguel vespertino da me-sa.

E, nos próximos dias, íamos acompanhando o lento, mas seguro, percurso do “nosso” navio, desde o porto do Rio Grande, por Santos, Rio de Janeiro, subindo a costa, milhares de toneladas de arroz em seu bojo. Arroz para o Governo da República de Colômbia.

Lá pela altura de São Luiz, a rádio dá notícia de fura-cão. Maremoto, iceberg, ataque de tubarão branco, tudo somado: um pronunciamento militar derruba o Governo colombiano. Os novos democratas declaram nulas e sem nenhum valor as certidões de nascimento dos ministros precedentes.

Dr. Jaime, que estava felizinho lendo as églogas de Virgílio em sua sala, fica branco ao ouvir Heitor con-tando o infausto. Liga seu próprio rádio. Deixa cair os óculos no chão. Dez mil toneladas de incerteza estão no mar. Telex urgente – bate na parede como se fosse bola de squash. Telefonema, que já era coisa difícil naqueles tempos, levou um tempo infindo para chegar ao Ministério da Agricultura em Caracas. Do outro lado um Major Covarubias de voz pastosa declara: “que se hodan los hijosdeputa”.

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O Direito Marítimo tem uma figura curiosa e rara chamada stoppage in transitu, tradição milenar reser-vada especificamente às hipóteses em que um major colombiano manda o exportador enfiar a carga em outra escotilha. Pára o navio onde que esteja. Cata o porto mais próximo. Vende a carga pelo preço que der. Sai ganindo e se dando por feliz.

Pois nunca se comeu tanto arroz de cuxá em S. Luis do Maranhão.

A Idade da Razão V

Depois de tantos meses, continuava o silêncio mais absoluto. Milhares de cartas tinham sido enviadas, prospectos e propostas para empresas escolhidas com cuidado minucioso. Exatamente aquelas que – se sa-bia com certeza – estavam sendo roubadas deslava-damente pelos armadores. Clientes inevitáveis.

Um dia, Heitor descobre um pacotinho de cartas atrás do armário. Não tinham sido enviadas. Chama o nos-so secretário-boy-factotum. Os três sócios sombrios. O outro se fazendo de esquecido. Eram só dez carti-nhas. Ele ia levar imediatamente. Podíamos dar o dinheiro? No meio da vaquinha, me sobe a suspeita: onde estava o recibo do correio para as outras cartas? As três mil outras?

Mário Márcio, o mais esquentado de nós, sai para buscar uma pá na sala do velho Jaime. O secretário era grande, sem família, e sem vergonha; nós tínha-mos a pá. Confessou que nunca, nem uma só vez, tinha posto carta no correio. A postagem fora para seu bolso mesmo.

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Quando fomos contar ao velho Jaime, ele estava sem gravata, vermelho, estatelado. O cunhado pirata aca-bara de confessar que o dinheiro do ICM dos últimos quatro anos que deveria levar ao banco, tinha acabado no também no seu próprio bolso. Não tinha dito antes para não preocupar o parente, mas agora que o fiscal tinha perguntado...

Sempre sobrava a pá.

Como queríamos demonstrar

O terceiro cliente que nos surgiu valeu, em diverti-mento, pelos que nunca vieram. Era um inventor de Minas, aflito com comida de vaca.

Além do capim, elas gostam de sobremesa. Melaço. Minha avó contava de um tio seu que, nos tempos da Guerra de Canudos, vinha visitar a irmã para comer melaço com farinha – a sobremesa de finesse dos tempos; e esticava a delícia pedindo mais farinha para o melaço, e mais melaço para a farinha, procurando o ponto que nunca vinha certo. Feito as vacas, que dis-pensam a farinha.

Mas melaço...mela. O transporte é difícil, exige esto-cagem em tanques especiais, o risco de fermentação é grande, o manuseio é complicado. Imagine-se, então, no inverno europeu. Secando, igual a leite em pó, tudo se resolve. Depois se descobriu que melaço tam-bém serve para fazer aço – os cadinhos, formas de bolo, têm de ser cobertas por alguma coisa, como manteiga é para o bolo. Melaço em pó serve.

Para nosso cliente, a questão era frete. Essa, a dife-rença entre exportar ou não. Nos tempos em que, co-mo escoteiro, líamos a Guerra de Guerrilhas do Regis

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Debray (Baden Powell também lutou contra guerri-lhas...) aprendi que açúcar e derivados são bons ex-plosivos, ou podem sê-lo. Pois tinha gente querendo cobrar frete ao custo mais impactante de todos.

A história passa, porém, pela personalidade explosiva do inventor. Posta a fábrica em marcha, era preciso financiamento. Todo mundo tinha, do BNDE, como não o teria uma lídima invenção pátria? Aquilo que os tecnocratas sonham – tecnologia nacional em ramo básico, adequada, exportável.

Pediu-se o dinheiro, preencheram-se todos os papéis, cumpriu-se a mais completa das burocracias. Pois parou tudo. Nos píncaros do maior banco de desen-volvimento do universo (naquele tempo, o BNDES era mais forte do que o banco Mundial...) alguém decretara: melaço em pó era como o moto contínuo. Não existia.

O inventor chegou ao ponto de ebulição. Ebuliu. Co-meçou a fumegar. Não existia, como? São Tomé tem limites.

Pois, uns dias depois da declaração de inexistência do existente, vem vindo um caminhão basculante pela Avenida Rio Branco. O BNDE ficava numa esquina da avenida. Pára exatamente na porta do banco. Em-pina a carroceria, e deixa correr uma ou duas tonela-das de pó fininho, cor de caramelo, tão solto que se espalha um pouco no ar.

Duas horas depois, o dia estava úmido, o pó se com-pacta. Começa a empastar. Gosma-se. Hora do almo-ço, todo mundo louco para sair, e o chão todo em frente à porta parece papel-pega-mosca. Quem se

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aventura, empapa a sola num puxa-puxa que não lar-ga mais. Hora e pico mais tarde, há umas bolhas se formando. Fermenta tudo. O cheiro começa a abalar as narinas.

Um adepto do empirismo ter-se-ia rendido. Mas os píncaros são mais resistentes. O BNDE e o melaço em pó estavam na mesma relação entre si que a Rai-nha Vitória e o ditador boliviano Melgarejo.

Em 1866, o embaixador inglês na Bolívia foi chama-do a palácio. Mariano Melgarejo, todo gentil, ofere-ceu-lhe, na hora do chá, uma xícara de chicha, a bebi-da nacional feita de milho fermentado. Cauim. O in-glês agradeceu, mas disse que preferia chocolate. Melgarejo, prestimoso, fez com que o embaixador bebesse um balde inteiro de chocolate. Quando aca-bou o lanchinho, amarrou o inglês numa mula, virado de costas, e desfilou sua presa, através das ruas de La Paz, melado de chocolate e cheio de penas. Contam algumas versões que o passeio teria acabado com as sutilezas do empalamento.

A Rainha soube e enfureceu. Mandou chamar o almi-rante de todos seus mares. Toma duzentos encouraça-dos, bombardeia, baixa os fuzileiros, e acaba com o Melgarejo. Majestade, a Bolívia não tem mar. Victo-ria, pequenina, imperial, estava em seus dias de Que-en of Hearts de Alice.

Ela manda trazer um mapa, dos maiores. Constata: nem uma praiazinha. Longe da onipotência régia. Victoria manda trazer um pincel e tinta. Apaga a Bo-lívia do mapa. E decreta: esse país não existe.

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Pois o melaço em pó, grudando e fedendo no andar térreo, continuou não existindo.

Uma barquinha de prata

O primeiro brasileiro de sua vida, companheiro da primeira classe do vôo de Montreal, foi uma revela-ção. Simpático, inteligente, amável, com uma facili-dade de conversa e de vida que nunca tinha visto i-gual. A aisance extrovertida, criativa, passional e sarcástica do Mercuccio que ele tentara fazer no tea-tro da escola em Ottawa, e nunca chegara aos pés do personagem.

Em meia hora de vôo, o brasileiro já tinha descoberto o que o canadense fazia (importava açúcar) e qual seu propósito em Recife (descobrir novas fontes de forne-cimento). Já tinha se declarado pernambucano e con-seguido que o vizinho de poltrona repetisse o gentíli-co com um sotaque perfeito de Recife. Já tinha garan-tido ao outro que o açúcar que queria estava todo comprado e entregue, aos preços que nunca pensava pode conseguir. A sedução foi tanta que, se o cana-dense fosse dado ao esporte, a viagem acabava em cama.

Duas semanas depois, quando o canadense apareceu no meu escritório, ainda não conseguia por culpa no seu deslumbrante companheiro de viagem. Ele tinha conseguido o açúcar na quantidade e preço prometi-do, num tempo incrível. Ele tinha arranjado um navio, quando não havia nenhum disponível para a carga. Tudo que acontecera fora tragédia grega, destino im-pessoal, e o pernambucano não podia, de jeito ne-nhum, ser réu na ação. O que tínhamos que fazer era só liberar a carga.

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Difícil explicar ao cliente que açúcar não se comprava tão fácil. Que as relações entre usineiros pernambu-canos e compradores tinham raízes seculares. Que, salvo um preço maravilhoso, ninguém vendia para um desconhecido, que podia atrapalhar uma boa relação com o comprador de sempre, amigo do pai, avô, te-travô e sei lá mais o que, para sumir depois daquela compra. E o preço era barato demais.

Difícil explicar ao canadense que não se podia com-prar açúcar a preço subvencionado para venda no sul do país, para exportar. Nem desviar navio de cabota-gem para subir até o Atlântico Norte. Falar das quotas do Instituto do Açúcar e do Álcool, então, era perda de tempo. Para não perder é o cliente, tinha de voltar às tragédias gregas e aos personagens de Shakespeare.

E foi com base nelas que tentei passar a idéia de que o Mercuccio pernambucano tinha um pequeno defeito, se assim se pode dizer. Era traficante de tóxicos. Que conseguira todo aquele açúcar, um naviozinho cheio até a borda, com o convencimento de seus assessores armados e mal-encarados. Que os fiscais do IAA, repelidos a ponta de faca, tinham se queixado à polí-cia Federal. E que esta, ouvindo falar de um navio - um navio cargueiro - entupido de pó branco do fundo dos porões até o tombadilho por um traficante conhe-cido, tinha sonhado com a maior apreensão da Histó-ria, deste e de todos outros planetas.

Nem lambendo. Depois de ter vendido a idéia do tri-unfo à Brasília, não havia maneira possível de a Polí-cia Federal soltar o navio. Mesmo lambendo cada saco e cada container. Era tudo disfarce. A cocaína estava ali, em algum lugar. Era só encontrar.

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O canadense, na verdade nascido no Líbano e com cara de mascate, acabou desistindo. Sumiu, sem pagar as centenas de horas do nosso trabalho, em Recife, Rio e Brasília. Fernando Fragoso, que tínhamos con-vidado para ajudar na parte criminal, debicou de mim: advogado do crime cobra do cliente antes e em di-nheiro. Ele tinha recebido tudo. Nós, ficamos com a história para contar.

Dizem que a Polícia Federal, com o risco de ficar diabética, acabou deixando o navio sair. Para Santos.

Sex shop

Lá por 1983, apareceu uma delegação chinesa. Circu-lando entre os ministérios, colhendo informações e vendo oportunidades de compra e venda, eram uns vinte, tendo a frente um velho mandarim de uniforme maoísta, com o cargo de vice-ministro.

Grande jantar que acabaram dando, num restaurante chinês da Rua Bolívar, em Copacabana, com tudo que se tem em fantasia, de barbatanas de tubarão para cima, servido naquelas mesas rotatórias que dão aces-so simultâneo a todos pratinhos e cuias, tão numero-sas quanto chinês na China. Nada melhor que comer às custas do povo comunista.

Pois fui feito baby sitter dos chineses. Quem sabe por ser tetraneto de um, o que sempre causa certo espan-to, quando sabem. Adoraram o Albamar, restaurante redondo de metal, especializado em peixes, resto his-tórico do mercado que havia na beira do mar, na Pra-ça Quinze, até o tempo em que eu usava calças curtas. Pintado ainda no verde metálico do antigo mercado, o

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Albamar resiste aos tempos e à falta de inspiração gastronômica.

Pois cada dia que chegavam no almoço, a delegação inteira pedia em uníssono “coca cola”. Ortodoxamen-te socialistas. Eu sntava na mesa do velho mandarim, e aproveitei para pedir, ostensivamente, guaraná. O velho olhou com o rosto meio de banda. Fiz cara de feliz bebendo o elixir de Maués.

No segundo dia, o mandarim conteve a inescrutabili-dade oriental, e perguntou o que era aquilo que eu estava bebendo. Falei. Mandei trazer um copo para o potentado maoísta. Fiz com que admirasse o dourado da cor e a leveza do gosto. Ele foi sugando devagar-zinho, gostando. Contei de como a bebida era nacio-nalista, de como ela superava aqui as coca colas do imperialismo, coisa cultural e revolucionária. Acabei falando das excepcionais virtudes eróticas do guara-ná. O velho empinou duas garrafas.

Não sei o que aconteceu de noite, mas no dia seguinte o mandarim sentou-se no Albamar e comandou num vocalize cheio de explicações fabulosas: nada de coca cola, todo mundo agora bebesse guaraná. Telefonei ao Ministro, peguei autorização, e avisei equanine-mente à Brahma e à Antártica. Só a última se interes-sou, foi a luta, empurrou um contrato, e consta que se bebe guaraná até hoje em Pequim. Talvez só nos mo-téis.

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Servidão pública

A Escola Celestino da Silva, um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico da Rua do Lavradio, no centro do Rio, tem uma mansarda no terceiro andar. Escadas e escadas de madeira velha. Lá no cocuruto, quatro salas de aula, e um espaço mínimo que sobra entre as janelas e as escadas.

Pois foi para esse cantinho nos píncaros que estáva-mos levando as tábuas do caixote no qual viera a ge-ladeira nova da minha casa. Pintadas de azul, cor da Prefeitura, seriam o gabinete da maestrina Cacilda Borges Barbosa – mamãe – como diretora da Escola Popular de Educação Musical e Artística. Tão popular que a própria diretora pega no martelo e pregos e faz seu próprio gabinete.

Meu primeiro contato com o serviço público foi assim – lição para a vida. Trabalho de carpintaria sábado de tarde, com as próprias mãos e os próprios recursos. Verba, nem sonho. Mas o sonho sim de trazer música para o pescador, para o lixeiro, ou (como me disse uma aluna, muitos anos depois, quando eu era já pro-fessor da mesma escola, perguntada sobre sua profis-são) as prostitutas.

Menino de Santa Teresa, nascido na classe média dos funcionários municipais dos anos 50’, eu convivia na EPEMA com a minoria do povão que precisa de arte para estar no mundo. Aprendi lá a admirar a sofistica-ção proletária de um violonista de sete cordas, mais completo e denso em seu talento do que a maioria dos cellos da Sinfônica. Ou a inteligência fulgurante de

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uma dona de casa do Meyer, lindíssima nos cinqüenta anos, escoltada pelo marido para estudar sax tenor, e tocar na banda da Escola.

A EPEMA, com minha mãe no timão, era tão proletá-ria quanto seus alunos. Foi expulsa da Celestino da Silva para uma garagem de caminhões de lixo. De-pois, para a velhíssima e dilapidada Escola Orsina da Fonseca, onde o gabinete da minha mãe sumiu numa madrugada, chão abaixo, feito numa ruína de caliça centenária e madeira podre.

Antiga residência do Marechal Hermes, casarão dos fins do séc. XIX, diziam que era povoada ainda pelos moradores originais. Numa reunião da congregação, tarde da noite, um senhor de sobrecasaca e barbaças teria aparecido na porta, à vista geral. Histórias. Pro-vavelmente as almas deviam estar preocupadas com o teto cair a qualquer momento, em cima dos alunos.

Décadas depois, uma amiga, cuja mãe fora professora da Escola, me contou que a Maestrina era rigorosa e temida. Minha visão era outra: o dos seus vencimen-tos indo quase todos para pagar material para secreta-ria, comida para contínuos e faxineiras. Tudo discre-to, até mesmo para que meu pai não visse: serviço público, na concepção dele, era uma instituição para se ganhar honestamente a vida. Não para gastar tudo que se recebia.

Nem tudo era doçura no Governo, estilo Dona Cacil-da. Um dia a vi ganhar um pedaço de bolo de uma funcionária; agradeceu, encantada. Mal a moça saiu, jogou o presente no lixo. “Não sei se ela gosta de mim”, mamãe comentou. Sabia sim. E subitamente, entendi a renascença dos Borgia.

