uma genealogia das compulsões 2010

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verve 149 uma genealogia das compulsões 1 leandro siqueira A partir da década de 1990, batizada de “a década do Cérebro”, 2 uma série de comportamentos, condutas ou hábitos considerados excessivos, descontrolados ou repetitivos ganharam maior atenção da psiquiatria, no momento em que esta procurava reelaborar seus saberes e práticas para atender às demandas colocadas pela crise das sociedades disciplinares e a emergência das sociedades de controle. Chamados genericamente de compulsões, estes com- portamentos do excesso ressaltaram a incidência de anti- gas “neuroses”, até então consideradas raras e praticamente desconhecidas, consolidaram a prática psiquiátrica no trata- mento de “vícios” e são responsáveis pela inclusão de “no- vos transtornos” nos manuais de classificação e diagnóstico psiquiátricos. Compostas por um grupo heterogêneo de transtornos, as compulsões assinalam o rumo dos saberes psi: flexibilizar as rígidas categorias diagnósticas, tão per- Leandro Siqueira é pesquisador no Nu-Sol, doutorando no Programa de Estu- dos Pós-Graduados em Ciências Sociais pela PUC-SP, mestre em Ciências Sociais (PUC-SP), bacharel em Comunicação Social (PUC-SP) e Ciências Sociais (USP).

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    uma genealogia das compulses1

    leandro siqueira

    A partir da dcada de 1990, batizada de a dcada do Crebro,2 uma srie de comportamentos, condutas ou hbitos considerados excessivos, descontrolados ou repetitivos ganharam maior ateno da psiquiatria, no momento em que esta procurava reelaborar seus saberes e prticas para atender s demandas colocadas pela crise das sociedades disciplinares e a emergncia das sociedades de controle.

    Chamados genericamente de compulses, estes com-portamentos do excesso ressaltaram a incidncia de anti-gas neuroses, at ento consideradas raras e praticamente desconhecidas, consolidaram a prtica psiquitrica no trata-mento de vcios e so responsveis pela incluso de no-vos transtornos nos manuais de classificao e diagnstico psiquitricos. Compostas por um grupo heterogneo de transtornos, as compulses assinalam o rumo dos saberes psi: flexibilizar as rgidas categorias diagnsticas, to per-

    Leandro Siqueira pesquisador no Nu-Sol, doutorando no Programa de Estu-

    dos Ps-Graduados em Cincias Sociais pela PUC-SP, mestre em Cincias Sociais

    (PUC-SP), bacharel em Comunicao Social (PUC-SP) e Cincias Sociais (USP).

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    tinentes s sociedades disciplinares, apostando na criao de dimenses ou fluxos de transtornos, que propiciam a incluso ilimitada sob seu governo de outras populaes, para alm dos considerados doentes mentais.

    As compulses esto presentes em uma gama de trans-tornos mentais do DSM IV-TR (Quarta Edio Revis-ta do Manual de Diagnstico e Estatstica dos Transtornos Mentais, da American Psychiatric Association), com desta-que para o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), os Transtornos do Controle de Impulsos (TCI) e os Trans-tornos de Uso de Substncias. No saber psiquitrico, as compulses referem-se a transtornos relacionados ao e volio, ou seja, distrbios em que a capacidade de agir e de desejar do indivduo so comprometidas, colocando em risco a sade mental e a qualidade de vida dos portadores. No foco do interesse psiquitrico se encontram questio-namentos sobre o que voluntrio, racional ou passvel de ser controlado no comportamento do indivduo, frente ao que h de automtico, impulsivo ou descontrolado na ao e vontade humanas.

    Na literatura psiquitrica, e mesmo em revistas volta-das para o pblico geral, as compulses so descritas na forma de pequenas alteraes do comportamento, ob-servadas em condutas menores, mais simples e comuns do cotidiano das sociedades ocidentais como: limpar, co-mer, beber, verificar, fazer sexo, praticar exerccios fsicos, comprar, conectar-se Internet, etc. Na tabela a seguir constam algumas verses patolgicas de atividades do cotidiano que, quando consideradas em excesso, so de-nominadas de compulses da vida moderna.

