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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ALDAIRES SOUTO FRANÇA UMA EDUCAÇÃO IMPERFEITA PARA UMA LIBERDADE IMPERFEITA: ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO NO ESPÍRITO SANTO (1869-1889) VITÓRIA 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALDAIRES SOUTO FRANÇA

UMA EDUCAÇÃO IMPERFEITA

PARA UMA LIBERDADE IMPERFEITA:

ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO NO ESPÍRITO SANTO

(1869-1889)

VITÓRIA 2006

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ALDAIRES SOUTO FRANÇA

UMA EDUCAÇÃO IMPERFEITA

PARA UMA LIBERDADE IMPERFEITA:

ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO NO ESPÍRITO SANTO

(1869-1889)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação. Linha de pesquisa História, Sociedade, Cultura e Políticas Educacionais. Orientadora: Profª Drª. Juçara Luzia Leite.

VITÓRIA 2006

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

França, Aldaíres Souto, 1963 - F814e Uma educação imperfeita para uma liberdade imperfeita: escravidão

e educação no Espírito Santo (1869-1889) / Aldaíres Souto França. – 2006.

311 f. : il. Orientadora: Juçara Luzia Leite. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

Centro de Educação. 1. Educação - História - Espírito Santo (Estado) - 1869-1889. 2.

Cultura - História - Espírito Santo (Estado) - 1869-1889. 3. Escravidão. 4. Imprensa. I. Leite, Juçara Luzia. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37(091)(815.2)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ALDAÍRES SOUTO FRANÇA

UMA EDUCAÇÃO IMPERFEITA

PARA UMA LIBERDADE IMPERFEITA:

ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO NO ESPÍRITO SANTO (1869-1889)

Dissertação aprovada ao Curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.

Aprovada em 27 de abril de 2006.

COMISSÃO EXAMINADORA

__________________________________________________ Professora Doutora Juçara Luzia Leite Universidade Federal do Espírito Santo

__________________________________________________ Professor Doutor José Eduardo Franco

Universidade de Aveiro/Portugal __________________________________________________

Professora Doutora Adriana Pereira Campos Universidade Federal do Espírito Santo

__________________________________________________

Professora Doutora Cleonara Maria Schwartz Universidade Federal do Espírito Santo

__________________________________________________

Professora Doutora Vânia Carvalho de Araújo Universidade Federal do Espírito Santo

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À Fernando, Eduardo e Carolina, heranças de Deus e riquezas da minha vida. Vocês são muito especiais para mim, meus filhos!!! Nunca desistam dos seus sonhos!

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AGRADECIMENTOS

" Assim diz o Senhor ao seu ungido, Ciro [Aldaíres], a quem tomo pela mão direita, para abater as nações diante da tua face; eu soltarei os lombos dos reis, para abrir diante dele a portas, e as portas não se fecharão. Eu irei adiante de ti, e endireitarei os caminhos tortos; quebrarei as portas de bronze e despedaçarei os ferrolhos de ferro. E te darei os tesouros das escuridades e as riquezas encobertas, para que possas saber que eu sou o Senhor, o Deus de Israel, que te chama pelo teu nome" Isaías 45:1-3

Foi com esta promessa que passei por todas as etapas da seleção para o Mestrado

e no decorrer do curso também. Por isto, primeiramente agradeço a Deus, por ter

me estimulado a acreditar na realização dos meus sonhos. Além disso, por tantas

madrugadas e horas que ficou do meu lado. A Ele não dedico apenas este trabalho,

mas a minha vida, e mesmo assim, ainda é muito pouco diante da grandeza Dele!

Afinal, Ele é o autor da minha história!

A CAPES pela bolsa de estudo que me ofereceu parte do suporte financeiro

necessário à execução deste trabalho, possibilitando-me afastar das atividades

profissionais para me dedicar exclusivamente ao desenvolvimento da minha

pesquisa.

Nossa! Este espaço é muito pequeno para agradecer a todas as pessoas com as

quais tenho uma dívida perene. Dessa maneira, não poderia deixar de agradecer a

Profª Drª Juçara Luzia Leite, minha orientadora, pelo encorajamento constante, pela

paciência, pela competência, pela solidariedade e pela orientação segura. Você,

Juçara, muito me ajudou nos momentos de incertezas e de descobertas, tornou mais

agradável a difícil e gratificante arte de fazer pesquisa, apontando para os

possíveis caminhos. A confiança depositada na exeqüibilidade dessa pesquisa e o

apoio durante o trajeto me permitiram conhecer outros caminhos nos estudos da

História da Educação e da História Cultural. Gostaria registrar a minha admiração.

Mil beijos para você, Juçara!

À minha família – Joselias, o esposo, “maior abandonado”, aos meus filhos,

Fernando, Eduardo e Carolina, pela compreensão, pela paciência e pelo apoio

dado na hora certa. Aos parentes pela compreensão diante da minha ausência nos

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momentos de encontros especiais e datas de aniversários que esquecidas. A minha

mãe, que sempre acreditou nos meus sonhos e orou por mim. À Nicéia que

administrou o meu lar e foi uma excelente amiga.

Aos amigos Mariza Terezinha Valladares, Karlene Annechini, Sergio Bernardino e

Cleber Brito que sempre me incentivaram e estiveram na torcida. Aos amigos que o

Curso de Mestrado me presenteou – Andreinha Almeida, Karlinha, Everaldo, Érica

e Adalgisa, que juntos formamos o G6 (Grupo de Seis Amigos) e a Regina Godinho

de Alcantra, a esses pelas palavras de estímulo, amizade, carinho, companheirismo

e por estarem presentes nos momentos difíceis. A todos colegas da Turma XVIII,

pelos momentos de alegria que ficaram registrados na minha História.

A Marcos Vinicius Fonseca, amigo que a “Net” me presenteou, agradeço em

especial pela solidariedade: respondendo com firmeza e seriedade, discutindo,

interpelando, corrigindo e indicando saídas nas angústias da produção acadêmica.

Da mesma forma, a “Net” permitiu o diálogo com Eduardo França Paiva, Mário

Maestri, Leila Algranti, Mariza de Carvalho Soares, Maria Cristina Cortez

Wissenbach que sempre responderam aos meus “e-mails” com paciência e

compreensão.

Aos funcionários do Arquivo Público Estadual do Espírito Santo, em especial,

Cristiane Maia, Jocimar Antônio Pereira e Thiago Américo (“os meus anjos da

guarda”). No Arquivo Geral da Assembléia Legislativa, agradeço a Maria Inês

Ribeiro Pupa, responsável pelo setor, a todos os funcionários (Bruno, Gizelda,

Roseane, Maria Rachel, Claudinha e outros) pela simpatia com que me receberam,

realmente vocês me fizeram me sentir em casa. Mas, em especial, sou muito grata

ao meu “amigo camarada”, Jaci Luiz Magnone, pela atenção, paciência e carinho.

Ah! E pela música agradável também! No arquivo da Curia Arquidiocesana,

agradeço ao Padre Arnobe Passos Cruz e a sua secretária Paulina de Barros, pela

atenção com que me receberam. À Denise Garcia Lemos da Biblioteca Pública

Estadual do Espírito Santo pela compreensão permitindo o acesso aos impressos

do acervo.

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Agradeço pela amabilidade e pelas preciosas contribuições dos funcionários da

seção de Coleções Especiais da Biblioteca Central da UFES: a Marta Martinez

Pontes e Silva, José Roberto Caldas Gama e Antônio José Borges. E a todos os

funcionários desta Biblioteca.

Ao Márcio e os meninos da “xerox” do IC-IV, o serviço de vocês foi essencial para o

desenvolvimento dos meus estudos. Ai de nós, estudantes e professores, sem as

copiadoras!

Aos professores que fizeram parte da banca de qualificação – Adriana Pereira

Campos, Cleonara Maria Schwartz, Vânia Carvalho de Araújo por permitirem

compartilhar das inquietações iniciais e pelas questões pertinentes que contribuíram

para o rever de muitos caminhos. Também agradeço a todos os professores que

formarão a Comissão de Avaliadora da minha dissertação: Prof. Dr. José Eduardo

Franco, Prof. Drª Adriana Pereira Campos, Prof. Drª Cleonara Maria Schwartz e

Profª Drª Vânia Carvalho de Araújo. Por favor, me perdoem pelo texto tão longo e

os erros de impressão! Suas observações foram necessárias e pertinentes para a

revisão deste texto, contribuíram de forma fundamentais para a continuação do

processo de produção sobre a temática deste trabalho.

Aos meus professores do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFES,

pela competência e dedicação. Foi muito bom aprender em companhias tão

agradáveis! Ao Robson, Anelice e Denise pela atenção e prestabilidade ao me

atenderem na secretária do PPGE – UFES.

Enfim, a todas as pessoas que direta e indiretamente tornaram possível a realização

deste trabalho, seria impossível nomeá-las sem incorrer em omissões. Assim, deixo

o meu agradecimento a todos os que, direta ou indiretamente, contribuíram para a

concretização deste estudo. Abraços no coração!

Aldaires Souto França

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“O que resta fazer é interrogar os silêncios reais, através do diálogo do conhecimento. E a medida que esses silêncios são penetrados, não cosemos apenas um conceito novo ao pano velho, mas vemos ser necessário reordenar todo o conjunto de conceitos”

(THOMPSON, 1981, p. 185).

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RESUMO

Este estudo objetivou investigar as medidas educacionais, oficiais ou não, em relação aos trabalhadores negros escravizados, livres ou libertos nas últimas décadas do século XIX, a partir do pensamento da elite intelectual-dirigente espírito-santense expresso principalmente na imprensa local; bem como compreender as possibilidades de apropriação dessas práticas educacionais por esses sujeitos históricos. Fundamentou-se no campo da História da Educação com uma proposta de abordagem ancorada na História Cultura. A investigação baseou-se em fontes impressas, especificamente a imprensa espírito-santense, e no cruzamento com outras fontes documentais correspondentes ao período, tais como: leis provinciais, regulamentos, relatórios de presidentes da Província, jornais de outras províncias e da Corte, e Anais das Assembléias Legislativas, disponibilizadas no Arquivo Estadual do Espírito Santo (APEES), no Arquivo da Cúria Diocesana e no Arquivo da Assembléia Legislativa. Além disso, foram consideradas outras fontes bibliográficas específicas sobre a Província do Espírito Santo neste período, como, por exemplo, Basílio Carvalho Daemon (1879), Amâncio Pereira (1914), Maria Stela de Novaes (1963 e 1964), Primitivo Moacyr (1940), Serafim Derenzi (1965) e José Teixeira Oliveira (1975). Também foram de suma importância os relatos e imagens de Jean-Baptiste Debret (1978), as fotografias de George Ermakoff (2004) e os relatos de Saint-Hilaire (1974). Assim, foi possível concluir que a educação oferecida aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos era imperfeita da mesma forma que a liberdade oferecida e conquistada por estes, pois privilegiou a preocupação da elite intelectual-dirigente com a “educação para o trabalho” e na imposição de um modelo de integração, objetivando manter a hierarquia tanto racial como a social. Palavras-chave : Educação. História. Espírito Santo. Cultura. Escravidão. Imprensa.

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ABSTRACT This study aimed to investigate the education, official measures or not, regarding the enslaved workers who are black, free or freed during the last decades of the century XIX, from the thought of the ruling-intellectual elite “espírito-santense” expressed principally in the local press; as well as to understand the means of appropriation of these education practices for these historical subjects. The research was based on the field of the History of the Education with the proposal of boarding anchored in Cultural History. The investigation was based on printed fountains, specifically the Espírito Santo´s press, and on the crossroad with other documentary corresponding fountains of that period, such as: provincial laws, regulations, presidents' reports of the Province, newspapers of other provinces and of the Court, and Annals of the Legislative Assemblies, available in the State Archive of the Espírito Santo (APEES), in the Archive of the Curia Diocesana and in the Archive of the Legislative Assembly. Besides, they were thought other bibliographical specific fountains on the Province of the Espírito Santo in this period, like, for example, Basílio Carvalho Daemon (1879), Amâncio Pereira (1914), Maria Stela de Novaes (1963 and 1964), Primitive Moacyr (1940), Serafim Derenzi (1965) and José Teixeira Oliveira (1975). The reports and Jean-Baptiste's images (1978), the photographies of George Ermakoff (2004) and the reports of Saint-Hilaire (1974) were also of great importance for our research. So, it was possible to conclude that the education offered to the black enslaved, free and freed workers was imperfect like the freedom offered and conquered by these, since it privileged the preoccupation of the ruling-intellectual elite with the “education for the work ” and in the imposition of a model of integration, aiming to maintain the hierarchy so much racial like the social one. Keywords : Education. History. Espirito Santo. Culture. Slavery. Press.

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LISTA DE FIGURAS

Figura1: Prospecto da Villa de Victória Arquivo Militar, 6 de junho de 1881 .....

Figura 2: Perspectiva de Villa de Victoria/capital do Espírito Santo por Joaquim

Pantaleão Perª. Sª. .............................................................................................

Figura 3: DEBRET, Jean Baptiste.Uma senhora brasileira em seu lar .

Prancha n.6 .........................................................................................................

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Figura 4: DEBRET. Jean Baptiste. Vendedor de cestos . Prancha n. 13 .........

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Figura 5: DEBRET. Jean Baptiste. Negras livres vivendo de suas

atividades . Prancha n.32 ; DEBRET, Jean Baptiste. Vendedoras de aluá,

limões – doces, de cana, de manuê e de sonhos . Prancha n. 33 .................

158

Figura 6: DEBRET, Jean Baptiste. Vendedores de capim e de leite . Prancha

21 .........................................................................................................................

Figura 7: DEBRET, Jean Baptiste. Mercado da rua Valongo . Prancha 23 ......

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LISTAS DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1 - JUNIOR, Christiano Júnior. Simulação entre vendedora e

comprado r. Coleção Ruy Souza e Silva, de 1865 .............................................

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Fotografia 2 - GUTIERREZ, Juan. Mercado na região entre a atual praça

XV e a Igreja da Candelária -Coleção Monsenhor Jamil Nassif Abib, de 1882

.............

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LISTAS DE SIGLAS

APEES – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo

CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação

UFES – Universidade Federal do Espírito Santo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO - RAÍZES DO PROCESSO INVESTIGATIVO .........................

PRIMEIRA PARTE - “RASTREAÇÕES” - CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-

METODOLÓGICAS .........................................................................................

CAPÍTULO 1 - TECENDO OS FIOS E ORGANIZANDO AS IDÉIAS .............

1.1. A IMPRENSA E OS DOCUMENTOS OFICIAIS COMO FONTES

RELEVANTES ..........................................................................................

1.1.1. A imprensa e o cotidiano .........................................................................

1.2. UMA ANCORAGEM REPLETA DE POSSIBILIDADES – A HISTÓRIA

CULTURAL ..............................................................................................

1.3. O PARADIGMA INDICIÁRIO – UM MÉTODO INTERPRETATIVO ...........

1.4. O SILÊNCIO DAS FONTES ......................................................................

CAPÍTULO 2 - A INTERFACE ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO .....................

2.1 A POSSIBILIDADE DE INTERFACE ENTRE ESCRAVIDÃO E

EDUCAÇÃO - APONTADO PARA OUTROS TRABALHOS .......................

2.1.1 Discussões teóricas para compreensão da escravidão ...........................

2.1.2 Outros trabalhos sobre escravidão ..........................................................

2.2 ALGUNS TRABALHOS QUE REALIZAM A INTERFACE ESCRAVIDÃO

E EDUCAÇÃO .............................................................................................

SEGUNDA PARTE - OS DETALHES ...............................................................

CAPÍTULO 1 - UMA BUSCA PELOS DETALHES ...........................................

1.1 TRABALHADORES NEGROS ESCRAVIZADOS, LIVRES E LIBERTOS

NOS DETALHES DO UNIVERSO URBANO ESPÍRITO-SANTENSE .............

1.2 O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO

SANTO .............................................................................................................

1.3 REPRESENTAÇÕES SOB A ORDEM DA SUBMISSÃO AO

CONTROLE SOCIAL – “FORAM CASO DE POLÍCIA! ................................

1.4 REPRESENTAÇÕES ENTRE “RECORTES” E “DETALHES” ....................

1.5 LIBERDADE IMPERFEITA .........................................................................

1.6QUEBRANDO O SILÊNCIO DAS MEDIDAS DE “CARÁTER

EXCEPCIONAL E DE CUNHO FILANTRÓPICO” .............................................

1.7O MOVIMENTO ABOLICIONISTA NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO

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1.8 AS IRMANDADES COMO ESPAÇOS DE “LIBERDADE IMPERFEITA” ...

CAPÍTULO 2 - ENTRE O ABC E AS CORRENTES .........................................

2.1 TÁTICAS DE SUBVERSÃO DA ORDEM ...................................................

2.2 AS TÁTICAS E ASTÚCIAS DE LUÍS, “O ESCRAVO” ................................

2.3 UM RETORNO AO MEU PORTO INSEGURO E A OUTRAS IMAGENS

QUE QUEBRAM O SILÊNCIO ..........................................................................

TERCEIRA PARTE - AS GRANDES TENSÕES - TRABALHO,

MODERNIZAÇÃO E EDUCAÇÃO ...................................................................

CAPÍTULO 1 - “O TAPETE” ............................................................................

1.1. AS GRANDES TENSÕES NA DIMENSÃO NACIONAL –

TRABALHO (ESCRAVIDÃO, IMIGRAÇÃO), MODERNIZAÇÃO E

EDUCAÇÃO ......................................................................................................

1.2 O CONGRESSO AGRÍCOLA DO RIO DE JANEIRO, EM 1878 .................

1.3 OS DISCURSOS DOS “ECOS DO INTERIOR” ..........................................

1.3.1 Adentrando os discursos .........................................................................

1.4 O CONGRESSO AGRÍCOLA DE 1878 E UM PROJETO EDUCACIONAL

1.4.1 Uma educação imperfeita para uma liberdade imperfeita .......................

1.4.2 A influência do pensamento norte-americano e a ciência na criação das

escolas agrícolas – “help your self” ..................................................................

1.4.3 A educação das camadas populares – pobres, órfãos e ingênuos

desamparados e desvalidos ...........................................................................

1.4.3.1 A educação dos ingênuos ....................................................................

CAPÍTULO 2 - AS GRANDES TENSÕES NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO

SANTO .............................................................................................................

2.1 A PARTICIPAÇÃO DOS REPRESENTANTES DA PROVÍNCIA

DO ESPÍRITO SANTO – “FESTINA LENTE” .............................................

2.2 UM PERCURSO HISTÓRICO DE UMA MUDANÇA DE PENSAMENTO -

UMA EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO .........................................................

2.2.1 “Daí-me a instrução pública durante um século, que mudarei a face do

mundo” - educar para civilizar .........................................................................

2.2.2 O desafio de um quadro estatístico e a escassez de recursos

financeiros ..........................................................................................................

2.2.3 As instituições de assistência aos desamparados e desvalidos ...............

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2.2.4 A educação de libertos na Província do Espírito Santo ............................

2.2.5 As escolas noturnas ..................................................................................

2.2.6 A educação agrícola ................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................

REFERÊNCIAS ...............................................................................................

FONTES DOCUMENTAIS .................................................................................

ANEXOS ............................................................................................................

ANEXO A - Anúncio da Companhia Espírito Santo e Campos .....................

ANEXO B - Anúncio de venda de uma fazenda ............................................

ANEXO C - Profissões em Cachoeiro de Itapemirim ....................................

ANEXO D - Anúncio da fuga de Affonso ..................................................

ANEXO E - Anúncio sobre o desaparecimento de uma besta vermelha .......

ANEXO F - Anúncio sobre a fuga do trabalhador escravizado Gregório ......

ANEXO G - Fuga trabalhadora escravizada Izidora ......................................

ANEXO H - Manumissões oficiais (1875) ....................................................

ANEXO I - Manumissões particulares e onerosas (1875) ..........................

ANEXO J - Índices de matrículas de ingênuos ...............................................

ANEXO L - Quadro estatístico da população escolarizada no Império

(1867) .......................................................................................

ANEXO M - Quadro estatístico da população livre e escravizada na

Província do Espírito Santo...........................................................

ANEXO N - População livre da Província do Espírito Santo (1872) ...........

ANEXO O - Número de escolas da Província do Espírito Santo (1878) .........

ANEXO P - Relação de adultos matriculados na aula noturna (1872).....

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INTRODUÇÃO - RAÍZES DO PROCESSO INVESTIGATIVO

Este trabalho apresenta os resultados de um processo de investigação no contexto

da História da Educação, especificamente a interface escravidão e educação. Versa

sobre pensamento da elite intelectual1 e dirigente espírito-santense em relação às

medidas educacionais oficiais e não-oficiais, especificamente relacionadas às

questões sobre a educação dos trabalhadores negros2 escravizados, livres e

libertos; bem como sobre as possibilidades de se conhecer as experiências

educacionais destes últimos sujeitos, entre 1869 a 1889.

O primeiro marco temporal remete à Lei Provincial nº 25 (Decreto 640), em 4 de

dezembro de 1869, que concedeu a alforria de escravos do sexo feminino de cinco

a dez anos de idade, e à aprovação da a Lei Provincial nº 32 (Decreto 647), em 23

de dezembro de 1869, que permitia o acesso de trabalhadores negros escravizados

recém-libertos (ingênuos) nas aulas do Colégio Espírito Santo (posteriormente

Colégio Normal).

O segundo marco temporal refere-se ao primeiro ano após a abolição da escravidão

no Brasil, em que procurei investigar as medidas educacionais frente ao

questionamento das certezas do fim da escravidão e à problemática do aumento do

número de trabalhadores livres e assalariados. Considerei, principalmente, que as

1 De acordo com Lilia Schwarcz (2000) as duas escolas de Direito – uma em Recife, outra em São Paulo – estavam preocupadas em atender a expectativas políticas e sociocultural das diferentes regiões do País, e pretendiam “criar uma intelligentsia nacional, apta a responder às demandas de autonomia da nação” (SCHWARCZ, Lilia, 2000, p.25). Para Schwarcz a partir da geração de intelectuais de 70 essas escolas “encontraram-se mais aptas a interferir no panorama intelectual e nacional”. Dessa maneira, formaram intelectuais, que estavam à frente da produção intelectual e dos cargos políticos e, portanto, com poderes de influenciar as reformas sociais, políticas, econômicas e culturais do País ou das suas respectivas Províncias. Eram jornalistas, advogados, médicos, poetas, escritores e professores, alguns com formação também na Europa, que divulgaram suas idéias e seus conhecimentos acadêmicos em revistas especializadas, nos jornais de circulação nacional e regional. Eram sujeitos históricos comprometidos com suas instituições. A autora afirmou também que “enquanto a faculdade de Direito de São Paulo foi mais influenciada por um modelo político liberal, a de Recife, mais atenta ao problema racial, teve nas escolas darwinista social e evolucionista seus grandes modelos de análise”. Acrescentou que “na verdade, se partiram de Pernambuco as grandes teorias sobre a mestiçagem, foi São Paulo, [...] que se preocupou em implementá-las, a partir dos projetos de importação de mão-de-obra européia” (SCHWARCZ, Lilia, 2000, p. 25). 2 É importante salientar que a expressão “negros” mesmo que esteja no masculino deve está subtendida à questão de gênero, ou seja, será considerado também o feminino (negros/as). Da mesma forma, considero a questão étnica sob uma ótica política e histórico-cultural, ou seja, negros como os africanos escravizados e os afros-descendentes escravos e libertos, africanos e afro-descendentes brasileiros escravos e libertos, podendo ser pretos, pardos, mulatos, crioulos, cabras e mestiços, conforme suscitados por Hebe Mattos (1998).

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representações da elite intelectual e dirigente sobre os trabalhadores negros livres e

libertos entram em crise após a abolição e se caracterizam pelas incertezas, já não

justificando mais partir de uma representação da escravidão.

As representações da elite intelectual e dirigente relacionadas aos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos nas suas narrativas jornalísticas, nos seus

textos impressos na documentação oficial e nos seus discursos oficiais puderam

evidenciar as experiências educacionais destes últimos sujeitos históricos, sob uma

lógica da coisificação e corroídos pelo imaginário estereotipado e preconceituoso.

Além disso, foram marcadas pelas tensões sociopolíticas e pela agudização dos

conflitos culturais, que influenciaram o imaginário desta elite, principalmente devido

ao impacto das medidas abolicionistas.

O interesse pela temática escravidão sempre esteve presente no meu fazer

enquanto “ser professora de história”, ou seja, na minha prática pedagógica, mas foi

o desejo de enfrentar o desafio do “ser pesquisadora” que me trouxe ao Programa

de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal

do Espírito Santo – PPGE, sob a linha de pesquisa História, Sociedade, Cultura e

Políticas Educacionais3.

Dessa maneira, apresentei um projeto de pesquisa objetivando, a princípio, tentar

compreender melhor a existência de trabalhadores negros escravizados4, livres e

libertos alfabetizados e as condições sociohistóricas que permitiram que se

apropriassem das práticas de leitura, de escrita e do contar. Porém, a crítica às

diferentes tipologias de fontes apontou para um percurso investigativo voltado para

questões relacionadas ao pensamento da elite intelectual e dirigente espírito-

santense, expresso principalmente na imprensa local, por meio das medidas

educacionais oficiais e não-oficiais em relação à educação dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos.

3 Gostaria de esclarecer que a mudança do título desta linha de pesquisa ocorreu após o processo de seleção para o Mestrado e quando ingressei no mesmo ainda era denominada “História, Sociedade e Filosofia da Educação”. 4 C.f. Mário Maestri (2005) considera que o negro não é naturalmente um escravo, mas um trabalhador escravizado.

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A opção por uma fundamentação teórica a partir das inovações propostas pela

História Cultural permitiu a interlocução com estudos relevantes, como por exemplo:

os trabalhos desenvolvidos por E. P. Thompson (1981, 1987, 1988, 1989), Robert

Darnton (1986), Natalie Zemon Davis (1990), Roger Chartier (1990, 2001 e 2002),

Michel de Certeau (2002 e 2004) e Carlo Ginzburg (2003a e 2003b), entre outros.

Estes estudos possuem muitos aspectos metodológicos em comum, principalmente,

a possibilidade de se trabalhar com a dimensão social do pensamento e das idéias,

explorando-se fontes históricas que indicam “sinais”, “sintomas”, “pistas” e “indícios”

sobre o implícito nas fissuras dos documentos históricos.

Uma abordagem baseada na História Cultural possibilitou a compreensão do

pensamento intelectual sobre as experiências sociais vigentes na complexidade da

tensão nas relações sociais permeadas pelo antagonismo entre o pensamento

escravista e o pensamento abolicionista, de modo que permitiu a superação do

reducionismo de uma abordagem mecânica e linear. Além disso, ofereceu condições

para a realização de um estudo que possibilitasse ler nas entrelinhas, reunir dados

muito dispersos, esmiuçar o implícito e conjecturar verdades possíveis, e não

absolutas, promovendo o encontro com outras possibilidades de investigação no

contexto da interface escravidão e educação.

Considero importante evidenciar que o ponto de partida das inquietações voltadas

para esta temática relaciona-se às situações vividas na minha prática educativa, e

especificamente, no decorrer de um projeto pedagógico intitulado - “Negro: cor, dor,

suor, lutas e direitos!”5, um estudo sobre a escravidão do trabalhador negro no

Brasil e sobre as questões étnicas atuais.