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Numa tarde chuvosa, já no governo Carlos Lacerda, o primo da minha mãe, Miguel Morais, deputado esta-dual, foi encontrar o Secretário de Educação no meio da pista do Santos Dumont. Mamãe saiu da EPEMA, que ganhou o nome de Escola de Música Villa Lobos, e foi para o lugar que o próprio Villa tinha criado para si mesmo nos anos 30. Era o mais alto cargo que uma professora de música podia chegar.

Mais uma lição em serviço público: uma pitadinha de influência ajuda. Mesmo aos honestos.

Lá como cá

Meu primeiro dia na Itália, em 1975: um café na Pi-azza Navona, na esquina seguinte ao Palazzo Dora Pamphili, a Embaixada do Brasil. Meu primeiro café expresso da vida. Deslumbre.

Solange Nogueira, cunhada de meu compadre Heitor, era economista na embaixada, e nos acolheu em casa. Saímos nessa primeira noite, vagueando por Roma. Passamos num palácio enorme, com aquela cor de tijolo descascado que têm as casas lá. Um soldado de uniforme pomposo e penachos coloridos no chapéu montava guarda na porta – um dos bersaglieri....

Danusia pergunta à Solange - o que era aquele palá-cio. Ela não sabia. Perguntou ao guarda.

Ficamos de longe, as plumas e a espada brilhante in-timidavam. O guarda ouve Solange, e explode: "Qui? Qui no funciona niente" E continua aos brados e ges-ticulando: Esse governo não presta, não faz nada, é uma vergonha! Tremia tanto que as penas balança-vam no ar.

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Era o palácio do primeiro ministro.

A brocha da diplomacia

Como advogado do INPI, trabalhei com o atual em-baixador Ademar Bahadian entre 1979 e 1981 junto à OMPI e à UNCTAD em Genebra, e testemunhei o estilo de diplomacia máscula e conseqüente com que o Itamarati trata as questões econômicas internacio-nais. O então Conselheiro, representante da divisão panzer do MRE, era freqüentemente o porta-voz do Grupo dos 77' (o “partido” do terceiro mundo na ONU) em tais reuniões e conferências diplomáticas, escolhido pelos países em desenvolvimento para falar o que tinha de ser falado.

E o que se falava era, às vezes, surpreendente. Quan-do ouvi de algum latino que os americanos eram os “sanguessugas do povo vietnamita”, estando no mes-mo grupo político, deu um certo medo de, na volta, ser escorado no Galeão pela busca e captura do SNI. Mas eu já aprendera que o mesmo governo militar que caçava comunistas em casa ajudava angolanos de braçadeira vermelha na África a caçar militares na floresta.

Pois numa tarde de fevereiro de 1980, ia Bahadian num dos seus discursos inflamadamente formais, no melhor estilo Assembléia Geral da ONU. Na receita particular do Conselheiro, a retórica saía mais para beque-de-espera de time arranca-toco do que para a elegância do futebol arte. Mas tudo quanto é rosto negro, moreno e amarelo do recinto abria num sorriso solar. O brasileiro era bom de bola.

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Eis que vem um mensageiro, e chama nosso embai-xador, chefe da delegação, para uma conferência urgente. Vai. Leva tempo. Nem o vi voltar. Só ouvi sua voz, do meio do corredor entre as bancadas, enunciando a palavra cabalística que interrompe tudo numa assembléia internacional; “Question d’ordre!”. O presidente da sessão, lá do cume de seu podium, manda parar tudo. Bahadian, do meu lado, cala a boca no meio da frase e vai ficando cinza-chumbo.

O embaixador vem andando e explicando: o conse-lheiro Bahadian não estava mais falando em nome da delegação brasileira. Subitamente apátrida, Bahadian entorta; toma fôlego; lembra que estava falando tam-bém pelas cem ou mais delegações de cucarachos. Como no circo Barnum, the show must go on; ele dá sua cambalhota, quica no cimento duro, e vai em frente. Acaba logo. Senta rígido na cadeira. Caqui-nhos esparramados de todos os lados.

Sofri muito para ser disciplinado na ordem unida do Itamarati. Advogado, acostumado a dar minha opini-ão sem cuidar de hierarquia, ressenti muito ser disci-plinado na primeira vez que tive um embaixador me governando. Falava só o que era mandado, o meu parecer de verdade exclusivamente.no ouvido do che-fe, sussurrando. “Isso aqui é uma ordem monástica”, me informaram. Eu, que na adolescência estivera en-tre a diplomacia e o Mosteiro de São Bento, perdi o gosto de vez, naquela hora.

No fim da sessão, saímos todos; Bahadian sumira logo depois seu discurso guilhotinado. Num canto da cafeteria do Palais des Nations, o embaixador juntou seu povo e explicou. O Todo Poderoso dos tempos,

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Delfim Netto, tinha telefonado diretamente de Wa-shington. A postura brasileira estava incomodando. Por pura coincidência, o Brasil precisava naquele instante de dinheiro americano. Mais doçura nos dis-cursos. Menos terceiromundismo. Um oportunismo mais alto se alevantava.

A explicação foi gentilíssima. Como se sabe, o servi-ço diplomático é sempre rendado e florido. O embai-xador pagou até o nosso cafezinho.

Maciste contra o resto do mundo

Carlos Alberto Dunshee de Abrantes era meu profes-sor de Internacional Público. Em 1965, os Estados Unidos invadiram S. Domingo, requistando tropas brasileiras para fazer a faxina, sob o comando do Gen. Hugo Panasco Alvim, e Dunshee perguntou na prova final do curso: qual foi fundamento jurídico da intervenção americana? Respondi: nenhum. E fun-damentei.

Anos depois, um colega de turma me contou do resul-tado. Saíram as notas, e eu tinha levado zero. Politi-camente. Um povo do centro acadêmico foi protestar, e acabei passando. Inocente e poupado de todo o tu-multo, até quase vinte anos depois.

Assim, eu não sabia de nada da reprovação ideológi-ca, quando encontrei Dunshee num dos corredores do Palais des Nations, em Genebra em 1981. Ele ía pra cá, eu em direção à biblioteca, cruzamos. Chamei. Ele não me reconheceu; contei quem era, disse que estava como assessor da Delegação Brasileira numa confe-rência diplomática. Ele abriu-se em sorrisos. Eu apro-veitei: “agora posso ver, professor, que não aprendi

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nadinha, nadinha nas suas aulas da Faculdade”. Ele achou que era piada.

O que estava fazendo lá? A culpa era de Afonso Ari-nos, que, no tempo em que tocava o Itamarati para Jânio Quadros, fez com que a diplomacia brasileira começasse, na ONU de Nova York, uma campanha contra o poder das patentes dos países desenvolvidos. Vão se passando os anos, e se fortalecendo a idéia de que os países pobres tinham direito a mais oportuni-dades nesse mundo: como os negros americanos, de-pois que a Suprema Corte decidiu em 1954 que a i-déia “iguais mas separados” não era coisa de gente honesta.

Era a idéia da nova ordem econômica mundial. Igual-dade só de boca não basta. Era preciso tratar os po-bres desigualmente, para tirá-los do lodo. Falando de patentes, o Brasil e os outros pedintes queriam mais direitos, e menos deveres do que os grandes. Tinha-se que mudar o tratado das patentes e marcas, a Conven-ção de Paris de 1884, para garantir essa nova ordem.

Para isso, convocaram uma conferência diplomática em Genebra em 1981. A situação política: os pobres, o chamado Grupo dos 77’ (apesar do nome, eram muito mais pobres do que 77...) querendo mudança. Certo número de países europeus estava favorável, ou moderadamente favorável a essa mudança; os Estados Unidos - isolados, na mesma posição em que estavam desde o século XIX, num isolamento majestático - preferiam que a conferência diplomática não seguisse. E começaram a oferecer todo tipo de objeções.

Pois os americanos inventaram que toda a discussão na conferência só podia ser tomada por unanimidade.

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E eles iam dizer que não. Isso era a tradição. Quando encontrei o Dunshee, estava indo ver se era a verdade. Era: todas as reuniões, desde 1873, tinham acabado em consenso. Uma delícia, remexer os textos no papel encanecido de mais de um século, xeretar as assinatu-ras originais dos representantes da época, a surpresa de que, pelo Brasil, assinava um tal de Visconde de Villeneuve, o que me pareceu um entreguismo estra-nhíssimo. Muito depois, descobri que, apesar do no-me, era brasileiro e dono do Jornal do Comércio.

Mas nem a sabotagem dos americanos consegue parar a burocracia posta em marcha. Os diplomatas, na sua infinita sinuosidade, decidiram que, como todo mun-do estava ali mesmo, era o caso de ir tocando para frente as discussões, sem voto. Enquanto isso, recebi ordem de dar um jeito jurídico na coisa. Fui fazendo meu curso de Internacional Público sozinho na biblio-teca da ONU.

Descobri às tantas que havia uma Convenção de Vie-na sobre Direito dos Tratados. Que, revogando a tra-dição, mandava tomar os votos por maioria. Só que não estava em vigor. Fiquei de olho. Telefonei para a ONU de Nova York, onde se depositam os tratados. Estava quase-quase. Faltava uma só ratificação para entrar em vigor, e dizia-se que estava vindo – Zâm-bia, Uganda, algo assim. Podiam telefonar se chegas-se? Podiam.

No penúltimo dia da sessão, ligaram de Nova York. Ademar Bahadian leu meu memorando noticiando a mudança na Assembléia Geral. Propôs, enfim, que se devia dar início à conferência, aplicando simplesmen-te o princípio da maioria do novo tratado. Votou-se

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essa proposta e foi vencedora, democraticamente, por 113 a 1. O voto isolado era, evidentemente, o ameri-cano.

Alegria geral: palmas, um ou outro assobio. Podíamos mudar o sistema de propriedade intelectual em todo o mundo por voto de maioria. Foi aí que o embaixador americano, muito sério, nervoso no isolamento de um plenário de 114 países em que o único voto discor-dante era o seu, teve de explicar a realidade das coi-sas: “Está tudo muito bom, está tudo muito bem, vocês estão falando em interesses dos países em desenvol-vimento, em transferência de tecnologia, em eqüidade econômica, mas o que me interessa é o interesse das minhas empresas. Aqui não estamos falando de coo-peração entre pessoas, estamos falando de interesse entre empresas”. Atrás da fieira de bancadas decora-das com o nome dos países, havia outra, dos observa-dores. Lá os letreiros diziam: Xerox, IBM, General Electric. O embaixador americano apontou enfatica-mente para a bancada de trás. E completou: “essa conferência não vai continuar”.

E assim, pelo delicado voto de um contra 113, a con-ferência deu em nada. Era 4 de março de 1981 e, na Casa Branca, estava Ronald Reagan.

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Gradus ad parnasum

A rosa e o espelho

Danusia apareceu na primeira página do Correio da Manhã, como atriz de uma peça de Gil Vicente; uma crítica elogiosa de Yan Michalsky, falando nela, completou a consagração. Lá para 1970, quando che-gou o tempo de fazer estágio na Defensoria Pública, ela ainda vivia seu gosto de palco. “Vamos para o júri, lá posso desenvolver meu teatro”.

Fomos, ou antes, fui. Danusia largou a faculdade de direito no quarto ano, e me vi sozinho no Primeiro Tribunal do Júri, odiando penal e penalistas.

Oficiava no Tribunal como defensor público Manoel Carpena do Amorim, hoje desembargador. Esperando nos corredores do prédio do Foro Velho, na Rua Dom Manuel, entreouvia da porta aberta da sala da defen-soria longas conversas em voz baixa sobre os grupos de extermínio que, já em 1970, enxameavam o Rio. Apesar, ou talvez, exatamente pelo clima pesado, havia um agudo senso de humor negro no meu chefe.

Meu primeiro trabalho foi acompanhar o depoimento de um homicida perante o Juiz Sumariante. Para quem conhece, pela televisão e cinema, mais do sis-tema americano do júri do que do nosso, é preciso explicar. Antes daquela sessão em sala aberta, perante os jurados, há um processo de tomada e avaliação de provas perante outro juiz, que pode mandar o caso

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para frente, pela pronúncia do réu, ou encerrar o caso sem júri. Era perante esse juiz que eu ia atuar.

Carpena olhou a pauta, riu, e comentou comigo: de-pois desse seu primeiro cliente, você só pode subir na vida. Verdade.

Sentei nos banco do gabinete do Juiz Sumariante, ao lado do réu. Olhei para ele, armando um sorriso – que nunca aconteceu. Meu cliente não tinha orelhas nem nariz. Olhei na pauta: o nome já sumiu da memória com as décadas, mas a denúncia trazia a nota “conhe-cido como Morfético”. Reuni as leituras de Kant e Albert Schweitzer, e todo senso meu profissional de estudante, para não pular longe.

O caso era ainda mais insuperável do que o cliente: interno do leprosário penal, pelos homicídios que já cometera antes, o Morfético tinha se envolvido num crime de paixão. Paixão homossexual entre presos num leprosário penal, acabando em morte a estoque. Non plus ultra.

Fechei os olhos e agüentei o tranco. O cliente confes-sou tudo, sem qualquer restrição. Minha presença era só didática. Ainda estava sentado quieto e teso espe-rando por algo ainda pior, quando o próprio Carpena veio me substituir. O caso agora era sério. Ele abriu e mostrou as fotos do processo: curra coletiva de uma menina de quinze anos por dezessete moradores do seu morro. O corpo parecia dilacerado. Posso ir, che-fe? Podia. O banheiro era sujo demais até para vomi-tar.

Meses depois, Carpena me entregou meu primeiro caso de júri mesmo. Sendo da última turma a ter o

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título de Solicitador Acadêmico, eu podia realmente falar e defender meu novo cliente, desde que com Carpena ao lado. A lei só não me permitia sentar du-rante o julgamento. Sentar e usar aquela beca confei-tada de renda que se vê nos filmes, eram privilégios de advogado formado.

O caso tinha acontecido numa boate de Copacabana. Meu cliente, segurança da casa, não confessava sua profissão para ninguém. Uma noite, sua mulher, tão inocente acerca do que fazia o marido como todo mundo, apareceu na porta da boate agarrada com um amante. Querendo entrar. O marido, explodindo de surpresa, saca da arma. Era desfaçatez demais. O a-mante, sem entender nada de coisa alguma, morre no ato.

Perry Mason à solta. Não li só o processo de capa a capa. Fui à Rua Viveiro de Castro, onde, oito anos antes, tinha havido a morte. Nada da boate; agora havia uma padaria. Imaginei a cena. Olhei em torno. Exatamente em frente, uma loja de artigos de umban-da.

Fui comprar incenso. Puxei conversa. O dono estava lá fazia tempo. Fecha tarde? Antigamente, quase todo dia. Hoje, nem tanto. Lembrava de uma coisa que tinha acontecido no início do Governo Lacerda, na boate ali em frente? Lembrava sim. Conhecia meu cliente, que nas horas desocupadas vinha conversar. E na noite do crime?

Ele falou dos gritos. A voz do meu cliente, que ele conhecia, berrando e torcida de raiva. O uivo animal da mulher. Os tiros, dois. Um som de dor, rápido. Vozerio. Ele fora ver: tinha juntado gente. Descreveu

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o corpo no chão, a mulher contra a parede, gemendo de medo, o homicida ainda de arma na mão, mas sem apontar para ninguém. Falou da entrega da arma, submissamente, ao polícia militar da rua, que conhe-cia o segurança. Mas, fora os gritos, tudo estava nos autos.

Repeti a pergunta. Tinha havido discussão, bate bo-ca? Ele se lembrava dos gritos. Três, numa irrupção súbita. Surpresa lancinante de cada um.

Só um dado, na prática inadmissível como prova. O sumário já tinha sido concluído. Mas era um facho de iluminação perpassando os fatos. A denúncia do Mi-nistério Pública havia criado uma briga, discussão suja, insultos recíprocos. Em nenhum elemento dos depoimentos ou das provas policiais, constava a bri-ga. Ao contrário, o três gritos, não reportados nos autos, desnudavam a evidência da surpresa, do cho-que, da reação medular do meu cliente. A provocação da mulher com o amante, inocentes os dois do agravo provocado; dois tiros num só movimento de mão, um movimento sem reflexão, uma morte jamais antecipa-da.