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    Quadro 1. Compulses da Vida Moderna3

    Atividade Denominaes

    Amor Dependncia Afetiva, Love Addic- tion, Amor Patolgico

    Celular Dependncia do Celular, Mobile Phone Dependence Syndrom

    Compras Compras Compulsivas, Impulsive Buying, Shopping Addiction

    Comida Transtorno da Compulso Ali- mentar Peridica, Bing Eating

    Exerccios Vigorexia, Transtorno Dismrfico Muscular, Sndrome de Adnis

    Internet Dependncia de Internet, Compul- so por Internet

    Jogo Jogo Patolgico, Dependncia por Jogo

    Sexo Sexo compulsivo, Dependncia Se- xual, Impulso Sexual Excessivo

    Trabalho Compulso por Trabalho, Depen- dncia do Trabalho, Workaholism

    Ao longo da dcada de 1990, observa-se o surgimento de duas geraes de saberes sobre as compulses, reuni-das em uma dimenso de transtornos, os Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo, que tm grande proba-bilidade de compor em um novo grupo de transtornos na quinta edio do DSM.4 Na primeira gerao de saberes

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    sobre as compulses, desdobrada dos conhecimentos sobre o TOC, as compulses so tidas como respostas compor-tamentais ansiedade gerada por imagens ou pensamen-tos intrusivos e repetitivos (obsesses), que at mesmo para o portador podem parecer absurdos ou ridculos. o caso, por exemplo, das pessoas que lavam as mos inmeras vezes ao dia, descontroladamente, por medo de se contaminarem com vrus e bactrias, ou daquelas que no conseguem parar de verificar se portas e janelas esto trancadas por temerem a possibilidade de algum invadir sua casa. Tratam-se, por-tanto, de comportamentos individuais de averso a riscos.

    Em meados daquela mesma dcada, aparece nas clni-cas psiquitricas uma populao de indivduos em busca de tratamento para compulses que no eram exatamente iguais s descritas no TOC, principalmente por no serem condutas voltadas para se evitar riscos. Estes compulsivos relatavam sofrer psiquicamente devido incapacidade de controlar suas condutas excessivas que os impeliam a executar aes para a satisfao de prazer, as quais, com o passar do tempo, criavam diversos problemas nos mbi-tos pessoal, familiar, social e econmico. Assim, tornaram-se mais comuns os jogadores patolgicos e compradores compulsivos, cujas dvidas acumuladas ameaam a sade de sua vida econmica, ou ento, de compulsivos sexuais, cuja busca desenfreada por sexo os colocava mais prximos de contrarem doenas sexualmente transmissveis ou co-laborava para o fracasso do casamento e de outras relaes. Nesta segunda gerao de compulses, os comportamen-tos repetitivos e excessivos prescindem da existncia de obsesses, sendo relatados impulsos como fatores desen-cadeadores de tais condutas.

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    tambm neste momento que se consolida uma com-preenso das compulses que procura descrev-las como uma forma especial de dependncia. Enquanto nas de-pendncias clssicas, o indivduo manifesta sintomas de fissura, tolerncia e abstinncia por substncias como lcool ou outras drogas psicoativas, as compulses foram teorizadas como dependncias no-qumicas, isto , como dependncias a comportamentos e condutas que trazem gratificaes na forma de prazer, por exemplo, quando o indivduo faz exerccios em demasia, sexo, compras, aven-tura-se no jogo ou acessa a Internet.

    Ora denominadas compulses, ora dependncias ou im-pulsividades, as nomenclaturas dadas ao longo das ltimas dcadas aos comportamentos do excesso mostram bem como os saberes sobre as compulses foram elaborados por vezes seguindo o modelo do TOC (obsesses/compulses), outras seguindo o modelo das dependncias, ou ento, segundo um terceiro conjunto de transtornos, os Transtornos do Controle de Impulsos (TCI),5 cuja principal caracterstica o fracas-so em resistir a um impulso ou tentao de executar um ato perigoso para a prpria pessoa ou para outros.6

