uma filha que saiu ao pai

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ENTREVISTA ALEIDA GUEVARA Fernando Evangelista - Quais são as lembranças mais vi- vas de sua infância? Tenho muitas lembranças, ainda não sou tão velha... Há muitas imagens e recordações, mas acredito que as mais bonitas se relacionam com minha mãe, porque com meu pai vivi muito pouco tempo, só até os 4 anos e meio de idade. Minha mãe esteve ao nosso lado durante toda a vida. Ela conseguiu que sentíssemos a presença de meu pai, ainda que ele não estivesse presente. Somos quatro irmãos. Já ouviu dizer que quando há um chinês em peri- go todos os demais saem a ajudá-lo? – éramos assim. E assim segue sendo. Da infância recordo os jogos, as tra- vessuras, ir pela rua numa bicicleta com uma roda só, lembro-me de construir um brinquedo que é um pedaço de madeira com quatro rodas de patins e, sentada, dirigir ladeira abaixo. Nascemos depois da Revolução, todos. Sou a mais velha, tenho 44 anos, ou seja, nasci no final de 1960, quando já havia quase dois anos de revolução. Foi uma infância muito tranqüila, muito linda, mas com muitas carências econômicas. Por exemplo: meus ir- mãos, em um certo momento, não tinham roupas ínti- mas. Uma vez, minha mãe teve de fazer cuecas com suas blusas velhas. Era uma vida normal, como a de qualquer criança de Cuba daquela época. Com essas carências ma- teriais, mas muito carinho, afeto, ternura. Evidentemen- te, tínhamos a saúde garantida, isso é muito importante para as crianças, e uma educação totalmente aberta e gratuita. Ricardo Viel - E como era na escola, sendo a filha do Che? Sempre fui uma estudante muito boa, mas não gostava da escola. Tentava matar aula ou pelo menos chegar atrasada. Minha mãe, com isso de sermos filhos do Che, sempre disse que não podíamos aceitar privilégios de nenhum tipo, nem que nos tratassem de forma dife- rente, para o bem, ou para o mal. Eu era mais uma den- tro da classe e tentava me comportar da melhor forma possível. Minha irmã e eu sempre fomos dirigentes estudantis, vanguarda do grupo. Os meninos, não. Eram um desastre. Fomos criados pela mesma mulher, sob o mesmo teto, mas eles tinham outra maneira de ver o mundo. No final, acredito que minha mãe realizou seu sonho. Ela é de origem camponesa, sempre quis que seus filhos fossem universitários e, é claro, revo- lucionários. E nós quatro somos integrados ao proces- so revolucionário e somos profissionais graduados na universidade. Fernando Evangelista - E lembranças do seu pai? Da úl- tima vez em que vocês se viram? Ele tinha passado um tempo na África, depois retorna a Cuba para organizar a guerrilha na Bolívia. Chega à Ilha disfarçado, com o nome de Ramón, não é isso? Sim, o velho Ramón. Não sabíamos que era meu pai. Mami nos disse que íamos ver um amigo dele. Fomos com ela a uma casa conhecer esse senhor. Era um homem velho, vestido de preto, com uma camisa branca – isso nunca vou esquecer –, com o cabelo... meio ruivo, quase careca, a parte de trás cobrindo um pouco as orelhas. Fo- mos apresentados e, na hora do jantar, ele se sentou na cabeceira da mesa. Desde que meu pai foi embora, eu to- mei esse lugar. Quando fui sentar ali, o velho Ramón dis- se que não, que ali se sentavam os anfitriões. Primeiro, teve de me explicar o que era um anfitrião, porque eu não tinha idéia do que fosse. Ele explicou e permitiu que eu me sentasse na outra cabeceira. Sentei ali e disse que ele não parecia ser amigo do meu pai. Minha mãe já tinha dito a ele que eu, apesar da pouca idade, conhecia todos os gostos do meu pai. Assim, ele teria de ter muito cuida- do na sua maneira de agir. Quando eu o vi servir o vinho tinto puro – meu pai tomava sempre com água –, dei um pulo: “Você não é amigo do meu pai, não, você está to- Entrevistadores: Fernando Evangelista, Ricardo Viel, Paulo Evangelista, Moema Paiva Pereira, Elis Motta e Gabriela Tlaija Fotos: Carlos Ruggi Aleida Guevara, 44 anos, uma das filhas do Che Guevara, veio ao Bra- sil para participar de uma atividade do MST. Ela aqui conta como convi- veu com o pai apenas na primeira infância, pois quando a menina ti- nha 4 anos e meio o Che saiu de Cuba na luta pela revolução em todo o mundo. E como o viu anos depois, sem saber quem era, e sen- tiu que aquele homem era “apaixo- nado” por ela. Aleida, seguindo o exemplo do pai, se considera uma revolucionária internacionalista que sacrifica a família em prol de uma família maior, a humanidade. Por isso trabalhou voluntariamente como médica na Nicarágua e em outros países. Acha que em Cuba o povo tem mais liberdade de expres- são do que em qualquer outro lu- gar. E diz que a continuidade do re- gime, depois de Fidel Castro, está plenamente assegurada. UMA FILHA QUE SAIU AO PAI – O CHE

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Fernando Evangelista • Revista Caros Amigos, edição nº 95, fevereiro de 2005 • Curitiba, Brasil • Entrevista com Aleida Guevara, filha de Che Guevara

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ENTREVISTA ALEIDA GUEVARA

Fernando Evangelista - Quais são as lembranças mais vi-vas de sua infância?Tenho muitas lembranças, ainda não sou tão velha... Hámuitas imagens e recordações, mas acredito que as maisbonitas se relacionam com minha mãe, porque com meupai vivi muito pouco tempo, só até os 4 anos e meio deidade. Minha mãe esteve ao nosso lado durante toda avida. Ela conseguiu que sentíssemos a presença de meupai, ainda que ele não estivesse presente. Somos quatroirmãos. Já ouviu dizer que quando há um chinês em peri-go todos os demais saem a ajudá-lo? – éramos assim. Eassim segue sendo. Da infância recordo os jogos, as tra-vessuras, ir pela rua numa bicicleta com uma roda só,lembro-me de construir um brinquedo que é um pedaçode madeira com quatro rodas de patins e, sentada, dirigirladeira abaixo. Nascemos depois da Revolução, todos.Sou a mais velha, tenho 44 anos, ou seja, nasci no final de1960, quando já havia quase dois anos de revolução. Foiuma infância muito tranqüila, muito linda, mas commuitas carências econômicas. Por exemplo: meus ir-mãos, em um certo momento, não tinham roupas ínti-mas. Uma vez, minha mãe teve de fazer cuecas com suasblusas velhas. Era uma vida normal, como a de qualquercriança de Cuba daquela época. Com essas carências ma-

teriais, mas muito carinho, afeto, ternura. Evidentemen-te, tínhamos a saúde garantida, isso é muito importantepara as crianças, e uma educação totalmente aberta egratuita.

Ricardo Viel - E como era na escola, sendo a filha doChe? Sempre fui uma estudante muito boa, mas não gostavada escola. Tentava matar aula ou pelo menos chegaratrasada. Minha mãe, com isso de sermos filhos doChe, sempre disse que não podíamos aceitar privilégiosde nenhum tipo, nem que nos tratassem de forma dife-rente, para o bem, ou para o mal. Eu era mais uma den-tro da classe e tentava me comportar da melhor formapossível. Minha irmã e eu sempre fomos dirigentesestudantis, vanguarda do grupo. Os meninos, não.Eram um desastre. Fomos criados pela mesma mulher,sob o mesmo teto, mas eles tinham outra maneira dever o mundo. No final, acredito que minha mãe realizouseu sonho. Ela é de origem camponesa, sempre quisque seus filhos fossem universitários e, é claro, revo-lucionários. E nós quatro somos integrados ao proces-so revolucionário e somos profissionais graduados nauniversidade.