Era só ler o que estava escrito nas centenas de folhas do processo sob a ótica do grito. Nada o desmentia. Mas o senso comum concordaria com a denúncia. Normalmente há discussões, afirmações, xingamentos de parte a parte. Sem o grito, era o ramerrão de todo desentendimento entre homens a causa de uma mu-lher. Com o grito, havia só o ato de Deus que fizera com que, dentre todos os lugares possíveis de uma cidade gigantesca, os amantes tivessem escolhido aquela exata boate de Copacabana.

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Na sala antiga de madeira escura, torneada e esculpi-da, Carpena me instruía. Não falasse com o júri como um todo. Escolhesse um jurado só, uma mulher dos seus quarenta, a que estava sem aliança de casada, e me derramasse para ela. Olhos colados nos dela, todo atento na sua respiração, nos câmbios de sua expres-são. Ela era a mais sensível a um garoto novo, ainda imberbe e estreante. Dela se irradiaria a boa vontade para os outros seis jurados. Capricha na sedução, ga-roto.

Cena aberta, com o cenário solene, o réu, que não conhecia até o momento, os personagens de beca e toga, a cinta branca do juiz, o cinturão de sangue do promotor. Eu em pé. Do outro lado do salão, o cerca-dinho dos jurados e, nele, a minha quarentona. Sus-tentou o olhar; não era uma derretida, como tanto eu querera. O promotor, cáustico e implacável, tomou mais tempo em debicar do estudante em posição de sentido do que em apresentar as razões da denúncia.

Minha vez, enfim. Carpena se levanta, indica que seria eu a falar. Cutuca para se assegurar que eu esta-va ainda vivo. Achou que eu estava. E me mandou tocar em frente.

“- Um processo – esse processo – está para a realida-de da vida como um espelho está para uma rosa. O espelho denota a cor, a forma, capta até os espinhos. Mas perde o cheiro, o tato macio das pétalas, e prin-cipalmente, a vida que é o mais essencial da flor espe-lhada...” E lá fui, consumindo todos os sofismas e retóricas que tinha aprendido até esses meus 19 anos. Minha seduzida alargou os olhos, fechou-os, e reabriu

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com os cílios batendo entrechat. Eu devia estar me dando bem.

Quando acabou tudo, Carpena me puxou pelo paletó. Não se fala assim com o júri. É muita complicação para a cabeça deles. Que eu fosse, no futuro, direto e simples. Nada de flores e espelhos. Enquanto o júri se enfurnava na sala secreta, Carpena e o promotor bar-ganhavam. Meu cliente já estava oito anos preso. Mesmo com o resultado desfavorável do júri, era coi-sa de se soltar imediatamente o réu.

Mas o júri saiu com um cinco a dois. A favor da rosa e do espelho. Umas semanas depois, passando pelo hall diante da sala do júri, percebi que estava um jul-gamento em curso. Mudara o mês, o grupo de jurados era outro, e quem falava era Carpena. Voz firme, de quem estava há anos empolgando seu público. E o texto era: “... Um processo – esse processo – está para a realidade da vida como um espelho está para uma rosa”. Como dizem os ingleses, “plagiarism is the sincerest form of flattery”. E nunca tinha me sentido mais feliz.

Fiquei mais quase um ano no Tribunal. Lá pelo fim do meu tempo, estava passando pelo corredor em frente ao juiz sumariante, e alguém me pegou pela manga do paletó. Era o meu ex-cliente. Tinha saído, e matado outro. Agora a culpa era só minha. Nunca mais subi ao júri.

Foca

Quem tem padrinho não morre pagão, e meu pai co-nhecia o pauteiro do Jornal do Brasil. O jornalista que, ao contrário de seus pares, acorda cedo e vai ver

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o que será notícia no dia seguinte. Pegou fogo ontem; como estará o gatinho salvo pelos bombeiros hoje? Por aí.

Pois o pauteiro me encheu de avisos. Que não sonhas-se ser contratado. Estágio era só isso mesmo: um tempo de prática e educação, contato com as estrelas sem esperanças de virar cometa. E usou o resto da manhã para detalhar o que era ganga bruta na notícia, e o que era cintilância. Aprendi: meu tempo de asses-soria de imprensa no serviço público, e o esporte constante de alimentar os corvos com notícias nasce-ram daí.

O Departamento de Pesquisa do JB, em 1964, era uma Via Láctea. Alberto Dines, transformando a casa de um balcão de classificados num jornal de verdade, tinha importado a idéia americana de calçar a notícia com fundamento. O gato salvo pelos bombeiros era escorado com dados sólidos sobre o número de ani-mais rescaldados pelos entes públicos durante o ano, do Afeganistão ao Zâmbia, e mais a história dos feli-nos domésticos desde Nínive.

Tudo isso era orquestrado pela habilidade de Murilo Felisberto, moído pela inclemência ruiva de Moacir Japiassu, sopesado pela prudência da Luis Carlos Lis-boa, e refinado pela erudição de Luis Paulo Horta. Sem falar da graça de uma estagiária passarinhesca, essa uma estudante de jornalismo de verdade, Clotil-de, e na sinuosidade de um fotógrafo recém importa-do do Nordeste se dizendo fugido daquela “Revolu-ção” que tinha acontecido umas semanas antes, mas que depois se revelaria como feroz malabarista nos sadismos da repressão.

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Lisboa me entregou uma lauda em branco, apontou a máquina de escrever. “Who, when, what, why, how”. Tudo no primeiro parágrafo. Isso, garoto, é o lead. Parágrafos de cinco linhas, frases de duas. Depois do lead, explica mais um pouquinho, mas conciso feito uma gilete desencapada. É o sublead. Nada mais foi dito, e nem aprendi, seis anos depois, na Escola de Comunicação da UFRJ. Estava pronto para a vida.

Delícia de vida. Começaram manso: escreve aí 45 linhas sobre folclore. Mamãe era professora disso na Faculdade de Assistência Social, a casa entupida de textos sobre boi-bumbá. Levei dois dias, mas a maté-ria acabou publicada quase sem copidesque. Aos quinze anos, era muito gostoso...

Deus ajudava, e estourou uma greve de coveiros. Mi-nha primeira saída num das Rural Willys do Jornal, até o Cemitério do Catumbi. Os grevistas estavam acocorados em frente do portão de entrada, jeito de lavrador de eito pobre, gente até de chapéu e cigarro de palha. Conversa vagarosa debaixo do sol, mosca zumbindo. Era uma das primeiras greves depois do golpe, e parecia justiça pura. Tinham me mandado descobrir e falar com o líder, mas no Catumbi não havia não. Só a verdade chapada de um salário menor que o mínimo, o desconforto, o escárnio, a eterna semeadura sem colheita. “Carne a gente só vê quando enterra”. Essa era ótima de publicar, só que o copi-desque capou.

Mas deixou passar a epígrafe. Matéria com epígrafe... Era o esplendor e glória da Pesquisa JB antes do esti-lo Civita. Adivinhem. "Has this fellow no feeling of his business? 'a sings in grave-making". Hamlet, quin-

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to ato, a cena, lógico, dos coveiros. Primeira página de caderno B. Mas não toda primeira página.

Eu estava pronto para o minha Nêmesis. Explodiu a fábrica de pólvora de Piquete. Pesquisa aí, garoto, nas pastas e fichas dos jornais antigos.

Havia, sim, outras explosões no passado. Eu mesmo lembrava da mais cruenta e macabra de todas, a tra-gédia da Ilha do Braço Forte. Aluno do jardim de infância do Campo de Santana, na alegria desabrida de quem passa as manhãs correndo atrás das cotias, fora impactado pela cerimônia descomunal do féretro de dezessete bombeiros mortos em 7 de maio de 1954. O público silencioso na rua, os caminhões ver-melhos saindo lentamente do Quartel General, logo em frente da minha escola, a banda em uniforme de gala, capacetes de bronze e calças de garança cor-de-fogo, o som horripilante da marcha fúnebre de Cho-pin troando cavamente nos metais.

Mas a saída dos coveiros me viciara. Era bom demais ser repórter de rua. Sem nem a legitimação das Rural Willys, cismei de ir colher informações da boca do lobo. Do próprio dono da fábrica explodida. Lá, nas costas do Campo de Santana, no prédio ciclópico do Ministério do Exército.

Ninguém cuidou de mim na entrada, nem as sentine-las, nem os ascensoristas, nem os recrutas andando nos corredores. Gente civil para lá e para cá, prova-velmente familiares e pensionistas. A não ser por um excesso de verde oliva, o mesmo ar do Ministério da Fazenda no Castelo: espaços enormes, imponência mussolinesca, manutenção deficiente, o viveiro ideal da espécie burocrata.

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Desgraçadamente para um repórter, eu sofria da mais comum das afecções masculinas: detesto perguntar meu caminho. Foi assim que, batendo corredor atrás de corredor, encontrei enfim o lugar certo. Uma porta alta e cinza, lembrando muito entrada de castelo na Transilvânia em filme classe B, onde se lia: “S-2 Se-ção de Informações EM/1º.Ex.”. Informação era exa-tamente o que eu queria. Bati. Nada. Abri, cuidadoso, a porta. Nenhum vampiro. Só uma sala com muitas escrivaninhas, sem um só papel no topo brilhante de polimento, sem ninguém para justificar a cera gasta. No fundo, outra porta. Abri.

Num gabinete com bandeiras e livros, um oficial lia o jornal. Olhou para mim. Deve ter visto um menino incongruente, fazendo força de ser sério. Eu comecei: queria saber da explosão da fábrica de Piquete. Não passei disso. Fora o maço de laudas do jornal, o esta-giário de favor não tinha nada que o identificasse. O oficial baixou o jornal (era O Globo, lógico) apertou uma campainha. Apareceu trotando um sargento de uniforme de campanha, com dois soldadinhos arma-dos de metralhadoras INA bufando atrás. Pega esse moleque e joga na rua.

Como quem carrega um filhote de gato, o sargento me pegou pelo cangote e foi arrastando pelos corredo-res. Os soldados e as metralhadoras vinham junto, e o povo me olhava curioso. No alto da escadaria da porta principal, o sargento foi munificente: não me chutou nos fundilhos como eu temia.

Voltei, quieto, aos jornais velhos. Ninguém soube do episódio. Bordei muito a história da Ilha do Braço Forte e o editor gostou. No mesmo dia, mandaram me

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chamar na oficina do jornal. Um linotipista me entre-gou uma barra de chumbo e disse para entregar à Condessa. O gabinete olímpico da dona do jornal ficava nos píncaros do oitavo andar. Que barra é essa? Calandra, o homem explicou. Naquelas máquinas medievais da época, as calandras, penduradas como presuntos num teto de estalagem, eram dissolvidas para fazer os tipos, um a um. Envergonhado ainda do meu faux pas do Exército, não discuti. O ascensorista me viu curvado sob o chumbo, abriu um riso, e decla-rou que tinha ordens de não levar calandras. Uns du-zentos degraus depois, comecei a atinar que devia ser um rito de passagem.

Calandrado e escorraçado pelos militares, eu estava formado, amadoristicamente, em jornalismo.

Paschoal

Não havia quem não o conhecesse: dormindo em to-das as solenidades, muito aceso agitando cultura, uma locomotiva da vida artística nacional. Embaixador, Paschoal Carlos Magno podia ter inventado um país próprio para representar, tanta coisa fez na vida, e especialmente depois de velho.

Não sei exatamente como ele foi recrutado para nos lançar na vida musical. Certo é que um dia apareceu em nosso ensaio Jodacyl Damasceno, violonista pro-fissional infinitamente além do nosso gabarito. Man-dado pelo Paschoal, e desobedecê-lo quem há-de? Com as três flautas doces e um implausível contra-baixo, o violão do Jodacyl transformava o resultado daquele conjunto amadoríssimo de adolescentes em um arremedo de música.

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Jodacyl teria seus trinta e cinco, e estudara com An-tonio Rabelo e Oscar Cáceres. Nós estávamos pelos quinze anos, e não havíamos estudado com ninguém. Seguro, bom leitor à primeira vista, coisa não muito freqüente entre violonistas. Fez-se nosso condutor e ensaiador, com uma paciência muito próxima da e-xasperação. Mas tinha uma missão: preparar nosso primeiro concerto da vida, num almoço na casa do Paschoal.

Éramos o “Quinteto da Aldeia”, por batismo do nosso patrono. Tempos depois, iríamos mesmo tocar na Aldeia de Arcozelo, a terra encantada da cultura que Paschoal tinha engendrado nas proximidades da cida-de fluminense de Miguel Pereira. Mas essa história vem depois. Entre nós, o conjunto seria “Camerata Telemann”.

Duas peças só no repertório, mais a promessa de um solo do Jodacyl, fomos para a casa do Embaixador, no Curvelo, em Santa Teresa. Hoje ainda, espaço do Teatro Duse, a casa lembra muito a presença de Pas-choal. Mas nada substitui a presença do velho senhor (ele estava nos seus sessenta), recebendo seus convi-dados nas salas repletas de obras de arte e de folclore, e repetindo: “não me roubem nada, que muito me custou roubar tudo isso”.

Pascoal ainda estava carregando as glórias de ter sido chefe da casa civil de Juscelino e a fama menor de ex-vereador da capital. O almoço, assim, reunia metade da intelectualidade carioca, jovens atores sempre promissores, e gente de todo tipo. Como as estrelas prometidas da tarde, nós, os músicos, fomos distri-

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buídos pelas mesas, para que os convivas pudessem usufruir isonomicamente de nossa companhia.

O problema era que, para nós, haveria não uma, mas duas estréias: a do Quinteto, e a das delícias do vinho, servido sem discriminação de idade. Antes da sobre-mesa, fomos ao chamados ao palco. Paschoal, voz rouca e sempre sonolenta, vaticinou para nós um futu-ro diamantino, como acontecera com todas suas des-cobertas anteriores.

Jodacyl começou seu solo. Percebi que a partitura na minha estante tinha resolvido girar na direção anti-horária. Meus colegas visivelmente se ressentiam de cataclismas parecidos. Fechar os olhos pareceu uma medida prudente, especialmente para esquecer o pú-blico. Jodacyl, ao fim do concerto, empacotou o vio-lão e sumiu de nossas vidas. Tinham até errado seu nome no programa mimeografado.

Até morrer, quinze anos depois, Paschoal dizia man-ter ainda grandes esperanças nesses seus músicos, “desde que não bebam”.

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Ministérios

Camilo Penna foi o primeiro dos meus ministros a me tentar como personagem. Sua descrição aparece em A Mariposa e a Estrela, novela que ganhou um premio-zinho municipal em 1996, e foi publicada às expensas do contribuinte. Aí vai ele, sob um pseudônimo um pouco opaco:

Lucínio Couto, de todas as pessoas que eu conhe-ço, é a mais parecida com um preá. Um discur-so muito rápido, em que só os lábios e as nari-nas mexem, dão-lhe o jeito de roedor, e a im-pressão se completa ao constatar a rapidez com que foge de um problema. Dr. Lucínio é o Mi-nistro.

“- O Senhor disse mesmo tudo o que está aqui no relatório?" Sim, ministro. Aliás, era exatamente o que constava dos documentos preparatórios aprovados pelo Itamaraty (mas escritos por mim, deixei de dizer).

“- Tudo isto me parece muito ousado. Mas nin-guém deixa eu dar minha opinião aqui dentro. O Ministro do Planejamento controla meus gastos, o Ministro da Fazenda controla minhas receitas, o Conselho de Segurança Nacional impõe quais devem ser minhas convicções, o Serviço fiscali-za minha fidelidade política, minha mulher diz o que eu tenho de comer, meus filhos carregam com meu carro e usam meu telefone. Agora, o Itamaraty se mete no meu Ministério, e me faz dizer estas ousadias através do senhor, e lá em

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Genebra. Ficar mal em Itajubá, ótimo, ninguém se importa com isso, pois que nunca disputei voto; mas em Genebra..."

E assim ele era: intelectualmente rápido, preciso, e lindamente inadequado ao último governo da Revolu-ção. Carlos Feu Alvim disse dele: “trabalhando com ele quando Ministro sempre me admirei da atenção e do tempo que dedicava à discussão de idéias e à re-flexão. Seu raciocínio cartesiano sempre esteve su-bordinado a sólidos princípios éticos”.

Voltando de Paris com o Presidente Figueiredo, eu esperara algum sinal dele. Afinal, nenhuma montado-ra de automóveis fora instalada no Nordeste. Camilo ficou em seu silêncio natal, apesar de vir ao Rio com freqüência Meses depois da viagem, ele abre minha porta, enfia o rosto, e com jeito inquisitivo pergunta o que eu estava fumando. Chá Earl Grey da Twinnings no cachimbo, e mostrei a latinha. “Parece que é outra coisa. Pára com isso, menino. Repartição não é lugar para hippie”.