    Longe das discusses psiquitricas sobre a mais correta maneira de se classificar as compulses, este artigo pro-pe-se a pensar as compulses como um campo impreciso e esfumaado em que quase impossvel diferenciar se so sentimentos de obrigao, impulsos ou dependncias que levam os indivduos a repetirem de forma excessiva e descontrolada certos comportamentos, sejam eles com o objetivo de aliviar o desprazer ou de buscar prazer. O inte-resse desta anlise poltica sobre as compulses passa pelo mapeamento de novas tecnologias de poder desenvolvidas para governar a vida em seus menores detalhes que vo da

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    mesa cama, do trabalho aos momentos de lazer, da doen-a produo de um corpo perfeito e saudvel. Os saberes sobre as compulses concernem a dispositivos que visam administrar coisas e homens, relacionando quantidades de aes e desejos a padres pr-definidos de qualidade de vida, exigindo do indivduo uma racionalidade baseada no autocontrole e no clculo de estimativas de riscos para as diversificadas situaes a que so submetidos no cotidiano das sociedade de controle.

    A biologizao dos comportamentos excessivos

    A emergncia dos saberes sobre as compulses tribut-ria do apogeu da psiquiatria biolgica que, utilizando-se de contedos das neurocincias e dos modernos psicofrma-cos, construiu uma gramtica biolgica para os transtornos mentais que at ento dispunham apenas de fundamentos psicolgicos e psicanalticos para sua compreenso.

    A biologizao das compulses tem como marco a chega- da nos Estados Unidos daquele que considerado o mais potente antidepressivo j sintetizado, a clomipramina. Lanada em 1990 no mercado estadunidense pela far-macutica sua Ciba-Geigy (atual Norvatis) com o nome de Anafranil, a clomipramina foi desenvolvida em 1958. Ela um antidepressivo tricclico que atua de forma mais destacada na regulao do neurotransmissor serotonina. A clomipramina foi primeiramente liberada para o consumo, em 1975, no Reino Unido, para depresso, estados fbi-cos e obsessivos, mas sem obter a notoriedade em vendas que teria 15 anos depois, no outro lado do Atlntico.

    No livro *e Antidepressant Era, o psiquiatra e historia-dor David Healy 7 recupera a histria da clomipramina e descreve como sua ligao com o TOC, na poca chamado

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    de Neurose Obsessiva-compulsiva, foi estabelecida mais por estratgias de marketing do que por resultados de pesquisas psiquitricas. Healy conta que o ex-diretor da Ciba-Geigy do Reino Unido, George Beaumont, ficou encarregado de preparar a documentao necessria para a aprovao da nova droga pelas autoridades daquele pas. Experincias com o composto realizadas na poca em clnicas europeias mostraram que a clomipramina era utilizada na forma in-travenosa apenas em casos de pacientes com severos estados ansiosos resistentes a outras formas de tratamento.

    Regulamentado o novo medicamento, coube farma-cutica decidir como vender a droga. A clomipramina po-deria ser associada ao mercado da fobia neurtica, bem maior que o da Neurose Obsessivo-compulsiva, apesar dos estudos clnicos apontarem que os tricclicos no eram to eficazes em relao a estes transtornos. No entanto, como o tratamento das fobias j estava dominado pelos antidepres-sivos inibidores da monoaminoxidase (IMAOs), a soluo encontrada foi associar o remdio Neuroses Obsessivo-compulsiva, mesmo que sobre elas houvesse o consenso de serem de pouca eficcia e de incidncia rara na populao.8

    As contnuas, porm inexpressivas vendas da clomi-pramina na Europa podem ser explicadas pelo fato da Neurose Obsessiva-Compulsiva ser ento considerada uma doena rara e tratvel somente com terapias com-portamentais. Por ser uma neurose, ou seja, uma condi-o psicopatolgica sem uma causa orgnica identificvel, acreditava-se que um remdio jamais poderia ser eficaz para a melhora dos pacientes.