O título deste projeto pedagógico se refere ao roteiro estabelecido para o seu

desenvolvimento, de forma dinâmica e não seqüencial, estabelecendo eixos

temáticos: “ser negro” – cor (África, história e raça), dor (perda da liberdade), suor

5Este projeto pedagógico foi desenvolvido a partir de junho de 2003, mas teve continuidade em 2004 (calendário pós-greve). Participaram turmas da 2ª série do Ensino Médio e uma turma da 3ª série do Ensino Médio da EEEFM “Almirante Barroso”, escola da rede de ensino estadual, localizada em Vitória, no Espírito Santo. Foi também apresentado no V Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História – sujeitos, saberes e práticas, promovido pelo GT - Ensino de História da ANPUH, UERJ, UFES, UFF, UFRJ, PUC – Rio e Colégio Pedro II, realizado no período de 26 a 29 de julho de 2004.

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(trabalho escravizado), resistência (lutas) e direitos (legislação abolicionista, ações

afirmativas e cotas para negros nas universidades brasileiras e movimento negro).

Citei esse projeto pedagógico, não com a preocupação de descrever toda a sua

dinâmica, mas de evidenciar a origem do meu objeto de investigação. Gostaria de

salientar que, em uma das suas etapas de desenvolvimento, realizei um trabalho

com recursos iconográficos (pinturas, fotografias e desenhos), procurando perceber

as representações dos meus alunos sobre o trabalhador negro escravizado e sobre

o negro hoje. Todavia, muitas representações estereotipadas e preconceituosas

emergiram, fazendo-se necessário um processo de desconstrução que não cabe

aqui descrevê-lo.

Entretanto, é preciso destacar e esclarecer que entre os recursos iconográficos

analisados em sala de aula, considerei muito especial e de suma importância a

pintura”6 de Debret7 (1978) - “Uma senhora brasileira em seu lar. Primeiramente,

por ter permitido uma observação micro sobre as questões do contexto da

escravidão, especificamente, questões étnicas, de gênero e poder; em segundo

lugar por ter trazido à tona questões que nortearam o meu projeto inicial de pesquisa

(a apropriação do ler, do escrever e do contar pelos trabalhadores negros

escravizados); e, em terceiro, por ter possibilitado a aproximação entre a temática

escravidão e a História da Educação.

Costumo me referir a essa pintura como o “meu porto inseguro”, já que foi a partir

dela que um turbilhão de perguntas, incertezas e inquietações afloraram de forma

intensa como, por exemplo, as questões: Como foi possível aos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos apropriarem- se do ler, do escrever e do

contar? Quais foram as condições sociohistóricas qu e possibilitaram aos

trabalhadores negros escravizados, livres e liberto s terem acesso à educação?

A princípio, foram estas questões que nortearam o enfoque metodológico, as

6 Esta imagem está reproduzida na página 153. 7Jean-Baptiste Debret (1768-1848), foi um pintor que chegou ao Brasil como integrante da Missão Artística Francesa, em 1816. Destacou-se por desenvolver um trabalho documental apresentando cenas de atividades e costumes do Rio de Janeiro e muitos aspectos do cotidiano do trabalho negro escravizado e das relações socioculturais.

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ferramentas conceituais e operacionais e permitiram dar início ao desenvolvimento

do percurso de investigação da minha pesquisa.

Alguns fatores dificultaram o processo investigativo, como por exemplo, as

limitações pessoais, a corrida contra o tempo, a escassez, na historiografia espírito-

santense, de estudos relacionados à interface escravidão e educação, as

dificuldades enfrentadas nos arquivos, principalmente, em relação à manutenção e

preservação das fontes. Não poderia deixar de mencionar o “silêncio” das fontes,

principalmente devido à ausência do testemunho dos próprios trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos sobre o seu fazer histórico8.

Além disso, a realização deste trabalho apresentou-se como um desafio,

particularmente por seu caráter aparentemente paradoxal presente na relação

escravidão e educação. Contudo, os estudos de Marcus Vinícius Fonseca (2002a e

2002b), Luiz Alberto Gonçalves e Petronilha Beatriz Silva (2000), França Paiva

(2003), Adriana Paulo da Silva (2000 e 2002), Eliane Peres (2002), Maria Cristina

Wissenbach (2002), Maria Aparecida Papali (2003) e Cynthia Greive Veiga (2005)

ofereceram significativas orientações e apontaram para caminhos possíveis de

serem traçados na tentativa de superação dessa aparente dicotomia. Além disso,

delinearam várias possibilidades de pesquisas no contexto dessa interface. Diante

disto, tenho consciência de que muito ainda há e pode-se fazer no contexto dessa

temática, o campo de investigação é profícuo, é necessário “rastreá-lo” (GINZBURG,

2003a).

Antes de continuar, gostaria de apresentar e explicar o esquema deste trabalho. A

estrutura do texto foi organizada da seguinte forma: a primeira parte (“Rastreações

- considerações teórico-metodológicas”) é constituída por dois capítulos. O

capítulo 1 – “Tecendo os fios de conversa e organizando as idéia s” - diz respeito

à apresentação do quadro teórico, das metodologias e das hipóteses de partida.

Realizei um esforço teórico de traçar os objetivos deste trabalho, o eixo conceitual, a

8 Alguns estudos explicitam a existência dos testemunhos desses sujeitos históricos em outros lugares, destaco, por exemplo, o testemunho do trabalhador escravizado Frederick Douglas que registrou suas memórias, sob o título de Narrative of the life of Frederick Douglas (1845), ver em ALGRANTI (1988, p.138) e também o testemunho direto do trabalhador escravizado Mahommah G. Baquaqua (LARA, 1988a, p. 269-284 e 1988b).

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relação com as fontes de pesquisa, principalmente a imprensa local, e, inclusive,

salientei a imposição do silêncio sobre as questões voltadas para as experiências

educacionais dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos. Também

procurei enfatizar o diálogo com a História Cultural, descrevendo as discussões

teóricas e conceituais que serviram de sustentação ao modelo de análise adotado.

O capítulo 2, “A interface entre escravidão e educação” , foi o momento em que

considerei a possibilidade de relação entre escravidão e educação, por meio de uma

interlocução com os estudos já mencionados, ou seja, apresentei uma revisão de

literatura pertinente à temática de investigação proposta.

As questões voltadas para essa articulação ocuparam aqui um lugar decisivo e

foram tratadas, quer separadamente, quer na sua interconexão, na medida em que

outros estudos já demonstraram a superação desse suposto paradoxo. Assim, foi

precisamente na base dessa interface que se desenrolou o principal fio condutor

deste trabalho – escravidão, liberdade e educação.

A segunda parte, “ Os detalhes” , é também formada por dois capítulos. No capítulo

1 – “Uma busca pelos detalhes” , assumi uma abordagem de características

socioculturais, na medida em que me pareceu interessante retratar alguns “detalhes”

do cotidiano dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos.

Dessa forma, a busca pelos detalhes, por meio da análise dos anúncios e dos

editoriais presentes na imprensa, permitiu identificar o pensamento da elite

intelectual e dirigente espírito-santense sobre o cotidiano sociocultural, político e

econômico no contexto histórico da escravidão do século XIX. Também possibilitou

verificar que os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos foram

transgressores9 da ordem hegemônica na relação escravidão e educação, bem

como foram capazes de implementarem as táticas de luta pela liberdade do corpo e

da mente 10, ou seja, pela liberdade de ir e vir e pela constituição de novos arranjos

9 No sentido de terem a concepção própria do seu cativeiro e serem capazes de reinventarem novas possibilidades de resistência na luta pela liberdade do corpo e da mente. 10Expressão construída a partir da adaptação de Cleber Maciel (1994): “liberdade do corpo”.

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socioculturais de vida (formação de família, apropriação do ler, do escrever e do

contar, direito à propriedade, direito a liberdade, etc).

No capítulo 2 da segunda parte – “Entre o ABC e as correntes” evidenciei as

questões em torno das possibilidades dos trabalhadores negros escravizados, livres

e libertos se apropriarem do ler, do escrever e do contar, principalmente, lendo nas

entrelinhas dos textos e imagens de Jean – Baptiste Debret (1978) e nas fotografias

de Christiano Junior e Juan Gutierrez selecionadas na obra de George Ermakoff

(2004).

Já na terceira parte, “As grandes tensões – trabalho, modernização e

educação” , realizei um estudo sobre o processo das grandes tensões a partir do

último quartel do século de oitocentos. É constituída também de dois capítulos: o

capítulo 1 - “O tapete” – construído a fim de compreender as grandes tensões –

trabalho (escravidão e imigração), modernização e educação, articuladas no

Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, divulgado pelo O Diário Official do

Império do Brazil11.

O Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, de 1878, surgiu como resposta às

reivindicações dos agricultores que solicitavam ao Estado que tomassem

providências em relação ao problema da falta de mão-de-obra e de capitais para a

grande lavoura de café.

Os congressistas desse evento assumiram, então, a postura de investir em um

projeto educacional que acompanhasse o processo abolicionista lento e gradual

(festina lente), atribuindo à educação a responsabilidade da preparação para o

trabalho; e, ao mesmo tempo, aguardando por uma resposta imediata, optaram por

investir no incentivo à imigração européia.

Pretendiam resolver, assim, as questões voltadas para a carência de braços

(trabalho) e ao mesmo tempo obter o controle da ordem e da hierarquia social, de

11 Este evento aconteceu do dia 8 ao dia 12 de julho de 1878 e foi divulgado a partir de 9 de julho do mesmo ano.

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modo que, aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, restaria uma

educação imperfeita para uma liberdade imperfeita12.

No capítulo 2 dessa terceira parte - “As grandes tensões na Província do

Espírito Santo” – abordei as grandes tensões no contexto sociohistórico da

Província do Espírito Santo, principalmente, nos discursos oficiais da elite intelectual

e dirigente espírito-santense.

Foi interessante observar que esses discursos atribuíram às medidas educacionais,

especificamente para as camadas populares, contornos moralistas e um “caráter

excepcional e filantrópico”; isto em nome de um processo de “civilização” e

“modernização” da Província nas últimas décadas do século XIX.

Nesse mesmo capítulo, também destaquei as contradições presentes nas

experiências de vida dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, em

cujas práticas e experiências se inscreveram as múltiplas adaptações, resistências e

ambigüidades socioculturais em que assentou as suas táticas cotidianas para a

conquistar a liberdade do corpo e da mente, mesmo em uma situação adversa

imposta pelo cativeiro.

Os resultados da pesquisa salientaram algumas posições sobre o projeto

educacional defendido pela elite intelectual e dirigente espírito-santense nas últimas

décadas do século de XIX. Projeto esse que, mesmo estando em consonância com

as idéias defendidas no âmbito nacional, apresentou algumas peculiaridades que

foram evidenciadas neste estudo. Também possibilitou perceber os impactos da

ação disciplinadora e coercitiva desta elite sobre as camadas populares, em especial

os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos sublinhando as estratégias de

“modelação social” (civilização) e preparação para o trabalho que visavam atender

às novas exigências da modernização do Brasil e da província espírito-santense.

Assim, a elite intelectual e dirigente apropriou-se de um discurso e de uma prática

que se manifestaram por meio do controle sobre a ordem social, antecipando muitas

12 Expressão que uso na minha dissertação para referir à condição do negro após a alforria e à sua necessidade de lutar sempre pela liberdade do corpo e da mente.

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vezes as medidas oficiais do Governo Imperial. Assim, sob a égide de uma

educação para o trabalho, se ignorou a necessidade de preparar os trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos para liberdade do corpo e da mente, ou seja,

para o exercício dos direitos civis. Priorizou-se, principalmente, atender aos

interesses dos grandes proprietários no sentido de realizar a abolição da escravatura

de forma lenta e gradual (festina lente).

Nesse mesmo capítulo, também destaquei as contradições presentes nas

experiências de vida dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, em

cujas práticas e experiências se inscreveram as múltiplas adaptações, resistências e

ambigüidades socioculturais em que assentou as suas táticas cotidianas para a

conquistar a liberdade do corpo e da mente, mesmo em uma situação adversa

imposta pelo cativeiro.

Além disso, foi interessante observar que as elites intelectuais e dirigentes, de modo

geral, procuraram impor aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos a

“visibilidade e ocultação da diferença” tornando-os “visíveis como parte degradada

do povo” (FONSECA, M. N. S., 2000), e, ainda, camuflaram as questões raciais

dissolvendo-as nos discursos que evidenciaram os problemas sociais relacionados

com a educação para a camada popular como um todo. Enfim, este trabalho

permitiu o desvelamento das representações e apropriações da elite intelectual e

dirigente em relação às práticas educativas planejadas para a educação dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos.

Procurei perseguir a proposta de Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha

Beatriz Silva (2000) ao afirmarem que

Todas as vezes que se inicia qualquer reflexão sobre a escolarização dos negros no Brasil, o ponto de partida é o irremediável lugar-comum da denúncia. Em outros termos, o presente, com todas as suas injustiças e mazelas, se afigura como única dimensão histórica do problema. O passado, quando aparece, serve apenas para confirmar tudo aquilo que o presente nos comunica t ão vivamente (GONÇALVES e SILVA, 2000, p. 134, grifos meus).

Assim, seguindo as sugestões de Gonçalves e Silva (2000), interroguei o passado

procurando entender as origens dos graves problemas educacionais que afligem

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não só a comunidade negra brasileira na atualidade, mas toda a educação oferecida

às camadas sociais desfavorecidas. Afinal, conforme afirmaram os autores:

Quando relemos as críticas lançadas à atual situação educacional dos negros brasileiros, encontramos dois eixos sobre os quais elas foram estruturadas: exclusão e abandono . Tanto uma quanto a outra tem origem longínqua em nossa história. Ambos aparecem em obras que tratam da história da educação, em especial naquelas que buscam estudar como as elites brasileiras tentaram equacionar o problema da instrução das camadas populares (GONÇALVES, e SILVA, 2000, p. 134 e 135, grifos meus).

Dessa forma, “interrogar o passado” permitiu-me estabelecer um diálogo com as

certezas mais arraigadas e, sincronicamente, com as incertezas, contribuindo,

assim, para derrubar as verdades absolutas e aflorar as verdades prováveis. Além

disso, contribuiu para iniciar um percurso investigativo que não se finalizou com o

término deste trabalho escrito, mas tornou-se um processo de investigação contínuo.

Penso que o mérito deste trabalho se encontra exatamente aí: mais do que

evidenciar as respostas, ele apontou para outras possíveis questões. Afinal, é

necessário continuar a pensar, a discutir e pesquisar a interface escravidão e

educação. Enfim, é preciso continuar a tirar esta temática da invisibilidade.

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PRIMEIRA PARTE

“RASTREAÇÕES” - CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

“Não posso viver sem trabalho mental. Haverá outra coisa pela qual valha a pena viver?”

Sherlock Holmes

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CAPÍTULO 1:

TECENDO OS FIOS E ORGANIZANDO AS IDÉIAS

Para começar a tecer os fios deste trabalho, considerei relevante apresentar o seu

corpus: os periódicos da imprensa local e nacional, os impressos oficiais e oito

imagens de Jean-Baptiste Debret (1978) e duas fotografias apresentadas na obra de

George Ermakoff (2004) - uma de Christiano Junior e outra Juan Gutierrez.

1.1 A IMPRENSA E OS IMPRESSOS OFICIAIS COMO FONTES RELEVANTES A opção pela imprensa como eixo de fontes deste trabalho não resultou de critérios

de hierarquização ou priorização das fontes, mas de uma seleção que aconteceu no

decorrer do processo de investigação após o levantamento e organização de

informações relativas a publicações periódicas no Espírito Santo, desde a

implantação da primeira tipografia até as últimas décadas do século XIX.

A razão da escolha destas fontes também se explica pela existência de material

bastante substancial ainda em condições de ser analisado, apesar do estado

adiantado de deterioração, que merece ser denunciado, no Arquivo Público

Estadual do Espírito Santo (podendo ser encontrados parte deste acervo

microfilmado) e na Biblioteca Pública do Espírito Santo. Dessa maneira, a escolha

pela imprensa provocou um processo surpreendente de mudança de rumo da

pesquisa e contribuiu para a formação de um extenso repertório de dados coletados,

que foram rastreados e transformados em indícios, pistas e sintomas.

Gabriel Bittencourt (1998), afirmou que a “historiografia [espírito-santense] está

intrinsecamente vinculada, desde os primórdios, à imprensa no Espírito Santo,

confundindo-se, em muitos casos, na mesma figura do pesquisador da história, o

jornalista e o literato local” (BITTENCOURT, 1998, p. 68). O historiador destacou a

presença da imprensa no cenário espírito-santense desde a iniciativa de Aires

Vieira e Albuquerque Tovar, que criou, em 15 de setembro de 1840, a primeira

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tipografia do Espírito Santo, dando início por meio da publicação de o Estafeta, que

circulou em uma única edição. O autor afirmou, ainda, que:

[...] o falecimento de Vieira Tovar, no ano seguinte à instalação do empreendimento pioneiro, atrasará por quase uma década a já tão defasada imprensa do Espírito Santo. Somente em 1848 é que os herdeiros do citado Tovar irão transferir o prelo a Pedro Antônio de Azeredo. Iniciando este, em 1849, a publicação do Correio de Vitória. [...] A coleção do Correio de Vitória é uma preciosa fonte para a memória capixaba e historiografia regional (BITTENCOURT, 1998, p. 69 -71).

Gabriel Bittencourt (1998) demonstrou a estreita ligação entre a imprensa espírito-

santense com a historiografia regional, apresentando-se como um campo profícuo

de possibilidades para o vislumbre dos “detalhes” e do “tapete” (GINZBURG, 2003a,

p. 170) que constituíram a História da Educação da Província do Espírito Santo nas

últimas décadas do século XIX.

Dessa forma, a crítica às fontes evidenciou o pensamento da elite intelectual

espírito-santense sobre as medidas legislativas educacionais oficiais em relação à

educação dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, provocando uma

surpreendente mudança de rumo da pesquisa. Mudança que permitiu, a partir das

fissuras das fontes, o vislumbre das experiências educacionais desses

trabalhadores; bem como, forneceram pistas sobre a possibilidade desses sujeitos

históricos se apropriarem do ler, do contar e do escrever, mesmo diante da

adversidade que se manifestava no contexto do cativeiro.

Como não foi possível contar com o testemunho dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos, tornou-se mais difícil conhecer as experiências sociais

desses sujeitos que tiveram suas vidas marcadas pela escravidão. Foi necessário,

então, recorrer ao pensamento dos representantes da elite intelectual e dirigente

(geração de 1870 e de 1880)13 em relação ao processo de modernização das

últimas décadas do século XIX e as questões sociais no contexto de desagregação

13 Unidades de gerações com pensamentos, argumentos, discursos, conceitos, teorias e formas de agirem influenciados pelas idéias européias caracterizadas pelo cientificismo, positivismo, liberalismo, spencerianismo e darwinismo social. Foram responsáveis por movimentos reformistas e de contestação política, que se propagaram por meio da imprensa, impressos, associações, clubes e comícios (ALONSO, 2000).

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da sociedade escravocrata, permitindo nas suas fissuras o vislumbre da vida e das

experiências educacionais daqueles que tiveram suas vozes silenciadas

(THOMPSON e SHARPE, 1992).

Dessa maneira, foi possível o encontro com “pistas, indícios e sintomas” que

evidenciaram nas entrelinhas do pensamento da elite intelectual e dirigente o

vislumbre da voz, do cheiro, das lágrimas, do rosto, enfim, das experiências

socioculturais dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, no contexto

da educação na Província do Espírito Santo deste período.

Assim, o pensamento da elite intelectual e dirigente espírito-santense é o cerne

deste trabalho, e foi manifestado na imprensa e nos discursos registrados na

documentação oficial, mostrando-se comprometido com as questões sociais e

políticas do País, com o processo de modernização econômica e, simultaneamente,

também com os interesses das oligarquias regionais.

Lilia Schwarcz (2000) afirmou que a influência do pensamento da elite nas questões

socioculturais, econômicas e políticas do País data desde a vinda da Família Real.

Para a autora “a questão racial esteve presente ora como tema de análise, ora

como objeto de preocupação” (SCHWARCZ, 2000, p. 24). Acrescentou que “a uni-

los havia a certeza de que os destinos da nação passavam por suas mãos e a

confiança de que era necessário transformar seus conceitos em instrumentos de

ação e de modificação da própria realidade” (SCHWARCZ, 2000, p. 24).

Desse modo, a imprensa apresentou-se como veículo de divulgação de um

pensamento intelectual que permeava tanto a esfera nacional como a local.

Consolidou, então, as representações das elites intelectuais e dirigentes sobre a

educação dos trabalhadores negros escravizados e libertos nas últimas décadas do

século XIX, especificamente diante do crescente movimento abolicionista e

republicano. Além disso, se manifestou claramente favorável aos projetos

educacionais da elite intelectual e dirigente, teve o papel de divulgá-los e enfatizar a

importância de uma instrução e de uma educação popular voltadas para a

preparação para o trabalho; isto, principalmente por meio da implementação da

educação agrícola e da criação das escolas noturnas (tal fato se explica porque os

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proprietários e os redatores dos jornais locais eram também representantes do

pensamento da elite intelectual e dirigente).

A opção pela imprensa espírito-santense como o principal eixo documental deste

trabalho se explica pelo fato dos jornais serem “aqui entendidos, primeiramente,

enquanto ‘produto social’, isto é, como resultado de um ofício exercido e socialmente

reconhecido, constituindo-se como um objeto de expectativas, posições e

representações específicas” (SCHWARCZ, 1987, p.15).

Dessa maneira, o corpus documental desta pesquisa foi constituído pelos jornais

locais, como o Correio da Victoria14 (1849-1872), O Operário do Progresso15 (1875),

o Cachoeirano16 (1877), O Estado do Espírito-Santo17 (1870-1888), e Província do

Espírito-Santo18 (1882-outros nomes); bem como, pelo impresso oficial do governo

imperial, O Diário Official do Império do Brazil (1878).

14 Publicado pela primeira vez em 17 de janeiro de 1849, sob propriedade e redação de Pedro Antônio de Azeredo. De cunho ideológico conservador, cessando a publicação em 1873 em conseqüência de um cisma ideológico. Tinha quatro páginas, que no período do recorte temporal desta pesquisa, tinha quatro colunas nas dimensões de 275 por 370 mm. Até 13 de janeiro de 1872 era bissemanal (quarta-feira e sábados), quando começou a circular três vezes por semana (terça-feira, quinta-feira e sábados). Em janeiro de 1872, com a morte de Azeredo, Joaquim Francisco Pinto Ribeiro tornou-se proprietário e Aprigio Guilhermino de Jesus o gerente, que passou a responsabilidade da edição para Joaquim Francisco Pinto Ribeiro (o editor). Tem como lugar de destaque a “Parte Oficial” (atos e documentos do governo da província), Movimento do Porto (mobilização de pessoas, inclusive escravos e de mercadorias), anúncios, “transcripção” (pensamento de intelectuais sobre determinados temas de repercussão nacional e local). Tinha como interlocutores outros jornais de circulação nacional e de outras províncias e outras regiões da própria província espírito-santense: Diário Oficial, Jornal da Tarde, O Movimento, Correio do Brazil, Revista Illustrada (Rio de Janeiro), Opinião Conservadora (São Paulo), Correio da Bahia (Bahia), Noticiador de Minas (Ouro Preto), Parahybano (Parahyba do Sul), Correio Official (Goyás), O Publicador (Parahyba do Norte), Conservador (Natal), Conciliador (Santa Catharina), Horisonte (Bahia), Estandarte (Itapemirim) e Monitor Campista (Campos), entre outros. 15Criado em 1875, em Itapemirim, por uma associação não identificada na primeira página. 16Redator e proprietário Luis de Loyola e Silva, iniciado em 7 de janeiro de 1877. 17 Extremamente conservador. 18 Filiado a “escola liberal”, criado em 15 março de 1882, José de Melo Carvalho Moniz Freire e por Cleto Nunes Pereira foram os fundadores e redatores. A partir de 23 de novembro de 1889 passou a se chamar Diário do Espírito Santo, e finalmente, em 1890, o Estado do Espírito Santo. Seus agentes eram: Major Ignacio Trancoso e professor Barros, em Cariacica; Capitão Costa Junior, em Viana; João Lopes Filho, em Barra de Mangarahy; Dalmacio Coutinho, em Porto do Cachoeiro; Miguel Soares de Freitas, em Carapina; Antônio da Silva Borges, em Serra; Basílio E. dos Santos Leal, em Riacho; Comendador Ed. Mercier, em Nova Almeida; Venâncio Flores, em Santa Cruza; Graciliano F. de Oliveira, em S. Mateus; Antere Faria, em Barra de S. Mateus; Alexandre Calmon Sobrinho, em Linhares; Adrião Nunes, em Espírito Santo; José Pinto Guimarães, em Guarapary; Jacintho de Mattos, em Benevente e Piuma; João da Rocha Pires Loureiro, em Itapemirim; Dr. Horta de Araújo e Custodio Maia, em Cachoeiro de Itapemirim; Domingos do Nascimento, em Santo Eduardo; Dr. Antonio Aguirre, n a Corte (Santa Theresa).

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O método adotado surgiu a partir do contato com o arquivo e com os documentos,

foi se ajustando e se modificando no decorrer do processo de investigação e de

acordo com as tipologias das fontes. Assim, no decorrer do processo de seleção e

análise das fontes fez-se necessário, então, realizar o intercruzamento com as

fontes oficiais correspondentes ao período proposto, tais como: leis provinciais,

regulamentos, relatórios de presidentes da Província e Anais das Assembléias

Legislativas, disponíveis no Arquivo Estadual do Espírito Santo (APEES), no Arquivo

da Cúria Diocesana, no Arquivo da Assembléia Legislativa e no acervo da Biblioteca

Pública Estadual do Espírito Santo.

Também foram importantes para a formação do corpus desta pesquisa as fontes

bibliográficas específicas sobre a Província do Espírito Santo, como, por exemplo:

Basílio Carvalho Daemon (1879), Amâncio Pereira (1914), Maria Stela de Novaes

(1963 e 1964), Primitivo Moacyr (1940), Serafim Derenzi (1965) e José Teixeira

Oliveira (1975). Também foram de suma importância os relatos e as imagens

(“sinais pictóricos”) do viajante europeu Jean-Baptiste Debret (1978); bem como os

relatos do viajante Auguste Saint-Hilaire (1974) sobre a Província do Espírito Santo e

as fotografias de Christiano Junior e Juan Gutierrez encontradas no livro de George

Ermakoff (2004).

Considerei como eixo de seleção fontes as categorias: escravidão, liberdade e

educação. Desse modo, a constituição desse corpus teve como critérios norteadores

uma preocupação em disponibilizar um material que permitisse reunir observações

que engendrassem caminhos para chegar aos objetivos deste trabalho, valorizando

o singular, o surpreendente, recusando a explicação mecânica e linear sobre os

fatos históricos.

Conforme afirmou Carlo Ginzburg (2002), nem sempre o que está nos documentos

oficiais de fato aconteceu, sobre isso afirmou que

A idéia de que as fontes, se dignas de fé, oferecem um acesso imediato à realidade ou, pelo menos, a um aspecto da realidade, me parece igualmente rudimentar. As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes (GINZBURG, 2002, p. 44).