Uma tarde em 1982, ele me chama à sala de Bandeira, o presidente do INPI. Eu voltara três dias antes de Nova York, de uma reunião com os executivos prin-cipais das multinacionais americanas com interesse no Brasil. Perguntado, respondera sinceramente sobre a política, da época, sobre importação de tecnologia. Limites de pagamentos, proibições de royalties nos grupos multinacionais. Nada particularmente charmo-so para minha platéia.

Ele me recebeu sentado na mesa de reuniões como um professor de ginásio, olhando pontudo atrás dos óculos. E veio a argüição: “no Council of Américas, o

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senhor disse isso e isso?” Confirmei que sim. Ele fez cara feia. “Disse aquilo e mais aquilo também?”. Re-peti que sim. Parecia que ia chover forte. Camilo Penna virou-se para Bandeira. “Isso tudo é a política oficial daqui?”. Bandeira afirmou que era.

Momento difícil. Bandeira, não exatamente um ideó-logo, era militar, e fora do SNI. Por definição, insus-peito de oscilações políticas. O militar que havia nele o fez tomar a defesa de seu assessor. Disse que era assim mesmo. Eu falara certo.

Mas Camilo faiscava sua íntima convicção de que tudo era ousadia minha. Não se manda alguém à toca do investimento multinacional para fazer crítica de capital estrangeiro. Com a reação inesperada do meu chefe, porém, não era o momento político para me fulminar. Viria, com a paciência de Minas Gerais. O Ministro levantou-se, apertou a mão do Bandeira, estendeu uns dedos moles para mim, e tomou o avião para Brasília.

Dez anos depois, Marcílio Marques Moreira, ex-banqueiro, ex-Ministro da Fazenda do Collor, estava cumprindo seus tempos de vacas magras no secretari-ado de César Maia, Prefeito do Rio. O único sinal do fausto antigo era um assessor, diplomata, requisitado até para as questões municipais. Companheiros de mesa nas longas reuniões da prefeitura, um dia Marcí-lio me pergunta sobre Camilo Penna num intervalo de cafezinho. Conto do episódio de Paris. Falo da argüi-ção sobre capital estrangeiro. Marcílio abre um sorri-so.

Ele tinha lido um estudo meu, exatamente sobre capi-tal estrangeiro. “Bom, muito bom”, comenta sem de-

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licadezas na voz. Fala de detalhes, mostra que real-mente lera. Menciona a minha citação do delegado cubano:

Bigodes a Pancho Villa, um jeito cansado de quem está na mesma guerra desde antes de Castro, o delegado cubano à Conferência da UNCTAD de negociação do Código de Conduta de Trans-ferência de Tecnologia em outubro de 1979 contribuiu à discussão com a mais vívida e lati-na definição do problema em análise:

“Desarrollo industrial con inversión extranjera es hacer hijos con cojones ajenos. Los resultados son visibles, pero las pierdas irreparables”.

Mas Marcílio continua: “Só que Camilo odiou. Sacu-diu o trabalho na minha frente, vociferando”. E assim descobri porque um longo e minucioso estudo, bem pago pela Universidade de Campinas, nunca tinha sido usado no projeto para o qual tinha sido enco-mendado. Camilo era da comissão revisora do projeto e, enfim, me dera a nota final na argüição. Mineira-mente.

Força da Natureza

Foi José Hugo Castelo Branco que me achou, no meio de um longo almoço de sexta feira com meus sócios do escritório. O garçom veio dizendo meu nome em voz alta, fui atender ao telefone, e uma secretária seri-íssima avisou que o Ministro-Chefe da Casa Civil queria falar comigo. E ouvi assim a voz, pela primeira vez, do mineiro de Lavras, de quem não sabia nada.

O dia era difícil. Após sete anos de INPI, tinha deci-dido voltar para Furnas. Devolvido por ofício pelo

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novo Presidente da autarquia, a quem havia ajudado a por no lugar, tivera uma curta e devastadora conversa com o Consultor Jurídico da concessionária. Não me queriam lá. Para quem renunciava ao conforto profis-sional e um pouquinho político do INPI exclusiva-mente por disciplina filosófica (“tempo demais de influência faz mal à alma...”) a lição era peremptória.

Duas horas depois do chute, doído no mais importan-te, José Hugo me pescara no oceano de lágrimas. Fi-losóficas. Ele estava saindo da Casa Civil para o Mi-nistério da Indústria e do Comércio, e precisava de um Consultor Jurídico. Era uma intimação. Segunda feira, em Brasília. O desemprego acabara.

José Hugo era o Azulão, avi-saram meus sócios. Compa-nheiro de sempre de Tancre-do, esteve com Dornelles e Mauro Salles no seu comitê de eleição. Sendo o primeiro ministro já confirmado, des-tinado para a Casa Civil, fora adotado por Sarney, mas a

natureza essencialmente pessoal e política do cargo acabara pesando contra ele. A transferência era ele-gante.

Eu caíra, sem saber, no círculo mais próximo do fale-cido presidente. Quem dera a ele meu nome fora o antigo datilógrafo de Tancredo, no tempo que este era diretor de uma fábrica de cimento em Lavras, e José Hugo seu funcionário. Quando o trio chegou aos pín-caros da República, o datilógrafo já se tinha feito

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Consultor da República por força de sua digitação vertiginosa e inteligência ainda maior.

José Hugo ganhara o apelido porque pintava os cabe-los, mas não naquele tom discreto de quem camufla os cabelos brancos. Azul pavão. Fora disso, inconspí-cuo em seus ternos claros, gestual mineiro, equanimi-dade no trato. Espantei quase dois anos com a desam-bição e judiciosidade de um político como ele, até entender que era superioridade tranqüila de quem se sabe no fim da vida.

Naturalmente conservador, chegava aos sessenta anos com um ouvido para Roberto Campos (de quem era admirador) e o outro atento para os nacionalistas de sua equipe. A partir de maio de 1987, por pedido de Jorge Murad, cunhado de Sarney, começou estudos para implantar zonas de livre comércio. Não obstante ser completamente contrário à idéia, tive de integrar a comissão elaboradora, "para fazer ponteio ao pessoal do Senador Roberto Campos”, dizia o Ministro. No fim da comissão, apoiou sugestões minhas, e recebeu ataques na imprensa como esquerdista. Logo com ele. Não se importava.

Pois só ele recebeu os ruralistas da UDR, de quem Bresser Pereira, da Fazenda, e os demais Ministros fugiam. A fama era de um povo demais de direita. José Hugo, todo conciliador, ouviu a comissão com cara de simpatia, recolheu os papéis, deu conta dos recados perante o Presidente (que chamava de você). Acima do mal.

Imprevisível. Eu chegava a seu gabinete pelo primei-ro vôo da manhã na segunda feira, e me preparava para a espera. Houve dia em que só surgia de noite.

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Explicou: “seria imperdoável se eu fosse gente. Só que Ministro é força da natureza”. Com os meses, foi ficando mais errático. Mas morreu, rente e teso como sempre, no exercício do cargo.

Despretensioso em toda sua imponência ministerial. Lendo a primeira vista um discurso que me mandara escrever, num encontro com milhares de empresários ansiosos com o Plano Verão, pára no meio; sorri para a platéia; aponta o dedo para um trecho do papel e comenta “bom isso aqui...”.

Controlava a tensão com um rosário indiano, sempre entre os dedos, dedilhados num ruído de madeira con-tra madeira. Mas já andava imperturbável. Um dia, ofereceu-me carona no jatinho ministerial para o Rio; desembarcamos no velho Galeão, ele muito conver-sador. O jatinho decolou com a mesma tripulação, e em poucas horas desabou no solo, com outro ministro a bordo. Todos mortos. Fui levar-lhe a notícia, com o tal frio na espinha, nunca sentido antes. “Que sorte a nossa”, e nada mais disse.

Mais extraordinário do que tudo era a leveza de seu humor. Riu-se enormemente quando, mandando Jorio Dauster, diplomata feito Presidente do Instituto Brasi-leiro do Café, extinguir logo a autarquia, ouviu de resposta: “impossível, Ministro. Getúlio já o extin-guiu em 1952”. Ganhou, pela primeira vez na vida, um computador em seu gabinete, e por um tempo se divertia com o hastear da Bandeira Nacional e o som do hino nacional que eu programara para sua chega-da; um dia cansou da musiquinha. Pediu o fim daqui-lo. No dia seguinte, subiu a bandeira ao som da Inter-

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nacional. Ele fez que ia correr atrás de mim com o sapato.

Mais uma vez no Galeão, mas noutro dia, mandou me chamar à sala VIP. Queria saber dos fretes marítimo Brasil-Estados Unidos. José Hugo estava embarcando para Paris, e me recebeu ao lado de um empreiteiro carioca, conhecido, ladino, habilíssimo. Contei o que sabia, todo informado pelo Wilfred Borges, primo de minha mãe, presidente do sindicato dos armadores. José Hugo se espantou com o parentesco. Wilfred fora um grande (ele disse “o principal”, talvez por charme) contribuinte para a campanha indireta de Tancredo. O empreiteiro acrescentou que meu parente tinha começado a vida trabalhando para ele. “Deve ter te passado a perna lindamente”, falou José Hugo, ma-treiro como nunca. O empreiteiro confirmou. Tinha sim. O Ministro se deliciou.

Dois dias depois, de Paris, ele me liga em casa. Per-dido com o fuso horário: o telefone começou a tocar pelas três da madrugada. Minha mulher atende. Sono-lenta, desavisada, ouvindo alguém se apresentar como ministro naquelas desoras, solta um palavrão caver-noso. Desliga com raiva. José Hugo volta e conta a história para todo mundo. Rindo, rindo.

Em julho de 1988, concursado, eu tinha que tomar posse no Município do Rio. Luiz André Rico Vicente, o secretário executivo do Ministério, me chama: que eu não fizesse isso. José Hugo, nos seus momentos finais, sentiria minha ida como uma deserção. Fui ao dia da posse, vendo meus colegas recebendo a inves-tidura do Prefeito Saturnino Braga pelas grades de

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uma janela do Palácio da Cidade. Em 4 de agosto, eu estava em Brasília de novo, quando José Hugo se foi.

Aqui, nem os honestos

Foi numa das longas esperas por José Hugo que ouvi outra das histórias do empreiteiro vulpino do Galeão. Quem me contou foi um lobista com décadas de inti-midade dos gabinetes, soturno em seus ternos cor de burro quando foge e seu rosto de índio pouco acultu-rado. Mas o tom, o contexto e o sentido foi de conse-lho avuncular a um assessor novo do Ministro.

Alckmin, conhecido por suas histórias de mineirice esperta, era um homem íntegro, apesar de político. Morrera pobre, mas feliz pelo seu esporte de poder, exercido uma vida inteira. Ministro da Fazenda de Juscelino, mantinha discrição e olho vivo em todas as oportunidades do seu ministério poderoso. Nas ques-tões do café, central na economia mesmo na época, tinha o poder imperial de fazer o preço. Prudente o quanto podia, reservava as noites de segunda feira, depois de fechados os mercados, para definir quanto ia custar a saca do robusta. Em segredo para não va-zar e fazer a fortuna dos privilegiados.

Mas (prosseguia o lobista), se o Ministro era cautela pura, abria a guarda para o próprio filho. Extrema-mente dedicado: toda segunda feira, quase desperce-bido num canto do gabinete do pai, enquanto os pre-ços eram firmados, depois levava Alckmin para casa. Filialmente. Antes, um rápido telefonema ao nosso empreiteiro, esperando num iate na enseada de Bota-fogo. De lá, por rádio, comprava colheitas inteiras de café durante a noite, depois vendidas com o novo preço. Obscuro e suave.

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O lobista encerrou a anedota com recomendações. “Aqui, meu filho, nem os honestos escapam”. Ele sabia o que dizia.

Direita, volver!

Hábil, sinuoso, deleitando-se com conciliar os incom-patíveis, José Hugo, porém, se alinhava sem vacilar nos momentos extremos. Desinteressado em informá-tica e suas guerras nacionalistas, me pôs como seu assessor no Conselho Nacional de Informática e Au-tomação. Era um coliseu onde se sentavam dezesseis ministros e representantes de tudo que é interesse, para tentar fazer política nas coisas de computador, amigos e simpatizantes.

Uma das controvérsias em curso era a proteção do software. Direito autoral seria o escolhido, como que-riam os Estados Unidos? Ou um novo esquema espe-cial de proteção, como sugerido na França e no Ja-pão? José Hugo nem se importava com o tema, mas perguntava o que tinha de votar.

Assim aconteceu na reunião do CONIN, em 26 de agosto de 1986. Um dia antes, o embaixador Sebasti-ão de Rego Barros e eu, participando no Riocentro de um seminário nacional sobre a questão, tínhamos dito em concordância que a adoção de um regime especí-fico para o software era a solução acertada para o país. De volta a Brasília, tive minha reunião de sem-pre pré-CONIN. José Hugo informou-se e repetiu várias vezes a expressão “tertius genus” - nem direito autoral, nem patente, mas um regime especial. Não ia perder o seu latim. Era sempre o primeiro a votar, e não queria fazer feio.

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Na solene sessão da manhã de 26 de agosto, doze Ministros de Estado presentes, surge um ajudante de ordens do Presidente da República, com documento sigiloso, que repassa, sem entregar, a cada um dos titulares, no instante exato da votação. Sentado logo atrás de José Hugo, não consegui ver o escrito, além de um “ultra-secreto” carimbado em vermelho no alto do papel. Ao iniciar-se a tomada de votos, o Ministro da Indústria e Comércio, para surpresa absoluta dos representantes da empresa privada nacional, e muito maior espanto meu, pronunciou-se pela adoção do direito autoral - o que resultou na Lei 7.646/87.

Voltamos do CONIN no carro do Ministro Funaro, da Fazenda. Sério, no seu perfil italiano, já esverdeando pela doença que o levou quase que ao mesmo tempo em que José Hugo, Funaro tinha esquecido os compu-tadores. Queria discutir mesmo era o projeto de de-creto-lei de incentivos fiscais à tecnologia, de que tinha medo. Era recado direto ao colega ministro e ostensivo a mim, que estava redigindo o texto da co-missão.

Apertada no banco de trás entre os dois ministros, Zélia Cardoso de Melo, Secretária do Tesouro, gania como um cachorrinho irado contra as benesses. Acos-tumada a negar repasses a estados e municípios, não estava disposta a ser contraditada em coisas assim. Nas poucas reuniões da comissão de incentivos a que fora, sentira-se desconsiderada. Dar dinheiro de im-posto a empresário era simplesmente imoral.

Mas a viagem era curtinha, e o decreto-lei acabou saindo.

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Bacci

Zazi Aranha Correa da Costa, assessora internacional de José Hugo, era filha do nosso embaixador em Wa-shington, e conhecia todo o Hemisfério Ocidental. José Hilário, um dos Gouveia Vieira, tinha assumido o Instituto dos Resseguros do Brasil, e queria alguém mais ou menos seu na cadeira que o Ministro tinha no Conselho Nacional de Seguros Privados – pediu a Zazi. Fui mandado eu.

Quando em Nova York, tinha feito coisa e outra para o IRB de Londres, mas na área tributária. Arqueolo-gia: desencavar um tratado do tempo da Rainha Vitó-ria e de Mauá, que dava isenções de tributos a empre-sas brasileiras doing business na Inglaterra. De segu-ros, nada.

As reuniões eram longas e tediosas, na sala grande do Ministério da Fazenda. Caixas de material chegavam antes de cada sessão, e os conselheiros, em tese, ti-nham de trazer a lição feita. Poucos o faziam. Candi-datos a candidatos a quiçá políticos, empresários de sucesso e de engano sentavam no Conselho. Poucos técnicos. A lentidão se explicava.

Num dia mais tempestuoso, um representante dos seguradores de S.Paulo veio decidido a virar a mesa. A comprida mesa que, quando não ocupada pelos seguros, também servia às reuniões mais sérias do Conselho Monetário Nacional. O agitante era bacha-rel, e resolveu impugnar a própria existência do Con-selho. Criado pode Decreto Lei, fora modificado por simples decreto do Presidente. Todo mundo ali senta-do era inconstitucional e legalmente fedia.