    Beaumont considera que, em relao clomipramina, os estadunidenses souberam reinventar a roda.9 Isto por-

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    que quando a droga foi liberada para consumo naquele pas, em 1990, logo se transformou em um sucesso co-mercial, responsvel pela incrvel popularizao do TOC em todo o mundo. De transtorno mental raro (como in-forma o DSM III, de 1980), no DSM III R, de 1987, o TOC passa a ser considerado um transtorno relativa-mente comum, at que no DSM IV, de 1994, obtm uma prevalncia durante a vida de 2,5% (o que representa 7 milhes de pessoas nos Estados Unidos) e se transforma no quarto transtorno psiquitrico mais comum na popu-lao. Atualmente, a OMS considera o TOC a 10 maior causa de incapacitao no mundo.

    Neste trajeto da clomipramina da Europa para a Amri-ca do Norte importante ressaltar dois deslocamentos res-ponsveis pela mudana na forma como o ocidente tratar as questes relativas s doenas mentais na base da emer-gncia das compulses como um problema de sade pbli-ca que ameaa a qualidade de vida das populaes.

    O primeiro deles, como fica explcito em relao ao TOC, que houve uma biologizao dos estados neur-ticos. Se, antes, o TOC no possua um estatuto org-nico-biolgico para sua compreenso, com os aportes importados das neurocincias e da farmacologia ele foi traduzido para uma gramtica biolgica que ir relacio-nar estados mentais no mais apenas a hipteses psicolgi-cas, histrico de traumas e vivncias da infncia, mas com quantidades disponveis de neurotransmissores, sobretudo de serotonina, em certas regies cerebrais e o funcionamen-to anmalo do circuito que envolve os gnglios da base, o tlamo e o crtex frontal.10 A biologizao do TOC contou ainda com os avanos tcnicos obtidos com a introduo de tecnologias computo-informacionais que permitiram a

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    visualizao do crebro vivo em telas (neuroimagens), o de-senvolvimento de escalas para medir os diferentes graus de manifestao dos sintomas e, por fim, a execuo de grandes estudos epidemiolgicos, como o Epidemiologic Catchment Area, realizado em 1988, nos Estados Unidos.

    Um segundo importante deslocamento ocorreu em relao aos profissionais responsveis pelo tratamento de pacientes com TOC e s demais compulses. Este cam-po deixou de ser exclusivo de psiclogos e psicanalistas para ser prioritariamente explorado por psiquiatras e pela indstria farmacutica que passou a oferecer dezenas de outros compostos qumicos (antidepressivos) que atuam exclusivamente sobre a regulao da serotonina: os inibi-dores seletivos da recaptao de serotonina (ISRSs), dos quais o mais famoso o Prozac.

    Com a biologizao do TOC, abriu-se uma porta para que esta nova gramtica reescrevesse o entendimento de outras compulses. Principalmente os estudos com a uti-lizao de antidepressivos ISRSs permitiram avanos na compreenso biolgica de outros transtornos que, assim como o TOC, tm como principais sintomas a presena de comportamentos repetitivos, excessivos e descontrola-dos. Antidepressivos sero aplicados no tratamento dos Transtornos do Controle de Impulsos, como as compras compulsivas, sexo compulsivo, jogo patolgico, tricotilo-mania11 e cleptomania.

    Em 1993, o psiquiatra estadunidense Eric Hollander12 fundamentou, em grande parte com ensaios baseados em tratamentos com ISRSs, hipteses que, desde o final dos anos 1980, relacionavam o TOC com outros transtornos sob o ponto de vista da semelhana sintomatolgica de condutas marcadas pelo excesso. Desta forma, postulou

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    a existncia de um Espectro dos Transtornos Obsessivo-Compulsivos que inclui, alm dos transtornos j menciona-dos acima, a hipocondria, o transtorno dismrfico corporal, a anorexia, o transtorno de despersonalizao, a Sndrome de Tourette13 e os transtornos de personalidade antissocial. Em outra publicao, de 1995, Hollander destacou nesta dimenso de transtornos a polaridade compulsividade/im-pulsividade, apontando que as condutas excessivas relacio-nadas a estes transtornos variam segundo graus de averso e predisposio a riscos, assim como quanto disponibili-dade de serotonina nas sinapses e a atividade do lobo fron-tal. Estava concluda assim a hiptese terica que permitiu estender a biologizao do TOC para as outras compulses, identificando modalidades de condutas excessivas (de aver-so ou predisposio a riscos) com marcadores biolgicos (neurotransmissores e atividade cerebral).14

    Neoliberalismo e governo de condutas

    Os saberes psiquitricos sobre as compulses, ancora-dos em prticas que vo desde a prescrio de psicotr-picos, terapias cognitivo-comportamentais e grupos de autoajuda s cirurgias sem sangue, como a capsulotomia anterior,15 apontam para tecnologias de governo da con-duta dos homens que fogem daquelas caractersticas das sociedades disciplinares.