Fernando Evangelista - E lembranças do seu pai? Da úl-tima vez em que vocês se viram? Ele tinha passado umtempo na África, depois retorna a Cuba para organizar aguerrilha na Bolívia. Chega à Ilha disfarçado, com onome de Ramón, não é isso? Sim, o velho Ramón. Não sabíamos que era meu pai.Mami nos disse que íamos ver um amigo dele. Fomoscom ela a uma casa conhecer esse senhor. Era um homemvelho, vestido de preto, com uma camisa branca – issonunca vou esquecer –, com o cabelo... meio ruivo, quasecareca, a parte de trás cobrindo um pouco as orelhas. Fo-mos apresentados e, na hora do jantar, ele se sentou nacabeceira da mesa. Desde que meu pai foi embora, eu to-mei esse lugar. Quando fui sentar ali, o velho Ramón dis-se que não, que ali se sentavam os anfitriões. Primeiro,teve de me explicar o que era um anfitrião, porque eu nãotinha idéia do que fosse. Ele explicou e permitiu que eume sentasse na outra cabeceira. Sentei ali e disse que elenão parecia ser amigo do meu pai. Minha mãe já tinhadito a ele que eu, apesar da pouca idade, conhecia todosos gostos do meu pai. Assim, ele teria de ter muito cuida-do na sua maneira de agir. Quando eu o vi servir o vinhotinto puro – meu pai tomava sempre com água –, dei umpulo: “Você não é amigo do meu pai, não, você está to-

Entrevistadores: Fernando Evangelista, Ricardo Viel, Paulo Evangelista, Moema Paiva Pereira, Elis Motta e Gabriela TlaijaFotos: Carlos Ruggi

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Aleida Guevara, 44 anos, uma dasfilhas do Che Guevara, veio ao Bra-sil para participar de uma atividadedo MST. Ela aqui conta como convi-veu com o pai apenas na primeirainfância, pois quando a menina ti-nha 4 anos e meio o Che saiu deCuba na luta pela revolução emtodo o mundo. E como o viu anosdepois, sem saber quem era, e sen-tiu que aquele homem era “apaixo-nado” por ela. Aleida, seguindo oexemplo do pai, se considera umarevolucionária internacionalista quesacrifica a família em prol de umafamília maior, a humanidade. Porisso trabalhou voluntariamentecomo médica na Nicarágua e emoutros países. Acha que em Cuba opovo tem mais liberdade de expres-são do que em qualquer outro lu-gar. E diz que a continuidade do re-gime, depois de Fidel Castro, estáplenamente assegurada.

UMA FILHA QUE SAIU AO PAI – O CHE

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mando vinho tinto puro e o meu pai tomava com água!”Ele tentou me explicar, mas não entendi, fui lá e coloqueiágua no copo dele. Minha mãe conta que ele não cabiadentro das roupas, estava inchado de emoção de ver comoeu, uma criança daquele tamanho, defendia seus gostos.Depois da comida, meus irmãos e eu começamos a brincar.Lembro que eu corria ao redor de uma mesa de mármore,com meus irmãos atrás de mim, dizendo: “Viva Cuba livre!Viva Cuba livre!” Nisso, escorreguei e dei uma cabeçadahorrível na ponta da mesa. Eu tinha acabado de comer,meu pai – que era médico – sabia o perigo de um golpe nacabeça, ainda mais depois de uma refeição. Ele me tomaem seus braços, me toca, examina e, dessa maneira metransmite alguma coisa. A tal ponto que minha mãe e eleestavam sentados tentando conversar e eu fiquei dizendoque tinha um segredinho para contar a ela. Minha pobremãe já tinha tido uma experiência fatal comigo com essahistória de segredinho. Sempre fui uma menina que falavamuito, e sempre dizia o que pensava com uma tranqüilida-de espantosa. Um dia, em um edifício em Cuba, estávamosdescendo de elevador e no primeiro andar entra o poetacubano Nicolás Guillén. Era um homem tão feio, que foium choque para mim. Chamei minha mãe e disse que que-ria contar um segredinho. Ela baixa a cabeça e eu digo aplena voz: “Mamãe, este homem é um chimpanzé!... Dápara imaginar a vergonha que a minha mãe passou. Desdeentão, eu estava proibida de contar segredinhos. Por isso,naquele momento com meu pai ela não queria me deixarfalar. Só depois de muita insistência, quando perceberamque não conseguiriam conversar, ela me disse: “Tudo bem,qual é o segredinho?” Eu digo novamente a plena voz: “Ma-mãe, acho que este homem está apaixonado por mim”. Foiuma coisa linda, porque ele se emocionou muito nesse mo-mento. Foi a transmissão dessa sensação de gostar de al-guém ainda que não possa dizer com palavras e às vezesnem sequer com gestos. Ele fez isso comigo e eu percebi. Éclaro que eu estava confusa, não sabia que era meu pai eme chamou a atenção o fato de que um homem grandeme protegesse dessa maneira. Assim concluí, sabiamen-te, que ele estava apaixonado por mim. Foi a última vezque nos vimos.

Paulo Evangelista - Dois anos depois desse encontro oChe morreu na Bolívia. Como você ficou sabendo?Eu estava doente nesses dias. Fidel tinha mandado nos ti-rar da escola, porque nessa altura todo mundo já sabia quealguma coisa havia acontecido e, para que as outras crian-ças não comentassem algo conosco, ele nos mandou auma casa especial fora da cidade, em Santa Maria. Mas tiveuma infecção em um dente e precisei ir a Havana me tra-tar. Fiquei na casa da tia Célia. Ela depois de me dar uns an-tibióticos horríveis, me disse: “Leve este prato de sopa aomeu quarto, sua mãe está lá”. Ah, minha mãe! Bom, eu ti-nha 6 anos, no mês seguinte faria 7. Então, fui levando oprato de sopa e, quando entro, minha mãe está chorando,chorando desconsoladamente. Ela chorava com facilidade,mas, era uma mulher muito forte. Eu nunca a tinha vistonaquele estado. Aquilo me impactou. No dia anterior, Fidelhavia mandado me buscar junto com minha irmã mais ve-lha, Hildita (Hilda Beatriz). Ele queria nos dar a notícia,mas minha mãe não deixou, disse que ela é que tinha quedar. Então Fidel inventou uma carta para nos dar uma ex-plicação. Nessa carta, meu pai teria dito que, se um dia elemorresse em combate, não deveríamos chorar, pois, quan-do um homem morre como quer, não se deve chorar porele. E Fidel fez a gente dar nossa palavra de pionera, mas euainda não era pionera e ele falou: “Então me dê a sua pala-vra de revolucionária que, se isso um dia acontecer, vocênão vai chorar”. Aí eu disse: “Dou a minha palavra de revo-lucionária”. Meu tio Fidel era como meu pai, eu o adorava,o adoro, isso nunca mudou. Podemos discutir, mas gosto

muito dele, de verdade. E, nesse momento, ele era a minhafigura paterna, minha figura masculina. Imagina o que omeu tio teve de me explicar. Isso eu esclareço porque umavez contei essa história para um jornalista alemão e o filhoda puta publicou que se o Fidel tinha inventado uma car-ta, poderia muito bem ter inventado outra. Uma estupideztotal, porque esse homem estava fazendo com que duasmeninas pequenas, que vão receber quem sabe a notíciamais dura de suas vidas, não reagissem mal, entendessemo que aconteceu com seu pai. O que ele tentou foi nos pre-parar para esse momento. Coisa que sempre lhe agradeci,porque nesse outro dia, em que eu estava com minha mãe,ela estava na cama e me disse: “Senta, tenho que falar comvocê”. Não lembro de minha mãe ter dito: “O teu pai mor-reu”. Só lembro da voz da minha mãe me lendo a conheci-da carta de despedida: “Quando lerem esta carta será por-que já não estou entre vocês”. Segue toda a carta, que émuito bonita, e ao final diz: “Um beijo grande do papai”.Você pode imaginar que, nesse momento, me dei conta deque já não teria mais o papai e uma lágrima começa a cor-rer dos meus olhos. Sobretudo porque quem está lendo acarta é minha mãe, chorando. Começo a chorar, mas lem-bro de tio Fidel. Me recomponho e digo: “Mamãe, não po-demos chorar pelo papai, porque ele morreu como queria.”Isso levanta minha mãe, e por isso digo que vou sempreagradecer a Fidel por me ter dito aquilo no dia anterior. Foimuito bonito. Fiquei dormindo com ela em uma cama decasal e quando acordei tinha uma almofada ao meu ladopara que eu não caísse. Aí perguntei para minha mãe: “Oque é isso?” E ela me disse: “Seu tio veio de noite e pôs essaalmofada para que você não caísse”. E eu respondi: “Ah, éque meu tio acha que ainda sou pequena”. Eu já dormia emuma cama sem almofadas havia muito tempo, mas ele nãosabia. Bom, esse foi então o momento em que eu soube quemeu pai tinha morrido.