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Jorge Hilário, comercialista, pareceu perdido. O Mi-nistro Maílson da Nóbrega, na extremidade do mesão, trocou de óculos e mandou chamar o Procurador Ge-ral da Fazenda Nacional. Eu tinha instruções de ficar calado e prestando atenção, mas a comichão foi mai-or. Abri meu bico: o bacharel se enganava. Pela Constituição da época, o Presidente podia mexer na Administração como quisesse, desde que sem criar despesa. O decreto era o instrumento próprio para exercer esse poder exclusivo. Citei o artigo da Carta. Errado, mas convincente.

Meu vizinho de mesa, novo e nunca visto, confirmou. Era o representante dos consumidores, recém posto pelo Jorge Hilário. Professor de Direito Constitucio-nal e Procurador do Estado. Sapientíssimo. Decisivo. Calou-se o bacharel insurgente de vez em sempre. Maílson destroca os óculos e, inacreditável, me man-da um beijinho na ponta dos dedos.

Anos depois, na prova oral do concurso para Procura-dor do Município, surpreendo-me na banca com meu vizinho de Conselho. Ele me reconhece, abre-se em sorrisos, conta para os outros examinadores o episó-dio do Maílson, e declara que não precisa me exami-nar. Acompanham. E saio da sala em minutos com um dez unânime, calado como entrara e ficara. Obri-gado, Zazi.

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Passeios com o titio

Era 1976, e a charge do New Yorker mostrava uma estrada e um signo: “the next mile is bicentennial-free”. Uma nação inteira, tentando se esquecer da sua primeira derrota na história, comemorando esfuzian-temente seus duzentos anos de florescência e agres-são.

Alguém no Departamento de Estado achou que seria boa idéia trazer jornalistas do mundo inteiro para ver os Estados todos, unidos e desunidos, mas na intimi-dade das suas entranhas. Fornecendo carro e trailers, e repetindo com os luxos do século os trajetos das cara-vanas do Far West. Danusia foi indicada pelo Jornal do Brasil para ir na viagem, e eu como motorista.

Nossa caravana, porém, era ao revés dos colonos. De San Diego, na costa oeste, indo pelo deep south até Washington, num trajeto de muitas semanas. Como nas caravanas antigas dos filmes de mocinho, um agregado de gente de todo tipo, selvagens atacando na noite, e um trajeto de descoberta .

Portugueses, brasileiros, iugoslavos, italianos, ingle-ses, muitos italianos, coreanos, um mundo inteiro. Um trailer airstream, imensa cápsula espacial carre-gadinha de funcionalidades precisas, projetadas para a NASA. Um carro novo em folha, capaz de rebocar a casa de alumínio cintilante através do continente nu-ma maciez de espanto. A retórica da sedução ameri-cana, sobre rodas.

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No deserto do Arizona, a longa coluna de trinta ou mais trailers cintilava no sol. As pequenas cidades paravam para ver a cena estranha, um excesso de opu-lência mesmo na América. Opulência do Governo, tentando mudar a visão que a imprensa do resto do mundo tinha de um povo invasor e – fazia pouco – escorraçado.

Uma parada em Yuma, talvez o lugar mais quente das Américas: cinqüenta graus num meio dia de mês de maio. A atração local: uma penitenciária desativada, antes cenário de dezenas de filmes western, destino real e mítico dos criminosos mais desgraçados do país. À sombra das muralhas, após o sol sumir, um churrasco local, com a carne enterrada com as brasas, não assada em fogueiras como entre os gaúchos.

Muitas horas depois, ainda no deserto, terra de cactos monumentais e uma secura única, a capital do estado, Phoenix. Um sistema de irrigação herdado quase in-tacto dos índios Hohokan, e a opulência inacreditável de gramados e piscinas adubados a ouro puro. Prepo-tência contra a natureza.

No meio do deserto do Arizona, antes de chegar ao Novo México, vínhamos chegando a um daqueles raros postos de gasolina, oásis de carburante no meio do nada. De longe, uma nuvem de poeira vermelha; mais perto, um dos trailers prateados. Mais perto ain-da, uma pequena agrupação de gente, frentistas, pes-soal do bar anexo, um ou outro cliente, todos em roda olhando uma rinha.

Não eram galos de briga. Dois dos italianos, irmãos, do Correio della Sera, de Milão. De noite, nos esta-cionamentos dos trailers, cantavam ao violão, e com

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vozeirão, as músicas do Festival de San Remo. As americanas vinham ver, e os irmãos se faziam na ma-drugada. Ali, os dois se atracavam, rolando no chão, coisa que americano não faz. Eram bichos de outro planeta.

O povo pusilânime

O reitor da Universidade de Flagstaff no Arizona usa-va corte de cabelo militar, camisa de manga curta com gravata, nada na aparência que o marcasse como um acadêmico. O que ia dizendo reforçava ainda mais a impressão de que era não um professor universitá-rio, mas um pukka sahib 5 ou um coronel de fuzilei-ros:

“No início dos anos sessenta, os navajos começaram a vir para a Universidade. Tínhamos muitas baixas - um de cada quatro índios se suicidava antes do fim do pri-meiro ano letivo. Muito devagar, se acostumaram. Hoje morrem muito menos”

A questão em pauta é o do encontro de culturas. Quando se sai de Flagstaff para o leste, há um aviso enorme na estrada - “You are entering the Najavo Nation”. E por muitos quilômetros, a terra bastante inóspita é regida pelos tratados de paz entre os Esta-dos Unidos e um povo guerreiro, sob um estatuto de direito internacional.

A mortalidade, diz o coronel-reitor, é devida a falta de competitividade dos índios - que não participam

5 Pukka sahib, uma expressão em hindi, que denotava o inglês colonizador, distante e convicto de sua superioridade. “British prestige, the white man’s burden, the pukka sahib sans peur et sans reproche” (Burmese Days, George Orwell)

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dos esportes, que sofrem com a liberdade de iniciati-va, que não têm pulso e hombridade para lutar pelo melhor lugar. São tão pusilânimes como povo, que se suicidam por não poderem assimilar o melhor da ética da sociedade americana.

Isso era 1976, nos tempos de Carter e do bicentennial. Hoje o choque ético e étnico continua, e os navajos ainda rejeitam a competição como base moral e jurí-dica da sociedade:

``The two cultures are incompatible. The kids are raised differently, they're not competitive, they believe ine-qualities should be evened out. They're raised to be in harmony with the environment, and to take responsibil-ity for the clan. Unlike Western teenagers wanting to separate from their families, Indian teens try to recon-cile Western culture with traditional culture.'' 6

Logo depois de Flagstaff, afundei no deserto do Ari-zona, num carro empoeirado, e rodei horas até encon-trar uma artífice de jóias, para que engendrasse um colar de turquesa sem aquele jeito de produto para rednecks ou turistas.

Velha, com roupa de casa, a artífice me fez esperar, longamente. Com o instinto de viajante, assediado pelo tempo, o vagar da índia me exasperava; tentei explicar que eu não era americano, que não era caso de me submeter à economia da oferta ou a uma retali-ação navaja contra o opressor. A índia entendeu o que

6Marjorie Harvey, The Navajo Heartland, The Boston Globe, encontra-do em http://travel.boston.com/places/getaways/west/globe_cameron.shtml, visitado em 1o. de junho de 2003.

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quis, e quis pouco. Era o tempo dela, tempo de velha, tempo de navaja nas suas terras tribais. Esperei.

Poderia dizer que aproveitei a espera para refletir so-bre a experiência etnográfica, o que conta Levy-Strauss em Tristes Tropiques. O impacto ab-reativo que ejeta o estudioso de seu etnocentrismo e o expõe numa entrega total husserliana à alteridade de outra cultura. A verdade é que dormi. O sol estava quente e poeira incomodava.

O povo selvagem

Albuquerque, Novo México. Deserto de todo lado, e o campo de provas da primeira bomba atômica a mi-nutos de distância. Um povo com a nuca curtida de sol e com uma visão ampla de mundo: areia, calor e América.

Mudava o estado, mas não o padrão de ruína étnica. No momento da chegada, vi uma imensa praça, sem árvores, muito em cimento, onde centenas de índios bêbados, deitados no chão, sofriam o sol do meio dia, estatelados de álcool. Como se fossem vítimas da bomba de há 31 anos.

A caravana tinha chegado em Albuquerque aos peda-ços. Jornalistas não se dão bem com disciplina, e o oficial da Força Aérea designado para conduzir o bando não era treinado para entender a diversidade cultural do mundo. Portugueses recém chegados ao socialismo, três deles, incapazes de chegar a um con-senso sobre qualquer coisa. Quatro italianos, todos ali sob falso pretexto, barulhentos, brigões, antiame-ricanos todos. Coreanos confusos: um par deles tinha destroçado trailer e carro no segundo dia, e o outro

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time deles havia denunciado os iugoslavos e portu-gueses como comunistas.

Após a sessão com o gauleiter de Flagstaff, muitos dos jornalistas quiseram ter contatos com os índios. O coronel-aviador no comando da caravana ofereceu museus, livretos, tudo que não atrapalhasse seu cro-nograma estrito. Mas, de jeito nenhum, permitiria entrevistas. Como ocorreria com jornalistas america-nos num contexto igual, a proibição só fez atiçar a curiosidade. Danusia e outros latinos tomaram carros emprestados e sumiram no deserto para fazer maté-rias. Repreendidos, os viajantes entraram em todo tipo de protesto. Nada mais de comboio. Nada mais de horários. Em Albuquerque, já campeava a desobe-diência civil. Os italianos puxaram o coro do “we shall overcome” com que os negros impeliam a dese-gregação.

As regras da caravana previam que, em cada etapa, os trailers hasteassem a bandeira nacional dos viajantes. Na primeira noite em Albuquerque, os revoltosos se recusaram a cumprir a regra. Na segunda, um coletivo de conciliação reverteu o protesto. Hastearam todos. Pois, na madrugada, fomos acordados por gritos e batidas na parede do trailer. Os portugueses, cuidan-do dos irmãos de língua, perceberam que alguém ti-nha tirado a mangueira dos botijões de gás engarrafa-do, e enfiado na janela de nossa casa sobre rodas. Por que o cuidado? Tinham dilacerado os pneus dos iu-goslavos - comunistas- e marretado o trailer deles, lusitanos. As bandeiras tinham sido rasgadas.

A madrugada foi um caos. O povo local, que tinha necessariamente visto a invasão de estrangeiros, e

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talvez percebido a insurgência, parecia responsável pela selvageria. Só tinham sido agredidos os socialis-tas, e os brasileiros talvez por engano. Até mesmo os ingleses, aliados dos americanos até na vergonha, entraram no protesto, melhorando o sotaque do coro. De manhã, chegaram os agentes do FBI.

Mas, quase no horário, a caravana seguiu na longa estrada em direção a Washington. O propósito todo da viagem podia estar perdido, mas the show must go on. Como no circo Barnum.

Sex & the City

O outro brasileiro na caravana era um colunista social do Nordeste. Não exatamente um erudito. Ainda em San Diego, já com o Chrysler Córdoba novinho dado pelo Governo, ele se pôs num comboio de dois atrás de nosso carro. Difícil dirigir por ali. Por sinais, pediu para parar num posto de gasolina. Voltou, desatinado – tinha ido procurar o banheiro, e todo lugar que ele procurava, e parecia ser mictório, estava escrito res-taurante. Fui ver. Era “rest room”. A perífrase ameri-cana para banheiro. Nosso conterrâneo não sabia se-quer uma névoa de inglês.

Uma mão lava a outra, e ele veio à cola de nosso trai-ler, ou dos portugueses. Chegando a Washington, resolveu vir conosco a Nova York, já fora das benes-ses do Governo.

Nova York antes de Giuliani: um cenário de filme policial. Nossa primeira vez. Do aeroporto para Ma-nhattan, num ônibus cheio, o colunista sentou-se a-trás, ultimo banco. No percurso até o terminal, o ôni-bus foi esvaziando, nós, mais próximos do motorista,

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olhando gulosamente para a cidade nova. Nada mais distante da América que víramos nas semanas de tra-jeto pelo sul.

À chegada, o pernambucano estava cinza. Quando a parte de trás do ônibus ficara vazia, o seu vizinho de banco, negro e enorme, abrira um faca espanhola, daquelas cuja lâmina abre com mola, num estalo. A-briu o zíper, estalou a outra arma. Mandou que o co-lunista chupasse. O inglês do companheiro, pelo vis-to, melhorara exponencialmente durante a viagem. Concluídos os trabalhos, o chupado agradeceu com um “Welcome to the Big Apple”, levantou-se e su-miu.

Fomos os três para um hotel “de brasileiros” da rua 44. O colunista se trancou no quarto e foi no primeiro vôo. Acostumados com o resto dos Estados Unidos, Danusia e eu queríamos respirar um pouco da cidade, ir ao Times Square, a cinquenta metros do hotel. En-tre as curiosidades mais infantis, o anúncio luminoso de cigarros que, antes das campanhas contra o fumo, soltava baforadas intermináveis.

Na porta, porém, o funcionário do hotel reparou na imagem eslava de Danusia, na roupa riponga dos tempos e sugeriu: que ela não saísse. Àquela hora “ït was just not nice”. Impactada pelo episódio do ôni-bus, ela voltou para o quarto. Mas era o meu primeiro momento no centro do mundo. Saí. Dez metros do hotel, passei por um homem com um chipanzé, dos pequenos, montado no ombro; beijavam-se os dois na boca.

Cheguei até a esquina com Broadway, em frente ao Howard Johnson’s. Uma negra de shorts, gordota,

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com o maior decote que eu já vira, convidou com a objetividade de um corretor de bolsa: “wanna fuck?”. Transi de susto. “No, thank you..”, e acrescentei, com o que passei anos me envergonhando: “...madam”.

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La Pensée Sauvage

Gata mansa

Noel Nutels, sanitarista, era amigo de meu pai. Inven-tor de um serviço de unidades sanitárias aéreas do Ministério da Saúde, Noel vivia armando sua tenda de circo-hospital nos oito cantos do Brasil. Cortesia dos C-47 da FAB, avião lendário que voava at€ com le-nha, e não caía nunca.

Pela amizade e pela aventura, papai passava suas férias trabalhando de voluntário com Noel: nos ala-gados do Piauí, nas profundezas do Xingu, nos lepro-sários da Amazônia, cuidando de criança, pois era pediatra, e de todo o tipo de gente, pois era gente também. Voltava carregado de tacapes, cocares, cola-res, ilures. Estes, cordinhas tecidas de juta ou algo assim, eram a vestimenta das índias, infinitamente mais reduzidas do que um fio-dental de Ipanema, mas imensamente poderosos: homem que tocasse o ilure ficava panema, ou sem sorte na caça, riscando morrer de fome. Garantia de que só a doação, não a tomada à força, existisse nas tribos.

Um dia, ele volta com bichos. Um tucano de bico amarelo-ovo, quieto e solerte; um papagaio-urubu, calado e agressivo. Principalmente, uma oncinha, criança ainda, mas já do tamanho de jaguatirica. Ia crescer.

Na casa de Santa Teresa, no Largo do França, com quintais em patamares, já havia bicho manso: par de

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cachorros, galinha, um pato ou outro, preás, tinha até havido porcos. Pois o chiqueiro, enfeitado com gra-des, virou a casa da onça. Fedia, mas era essa a única agressão do jaguaretê fêmea; assim mesmo, involun-tária. Eu havia lido As Caçadas de Pedrinho, de Loba-to, mas nunca tinha sonhado em ter minha própria onça.

Meses depois, a onça foge. Um vizinho a viu, empo-leirada numa das mangueiras do quintal. Telefonou transtornado.

Quem estava lá em casa era a Dra. Jeane, médica es-cocesa, amiga de família: não precisava pedir muito para dançar, mesmo a seco, as jigas do seu povo. Fa-lava do castelo do seu clã, mas com jeito de quem conta histórias da carochinha. Falava também de uma amiga de Londres, que criava um pônei no aparta-mento, e nisso eu já ficava em dúvida. Jeane era es-tranha o suficiente para colecionar pessoas que criam pônei na sala de visitas.

Fantasias à parte, Jeane, que não podia ser médica no Brasil, contentava-se em ser árbitro de exposições de cachorro. Por isso mesmo, era a pessoa ideal para enfrentar a emergência uma fuga de onça. Ela achava isso. O marido de Jeane, engenheiro naval, preferiu ficar na segurança da casa, enquanto meu pai, ela e (recrutado pois tinha de ser macho) eu descíamos para ver a fera.

A mangueira se enraizava no terceiro patamar; a copa estava à altura do segundo, vizinha do chiqueiro, e fora por ai que a onça escapara. No sol da tarde, em contraste com a folhagem verde-vivo, a pelagem raja-da chegava a brilhar de tão amarela, e por isso fora

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vista de longe pela vizinhança. Nos prédios vizinhos, tinha arquibancadas de gente em cada janela.