    No lugar de estarem reclusos em manicmios contra a sua vontade, como ocorria com os doentes mentais at meados do sculo XX, os compulsivos vivem a cu aberto, andam pe-las ruas, sendo reiteradamente convocados a aderirem a tra-tamentos que ocupam suas vidas e a exercerem autocontrole sobre suas condutas consideradas excessivas. Mesmo os no diagnosticados como compulsivos no esto imunes a estes

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    saberes. Tambm so estimulados a se autodiagnosticarem, por meio de sites na Internet, programas de televiso, filmes exibidos no cinema, testes publicados em revistas e jornais, conversas com outras pessoas, e a exercerem vigilncia cont-nua sobre suas condutas e desejos para que no se deixem le-var pelo descontrole das obsesses, impulsos e dependncias. Estas convocaes e estmulos atendem a uma espcie de nova moral que se apresenta como biocientfica. Ao mesmo tempo que provoca simpatia e adeso s diferentes formas de controle (sobretudo o autocontrole), esta moral biocien-tfica refora prticas de comedimento e moderao. Trata-se de uma ascese que no visa recompensas espirituais, mas ganhos em sade mental e qualidade de vida, duas tecnolo-gias de poder que se afirmam como decisivas para o governo das condutas dos homens nas sociedades de controle.

    Ao contrrio do poder disciplinar que discriminava o normal do anormal, em processos de normatizao,16 estas novas tecnologias de poder procedem sucessivas normaliza-es do normal17, procurando aproximar as diferentes dis-tribuies de normalidade a um limite previsvel e aceitvel, impresso na ideia de normal. No caso dos compulsivos, a normalizao do normal funciona atravs do incessan-te estmulo para que o indivduo tenha controle sobre suas condutas consideradas excessivas, fazendo com que elas se tornem cada vez mais moderadas. Gastos, apenas dentro do oramento. Acumular, apenas o necessrio. Sexo, sem des-controle na quantidade de vezes e de parceiros. Jogo, apenas para recreao. Medo, somente o que pode ser controlado. Trabalho, sem ameaar as relaes familiares e amizades. Drogas, apenas as legais, prescritas e controladas.

    Os antidepressivos agem decisivamente para a norma-lizao do normal, servem para domar quimicamente a angstia, a ansiedade, o impulso, o desejo incontrolvel que

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    estes pacientes relatam sentir. Auxiliados pelos tratamentos (grupos de autoajuda, terapias cognitivo-comportamentais, psicocirurgias), os compulsivos devem desenvolver uma ra-cionalidade do autocontrole, fundada no interminvel cl-culo de riscos para as situaes vivenciadas cotidianamente. Desta forma, a prpria vida, em seus mnimos detalhes, torna-se uma terapia contnua e ilimitada.

    A emergncia dos saberes psiquitricos sobre as com-pulses ocorreu simultaneamente expanso da governa-mentalidade18 neoliberal que, segundo Michel Foucault, teve como efeito a generalizao do modelo do homo conomicus (o empreendedor de si mesmo, o sujeito-empresa) do campo econmico para o social. No neo- liberalismo, todos os indivduos so transformados em sujeitos-empresa e inscritos na lgica da concorrncia. Assim, devem aprimorar suas qualidades inatas ou adqui-ridas para maximizar suas potencialidades de gerar rendas com o capital humano que dispem. Se, no plano macro, o neoliberalismo procurou colocar autolimitaes internas razo de Estado para eliminar qualquer excesso de gover-no, no plano individual esta nova governamentalidade ter como efeito a instaurao de uma racionalidade do auto-controle, regulada por mecanismos de governo de condu-tas para que o excesso dos impulsos, da razo (obsesso) e dos desejos (dependncias) seja administrado.