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Portanto, fiz uso dos meus estímulos sensoriais, “farejando”, rastreando, registrando,

interpretando e classificando pistas infinitesimais, como um caçador agachado em

busca dos vestígios de sua caça, ou seja, em busca dos resíduos e dos dados

marginais, aparentemente banais e insignificantes, porém considerados reveladores

(GINZBURG, 2003a). Assim, foi possível resgatar as práticas e algumas ausências

nos discursos destes documentos oficiais.

Dessa forma, por meio dos jornais e dos impressos oficiais do período de 1869 a

1889, foi possível perceber como a história da Província do Espírito Santo foi

marcada por profundas transformações que se manifestaram em todos os aspectos

da vida política, econômica, cultural, social e inclusive no campo educacional, isto

em estreita relação com as mudanças ocorridas na vida nacional. A partir desta

relação (e/ou muitas vezes antecedendo a ela), a imprensa espírito-santense

divulgou idéias e as vozes da elite intelectual e dirigente relacionadas ao campo

educacional, objetivando consolidar as estratégias para a realização das

transformações sociopolíticos, econômicas e culturais.

Essas vozes também foram ouvidas por meio dos Relatórios dos presidentes da

Província do Espírito Santo e das Atas das sessões das Assembléias Legislativas

Provinciais, oferecendo indícios pertinentes para elucidar os objetivos implícitos nas

especificidades das leis do campo educacional em relação aos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos, permitindo, também a compreensão que esses

sujeitos históricos tiveram de si mesmos e de seu tempo, ou seja, de sua visão de

mundo19.

Além disso, o “folhear das páginas” dos jornais permitiu mapear o pensamento da

elite intelectual e dirigente espírito-santense, suas representações, apropriações e

práticas em relação à educação dos trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos, nas últimas décadas do século XIX.

19Este conceito de “visão de mundo” Chartier (1990) toma de empréstimo a Lukàcs, como instrumento que possibilita a articulação entre os pensamentos e o social e toma emprestada também a definição dada por L. Goldmann: “conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias que reúne os membros de um mesmo grupo (de uma classe social, na maioria das vezes) e os opõe aos outros grupos” (CHARTIER, Roger, 1990, p. 47).

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Desse modo, é interessante articular com o conceito de representação, que se faz

presente em várias áreas das Ciências Humanas, sendo desenvolvido por Roger

Chartier (1990) como uma categoria analítica inspirada nos trabalhos de Marcel

Mauss e de Émile Durkheim. Então, a representação coletiva articularia com

[...] três modalidades da relação como mundo social: primeiro, o trabalho de classificação e de recorte que produz as configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social , a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais 'representantes' (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpetuado a existência do grupo, da comunidade, da classe. [...] Nas definições antigas [...]as entradas da palavra “representação” atestam duas famílias de sentido aparentemente contraditórias: de um lado, a representação manifesta uma ausência, o que supõe uma clara distinção ente o que representa e o que é representado; de outro, a representação é a exibição de uma presença, a apresentação pública de uma pessoa. (CHARTIER, 2002, p. 73 e 74, grifos meus).

Isto implica em uma relação ambígua entre a ausência e a presença. A

representação deve ser considerada como o que permite ver uma “coisa ausente, o

que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é

representado” (CHARTIER, 1990, p.20). Dessa maneira, representar é, pois,

fundamentalmente, “estar no lugar de”, ou seja, é a presentificação de um ausente; é

um apresentar de novo, que mostra uma ausência. Mas como o ausente não pode

ser visitado e nem enxergado é necessário representá-lo. Portanto, “a representação

é a exibição de uma presença, a apresentação pública de uma pessoa” (CHARTIER,

2002, p. 74), ou seja, torna visível a realidade representada.

A idéia central é, portanto, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna

sensível uma presença. Sendo, assim, o objetivo central do conceito de

representação é de trazer para o presente o ausente vivido e, dessa forma, poder

interpretá-lo não só pela atribuição de sentido, ou seja, pela percepção, mas

também interpretá-lo por meio de apropriações e práticas culturais.

Para Chartier (1990) “a apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma

história social das interpretações, remetidas para as suas determinações

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fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas

específicas que as produzem” (CHARTIER, 1990, p.26).

O estabelecimento de representações não é pacífico nem consensual, mas

conflituoso, pois se cada grupo ou indivíduo compreende a si mesmo e ao outro de

uma determinada forma, a legitimação de uma identidade passa pela

desqualificação de outras. Desse modo, a representação pressuporia uma

separação entre imaginário e mundo material e se reporia e se construiria na vida

cotidiana, nas “negociações” e nos conflitos diários.

As questões iniciais que mobilizaram o processo investigativo foram: Como foi

possível aos trabalhadores negros escravizados, liv res e libertos apropriarem-

se do ler, do escrever e do contar? Quais foram as condições sócio-históricas

que possibilitaram aos trabalhadores negros escravi zados, livres e libertos

terem acesso à educação?

Porém, a crítica às fontes, fez surgir uma questão axial que mobilizou as minhas

inquietações nesta proposta de pesquisa: Qual seria, então, o projeto estratégico

de educação idealizado pela elite intelectual e dir igente para conseguir

efetivar a escolarização dos trabalhadores negros e scravizados, livres e

libertos? Esta questão está relacionada com o conceito de representação, por meio

de uma série de outras questões compositoras: - Como os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos foram representados pela a elite intelectual-dirigente

espírito-santense? De que forma essas representações evidenciaram, nas suas

entrelinhas, as experiências educacionais dos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos?

Além dessas, outras questões se desdobraram no decorrer da investigação: Que

modelo de educação a elite intelectual e dirigente aplicou especificamente na

educação dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos? E com quais

objetivos? Que trabalhador é esse que a elite intelectual e dirigente pretendia

“reconstruir” e com que intuito?

A partir destas questões propus um exercício de investigação indiciária, conforme o

método de interpretação proposto por Carlos Ginzburg (2003ª). Assim, o processo

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investigativo permitiu conjecturar possibilidades de uma verdade provável em

relação à problemática apresentada, no sentido de envolver uma pluralidade de

experiências no espaço e no tempo proposto e os múltiplos desdobramentos dos

conflitos e das contradições vivenciadas pelos sujeitos desta pesquisa.

Diante disso, o meu intento foi desvelar o pensamento da elite intelectual e dirigente

em relação à educação oferecida aos trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos nas últimas décadas do século XIX, entender a interface escravidão e

educação.

Dessa maneira, foi possível neste jogo de forças de tensões, contradições e

mudanças, descortinar as estratégias socioculturais dessas elites que se esboçaram

por meio de projetos educacionais relacionados aos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos. Em contrapartida, foi possível evidenciar as astúcias

e as táticas20 dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos na luta pela

liberdade do corpo e da mente.

Sem dúvida, tratou-se de um desafio “em dose dupla”. Primeiramente porque a

educação brasileira, pelo menos, até as últimas décadas do século XIX, foi

essencialmente destinada à preparação de uma elite que deveria assumir o controle

sociopolítico do País e não se destinava a atender às necessidades das camadas

populares. Caracterizou-se por uma erudição ligada ao status social em contraste

gritante com a quase total ausência da educação popular21. Além disso, havia uma

Lei de 1835 que proibia aos trabalhadores negros escravizados o acesso às escolas,

ou melhor, “proibia ensinar a ler, e escrever, oficio, Artes [sic], a escravos”22.

Mesmo diante dessa Lei, de forma alguma pretendo afirmar que os trabalhadores

negros escravizados tenham sido alijados do processo educacional. É importante

considerar a possibilidade de que esta lei tenha sido burlada e que outros arranjos

20 Os conceitos estratégias, astúcias e táticas são usados fundamentados em Michel de Certeau (2004). 21 Para Vanilda Pereira Paiva (1973) a educação popular refere-se especificamente a instrução elementar “para os desvalidos”. 22 Na sessão da Assembléia Legislativa da Província do Espírito Santo de 8 de fevereiro de 1835 (Arquivo da Assembléia Legislativa - AALE) foi apresentado um projeto de lei, aprovado após ser adiada por diversas vezes a discussão.

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de práticas educativas tenham sido possíveis a esses sujeitos históricos. Penso que

há uma distância muito grande entre as leis e as práticas cotidianas, e que as formas

de sociabilidade possuíam muito mais poder do que normalmente se imagina,

podendo ir muito além do que o Direito Público lhe assegurava.

Assim, creio que se possa inferir que houve “negociação”, caracterizada pela tensão

entre os interesses dos grandes proprietários e os interesses dos trabalhadores

negros escravizados. Por meio de um jogo de astúcias, os trabalhadores negros

escravizados abriram brechas para conseguirem que algumas de suas

reivindicações fossem atendidas, pois as relações humanas são factíveis de acordos

sociais, econômicos, políticos e culturais.

Desse modo, foi necessário problematizar os diversos fenômenos, experiências e

práticas socioculturais e educacionais desses trabalhadores no contexto do recorte

cronológico. Não deixei de considerar que as experiências não foram iguais para

todos os sujeitos, pois muitos se apropriaram delas de formas diferentes.

Além disso, foi imprescindível superar a ótica binária em que a relação entre

“dominado – dominador” é vista de forma linear e homogênea nos estudos

históricos; em que as teorias tradicionais evidenciam representações sobre o

trabalhador negro escravizado, livre e liberto apenas como aquele que é coisificado

e vitimizado, sem reconhecê-lo como sujeito histórico.

Esse conjunto de proposições impulsionou-me a buscar alternativas para fugir de

uma visão monolítica da escravidão. Afinal, penso que toda concepção unitária que

apresente a escravidão violenta e opressiva, sobretudo como um único caminho de

representar o ser trabalhador negro escravizado, livre e liberto, ignorando a

capacidade destes de reinventarem sua história, por meio, de concepções próprias

de si e do seu cativeiro, deva ser rejeitada.

Optei pelo redimensionamento da questão inicial, associando-a e incorporando-a

outras questões norteadoras, que apontaram para a perspectiva de que, apesar de

todos os mecanismos de dominação e exploração, os trabalhadores negros

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escravizados, livres e libertos foram sujeitos de sua própria história e cultura e

independentes das representações das elites intelectuais e dirigentes sobre eles.

Por isso, foi proveitoso o desenvolvimento de uma abordagem teórica e

metodológica que favorecesse a interdisciplinaridade e permitisse o relacionamento

da História com outros campos científicos. Assim, a História Cultural apresenta-se

como uma abordagem que aponta para a diversidade das fontes históricas, do

abandono dos esquemas teóricos generalizantes ao priorizar os “detalhes”. Em

conseqüência disso, aumentou a produção de trabalhos voltados para as questões

de gênero, minorias étnicas, valores, hábitos, ritos e costumes em um processo

interdisciplinar.

1.1.1 A imprensa e o cotidiano

Abro um parêntese no sentido de pontuar a importância que a imprensa exercia

sobre o cotidiano da Província do Espírito Santo nas últimas décadas do século XIX.

Quero salientar que se somente fossem consideradas rigidamente as informações

do censo de 1872, se poderia afirmar que esses impressos não teriam muito

significado, pois uma parcela ínfima da população poderia ter acesso a essas

informações. Convém ressaltar que, segundo os dados estatísticos, predominava o

analfabetismo no Brasil oitocentista entre a camada popular, e, principalmente, entre

a população escravizada (essa, sem dúvida, excluída, inclusive por meio das

medidas legislativas oficiais).

Conforme o censo de 1872, na Província do Espírito Santo havia apenas um

trabalhador escravizado alfabetizado do sexo masculino e nenhum representante do

sexo feminino. Entretanto, penso que não se pode considerar que essas

informações oficiais são verdades absolutas, muito pelo contrário, elas devem ser

questionadas, de modo que se, aponte para outras possibilidades, uma vez que,

conforme enuncia Natalie Davis (1990), a palavra impressa entrou na vida popular

criando novas redes de comunicação oferecendo-lhes novas opções de acesso ao

escrito e formas de controlá-lo.

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Natalie Davis (1990) traçou a sua análise a partir de questões norteadoras como:

“Isto pode ser verdade? Será que a palavra impressa tinha tal importância para o

povo num período em que os alfabetizados ainda eram tão poucos? Como se pode

detectar essa influência? E, afinal o que quero dizer com ‘popular’ e ‘o povo’?”

(DAVIS, 1990, p. 157). Afirmou, ainda, que “popular” e “povo” são palavras muito

ambíguas no uso letrado, tanto no passado como na atualidade.

Portanto, “o povo” poderia referir-se a toda população do local ou os denominados

“cidadãos” e habitantes respaldados por uma lei, ou aos “cidadãos comuns”, os “não

letrados”. A historiadora ainda fez referência a outros autores que fazem uso da

palavra “povo” no sentido de fazer distinção entre o rural e o urbano. Porém, para

Davis (1990), essas palavras têm um sentido mais amplo ainda, quando se referem

ao homem comum e sua cultura. A autora fez a opção de priorizar, na sua análise,

os aspectos da vida comum dos camponeses do século XVI, ou seja, do “popular” ou

do “povo”.

Considerando essa ordem de questões, apontadas por Natalie Davis (1990), no meu

processo investigativo, as expressões “populares” e “povo” serão usadas no sentido

de referir as pessoas comuns (mulheres, homens e crianças) - pobres,

desamparadas e desvalidas; bem como trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos na Província do Espírito Santo, no contexto das últimas décadas do século

XIX.

Contudo, é necessário tornar evidente, que, neste estudo, as pessoas comuns

analfabetas ou “quase” alfabetizados ou as alfabetizadas, poderiam se apropriar dos

editoriais, notícias e anúncios dos impressos por meio das práticas de leituras orais,

ou seja, por meio do que liam e/ou ouviam. Sobre isto, Natalie Davis (1990) afirmou

que os impressos devem ser compreendidos “não apenas como fonte de idéias e

imagens, mas como mensageiro de relações” (DAVIS, 1990, p. 159).

A historiadora salientou, ainda, que a palavra impressa afetou os ambientes mais

cuidadosamente definidos, especificamente as pessoas comuns que formavam uma

“massa flutuante de analfabetos”, não apenas com uma função de alfabetizar, mas

por outros fatores, como por exemplo: o custo e disponibilidade dos impressos, o

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idioma, a possibilidade dos impressos terem sido lidos em voz alta, como também da

necessidade ou desejo de informação, e, ressalta ainda, o desejo de usar a palavra

impressa para dizer algo a alguém.

Natalie Davis (1990) deu continuidade à sua análise e apontou para as práticas

culturais da leitura e em voz alta e sua importância para a alfabetização das pessoas

comuns, especificamente os camponeses da França do século XVI, afirmou que as

conseqüências foram limitadas, no sentido, porém destacou que o estímulo à

educação estava associado ao progresso econômico, tecnológico e social

característico do ambiente urbano. Ressaltou, ainda, que os monopólios do saber

tinham sido quebrados, mas ainda não tinha sido substituídos pela censura política e

religiosa efetiva e pelas leis e teorias da propriedade privada das idéias.

Penso que os postulados de Natalie Davis (1990) foram pertinentes também para

compreender a importância dos impressos oficiais para a formação do corpus deste

trabalho. Além de ter oferecido indícios pertinentes para essa análise,

compreendendo que, de modo geral, os impressos espírito-santenses foram veículos

de informações e propagação de idéias ocupando um lugar privilegiado no cotidiano

local.

Assim, esta ordem de posições é importante no sentido de demonstrar que esses

impressos veiculavam uma visão estereotipada e distorcida dos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos, além do mais, foram importantes

propagadores das idéias que constituíram o pensamento da elite dirigente e

intelectual.

A imprensa cumpria, portanto, uma função de propagar o pensamento e as idéias

da elite intelectual e dirigente, principalmente do projeto de modernização da

sociedade e da economia, justificador pelo ideal nacionalista e reiterando o papel

civilizador desta elite. Isso significa que se pode conjecturar que foram lidos e/ou

ouvidos por um número considerável de pessoas, inclusive pelos próprios

trabalhadores negros, provocando mudanças e novos arranjos socioculturais. Fecho,

então, o parêntese.

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1.2 UMA ANCORAGEM REPLETA DE POSSIBILIDADES - A HI STÓRIA

CULTURAL

Na tentativa de situar os problemas da minha pesquisa, sem preocupar-me com a

produção de uma “verdade absoluta”, mas de uma verdade possível evidenciada

pela relação razão e sensibilidade, apropriei-me da abordagem teórica proposta pela

História Cultural, levando em consideração, principalmente, a possibilidade de

superação do reducionismo de uma abordagem mecânica e linear.

Além disso, essa abordagem propõe um diálogo com os estudos antropológicos

favorecendo a renovação temática e teórica da História e revelação de outras

possibilidades de se conhecer as experiências daqueles que sempre foram

excluídos como sujeitos na/da relação História e Educação, principalmente

considerando, conforme já mencionei, que essas experiências não são iguais para

todos.

Convém ressaltar, então, que essa proposta foi pertinente para o desenvolvimento

do meu trabalho, pois se interessa pelos detalhes e pelo contexto, ou seja, considera

as micro e as macro-questões, sem prescindir jamais da importância das fontes

históricas. Neste sentido, a relação História e Cultura, na verdade, passa pelo

reconhecimento de que a História, hoje, se preocupa com novas temáticas, novos

objetos, novas questões às fontes históricas, novas linguagens e com os sujeitos

sociais em suas multidimensões – sociais, políticas, econômicas, jurídicas, culturais.

Procurei, assim, elencar um referencial teórico que pudesse dar conta de uma

compreensão mais elaborada da complexidade da tensão que se estabelece entre

as camadas sociais no âmbito da interface escravidão e educação relacionando com

o âmbito da cultura.

A cultura tem adquirido crescente centralidade nas investigações históricas,

considerando que não é mais vista como mero reflexo de uma estrutura econômica,

passando a representar um processo social constitutivo de modos de vida e visões

de mundo. Dessa maneira, reconheço que a cultura ocupou um lugar importante

nas formas de socialização dos grupos sociais e que o emprego analítico desse

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conceito permite a superação da visão monolítica da escravidão. Daí a importância

das representações, apropriações e práticas, bem como os conhecimentos, a

concepção e compreensão que os sujeitos históricos sobre a vida e sobre si

mesmo.

Na construção deste trabalho somaram-se às abordagens teóricas desenvolvidas

por E. P. Thompson (1981, 1987, 1992, 1998, 2002), Robert Darnton (1986), Natalie

Zemon Davis (1990), Roger Chartier (1990, 2001 e 2002), Michel de Certeau (2002 e

2004) e Carlo Ginzburg (2002, 2003a e 2003b), que apareceram algumas vezes

para justificar a opção pela História Cultural; outras, para fundamentar teoricamente

este trabalho.

Saliento que esses estudos possuem muitos aspectos metodológicos em comum:

as explorações histórico-antropológicas, a proposta de uma investigação a partir do

local como circunscrição de análise (microanálise) e como escala própria de

observação, sem ignorar sua relação com o global; e, aqueles que, apontam para a

possibilidade de se trabalhar com a dimensão social do pensamento e das idéias,

explorando-se fontes históricas que indicam “sinais”, “pistas”, “sintomas” e “indícios”

sobre o implícito nas fissuras dos documentos históricos. Sem dúvida, também

ajudaram na consolidação de uma compreensão mais lúcida sobre a abordagem da

História Cultural e contribuíram de forma pertinente para a construção desta

pesquisa. Além disso, apontaram para outros possíveis caminhos para o

desenvolvimento do percurso investigativo.

Dessa forma, me proponho realizar um percurso por alguns aspectos relevantes e

pertinentes relacionados a esses respectivos estudos: primeiramente, as propostas

teóricas de E. P. Thompson, que permitiram o desenvolvimento de uma teoria

apresentada nas análises das suas obras “A miséria da teoria ou um planetário de

erros” (1981) e a “A formação da classe operária inglesa” (1987 e 2002). Os

interesses desse historiador direcionaram-se para as investigações da composição

social e da vida cotidiana das classes operárias inglesas, permitindo pensar como

recuperar as experiências dos trabalhadores e como entender as ações destes no

contexto da dominação a qual estavam submetidos.

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Sinto decepcionar aqueles praticantes que supõem que tudo o que é necessário saber sobre a história pode ser construído a partir de um aparelho mecânico conceptual. Podemos apenas retornar, ao fim dessas explorações, com melhores métodos e um melhor mapa; com uma certa apreensão de todo o processo social; com expectativas quanto ao processo e quanto às relações estruturadas; com uma certa maneira de nos situar frente ao material; com certos conceitos-chave (a serem eles próprios aplicados, testados e reformulados) de materialismo histórico: classe, ideologia, modo de produção. Nas margens do mapa, encontraremos sempre as fronteiras do desconhecido (THOMPSON, 1981, p. 185, grifos meus).

Assim, os estudos de E. P. Thompson introduziram inovações nos planos da teoria,

do método, da temática e das fontes a serem utilizadas pela história, resgatando a

dimensão do empírico para a ação do historiador. Além disso, suas propostas

teóricas evidenciaram as “experiências” dos trabalhadores não só nas relações

econômicas, mas nos hábitos, nos costumes, nas tradições e nos valores, ou seja,

abordou questões no âmbito da cultura.

Dessa maneira, a categoria experiência revelou-se como central nos estudos desse

historiador, pois considerou que somente através dela os sujeitos históricos

desenvolvem e incorporam valores:

O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiência humana” . [...] Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo - não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura (as duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, “relativamente autônomas”) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (THOMPSON, 1981, p.182, grifos meus).

E. P. Thompson manifestou a importância das experiências como um lugar

privilegiado na responsabilidade de explicar as mudanças históricas produzindo,

então, um trabalho de investigação que implicou em observar modos de vidas e

valores culturais da “gente comum” na construção da história. Qual seria, então, o

lugar da cultura nos estudos de Thompson? Assim, na concepção deste historiador,

cultura seria:

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[...] um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do costume sob formas específicas das relações sociais e de trabalho" (THOMPSON, 1998, p. 22).

Dessa forma, os valores culturais nos estudos apresentados por Thompson foram

compreendidos como concepções dos sujeitos históricos de si mesmos e do mundo

em que viviam, não sendo iguais, pois estavam presentes nas contradições, nas

lutas, nas resistências e nas (re)significações das experiências cotidianas. Também

apontaram para a construção de uma abordagem sustentada pelo “olhar de baixo”

(THOMPSON e SHARPE, 1992) dos excluídos, das vítimas, do “outro” e dos

“silenciados”, para novas perspectivas de ampliação do leque de ação da

investigação histórica, que seria conhecer as experiências desses sujeitos históricos,

interrogando os documentos e registros deixados pelo olhar “de cima”, ou seja, os

documentos oficiais.

São fecundas as proposições trompsianas, principalmente apontam para o lugar

próprio da ação empírica e da teoria e não renunciam ao interesse de investigar os

procedimentos mais adequados e confiáveis para se transitar entre elas. Assim, E.

P. Thompson propôs interrogar os silêncios reais, através do diálogo do

conhecimento, pois à medida que esses silêncios são penetrados, não se cose

apenas um conceito novo no pano velho, mas aparece a necessidade de reordenar

todo o conjunto de conceitos (THOMPSON, 1981). Tornando a pesquisa histórica

um grande desafio, que não se reduz a uma ação mecânica. A interpretação, por

isso, exige uma análise refinada e empírica, do modo pelo qual destaca uma certa

experiência social que plasma certas formas de pensar. Dessa maneira, o autor

deslocou a análise também para além das idéias, do pensamento e de seus

procedimentos, porque defendeu que “os valores não ‘pensados’, nem ‘chamados’;

são vividos [...] Além disso, os valores, tanto quanto as necessidades materiais,

serão sempre um terreno de contradições” (THOMPSON, 1981, p. 194).

Portanto, as propostas thompsianas estabeleceram um ponto de junção entre a

experiência e a cultura, que seria a consciência afetiva e moral, pois consideraram

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que as pessoas nessa relação “também experimentam sua experiência como

sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, nas normas, obrigações

familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou [...] na arte ou nas

convicções religiosas” (THOMPSON, 1981, p. 189) podendo, então, estabelecer

conflitos e escolhas de valor sempre, mesmo que social e culturalmente

determinados. Dessa maneira, procurei desenvolver um processo de investigação

que circulou entre a experiência e a cultura, dando ênfase também aos sentimentos,

aos valores, as convicções, enfim, as apropriações e as práticas culturais dos

sujeitos históricos pertencentes tanto à elite intelectual e dirigente como também à

camada popular.

Tarefa difícil, principalmente considerando o tipo específico de fontes deste processo

investigativo - a imprensa e a documentação oficial - já que representam o

pensamento de uma elite intelectual e dirigente, ficando, assim, mais difícil obter

informações sobre a “gente comum” – trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos. Foi necessário, então, redefinir os tratamentos metodológicos, procurando

fazer outras perguntas e ler nas entrelinhas destes documentos.

Julgo ser pertinente, para maior elucidação da abordagem da História Cultural,

apontar também algumas das formulações propostas por Robert Darnton (1986),

que esclareceu que:

A maioria das pessoas tende a pensar que a história cultural aborda a cultura superior, a Cultura com “c” maiúsculo. A história da cultura com “c” minúsculo remonta a Buckardt, mas ainda é pouco familiar e cheia de surpresas. Enquanto o historiador das idéias esboça a filiação do pensamento formal de um filósofo para outro, o historiador etnográfico estuda as maneiras como as pessoas comuns entendiam o mundo (DARNTON, 1986, p.14).

Darnton desenvolveu seus estudos estabelecendo uma aproximação vantajosa com

a Antropologia de forma interdisciplinar e crítica, como, por exemplo, em “O grande

massacre dos gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa” (1986). Nessa

obra, o historiador procurou entender os significados implícitos na “visão de mundo”

das pessoas comuns, no contexto da história francesa do século XVII e XVIII.

Assim, o autor afirmou que

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Visões de mundo não podem ser descritas da mesma maneira que acontecimentos políticos, mas não são menos “reais”.[...] Longe de ser a invenção arbitrária de uma imaginação coletiva, expressa a base comum de uma determinada ordem social. Portanto, para reconstituir a maneira como os camponeses viam o mundo, nos tempos do Antigo Regime, é preciso começar perguntando o que tinham em comum, que experiência partilhavam, na vida cotidiana de suas aldeias (DARNTON, 1986, p. 39).

Considerando as proposições apresentadas por Robert Darnton, foi possível

reconstituir a maneira como tanto a elite intelectual e dirigente como os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos “viam o mundo” nos tempos da

escravidão, e no contexto da interface escravidão e educação, principalmente nas

últimas décadas do século XIX. Porém, conforme afirmou o historiador afirmou “a

resposta deve ser cercada de limitações, e deve permanecer restrita a um alto nível

de generalização, porque as condições variavam muitíssimo”, dessa forma procurei

estabelecer verdades possíveis e não absolutas em relação a essas “visões de

mundo” (DARNTON, 1986, p. 39).

É importante ressaltar também as formulações teóricas de Natalie Zemon Davis

(1990) semelhantes às proposições de E. P. Thompson (1981, 1987, 2002) deram

ênfase ao papel decisivo da cultura como força motivadora de transformação

histórica23. Davis (1990 e 1997) realizou um esforço de aproximação com a

Antropologia, consolidando, uma abordagem marcada pela presença das

experiências das pessoas comuns no contexto histórico em que elas ocorrem.