Jeane sabia o que fazer. Provavelmente na sua Escó-cia, captura de onça devia ser o cotidiano. Aproxi-mou-se do galho longo que vinha até o patamar, e começou a chamar baixinho: “pussy, pussy, pussy...”. A onça olhou, com uma elegância de condessa italia-na. Ficou curiosa. Levantou no galho. Veio devagar-zinho, desfilando, como se tivesse sido desenhada por Jaques Fath. Jeane sussurando. A onça chegou perto, inclinou a cabeça para o lado, estranhando tu-do, mas sem medo. A escocesa afagou as orelhas. Meu pai apontou o que fazer, e segurou no cangote. Meu trabalho era segurar as ancas – e só pensava nas garras de trás.

Uns meses a mais, ninguém agüentava o crescimento da onça. Mesmo naquele dia, se não fosse tão quieta, ou tão seduzida pelos encantamentos de Jeane, nin-guém ia conseguir pegar assim um bicho do tamanho de uma cabra, mas com dentes, garras e uma fama de ferocidade maior do que ela. Teve gente das janelas que bateu palma e assobiou como se fosse circo.

Mas antes do fim da tarde chegou o abaixo-assinado. Onça, no Largo do França, mais não.

A barganha “-Ensaboa, meu bem, ensaboa, ensaboa -...já estou ensaboando...” (Cartola)

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Meu pai não era pessoa de entregar uma onça linda e sensual no jardim zoológico, assim, de mão beijada. Perguntou se tinha muita onça por lá, soube que a peça andava em falta, propôs escambo. Na época, sobrava quati na Quinta da Boa Vista – o Zôo do Rio. Escolheu o mais decorativo, voltou para casa – de táxi – com o bicho novo.

Sedoso e sagaz, o quati fez encanto. Vaidoso de seu pelame cor-de-lontra, lavava o rabo minuciosamente na latinha de água dos cachorros, esfregando o sabão com as duas mãozinhas. Um espetáculo de variedades que vinha gente p’ra ver. Meu pai ficava prosa.

Mas prudente: um patamar foi reservado só para o quati, com a galinhada e patos exilados para o nível mais abaixo – agora sem onça. Os cachorros passa-ram a morar em cima, no plano da casa. Cada bicho no seu galho.

Um dia, os cachorros pularam a cerca, e desceram aos domínios do quati. Eram dois, ambos maiores do que o vizinho. Foi uma chacina: em dois segundos os ca-chorros estavam no chão, ganindo, com os peitos a-bertos de cima a baixo. Sem ter feito sutura desde que era acadêmico, meu pai sofreu para costurar seus a-nimais, ajudado por mim; o mais manso, Tutuca de nome, acabou no hospital Veterinário do Exército, que de alguma coisa servia o status de veterano de guerra. Quer dizer, do meu pai.

Em direito estrito, o quati tinha razão; tinha sido ata-cado. Ficou até a admiração de que um bicho tão fino, de rabo tão veludoso, fosse a besta-fera na defesa de seus interesses. Mas minha avó Maria nem latiu para ele quando foi estender roupa no quintal, e assim

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mesmo o quati atacou de novo: na perna, e seriamen-te. Coisa de pronto socorro, e injeção antitetânica. O quati ia para o desterro de vez.

Mas havia um freqüentador da casa, amigo impreciso do pai, de nome Abílio que nem meu avô, que havia se tomado de amores pelo bicho. Aquela elegância e inteligência toda, o número do ensaboamento do rabo, tinha conquistado o homem. Não devolvesse não ao Zoológico: ele queria para o seu casarão de amplos espaços e muita bicharia da Ilha do Governador.

Enfim a nossa casa só de bicho manso. Mesmice. Meses depois, soubemos do quati.

O bicho acordara de jeito, e quando o Abílio dera conta, o galinheiro inteiro estava em penas espalhadas e sangue para todo lado. Abílio correu com os berros das cabras, berros curtos de quem morre com o pes-coço destroçado: quatro delas no chão, defuntas. Abí-lio voou para catar a chumbeira, e conseguiu salvar o filho, acuado contra a parede. Dois tiros de calibre doze, que um só não deu conta.

O mais engraçado é que o quati preferia sabonete Lever, o preferido de nove entre dez estrelas de ci-nema, ao sabão de coco que se lavava roupa de todo mundo.

Pajelança

Meu pai, quando receitava para os índios, mostrava o nascente, o alto do céu, o poente, e dava três pílulas.

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Em algum canto ainda deve haver uma gravação em fita de uma junta médica no Xingu; de um lado, meu pai, de outro o profissional local, um pajé. Cujo nome não registrou na fita.

Não se vê, óbvio, mas se percebe o movimento do colega em torno do paciente, batendo com os pés e bufando um charutão de ervas. O movimento todo, cantado e ritmado, dura uns dez minutos. A oca deve estar opaca de tanto fumo, pelo ruído de sopro e pela voz meio fumarenta do pajé. Depois, de médico a médico, o pajé disse a meu pai que toda a dança e toda a fumaça é apenas para impressionar o cliente: a cura vem das palavras mágicas que ele sussurra no ouvido do cliente.

Dessa vez, porém, a sessão não funcionou. Às tantas, ouve-se a voz do pajé num português quase impene-trável, obviamente falando com meu pai: “Não adian-ta. Vem você, que isso é doença de branco”.

A outra margem do rio

Na canoa, longe da margem, dois índios, o sertanista e meu pai. O Villasboas, useiro em aproximações e nem por isso menos tenso, estava em pé, mal equili-brado, só para ficar bem claro que era inofensivo e franco.

Se meu pai tivesse um mínimo de juízo, não estaria naquele igarapé sem nome conhecido, num pedaço do Brasil em que branco nenhum entrara, ou pelo menos, de que nenhum saíra. O primeiro contato com uma tribo isolada e intacta é sensibilíssimo, nesse tipo de festa teve gente que já sumiu sem deixar nem sombra.

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Para tempo de férias, era o mais lídimo programa de índio.

O Villasboas já está parado no meio do rio faz tempo, olhando a massa escura do povo índio na margem. Muita gente. As mulheres bem longe, criançada no mato, só homem em idade de briga na praia, esperan-do o que ia acontecer. Borduna, flecha, pedra, todos quietos e armados. Silêncio total, que nem os índios da canoa, nem Villasboas, muito menos meu pai, sa-biam nada do idioma remoto e obscuro da tribo nova.

Pois é então que o Villasboas começa a berrar: “mã-maa... mãmaa... mãmaa”. No silêncio geral, não podia haver coisa mais inusitada. Mas lá pelo décimo berro, alguém responde igual da margem, tímido. E o balido de um lado e de outro vai continuando, enquanto a canoa se aproxima lentissimamente da margem. Vil-lasboas sempre em pé, exposto e completamente inde-feso.

Quem explicou tudo sobre os berros foi o amigo co-mum dele, e do sertanista: o também médico Noel Nutels, autor das férias anuais do meu pai no Xingu. Villasboas aprendera que em todas as línguas da terra existe pelo menos uma palavra comum: o grito primal pela mãe, sempre como o primeiro som articulado, pelo labial “m” e a consoante básica. A palavra uni-versal, básica, que todas as tribos conhecidas e a se conhecer dividem, para revelar que, uns na margem, outros no meio do rio, somos todos homens do mes-mo jeito.

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Inteligentzia

Bandeira

Manoel Bandeira morava no Edifício São Miguel, naquela esquina de Beira Mar e Presidente Antonio Carlos que tem uma pracinha despretensiosa e uma catadupa de tráfego fazendo curva. Em 1953 ou 4, o tráfego era infinitamente mais esparso: os ônibus marrons Aclo-Grassi com só uma janela de frente – os “Camões”; lotações desgrenhados e suarentos; táxis negros, Chevrolets com jeito de lontra. Manuel atravessava a avenida, com cuidado, e ia dar aula na Faculdade de Filosofia, logo em frente, no prédio que, décadas após ser confiscado na guerra, acabou sendo devolvido para ser Consulado da Itália.

Dos meus oito a quatorze anos, Manoel era minha fonte de água mineral borbulhante. A Lira dos Cin-quent’anos, lida em incessância, me espantava que aquilo podia ser poesia – sem andaimes, sem caliça, a obra mais parecida com broto de capim. Acampado como escoteiro, os sapos coaxavam para mim com a cara bicuda de Bandeira; quando minha mãe preta, a cozinheira Eugênia, foi para o céu dos bons, virou Irene em minhas orações. A misteriosa palavra he-moptise entrou para a aritmética de minha poesia. O meu caminho para a Escola Machado de Assis, no Curvelo, acabou ficando com o jeito de Bandeira:

Ouviram do Ipiranga

O menino pulava na plataforma do bonde

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(é proibido viajar na plataforma e nos estribos)

O bonde vazio,

a rua vazia na hora de almoço

O bonde parou

andou

parou

O menino pendurava-se no balaústre

e sorria

O bonde parou

O garoto gritou

"independência ou morte"

E assim foi a vida, até que Luis Paulo Horta, colega do Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil on-de estagiava aos quinze anos, me apresentou a um soneto de Camões intenso e veraz, explodindo num verso final que só poderia ser em castelhano, e eu descobri a lírica mais antiga.

Mas Manuel Bandeira foi crucial em minha vida por razões muitíssimo diferentes. Vizinho do andar de cima no S. Miguel, o poeta subia no elevador com minha mãe e ouviu seu desespero: eu não bebia leite de jeito nenhum. Bandeira aconselhou: põe umas pas-sas no fundo do copo. Só deixa comer se ele acabar tudo. Cinqüenta anos depois, tão calcificado que nun-

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ca quebrei nenhum osso, sou grato sempre à política da gula do poeta.

Darcy

Você está no conforto mignon de um Clio, subindo os Apeninos. Antes que suma a imagem no retrovisor, chispa na pista ao lado uma Mercedes cinza-chumbo, com a placa da Holanda, e some ladeira acima. Pelo jeito, chega em Utrecht em dez minutos.

Assim era Darcy Ribeiro. No sofá da casa de Cícero Sandroni, pontificando para um círculo de mocinhas de saia rodada e olhos de farândola. Se pontificar é coisa que se faça em prestíssimo. Conheci o antropó-logo naqueles quinze minutos proverbiais de fama depois que um conto meu ganhara um concurso: na festa, o povo dos amigos de Sandroni me olhava com descrédito, Darcy parou um segundo para fazer-me uma cara de chacota cúmplice. Eu concordava com todos olhares.

Um tempo depois, o editor de livros do Jornal do Bra-sil me mandou um livro novo de Darcy para resenhar. Gostei, mais do que imaginaria poder. A prestidigita-ção vocal, o barroquismo vertiginoso dele tinham dado num romance eficaz e denso. E acabou saindo isso num sábado de julho de 1981:

Philogônio Castro Maya espera a mor-te. É coronelão do sertão goiano, mul-tas vezes assassino. Ladrão, genocida, ingrato, traidor e covarde. Um car-neirão preto do rebanho de Deus, que tenta subornar sua entrada no céu,

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comprando, com sua inteira herança, algum padre que o absolva.

Este Phylogônio, que já foi trem, Tere-zo e Terênclo, é cobra de muitos cou-ros, todos duros e espinhentos. O nome, como tudo que tem, foi tomado, Inventado ou feito. Não tem família nem raízes, a não ser as que se deu. Sem gente como ele no mundo, é o que pensa, só haveria "negro inútil e de-sordeiro vagabundo" E a mão de Deus que ordena os homens, no tiro, no re-lho, no latrocínio e na devastação.

Darcy Ribeiro constrói em Phylogônio uma das figuras mais fortes da litera-tura brasileira - é um homem por intei-ro, concreto, que ao fim do livro se ama ou desama, mas certamente se conhece com profundidade. O universo de O Mulo é absolutamente bem reali-zado, e se poderia dizer que a obra é um dos romances mais romanescos da literatura brasileira. Querendo-se, com isto, afirmar que o livro faz de Darcy um de nossos maiores autores de todos os tempos, no gênero a que se propõe.

Para um escritor que, em pessoa, tan-to se faz notar pelo furor verbal e pela velocidade de raciocínio O Mulo é surpreendentemente contido e preciso

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em seu tempo narrativo. Os fatos dis-correm com uma parcimônia de minei-ro, no momento adequado para não re-tardar, apressar ou desviar o fluxo Mesmo a técnica de avanços e recuos no tempo, coisa sempre muito artificial e aparente, surge em O Mulo tão natu-ral que não se apercebe. Darcy é fiel ao princípio wittgenstaniano de eclip-sar a escada ao chegar no alto.

Pelos mesmos motivos que fizeram Lukacs considerar a obra de Balzac como um exemplo de literatura políti-ca, o Mulo também o é. Sem necessi-dade de um discurso crítico como o que fez de mais uma denuncia do im-passe histórico das populações indíge-nas brasileiras, o romance constrói com tanta realidade a figura do senhor da guerra dos sertões brasileiros como nenhum brazilianist o fez. Em. Maira o antropólogo feito ficcionista usou de seu primeiro oficio os atributos de ce-nógrafo; em O Mulo, Darcy toma da antropologia o instrumento cortante para cavar, por dentro, a subjetividade de Phylogônio.

O Mulo é um romance de esterilidade e morte. O mestiço de cavalo e asno bicho forte, teimoso, secarrão, não perde a fome pelo sexo, mas não se re-produz: assim Phylogônio Os mistérios

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gozosos da vida sexual do coronelão, quase sempre heterossexuais, têm, po-rém a sina das relações entre pessoas de mesmo gênero ou animais de dife-rente espécie. Este nome de Castro Maya não terá herdeiros.

A morte é abundante. Phylogônio, que não distribui vida de gente, criou bi-cho, abriu pasto a fogo e plantou mor-te, própria ou alugada. Infinitamente mais solene e terrível que a morte alheia, a preparação para o fim de Phyilogônio, desenvolvida por ele mesmo nas quinhentas lentas paginas de sua confissão, é de uma pungência quase insuportável.

Darcy conseguiu, com O Mulo, reve-lar-se um elaborador de uma densida-de germânica, com uma narrativa que, mesmo em primeira pessoa, lembra de certa forma Mann de Os Buddenbro-oks. Para multa gente, acostumada à personalidade flamboyant do político do PDT, Ministro de Jango, arquiteto intelectual da Universidade de Brasília e critico geral da cultura, o romance deverá ser uma surpresa. Mais do que nunca, é o caso de pôr entre parênte-ses o patrulhamento instintivo dos que se opõem ou desconfiam do homem Darcy: ecce opera.

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Depois se diz que a crítica literária não ganha a vida de ninguém. Sete anos depois, muda o governo do Município: sobe o PDT de Marcelo Alencar. O novo procurador geral, de fora da casa e trabalhista antigo dos tempos em que Brizola era cunhado, mandou trazer os currículos dos procuradores. Encontrou a resenha de O Mulo. Decretou-me trabalhista, brizolis-ta ou simpatizante. Mandou nomear para o gabinete.

E assim aconteceu que Darcy (que, na festa do San-droni, desfaçatamente convidara minha mulher a lhe escrever sua biografia, como fazia com todas...) aca-bou me aposentando cum dignitate.

A ilha de Itaparica

Cabeleira de Castro Alves, baiano de profissão, Wil-son Woodrow Rodrigues estava com minha mãe e comigo no dia seguinte à queda de Jânio no pátio da Escola Popular de Educação Musical e Artística; Bri-zola atroava as rádios com a Cadeia da Legalidade – a campanha para João Goulart tomar posse. Nos meus doze anos, sentia viver em um naco importante da História. Meu espanto (disse aos dois) era de como os gaúchos, um povo tão quietinho, pudessem se infla-mar tanto com a posse do vice-presidente.

Wilson acendeu os fogachos. Sacudiu a cabeleira, ergueu a voz condoreira, levantou a mão cerrada co-mo se fosse bolchevique. Gaúcho pacífico? Uma idio-tice histórica. Era mesmo. Mas a raiva com que foi recebida me assustou: eu nunca tinha enfurecido um adulto. Mamãe, hábil sempre, empurrou a conversa para outro canto, e aos poucos Wilson foi amainando. A explosão, com os entusiasmos súbitos, a rememo-

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rações fantásticas e as idéias geniais de sempre fazi-am dele a minha visão do que seria um poeta.