Fernando Evangelista - Quando você começou a tomarcontato com as coisas que seu pai fez e escreveu? Quando tinha 16 anos, minha mãe me deu algumas folhasmimeografadas. Comecei a ler e falei: “Mãe, esse cara ébom, gostei da história”. Só depois, quando continuei len-do, me dei conta de que o autor era meu pai. Nossa, meupai! Foi muito lindo para mim, porque eu sempre me orgu-lhei de ser filha dele e ali me senti ainda mais orgulhosa.Aos 23 anos meu pai já era um homem genial porque, emprimeiro lugar, teve a desfaçatez de contar coisas que vocênunca contaria. Por exemplo, quando dá uma dor de barri-ga nele na casa de uns alemães e não tem água. Imaginavocê ir ao banheiro e não ter água. Ele não ia deixar essamá lembrança aos pobres alemães que tinham sido tãohospitaleiros... O que você acha que ele fez? Colocou a bun-da para fora da janela e defecou ao ar livre. Olha o que elefez! E ele ainda escreve isso. Aí, no outro dia, ele volta paraver onde tinha deixado a amostra e descobre que era namesa onde os pobres alemães colocavam os figos para se-car... Isso ele conta no livro. Essas coisas me impressiona-ram, porque, olha, já fiz bastante coisa na vida, mas nãoconto nem morta. Não posso, não passa pela minha cabe-ça contar, mas ele descreve com muita tranqüilidade. Issome mostrou a honestidade desse homem. Sem nenhum

tipo de duas caras, com uma tremenda naturalidade, dizexatamente o que pensa e o que faz, nunca mente, nunca.Isso vai acompanhá-lo durante toda a sua vida.

Fernando Evangelista - Esse texto que você leu era o diá-rio da primeira viagem do Che pela América Latina? Sim, li quando tinha 16 anos, uma idade muito difícil por-que você começa a se perguntar muitas coisas: por que eugosto do meu pai? Meu pai nunca esteve comigo e o amoraos pais não é uma coisa automática. Não é porque você épai que seus filhos já gostam de você, tem de saber con-quistar esse carinho, esse respeito dos filhos. Ele não este-ve presente para ganhar isso, então comecei a me pergun-tar muitas coisas, fui buscando na memória todo o meucontato com ele: quando o acompanhei no trabalho volun-tário; quando pela primeira vez me deu um livro; a primei-ra vez em que vimos juntos uma luta de boxe; o dia em queo vi se despedir do meu irmão, ainda que eu não soubesseque ele estava se despedindo; a lembrança de um homemque me estende a mão e vai caminhando comigo, me di-zendo algo, como eu devo me comportar. A imagem é pou-co nítida, mas me lembro de estar com a mão levantada –porque ele era muito mais alto que eu – e ele vai me dizen-do algo. Comecei a buscar essas coisas na memória, meusirmãos às vezes tiram sarro de mim, principalmente Cami-lo, dizendo que tenho memória de elefante. Mas foi a ne-cessidade, busquei na memória tudo o que demonstravaque esse homem havia me amado. E quando encontrei,quando soube realmente que ele havia me amado, não ti-nha outra coisa a fazer a não ser devolver esse amor e amá-lo também, ainda que ele não estivesse ao meu lado. Achoque isso foi responsabilidade da minha mãe. Aprendemosa conhecê-lo, a entendê-lo, a compreender suas atitudesdiante da vida e, pouco a pouco, fomos incorporando essasatitudes à nossa vida. Inicialmente, quando você é criança,repete o que as outras pessoas dizem, mas depois vai cres-cendo dentro desse mesmo lar, dentro dessa mesma vida e,se esse amor e essa ternura que ali residem o convencem,você incorpora o que lhe ensinaram. Acho que, com o tem-po, foi isso que fizemos. E agora já somos seres pensantese decidimos por nós mesmos trilhar o mesmo caminho.

Gabriela Tlaija - Você fez algumas missões internaciona-listas. Como foram essas experiências? Aos 23 anos fui à Nicarágua, foi minha primeira missãocomo médica e a primeira vez que saía de Cuba por umlongo período, um ano. E um ano vivendo fora de Cuba,para um ilhéu... não sei como as pessoas que saem de Cubaresistem. Juro que toda vez que saio de Cuba encontro gen-te boníssima, gente que gosta do meu país, do meu povo eme sinto em família, mas passados quinze dias - não ponhaum a mais - sinto tanta falta, tenho uma saudade, comovocês dizem, que não agüento. Nasci em uma ilha e viverno continente me mata, necessito do mar de um lado e dooutro. E quando fui à Nicarágua, veja o que minha mãe medisse: “Por que você vai?” Respondi: “Vou porque você meensinou, porque me educou no exemplo do meu pai. Meupai era um internacionalista e estou viva por isso. Tenhouma dívida a pagar à humanidade, por isso vou à Nicará-gua”. “Não me provoque”, ela me diz. “Não estou provocan-

NÃO PODEMOS CHORARNão lembro de minha mãe ter dito: “O teu pai morreu”. Começo a chorar, mas lembrode tio Fidel. Me recomponho e digo: “Mamãe, não podemos chorar pelo papai, por-que ele morreu como queria”. Isso levanta minha mãe.

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do, estou te dizendo isso porque você me ensinou”. Fui, efoi uma experiência extraordinária. Lá cursei o último anode medicina e fiz de tudo. Em Cuba eu tinha recebido umou dois bebês e, se a mãe tivesse algum problema, eu não aexaminava, vinha um médico imediatamente. Chego à Ni-carágua sem ter passado pela cirurgia, me colocam na gi-necologia obstétrica, me mandam para a sala de parto eum residente me diz: “Chela” – assim eles chamam as loi-ras –, “venha!” Mas vou como, com quem? “Com quem? Amulher está parindo!” Você não pode imaginar o que é re-ceber um bebê nos seus braços sem saber o que se está fa-zendo. Nem quero lembrar. Depois, fiz cem partos sozinha,perfeitos. Foi uma experiência tremenda porque pela pri-meira vez comprovei o que Cuba significava. Sair de um lu-gar onde você tem tudo garantido, onde tem uma série deprivilégios sem se dar conta deles. Por ter nascido com eles,você não percebe o trabalho que deu para conquistá-los.Então, quando você vai a esses lugares, sente de verdadetudo o que tem e defende muito mais essas coisas.