Desenvolveu, principalmente, estudos voltados para as classes trabalhadoras, suas

revoltas, conflitos, religião e relacionamentos sociais e intelectuais; evidenciando

suas crenças e visões de mundo. Assim, buscou dar voz aos sujeitos silenciados,

principalmente, aqueles que deixaram poucos registros escritos, apontando para o

papel da cultura desses no processo e na mediação das relações e estruturas

sociais que possibilitam a (re)configuração da sua própria história e definição da

própria identidade cultural.

Dando seqüência ao percurso, não poderia deixar de mencionar os estudos de

Roger Chartier (1990, 2001 e 2002). Chartier preocupou-se em pesquisar a história 23 A formação teórica inicial dos dois autores era sustentada pela abordagem de tradição marxista, porém, posteriormente reagiram contra o rigor das forças socioeconômicas como principais determinantes da História e apropriaram-se da cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar e mudar o mundo.

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da leitura, das práticas de leitura e das práticas de escrita, constituindo-se, através

da história do livro, da recepção cultural e para a inovação da sociologia da cultura.

Além disso, mostrou-se atento às mediações que diferenciam as camadas populares

através da produção, da apropriação e das práticas culturais, que, para o autor,

“são sempre criadoras de usos ou de representações que não são de forma alguma

redutíveis à vontade dos produtores de discursos e de normas” (CHARTIER, 1990,

p.136). O autor traçou uma discussão que rejeitou a visão dicotômica entre a cultura

popular e a cultura erudita. Para tanto, propôs um conceito de cultura como prática

(mais amplo), e também os conceitos de representação, de apropriação e de

práticas que foram pertinentes neste estudo.

Desse modo, sua contribuição foi essencial para a compreensão do pensamento da

elite intelectual e dirigente espírito-santense em relação à educação dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, evidenciado por meio das

representações, apropriações e práticas presentes na documentação oficial e na

imprensa local.

Também foi possível vislumbrar nas entrelinhas desta documentação os sujeitos

históricos silenciados e excluídos da história – os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos - por meio de suas experiências, valores culturais,

confrontos e afetividades, ou seja, seus modos de vida, apropriações e práticas

culturais, incorporando a reflexão sobre a sua atuação tanto individual, como

também coletiva.

Não poderia deixar de mencionar os estudos de Michel de Certeau (2004)24,

historiador que desenvolveu uma produção científica sobre a mística e as correntes

religiosas nos século XVI e XVII. Em sua crítica à epistemologia da História,

questionou sua escrita e seu estatuto, relativizando a noção de verdade, não se

pode falar de uma verdade absoluta, mas de verdades (no plural). O autor

desmontou, assim, o argumento de que as fontes apresentam uma verdade

absoluta, porém não nega que a construção histórica seja compatível com a

apresentação de provas ou evidências que permitem a reinterpretação aproximada

24Edição francesa em fevereiro de 1980, como resultado de uma pesquisa de 1974 a 1978.

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do que aconteceu, do pensamento e das ações humanas. Dessa forma, Michel de

Certeau alertou para as limitações do trabalho historiográfico, porém não o

desabilitou, pois o trabalho do historiador residiria na busca de possibilidades. Além

disso, apontou para a reflexão daquilo que constitui a cultura em uma sociedade

(CERTEAU, 2002), ou melhor, sobre as práticas culturais ou “culturas no plural”

(CERTEAU, 2004, p. 13), recusando a uniformidade e a estruturação de uma

“empreitada teórica”:

É preciso interessar-se não pelos produtos culturais oferecidos no mercado dos bens, mas pelas operações dos seus usuários; é mister ocupar-se com “as maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado num dado por uma prática”. O que importa já não é, nem pode ser mais a “cultura erudita”, [...] Nem tampouco a chamada “cultura popular” [...]. Sendo assim, é necessário voltar-se para a “proliferação disseminada” de criações anônimas e “perecíveis” que irrompem com vivacidade e não se capitalizam. A cultura plural, não podendo dizer mais, ele [domínio de pesquisa] retornará aos trabalhos ulteriores de esclarecer os caminhos sinuosos que se percebem nas astúcias táticas das práticas ordinárias (CERTEAU, 2004, p.13 e 14).

Michel de Certeau (2004) salientou, então, que é necessário pensar a cultura de

forma mais abrangente, ou seja, centrada na “cultura plural”:

Sem dúvida continua havendo diferenças, sociais, econômicas, históricas, entre os praticantes (camponeses, operários etc.) dessas astúcias e os analistas, neste caso, nós. Não se dá por acaso que toda a sua cultura se elabora nos termos de relações conflituais ou competitivas entre os mais fortes e mais fracos, sem nenhum espaço, nem legendário ou ritual, possa instalar-se na certeza de neutralidade (CERTEAU, 2004, p. 86).

Para Michel de Certeau a “cultura popular está imersa no campo de uma arte de

fazer” (CERTEAU, 2004, p. 86), segundo sua perspectiva estabeleceu a divisão

entre as táticas conflitivas e as contraditórias a partir das quais os setores populares

se apropriam dos produtos culturais generalizados, em que a “ordem é representada

por uma arte” (CERTEAU, 2004, p. 88), “enfatiza a ‘cultura comum e cotidiana

enquanto a apropriação (ou reapropriação), o consumo ou recepção considerada

como uma ‘maneira de praticar’” (CERTEAU, 2004, p. 16). Destacou também “a

necessidade de ‘elaborar modelos de análise que correspondam a essas trajetórias’”

(CERTEAU, 2004, p. 16), esboçando “uma teoria das práticas cotidianas para extrair

do seu ruído as maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem

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muitas vezes senão a título de ‘resistências’ ou de inércias em relação ao

desenvolvimento da produção ‘sócio-cultural’ [sic]” (CERTEAU, 2004, p. 17).

O autor ressaltou, ainda, que

[...] o homem ordinário [...] inventa o cotidiano, graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas de resistência pelas quais ele altera os objetos e os códigos, se reapropria do espaço e do uso a seu jeito. Volta e atalhos, maneiras de dar golpes, astúcias de caçadores, mobilidades, histórias e jogos de palavras, mil práticas inventivas provam, a quem tem olhos para ver, que a multidão sem qualidades não é obediente e passiva, mas abre o próprio caminho no uso dos produtos impostos, numa ampla liberdade em que cada um procurava viver do melhor modo possível a ordem social e a violência das coisas (CERTEAU, 2004, contra-capa).

Na minha opinião, o destaque dos estudos de Michel de Certeau (2004) se

caracteriza exatamente por considerar que nessa arte de fazer é possível perceber o

que está escrito nas entrelinhas do pensamento histórico por meio da análise das

estratégias dos mais forte, da concepção e da inventividade dos mais fracos por

meio de suas táticas de resistência.

Ao invés de permanecer no terreno de um discurso que mantém o seu privilégio invertendo o seu conteúdo (que fala de catástrofe e não mais de progresso), pode-se enveredar por outro caminho: analisar as práticas microbianas, singulares e plurais, que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento; [...] Eu gostaria de acompanhar alguns procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do campo onde se exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade (CERTEAU, 2004, p. 174 e 175).

Dessa maneira, Certeau (2004) realizou uma distinção entre estratégias e táticas,

salientando que a primeira seria:

[...] o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder [...] pode ser isolado. A estratégia postula um lugar capaz de ser circunscrito como um lugar próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças [...] o lugar do poder e do querer próprios. [...] O “próprio” é uma vitória do lugar sobre o tempo. [...] É também um domínio dos lugares pela vista [...] de onde a vista pode transformar as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar ou “incluir” na sua visão. Ver (longe) será igualmente

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prever, antecipar-se ao tempo pela leitura de um espaço. [...] Seria legítimo definir o poder do saber por essa capacidade de transformar as incertezas da história em espaços legíveis. Mas é mais exato reconhecer nessas “estratégias” um tipo específico de saber, aquele que sustenta e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio. [...] Noutras palavras, um poder é a preliminar deste saber, e não apenas o seu efeito ou seu atributo. (CERTEAU, 2004, p. 99 e 100).

Já as táticas ou a polemologia do “fraco” seria o que o autor considera:

[...] a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. [...] é movimento “dentro do campo de visão do inimigo” [...] é no espaço pro ele controlado. [...] Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, [...] para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Criar ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco. [...] O poder se acha amarrado à sua visibilidade. Ao contrário, a astúcia é possível ao fraco, e muitas vezes apenas ela, como “último recurso” [...] Sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz como se fica no corpo a corpo sem distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela ausência de poder assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder. As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo [...] as estratégias apontam pra a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder. Ainda que os métodos praticados pela arte da guerra cotidiana jamais se apresentem sob uma forma tão nítida, nem por isso é menos certo que apostas feitas no lugar ou no tempo distinguem as maneiras de agir (CERTEAU, 2004, p.100-102).

Como já foi mencionado, Michel de Certeau (2004) recuperou as astúcias anônimas

das artes de fazer e viver a sociedade, colocando em relevo as manifestações

culturais do homem ordinário. Para isto, o historiador propôs um retorno às práticas,

especificamente as do cotidiano, tecidas, com efeito, nas condições determinantes

da reelaboração da vida social. Desenvolveu, então, uma abordagem teórica e

metodológica que favoreceu a interdisciplinaridade e permitiu o relacionamento dos

seus estudos com outros campos científicos, formulando, assim, uma perspectiva

epistemológica que considera as incertezas e contradições.

Tais colocações são fundamentais para esse trabalho, no sentido de pensar a elite

intelectual e dirigente e os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos

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estavam imersos em uma cultura que não deve ser ignorada, percebendo esse

campo, como um dos espaços privilegiados de realizar “a invenção do cotidiano”.

Principalmente, considerando que a sociedade espírito-santense se constituía em

um conjunto mais amplo repleto de ambigüidades. Além disso, esses sujeitos

articulavam nesse conjunto por meio de suas “maneiras de fazer” e da reapropriação

do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural.

Discorri sobre esses estudos teóricos para estabelecer o meu ponto de ancoragem

e as aproximações possíveis a este processo investigativo. Assim, a respeito de

alguns aspectos conceituais e metodológicos apresentados pelos autores citados, e

apesar das muitas diferenças entre eles, destaco seus pontos de coincidência, que

caracterizam pela presença dos movimentos, das mudanças, das interações, das

trocas, das partilhas entre aspectos que são distintos, mas fundamentalmente

complementares.

Desse modo, este trabalho, sustentado na abordagem da História Cultural, se inseriu

exatamente na perspectiva de dialogar com esses estudos. Foi realmente um grande

desafio assumir o compromisso com essa proposta, principalmente, porque contei

apenas com o testemunho dos sujeitos históricos que representavam o pensamento

da elite intelectual e dirigente e não dos sujeitos históricos que tanto almejava ouvir

a voz - os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos. Diante dessa

situação, foi necessário repensar sobre o processo de investigação inicial,

conseqüentemente assumi uma nova postura, principalmente, considerando o que

“não foi dito”, ou seja, da imposição do silêncio das fontes.

As propostas da História Cultural foram pertinentes para este processo de

investigação, pois permitiram que as fronteiras desconhecidas desses silêncios

fossem se transformando, e, em certa medida, apontaram para construção e

reconstrução das possibilidades de vislumbrar as experiências de vida daqueles que

definitivamente são excluídos como sujeitos das “manchetes” sociais, políticas,

econômicas e culturais e dos flashes da imprensa da época a partir do pensamento

da elite intelectual e dirigente. Porém, isso não impediu que, em certa medida,

fossem evidenciadas as invenções e reinvenções (táticas, astúcias e usos) dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos nas lutas cotidianas e

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resistências pela liberdade do corpo e da mente, sobretudo, partindo do universo da

educação; bem como as representações, apropriações e práticas desses sujeitos

históricos que se entrecruzaram com as representações, apropriações e práticas da

elite intelectual e dirigente em um contexto caracterizado pela contradição e por

intensa circularidade de idéias típicas das últimas décadas do século XIX.

1.3 O PARADIGMA INDICIÁRIO – UM MÉTODO INTERPRETATI VO

Tão importantes quanto os estudos já mencionados, para o desenvolvimento da

minha pesquisa, são os estudos de Carlo Ginzburg (2003 a25 e 2003 b),

principalmente porque apresentou um método de interpretação teórica, conhecido

como o paradigma indiciário26, que propõe o exercício semelhante ao olhar de

detetive (Sherlock Holmes), bem próximo e detalhista sobre acontecimentos

inicialmente despercebidos, mas cruciais em relação aos aspectos do cotidiano, em

busca dos rastros ou pistas e indícios, em uma redução da escala de observação

própria à micro-história.

O autor faz uso desse método interpretativo ao analisar a história de um moleiro

friulano – Domenico Scandella, conhecido por Menocchio – demonstrando que é

possível o encontro com as fontes, dando voz a elas, e superar a escassez de

testemunhos sobre o comportamento e as atitudes das “classes subalternas do

passado”. Além disso, vislumbrou para possibilidade de interface entre a micro-

história de Menocchio moleiro e a macro-história das Reformas, bem como para o

delineamento das transformações que marcaram a Época Moderna, enfocando a

circularidade cultural deste sujeito histórico. Demonstrou, assim, a possibilidade de

renovar o fazer histórico a partir da investigação das fontes primárias de arquivos e

para a necessidade de uma reconstrução analítica das diferenças desses sujeitos do

25Esta obra reúne ensaios escritos por Carlo Ginzburg entre 1961 e 1986. 26 No Curso “Micro-história e paradigma indiciário: as possibilidades do indiciário no estudo das relações de poder” no XV Simpósio de História: Etnia, gênero e poder, que aconteceu entre 21 a 24 de novembro de 2005, UFES,a Profª. Drª Márcia B. F. Rodrigues (DCSO/CCHN/UFES) e Profº Claudio Marcio Coelho (DCSO/CCHN/UFES), por acreditarem que paradigma trata-se de uma imposição das regras fixas da tradição positivista, fizeram a opção apenas pela expressão indiciarismo, justificado ser este um processo que antecede a prática e a teoria sob uma proposta oposta ao positivismo e a rigidez das ciências modernas. Porém, eu prefiro continuar usando a expressão conforme foi apresentada por Carlo Ginzburg (2003a).

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passado, a fim de poder “reconstruir a fisionomia, parcialmente obscurecida, de sua

cultura e contexto social no qual ela se moldou” (GINZBURG, 2003b, p.12).

Em outro estudo, Ginzburg (2003a) também mostrou como é possível sair dos

incômodos da contraposição entre ‘racionalismo’ e ‘irracionalismo”. Para tanto,

propôs a aplicação de um método interpretativo das fontes que fosse baseado em

analogias tecidas entre os métodos de Giovani Morelli, Sherlock Holmes (Conan

Doyle) e Sigmund Freud, estabelecendo um entrecruzamento entre esses três

olhares, construindo, assim, um paradigma baseado em “um saber indiciário”.

Desenvolveu, assim, uma “semiótica médica”:

Nos três casos, pistas talvez infinitésimas permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli). Como se explica essa tripla analogia? A resposta, à primeira vista, é muito simples. Freud era um médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle (criador de Holmes) havia sido médico antes de dedicar-se à literatura. Nos três casos, entrevê-se o modelo da semiótica médica: a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo [...] (GINZBURG, 2003a, p. 150-151).

Ao realizar a interlocução com Freud, Ginzburg procurou os caminhos profícuos do

saber por meio dos resíduos, dos dados marginais, considerados desprezíveis pelo

olhar despreparado; em Sherlock Holmes (Artur Conan Doyle), Ginzburg procurou

transformar os fenômenos estudados em enigmas, procurando encontrar as pistas e

indícios para resolvê-lo; e em Morelli, evidenciou-se a preocupação com as

particularidades e analogias em um processo interdisciplinar com outras ciências

indiciarias (Arqueologia, Anatomia, Semiótica, etc).

Ginzburg (2003 a) anunciou um paradigma venatório e divinatório. O paradigma

venatório estaria relacionado à caça e ao seu universo, voltados para os fatos do

passado, pois “o caçador teria sido o primeiro a ‘narrar uma história’ porque era o

único capaz de ler, nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela presa,

uma série coerente de eventos” (GINZBURG, 2004, p. 152). Dessa maneira, o autor

enfatizou a importância das fontes não-escritas, ou seja, as pictóricas que são

importantes para a constituição de eventos que aconteceram no passado e não

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foram ainda experimentadas pelo observador. Quanto ao paradigma divinatório,

seria relativo à adivinhação ou aos instrumentos dessa prática, ou seja, voltado para

as possibilidades futuras, ou seja, que ainda não foram vividas pelo observador,

seriam os fatos do futuro, caracterizado por uma arte divinatória semelhante às

adivinhações da região mesopotâmica.

Com esse cabedal Ginzburg (2003a) utilizou-se de metáforas que revelaram como

funciona este método interpretativo:

[...] uma atitude orientada para a análise de casos individuais, reconstruíveis somente através de pistas, sintomas, indícios.[...] Em suma, pode-se falar de paradigma indiciário ou divinatório, dirigido, segundo as formas de saber, para o passado, o presente ou o futuro. Para o futuro – e tinha-se a arte divinatória em sentido próprio (o autor se refere as práticas de adivinhação na antiga Mesopotâmia) -; para o passado, o presente e o futuro – e tinha-se a semiótica médica na sua dupla face, diagnóstica e prognostica -; para o passado – e tinha-se a jurisprudência. Mas, por trás desse paradigma indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa (GINZBURG, 2003a, p. 154).

Ginzburg (2003 a) realizou também um paralelo entre o historiador e um médico:

Tudo o que dissemos até aqui explica como uma diagnose de traumatismo craniano, formulada a partir de um estrabismo bilateral, podia se encontrar num tratado de arte divinatória mesopotâmico; de modo mais geral, explica como apareceu historicamente uma constelação de disciplinas centradas na decifração de signos de vários tipos, os sintomas às escritas. Passando das civilizações mesopotâmicos para a Grécia, essa constelação mudou profundamente, em seguida à constituição de disciplinas novas, como a historiografia e a filologia, e à conquista de uma nova autonomia social e epistemológica por parte das antigas disciplinas, como a medicina. [...] Mesmo que o historiador não possa deixar de ser referir, explícita ou implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis, as sua estratégia cognoscitiva assim como os seus códigos expressivos permanecem intrinsecamente individualizantes (mesmo que o indivíduo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural (GINZBURG, 2003a, p.156-157).

Além disso, essa opção epistemológica permite a reconstrução e registro da

situação de vida, da linguagem, das percepções e das visões de mundo, das “idéias”

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que “circulavam”, das crenças e valores dentro do contexto histórico proposto para

investigação e das tensões e mediações das relações de poder, pois “a coerência do

desenho é verificável percorrendo o tapete com os olhos em várias direções”

(GINZBURG, 2002a, p. 170). Carlo Ginzburg (2003 a) propôs, ainda, interpelação

entre a razão e a emoção, ou seja, não realizou nem uma ruptura e nem um

deslocamento, mas uma aproximação com a sensibilidade (as emoções, fantasias,

afetos, etc).

Assim, foi possível no decorrer deste processo investigativo “comparar os fios que

compõem esta pesquisa aos fios de um tapete” (GINZBURG, 2003a, p. 170), pois a

apropriação desse método interpretativo permitiu traçar uma aventura no processo

investigativo na busca pelas mudanças em curso e aponta para as verdades

prováveis.

Dessa maneira, neste trabalho, procurei tecer as informações da documentação

analisada para evidenciar uma totalidade de significados que revelassem a

dimensão do pensamento social e individual da sociedade espírito-santense nas

últimas décadas do século XIX, tendo em vista as questões relacionadas à

escravidão e ao campo educacional. Busquei, ainda, compreender a interface

escravidão e educação, especificamente, e vislumbrar as experiências dos negros

escravos, livres e libertos no contexto do pensamento intelectual da Província do

Espírito Santo, nas últimas décadas do século XIX.

1.4 O SILÊNCIO DAS FONTES

Como já foi dito, este processo de investigação foi realmente um grande desafio,

principalmente, porque contei apenas com o testemunho da elite intelectual e

dirigente espírito-santense sobre os sujeitos históricos que tanto desejava ouvir a

voz (trabalhadores negros escravizados, livres e libertos).

A crítica às fontes evidenciou outro percurso investigativo e outras inquietações. Isso

aconteceu a partir interrogações sobre o que “não foi dito, ou seja, sobre os

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silêncios27: “Comece pelos silêncios, por que não?” Afinal, o que o silêncio pretendia

dizer e ao mesmo tempo omitir? Percebi, então, que o silêncio tem muito que dizer

e até mesmo gritar! Por que, então, não investigá-lo? Tais questões impuseram

outras, como por exemplo: Por que as experiências educacionais dos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos foram silenciadas? Como desvendar esse

silêncio à luz da pesquisa histórica? Caro leitor, esse conjunto de questões impôs

uma mudança de atitude frente ao corpus da pesquisa, foi um verdadeiro desafio!

Momento que provocou um certo desequilíbrio no processo de investigação. Porém,

uma observação mais atenta revelou, contudo, que a aparente ausência de

informações na verdade apresentava indícios de um dizer (relacionado ao

pensamento elitista e escravista da sociedade da época e que estava repleto de

representações, apropriações e práticas que deveriam ser desveladas). Assim, esse

dizer se apresentava não só nas informações expressas, bem como naquelas que

foram silenciadas e/ou omitidas, ou simplesmente desconsideradas.

Logo, o repensar sobre o processo investigativo já percorrido permitiu perceber que

o silêncio de uma fonte apresentava-se imbuído de significados tão importantes

quanto os que estavam explícitos. Compreendi, então, que o silêncio é uma forma

de dizer, ou seja, o silêncio das fontes não significa a negação dos fatos, pelo

contrário, muitos sujeitos históricos e muitas experiências humanas foram

silenciados porque não interessava a elite intelectual e dirigente que fossem

registrados.

Isto, sem dúvida, aumenta a responsabilidade de um pesquisador voltado para uma

pesquisa histórica. Tendo isto em vista, é importante que se busque problematizar o

que está sendo evidenciado por meio de documentação que remonta a um

passado, através de um outro olhar expresso por outras questões e outras

abordagens, procurando ir além do que está posto. Reitero, então, que tanto o que

é dito, como o não-dito28 (o silêncio), devem ser considerados em um processo de

investigação como “pistas”, “sinais pictóricos”, “sintomas” e “indícios” de um

processo de investigação.

27 Orientações tanto dadas pela Professora Doutora Juçara Luzia Leite como pelo Marcus Vinícius Fonseca (via e-mail) 28 C.f. Michel de Certeau (2002, p.67).

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Sobre isso Peres (2002) afirma:

Para concluir e retomar a discussão da questão do silêncio das fontes da história da educação em relação ao pertencimento étnico-racial dos sujeitos, é necessário dizer que, se chegamos a um consenso de que a problematização negro x educação é fundamental no campo da pesquisa educacional, em geral, e histórica, em especial, urge, mais do que ampliar o conceito de fontes, reinventar formas e estratégias de tratamento dessas fontes; ousar e criar; operar com uma boa dose de sensibilidade e intuição, de persistência e paciência. Uma história da presença/ausência das comunidades negras em processos de educação/escolarização remete-nos e possibilita-nos fazer uma outra história da educação no contexto brasileiro (PERES, 2002, p. 101).

Seguir esta trajetória me fez refletir sobre o corpus que se apresentava diante mim, o

que as fontes me “gritavam”. Essa reflexão permitiu perceber que estava diante de

fontes históricas que evidenciavam um discurso oficial de uma elite intelectual e

dirigente que procuravam por esse meio, representar as condições políticas,

econômicas e socioculturais, enfim históricas, da época em que foram produzidos

de acordo com o um olhar historicamente construído.

Dessa maneira, a abordagem desta temática não foi sustentada por generalizações

e análises reducionistas e mecanicistas da história, mas norteada por uma relação

História, Cultura e Educação. Esta relação, na verdade, rompeu com antigas formas

de concepções acerca da produção do conhecimento histórico e colocou o fazer da

história como um grande campo de possibilidades, capaz de estudar os sujeitos

históricos nas diversas dimensões do seu viver, em suas particularidades e diversas

experiências vividas coletivamente a partir de diferentes tipologias de fontes.

O resgate dos traços culturais de uma sociedade, de seus valores e pensamento é

tarefa sempre dificultada pela carência de fontes que indiquem, digamos, de

maneira, explícita, a presença e a forma de manifestação de tais elementos. Essa

dificuldade, contudo, não deve ser - e efetivamente não é - um empecilho

intransponível na recuperação do cultural. Nesse sentido, séries documentais como

a imprensa e relatórios oficiais podem, muitas vezes, dizer muito mais do que se

propunham originalmente, apresentando-se, por fim, como verdadeiros atalhos para

os objetivos de resgate e rastreamento de elementos socioculturais.

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Este trabalho trata-se de um desafio que perpassa o “ser pesquisadora”, no sentido

de acreditar que muito ainda há por se fazer em relação a esta temática,

considerando, principalmente, as dificuldades em relação ao acesso às fontes

históricas. Posso afirmar, então, que apresento aqui um relatório parcial de um

processo de pesquisa que está longe de ser concluído. Muitas questões ainda se

impõem e necessitam serem investigadas. Dessa forma, penso que o mérito deste

trabalho encontra-se não nas respostas encontradas, mas no turbilhão de questões

e inquietações que afloraram a partir dele, confirmando como a opção pela

interrelação escravidão e educação é um caminho proveitoso e merece ser

perseguido.

Afinal, a opção pela pesquisa histórica significa envolvimento com uma sucessão de

incertezas, tendo em vista que o gosto pelos arquivos nunca é plenamente satisfeito,

pois infelizmente se impõe a necessidade de realizar a seleção das fontes e o

abandono de muitos dados coletados com muito pesar. Além disso, não posso

deixar de lamentar pelos documentos que não foram encontrados, que estavam em

mal estado de conservação, ou simplesmente, “desapareceram”... Puff!

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CAPÍTULO 2:

A INTERFACE ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO

A princípio, a interface escravidão e educação parecia algo impossível de se realizar,

principalmente, se forem consideradas as tensões e oposições que a permeiam.

Porém, entendo que essas devam ser problematizadas, não apenas para dar

ênfase, mas para buscar a superação. Parafraseando Natalie Davis (1997), posso

afirmar que procurei entrelaçar todos os fios de meus antigos interesses – social,

antropológico, etnográfico e literário – mas também me lancei em novos mares e

territórios. Então, por que não acrescentar que me lancei também em tempestades

e maremotos?

2.1 A POSSIBILIDADE DE INTERFACE ENTRE ESCRAVIDÃO E EDUCAÇÃO -

APONTADO PARA OUTROS TRABALHOS

Diante desse conjunto de tensões e oposições que se apresentaram na interface

escravidão e educação, foi necessária, então, a interlocução com Sidney Chalhoub

(2003)29. Este autor representa uma geração de historiadores que contribuíram para

a construção de uma nova historiografia sobre a temática da escravidão. O seu

trabalho surgiu no momento em que predominava a idéia de que era muito difícil

contar a história da escravidão no Brasil, devido a uma suposta precariedade de

fontes.