    Na teoria do capital humano de Gary Becker, o mais radical dos neoliberais estadunidenses, segundo Foucault, comportamentos e condutas so tomados como elemen-tos fundamentais para a anlise econmica dos indivduos. Becker chama de conduta racional todo comportamento que vise otimizar a alocao tima de recursos raros a fins alternativos,19 sendo esta conduta sensvel a modificaes de variveis dadas pelo meio, s quais responde sistemati-

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    camente. A mesma relao entre variveis do meio e con-dutas est na base da teoria comportamental desenvolvida pelo psiclogo estadunidense Burrhus Frederic Skinner, criador do Behaviorismo Radical, para quem o controle de fatores ambientais funda uma nova tecnologia para a produo de indivduos e de uma sociedade perfeita, como idealizou em Walden II: Uma sociedade do futuro.

    No por acaso que a Psicologia Comportamental viria a se tornar, nos anos 1990, uma aliada inseparvel da psiquiatria biolgica, como se verifica nos tratamentos para as compulses. Ambas atendero s exigncias co-locadas pela governamentalidade neoliberal para as quais o indivduo deve administrar suas condutas com vistas a conquistar ganhos em sade mental e qualidade de vida. Por meio dos saberes psiquitricos sobre as compulses, observa-se que o atual estgio do capitalismo no requer a formao de subjetividades que sejam apenas avessas a riscos (como os colecionadores patolgicos e os manacos por limpeza) ou ento apenas predisposta a eles (como os jogadores patolgicos ou os prdigos em compras). O neo- liberalismo exige dos indivduos o reconhecimento dos sinais ambientais emitidos pelos contextos em que esto imersos. Eles so indispensveis para o clculo de riscos e para a elaborao das melhores condutas a serem desem-penhadas. Tal como faz uma empresa, o indivduo precisa de anlises de conjuntura para determinar sua ao.

    A racionalidade neoliberal ainda joga para o indivduo a responsabilidade de administrar o mundo de liberdades que ela cria, bem como as limitaes, coeres e controles que cada nova liberdade instaura.20 No somente Foucault quem chama a ateno para o fato de o neoliberalismo fun-cionar apenas se existir uma pletora de liberdades que devem ser consumidas. Deleuze tambm se refere s sociedades

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    de controle como aquelas que so profcuas em criar sen-timentos de liberdade e infinitude, ao mesmo tempo em que fazem multiplicar os mecanismos de controle, os quais podem rivalizar com os mais duros confinamentos.21

    Os compulsivos, portanto, emergem nas sociedades de controle, entre outros aspectos, desta imanente relao que se estabelece entre a produo de liberdades e aquilo que pode consumi-las ou destru-las. Em todas as chamadas compulses est presente o jogo liberdade versus limita-es/controles, que caracteriza o neoliberalismo na pers-pectiva de Foucault.

    Desde as ltimas dcadas do sculo XX, as sociedades capitalistas foram inundadas por liberdades e pela dis-ponibilidade de coisas. Quanto maior a liberdade ou a disponibilidade de algo, mais surgem dietas, regimes, pro-filaxias, conselhos, recomendaes, ou seja, protocolos de conduta e comportamento que visam administrar a relao entre humanos e coisas, humanos e humanos. A liberdade sexual e a compulso sexual; os parasos de jogos de azar e os jogadores patolgicos; a liberdade de esculpir corpos por meio de exerccios fsicos e a vigorexia; as mutaes dos vrus e bactrias e a hipocondria; as novidades da inds-tria alimentcia e a anorexia ou a compulso alimentar; a generalizao do acesso ao mundo virtual e a dependncia de Internet. sob esta perspectiva que as compulses so mais do que transtornos dos comportamentos e condutas excessivas. Elas tambm podem ser analisadas enquanto patologias da liberdade e da disponibilidade, doenas do neoliberalismo, disfunes da proliferao de dietas e regimes em sociedades que reclamam cada vez mais novas modalidades de governos das condutas dos homens.