Fernando Evangelista - Isso de sair de Cuba para perce-ber as conquistas sociais alcançadas com a revolução foimais ou menos a mesma sensação que você teve quandoveio ao Brasil pela primeira vez? Foi um choque compararas diferenças sociais entre os nossos países? Eu já conhecia a realidade latino-americana. Mas o Brasilsempre chega a Cuba pelo samba, pela alegria de viver, pe-las riquezas, pela Amazônia, pelos grandes rios, pelas suasmadeiras valiosas. Ou seja, é um país sempre dos sonhos e,quando cheguei pela primeira vez a São Paulo e vi meninosnas ruas, drogados, pedindo esmolas, famintos, descalços,em farrapos, não pude acreditar. Eu sabia dessa realidade,mas não conseguia entender que um país tão rico tivesseuma só criança nessas condições. Ainda não consigo en-tender. Venho de um país pobre que praticamente não temrecursos, sem grandes rios, sem petróleo, sem minerais im-portantes, exceto o níquel, mas esse país vive com dignida-de. Em Cuba não existe uma criança que viva na rua ouviva de forma miserável. É um país onde todas as criançasvão à escola, todos têm assistência de saúde gratuita, todostêm garantida uma alimentação mínima para viver comdignidade. Então eu penso: “Porque nós podemos e umpaís como o Brasil não? Como é possível?” A única coisaque nos diferencia é o sistema social. É uma escolha. A úni-ca maneira que nossos povos têm de seguir adiante, deconquistar realmente o que é seu, é através de uma mu-dança social real. Sempre penso no socialismo porque é osistema que conheço e que pode realmente dar resultadosaos nossos povos. No entanto, a Venezuela, mesmo nãosendo um sistema socialista, está demonstrando com a re-volução bolivariana que é possível ter um sistema socialeficaz. O que acontece é que a burguesia é tão burra, tãobruta, que não se dá conta disso e está pressionando o pro-cesso bolivariano, forçando uma radicalização. São tontosporque esse não é o objetivo do presidente. Então, essa po-deria ser também uma via para a América Latina, onde amaioria tem pavor do comunismo e do socialismo. Vejabem, poderia ser uma via, não é socialismo. É possível con-viver nessa sociedade que tem coisas marcadamente capi-talistas, mas o povo é dono do que produz e, pela primeiravez, desfruta das coisas que tem, que são usadas em bene-fício de toda a população. Isso é o que não acontece no res-to da América Latina.

Fernando Evangelista - Você disse que na América Latina,fora Cuba, o único governo de esquerda é a Venezuela. OBrasil, mesmo com o governo dito popular, estaria seguin-do pela direita? O que eu digo é que o PT é um partido de esquerda, masnão olhe os partidos pela sua ideologia e sim pela sua efi-

cácia, pela sua atividade social, pelo que consegue fazerpelo seu povo. Por aí vocês terão a resposta. Eu somenteposso ver as estatísticas e as estatísticas talvez mintam,mas o que estão dizendo é que não se alcançou o que haviasido planejado. Vocês dirão se estou equivocada ou não, seas estatísticas mentem ou não. Vocês são os únicos que po-dem dizer. Eu aqui sou alguém de fora. Não digo estrangei-ra, porque esta também é a minha terra, mas sou mais defora, então não tenho o direito de julgar porque não vivoesta realidade, vivo a minha. E nesse sentido respeito, é cla-ro. Mas o que chega a mim são essas informações, talvezvocês tenham outras e possam me esclarecer, não?

Ricardo Viel - Eu tenho essa dúvida, não sei se o governobrasileiro não faz porque não quer ou porque não pode ouporque tem medo. Os países ditos periféricos vivem sobesse medo cotidiano, o medo do novo, da mudança, ummedo que nos paralisa e enfraquece.Em 1966, Che disse que a Guerra do Vietnã não era nadamais que um método utilizado pelos Estados Unidos paraprovocar medo, de tal maneira que qualquer povo do mun-do que ousasse não obedecê-los, não aceitar suas ordens,poderia correr o risco do Vietnã. E quem gosta de umaguerra? Quem quer uma guerra? Nenhum povo pode que-rer uma guerra. Mas aí entra o que o Che dizia: “É preferí-vel a guerra a viver como bestas, como animais”. Se esse éo risco, temos de aprender a aceitá-lo, temos de perder omedo da guerra e conquistar o que queremos pelos méto-dos que os povos decidirem, sem temer as conseqüências.Porque sempre que se inicia um processo social importan-te começam as pressões. Imagina se toda a riqueza destepaís fosse realmente do povo brasileiro, que nada que vocêsnão quisessem não fosse para o estrangeiro. Que vocês pu-dessem obter, ao vender qualquer riqueza, os ganhos ne-cessários para transformar a sociedade. Eu quero que al-guém me explique como um povo do chamado TerceiroMundo, como Cuba, pode buscar capital para fazer umaeducação gratuita e universal, para fazer uma saúde públi-ca gratuita e geral. Como? Onde está o dinheiro? Comosustentar esse sistema se você não é dono do que produz?Então, a primeira coisa que tem de fazer na América Lati-na é ser dono de nossa terra, de nossa produção, começan-do por aí. O que implica isso? Não ao Fundo Monetário In-ternacional, não ao Banco Mundial. Eles têm de respeitaras nossas condições, sem que nos coloquemos à sua dispo-sição, como está acontecendo neste momento. Mas issoacarreta conseqüências. O bloqueio a Cuba segue há maisde 45 anos, e o bloqueio não é fácil. Nós não estamos dizen-do: “Façam o que estamos fazendo”. Os Estados Unidos seencarregaram de demonstrar a todos vocês quais são asconseqüências de fazer o que Cuba fez, mas estamos aí. In-discutivelmente, vivemos melhor do que vocês como povo.De modo geral, vivemos melhor do que vocês. Temos ca-rências materiais, às vezes não temos nem calcinha nemsutiã, é verdade. Mas você não nasceu com essas coisas,não são tão necessárias, você bota uma calça e segue an-dando, uma saia e segue andando. Os indígenas, durantetoda a sua vida, andaram nus, isso não é nada novo, é umacoisa velha, velhíssima, sem problema nenhum. Não é umacoisa necessária para viver, mas a saúde sim, a alimentação

sim, e a dignidade também. A educação é muito importan-te e isso Cuba tem garantido. Você coloca em uma balançao que fazer. Talvez perca algumas comodidades, mas ganhaoutras coisas. Eu fico pensando nas populações indígenasdeste país, por Deus, quando terão assegurados seus direi-tos e o respeito que merecem? Quando vamos lhes darisso? Porque somos nós quem as exploramos. Somos nósque ignoramos essas pessoas, que damos as costas paraelas, que não as colocamos no lugar que merecem. Até quenão decidamos isso e não nos dermos conta de tudo o queestamos perdendo, essas coisas continuarão acontecendo.Essa é uma decisão do povo.

Ricardo Viel - O que o bloqueio acarreta no dia-a-dia deum cubano?Ui, muchacho! Entre em um ônibus cubano para você ver!Em Cuba, levanta-se às 5 da manhã para estar às 8 no tra-balho, 8 e meia agora, porque com o problema do petróleonos deram meia hora a mais. E os ônibus às vezes passam,mas às vezes não. Em uma bicicleta tem de pedalar muito.Havana tem 2,5 milhões de habitantes, as distâncias sãograndes, 17 a 20 quilômetros do trabalho até em casa, de bi-cicleta para lá, de bicicleta para cá, não é fácil.

Paulo Evangelista - Gostaria que você desse exemplosdos efeitos do bloqueio na área da saúde.No hospital em que trabalho temos o mesmo aparelho deraio X há quarenta anos. Ainda o estamos usando, coloca-mos um aramezinho e segue funcionando. E funcionabem, mas agora já vamos comprar um novo. Atualmente,há um projeto muito lindo em Cuba que visa arrumar osgrandes hospitais do país. Um projeto muito ambicioso.Apesar de todas as agressões, de todas as besteiras do se-nhor Bush, não nos amedrontamos e seguimos adiante,criando, melhorando o que precisa ser melhorado, supe-rando as dificuldades.

Fernando Evangelista - Uma das críticas que se fazem aCuba é quanto à falta de liberdade, liberdade de expres-são e de democracia. É possível falar nesses valores ten-do um único partido e um único jornal? Existem mais jornais. Mas há um só partido porque somos

ENTREVISTA ALEIDA GUEVARA

TEMOS DE PERDER O MEDOAí entra o que Che dizia: “É preferível a guerra a viver como bestas, como animais”. Seesse é o risco, temos de aprender a aceitá-lo, temos de perder o medo da guerra econquistar o que queremos pelos métodos que os povos decidirem.