Assim mesmo, o historiador desenvolveu um trabalho que contrariou esse

pressuposto e possibilitou, então, discutir as experiências dos trabalhadores

escravizados, principalmente a partir de depoimentos deles próprios, promovendo

uma discussão sobre o pensar e o atuar destes sujeitos históricos, enfim, sobre a

sua “visão de mundo”. Demonstrou, desse modo, que isso era possível, sobretudo,

29Desenvolveu a tese no final da década de 80 do século XX e teve a primeira edição em 1990.

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por meio de uma investigação realizada em processos criminais, mesmo que

redigidos por sujeitos das camadas dirigente, que reproduziam suas representações,

distorciam informações e evidenciavam estereótipos sobre os aspectos

sociohistóricos das experiências dos trabalhadores escravizados.

Os estudos de Chalhoub evidenciaram um desafio, que seria o de considerar a

especificidade das fontes. Neste sentido, a documentação dos arquivos públicos se

situa entre os conflitos da relação trabalhador escravizado-senhor e a intermediação

da administração pública, ou seja, são os testemunhos das camadas dirigentes que

registraram a história dos/sobre os excluídos. Porém, podem conduzir a “pistas”

sobre as relações do dia-a-dia no contexto da escravidão – tanto entre trabalhadores

escravizados e senhores escravizadores, como também entre “trabalhador

escravizado-trabalhador escravizado”. Além disso, possibilitam “ouvir” nas

entrelinhas a voz dos sujeitos históricos silenciados. Dessa forma, outras questões

devem ser levantadas para interpretar tais fontes, servindo como testemunhos

históricos de seu tempo, e com certeza levarão a respostas específicas de um

contexto caracterizado pelas tensões e pela lutas sócio-políticas existentes nas

relações tecidas na sociedade escravista.

Portanto, “o historiador, através de um esforço minucioso de decodificação e

contextualização de documentos, evidenciou a ‘dimensão social do pensamento’”

(CHALHOUB, 2003, p.16), posição norteadora desta pesquisa, principalmente,

porque descentralizou a temática escravidão das discussões apenas baseadas

apenas nas estruturas econômicas. O autor articulou com o cotidiano sociocultural

urbano (cidade do Rio de Janeiro) dos trabalhadores negros escravizados, enquanto

sujeitos históricos, com concepções próprias do mundo e do seu cativeiro, e capazes

de reinventarem suas táticas de “resistência” sem desvincular as experiências deste

do contexto das relações de produção e dos pilares das relações de poder impostas

pelo sistema escravista.

A partir de tais considerações, não poderia deixar de mencionar o pensamento de

Eugene Genovese (1988), que diferentemente de Chalhoub, realizou sua análise

sobre a escravidão em um contexto não urbano, mas em ambientes tipicamente

rurais, caracterizados pelo sistema de plantation e pelos aspectos paternalistas, no

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Sul dos Estados Unidos. Neste contexto, Genovese (1988) considerou que “para se

compreender melhor os escravos é preciso compreender os senhores e outras

pessoas que ajudaram a dar forma a uma complexa sociedade escravista”

(GENOVESE, 1988, p.14); o que é compreensível, pois ambos, afinal, eram sujeitos

históricos, cada um conforme sua própria concepção e “visão de mundo”.

Considerando o paternalismo, Genovese (1988) destacou que a relação “senhor-

escravo” era aceita por ambos, porém interpretada distintivamente:

Para os senhores de escravos, o paternalismo representava uma tentativa de superar a contradição fundamental da escravidão: a impossibilidade de os escravos virem a tornar-se as coisas que se supunha que fossem. [...] Onde quer que exista, o paternalismo corrói a solidariedade entre os oprimidos, ligando-os, como indivíduos, a seus opressores.[...] Os escravos do Velho Sul [Estados Unidos] mostravam intensa solidariedade, bem como resistência coletiva aos senhores, mas numa teia de relacionamentos paternalísticos sua ação tendia a tornar-se defensiva, buscando proteger os indivíduos contra a agressão e os maus-tratos, o que não podia ser convertido facilmente numa arma eficaz em prol da libertação (GENOVESE, 1988, p. 23 e 24).

Entre Genovese e Chalhoub existe uma confluência de idéias em relação ao fato de

que os trabalhadores negros escravizados e libertos recorreram à intermediação do

poder público na sua relação com o senhor, por meio das instituições de caráter

paternalista criadas para tal fim. Dessa forma, esses autores demonstraram que a

legislação e as possibilidades de acesso à justiça realmente tiveram um papel

importante no desenrolar da escravidão e de sua abolição. Isto é, apesar dos

senhores terem moldado o sistema jurídico de acordo com seus interesses, os

trabalhadores negros escravizados interpretaram e pressionaram os tribunais

jurídicos de acordo com suas próprias concepções sobre cativeiro, posicionando-se

como sujeitos históricos, capazes de reinventarem e reelaborarem os seus códigos

sociais (e é isto que interessa neste trabalho).

Sobre isso, Sidney Chalhoub (2003) afirmou que:

[...] um pouco de intimidade com os arquivos da escravidão revela de chofre ao pesquisador que ele está lidando com uma realidade social extremamente violenta: são encontros cotidianos com negros espancados e supliciados, com mães que têm filhos vendidos a outros

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senhores, com cativos que são ludibriados em seus constantes esforços para a obtenção da liberdade, [...]. As histórias são muitas [...] O mito do caráter benovelente ou não-violento da escravidão no Brasil já foi sobejamente demolido pela produção acadêmica das décadas de 1960 e 1970 (CHALHOUB, 2003, p.35).

É possível afirmar que essas interpretações e pressões ocorreram nos diversos

aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais da sociedade. Chalhoub

argumentou, ainda, que a existência da violência na escravidão é um referencial

importante para ser reavaliado, pois gerou mitos e imobilismos na produção

historiográfica.

Da mesma forma, alguns estudos ainda abordam, o mito da coisificação do

trabalhador escravizado. Com objetivo de elucidar esta questão, Chalhoub realizou

uma interlocução com Perdigão Malheiros30, numa tentativa de compreender o

pensamento dos juristas na época, e não para defender suas idéias (e,

principalmente, porque priorizou a leitura documentos judiciais como fontes

documentais na sua pesquisa sobre a escravidão nas últimas décadas do Brasil

Imperial).

Chalhoub, fundamentando-se nesta interlocução, argumentou que o privado estava

submetido ao público, dessa maneira quando os trabalhadores escravizados

recorriam à autoridade da polícia, na verdade, estavam desafiando ao domínio

privado do seu senhor e também estava enfrentando a complexidade do poder

público, ou seja, era uma forma de resistência. Porém, deixa claro que de forma

alguma existia uma “equidade da lei” entre o senhor e o trabalhador escravizado.

Genovese, mesmo abordando um contexto sociohistórico diferente do que foi

analisado por Chalhoub, também tornou notável que os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos tinham sua própria concepção de mundo:

A ação dos escravos se fazia dentro de limites restritos, mas cumpria um objetivo vital: desmascarava a fraude sobre a qual repousava a sociedade escravista, a idéia de que na realidade, e não apenas no

30 Agostinho Marques Perdigão Malheiros foi o deputado e jurista, ocupando o cargo de Ministro do Supremo Tribunal (1846), apresentou o 1° projeto propondo a abolição (1842) e escreveu o primeiro livro defendendo este tema: MALHEIROS, Agostinho Perdigão. A Escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1867.

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imaginário de uma pessoa, alguns seres humanos podiam tornar-se simples extensões da vontade de outros. Os escravos apreenderam o significado de sua vitória com muito mais acuidade do que em geral se crê. Viram que a lei lhes reconhecia poucos direitos e que mesmo esses podiam ser facilmente violados pelos brancos. No entanto, mesmo um único direito, imperfeitamente defendido, bastava para lhes mostrar que era possível resistir às pretensões da classe dos senhores. Não tardou para que, com lei ou sem lei, acrescentassem grande número de “direitos consuetudinários” por eles próprios criados e aprendessem a fazer com eles fossem respeitados (GENOVESE, 1988, p.54).

Retomo a discussão de Chalhoub, para entender melhor este conjunto de

proposições, quando este afirmou: “não consigo imaginar escravos que não

produzam valores próprios, ou que pensem e ajam segundo significados que lhes

são inteiramente impostos” (CHALHOUB, 2003, p.38). Dessa maneira, o autor

analisou os processos criminais e os processos de obtenção de alforria em que

trabalhadores negros escravizados e libertos estavam envolvidos, revelando os seus

desejos e interferências nos processos judiciais, recuperando as subjetividades

destes sujeitos históricos.

No cenário das disputas judiciárias, os senhores proprietários possuíam as

prerrogativas do Direito Público para exercer o controle sobre o corpo (castigo) e de

conceder ou não a liberdade (alforrias) aos trabalhadores negros escravizados, ou

seja, exerciam o controle de suas mobilidades espaciais, porém não sobre a mente,

os desejos e os sonhos desses que foram subjugados ao cativeiro do corpo.

Todavia, os dois estudos supramencionados apontaram para a possibilidade dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos reinventarem a sua própria

História, sendo capazes de construir novos arranjos de vida. Assim, penso que

nesse processo de reinvenção também se apropriaram das práticas educativas,

como o ler, o escrever e o contar, mesmo inseridos em um contexto caracterizado

por uma relação de forças desiguais.

As posições desses autores são, portanto, pré-requisitos norteadores para a

realização da análise dos discursos das fontes históricas no contexto da escravidão,

mesmo que sejam depoimentos que foram colhidos por terceiros e distorcidos por

força dos valores normativos das fontes institucionais, permitindo que estes sujeitos

históricos sejam reconhecidos.

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Destarte, a metodologia usada por estes autores deixou evidente que os papéis

esses sujeitos históricos podem ser captados nas entrelinhas dos documentos

oficiais, o que, sem dúvida, requer uma leitura detalhada, um desvendar criterioso de

informações omissas ou muito esparsas, esquecidas e silenciadas do contexto ou da

formalidade formal do documento.

De modo algum, como já afirmei, pretendo negar a violência da escravidão, mas

evidenciar que os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos encontraram

caminhos que possibilitaram articular resistências e/ou negociações capazes de

minimizar ou destruir redes da opressão presentes nas relações escravistas. Isto

ocorreu através da conquista de “privilégios” (negociação) ou da conquista da

liberdade do corpo e da mente.

Enfim, meu objetivo, neste trabalho, não foi apenas de desvelar o pensamento da

elite intelectual e dirigente, mas entender a relação escravidão e educação, suas

tensões, contradições e mudanças; bem como vislumbrar as astúcias e as táticas

dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos no contexto da História da

Educação, e, como eles interpretaram suas próprias experiências de vida, tentando

modificá-las a partir da “visão de mundo”, inclusive do próprio cativeiro.

2.1.1 Outros trabalhos sobre escravidão

O trabalho de Lília Moritz Schwarcz (1987), ainda que não seja uma pesquisa

desenvolvida no contexto da relação escravidão e educação, foi relevante para o

desenvolvimento do meu estudo, pois evidenciou o contexto da abolição da

escravidão no Brasil e reconheceu a importância da imprensa dos finais do século

como fonte documental que se constituíram de fórum de debates centrais da época.

Também salientou o papel da imprensa como fonte documental repleta de

possibilidades e fornecedoras de indícios reveladores de uma “linguagem de

silêncio”:

Em primeiro lugar por se constituir em fonte histórica bastante completa e complexa, já que nele convergiam posições e opiniões diversas e representativas e devido ao momento histórico recortado. [...]

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Procurando entender esses relatos não apenas na sua dimensão pragmática, como meras informações onde a linguagem seria a tradução de algum sentido, mas também como “linguagem de silêncio”, onde a linguagem diz por si mesma, ainda que se renuncie a fazê-lo . Portanto, e tendo como suposto que o “ato de descrever não se limita a simplesmente revela [sic] um conhecimento”, a nossa postura diante dos jornais será a de apreendê -los não enquanto “expressão verdadeira” de uma época, ou co mo um veículo imparcial de “transmissão de informações”, mas antes como uma das maneiras como segmentos localizados e relevantes da sociedade produziam, refletiam e representavam p ercepções e valores da época (SCHWARCZ, 1987, p.16 e 17, grifos meus).

Schwarcz (1987) deixou claro que no seu trabalho “o que importa não é tanto discutir

e optar pela qualificação do trabalhador negro escravizado ‘dócil’ ou ‘rebelde’, como

elemento ativo ou passivo no interior do movimento abolicionista, mas antes pensar

a rebeldia, ou melhor, a forma como ‘se fala e representa’ a condição negra e a

rebeldia” (SCHWARCZ, 1987, 22). Dessa maneira, Schwarcz patenteou o conceito

de representação e a construção de um trabalho por meio de uma análise dos

discursos presentes na imprensa, especificamente na imprensa paulista. Além disso,

realizou a análise das representações sobre o “negro” nos jornais, através de uma

visão sincrônica e anacrônica.

Foram pertinentes, ainda, para o desenvolvimento desta pesquisa os estudos de

Maria Aparecida C. R. Papali (2003), “Escravos, libertos e órfãos”, que privilegiaram

como fontes a imprensa e as Ações de Liberdade31. Seus estudos evidenciaram

nos jornais da cidade de Taubaté, veiculados ao período de 1871 a 1895, os

discursos abolicionistas e as preocupações em torno das mudanças no mundo do

trabalho. Percebeu, então, que esses discursos enfatizavam a necessidade de

disciplinar o trabalhador liberto, contribuindo para o amadurecimento das

proposições iniciais da minha pesquisa.

Os estudos de Papali (2003) permitiram uma interlocução bastante confortável e

pertinente, principalmente considerando, que priorizaram na análise o conceito de

liberdade, construído a partir das experiências vividas pelos trabalhadores

escravizados e libertos no final da escravidão. Além disso, a autora desenvolveu

um estudo sobre a Lei do Ventre Livre (1871), que evidenciando que o advento

31 Caminho que não percorri, devido a motivos burocráticos que impediram o acesso ao Arquivo do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.

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desta lei proporcionou um consenso em torno de uma emancipação lenta, gradual e

indenizada foi apoiada pelos os juristas e dirigentes da época. Preocupou-se

também em investigar sobre a busca da liberdade por meio jurídicos, “amarrando

alguns fios soltos do emaranhado percurso rumo à liberdade” (PAPALI, 2003, p.

203).

Da mesma forma, também não poderia deixar de mencionar a contribuição dos

estudos de Kátia M. de Queirós Mattoso (1990) que apresentaram informações

pertinentes relacionadas com o tema da alforria e dos libertos; bem como realizou

um “mergulho” no mundo dos trabalhadores negros escravizados, evidenciando a

sua “mentalidade”, caracterizando o “ser escravo no Brasil”, e principalmente a

concepção que estes sujeitos históricos haviam tecido sobre o significado da

liberdade.

Cabe aqui, mencionar os estudos de Adriana Pereira Campos (2003), que contribuiu

de forma relevante para a construção da minha argumentação em relação às

medidas coercitivas e de controle social da elite intelectual e dirigente sobre as

camadas populares. Além, disso a autora apresentou uma observação pertinente em

relação à disponibilidade das fontes históricas referentes à população carcerária da

província do Espírito Santo (1857-1888):

As fontes disponíveis, mais uma vez, dificultam trabalhar-se com a condição civil dos presos por não ter havido, na época, uma sistemática de anotação da cor ou da raça dos indivíduos detidos pela Polícia. [...] É significativa a ausência da cor nesses registros, o que, no entanto, não deve ser interpretado como uma despreocupação das autoridades policiais a esse respeito. A sociedade capixaba, conforme as estatísticas da época, possuía algo em torno de sessenta por cento de sua população formada por afro-descendentes, ou pessoas “de cor”. Como explica o Padre Antunes, em suas Memórias do Passado, a distinção entre brancos, pretos e pardos insinuou-se por todos os eventos sociais, civis e até religiosos da Capital capixaba (CAMPOS, 2003, p. 169).

Diante dessas observações, é necessário atentar para “ausência da cor nesses

registros” também na documentação referente às instituições educacionais,

principalmente considerando a possibilidade de existir algo nesta situação que não

havia sido revelado ou, até mesmo, percebido. Dessa forma, foi necessário observar

alguns “detalhes” e procurar outras pistas, que, a princípio, passaram despercebidas

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e foram consideradas irrelevantes, ou seja, me impulsionaram, mais uma vez, a

repassar pelo percurso até então realizado. Em relação a esta questão não poderia

deixar de tecer interlocução com Hebe Maria Mattos (1998), pois ao seu ver:

É raro na documentação analisada uma referência tão explícita ao sentido ofensivo e pejorativo que a qualificação de ‘negro’ possuía, então, no mundo dos livres. Isso se evidencia, entretanto, indiretamente, nos demais processos, onde a referência à cor, na qualificação das testemunhas, é generalizada. O uso das expressões ‘negro’ e ‘preto’ fazia-se então diretamente referido à condição escrava atual ou passada (forro). Nem uma vez encontrei na documentação analisada a expressão ‘negro/preto livre’, os homens nascidos livres eram ‘brancos’ (sem qualquer qualificação) ou ‘pardos’ (normalmente, duplamente qualificados como ‘pardo livre’ em oposição ao ‘pardo forro’). Durante a segunda metade do século XIX, entretanto, alteram-se profundamente as condições sociais que permitiam o exercício deste padrão cultural. O crescimento demográfico de negros e mestiços livres, que respondiam em 1872 por 43% da população total do Império, em grande parte tributário do recrudescimento da prática de compra de alforrias, já não permitia perceber os não-brancos livres como exceções controladas (MATTOS, 1998, p. 94, grifos meus).

Tal situação se fez presente no desenvolvimento do meu trabalho. Mattos (1998)

afirma, ainda, que:

[...] este processo socioeconômico corresponde, também, uma mudança de significação da auto-representação do homem livre. Autonomia e trabalho assalariado eventual começam balizar as diferenças entre escravidão e liberdade , mais que trabalho e (potência do) não-trabalho. Em todo este processo, o fato cultural mais significativo é, entretanto, o desaparecimento da cor branca como critério cotidiano de diferenciação social. Até meados do século, toda e qualquer pessoa, arrolada como testemunha nos processos cíveis ou criminais [...], definia-se entre outras coisas por sua ‘cor’. A cor negra aparecia virtualmente como sinônimo de escravo ou liberto (preto forro), bem como os pardos apareciam geralmente duplamente qualificados como pardos cativos, forros ou livres. Apenas quando qualificava forros e escravos, o termo ‘pardo’ reduzia-se ao sentido de mulato ou mestiço que, freqüentemente, lhe é atribuído. Para os homens livres, ele tomava uma acepção muito mais geral de ‘não-branco’. Ser classificado como ‘branco’ era, portanto, por si só, indicador da condição de liberdade. O sumiço do registro da cor consiste num dos processos mais intrigantes e irritantes, ocorridos no século XIX, do ponto de vista do pesquisador. Todos que tentaram trabalhar com a história do negro, após o fim do cativeiro, já se decepcionaram com a quase impossibilidade de alcançá-lo, seja trabalhando como processos-crimes e até mesmo registros civis (MATTOS, 1998, p. 96 e 97, grifos meus).

As argumentações, das autoras supramencionadas, em relação ao “sumiço do

registro da cor” evidenciam possíveis explicações sobre a ausência nas fontes

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documentais da presença dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos

nas escolas no contexto da escravidão, nas últimas décadas do século XIX.

Além disso, este “sumiço” pode significar a negação da identidade e das

experiências culturais que confere diferenças aos grupos humanos, isto é, do

conjunto de elementos adquiridos pelo indivíduo através da herança cultural,

principalmente, daqueles que sempre foram silenciados. Penso que toda identidade

exige reconhecimento, caso contrário poderá ser vista de modo limitado ou

depreciativo, sua subjetividade histórica negada e os estereótipos e estigmas de

inferioridade e/ou superioridade raciais impostos, de modo a que distorcerem ou

omitirem os fatos históricos. Da mesma forma, poderia conjecturar que esse “sumiço

da cor” ou essa negação da identidade seria o prelúdio de uma política de

branqueamento, nas últimas décadas do século XIX, que contribuiu para evidenciar

a omissão da diferença e do contraste do outro.

Não poderia deixar de relacionar esses estudos, que fazem parte, juntamente com

outros que aqui não foram citados, de uma galeria considerável de trabalhos que

contribuíram para uma virada historiográfica e também apresentaram aspectos

inovadores em relação à história da escravidão no Brasil. Porém, reitero que o

campo é profícuo e muito ainda há para se investigar.

2.2 ALGUNS TRABALHOS QUE REALIZARAM A INTERFACE ESCRAVIDÃO E

EDUCAÇÃO

É necessário assinalar que, recentemente, ampliou-se a produção de estudos no

contexto da interface escravidão e educação. Menciono alguns que privilegiaram as

questões pertinentes aos meus objetivos e priorizaram a utilização de diferentes

tipologias de fontes de pesquisa, além disso, fizeram parte de um extenso arquivo

que usei para estabelecer as analogias necessárias para esta proposta de

investigação.

Antes de iniciar o percurso por esses estudos, é necessário esclarecer e situar o

conceito de educação apropriado neste trabalho. Posso afirmar que estou ciente

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que educação não se aplica apenas ao que se refere à escolarização e

sistematização de conhecimentos, mas possui um sentido mais amplo: “[...]

experiências muito variadas que foram realizadas em associações, grupos

religiosos, famílias, grupos rurais etc, que se caracterizaram como contextos

educativos informais ou que mantiveram escolas não conhecidas oficialmente”

(DEMARTINI, 2000, p. 70).

Assim, o conceito de educação se aplica a todas as possibilidades e

desdobramentos na sociedade do ensino e da apropriação do saber, ou seja, a

educação poderia acontecer também em todas as relações de trabalho e nas

práticas socioculturais vividas pelos sujeitos desta pesquisa:

Uma história da educação do povo brasileiro deve ser atenta a diversidade de estratégias que tem sido desenvolvidas (e as instituições envolvidas) para atingir a alfabetização almejada e negada (para não falar dos demais níveis do ensino). Esta perspectiva implicaria ampliar o estudo histórico da educação tomando como referência não apenas as experiências e propostas escolares. Implicaria trazer para o debate histórico instituições que tradicionalmente estão vinculadas aos processos de socialização dos indivíduos e cujo conhecimento, pelo que se tem verificado na sociologia, são fundamentais à compreensão do próprio sistema escolar (DEMARTINI, 2000, p. 70).

No caso específico desta proposta de pesquisa, a educação dos e para os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos deve ser entendida, aqui, não

só como práticas socioculturais que aconteciam nas instituições oficiais, como

também para além delas: nas ruas, nas senzalas, enfim, em todas as formas de

sociabilidades desses sujeitos.

Entretanto, ao considerar as instituições oficiais, não se poderia deixar de afirmar

que muitos destes lugares-espaços foram usados no sentido exclusivo dos

interesses das elites intelectuais e dirigentes, ou seja, as suas práticas teriam a

finalidade de alterar o comportamento de outrem em uma dada direção, ou seja,

objetivava a “modelação social” das camadas populares, principalmente,

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos.

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Confirmando estas proposições, Marcus Vinícius Fonseca (2002a), ao se referir

especificamente à educação dos trabalhadores negros escravizados, no período das

legislações abolicionistas, especificamente a Lei do Ventre Livre (1871), afirmou que

[...] foi valorizada como um instrumento capaz de construir o perfil ideal para os negros em uma sociedade livre, garantindo que estes continuariam nos postos de trabalho mais baixos do processo produtivo e que não subverteram a hierarquia racial construída ao longo da escravidão, pois essa hierarquia era fundamental para um País que, apesar da diversidade racial da sua população, objetivava manter vivas suas origens européias e retratando a si mesmo como uma nação cujo destino era edificar um futuro que deveria se assemelhar às nações do chamado Velho Continente (FONSECA, M.V., 2002a, p.59).

A sistematização dessas práticas educativas acontecia, sobretudo, em instituições

públicas, e escolas particulares. Não poderia deixar de considerar, então, a

possibilidade dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, sujeitos

históricos do seu fazer e pensar, reinventarem seus “espaços-lugares” de

apropriação do ler, do escrever e do contar, mesmo em um contexto caracterizado

pela tensão e violência da escravidão, como, por exemplo, as ruas, as oficinas, as

vendas, os mercados, as praças, as Irmandades e outros lugares tanto públicos

como também privados.

Desse modo, é possível afirmar que os trabalhadores, tanto escravizados como os

livres e os recém libertos, passavam o dia nas ruas vendendo, trocando,

conversando, fazendo contas, passando recibos e trocos, tinham vozes, cheiros,

gestos, enfim, interagiam no universo do cativeiro como sujeitos históricos do seu

fazer/pensar e eram capazes de fazer suas próprias leituras de mundo.

Apresentando questões pertinentes para a articulação escravidão e educação,

Marcus Vinícius Fonseca (2002a e 2002b) evidenciou a idéia de que “não era

comum falar de educação quando se trata de escravos” (FONSECA, M. V., 2002 b,

p. 125), principalmente, porque esta relação se caracterizava pela tensão.

Tentando romper com este preceito, o autor realizou “uma análise das concepções e

práticas educacionais em relação aos negros que foram apresentadas como

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essenciais para o encaminhamento da abolição do trabalho escravo no Brasil”

(FONSECA, M. V., 2002 a, p. 9), deixando claro que o seu objetivo era:

[...] elucidar o sentido da questão educacional no contexto do processo de abolição do trabalho escravo e sua importância para a proposta de integração dos negros a sociedade como seres livres. Essa mudança de perspectiva na educação dos negros guarda um sentido singular, pois, ainda em 1835, foi legalmente determinado que os escravos não poderiam freqüentar escolas e que estas seriam franqueadas somente por homens livres [ou seja, os negros livres poderiam]. No entanto, apenas alguns anos mais adiante, ou seja, a partir dos anos finais da década de 1860, a escolarização – o algo muito próximo disso – passou a ser apresentada como uma dimensão fundamental para a vida dos escravos e libertos. (FONSECA, M. V. 2002a, p. 11).

Seguindo esta trajetória, Marcus Vinicius Fonseca (2002a e b) em seus estudos

avaliou e esclareceu os múltiplos significados do acesso da população de

trabalhadores negros livres nas escolas no contexto da abolição do trabalho

escravizado no Brasil. Traçou um caminho sustentado pela localização da educação

como instrumento de integração dos trabalhadores negros escravizados,

especificamente, crianças, na sociedade organizada com base no trabalho livre.

O recorte temporal estabelecido pelo autor foi de 1867 a 1889, período que

corresponde, segundo o autor, “as especificidades do desmantelamento da

sociedade escravista” (FONSECA, M. V., 2002a, p. 13). Na formação do corpus do

seu trabalho, priorizou os documentos oficiais, possibilitando acompanhar, “dentro

desta documentação, as iniciativas dos escravos e a maneira como essa questão foi

vinculada á educação” (FONSECA, M. V., 2002a, p. 13). Também não poderia

deixar de mencionar que os estudos de Marcus Vinicius Fonseca (2002a e 2002b)

foram norteadores do meu trabalho de investigação, apresentando questões

pertinentes, uma proposta de recorte cronológico e uma metodologia coerente com o

corpus documental da minha pesquisa.