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    Notas

    1 Este artigo apresenta alguns resultados da pesquisa de mestrado O (in)divduo compulsivo: uma genealogia na fronteira entre a disciplina e o controle. Dissertao de Mestrado em Cincias Sociais: Poltica, PEPG/PUC-SP, financiada pela CAPES, defendida em outubro 2009.

    2 A dcada do Crebro foi instituda em primeiro de janeiro de 1990 por um ato do presidente George Bush, atendendo Resoluo 174 do Congresso, a fim de reforar a necessidade de investimentos financeiros pblicos e priva-dos em pesquisas cientficas sobre transtornos mentais nos Estados Unidos.

    3 A maioria das compulses apresentada nesta tabela ainda no faz parte dos manuais psiquitricos de classificao e diagnstico, exceto alimentos, jogo e sexo (esta ltima consta apenas na dcima edio da Classificao Interna-cional das Doenas CID-10).

    4 Desde 2002, diversos encontros com a presena de psiquiatras membros da Associao Americana de Psiquiatria e convidados de todo o mundo preparam a nova edio do DSM que dever inclusive substituir o captulo sobre os transtornos mentais na prxima edio da CID, elaborada pela Organizao Mundial da Sade. A quinta edio do DSM est prevista para ser lanada em 2013.

    5 Os chamados Transtornos do Controle de Impulsos (TCI), uma categoria residual de transtornos que aparece pela primeira vez no DSM III, de 1980, rene antigas e raras psicopatologias como a cleptomania (impulso a roubar) e a piromania (comportamento incendirio) e o novato jogo patolgico, o mais estudado dos TCI, tambm includo pela primeira na nosologia psi-quitrica com o DSM III.

    6 Associao Americana de Psiquiatria. Manual de diagnstico e estatstico de transtornos mentais: DSM. Porto Alegre, Artmed, 2000, p. 623.

    7 David Healy. *e antidepressant Era. Cambridge, Harvard University Press, 1999.

    8 Idem.

    9 George Beaumont; David Healy. Ke place of clomipramine in the de-velopment of psychopharmacology in Journal of Psychopharmacology, v. 7, n. 4, 1993, p. 382.

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    10 Alm dos testes com psicofrmacos em humanos, contriburam para a construo desta gramtica biolgica estudos de drogas com animais e pesquisa genticas sobre a incidncia do transtorno em grupos familiares e testes de incidncia do TOC em pacientes com outros transtornos neurol-gicos (Sndrome de Tourette e Coreia de Syhenham).

    11 De acordo com o DSM IV TR, tricotilomania um Transtorno do Controle de Impulsos que envolve o ato repetitivo e incontrolvel de arran-car pelos e cabelos, podendo provocar escoriaes, feridas e calvcie.

    12 Eric Hollander. Obsessive-compulsive related disorders. Washington, Ameri- can Psychiatric Press, 1993.

    13 A Sndrome de Gilles de la Tourette um transtorno neurolgico carac-terizado por severos tiques, espasmos ou vocalizaes que ocorrem repe-tidamente e sem que seu portador tenha controle. Recebeu este nome em reconhecimento ao trabalho desenvolvido, em 1885, por seu descobridor, o neurologista francs Georges Albert Brutus douard Gilles de la Tou-rette. Entretanto, a primeira descrio desta sndrome data de 1825, feita pelo mdico francs Jean Marc Gaspard Itard, quando tratou da Marquesa de Dampierre, pertencente alta sociedade francesa, que sofria de copro-lalia (impulso involuntrio de proferir palavras obscenas, fazer comentrios socialmente depreciativos ou imitir rudos estranhos). Esta sndrome exer-ceu um importante papel para a biologizao do TOC, na medida em que pesquisas no final das dcadas de 1980 e 1990, identificaram uma relao de semelhana entre os tiques e as compulses, hipoteticamente provocados por um distrbio funcional no sistema frontal-lmbico-gnglio basal do crebro. (Cf. Susan Swedo, et al. Cerebral glucose metabolism in child-Cerebral glucose metabolism in child-hood-onset obsessive-compulsive disorder in Arch Gen Psychiatry, v. 46, n. 6, 1989, pp. 518-23.) A Sndrome de Tourette foi a primeira neurose a ser biologizada, durante os anos 1960 e 1970, com a prescrio do antipsic-tico haloperidol (o mesmo utilizado para esquizofrenia) para o tratamento de seus portadores. Por muitos anos houve uma srie de enfrentamentos entre psiquiatras e psicanalistas, principalmente em congressos, at que esta sndrome fosse aceita como uma doena neurolgica e no uma neurose (problema mental em que no se pode encontrar um substrato orgnico). Mais uma caracterstica comum ao TOC e a Sndrome de Tourette que esta ltima tambm inventou o modelo de associao de portadores de transtornos com a criao, em 1972, da Tourette Syndrome Association, poste-riormente reproduzido pelos portadores de TOC com a fundao da Obses-sive-Compulsive Fundation, em 1986. Mais informaes sobre a Sndrome