Porque de músicos eu conhecia muitos: mamãe e os muitos colegas dela que viviam na nossa casa eram gente discreta, estável, sem os laivos do estilo artista. Verdade, havia as diseuses, senhoras de roupa de pa-vão e amplos peitos, recitando simbolistas fricativos, de que minha mãe se sentia constrangida. Fora delas, a arte que eu conhecia era trabalho de gente ordinária e cotidiana.

O poeta, porém, vivia poeticamente. Aos devaneios e explosões. Fornecia as letras para minha mãe, algu-mas delas de sucesso até hoje, como a da Procissão da Chuva, no repertório de um sem-número de corais. Com Hermínio Bello de Carvalho e João Pernambu-co, foi letrista de Estrada do Sertão, que continua sendo gravada por tudo que é cantor sertanejo (Coisa que não arrenego, nem tampouco desapego, ter gosta-do de você…). Mas o que ficou na minha memória foi a primeira quadra de Itaparica, música de D.Cacilda:

Eu vou para Itaparica

Quem me leva é o Rei dos Ventos

Numa Barquinha de Prata

Para além dos meus tormentos

Marcam também minha memória as estórias que con-tava, ribombantes de glória, e mais incríveis do que os seriados do Cineac Trianon. Ele estivera no quartel do 3º. Regimento de Infantaria na Praia Vermelha em 27 de novembro de 1935. Um recruta de 19 anos, não

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sabia nada da revolta que estourara no Recife uns dias antes. Foi acordado por um sargento, entregue um fuzil que ainda não sabia usar, bombardeado pela artilharia, e retirado dos escombros para ser preso como comunista sem distinguir o que isso queria di-zer. Herói de uma guerra curta e ininteligível, crimi-noso sem saber a causa.

Em algum momento dos anos 60, tornou-se sócio de meu tio Daltro numa editora: numa arca de papel, vendiam dez livros infantis escritos por Wilson, ilus-trados, como um tesouro literário. O produto era mui-to sedutor e um fracasso no mercado. Era Wilson Ro-drigues em seu melhor estilo.

Mas a explosão dele comigo no dia 26 de agosto de 1961 teve grandes frutos. Antes do fim do ano, tinha acabado de ler O Tempo e o Vento, de Érico Veríssi-mo e escrito tudo que aprendera sobre a história gaú-cha para o meu colégio.

Em 1991, quando Brizola veio visitar o Palácio da Cidade, nos estertores da separação do prefeito Mar-celo Alencar do seu PDT natal, pediram-me para in-ventar algum agrado. Lembrei-me de Wilson Rodri-gues, e daquele dia exatamente trinta anos antes, em que ele explodira comigo. Saiu um decreto, lido im-ponentemente pelo locutor da Prefeitura, pelo qual se fazia o 26 de agosto o Dia Municipal da Legalidade, lembrando da campanha do ex-governador do Rio Grande nas rádios do sul para empossar o cunhado como Presidente.

Marcelo, que não tinha menor idéia da minha inven-ção enquanto ouvia a leitura, assinou o papel do de-creto, confuso e com cara de “que merda é essa?”.

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Brizola avermelhou-se com a memória de suas bata-lhas antigas.

E eu acertei as contas com o poeta.

Lobato

Meu avô Mário morava numa casinha alugada ao lado de um riacho; em chuvas grandes a água subia e pu-nha para boiar até a clarineta dele, guardada numa cristaleira art deco. Naqueles inícios dos anos 50’, meus dois tios eram solteiros, e moravam com ele, sujeitos às mesmas enchentes.

Pois foi à casa de vila na Conde de Bonfim que fui chamado em 1954. Tinham descoberto que aprendera a ler sozinho, e meu padrinho, tio Newson, resolvera me dar a parte infantil das obras de Monteiro Lobato. Os dezessete volumes encadernados em verde a prata nem cabiam direito na mesa de jantar do avô. Novi-nhos, cintilantes, com cheiro de livro virgem. Dados antes que a próxima chuva transformasse tudo em polpa. Olhei comprido para o resto – adulto – da co-leção, começando pela Barca de Gleyre, mas essa estava votada ao sacrifício das águas.

É uma das lembranças mais enraizadas da infância. A enormidade do presente, nunca depois superada. Perto daquilo, só os três volumes da Aguilar de Eça, anos depois, vindos de minha madrinha. Pois aos dois pre-sentes li várias vezes de capa a capa, sem faltar a de-claração do impressor.

Anos mais tarde, minha escola pública me inscreveu em um campeonato de quem conhecia mais a obra de Lobato. Havia centenas de inscritos. Não me lembro de nenhuma classificação, mas é o evento em si que

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me impressiona. Olimpíadas lobatianas. Coisa do Brasil de então. No doutorado, décadas depois, o pro-fessor de Teoria da Justiça declarou que tinha chega-do aos gregos pela mão de os Trabalhos de Hércules (os dois últimos volumes da coleção). Coisas do Bra-sil de hoje ainda.

Alguém me pediu emprestado, nos tempos da Escola Deodoro, o volume onde estava a Gramática e a A-ritmética da Emília. Sumiu. Acabei sabendo muito de Péricles e Aspásia, e errando em todas regências. O ladrão acabou com um pedaço importante da minha formação. Pois que os anos de quadro negro parece que não existiram, mas Lobato, Uderzo e Gosciny foram as minhas universidades.

Vatel em Morvan

Assim que entramos no Morvan, veio um nevoeiro leitoso e denso. Uma das regiões mais despovoadas da França, a leste do eixo que vai de Dijon a Beaune, e constitui a Borgonha, o Morvan é uma floresta e três rios, principalmente o Yonne. Saulieu, a vila para onde íamos, não tem mais do que três mil pesso-as, e é uma das maiores da região. São árvores e árvo-res, clareiras na beira dos rios, lugar de pesca e caça. Pouca gente, talvez mais elfos, duendes e hemandría-des; ou pelo menos parecia, no meio do ruço.

O nevoeiro é um personagem por si próprio. No Mor-van, vem em ondas, e a quilha do carro parece que divide a massa aquosa como um barco faria. Em Mar de Espanha, caminho de Bicas, há um ruço parecido, mas se mantém a um metro do chão, deixando visível a estrada sob as rodas, e esconde o teto dos outros carros; mais de uma vez passei pela estrada, e em

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cada caso, deu medo. Não é o que se entenderia como natural. Em Étretat, acima do Havre, a névoa é súbita e cabal: uma parede cinza dentro da qual os navios uivam suas sirenes – parece uma armadilha para o povo do mar, desabando do céu e catapultando da água no mesmo instante. Um outro jeito de ser traiço-eiro.

Os raros carros franceses vão barganhando a estrada com seus faróis amarelos. O nosso, alugado na Suíça, tem um lumiar branco, que não foi inventado para andar nesse manjar nevoento, e só usa uma gasolina rara na França, talvez desconhecida no Morvan. Da-nusia está ansiosa com isso. Para muita gente, ficar cego na estrada é aflitivo, a fumaça esgarça a segu-rança de dirigir e dissolve a medula.

Tenho de saltar do carro para ver a placa da estrada: Auxerre para lá, e Saulieu pertinho. O Auberge Cote D’Or irrompe depois de uns minutos: antigo, refor-mado para parecer próspero, a renovação da Meca gastronômica que foi nos anos 60. É perto da hora do almoço, mas o albergue está iluminado como se ago-ra fosse uma festa noturna.

Bernard Loiseau, nesse tempo, está se projetando no espaço bélico dos grandes chefes. Faz pouco tempo, comprou o Auberge, depois de sete anos como chefe da casa. Uma escalada de rappel para quem nasceu pobre de marré-marré-marré e foi aprendiz do Trois-gros pai em Roanne. Vai nos dizer logo que ganhou a segunda estrela no Michelin, mas isso ainda era se-gredo.

O chef é um homem grande, já um pouco calvo nos seus trinta e poucos anos. Quando apareceu para a

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conversa com a jornalista brasileira, um pouco depois do meio dia, transpirava, talvez da cozinha, talvez da emoção da notícia, que lhe chegara há pouco. Fala muito rápido, numa tessitura de barítono. Rápido de-mais. Paul Bocuse dizia que Bernard era uma pessoa frágil: teso e febricitante na cadeira luxuosa de seu restaurante, era exatamente o que parecia. Apesar do tamanho e do sucesso.

Acuado pelo sucesso: fala da exasperação da carreira que escolheu, da doação constante e inexorável. Bo-cuse é um poseur e um canastrão, mas transmite segu-rança. Freddy Gerardet, a estrela suíça do momento, prefere conversar sobre futebol para não ficar no pân-tano da gastronomia. Loiseau se lamenta do público oscilante, dos críticos carrascos, dos investimentos enormes para os quais a vida de família pobre não lhe preparou. Estende os braços com os punhos e olhos fechados. O toque está todo molhado de suor, com o dia frio e tudo. Fica em pé, num susto, diz, quase suplicante, que queria muito de que gostássemos de sua comida. E vai embora.

Rãs num caldo forte de urtiga. Um primeiro prato espantoso: a erva tem um verde profundo, nem um átimo de gordura. As rãs em partículas temperam o caldo, sem oferecer resistência ao dente. Loiseau mandou um Borgonha branco para fazer companhia à urtiga, muitíssimo melhor e mais caro do que qual-quer de seus colegas o faria. Esforço para agradar que vai além da distensão muscular e da razoabilidade. Um risco também: qualquer prato empalidece perante aquele vinho. Não esse prato: memorável na sua evo-cação das bruxas do primeiro ato de Macbeth. Memo-rável pela criação.

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Vem um timo de vitela, com um tinto de Beaune qua-se tão precioso como o anterior. Entontecendo, e fa-zendo esquecer a fieira de delícias que seguiu. Depois do café, Loiseau reaparece. Nervoso, mais do que antes, como se uma matéria num jornal do Rio de Janeiro pudesse fazer diferença na sua vida. Agüenta ficar um minuto, ou dois, e desaparece. O salão está quase vazio, e ele olha desesperado contando os cli-entes.

Chegou à terceira estrela do Michelin em 1991, e flu-tuou de orgulho. Canonizara-se. No fim da década, abriu três restaurantes em Paris e lançou ações na bolsa, o primeiro chef do mundo a ser quotado em mercado. Em 2003, o Gault Millau o rebaixa de 19/20 para 17. O Figaro diz que há riscos de que perca a terceira estrela do Michelin. Bernard se mata. Bocuse, que estivera com ele no dia anterior, acusa os críticos de assassinos. Promete a reação da classe contra os que trucidaram Loiseau.

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L’Art poétique

Sobre poesias oferecidas

16 III 89

Nem todo mundo é igual; há os caudalosos. Drum-mond, segundo Cabral: “não há guarda chuva contra o poema". Cabral mesmo prefere ou só sabe a secura. Que talvez seja um jeito de fazer da introspecção uma forma criativa: Cabral está apaixonado por uma cole-ga de poesia agora, aos 69 anos, o que não parece ser sinal de uma secura de emoções, puro discurso de caniço pensante.

Eu sempre fui Cabral, Danusia foi Drummond. Drummond, chefe de gabinete do Ministro Capane-ma, enamorou-se, e sendo de movimentos imediatos, foi fazer amor nas escadas de incêndio do prédio do MEC na Graça Aranha; pois alguém abriu a porta e, no susto, o poeta despencou escada abaixo. Fraturas. No entanto, ele era tímido.

Tudo isto para te dizer que, nunca tendo entrado nu-ma escada de incêndio, só consigo ver teus poemas com os olhos secos de Cabral. E daí o "Catar Feijão": no escrever, diz ele, como no catar feijão, "joga-se fora o que boiar"; mas a diferença entre os dois atos é que no catar feijão recata-se a pedra do fundo do al-guidar; e no escrever, guarda-se a pedra-palavra: "a pedra dá à frase seu grão mais vivo/ obstrui a leitura fluviante, flutual".

Acho que no que aí há feijão bom, há até pedra; mas bóia muita coisa. Falta catar. Aliás, se não houvesse

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feijão e pedra eu nem estaria te escrevendo, porque na minha arrogância não perdôo falta de talento, quando é de estética que se trata. A poiésis, o ato de fazer, tem que resultar em proporção e em graça, em har-monia e em espanto (harmonia sem espanto não é arte: é decoração de interiores ou desenho industrial).

Aí vem o trabalho da cata. Eu com minha flauta: à minha direita, na minha mesa de advogado, ela fica ali me assombrando. A trinta centímetros, ela está a meio segundo de distância, mas a quatro meses de estudo obstinado, se tivesse que tocar em concerto. Vale a pena? Vale catar poemas, se a intenção é ex-pressar-se e não poiésis? Pois que poemas não falam do amor e de impasses, da frustração de uma conversa intensa ao telefone pelos reclamos imediatos, absolu-tamente concretos, do Gabriel. Poemas falam de poe-sia, só. Chatíssimos.

Só que quando o puto do Byron escreve "She walks in beauty, like the night/ of cloudless climes and star-ry skies" eu vejo a beleza da mulher que eu quero, e não a de alguma lady de 1811. O poeta fez a doação enorme de objetivar sua paixão, de criar um universo emotivo onde os afetos são comprimidos ao extremo, adquirem o peso do chumbo e ao mesmo tempo a dureza do diamante (cientificamente, poesia é isso: compressão do máximo de significado numa forma auto-referente). A poesia não é uma expressão de sentimentos, mas uma conformação, uma doação de trabalho e instinto aos outros, ao público impessoal. Não é, enfim, uma expressão de amor individual, mas um ato de amor à Humanidade.

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Também é uma superação do efêmero, como é óbvio. "So long as men can breath or eyes can see,/ So long lives this, and this gives life to thee", dizia Shake-speare ao seu Cavalheiro. Este efêmero, cuja fruição é todo o Zen, e é o contrário de nossa arte e poesia do Ocidente.

De outro lado, além do poema, há o ato de mostrar o poema, que, como ato, é também poiésis, e tem uma infinidade de sentidos, todos eles (para mim) sedosos. ("Que sob a palavra gasta/persiste na coisa seda" - sempre Cabral).

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O falso e o implausível

Falsificações

"Much better than say the truth, is to contrive it" (Nixon, My Later Years)

C'est toujours un plaisir toucher l'ennemie avec la fleurette, et plus encore sans en faire usage (LAbé Scarron)

De um soneto de Alceu Pequeno, Villa Rica, sec. xviii: "se eu tivesse uma alma ainda sobrando/ seria ela toda, e sempre, para ti/ contando as almas todas que perdi/ não teria mais como fi-car te amando”.

Rien ou tout on attend, car attendre c'est humain; mais qui attend ne doit avoir l'espérance que le temps vole, les choses changent soudaines. Laisse le temps être le temps.

Mon jour commence à ton visage, à ta voix, qui est ta présence; avant et après, l’impertinence de une vie qui jamais dégage.

La jeunesse ne passe pas. C'est la vieillesse que triomphe

A procura de um contexto

Eva é a prova de que a humanidade desceu do Monte de Vênus.

A educação rigorosa é como traje a rigor: uma con-corrência desleal entre mamilos e rubis.

A farândola de sua chegada.

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Há perguntas tão perigosas, que só cabe a indefinição benfazeja de um sorriso; e os olhos baixos do silên-cio.

Brincar de dicionário é uma arrogância que adoro.

Ha uma peça do Millor em que a Fernanda Montene-gro se aproximava do publico e dizia “: Dizem que os nazistas mataram seis milhões de judeus. Vamos ver: tem algum judeu ai, levante a mão!" Vários levanta-vam as mãos na audiência. Depois ela perguntava: "E nazistas tem algum aí!" Não aparecia nenhum. O que demonstra que os nazistas, segundo Darwin, são uma raça inferior.

Gosto de doce de leite sem açúcar. Suavidade sem peso.

Quando encontro uma mulher talentosa, não a quero como apatroada. Quero solta e redomoinhante como um pião de purpurina

Você já viu a lista de países na Internet? Vamos nos mudar para Mayotte? Prefere Tokelau? Svalbard? Palau - e virar palauenses? Niue deve ser lindo e pre-to. Em Kiribati o cunilíngus deve ser a língua oficial. Em Kyrgyzstan o prato nacional fede. Na Eritrea as ereções devem ser eternas. Vamos abrir um restauran-te nas Cook Islands? Um gift Shop nas Christmas Islands? Um fábrica de cocadinhas nas Cocos Is-lands? Um buraco de esgoto no Burkina Faso?

Palas Athena? Muito fofoqueira. Leu a Iliada? Palas Athena é uma Hidelgard Angel homérica. Nasceu de uma machadada. Padeceu sob Hefaístos (ou Vulca-no...), está sentada à mão direita de Zeus, a quem ten-ta muito incestuosamente.