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uma sociedade socialista. Você não pode comparar aágua com o vinagre, não são nem parecidos. Com a genteé a mesma coisa, como vai comparar a sociedade capita-lista com a sociedade socialista? São dois sistemas dife-rentes. No socialismo só existe o Partido Comunista, nãohá mais partidos. Com a diferença de que nessa socieda-de em que você vive pode haver vinte partidos, mas amaioria deles é o mesmo cachorro com uma coleira dife-rente, a única diferença é o nome, mais nada. Em geral,defendem o direito de uma minoria e nas eleições sepõem a mentir, e no final continua a mesma coisa. Isso édemocracia? Democracia é o poder do povo. A palavravem do grego e significa “poder do povo”. E esse povo tempoder? O povo espanhol, com toda a sua democracia, tevepoder para decidir se ia ou não à Guerra do Iraque? Dis-seram não 91 por cento, e seu governo disse sim, foi paraa guerra. E o que aconteceu? Mudaram o governo? Ele foimudado depois, nas outras eleições, depois de quase doisanos na guerra. Aí vieram as eleições e, por causa de umatentado terrorista, decidiram mudar, mas não porqueexistisse uma consciência social estabelecida. E o queaconteceu com Bush é democracia? Aquilo pode ser de-mocracia? Quando você fala de democracia, fala de umpovo que tem poder de decisão. Nesta Terra, o único povoque tem poder de decisão é o povo cubano. É o único quediz não aos Estados Unidos e mantém o não até as últi-mas conseqüências, o único que discute suas leis com opovo, nos bairros, com os trabalhadores leis que depois aAssembléia Nacional vai aprovar com o beneplácito realda população. Isso é o poder do povo. E o povo é o únicoque pode dizer: “Não estou de acordo com isso”. E leva-seem conta o não estar de acordo. Onde você viu isso? Issoé democracia. Liberdade de expressão? Mas venha cá, oque é liberdade de expressão? Estive na Europa muitasvezes e muitos jornalistas me entrevistaram, entrevistasde até duas horas de duração, e depois publicaram: “A fi-lha de Che está de passagem por Paris”. Ponto, acabou.Ou, o pior, publicaram coisas que eu não disse. Ou outrosque me disseram: “Não posso publicar a entrevista se nãocolocar a palavra regime”. “Eu não disse regime, eu disseEstado socialista.” “Ah, se não mudo, não posso publicar.”“Então não publique, mas você não pode mudar as mi-nhas palavras.” Isso é liberdade de expressão? Liberdadede expressão é estarem lhe dizendo o que você tem de di-zer ou o que não pode dizer? Liberdade de expressão te-nho eu, que posso parar no meio da rua e dizer quatro dis-parates e não acontece nada, nada! Ah, se falo mal do Fi-del é possível que alguém venha e me dê um safanão, isso,sim, mas a polícia não pode me tocar. No meu país, a po-lícia não pode me tocar, a não ser que eu esteja agredindouma outra pessoa, então nos separam, mas não pode ba-ter em mim. São coisas muito diferentes quando você falade liberdade de expressão. Vou lhe dizer uma coisa real,estamos falando de uma sociedade socialista sobre a quala maior parte dos jornais do mundo, os de maior tiragem,em todos os idiomas, busca notícias contra Cuba 24 ho-ras por dia. Se um cubano aparece em Nova York, isso énotícia. Se um haitiano morre para chegar lá, isso não énotícia. Se matam vinte mexicanos tentando cruzar afronteira, isso não é notícia. Se são brasileiros que tentamchegar aos Estados Unidos e os expulsam, isso não é no-tícia. Notícia é se um cubano chega aos Estados Unidos.Ah, isso sim. Sim, porque o pobrezinho está fugindo dosocialismo. É quando você se pergunta: “Bom, se todomundo manipula isso e fala de todas essas coisas, porqueeu, no meu país, em meu próprio país, vou responder aosinteresses desses senhores e não vou responder aos inte-resses do meu povo?” Nos jornais do meu país existe umalinha direta, através da qual o povo faz suas críticas. Nasmesas-redondas, todos os dias, às 6 da tarde, se discutem

problemas internacionais e problemas nacionais, e há te-lefones à disposição do povo, para onde se liga e pergun-ta. E recebem resposta, que é o mais importante. Não éperguntar, é receber resposta. Então, para mim, isso é li-berdade de expressão de verdade. Os jornais cubanossão fiéis à maioria do povo cubano, nunca vão se sub-meter a uma minoria vendida aos interesses dos Esta-dos Unidos, isso eu asseguro. Os nossos respondem àmaioria do nosso povo, às necessidades e às críticas denosso povo. Estão ali, você pode ler quando quiser, secritica até Maomé, mas dentro do nosso sistema e den-tro da nossa sociedade.

Fernando Evangelista - Eu estive em Cuba em 1997, du-rante o Festival Mundial da Juventude. Fui com uma câ-mara para fazer um documentário e, quando tocava emdeterminados assuntos, as pessoas pediam para desli-gar porque sentiam medo de expor suas opiniões. Nãopara proteger o Estado socialista, mas com medo de se-rem tachadas de contra-revolucionárias, mesmo fazendocríticas leves.Ser considerado contra-revolucionário em Cuba não énada agradável, porque o povo em geral é revolucionário ete van pasar la cuenta. Estamos em uma guerra, estamosbloqueados e ameaçados pela potência econômica econô-mica e militar mais forte do planeta. Então, você não podepermitir nenhum tipo de debilidade, de fraqueza. Temosde estar sempre em guarda e vigilantes. É possível que emalgum momento tenhamos exagerado, também é possívelque algumas pessoas não saibam ainda o poder que têm.Essa é uma das críticas que sempre faço ao poder popularcubano, que o povo ainda não sabe o poder que tem nasmãos. Vou dar um exemplo que eu mesma vivi. Minha tiatem 85 anos de idade e um tempo atrás ela me disse quetinha ido à policlínica para tratar um dente que doía. Dis-seram que não podiam atendê-la, que não havia anestési-co. E ela fica assim, com o dente doendo. Aí vem uma se-nhora e pergunta: “O que você está fazendo aqui?” Minhatia explica e a senhora lhe diz: “Ah, querida, então paga, sevocê pagar, eles fazem”. E minha tia: “Como? Este é umserviço gratuito para o povo”. Ela me contou isso, ligoumuito indignada e disse: “Olha o que me aconteceu, medisseram que se eu pagasse tratariam meus dentes”.“Como? Quem te disse? Quem é a doutora que falou quenão poderia te tratar?” Ela me deu o nome e eu: “Bem, aAssembléia do Poder Popular é amanhã, você se levanta econta o que aconteceu. Porque ali é o lugar do povo e issonão podemos permitir, porque a saúde pública é total-mente gratuita e a assistência dentária também, a não serque você vá colocar uma prótese ou fazer um tratamentomuito especial, aí, sim, você vai pagar algo. Mas, fazer to-das as coisas normais é grátis, é obrigação do Estado”. Mi-nha tia disse: “Você acha? Colocar isso na Assembléia doPoder Popular?” “Qual o medo? Qual o problema? Levan-te-se e diga.” Foi o que ela fez. No dia seguinte estava o di-retor da policlínica pedindo desculpas. O problema foi so-lucionado. Veja se a gente tem poder ou não.

Fernando Evangelista - Mas não é parte desse mesmopovo que migra para os Estados Unidos?