De forma alguma, poderia deixar de destacar o trabalho de Maria Cristina Cortez

Wissenbach (2002), que teve como ponto de partida a apresentação de cartas

escritas pelos trabalhadores escravizados, na segunda metade do século XIX. A

autora articulou a relação escravidão e educação a partir da investigação sobre

“escravos alfabetizados e a averiguação das condições históricas que propiciaram

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tal aprendizado, a socialização das práticas de escrita [...], o sentido mágico das

palavras de escritas e sua aproximação à oralidade predominante na sociedade da

época” (WISSENBACH, 2002, p. 103).

A análise da autora revelou as dificuldades, decorrentes da escassez de

documentos sobre esta temática, mas evidenciou a necessidade de lançar mão de

testemunhos que foram produzidos no esteio do controle social, da disciplina e da

repressão montadas pelos setores dominantes contra os setores marginalizados.

Demonstrando, assim, a possibilidade de se ler nas entrelinhas da documentação

oficial, apontando para o vislumbramento das experiências dos excluídos das

relações sociais, políticas e econômicas.

A autora evidenciou “o sentido da simbologia quase mágicos que a habilidade de

escrever, ou ainda a simples posse de ‘papel e de caneta de pena’", assumiu entre

os escravos e libertos no processo de afirmação dessa identidade social”

(WISSENBACH, p.109). Dessa maneira, os estudos de Maria Cristina Cortez

Wissenbach (2002) permitiram perceber que os trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos se apropriaram e/ou reapropriaram das práticas culturais como

constituição de um processo de afirmação da “identidade social” e como um dos

possíveis instrumentos de resistência no cotidiano.

Saliento, também, no contexto da interface escravidão e educação, os estudos de

Eliane Peres (2002) que investigou os cursos noturnos oferecidos pela Biblioteca

Pública Pelotense (BPP). Conseqüentemente, dando ênfase a possibilidade de

conhecer “mais e melhor” os alunos que freqüentaram as aulas noturnas, procurou

ampliar a compreensão de quem efetivamente procurou e se instruiu nos cursos

noturnos entre 1877 (quando iniciaram as atividades) e 1915. Incluiu, aí, a

investigação sobre o pertencimento étnico racial dos alunos, de modo verificar a

presença ou não dos trabalhadores negros nas aulas desses cursos.

Desenvolvendo, então, um estudo no contexto da interface escravidão e educação.

Assim, os estudos de Peres (2002) contribuíram para revelar a presença da

comunidade negra em experiências de escolarização contribuindo para desmistificar

a idéia corrente e generalizada de que os trabalhadores negros escravizados não

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sabiam ler e escrever, não estudavam ou não freqüentavam escolas no século XIX.

Evidenciou que a presença desses sujeitos históricos no curso noturno da Biblioteca

Pelotense estava relacionada às iniciativas dos intelectuais atrelados ao movimento

abolicionista e republicano.

As argumentações de Peres (2002) também contribuíram para demonstrar a

possibilidade de superação do silêncio das fontes, quando a mesma optou, então,

por

[...] cruzar os dados disponíveis dos alunos com os de participantes em associações particulares, especialmente as carnavalescas, dramáticas, abolicionistas, entidades de classes e, também, a imprensa produzida por negros. Essas instituições eram bastante comuns e importantes em Pelotas, no final do século XIX e início do século XX, congregavam grande número d e trabalhadores, e algumas eram compostas especificamente de negros, como o caso do Clube Carnavalesco Nagô. [...] Se a participação nas aulas dos cursos noturnos teve influência ou não sobre as idéias e as atividades desses homens, é difícil afirmar, nem foi esta a [...] pretensão com o estudo. (PERES, 2002, p. 78 e 79).

Peres (2002) salientou “que o domínio do código escrito foi uma das condições

básicas para a atuação, o engajamento e a luta de alguns alunos em entidades e

movimentos populares” (PERES, 2002, p. 79). A autora informou, ainda, que por

meio dos jornais locais do período foram coletados dados sobre diversas

associações, suas diretorias e associados. Conseguindo, assim, os nomes dos

alunos e mais de 400 nomes de diversas associações, ligas e clubes e, cruzava os

dados, selecionava e “perseguia” os nomes conferindo-os com os nomes da relação

de alunos e das associações. Porém, não se limitou ao entrecruzamento desses

dados, mas teve a possibilidade de perceber “os espaços sociais em que circulavam,

viviam e lutavam as classes populares pelotenses e os espaços nos quais essa

participação lhe era restrita, senão vedada (especialmente os negros)” (PERES,

2002, p. 79).

Sua investigação alcançou a evidência das “delimitações de classe social e os

limites impostos pelo pertencimento étnico-racial na sociedade pelotense” (PERES,

2002, p. 80), deixando bem claro assim, que o seu objetivo não era fazer

generalizações, mas confirmar a presença dos negros nos cursos noturnos da

Biblioteca Pública Pelotense (BPP). Tal objetivo foi pertinente para a minha análise

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sobre a criação das escolas noturnas na Província do Espírito Santo, a partir de

1872.

Já os estudos de Luiz Alberto Gonçalves (2000) evidenciaram que “o fato de

existirem iniciativas com vistas à inclusão dos escravos e dos negros livres em

cursos de instrução primária e profissional não nos autoriza inferir que essa tenha

sido uma experiência universal, porque, segundo autor: “não foi” (GONÇALVES,

2000, p. 327). Salientou, ainda, que, “embora tenham existido iniciativas dessa

natureza, os registros sobre a participação efetiva dos negros são incipientes e que

através deles é muito difícil ou quase impossível saber quem, de fato, era negro”

(GONÇALVES, 2000, p. 327).

Entretanto, os estudos relacionados aqui, como interlocutores da relação escravidão

e educação, são relevantes, não pelo fato de negarem a universalidade da presença

dos trabalhadores negros nas instituições escolares, mas exatamente porque

apontaram para esta possibilidade, mesmo que tenham caráter “incipiente” e

excepcional.

Sobre isto, considero importante mencionar os estudos de Luiz Alberto Oliveira

Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2000), que evidenciaram as

medidas legislativas relacionadas à educação das crianças negras e livres, nas

últimas décadas do século XIX, e, ressaltaram que na verdade essas medidas não

impediram que elas fossem excluídas dos processos de escolarização e

continuassem relegadas ao abandono (GONÇALVES e SILVA, 2000).

De forma alguma poderia deixar de fazer referência a Adriana Maria Paulo da Silva

(2000 e 2002), que desenvolveu os seus estudos dando ênfase ao processo de

escolarização formal oferecido à parcela da população afro-descendente (tanto de

caráter governamental como também particular) na Corte Imperial, durante a

primeira metade do século XIX.

No decorrer do processo investigativo, a autora encontrou um ofício do então

inspetor-geral da Instrução Primária e Secundária da Corte, Eusébio de Queirós,

enviado ao Ministro do Império, Couto Ferraz, pelo qual requeria o deferimento de

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algumas isenções para o funcionamento de uma “escola destinada para meninos de

cor, sob a direção de um certo Pretextato dos Passos Silva”, em 1856.

A partir de então, Adriana Paulo da Silva viu-se diante de uma mudança de rumo e

percebeu a necessidade de “perseguir” o tal professor Pretextato. Ao longo dessa

“perseguição”, a autora encontrou um documento em que o professor Pretextato dos

Passos Silva requeria de forma oficial a autorização para o funcionamento da

“escola destinada para meninos de cor”, em 1853. De forma surpreendente, este

professor se autodesignou “preto”. Além disso, verificou ainda que a escola havia

surgido “a pedidos” por meio de abaixo-assinados dos próprios pais de seus alunos,

que alegaram a necessidade da escola.

O requerimento do professor Pretextato forneceu pistas sobre a criação desta escola

e apresentou “uma crítica contundente ao racismo das escolas da Corte, nas quais

os meninos “pretos e pardos”, ou eram impedidos de freqüentar ou, em

freqüentando, não recebiam ‘uma ampla instrução’ porque eram pessoal e

emocionalmente coagidos” (SILVA, A.M.P., 2002, p. 151). Salientou, ainda, que

Eusébio de Queirós, além de deferir esse requerimento, omitiu as especificidades do

quesito cor, tanto em relação ao próprio professor, quanto aos seus alunos.

Somente no dossiê do professor Pretextato foi possível à autora encontrar a

especificação da cor deste professor e dos seus alunos.

Os principais objetivos dos estudos de Adriana Paulo Silva (2000 e 2002) foram

procurar situar a história pessoal de Pretextato à realidade educacional da Corte e

evidenciar que muitos outros trabalhadores negros também possuíam concepção

própria de sua situação sociohistórica, apropriaram-se, assim, de táticas para burlar

as regras da sociedade escravista.

Dando continuidade ao panorama das produções voltadas para a interface

escravidão e educação, não poderia deixar de mencionar os estudos de Cynthia

Greive Veiga (2005), que evidenciaram a possibilidade de detectar que houve uma

certa homogeneização no tratamento tanto de brancos pobres como de negros e

mestiços da população livre. Caracterizando-os como grupo de “desfavorecidos”,

Veiga (2005) pontuou que nessa perspectiva a produção de dados estatísticos sobre

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a população apta a freqüentar a escola não se fez pela cor das crianças, mas pelas

condições jurídicas e sociais.

Os estudos mencionados enfatizaram uma abordagem no contexto da interface

entre escravidão e educação, inclusive considerando os conflitos dessa relação,

tentando recuperar as táticas cotidianas dos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos na luta pela liberdade do corpo e da mente, suas experiências e

práticas culturais. Além disso, evidenciaram uma mudança de paradigmas na

História da Escravidão e da Educação. Mostraram também que muito ainda há por

se investigar, principalmente, no sentido de contribuir para o resgate dos papéis

propriamente históricos dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos e

das suas formas de sociabilidade no contexto das tensões e das mediações da

interface escravidão e educação.

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SEGUNDA PARTE

OS DETALHES

[...] percorreu febrilmente um “terreno inculto, coberto de neve”, pontilhão de pistas de criminosos, comparando-o à “imensa página branca onde as pessoas que procuramos deixaram escrito não só seus movimentos e seus passos mas as agitavam” (GINZBURG, 2003 a, p. 170).

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CAPÍTULO 1

UMA BUSCA PELOS DETALHES

Neste capítulo me proponho a discorrer sobre alguns detalhes relacionados ao

cotidiano vivenciado pelos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos,

procurando evidenciar suas “maneiras de fazer”, suas “mil práticas”32 de organização

sociopolítica e suas “técnicas” de produção sociocultural, ou seja, distinguir as

operações e ações microbianas do funcionamento de uma multiciplicidade de táticas

articuladas por esses sujeitos no cotidiano das práticas políticas, sociais e culturais.

Assim sendo, considero relevante afirmar que esses detalhes apresentaram-se tanto

explícitos como implícitos no conjunto documental investigado, e são alusivos das

práticas socioculturais que transgrediram a normalização de uma sociedade local

elitista, patriarcal e escravista. Dessa maneira, foram importantes para a

compreensão do papel exercido pelos trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos no contexto da articulação entre escravidão e educação no contexto da

Província do Espírito Santo.

1.1 TRABALHADORES NEGROS ESCRAVIZADOS, LIVRES E LIB ERTOS NOS

DETALHES DO UNIVERSO URBANO ESPÍRITO-SANTENSE

A busca pelos “detalhes” foi realizada por meio da análise dos anúncios e dos

editoriais presentes na imprensa espírito-santense; e permitiu desvelar do

pensamento da elite intelectual e dirigente sobre o cotidiano sociocultural, político,

econômico e educacional da Província do Espírito Santo (no contexto histórico da

escravidão do século XIX). Também possibilitou verificar que os trabalhadores

32 Expressões usadas por Michel De Certeau (2004).

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negros escravizados, livres e libertos foram transgressores33 da ordem hegemônica

na relação escravidão e educação.

Procurei identificar os modos de proceder que compuseram “a rede de uma

antidisciplina” (CERTEAU, 2004, p.41 e 42), considerando, principalmente, que

esses sujeitos históricos cotidianamente se viam na urgência de enfrentar e resistir

com a sua força e a sua fraqueza (inércias) procurando encontrar formas de escapar

ao poder, e, sem deixá-lo, fazendo uso das astúcias das táticas das práticas

ordinárias.

Além disso, essa busca pelos detalhes contribuiu para a reconstituição do processo

de transformações ocorridas nas últimas décadas desse período, que foi

caracterizado: pelo processo de modernização e urbanização (comunicação através

de vias terrestres e marítimas, pela construção de telégrafos, pela disponibilidade

de hotéis e pelo crescimento do comércio de tecidos, luvas, sapatos, lustres,

bebidas, mobiliários, remédios, chocolates, chás, charutos e outros produtos), etc.

Em contrapartida a esse processo modernizador estavam as epidemias e vacinas

(febres amarela, varíola e outras), a escravidão (fugas de escravos rurais e urbanos,

fundos de emancipação de escravos, leis abolicionistas), situações adversas que

caracterizaram as últimas décadas do século XIX.

Para acompanhar esse panorama de mudanças rápidas, não poderia deixar de

mencionar o surgimento, ainda que incipiente das influências culturais (livros, textos

e obras de pensadores europeus e norte-americanos, festas religiosas, teatros,

concertos musicais, colunas literárias e outros) e as medidas legislativas

educacionais (criação de escolas, processo de inserção da educação feminina,

reformas educacionais caracterizadas pela obrigatoriedade e liberdade de ensino,

acesso de ingênuos e libertos a escolas, etc).

Enfim, a busca pelos “detalhes” possibilitou o vislumbre de um processo de transição

caracterizado pela diversidade e ambigüidade com aspirações “civilizatórias”, ou

seja, de uma provável “modelação” social.

33 No sentido de terem a concepção própria do seu cativeiro e serem capazes reinventarem novas possibilidades de resistência na luta pela liberdade do corpo e da mente.

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1.2 O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DA PROVÍNCIA DO ESPÍR ITO SANTO

Faço um convite ao leitor para que me acompanhe em uma exposição de aspectos

importantes do cotidiano espírito-santense, especialmente aqueles referentes às

mudanças socioculturais, políticas e econômicas nas últimas décadas do século XIX,

especificamente, entre 1869 a 1889. Sem dúvida, esse percurso não só permitirá o

leitor adentrar o contexto socioeconômico e cultural da Província do Espírito Santo

nas últimas décadas do século XIX, mas também possibilitará vislumbrar alguns

detalhes do cotidiano sociocultural vivenciado pelos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos.

Figura 1 - “Perspectiva da Villa de Victoria (Capital do Esp írito Santo) por Joaquim Pantaleão Perª da Sª Ano de 1805” 34 Fonte: REIS, Nestor Goulart, 2001 (Coleções Especiais – UFES). Foi muito difícil determinar onde terminavam as práticas de manutenção da ordem e

onde iniciavam as projeções de modernização e transformação social, pois elas se

34 A perspectiva não corresponde ao referencial cronológico desta pesquisa, mas possibilita vislumbrar os aspectos da organização do cenário urbano da Vila de Vitória nas últimas décadas do século XIX.

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apresentavam entrelaçadas e enredadas, ainda que em níveis diferentes, no

contexto social elitista, escravista e patriarcal.

A realidade sociocultural espírito-santense apresentou-se envolta de uma

complexidade que apontou para as incertezas e incompletudes, não sendo possível

o delineamento dessa sociedade multifacetada, porém isto não impediu que

algumas semelhanças fossem evidenciadas. Dessa maneira, fiz a opção por iniciar

pela descrição das semelhanças entre o processo de urbanização ocorrido na

Província do Espírito Santo, durante o século XIX, e as demais cidades brasileiras,

que se desenvolveu a partir das suas funções burocráticas, comerciais e portuárias,

em um processo de interrelação com a lavoura de café, e que não estava associado

aos aspectos de modernização a partir da indústria.

Figura 2 - Prospecto da Vila da Victória. Arquivo Militar, 3ª Secção 6 de junho de 1881 Fonte: OLIVEIRA, José T., 1975 (Coleções Especiais – UFES).

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Adentrando esse universo urbano da Província do Espírito Santo, especificamente

da Vila de Vitória, sob o olhar do viajante europeu Auguste Saint-Hilaire (1975), que

esteve nesta Província no início do século XIX, foi possível rastrear, registrar,

interpretar e classificar indícios infinitésimos e semelhantes sobre alguns aspectos

da organização do cenário urbano tanto da região da Vila da Victória35 :

As ruas de Vitória são calçadas, porém mal; têm pouca largura, não apresentando qualquer regularidade. Aqui, entretanto, não se vêem casas abandonadas ou semi-abandonadas, como a maioria das cidades de Minas Gerais. Dedicados à agricultura, ou a um comércio regularmente estabelecido, os habitantes da Vila de Vitória não estão sujeitos aos mesmos reveses dos cavadores de ouro e não têm motivos para abandonar sua terra natal. Cuidam bem de preparar e embelezar suas casas. Considerável número delas têm um ou dois andares. Algumas têm janelas com vidraças e lindas varandas trabalhadas na Europa. A Vila de Vitória não tem cais; ora as casas se estendem até a baía, ora se vê, na praia, terrenos sem construção, que tem sido reservado ao embarque de mercadorias. A cidade também é privada de outro tipo de ornato: não possui, por assim dizer, qualquer praça pública, pois a existente diante do palácio é muito pequena, e com muita condescendência é que se chama de praça a encruzilhada enlameada que se prolonga da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a praia. Há, na Vila da Vitória, algumas fontes públicas, que também não concorrem para embelezar a cidade, mas, pelo menos, fornecem aos habitantes água de excelente qualidade (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 45).

Os estudos de Maria Stela de Novaes (1964), “História do Espírito Santo”, também

permitiram vislumbrar os aspectos socioculturais da Província, evidenciando a

presença tanto de uma camada social rica, intelectualizada e dirigente; como

também a presença de camadas populares, as pessoas comuns e mais pobres,

enfim, o “povo” (DAVIS, 1990). Foi interessante observar que essa configuração

social se manteve também nas últimas décadas do século XIX.

Neste período, a Província do Espírito Santo se beneficiou de inovações e de

iniciativas de reformas urbanas, como por exemplo, o serviço telefônico e o

telégrafo, que foram bastante divulgados pelos jornais locais; bem como a instalação

de fábricas de tecidos e calçados. Além disso, o comércio passou a ocupar quase

todo o centro da Vila da Victória e dos demais centros populacionais da Província,

como na região de São Mateus e de Cachoeiro de Itapemirim. É importante

35 Fiz a opção por fazer a transcrição dos textos das fontes documentais para a ortografia atual, limitando apenas a exclusão ou inclusão de letras e sinais ortográficos, considerando que fazê-lo não alterou a interpretação dos mesmos.

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salientar que também aconteceram algumas mudanças no sentido de tentar

amenizar os problemas sociais por meio de reformas da cadeia pública e construção

de albergues para os desamparados e desvalidos.

No decorrer do tempo, a paisagem urbana foi se modificando com novos

estabelecimentos, agremiações literárias, bibliotecas, escolas, hotéis, teatros,

construção de fontes, calçamento das principais ruas e iluminação a gás, em

conseqüência disso, o crescimento populacional e espacial e o incentivo à vinda de

imigrantes europeus intensificaram-se, criando-se, então, a necessidade de novos

locais de moradia, predispondo de meios para a fomentação de novas colônias. Os

antigos espaços de ocupação habitacional já não correspondiam à demanda

populacional da cidade. Surgiram, então, projetos oficiais de ocupação como

também os núcleos espontâneos de ocupação populacional da Província,

principalmente nas proximidades da Vila da Victória.

A documentação analisada permitiu o registro não só desses fatores entrelaçados

que evidenciaram as transformações no cenário espírito-santense, bem como

vislumbraram a presença dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos

neste cenário configurado por aspectos socioculturais tanto urbanos e como rurais.

Maria Stela de Novaes (1964) afirmou que “a escravidão dos negros no Brasil é

contemporânea da sua colonização” (NOVAES, 1964, p. 23), quando “existiam,

então, no Espírito Santo, duzentos escravos africanos, dos ‘menos de oito mil’, que

se achavam no Brasil, e que passaram a cerca de trinta mil, pouco antes do domínio

holandês” (NOVAES, 1964, p. 44).

A autora acrescentou, ainda, que, em 1621, iniciou-se a entrada de trabalhadores

negros africanos no Espírito Santo.

Entretanto, desde de 29 de março de 1549, mediante um Alvará, S. M., Dom João III facultava aos senhores de engenho o resgate e a introdução de escravos de Guiné e da Ilha de São Vicente, até o máximo de cento e vinte. O Pe. Serafim Leite escreve – entre 1531 e 1538. [...] o primeiro carregamento de africanos, para a Cidade do Salvador chegara, em 1538, trazido por Jorge Lopes Bixórchia. (NOVAES, 1964, p. 59).

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A integração desses trabalhadores negros escravizados no cenário espírito-santense

não deve ser vista somente do ponto exclusivamente de sua participação no

processo produtivo, mas, principalmente, por um estudo das suas formas

socioculturais de organização que se manifestaram no contexto do cativeiro. Assim,

a questão que se impôs foi: Em qual universo os trabalhadores negros escravizados

que viviam na Província do Espírito Santo estavam incorporados? Dessa forma, se

fez necessário reconstruir as tensões sociais do cotidiano destes sujeitos históricos e

apontar para as possíveis reorganizações de sobrevivência desses excluídos,

principalmente na organização urbana incipiente da Província.

Desse modo, fiz alguns “recortes” dos anúncios na imprensa local:

1) As relações estabelecidas com outras províncias em função do café (ANEXO A):

COMPANHIA ESPÍRITO SANTO & CAMPOS

Esta companhia transporta café e mantimentos, do porto de Itapemerim para o Rio de Janeiro, nos vapores de sua propriedade, pelo frente de 800 réis por saco.

O AGENTE A. F. Marques de Abreu.

(O Cachoeirano, 14 de agosto de 1881, ano IV, n. 33 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

2) Da mesma forma outro “recorte” fornecem pistas sobre a interrelação entre o

urbano e o rural, pois as fazendas ficavam próximas da Vila da Victória (ANEXO B):

VENDE-SE Uma fazenda pouco distante desta vila, com 30 escravos, terras próprias, boa casa de moradia, engenho, boas águas, bons cafezais e utensílios, sendo metade pago à vista e a outra metade a prazo, com o juro de 10% ao ano; quem pretender pede se dirigir aos Srs. Carvalho, Gama & Machado, para obter informações (O Cachoeirano, 14 de agosto de 1881, ano IV, n.33 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

O cenário espírito-santense no século XIX caracterizou-se por um conjunto de

atividades econômicas e socioculturais que se manifestaram em um cotidiano

marcado pela pobreza, pelos limites entre o sagrado e o profano, entre o rito

religioso e a festa popular (manifestações culturais urbanas e rurais); bem como por

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uma interrelação, pelo entrelaçamento e pela oposição entre o rural e o urbano, ou

melhor, entre o “atrasado” e o “moderno”.

Entretanto, as transformações que ocorreram na Província neste período estavam

relacionadas ao surgimento de uma série de acontecimentos conseqüentes de uma

busca da modernização e eram característicos de um ambiente urbano.

3) Apontamentos estatísticos (ANEXO C) realizado pelo tabelião Silva Quintaes

sobre o alistamento eleitoral de 404 eleitores do município de Cachoeiro de

Itapemirim:

PROFISSÕES EM CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM PROFISSÃO Fazendeiros e lavradores ... 342 Negociantes ........................ 23 Empregados públicos ......... 15 Artistas ................................ 7 Paróquios ............................ 2 Advogados .......................... 2 Médicos .............................. 2 Solicitadores ....................... 2 Agentes ............................... 2 Magistrado ........................ 1 Engenheiro ........................ 1 Agrimensor ......................... 1 Farmacêutico ...................... 1 Proprietário ......................... 1 Professor público ................ 1 Guarda-livros ...................... 1 ____ 404 [....] IDADES

De 21 a 29 anos ............. 74 “ 30 a 39 ....................... 135 “ 40 a 49 ....................... 108 “ 50 a 59 ....................... 54 “ 60 a 69 ....................... 26 “ 70 a 79 ....................... 7 ____ 404 ESTADO Casados ......................... 349 Viúvos ............................. 42 Solteiros .......................... 13 _____ 404

(O Cachoeirano, 21 de agosto de 1881, ano IV, n. 34 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

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As informações apresentadas por este documento não só lançou luz tênue sobre as

atividades profissionais que eram exercidas neste espaço urbano, bem como

permitiu vislumbrar, mais do que nunca, as relações articuladas neste espaço e seu

impacto em uma sociedade caracterizada pela interrelação entre o urbano e o rural.

De modo geral, essas evidências contribuíram para elucidar as modificações

econômicas, políticas e socioculturais que provocaram uma grande transformação

no perfil da Província espírito-santense, nas últimas décadas do século XIX,

principalmente, na dinâmica da vida cultural: teatros, jornais, lojas, criação de

escolas e incipiente atividade literária, bem como o aventamento das idéias dos

intelectuais envolvidos nas campanhas abolicionistas e republicanas.

Não posso deixar de mencionar que as evidências empíricas citadas são aqui

apenas pontuações necessárias para o entremostrar das relações presentes no

contexto espacial da Província do Espírito Santo, porém não pretendo realizar o

desdobramento de suas idéias.

Convém salientar que, por outro lado, a imprensa local também propagou de forma

intensa as obras de caridade, demonstrando, assim, que além de uma acentuada

estratificação social havia também os vários problemas característicos da crescente

complexidade do processo de urbanização e modernização: os relacionados à falta

de moradia, a insalubridade, as epidemias, a pobreza, a escassez de escolas, a

situação dos desvalidos e desamparados e outros problemas de caráter

socioeconômico.

Segundo Serafim Derenzi (1965), no entanto, “dois fatores concorreram para que os

passos do Espírito Santo fossem curtos no vencer a distância entre as necessidades

fundamentais do povo e a grandeza econômica da Província: Educação e Saúde”

(DERENZI, 1965, p. 144), ou seja, o autor destacou, assim, a falta de escolas e de

médicos.

Além das epidemias, como febre amarela, peste bubônica, paludismo, disenteria e

varíola, o autor salientou, ainda, que o povo sofria sem recursos materiais,

caracterizando pela presença da miséria. Derenzi (1965) observou, ainda, que nos

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meados do século XIX, especificamente no governo do Presidente da Província

Felipe José Pereira Leal, a cidade de Vitória apresentava os seguintes aspectos:

[...] suja, sem esgotos e as fezes eram guardadas em tonéis de madeira a espera do despejo, à noite. Quintais cobertos de imundícias, moscas, mosquitos, ratos, lixo por todas as ruas, matagal em todos os terrenos baldios. A fama da cidade suja deslustrou, por muitos anos, o nome da Capital e do Estado. A pobreza havia crescido assustadoramente (DERENZI, 1965, p.147).

A investigação realizada por meio da imprensa espírito-santense e dos Relatórios

dos Presidentes de Província, das últimas décadas do século XIX, permitiu avançar

algumas décadas e perceber um panorama em transformação, porém ainda muito

parecido como o que foi apresentado pelo olhar de Saint-Hilaire (1974), de Maria

Stela de Novaes (1964) e de Serafim Derenzi (1965).