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    de Tourette ver Howard I. Kushner A brief history of Tourette syndrome in Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 22, n. 2. So Paulo, 2000, pp. 76-79.

    14 Eric Hollander; Cheryl Wong. Obsessive-compulsive spectrum disor-ders in *e Journal of Clinical Psychiatry, v. 56, suppl. 4, 1995, pp. 3-6.

    15 Capsulotomia anterior uma das neurocirurgias atualmente utilizadas no tratamento do TOC para pacientes refratrios a outras formas de terapias. Trata-se de uma cirurgia sem sangue que nada lembra as lobotomias rea-lizadas pela psiquiatria na primeira metade do sculo XX. A capsulotomia anterior pode ser realizada por meio de neurocirurgia padro, radiocirurgia ou estimulao cerebral profunda. Na neurocirurgia padro, a radiofrequn-cia usada para interromper os circuitos neurais. Na radiocirurgia, a leso induzida por radiao sem a necessidade de abrir o crnio. Para a esti-mulao cerebral profunda, eletrodos ativados a partir de estimuladores so implantados no crebro do paciente.

    16 Cf. Michel Foucault. Segurana, territrio e populao. Traduo de Eduar-do Brando. So Paulo, Martins Fontes, 2008.

    17 Cf. Edson Passetti. Poder e Anarquia. Apontamentos libertrios sobre o atual conservadorismo moderado in Revista Verve, v. 12. So Paulo, Nu-Sol, 2007, pp.11-43.

    18 Para Michel Foucault, a governamentalidade se caracteriza, assim como o poder pastoral, por estar voltada gesto dos indivduos, assim como um pastor cria suas ovelhas, preocupando-se com sua alimentao, seu cresci-mento, sua sade, sua reproduo e sua segurana.

    19 Michel Foucault. Nascimento da biopoltica. Traduo Eduardo Brando. So Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 266.

    20 Idem, p. 67.

    21 Gilles Deleuze. Post-scriptum sobre as sociedade de controle in Conver-saes. Traduo de Peter Pl Pelbart. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, pp. 219-226. Ver tambm: Gilles Deleuze. O ato de criao in Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, So Paulo, 27 de jun. 1999, pp. 4-5.

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    Resumo

    Este artigo procura traar uma genealogia das compulses a fim de problematizar dispositivos de poder que emergem na passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de con-trole. Neste deslocamento, o manicmio deixa de ser a principal economia de poder na formatao de subjetividades para ser substitudo por tecnologias que operam a cu aberto e procedem normalizaes do normal. Entendidas como desdobramentos da governamentalidade neoliberal, as compulses configuram-se como mais um dispositivo de uma era da moderao e dos moderados e de proliferao de sensaes de liberdade.

    palavras-chave: compulses, sociedade de controle, psiquiatria biolgica.

    Abstract

    *is article aims to trace a genealogy of compulsions in order to problematize dispositifs of power that emerge when crossing disciplinary societies to control societies. In this change, the in-sane asylum no longer is the principal economy of power in the formation of subjectivities, in order to be substituted by tech-nologies that operate in open air and result in normalizations of normal. Understood as unfoldings of neoliberal governa-mentality, compulsions are configured as one more dispositive of an era of moderation and moderate and proliferation of sensations of freedom.

    keywords: compulsions, control societies, biological psychiatry.

    Recebido para publicao em 22 de agosto de 2010. Confir-mado em 11 de setembro de 2010.

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