Há pessoas que têm sérios problemas econômicos, demoradia, de transporte e pensam que nos Estados Unidospodem resolver seus problemas. É uma imigração econô-mica, única e exclusivamente. O que acontece? Para mim,quando você forma um homem em uma sociedade dife-rente, por mais econômica que seja a imigração, há tam-bém uma parte ideológica. Não conseguimos chegar atéeles, não soubemos educá-los, não soubemos fazê-losperceber o que é realmente importante. Essa pode seruma das causas: que não tenhamos trabalhado adequa-damente e que existam pessoas que não tenham captadoo melhor do socialismo. É real, é verdade, isso pode acon-tecer. Pode acontecer também que uma pessoa se sintarealmente muito pressionada, muito esmagada pela pro-paganda. Veja que o único país socialista do continente éo nosso e chove propaganda todos os dias. É o único paísdo mundo que tem uma rádio nos Estados Unidos, emperfeito espanhol, transmitida só para Cuba, com emis-são e freqüência diárias. Os Estados Unidos têm um com-promisso com Cuba de dar 20.000 vistos anuais e nuncadão. O que estão provocando? Que você saia ilegalmente.Recomendo que vocês vejam um documentário feito poruns catalãos, chamado Los Balseros. Vale a pena ver, elemostra a situação econômica de Cuba, mas tambémmostra a manipulação que é feita nesse sentido. Quandovocê já tem uma família nos Estados Unidos está deses-perado para se reunir à sua mulher e seu filho e não te dei-xam entrar, o que você faz? Tenta ir de qualquer maneirae isso se converteu em um negócio. Porque há pessoasque lucram com a vida de seres humanos. Eles vêm aCuba em lanchas rápidas para, por 1.000 dólares – e con-seguir 1.000 dólares em Cuba é difícil de verdade –, vocêir embora nessas lanchinhas. O pior é que há pessoas que,quando a lancha está cheia, continuam cobrando os 1.000dólares, e jogam as pessoas em alto-ar, porque senão alancha afunda. Tudo isso aconteceu. E o que você sabe so-bre isso? Onde você viu isso publicado? Onde no mundoessa notícia foi dada? Existe uma lei do governo estadu-nidense que garante todo tipo de apoio aos cubanos quechegarem clandestinamente aos Estados Unidos. O cuba-no é o único povo no mundo que tem o privilégio de che-gar ilegalmente aos Estados Unidos e ter moradia garan-tida, trabalho garantido, um dinheiro para começar e, de-pois de um ano, se você quiser, você é cidadão estaduni-dense. Que outro povo tem esse privilégio? E por quê?Porque é conveniente para eles provocar esse tipo de cri-se imigratória para dizer que não se pode viver em Cuba.Uma vez, o tiro saiu pela culatra, mas isso tampouco foinotícia no mundo. O Estado cubano disse: “Está bem, nãovamos ser os vilões da história. Querem ir ilegalmente?Podem ir”. Foi quando saiu esse documentário dos balse-ros. Todos que queriam ir foram. Muitos não chegaram,muitos morreram na travessia. Quando os Estados Uni-dos viram que Cuba tinha aberto as fronteiras e que iapara lá qualquer quantidade de “coisa” – porque não ia omelhor do país, normalmente o que vai é a escória –,quando se deram conta disso, ligaram para Cuba. Vocênão sabia disso? Pela primeira vez, a Casa Branca ligoupara o Estado cubano e disse: “Não, vocês não podem fa-zer isso!” E nós dissemos: “Ah, não? Mas são vocês que es-

OS QUE QUERIAM IR FORAMQuando os Estados Unidos viram que Cuba tinha aberto as fronteiras e que ia paralá qualquer quantidade de “coisa”, ligaram para Cuba e pela primeira vez a CasaBranca disse: “Não, vocês não podem fazer isso!”

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ENTREVISTA ALEIDA GUEVARA

tão provocando”. “Não, não vocês têm de fechar as frontei-ras, não pode ser assim!” Nós dissemos: “Está bem, masfechamos com condições. Primeiro, que os 20.000 vistosanuais sejam cumpridos. Segundo, se chegar um cidadãocubano ilegalmente aos Estados Unidos, vocês o devolvema Cuba. Porque se apenas um chegar ilegalmente, voltare-mos a abrir as fronteiras. Porque se um chegar, chegam to-dos os demais.” Pela primeira vez foram concedidos os20.000 vistos no ano seguinte já não houve mais os 20.000vistos. Mas, sim, mantiveram a palavra quanto a quase to-dos que saem ilegalmente. Estes são colocados em um bar-co e trazidos de volta. O compromisso de Cuba é que essaspessoas não sejam presas a não ser que sejam criminosos.Se são pessoas normais, sem nenhum tipo de delito, se in-corporam à sociedade novamente. Tem gente que tentouaté três vezes, mas a guarda costeira dos Estados Unidosreteve e devolveu. Quando você escutou tal notícia? Acon-tece todos os dias, neste momento está acontecendo.

Moema Paiva Pereira - Como o Estado cubano recebe es-ses dissidentes que são mandados de volta? Há histórias tremendas sobre isso. Por exemplo: um cuba-no que vivia nos Estados Unidos roubou 11 dólares, sabequanto tempo ele ficou preso? Quinze anos. Os cubanos,como não estavam acostumados que a polícia batesse ne-les, se revoltaram na prisão. Nos anos 80, não sei se você selembra, houve revolta em vários presídios dos Estados Uni-dos. Os responsáveis, em sua maioria, eram cubanos. O quefizeram os ianques? Entre outras coisas, começaram a tes-tar novas drogas nos prisioneiros cubanos, colocavam-nasnos alimentos para tranqüilizá-los. Depois decidiram quenão queriam essas pessoas nem sequer nos presídios. Paraonde iriam mandar? Para onde você acha que os enviaram?Para Cuba. E o que a gente ia fazer? Eram cubanos, tínha-mos de recebê-los. Em um avião, de madrugada, presos pe-los pés e pelas mãos com cadeados, como se fossem ani-mais, nos mandaram vários grupos de prisioneiros depor-tados. Algumas dessas pessoas já tinham família nos Esta-dos Unidos, mulher, filhos, mas o governo estadunidensenão se importou com isso. Não podem voltar aos EstadosUnidos nunca mais. Sobre o senhor dos 11 dólares, quandoa lei cubana foi revisar o caso, viu que não poderia mantê-lo preso nem mais um minuto. Aí vem o problema: comoencontrar moradia para ele? Em Cuba há dificuldades demoradia e esse senhor se foi havia quinze anos, então ondevocê vai arrumar uma casa para ele? Além do mais, vocêtem de lhe arranjar um trabalho. Como você vai explicar aum cubano do povo que ele tem de compartilhar seu traba-lho com alguém que havia alguns anos deixou o país por-que quis? Uma das coisas mais difíceis que tivemos de fa-zer nos últimos anos foi convencer várias pessoas a ajudaressa gente, a reintegrá-la à sociedade. Conto, por exemplo,a história de um deles que veio preso nesse avião e, quandoseu caso foi revisto, ele já tinha de estar livre, já tinha cum-prido sua pena. Seu pai vivia em Cuba, era pescador, negro.E, quando se lhe pediu que aceitasse o filho, disse: “Essenão é meu filho, meu filho morreu quando foi para lá. Eusou gente desde que essa revolução triunfou. Eu era um ne-gro de merda, ninguém se preocupava comigo, me explora-ram por toda a vida, e a única vez que me senti um ser hu-mano foi com a revolução. Ela permitiu que meu filho estu-dasse, que fosse capitão de barco, e ele se foi. Esse não émeu filho. Não o quero. Ele morreu. E aqui não vem”. E mediz: o que a gente faz? Porque o velho tem toda a razão domundo para estar ferido. Olha, essas são dores de cabeça deverdade.

Paulo Evangelista - Como é a sua relação com Fidel? Fidel é meu tio, para mim sempre foi uma figura paterna,sempre foi muito bom e carinhoso. Quando morreu meu

pai, ele quis me ver, quis falar comigo e minha mãe me ad-vertiu: “Teu tio seguramente vai querer te dar algo e vocênão pode pedir nada, entendeu?” Quando fui falar com ele,disse: “O que você quer?” Fiquei sem saber o que falar e pedium globo terrestre. “Sim, mas o que mais você quer?”, eleperguntou. Ele tinha quatro quadros em sua casa, um cam-ponês, uma camponesa, uma menina camponesa e um me-nino camponês. Sempre fui apaixonada por aquele meninocamponês. Aí eu disse que queria aquele quadro e aquilolhe deu trabalho, porque eram quatro quadros originais lin-díssimos, mas ele me deu o meu menino, que está lá na mi-nha casa. Fidel sempre esteve ao meu lado, nos momentosmais difíceis e nos mais lindos. É um homem que sabe es-cutar, sempre. Pode ser que alguma coisa o aborreça nummomento determinado. Por exemplo, quando ele está entu-siasmado com um projeto, e você fala: “Isso não vai funcio-nar, não vai dar certo”. Aí ele fica irritado. Mas depois en-tende e modifica seu ponto de vista. É um homem comuma grande capacidade de se intercomunicar com o povoem geral. Meu pai sempre dizia que essa era uma das carac-terísticas mais importantes do Fidel, como dirigente. Suacapacidade de se comunicar com o povo. O povo cubano,na grande maioria, gosta muito dele. E mesmo aqueles quetêm outras aspirações reconhecem nele um homem excep-cional. É um homem carismático, muito especial, com umagrande capacidade para amar, porque do contrário não te-ria dedicado toda a sua vida ao povo cubano.