Os estudos de Maria Stella de Novaes (1963)36 contribuíram para a reconstrução do

cotidiano espírito-santense nas últimas décadas do século XIX e evidenciaram que:

“havia ainda outras formas de exploração lucrativa dos negros; - Prêtos [sic] e

prêtas [sic] de ganho, Trabalhavam [sic], como artífices, pequenos negócios,

vendeiras, amas de leite, teceladeiras, etc. Eram alugados, pelos senhores, que

recebiam os proveitos” (NOVAES, 1963, p. 40). A autora ainda salientou a presença

de constante de anúncios com intenção de alugar esses serviços típicos dos

escravos de ganho37 (tal fato foi possível de ser observado também por meio dos

anúncios publicados na imprensa espírito-santense).

Foi interessante observar que esses anúncios também evidenciaram as variações

de mobilidade espacial (ir e vir) possíveis aos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos e as suas formas de sociabilidade bastante ampla, revelando toda

uma organização de formas de solidariedade manifestada nas formas de

resistências tanto contestadoras como silenciosas (astúcias e táticas).

36 Prêmio Literário e Científico da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo. 37 ALGRANTI (1988) e SOARES, L. C. (1988) definem escravos de ganho como aqueles que eram enviados pelos seus senhores à rua, para prestar serviços obrigatórios e no final do dia entregavam-lhe determinada quantia. Enquanto os escravos de aluguel, ficavam sob responsabilidade dos locatários e o dinheiro era entregue diretamente ao senhor sem a intermediação do escravo.

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Diante das considerações sobre o universo econômico e sociocultural espírito-

santense, nas últimas décadas do século XIX, posso afirmar que os trabalhadores

negros faziam parte deste cenário de aspectos híbridos, ocupando o espaço urbano,

com maior ou menor intensidade, submetidos às medidas de controle do Governo

Provincial. Assim, desencadeavam suas experiências de vida e de cultura, sendo

escravizados, livres, libertos, pobres, desamparados, desvalidos, vendedores

ambulantes, moleques de recado, criados, de aluguel ou de ganho. Além disso,

eram trabalhadores, devotos ou profanos, tinham cheiro, voz, rosto e sonhos. Enfim,

foram, principalmente, resistentes, que traçavam seu dia-a-dia sob uma tensão

característica de uma sociedade elitista, escravista e patriarcal, e também faziam

parte do universo caracterizado pelas dificuldades enfrentadas em relação à

“Educação e Saúde” (DERENZI, 1965).

Em vista disso, penso que seja possível articular com a proposição de que isso

poderia acontecer inclusive nos espaços culturais da elite intelectual, o que permite

considerar a possibilidade de uma “brecha intelectual”. Dessa maneira, os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos poderiam apropriar-se de um

arsenal intelectual e cultural como o ler, o escrever, o contar, e provavelmente

superar os aspectos elementares, tornando-se um letrado. Diante disso, foram

sujeitos históricos capazes de criarem formas culturais de adaptação autônoma e

eram capazes de reinventarem novas experiências de vida.

Conforme apontaram os estudos de Eugene Genovese (1988), Kátia M. De Queirós

Mattoso (1990), Sidney Chalhoub (2003), Eduardo França Paiva (2000 e 2003) e

outros já citados, os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos não podem

ser vistos como sujeitos passivos diante de diversas medidas legislativas impostas

pela elite intelectual e dirigente. Assim, poderiam até mesmo tomar decisões em

relação à educação que deveria receber ou não receber, pois os estudos sobre o

cotidiano dos trabalhadores escravizados já desvendaram a presença de uma

experiência cumulativa de improvisação e resistência ao poder por parte destes

sujeitos históricos, capazes de estabelecer diversas táticas e astúcias para subverter

as regras do cativeiro.

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1.3 REPRESENTAÇÕES SOB A ORDEM DA SUBMISSÃO AO C ONTROLE

SOCIAL – “FORAM CASO DE POLÍCIA!”

A investigação realizada a partir da imprensa local permitiu conhecer algumas

peculiaridades sobre o pensamento da elite intelectual e dirigente em relação ao

modelo de “civilização” e “modernização” que pretendiam implantar na Província do

Espírito Santo. Semelhante ao que acontecia nas demais províncias do Império,

esse modelo apresentava alguns aspectos vinculados aos padrões europeus e

norte-americanos. A presença desse modelo de modernização incentivou a

reestruturação das redes de comunicação (telégrafo, correios, abertura de estradas),

a construção de fontes, praças, o aumento do número de escolas, entre outras

medidas.

Por outro lado, em contraposição a esse modelo, a maior parte da população vivia

principalmente no limiar da pobreza e afligida pelas epidemias aluídoras. Tal fato

evidencia que nem sempre o que era representado pelos registros e discursos da

elite intelectual e dirigente estava de fato de acordo com a realidade enfrentada

pelas camadas populares. Muito pelo contrário, havia uma preocupação por parte

da elite intelectual e dirigente, com a implantação de políticas higienistas e de

medidas coercitivas para manutenção da ordem moral, que ganharam ainda mais

força com as grandes epidemias que atingiram a Província e o País (febre amarela,

cólera, varíola e outras), e conseqüentemente surgiram inúmeras campanhas de

aplicação de vacinas e saneamentos públicos.

Assim, conforme pontuou Lilia Schwarcz (2000), essas epidemias chamaram

atenção para a presença de uma “missão higiênica” defendida pelas duas

faculdades nacionais:

[...] enquanto o Rio de Janeiro atentará para a doença, já na Bahia tratava-se de olhar o doente. [...] Se a escola do Rio de Janeiro lidou, sobretudo, com as epidemias que grassavam no país, já na Bahia, a atenção centrou-se, em primeiro lugar, nos casos de criminologia e, a partir dos anos 1890, nos estudos de alienação. [...] Sob a liderança de Nina Rodrigues, a faculdade baiana passou a seguir de perto os ensinamentos da escola de criminologia italiana, que destacava os estigmas próprios dos criminosos: era preciso reservar o olhar mais para o sujeito do que para o crime. Para esses, cientistas, não foi difícil

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vincular os traços lombrosianos ao perfil dos mestiços – tão (mal) tratados pelas teorias da época – e aí encontrar um modelo para explicar a nossa “degeneração racial [sic]. Os exemplos de embriaguez, alienação, epilepsia, violência ou amoralidade passavam a comprovar os modelos darwinistas sociais em sua condenação do cruzamento, em seu alerta à “imperfeição da hereditariedade mista” (SHWARCZ, 2000, p. 27).

No que diz respeito a essas questões sanitaristas, os anúncios de jornais

confirmaram a situação de dramática e também evidenciaram que:

[...] o passo para a eugenia e para o combate à miscigenação racial foi quase que imediato. Afinal, as doenças teriam vindo da África, assim como o nosso enfraquecimento biológico seria resultado da mistura racial. É assim que, a partir do século XX, uma série de artigos especializados passam a vincular a questão da higiene à pobreza e à população mestiça e negra, defendendo métodos eugênicos de contenção e separação da população (SHWARCZ, 2000, p. 29).

Da mesma forma, revelaram que subjacente a esta situação existia, na verdade,

uma preocupação com a mudança de costumes e hábitos da população no sentido

de não desestruturar as ordens públicas, sociais e econômicas. Além disso,

estabeleceram “correlações entre a imigração e a entrada de moléstias estranhas a

nosso habitat. Isso tudo em meio a um contexto em que os negros, agora ex-

escravos, transformavam-se mais e mais em estrangeiros: nos africanos residentes

no Brasil” (SHWARCZ, 2000, p. 29).

Hoje, as questões higienistas e sanitaristas são vistas como necessárias e com

naturalidade, mas na época referente ao recorte deste estudo, últimas décadas do

século XIX, não eram assim consideradas nem mesmo entre os eruditos,

principalmente devido ao clima de incertezas diante da novidade.

Dessa maneira, os procedimentos médicos e a educação foram fortemente pautados

pela eugenia, provocando ações coercitivas por parte da elite intelectual e dirigente

e a indignação das camadas populares, sobretudo dos desvalidos e desamparados

que compartilhavam esse cotidiano submetido a uma ordem de medidas coercitivas

e punitivas aplicadas pelo poder público. Tais medidas foram marcadas pelo

confronto sustentando explicitamente pelas diferenças sociais e implicitamente pelas

diferenças raciais. Enfim, “foram caso de polícia!”

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1. 4 REPRESENTAÇÕES ENTRE “RECORTES” E “DETALHES”

Dando continuidade a este percurso investigativo, a pergunta que orientou a busca

de indícios foi: quem eram esses trabalhadores negros escravizados que ocuparam

o cenário sociocultural espírito-santense? Conforme Vilma Almada (1984), o

trabalhador negro escravizado era “apenas a objetivação de um capital que se

destinava à escravidão como propriedade do senhor” (ALMADA, 1984, p. 103).

A mesma autora ainda acrescentou que

[...] a sociedade escravista via no escravo apenas a objetivação de um capital que se destinava à escravidão como propriedade de um senhor. O mesmo ocorria com a população do Espírito Santo, para a qual o escravo também não passava de um objeto, de uma coisa que se podia legalmente comprar, vender, alugar, avaliar, emprestar, doar, dividir, penhorar, hipotecar, arrendar, devolver...[sic] Como qualquer objeto, anúncio de vendas em jornais enfatizam a qualidade da mercadoria ao anunciar que “vende-se um bom escravo, crioulo, moço, sadio, lavrador e serrador, na situação do abaixo assinado ...” [sic] Da mesma forma, a propriedade permanente do escravo – como principal fundamento das relações de produção escravistas – era bem esclarecida nas escrituras públicas de compra e venda que explicitavam transferir ao comprador “todas as posses, domínio e senhorio” sobre o mesmo (ALMADA, 1994, p.103).

Dessa maneira, por diversas vezes “folheei” os jornais locais da Província espírito-

santense e deparei-me com alguns “recortes”, especificamente anúncios que

reiteraram esse conjunto de idéias colocadas por Almada (1984).

Encontrei, principalmente, as representações que evidenciaram a falsa idéia de que

o cativeiro seria, por excelência, um espaço social “conformador”, de uma vivência

marcada pelo desregramento social, e apontavam para uma suposta incapacidade

genética e sociocultural dos trabalhadores negros escravizados.

Além disso, alguns desses “recortes” permitiram o desenvolvimento do olhar

detetive, próximo e detalhista que permitiram “reconstruir a fisionomia, parcialmente

obscurecida” (GINZBURG, 2003b, p.12) dos trabalhadores negros escravizados,

bem como suas práticas culturais e o contexto social no qual eles transitavam.

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Assim, deram nomes, rostos e mostraram a subjetividade desses sujeitos históricos,

sua autonomia diante das fugas, o sonho pela liberdade tão almejada e a

diversidade de atos socioculturais praticados, a exemplo disso, posso salientar o

anúncio sobre a fuga do trabalhador negro escravizado Affonso, que curiosamente

“costuma [costumava] intitular-se livre” (ANEXO D):

Fugiu no dia 2 do corrente mês de Janeiro, do Capitão Bento José da Roelin, o escravo Affonso, crioulo, 21 anos de idade mais ou menos, estatura regular, um pouco magro, cara descaruada, com bastante cabelo na cabeça e principiando a ter barba no queixo, olhos muito vivos, dentes perfeitos, pé pequeno, costuma intitular-se livre ; gratifica-se bem a quem o prender e levar a seu senhor, na fazenda – União -, ou entregar nesta vila ao Sr. João Marques de Carvalho Braga ou ao Sr. Custodio Maia (O Cachoeirano, 6 de janeiro de 1881, n. 2, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

É interessante ressaltar que o anúncio com os detalhes referentes a Affonso, que

havia “fugido”, dividia a página com outro anúncio com os detalhes e uma imagem

de um animal, “uma besta vermelha”, que havia “desaparecido”, reiterando, assim,

a representação da coisificação deste trabalhador negro escravizado (ANEXO E):

Desapareceu a 21 do próximo passado mês de Dezembro, dos pastos do Sr. Manoel da Cunha e Silva, nesta vila, uma besta vermelha , grossa, puxando camarão, de altura regular, tem as orelhas um pouco cabidas e nas cruzes falta cabelos de uma pisadura já antiga. Quem dela der notícia, ou levar a Manoel Augusto Lins, à rua Vinte e Cinco de Março, será gratificado(O Cachoeirano, 6 de janeiro de 1881, n. 2, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Assim, muitos dos “Affonsos” eram vistos e descritos como meros animais e

apareciam nas mesmas páginas em que se anunciavam a fuga, a compra, a venda,

o aluguel e o roubo dos animais.

O “intitular-se livre” pode ser identificado nas entrelinhas como indício que permite

perceber o sentido de liberdade na concepção dos próprios trabalhadores negros

escravizados, bem como demonstra as suas astúcias e táticas para conquistá-la por

meio de suas experiências e lutas cotidianas.

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Continuei a “folhear” alguns dos impressos locais e fiz alguns “recortes”, encontrei

também outros anúncios que reiteraram “coisificação” dos trabalhadores negros

escravizados (ANEXO F):

Fugiu da fazenda Aquidaban o escravo Gregório, de cor preta, de 28 anos de idade, tendo os sinais seguintes: pés e pernas um tanto tortos, pouca barba, bons dentes e um cravo bobatico na mão direta, fala bem ; quem o aprender ou der notícias exatas ao Sr. Samuel Levy ou na fazenda, será gratificado. Cachoeiro de Itapem., 30 de Março de 1877 (O Cachoeirano, 1º de abril de 1877, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Tal atitude foi enfatizada pela descrição dos traços físicos que reiteravam os

discursos de inferioridade dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos

representado como coisa e propriedade de um senhor, ou apenas como uma

simples mercadoria registrada em um livro de escritura de vendas.

Desse modo, “a cor da pele incentiva a produção de um tipo de discurso maleável

sobre o indivíduo, através do qual ele é reconhecido, identificado e silenciado”,

legitimando o olhar discriminatório lançado sobre ele (FONSECA, M. N.S., 2000, p.

92). Assim, os detalhes físicos e os traços da miscigenação reforçaram estereótipos

e inscreveram atributos indicadores de uma corporeidade que “horrorizava”.

Para Maria Nazareth Soares Fonseca (2000) muitos desses traços continuam a

legitimar preconceitos existentes na sociedade brasileira: a cor da pele, as feições

do rosto, o tipo de cabelos e uma gama infindável de elementos que qualificam ou

desmerecem o indivíduo. Essa legitimação tem sua origem num processo

configurado pela mercantilização da escravidão que transformou o africano em

coisa, objeto de escambo ou de troca monetária. A autora salientou que “é preciso

destacar que são os mesmos traços que fortalecem argumentos sobre a pretensa

inferioridade dos africanos” (FONSECA, M. N. S., 2000, p. 92).

2) Além dos detalhes e das evidências dos traços físicos dos trabalhadores negros

escravizados, também foi possível vislumbrar pistas que apontaram para mobilidade

espacial (ir e vir):

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ESCRAVO FUGIDO R$2000U000

A quem pegar o pardo Galdino, com 26 a 30 anos de idade, pouco mais ou menos que fugiu no dia 28 de outubro de 1869: cor acaboclada, cabelo corrido e na ocasião em que fugiu não tinha barba, só tinha um pequeno bigode, bons dentes, pés pequenos, e sem defeito no corpo, foi comprado ao Sr. Aprígio Coutinho Ferreira Rangel, morador na Villa de Itapemerim, província do Espírito-Santo; sabe-se com toda a certeza que o dito escravo Galdino vaga pelas proximidades da cidade de Victória , quem o aprender e levar ao Sr. Dr. Chefe de polícia da cidade da Victória, para ser remetido à cadeia à ordem do mesmo Sr. até minha reclamação, ou o entregar no posto de Itacuary ao Sr. Joaquim de Novaes Campos, receberá a quantia acima, e protestara com todo o rigor da lei contra quem lhe der couto. Outro sim declaro que ficarão sem valor todos os documentos que tenho assinado para tratar de qualquer negócio relativamente à captura de meu escravo Galdino, até a data d’este, e para prevenir qualquer abuso que por ventura se possa dar, assim o faço público. Cidade de Campos , 15 de agosto de 1870. - Bernardino Nogueira dos Santos Vianna (Correio da Victória, sábado – 15 de outubro de 1870, n. 80, p. 4, grifos meus - Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

Essa mobilidade espacial também foi perceptível por meio da coluna Movimento do

Porto, do imprenso Correio da Victória, que normalmente especificava a presença do

senhor e seu trabalhador escravizado ou apenas do trabalhador escravizado quando

não estava acompanhado do seu senhor (neste caso deveria ser cobrada uma taxa

referente a guarda desta “mercadoria”).

3) As formas de interdição disfarçadas por ações de cunho paternalista e filantrópico:

Cena da escravidão – escrevem ao Jornal do Recife Poucas horas antes de sair para os portos do sal o vapor América, algumas pessoas que estavam no cais da Praça do Comércio tiveram de presenciar uma cena contristadora. Ia embarcar para o Rio de Janeiro o escravo de nome Arseno, e não queriam consentir que um filho seu, ingênuo e de cinco para seis anos de idade , o acompanhasse. Fez isto com que misero escravo, abraçado com a criança, implorasse compaixão, banhado em lágrimas , para que o não separassem do filho, que, sem mãe viva, iria aqui f icar desamparado . Felizmente não foram baldadas as súplicas que fez. Imediatamente o Sr. Joaquim Teixeira Peixoto e outras pessoas, testemunhas d’aquela tocante cena, tratarão de promover uma subscrição; e foi pouco depois paga a passagem do menor que seguiu viagem com o pai, indo este ébrio de contentamento . Relevo notar que o Comandante do vapor abriu mão, em benefício da criança, do dinheiro que lhe tocava, e que entre outras quantias, entrou com dez mil réis o Sr. Gustavo Leziazano Furtado de Medones. Fatos como este honram a quem os pratica (O Espírito-santense, 13 de jan. 1877, n.6, p. 3, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

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Os anúncios apresentam um caráter documental, pois permitiram o vislumbre das

informações que circulavam na época, como também possibilitaram perceber as

questões que permearam o pensamento da elite intelectual e dirigente, os aspectos

da vida sociocultural deste período. Porém, mais do que isso, estes anúncios

permitiram compartilhar das lágrimas, dor, alegrias, sonhos e o “ébrio

contentamento” desses que sempre foram visto como coisas e mercadorias, e,

principalmente, sempre tiveram suas vidas, seus sentimentos e vozes ignorados.

4) Bem como separações e reencontros (ANEXO G):

Fugiu no dia 18 do corrente, a José Francisco Pinto Ribeiro, as sua escrava de nome Izidora, de 40 anos de idade, estatura baixa, cor fula, olhos vesgos, pés pequenos. Desconfia-se que esteja nas imediações da fazenda – Jucuruaba – onde tem filhos . Quem por tanto d’ela tiver notícia, e participar, ou aprendê-la será gratificado. E com todo o rigor da lei, protesta-se contra quem a acoitar.

Vitória 24 de janeiro de 1871. José Francisco Pinto Ribeiro.

(Correio da Victória sexta-feira, 5 de maio de 1871, n. 35, grifos meus – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

Muitos desses “recortes” permitiram vislumbrar nas entrelinhas a presença de

grupos de parentescos. Além disso, possibilitou perceber a importância das fugas

como uma das alternativas de se obter a liberdade, principalmente quando as

“negociações” com os senhores resultavam em tentativas frustradas de reencontrar

de pessoas da mesma família.

5) As possibilidades de articularem no cativeiro a constituição de famílias:

[...] O octogenário João José de Farias e sua mulher Bernardina Maria do Amor Divino, moradores no lugar Patú, desta freguesia, alforriarão os escravos Jacintho, João Antonio, Maria, e seus filhos , Maria Paulo, Rufina, Irineu, seus filhos – José Procópio, Anna, Umbelina, Francisco João, Maria Angélica, e Rachel; Patrícia e seus filhos Maria, Francisco e Maria; Romana e seus filhos Manoel, Isabel, Tiburcio e Isidoro. Ao todo 35 escravos. Este ato de filantropia recomenda muito os bons sentimentos de quem o praticou [...] (Correio da Victoria, sábado, 7 de setembro de 1870, n..69, p.2, Noticiário, grifos meus, não fotografado – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES)

6) Suas formas de sociabilidade ....

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FESTA DE N. S. DOS REMÉDIOS Nos dias 3 e 4 de junho próximo futuro festeja-se a S. S. Virgem dos Remédios em sua capela Santa Luzia. Na véspera prega o Rvdm. padre Antônio Martins de Castro, e no dia da festa ao Evangelho, o Rvdm. Padre Joaquim de Santa Maria Magdalena Duarte, e a tarde procissão d’ Aquela S. S. Virgem. Espera-se a concorrência de todos os irmãos e devotos, afim de que os atos da nossa Religião sejam feitos com a precisa decência. Secretaria da irmandade na cidade de Victória 26 de maio de 1871.

O secretario V. P. Ribeiro

(Correio da Victoria, data, ano e número ilegível, não fotografado – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

No livro de registro das biografias resumidas dos confrades da Irmandade Nossa

Senhora dos Remédios a partir de 1845 (Capela de Santa Luzia, na Vila de Victória),

foram evidenciadas as formas de sociabilidades possíveis também aos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, como por exemplo, a

participação como membros desta Irmandade:

- Assman Angélica Mª do Santos, mulher de Lourenço Xavier, escravo do Cap. Ignácio Pereira veio paga do livro, digo, veio paga anuais do livro anterior [ilegível] até 1842. [...] - A Sra. Albertina, escrava de Antº Jº Ferreira de Araújo veio paga de anuais do livro anterior [ilegível] até 1858 pago até 1861.[...] - Aragnage escravo Luiz Susano, entrou em 31 de Maio de 63. Pg. a entrada. Pg. até 62 até [...] mordomia em 64. Pg 5000.[...] (Livro de registro de Biografias resumidas dos confrades da Irmandade Nossa Senhora dos Remédios – Capela Santa Luzia, 1845, grifos meus, não fotografado – Arquivo da Curia Diocesana de Vitória –ES).

Muitos anúncios como esses permitiram vislumbrar experiências de vida que

sustentaram ou, ao contrário, subverteram as normas e regras de um tempo de

relações aparentemente rígidas e coercitivas impostas pela camada dominante.

Permitiram também ler nas entrelinhas do pensamento da elite dirigente e

intelectual, possibilitando a identificação das táticas de resistência e sobrevivência

dos trabalhadores negros escravizados, mostrando que esses atos de rebeldia

limitada e calculada não representavam subserviência à dominação e à exploração,

muito pelo contrário, salientaram as formas de resistências plurais.

Além disso, revelaram algumas experiências de vida de muitos dos “Afonsos,

Luíses, Gregórios, Izidoras, Joãos”, entre outros; bem como suas táticas e astúcias

de resistência no cotidiano: por meio de fugas, ou passando-se por livres ou

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libertos pelas ruas, mudando até mesmo de dono quando achasse conveniente,

arrumando alguém que o escondesse por algum tempo. Enfim, contravenções como

essas que foram cometidas no cotidiano, visavam, muitas vezes, contornar, e não

confrontar as imensas restrições impostas pelo regime escravista.

A busca pelos “detalhes” permitiu uma aproximação com o cotidiano da Província do

Espírito Santo. Isso foi importante, considerando que não pode estar dissociado de

todo o contexto da sociedade escravista.

Conforme visto anteriormente, o percurso realizado por meio desses “recortes”

permitiram ler nas entrelinhas do pensamento da elite intelectual e dirigente que os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos da Província do Espírito Santo,

assim, como muitos outros espalhados por todo o Império, souberam utilizar as

contradições impostas pelo jugo da escravidão, abrindo novos arranjos de vida,

alterando até mesmo (re)configurando suas vivências socioculturais.

Proporcionou, também, reconhecer as práticas culturais autônomas por parte desses

trabalhadores; bem como evidenciou Sidney Chalhoub (2003), como esses sujeitos

pensavam e organizavam seu mundo mesmo sob a violência, as condições

adversas do cativeiro e o descontentamento com as condutas ditadas pela prática

cotidiana da dominação do senhor escravizador.

Notei que estas experiências foram, na realidade, exercícios de criatividade e

reinvenção diante do caos que se manifestava nas vidas desses sujeitos históricos

submetidos ao controle social, econômico e cultural. Além disso, essas ações que

demonstraram a possibilidade de mobilidades espaciais e até sociais, resistências,

enfrentamentos e acomodações, não podem continuar sendo entendidas ora como

exceção ora como bondade do senhor, mas devem ser percebidas como

possibilidades de conquistas e reinvenção de experiências de vida por parte desses

próprios sujeitos históricos.

Conforme afirmou Sidney Chalhoub (2003), “os negros tinham suas próprias

concepções sobre o que era o cativeiro justo, ou pelo menos tolerável” (CHALHOUB,

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2003, p. 27), e, principalmente tinham uma visão própria do significado da liberdade

do corpo e da mente, mesmo que imperfeita.

1.5 LIBERDADE IMPERFEITA

Para maior compreensão da abordagem desta pesquisa, é pertinente articular com o

conceito de liberdade e salientar o significado desta para os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos, nas últimas décadas do século XIX. Para isto, é

necessário fazer uma distinção entre os conceitos de cidadania e de liberdade.

Nesta direção, fiz a opção por elucidar primeiramente o significado de cidadania.

Segundo Jaime Pinsky (2003) ser cidadão hoje:

[...] é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais. [...] Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço. [...] Nesse sentido pode-se afirmar que, na sua acepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia (PINSKY, 2003, p.9 e 10).

Todavia, no passado, especificamente no contexto do Brasil Imperial (século XIX), o

conceito liberal de cidadania possuía um caráter restrito e estava relacionada com o

pensamento dos filósofos iluministas sobre a constituição do Estado Moderno.

Em relação a isso, Nilda Teves Ferreira (1993), baseando-se nos postulados

lockeanos, explicitou que a questão da cidadania estava relacionada com a questão

da propriedade e apontou para os aspectos de exclusão vinculada à divisão social

do trabalho e ao processo de acumulação da riqueza como base das desigualdades

sócio-econômicas, que, em conseqüência, “ser cidadão” só era possível a uma

minoria. Dessa forma, à cidadania foi atribuído o direito de alguns homens serem

proprietários do trabalho de outro homem. A este último foi negada a condição

humana, afinal, era apenas um trabalhador escravizado, ou melhor, foi destituído da

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liberdade do corpo e da mente, alijados, assim, do direito de ser cidadão, pois eram

negadas liberdades civis elementares a trabalhadores negros escravizados e a

homens livres pobres.

De acordo com Nilda Teves Ferreira (1993), o conceito de cidadania foi sedimentado

pelos seguintes pressupostos: "o direito natural, a liberdade de pensamento e de

religião e a igualdade perante a lei" (FERREIRA, 1993, p. 31). A partir das

contribuições dos pensadores iluministas Hobbes, Locke e Rousseau, a autora

acrescenta “a esses postulados a idéia de que o governo, na figura do Estado, existe

pela necessidade de garantir os direitos à liberdade e à defesa da propriedade”,

inclusive o da propriedade do corpo.

Assim, o conceito de cidadania, no contexto da escravidão, apresentou-se como um

paradoxo a situação de trabalhador escravizado, pois estes eram considerados

instrumentum vocali, ou seja, não eram vistos como seres humanos, eram

instrumentos, não poderiam ser considerados pessoas e, conseqüentemente,

sujeitos de direitos. Dessa forma, não tinham direitos de integridade física, à

liberdade ou a qualquer outro direito civil básico, em contraponto não se pode dizer

que a cidadania era possível à maioria da população brasileira, muito pelo contrário,

uma grande parcela de pobres era alijada dos direitos civis básicos.