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Sodome et Gomorre é ideal para tédio com abóbora.

Uma conversa suave ao pé do fogo. Sendo você o fogo.

Há momento em que uma mulher é estranha como uma ventania.

De la musique avant toute chose; après elle, le déluge.

As objetividades são muito cascudas.

Uma dama das antigas, no leito de morte, estende as mãos para o lençol e, com a voz desgostosa de todas as decadências que passara, diz para as filhas: “len-çolzinho de morim ordinário". Fala, e morre.

Você deve estar rinchando que nem carro de boi nhé-éém, nhéééém, e ainda assim bovinamente puxando a carga.

Filhas de mãe linda: a vontade dúbia da mãe é criar uma condessa, projetada para mostrar o útero diaman-tino que a gerou, mas a fille inachevée jamais chega aos pés da fada insuperável.

Em Portugal não existem bundas; existem nádegas, que é um tipo de rabanada sem açúcar.

A tarde estava tão macia e linda, que me faz brincar como um cachorro bebê, mordendo meu próprio rabo, numa felicidade peluda e desorganizada.

Possível não é o limite, mas o tamanho da vontade.

Dona Blandícia de Castro, marquesa de Balaústre. Meu irmão dizia quando criança, obstinadamente: “caiu do balaústre e bateu no paralelepípedo”.

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Há mulheres que só sabem se vestir de Christian La-croix verde musgo com chifons escarlates e penas. Ou então ficam peladas.

The lingering aspect of ponderousness.

A cumplicidade no projeto comum estava gostosa como beiju quente.

Uma mulher curiosa, como todas as que conheci. Tem hábitos indescoláveis, e se refere ao sexo como um fato objetivo da vida. Um besouro. A taxa da inflação. O motor de combustão interna.

São Tomé nunca teve um orgasmo.

Se você se vestisse de seu inconsciente, andava nuí-nha...

Eis aí um beijo, e que se espraie no universo, mas bem fininho, para que alguma densidade seja guarda-da para mim.

Dando sustos com máscara de camelo.

Soneto é a aplicação do princípio cartesiano de dividir o problema em quantas partes sejam necessárias para resolvê-lo, sem esquartejar a fantasia.

Uma realidade de quitandeiro.

Meio envergonhada, meio emputecida, meio incerta se está sendo esperta, meio desconfiada de ser saca-neada, amassada entre quatro meios...

Espoucar de um prazer estelar

A gente tem a selvageria que nos é outorgada.

Um fiapo de tato

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Verossimilhança é feito barril de carvalho, não é o crucial para o vinho, mas ninguém compra sem isso.

As católicas estão acostumadas a rezar para muitos santos. Monoteistas no dogma (trindade à parte} e politeístas na pragmática da vela de cada dia.

Presente que no presente se diz que não quis passa-do...a ferro. .

Meu pecado maior não sei se é a luxúria ou a gula - e o beijo cumula os dois

Vingança, seu nome é inaudível.

Os miasmas do pântano também borbulham.

Passas, passas, gavião, todo o prazer é bom?

Minha foto de casamento. Eu ainda sem barbicha. De cabelos longos. Túnica verde indiana. Colar de bron-ze trabalhado. Ela de vestido roxo africano, loura co-mo um sol sueco.

Galgo é bicho caçador, nobre, calmo enquanto não corre, preguiçoso fora de temporada, e pensativo.

Quero esse fogo não de Prometeu mas de Cumpriu.

Se tivera, queimara lenha de sândalo para você.

Por ocasião do Dia dos Namorados, estou lhe repas-sando esse destampador de empada de bacalhau a vapor de mercúrio.

Discarded souls...vender este título a Hollywood?

Eu estava quieto, um pombo de praça. Você vem, chuva do dia de S.Sebastião.

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A sensação receptiva, veludosa, centrípeta, ou a inte-ração de eco e resposta...

A paixão, como a experimento, é um delírio de falta e um estado que transforma a carência num pântano em que você quer sumir em prazer.

Fados vorazes se empenham em me fazer naufragar: seja o escolho, seja o mar, tudo conspira a quebrar os amores que me tenham.

Embeba-se em desvanecimento, moça.

Não existe frio abaixo dos vinte anos

Talvez você agora compreenda o que é não querer ter casa... É pintar de transparente todas as paredes.

Jantei ornitologicamente: com uma americana de lon-gos e desgrenhados cabelos grisalhos, com voz de corvo e pele encarquilhada, e um grande bicha calado e imperturbável.

Noun: chutzpah 1. aggressive boldness or unmitigated effrontery

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Quando vendi o ouro do Brasil

Vinte anos de marasmo

O Professor Bloch já estava em Wall Street no Crash de 1929. Para os estudantes em Columbia, isso lhe dava tanta autoridade para falar de crise na economia quanto se fosse uma testemunha ocular do Gênesis. Banqueiro aposentado, ele tinha visto tudo, passado por tudo. Mas, confessou, de uma idiotice maior nun-ca tinha ouvido falar.

Era fins de agosto de 1982, e Bloch começara o seu seminário de Direito Bancário e Monetário Interna-cional avisando que umas horas antes o México tinha declarado sua falência. Nada demais. A Costa Rica, dois meses antes, já havia passado por isso. O dinhei-ro lá acabara em silêncio. O presidente costarriquenho não tinha ido à televisão declarar falência. O mexica-no, porém, macho (e ele falava “macho” como se fosse o apêndice caudal de algum primata), dissera com todas as letras que não ia pagar a conta. Isso ia afundar a economia da América Latina por trinta a-nos. Um profeta bíblico não amaldiçoaria melhor.

A feitiçaria era a seguinte: mesmo que um país pa-rasse de pagar, os bancos não precisavam dar como perda um empréstimo. Um país não vai, de verdade, à falência. Ou assim dizia o direito e a contabilidade. Um dia alguém vai pagar a conta, docemente ou na marra. Assim, mesmo quando a Costa Rica parara de pagar, os bancos não tinham tido de reconhecer o buraco; o lucro dos acionistas não fora afetado. A única exceção a essa regra era quando o presidente ou

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o banco central renegassem a dívida. O mexicano tinha feito isso. Podia simplesmente deixar de pagar, e tudo ia ficar na mesma. Mas não, resolvera assumir o calote e dizer que era isso mesmo: os credores que perdessem as esperanças. As ações dos bancos iam cair. Para defender-se da crise, eles iam fechar as por-tas para os latinos machos.

Na segunda feira seguinte, fui pegar minha bolsa do CNPq no Banco do Brasil da Quinta Avenida. Mos-trei o papel, o caixa pediu desculpas: só estavam pa-gando até duzentos dólares. Fui falar com o gerente, armado do cartão de visitas do escritório em Nova York onde estava trabalhando: era o que representava o Banco. O gerente geral me recebeu imediatamente (para meu espanto) e com cara de medo. Parecia que ele, e não eu, ia pedir socorro. A regra dos duzentos dólares já não valia mais desde o momento que eu fora falar com o caixa. O cofre estava literal e absolu-tamente vazio. Pedi permissão ao meu chefe, Peter Briger, e empinei um vale junto à contadora do escri-tório para fazer o supermercado da semana.

Dois dias depois, estava cedo no escritório, pois tinha prova mais tarde em Columbia. A búfala da minha secretária me passou uma chamada do gerente do Banco do Brasil: eu era o único advogado já na casa, e ainda por cima cucaracho como o cliente. O mesmo gerente. A voz parecia de bêbedo. Um banquinho de Idaho ou Montana, desses tamboretes de uma agência só, tinha cobrado uma conta no dia anterior, e o Ban-co não tinha conseguido pagar. Implacável, o credor tinha requerido a falência do insigne, secular e inaba-lável Banco do Brasil. A notificação estava na mesa. Tudo era rápido demais na maldição do Professor

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Bloch. O gerente começou a se lamentar: e sua apo-sentadoria?

Imediatamente após a demonstração de macheza me-xicana, os bancos tinha fechado o interbancário: o dinheirinho que os banqueiros passam um para o ou-tro todo dia para fechar o caixa. Latino não tinha mais direito a dinheiro até pagar todas as dívidas. A agên-cia da Quinta Avenida centralizava todas as contas do Governo no exterior: embaixadas, compras governa-mentais, repagamentos de empréstimos. Tudo. Se ali estava sem dinheiro, o Brasil estava simplesmente - sem qualquer ficção jurídica ou contábil - falido. Ba-teu o gongo.

Pedi ao gerente para entregar a citação no escritório, avisei a um colega americano, no momento que che-gou, que tinha que correr á Corte de Falências imedia-tamente, e fui para Columbia fazer prova. Inquieto e decidido voltar para a batalha. Horas depois, soube por telefone que o Manny Hanny, o Banco Manufac-turers Hannover, tinha remido a dívida do banquinho caipira. Não era nada, e o caos da falência só ia pio-rar o momento. Peter Briger, depois, dizia que o ban-co americano fora o White Knight - o cavaleiro an-dante salvador do moinho brasileiro.

Mas, naquelas horas até o salvamento do Manny Hanny, e sem que a História contasse, o Brasil tinha estado completamente falido.

O silêncio é de ouro

O velho Bloch explicou: por muito tempo, banco não emprestava diretamente ao países. Se o Brasil preci-sava de dinheiro, tinha de recorrer aos países ricos ou,

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depois que foram criados, às instituições internacio-nais como o Banco Mundial. Ou tentar sua sorte e prestígio junto ao público, lançando títulos no merca-do (mas isso acontecia mais até 1929...quando o pú-blico acreditava em país como o Brasil). Juros relati-vamente baixos, longos prazos, contratos raros.

Vem a guerra de 1973, e os árabes se vingam da der-rota elevando os preços do petróleo. Entupidos de dinheiro, depositam nos bancos que, por sua vez, pas-sam a emprestar aos países. Mas sob condições co-merciais duras: juros flutuantes. A cada período, os juros sobem (ou, teoricamente, descem) conforme o mercado. As três coisas se juntaram para levar os paí-ses ao caos: dinheiro fácil, juros imprevisíveis e au-mento de custos pelo petróleo caro. Viciados na a-bundância do dinheiro dos bancos, o Brasil e os de-mais chafurdaram em débitos. Um dia tinha mesmo que explodir.

Agora, com a cara preta da pólvora, o Brasil tinha que fazer alguma coisa. Conseguir dinheiro do FMI - mas só viria daqui a tempos. João Figueiredo pede socorro a Ronald Reagan, de canastrão a canastrão. Ganhou promessa de um empréstimo-ponte até vir dinheiro do FMI. Mas só promessa. Por enquanto, nada. E agora? Como eu ia ficar sem minha bolsa? Como comprar cafezinho para o gerente do Banco do Brasil da Quin-ta Avenida?

Como qualquer família que bate na lama, tínhamos que levar nossas jóias para o prego. No caso, nosso ouro. As reservas brasileiras de ouro não ficavam no Brasil, onde (como acontecera com a Taça Jules Ri-met) podiam roubar tudo. Estavam guardadas num

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subsolo do Federal Reserve de Nova York. Peter Bri-ger, o meu chefe, encomendou redigir um contrato de venda-recompra na bolsa de Londres. O ouro não ia sair de onde estava, mas trocava de propriedade para garantir o empréstimo, exatamente como acontece quando alguém vai ao penhor da Caixa Econômica.

Poucos dias depois, Ernane Galveas, Ministro da Fazenda, veio à sala do Peter Briger. Nunca o tinha encontrado pessoalmente no Brasil, mas o bigodinho de Clark Gable era inconfundível. Vinha tratar da venda do outro. Traduziu para o inglês o ditado “vão-se os anéis, ficam os dedos”. Peter disse que enten-deu. Consolou: é por pouco tempo. Mas saí da sala impressionado com a miséria súbita do Brasil Grande (como a propaganda de Garrastazu Médici repetia durante a Copa de 70´). Nem um centavo no cofre do banco, vendendo todo ouro que tinha para chegar no fim da semana.

Galveas quis ver o seu ouro, consegui de ir junto. O bulhão (ou reserva de ouro...) estava num buraco 50 pés abaixo do nível do mar, fundo sob Federal Reser-ve da Liberty Street número 33. Pega-se um elevador controlado pela segurança e se desce cinco andares sob o chão. Uma massa de tijolos de ouro cintilante, mas guardada em estantes como se fossem livros. Trouxeram umas barras para ver e tocar. Lamber, se quiséssemos. Em geral, as barras eram tijolos unifor-mes, pesando uns quatorze quilos ou quatrocentas onças de Troyes. Cada uma capaz de comprar um apartamento de três quartos na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mas o funcionário, para afagar nossa consci-ência de mendigos, veio mostrar uma barra com o

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cunho do Primeiro Império: o tesouro era nosso já há séculos, não íamos perder não.

O Ministro pediu para eu abrir a boca. Não entendi. Ele atacou de humor nigérrimo: “vamos vender suas obturações também”. Ainda bem que minha aliança de casamento era de prata barata, comprada na feira hippie de Ipanema, nos tempos em que eu mesmo era um pouquinho Woodstock. Senão, ia também.

Tubarão

Peter Briger é um homem calado e fechado; não há ninguém menos envolvente e sociável. Ao contrário de todos os escritórios de advocacia de primeiro ní-vel, trabalha sozinho, sem sócios, com apenas alguns associados. Não fala português, apesar de casado com brasileira. Apesar disso, conseguiu, durante dé-cadas, representar os interesses jurídicos das maiores estatais brasileiras e do próprio Tesouro Nacional no exterior.

Provavelmente por causa de sua criatividade. Como tocar um projeto de investimento, sem dinheiro brasi-leiro, naqueles tempos em que os bancos não davam nem ficha para o cafezinho? Peter inventou o jeito: os bancos japoneses, como todos demais, estavam impe-didos de dar dinheiro ao Brasil, mas as empresas in-dustriais podiam vender e comprar. Que tal juntar um número suficiente delas, com dinheiro tomado do próprio banco de seu grupo econômico, para tocar o projeto. Como? Comprando a vista e vendendo a pra-zo a usina de Tubarão. Financiamento sem ter o no-me.

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O problema é rever os documentos de 70 empresas japonesas. Fazer um contrato potável sob o direito brasileiro, e aceitável para os compradores. Dar pare-cer sobre a absoluta legalidade da operação quanto à lei de licitações, código civil, sistema tributário fede-ral, estadual e municipal, normas cambiais e tudo quanto pudesse atrapalhar a genialidade do meu che-fe. O parecer era comigo. Em Nova York, longe das bibliotecas, longe dos cochichos, o medo era muito de errar ou ser encurralado pelos interesses em jogo.

Exigi ler tudo. Cada papelzinho, telex, aide memoire. Peter é preciso e documenta tudo que diz e faz. Re-clamei de duas coisas: com tanto comprador que vira vendedor imediatamente, havia o risco de algum dos setenta estar ou ficar insolvente em relação a uma ação já em curso lá no Japão ou em algum outro lu-gar. Se fosse assim, a venda da usina seria inoponível ao credor do japonês. Depois, eu achava que ia haver incidência de imposto de transmissão para cá e para lá. Meu antigo professor no mestrado, Arnoldo Wald, tinha um parecer contrário na questão do imposto, mas fiquei com minha paranóia (depois, justificada).

Mas, fora isso, a operação estava conforme às leis brasileiras, não é? Estava. Só que o risco dos credo-res, e o imposto de transmissão eram coisas substan-tivas. Depois de muita pressão, acabei aceitando a fórmula: “Não dou parecer, no entanto...” quanto aos pontos problemáticos. Não me opunha à operação, mas não assumia o risco. Jesuiticamente.

A cerimônia em novembro de 1982: uma sala imensa num hotel de luxo de Nova York, onde os setenta presidentes e seus infinitos assessores reluziam os

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óculos de grau e chilreavam como passarinho em jar-dim zoológico. O Ministro Galvêas veio, de cabelo lustroso e terno de festa. Peter Briger, quieto num canto em seu papel de Fu Manchu.

De repente vejo passar, entre os volumes encaderna-dos dos contratos a serem assinados, um de capa ver-melha. Esse, não tinha visto. Pulei da cadeira e agar-rei a cópia. Vários compromissos feitos pelo governo brasileiro aos japoneses. Alguns, assim de relance, implausíveis. Devolvi o documento à pilha. Problema deles. Meu parecer estava pendurado numa cópia do contrato que eu tinha visto, cada página rubricada. Só atestava a legalidade do que rubricava. Aos trinta e quatro anos, já não metia mão em cumbuca.