Elis Motta - Como você vê a situação de Cuba pós-Fidel? Igual. Estaremos no mesmo lugar e com o mesmo sistema.Fidel nos fará muita falta, como guia, como líder. Mas ele éum homem muito inteligente porque estimulou a forma-ção de quadros bastante interessantes dentro do país. Sen-tiremos muita falta dele, mas seguiremos adiante. Porque,além do mais, não temos outra maneira de viver. Um dia euestava conversando com uma mulher que ia embora dopaís e ela me perguntou: “Doutora, se um dia você tivessede escolher entre suas filhas e a revolução, o que escolhe-ria?” Eu disse: “A revolução. Porque amo tanto as minhas fi-lhas que quero para elas a mesma dignidade e a mesma ale-gria com que vivi. E para isso é necessária a revolução”.

Fernando Evangelista - É mais ou menos o que o Che pen-sou quando deixou a família, o cargo de ministro em Cuba,por esse amor...Ele foi ainda mais longe. Perceba que estou defendendo, so-bretudo, o futuro das minhas filhas. Mas meu pai foi maislonge, estava defendendo não somente o futuro dos seus fi-lhos, senão o de muitos homens e mulheres. Não me com-pare com o meu pai, eu não chego nem a seus pés.

Ricardo Viel - Quando é que você se deu conta disso, queele amava tanto vocês a ponto de deixá-los em Cuba, a fimde tentar lutar por um mundo mais justo? Aprendi isso quando o conheci como ser humano, quandoo entendi. Mas compreendi ainda mais quando me torneicomunista e entendi que há coisas mais importantes doque meus interesses individuais. Isso para nós é essencial.O que acontece é que a gente não aprendeu a utilizar bemisso. Uma das coisas mais lindas do ser humano é que vive-

mos em comunidade, não individualmente. E um só nãovale nada, como dizia meu pai. O importante é quandovocê consegue juntar um grupo de homens e mulheres uni-dos num mesmo ideal. Isso é o que dá força à vida. O restoé passageiro. Veja que hoje você tem dinheiro e amanhãnão. Hoje está vivo, amanhã não se sabe. A vida é uma coi-sa muito simples e muito volátil. Então, a única coisa queresta é viver com dignidade. E fazendo tudo o que vocêpode fazer por outro ser humano. E o dia em que chegar asua hora ao menos vai sentir a satisfação de ter feito algoútil por outra pessoa. Isso, para mim, é o mais importante.

Fernando Evangelista - Você diz que é preciso tirar o Chedo pedestal, torná-lo menos mito e mais humano...Não é torná-lo mais humano, é permitir que ele siga sendohumano. O que não se pode perder é essa perspectiva. Vocênão pode se comparar a Deus, quem vai ser igual ou melhorque Deus? Ninguém pode. Porém, melhor que o Che, sim.Che é um igual a mim e a você, com a diferença de que foimuito melhor que nós como seres humanos. Por quê? Por-que se propôs a isso, porque se dedicou a isso. Então, custatrabalho. Digo, honestamente, que é possível ser melhor doque ele, só basta querer, só basta tentar. Eu acho isso muitoimportante. Meu irmão Camilo, certa vez na Itália, meioem tom de brincadeira, disse: “Se quiserem canonizar meupai, tudo bem, mas não esqueçam nunca de deixar um es-paço nas costas para a mochila, com suas armas e suas ba-las. E não esqueçam também que o seu Inri era Inra: Insti-tuto de Reforma Agrária”.

Moema Paiva Pereira - Como você recebeu a notícia dareeleição de Bush? Com muita tristeza, sobretudo pelo povo estadunidense. Éuma grande pena que eles não tenham podido eleger o ou-tro candidato, mesmo sabendo que o outro também nãoera muito bom. Os pobrezinhos não tinham muita escolha.Mas, de todas as maneiras, penso que é penoso para eles terhomens e mulheres morrendo numa guerra desnecessária,cruel, injusta, sem nenhum objetivo real, nada mais que ariqueza econômica. Isso não é motivo para sacrificar vidas.Sinto pena do povo dos Estados Unidos que terá que vivermais quatro anos nessa loucura e com problemas econômi-cos. Veja, são mais de 44 milhões de pessoas sem segurida-de médica, perdendo seguridade social, perdendo dignida-de como povo. E me dá pena pelo resto do mundo, porquenão sabemos o que nos espera nestes quatro anos. Vamosver o que lhe diz Deus no ouvido, porque esse tipo fala comDeus. Precisamos saber o que ele acha que Deus vai dizerno ouvido dele e ver o que ele vai fazer. Me disseram queuma jornalista brasileira comentou o seguinte: “Já que osEstados Unidos têm tanto poder em todas as partes domundo, o mínimo que poderiam fazer era pedir os votos in-ternacionais para escolher o seu presidente”. Eu concordocom ela totalmente.

Elis Motta - Como é receber o carinho do povo cubano, elatino-americano, pelo reconhecimento de ser filha doChe? Em geral, a relação se inicia através dele, não através da mi-nha pessoa. Tem de ter consciência de que isso vai aconte-

SEGUIREMOS SEM FIDELSentiremos muita falta de Fidel, mas seguiremos adiante. Porque, além do mais,não temos outra maneira de viver. Amo tanto as minhas filhas que quero paraelas a mesma dignidade e a mesma alegria com que vivi.

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cer. Sempre digo que sou um acidente genético. Nasci filhadesse homem, mas poderia ter sido você, poderia ter sidoqualquer um. O fato de o pai ter sido um homem muito es-pecial não determina a vida de uma pessoa. O que determi-na a vida de uma pessoa é que ela seja útil socialmente.Tem uma história muita linda que aconteceu comigo nohospital. Estou atendendo uma criança e na receita quepasso tem meu nome e sobrenome. Então, o menino saida sala e a mãe dele vê a receita e diz: “Essa mulher é fi-lha do Che”. Aí a criança volta e me pergunta: “É verda-de mesmo que você é a filha do Che?” Era uma criançade 7 anos. Eu digo que sim, que sou uma das filhas doChe. E ele fala: “Ah, por isso você é assim tão boa”. É fan-tástico. Você fica seis anos fazendo faculdade, passa avida inteira estudando medicina para poder ser útilcomo médico e, se você é boa, é porque é filha do Che.Mas, ao mesmo tempo, há uma outra leitura: um meni-no de apenas 7 anos identificou que esse homem é bom,e que você tem de ser boa porque é filha dele, não há ou-tra alternativa. É uma leitura muito bonita.

Ricardo Viel - Essas coisas acontecem muito com você? Comigo aconteceram coisas muito lindas. Um dia estavano hospital e fui atender um menino com amigdalite, omenino tinha 13 anos mas já era um negro grande, e eu ti-nha de lhe dar uma injeção e ele dizia que não, não e não.Até que o convenci a tomar uma injeção na bunda e faleipara a mãe dele: “Coloca ele sobre suas pernas que eu doua injeção”. Eu estava usando uma camiseta com a imagemdo meu pai e, quando preparava a seringa para injetar nomenino, a mãe dele levanta a cabeça, me olha, olha a cami-seta e pergunta: “Você é filha do Che?” Digo que sim, jádando a injeção. Nesse instante a mulher se joga sobremim e me abraça, comovida, esquecendo completamentedo menino, e eu tentando terminar de dar a injeção. Sãomuitas histórias. Uma vez, eu estava no ônibus e chegou aparada onde eu deveria descer, e uma senhora que estavana minha frente, com aquele carrinho onde as pessoascolocam as coisas, não percebe e me dá uma tremendapancada na canela que me deixou dobrada de dor. Aíveio outra senhora e disse: “Ela não percebeu que te ma-chucou, que barbaridade, pode deixar que eu te ajudo”. Efoi me acompanhando, eu me escorando nela, mancan-do, até chegar em casa. Eu era bem nova, estava come-çando a fazer medicina. Então, a mulher perguntou se euprecisava de mais ajuda e eu: “Não, muito obrigada, euvivo aqui nesta casa”. Pronto. Ela ficou perplexa, olhavapara mim, olhava para a casa, até que me perguntou:“Você é filha do Che?” Ela sabia que ali era a casa ondeChe tinha vivido. Aí começou a chorar e diz: “Meu sonhosempre foi abraçar o seu pai e nunca pude, posso te darum abraço?” Aí eu digo: “Sou eu que tenho que te abra-çar por ter sido tão generosa comigo, sem saber quem euera, simplesmente como alguém desse povo”. Essas coi-sas acontecem todos os dias em Cuba.

Fernando Evangelista - Além do mais, dessa vez Vocêveio agora ao Brasil para participar de um evento orga-nizado pelo MST, não é?Deixei as férias das minhas filhas e as minhas para par-ticipar desse congresso organizado pelo MST. Só por elesfaço isso. Só pelo MST. Penso que é um dos movimentosmais importantes da América Latina. O objetivo é mui-to justo, lutam por um pedaço de terra para cultivá-la,para dar alimento aos filhos. O melhor cristão desta ter-ra não pode deixar de reconhecer que esse Movimentotem valor e é necessário apoiá-lo. Nesse sentido, o MSTpode ser uma via para o resto da América Latina, recu-perar o que realmente é de todos nós. E tratar de produ-zir nessas terras, em que alguns se dizem donos sem uti-

lizá-las e, portanto, não são donos. Se existe um dono, équem a faz produtiva. Se é que existe um dono, porque aterra é propriedade de todos nós. Quem disse que umpedaço de terra é seu ou meu? Não há lei que possa sus-tentar isso. A terra é de quem nela produz e a faz produ-tiva em benefício dos demais. Isso temos de aprender elevar a cabo. Então, o MST é um movimento que servepara unificar o continente, rompendo fronteiras, porqueestá fazendo algo necessário para todo o nosso conti-nente. Pode ser um caminho para que possamos unir, re-almente, os nossos povos, buscando um mundo melhor,mais justo. Por isso, cada vez que possa apoiá-lo emqualquer parte eu o faço, com muito gosto.

Ricardo Viel - Essa militância é muito importante e mui-to bonita, mas às vezes não bate um desânimo? Temos de levar a cabo o que pensamos e ser conseqüentescom o que sentimos. Desde muito jovem aprendi que te-mos de viver de tal forma que ao morrer não sintamos dorpelos anos passados em vão. Alguém disse que quandovocê aprende a viver já está morrendo. A vida é muito cur-ta, e temos de aproveitá-la. Penso que ganhei muito comesse trabalho de solidariedade em muitas partes do mun-do, porque conheci homens e mulheres excepcionais, gen-te com valor, com força, com dignidade, com honestidade.Vale a pena, então, apoiá-los, lutar junto deles em qualquerparte do mundo. Essas são as coisas que te fazem crescere se sentir melhor como pessoa. Os nossos cinco heróispresos nos Estados Unidos. Um deles, sobretudo René(René González Sehwerert) – me correspondo mais comAntonio (Antonio Guerrero Rodríguez), que é poeta e pin-tor – mas fiz várias atividades com a filha de René, depoiscom seu irmão e sua mãe, estive com a família inteira. Es-tive também com sua mulher e sua outra filha. Viajei vári-as vezes com elas, porque estou muito implicada na lutapara resgatá-lo, para demonstrar as injustiças e violaçõescometidas nesses julgamentos. Quando falo com René oulhe escrevo, sempre lhe agradeço. Ele dedicou a melhorparte da vida defendendo o meu povo. Para que não se co-metam mais crimes como o de Barbados, por exemplo,quando explodiram um avião nosso em pleno vôo. Um ho-mem que teve de conviver com a escória humana e man-

teve sua honestidade, sua hombridade, sua coisa lindacomo ser humano. E lhe agradecerei eternamente, porquededicou o melhor da sua vida a nos salvar, a nos proteger.E ele me fala: “Você não tem de me agradecer nada, senãopassaremos a vida toda nos agradecendo. Eu também te-nho de lhe agradecer por trabalhar por mim. Por manter opaís, por ser digna de seu povo. Todas essas coisas eu tam-bém teria de lhe agradecer”. Então eu disse: “Chega deagradecer. Mas tenho de reconhecer que te amo”. Isso é as-sim. Me parece muito lindo ter contato com eles, convivercom heróis – porque são heróis. No México trabalhei duro,estive catorze dias, visitei três Estados, falando como umpapagaio, como agora, falando sobre os cinco o tempotodo. A verdade é que terminei esgotada. Minha filha me-nor, meio que reclamando, disse: “Esses são seus filhos, en-tão”. Eu disse: “Não, não. Esses são meus irmãos. Você éminha filha, mas eu te eduquei no conceito da solidarieda-de. O mínimo que você pode fazer é permitir que sua mãenão esteja a seu lado, ainda que você necessite, porque estátrabalhando pela liberdade de cinco homens que permiti-ram que você hoje viva tranqüilamente no seu país”. Ao fi-nal, ela reconheceu. É assim todos os dias, educar é umadas coisas mais difíceis que existem.

Gabriela Tlaija - Você gostou das biografias que saíramsobre o Che em 1997, quando se completaram os trintaanos de sua morte? Nenhuma é boa. Todas têm defeitos graves. Todas têmsérios problemas. Talvez se possa ler um pouco a doPaco Ignacio Taibo II e umas partes do Jon Lee Ander-son, mas acho que não são boas para conhecer o Che.Não são capazes. Penso que os livros mais importantespara conhecer o Che são os livros que ele mesmo escre-veu. Meu pai tinha o hábito de escrever muito, desde os17 anos de idade. E, a partir dessa época, já há documen-tos escritos por ele que estamos publicando. Quase tudoo que ele escreveu está publicado.

Fernando Evangelista - Para encerrar, de onde vemessa extraordinária capacidade do Che de seguirrenascendo?Minha mãe um dia disse: “O Che rompeu suas própriasfronteiras”. É verdade, se converteu num personagem dig-no de ser imitado por qualquer cultura, porque ele tem va-lores que podem ser reconhecidos por qualquer um, emqualquer parte do mundo. Quais valores? Honestidade, for-ça, amor, ternura. São qualidades que muito poucas vezesvocê vê unificadas em uma só pessoa. Isso chama a aten-ção. E hoje em dia, com toda essa situação que estamos vi-vendo, com a falta de valores, falta de pureza na vida, en-contrar um personagem assim deve ser, para as pessoas,como encontrar uma bóia no meio do oceano, você se agar-ra nela para não afundar. Porque, se esse homem pôde, vocêtambém pode. São essas coisas que fazem com que até osjaponeses gostem do meu pai, ou os árabes ou os indianos,culturas tão distantes da nossa. Acho que a capacidade deseguir renascendo tem a ver com isso, tem a ver com a dig-nidade desse homem, com a capacidade de amar que tinhacomo ser humano, e com sua entrega total ao que acredi-tava ser justo.

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SE O CHE PODE TODOS PODEMMinha mãe um dia disse: “O Che rompeu suas próprias fronteiras”. Ele tem valores quepodem ser reconhecidos em qualquer parte do mundo. Porque, se esse homem pôde,você também pode. São essas coisas que fazem com que gostem do meu pai.

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