O meu argumento é que, no contexto do século XIX, as lutas dos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos limitava-se à obtenção de alguns privilégios

que caracterizaram a luta pela liberdade do corpo e da mente e não pela cidadania.

Assim, foi necessário observar e atentar que para esses trabalhadores: o direito à

liberdade, ou melhor, o direito à propriedade do seu corpo, confrontava com o direito

de propriedade do senhor escravista. Porém, isto não impediu que ocorressem

contravenções por meio de táticas e astúcias no cotidiano caracterizado pela tensão

e opressão da escravidão.

Nem sempre a liberdade era assegurada de forma integral ou definitiva, ou seja,

muitas vezes limitava-se a ser uma liberdade imperfeita. Desse modo, liberdade,

neste estudo, é entendida como a possibilidade de liberdade do corpo e da mente,

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semelhante à complexidade e importância atribuída à luta pela cidadania na

atualidade: é essencial a existência humana. Uma das conseqüências diretas de

tudo isso é que: a luta para conquistar e manter a liberdade era essencial para os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, ainda que fosse de modo

superficial.

Essas considerações aparecem aqui não como desvio da proposta deste estudo,

mas visando a melhor compreensão das possibilidades de reinvenção das

experiências de vidas, especificamente, educacionais dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos evidenciadas nas entrelinhas do pensamento da elite

intelectual e dirigente. Sendo, portanto, necessário entender os vários passos que

poderiam ou não ser possíveis em direção a ela.

A complexidade das relações sociais, bem como as representações dessas

relações, muitas vezes poderiam provocar a tensão entre os interesses privados e

os interesses públicos, como por exemplo:

Pessoas livres reduzidas à escravidão. – Dizia ontem A Folha da Victoria: “Somos informados que existem em Itapóca alguns indivíduos ilegalmente no cativeiro; pois são filhos de uma indígena, que casou-se com um africano, sendo seus filhos batizados como escravos. Consta-nos que quase todos os escravos do srs. Joaquim Pinto de Sant’Ana e Joaquim Rodrigues de Asevedo Braga pertencem a essa descendência e nasceram em Camboapina. Ao dr. chefe de policia, e promotor publico da câmara solicitamos a sua proteção a favor desses infelizes.” Confiamos que as duas hombridosas autoridades invocadas pelo colega saberão cumprir o seu dever, fazendo respeitar a lei. (Província do Espírito-Santo, sexta-feira, 5 de agosto de 1883, Ano II, n. 283 , grifo do autor – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Ações como esta confirmam a existência de uma ambigüidade nos discursos da elite

intelectual e dirigente ao se posicionar diante da escravidão. Situação esta que

abriu possibilidades para “acordos” e “negociações”, bem como para a contravenção

por meio de táticas e astúcias que permeavam o cotidiano do contexto da

escravidão.

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Neste sentido, como já foi mencionado, não significava de fato ser livre, mas sim

tornar possível algumas práticas de liberdade caracterizadas pelo ir e vir, pelo fazer

e não fazer, pelo ser e não ser, ou seja, poderia significar a conquista da mobilidade

física, a possibilidade de constituir família, a integridade física, a liberdade de

devoção e manifestações culturais até então proibidas aos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos.

Mesmo que para isso, esses sujeitos pudessem ser considerados – adaptados ou

resistentes ou ainda acomodados -, de modo que forjassem várias experiências de

vida, ou apenas condições para a sobrevivência, pois como afirmou Joaquim Manuel

de Macedo (2005), não eram considerados “nem perfeitamente livre, nem

absolutamente escravo” (MACEDO, 200538). Para Joaquim Manuel de Macedo

(2005) os trabalhadores negros escravizados eram “as vítimas-algozes”, pois apesar

de serem vítimas da escravidão, foram responsabilizados pelo ócio, pela

embriaguez, pela criminalidade e pela imoralidade da sociedade brasileira.

No Correio da Victoria, de 31 de agosto de 1870, um pouco mais de um ano antes

da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) e sete meses depois da aprovação

da Lei 25 da Província do Espírito Santo, de 4 de dezembro de 1869 (que aprovava

a alforria das trabalhadoras negras escravizadas e dos filhos do seu ventre na

Província), foi publicado, na coluna Jurisprudência, um texto de autoria do Professor

Leônidas Marcondes de Toledo Lessa (São Mateus – Província do Espírito Santo),

que versa sobre as alforrias outorgadas.

De acordo com este texto, eram freqüentes as questões polêmicas, em toda

Província, acerca das liberdades concedidas aos trabalhadores escravizados.

Principalmente, porque era muito comum a concessão da liberdade em metade,

cortados (“meia liberdade”) ou intervivos (obrigação assumida contratualmente) ou

causa mortis (herança manifestada em testamento).

38 “'As Vítimas Algozes: quadros da escravidão,” de Joaquim Manuel de Macedo foi publicado pela primeira vez em 1869, nesta obra o autor, Através das três novelas que compõem o romance “Simião – o crioulo”, “Pai Rayol – o feiticeiro” e “Lucinda – a mucama”, expressa a idéia de que os trabalhadores negros escravizados eram vítimas e, ao mesmo tempo, algozes, no sentido de serem responsáveis pela perversão moral e social. Além disso, defendeu que a escravidão deveria ser gradualmente extinta, sem prejuízo para os grandes proprietários de terra.

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Estes vínculos mantinham os trabalhadores escravizados alforriados ligados ao seu

ex-proprietário pela obrigatoriedade da prestação de serviços por meio da limitação

legal e social. A continuidade de um relacionamento pode ser percebida como a

reprodução do padrão de dominação anterior.

Essa situação impôs a Leônidas Lessa a questão que norteou o seu texto: “Qual o

estado jurídico que assume o escravo em tais circunstâncias?” De acordo com o

autor do texto, “é este o ponto duvidoso, a origem das disputas, e também algumas

vezes da injustiça” (Correio da Victória, quarta-feira, 31 de agosto de 1870, nº 67, p.

3 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

Para explicar melhor esse conjunto de proposição, Lessa fez uso da opinião de um

jurista consagrado na época, o Dr. Trigo de Loureiro, autor da obra Instituição do

Direito Civil Brasileiro (1835, § 11, p. 35 e 2004), que afirmou que liberdade

imperfeita se caracteriza quando, por exemplo, uma trabalhadora escravizada era

libertada em metade do seu valor, o seu senhor deveria nesse caso pagar-lhes os

seus serviços por seis meses em cada ano ou consentir que ela prestasse serviço a

outra pessoa, só tendo direito ao seu trabalho apenas os outros seis meses. Além

disso, afirmou que os filhos dela também deveriam ser considerados “meio livres”

como ela.

Dessa maneira, Leônidas Marcondes de Toledo Lessa afirmou que a alforria em

metade ou meia liberdade ou liberdade imperfeita, tratava-se ou do direito do senhor

sobre o trabalhador escravizado (do domínio de que se faz parte desistência e em

favor dele) ou do preço do trabalhador escravizado (valor que simboliza e equivale a

sua escravidão), do qual se renuncia à metade (Correio da Victória, quarta-feira, 31

de agosto de 1870, nº 67, p. 3 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo –

APEES).

Concluiu, então, que a relação jurídica que estabeleceu a escravidão, em virtude da

qual um homem faz do outro sua propriedade, ou seja, seu trabalhador escravizado,

no sentido genérico é impartível, ou seja, ou era escravizado ou se era livre.

Conseqüentemente, a concessão da liberdade ao trabalhador escravizado sob a

condição de pagamento de prestação da metade do preço seria um ato

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completamente nulo, sem efeito, e, em nada mudaria a sua situação, permaneceria

juridicamente como coisa e não adquiria personalidade jurídica.

Assim, é possível conjecturar que, em boa medida, os libertos permaneceram com

algum tipo de vínculo com seu ex-proprietário. A própria essência da alforria era um

direito que reforçava esses vínculos, principalmente quando estabelecia condições

para a sua concessão.

Lessa não nega que a outorga deste tipo de liberdade em metade poderia permitir

ao trabalhador negro escravizado resultado positivo e imediato, ou seja, poderia

adquirir a metade da liberdade. Porém, conforme a prescrição do Dr. Lourenço Trigo

de Loureiro, citado por Lessa, o direito de propriedade do senhor permaneceria,

portanto, a escravidão igualmente subsistiria, ou seja, constituía-se em uma

liberdade imperfeita.

Lessa argumentou, ainda, que o estudo sobre a “médio escravidão” ou a “meia

liberdade” gerou muitas polêmicas, juízos e sentenças diferentes, se constituindo em

uma situação “ridícula” (“minime pati – ridiculum est”), principalmente porque era

repelida pelo Direito Romano, que decidia em tal hipótese a favor da plena

manumissão do trabalhador escravizado.

Diante disso, afirmou que: “a manumissão produz logo o seu efeito – a liberdade do

escravo o qual passa logo a ser pessoa livre, sujeita apenas a um ônus pelo qual

pode ser acionado e compelido, mas nunca pela liberdade imprescritivelmente

adquirida”, ou seja, “entre a escravidão e a liberdade não há estado médio” (Correio

da Victória, quarta-feira, 31 de agosto de 1870, nº 67, p. 3 – Arquivo Público

Estadual do Espírito Santo – APEES). Dessa maneira, Lessa continua a sua

argumentação afirmando que:

[...] manumissão na hipótese figurada não é uma manumissão condicional, suspensa; é um acato consumado, somente onerado: e se condicional fosse, pendente a condição o escravo não seria liberto imperfeito, porém – status liberi – isto é, escravo com esperança de obter a liberdade (Correio da Victória, quarta-feira, 31 de agosto de 1870, nº 67, p. 3, grifos meus – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

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Estas proposições apontam para “as duas faces da alforria” mencionadas por

Eduardo França Paiva (2000):

Estado e proprietários mais abastados viam as alforrias de maneira diferente dos escravos. Para os primeiros estas representavam um dos canais mais eficazes de controle social. Eram v istas como um mecanismo que, ao tornar-se uma possibilidade real, modelava e pacificava o dia-a-dia da relação senhor-escravo e inibia os conflitos coletivos. Tratava-se, portanto, de um expediente fundamental, concreto e não baseado na exceção, capaz de deter uma população de oprimidos muito superior, numericamente, ao grupo dos opressores. O intento principal era manter a ordem escravista e a hierarquia de privilégios onde o topo permanecesse sendo ocupado por brancos ricos. Para tanto, acompanhava as alforrias uma série de outras estratégias de controle social que envolviam os indivíduos ainda no cativeiro, perseguindo-os durante toda a sua vida de libertos. Incluídos aí encontram-se a repressão da herança cultural africana e a imposição de valores europeus, a cristianização forçada e a integração ao universo dos livres por meio do trabalho manual e de uma possível ascensão econômica; [...] Já para os escravos as alforrias eram, acima de tudo, o meio mais descomplicado de abandonar o cativeiro em definitivo. Eram, também, a concretiza ção de seu mais premente anseio. Pela manumissão tudo valia a pena, até mesmo fazer da vida uma representação. Neste caso, os recursos de resistência adotados diferenciam-se bastante dos quilombos, fugas e rebeliões, e na maioria das vezes não buscavam romper com o sistema. Nem por isso podem ser classificados como alienação . Na verdade o alvo a ser alcançado, pelo menos de imediato, não era a supressão do escravismo ou a transformação do Estado, mas o abandono da condição de submetido. Nesta perspectiva tornar-se ou fazer-se passar por passivo, amável e fiel resulto u em muitas cartas de alforrias justificadas nos “bons serviços prestados”, na “lealdade e sujeição”, expressões recorrentes nos t estamentos e empregadas mesmo quando tratava-se de manumissões pagas.[...] Porém, uma série de medidas legislativas e de costumes aguardavam pelos ex-escravos em suam nova condição social. Padrões rígidos de participação política e comunitária estabeleciam os limites da “liberdade” dos forros e reforçavam a inalcançável “superioridade natural” dos brancos. Jamais conseguiriam ser livre s e mesmo depois de várias gerações e da miscigenação carrega riam o estigma da cor de pele. [...] A condição de liberto , enfim, era freqüentemente igualada à de escravo (PAIVA, E. F., 2000, p.100 -102, grifos meus).

Parece-me que esta é uma situação que merece atenção, pois a liberdade imperfeita

mesmo que não rompesse com o sistema, poderia significar o abandono da

condição de submetido, ou seja, poderia abrir brechas para a conquista de fato da

liberdade do corpo e da mente, pois “pela manumissão tudo valia a pena, até

mesmo fazer da vida uma representação”.

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Abrindo um parêntese para melhor entender o que isto significa, me parece

fundamental atentar ao conceito de “escravo”.

Considerando os postulados de Hebe Mattos (1998), “ser escravo” significava:

[...] uma espécie de morte social, um rompimento violento de todas as relações definidoras de inserção e personalidade social do indivíduo capturado ou reduzido à escravidão, que ressurge como escravo em outra sociedade, sem qualquer direito, identidade ou prerrogativa, a não ser as que lhe fossem atribuídas pela vontade do senhor (MATTOS,1998., p. 144).

Penso que não existe um confronto entre o conceito de escravo e o conceito de

trabalhador escravizado, apresentado por Mário Maestri (2005), que considera que

“o objetivo essencial da relação social escravista era a apropriação da força de

trabalho para extração de uma renda escravista, forma historicamente determinada

de produção de sobre trabalho. Portanto, o “escravo” era um “trabalhador

escravizado” (MAESTRI, 2005). Mário Maestri (2005)39 esclarece o uso do conceito

trabalhador escravizado a partir de duas justificativas:

Primeira, do ponto de vista sociológico: a definição do "escravo" como "trabalhador escravizado" restitui plenamente a unidade profunda entre as diversas formas de trabalho, no caso, no Brasil - trabalhador escravizado, trabalhador livre -, enfatizando claramente a forma histórica singular em que se deu a exploração do trabalhador, na escravidão. Segunda, do ponto de vista lingüístico: a palavra "escravo" incorpora a visão aristotélica de escravidão como expressão da natureza de homem diminuído. Assim sendo, a categoria elide o fato de que o "escravo" era apenas um "trabalhador" escravizado por um "escravizador". Ou seja, ela naturaliza a escravidão, elidindo o fato de que ela é, essencialmente, um uma relação social nascido da oposição de classe (informação via e-mail).

Reiterando as proposições supramencionadas, considero, então, que o negro não

era naturalmente um escravo, mas sim, um trabalhador escravizado.

Retornando a argumentação sobre a “liberdade imperfeita”, penso que poderia

também apontar para o enfrentamento dos caminhos plurais impostos a muitos

trabalhadores negros escravizados ou semi-escravizados, livres ou semilivres e

39 Texto enviado por e-mail em 20/10/2005, às 11:09:19 horas.

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libertos ou semilibertos, diante das formas possíveis de uma invenção ou reinvenção

social de sua liberdade do corpo e da mente por meio da própria concepção do

cativeiro.

Conforme evidenciou Papali (2003):

O cotidiano pode estar repleto de manifestações que evidenciam luta constante; e a obstinação do escravo em conquistar sua liberdade (por vias legais ou não) pode ter sido a maior evidência do quanto os escravizados estavam conscientes do lugar que ocupavam na sociedade escravista, e a consciência desse lugar já trazia implícita uma tensão permanente, que paternalismo algum seria capaz de encobrir (PAPALI, 2003, p. 14).

Desse modo, o texto de Leônidas Marcondes de Toledo Lessa sobre a liberdade

imperfeita, além de trazer uma reflexão sobre as limitações da liberdade concedida

aos trabalhadores negros escravizados, apontou também para as possibilidades de

inversão do cativeiro, ou seja, de invenção e reinvenção da liberdade, mesmo que

estabelecida de forma imperfeita e incompleta.

Segundo afirmou Hebe Mattos (1998), as possibilidades da alforria e do pecúlio do

cativo, como “direitos” concedidos aos trabalhadores negros, combinavam a

autonomia do trabalhador negro escravizado e autoridade senhorial. Assim, se

completava o círculo de uma política de domínio que buscava legitimar a escravidão

entre os próprios trabalhadores escravizados e não a existência de uma cidadania,

pois este conceito só é possível de ser aplicado “entre iguais” e não em uma

sociedade hierárquica.

Dessa forma, pode-se conjecturar que as lutas dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos não se limitavam às organizações coletivas para

conquista da liberdade do corpo e da mente, mas aconteciam cotidianamente no

sentido de conseguirem “privilégios”, como por exemplo, maior mobilidade física-

espacial, constituição de família, entre outros, mediante experiências, táticas e

astúcias.

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Tendo em vista esta ordem de preposições e posições, neste trabalho o conceito de

liberdade é considerando de forma mais ampla e não determinista, pois a luta pela

liberdade do corpo e da mente passa pela concepção que esses sujeitos históricos

tinham de si mesmo e do seu cativeiro. Isso é possível compreender a partir da

explicação de Kátia M. de Queiros Mattoso (1990):

Muitos poucos escravos realizaram seu sonho de libe rdade. Representam um percentual ínfimo e, no entanto, têm um peso importante no conjunto da sociedade. Um papel que depende de locais e circunstâncias [...] Além disso, já vimos que nem sempre o escravo é declarado livre imediatamente e que sua emancipação pode ser por condições; estas, também extremamente variadas, retardam, e muito, o pleno gozo da liberdade. Estar “à espera da liberdade” suscita atitudes que não são as mesmas do “ser escravo”, ta mpouco as do “ser alforriado” . Liberdade: miragem ou realidade? [...] A escravidão mantém algumas restrições mesmo após o cativeiro. O escravo alforriado não é um ser inteiramente livre . [...] A Constituição brasileira, outorgada pelo poder real em 1824, é que estipula, [...] a situação jurídica do escravo alforriado. Em seu artigo 6º, parágrafo 1, declara que o liberto, nascido no país, é cidadão b rasileiro “por nascimento” . Mas os escravos nascidos na África se tornam cidadãos brasileiros após todo um processo de naturalização, como qualquer estrangeiro que abdicasse de sua nacionalidade. [...] Na realidade, os direitos desses novos cidadãos, os alforriados brasileiros “natos” ou naturalizados, são bem limitados no plano jurídico. Está visto que o forro é reinvestido do direito à família, à proprie dade, à herança . Mas uma série de restrições privam-no do pleno gozo dos seus direitos políticos. No Brasil, o sistema eleitoral censitário dura quase tanto quanto o sistema escravista [...] (MATTOSO, 1990, p. 199-201, grifos meus).

Torna-se necessário ressaltar aqui, mais uma vez, que a luta pela liberdade do

corpo e da mente era para os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos,

como algo intrínseco à luta pela sobrevivência, ou seja, era constitutiva da própria

situação de opressão em que esses sujeitos se encontravam.

Neste sentido, a liberdade poderia ser resultado tanto de uma concessão dos

senhores ou uma conquista dos trabalhadores negros escravizados, bem como

poder resultado de uma “negociação” entre ambas partes interessadas.

Para melhor elucidar esse conjunto de proposições, retorno à interlocução com

Mattos (1998), quando ela discorreu sobre o significado que as elites intelectual e

dirigente atribuíam a liberdade, especificamente, para os recém libertos:

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Em maior ou menor grau, portanto, os significados que os ex-senhores emprestavam à liberdade, recém-adquirida pelo liberto, não pressupunham qualquer equiparação imediata com o homem livre pobre, no regime anterior. Não deviam tornar-se nem mesmo cidadãos de segunda classe, como aqueles. Urgia que continuassem apenas libertos. A ação dos libertos, entretanto, fez-se pautada por uma noção muito clara de liberdade que, nos quadros da sociedade imperial, confundia-se com o próprio direito de cidadania. Não a cidadania política, negada à maioria dos homens livres, durante o Império e ainda na República, mas uma noção de liberdade (e cidadania) civil que deitava raízes na tradição imperial e que, durante os últimos meses da Monarquia, encontrou acolhida em pelo menos parte das autoridades constituídas (MATTOS, 1998, p. 280, grifos meus).

Contudo, para Mattos (1998) a discussão sobre a questão da cidadania, no final do

Império e principalmente no advento da República, não teria se concentrado não na

acepção política do termo, já que, neste sentido, a maioria da população brasileira

se encontrava excluída, considerando que havia um número muito grande de

pessoas ricas e pobres analfabetas.

Dessa forma, Mattos (1998) afirmou que:

Denuncia-se, em geral, o caráter excludente desta p rerrogativa, seja pelo critério censitário do período monárquico , seja pela exigência de alfabetização, na experiência republic ana. [...] A cidadania, reclamada para os libertos, por lideranças abolicionistas no parlamento, por parte do pensamento jurídico ou pelos poetas anônimos nos jornais, era, entretanto, mais um exercício de retórica nos últimos anos do Império. Esta era mesmo uma questão já antiga, que acompanhara a política de emancipação gradual, levada a cabo pelo governo monárquico até 1888. Nela, em 1871 como em 1885, os libertos ficavam sujeitos a uma legislação de exceção, especialmente no que se refere à obrigatoriedade de tomar contrato de trabalho, que continuava a distingui-los dos homens nascidos livres, os ‘cidadãos brasileiros’. Os direitos de cidadania dos libertos, por todo o Império, dividiram a consciência jurídica da época, que operava dentro de um código teoricamente liberal. Em nome do direito de propriedade, admitia-se uma legislação especial para os escravos. Concomitantemente, entretanto, reconhecia-se, formalmente, uma série de direitos civis aos homens livres (os cidadãos brasileiros). [...] Por toda a política emancipacionista imperial, à exceção da lei de maio de 1888, desde os africanos livres pela extinção do tráfico em 1831 até os ingênuos (1871), idosos (1885) e manumitidos, por alforria ou pelo fundo de emancipação, manteve-se a tutela estatal ou privada sobre os libertos, privando-os da ‘cidadania brasileira’ conforme era reconhecida aos homens nas cidos livres (MATTOS, 1998, p.280-282, grifos meus).

Assim, Mattos (1998) evidenciou que a cidadania “politicamente, ela era uma farsa,

mesmo para os ‘cidadãos ativos’. Em termos civis, garantia as liberdades clássicas

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(de ir e vir, de propriedade, etc.), bem como a liberdade de opinião e a integridade

física, quando proibia a tortura ou o castigo infamante“ (MATTOS, 1998, p. 282).

Seguindo uma argumentação semelhante, Lilia Schwarcz (2000) afirma que essa

situação não nem se quer conferia aos trabalhadores negros escravizados o status

de uma “frágil cidadania” (SCHWARCZ, 2000, p. 32):

O Brasil, em finais do século XIX, vivia um ambiente conturbado. A escravidão acabara em 1888 e já em 1889 caía o Império, um regime bastante arraigado na lógica e nas instituições do país. Com essas mudanças iniciava-se, também, o debate sobre os critérios de cidadania e acerca da introdução dessa imensa mão-de-obra, agora oficialmente livre, no mercado de trabalho. No entanto, em meio a esse ambiente, em que a democracia americana parecia ser um modelo suficiente para a comparação, a discussão racial pareceu abortar o debate sobre as condições de cidadania. Com efeito, desde os anos de 1870, teorias raciais de análise passam a ser [sic] largamente adotadas no país – sobretudo nas instituições de pesquisa e de ensino brasileiras predominantes na época -, em uma clara demonstração de que os critérios políticos estavam longe dos parâmetros científicos de análise. Percebe-se, então, uma clara seleção de modelos, na medida em que frente a uma variedade de linhas nota-se uma evidente insistência na tradução de autores darwinistas sociais que , como vimos, destacaram o caráter essencial das raças e, sobretudo, o lado nefasto da miscigenação. A seleção não era em si aleatória, na medida em que o tema racial já fora explorado durante o Império, sobretudo por meio de um projeto romântico nativista que selecionara o indígena com símbolo de singularidade e identidade. [...] É diferente, no entanto, a interpretação realista dos anos 1870. Surgindo na oposição ao projeto romântico, os autores de final do século inverterão [sic] os termos da equação ao destacar os “perigos da miscigenação” e a impossibilidade da cidadania (SCHWARCZ, 2000, p.21 e 22, grifos meus).

Em outras palavras, a mera emancipação dos trabalhadores negros através da

alforria foi insuficiente para a garantia do direito de liberdade do corpo e da mente,

ou seja, não significou uma mudança na sua condição: continuaria sendo um

trabalhador escravizado caracterizando-se por uma liberdade imperfeita, que

transitava entre a “farsa” (MATTOS, 1998) e a “fragilidade” (SCHWARCZ, 2000).

Entretanto, a liberdade imperfeita poderia também significar para alguns dos

trabalhadores negros escravizados a possibilidade de vivenciar situações de

liberdade no sentido de adquirir direitos civis reivindicados e negociados na esfera

do direito privado e público.

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Sidney Chalhoub (2003) e Maria Aparecida Papali (2003) afirmaram que a grande

contribuição do embate jurídico emancipacionista deu-se através da própria visão

dos trabalhadores negros escravizados, que assumiram a sua condição de “semi

livre”, adquiriram trânsito no campo do direito e inseriram-se neste espaço de busca

pelo rumo a liberdade do corpo e da mente.

Assim, estes sujeitos utilizaram-se das leis como instrumentos de resistência no

campo do opositor, ou seja, como táticas para ampliar os recursos de acesso à

liberdade tão desejada, mesmo que imperfeita. Isto não significa que se possa

ignorar a existência da opressão no cativeiro, e nem tampouco, a complexidade da

situação.

Dito de outra maneira, a liberdade não pode ser entendida de forma única, já que

poderia ter significados diversos; isto, sem deixar de levar em consideração que a

sua busca poderia subverter as regras e os modelos. Dessa maneira, torna-se

patente de diversidades e de formas diferentes para conquistá-la.

Afinal, as resistências à escravidão foram inventadas e experimentadas pelos

próprios sujeitos escravizados ao se confrontarem com as especificidades do

momento histórico e do lugar (REIS, J. J. e GOMES, 1996), podendo se

manifestadas por meio de formação de quilombos, “negociações” nas relações

cotidianas, ou de outras formas, ou seja, reinventadas.

Partindo deste ponto de vista, também se pode inferir que tantos os trabalhadores

negros escravizados, como os livres e os libertos

[...] reivindicam-se [reivindicavam] privilégios e não direitos. Lograr espaços de autonomia ampliados dentro do cativeiro significava, antes de mais nada, afastar-se daquela condição primeira que definiria o escravo: a total ausência de prerrogativas. [...] e não de qualquer prerrogativa ou direito do escravo que se definiria exatamente pela ausência destes atributos. Com direitos não há escravos [...] não apenas os senhores, mas também os que se encontram sob o jugo do cativeiro sabiam disso (MATTOS, 1998, 159).

Além disso, para os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos reivindicar

privilégios poderia significar também ter acesso aos bens culturais, como por

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exemplo, o ler, o escrever e o contar, subvertendo todas as estratégias para o

adestramento e tirocínio do seu corpo e da sua mente.

Em suma, o cativeiro imposto aos trabalhadores negros escravizados teve feições

híbridas. Considerando, principalmente, que eram sujeitos históricos capazes de

reinventarem sua história através da “resistência no cotidiano”, atuando

contrariamente à ordem estabelecida pela elite intelectual e dirigente e poderiam

recriar possibilidades de enfrentar a interdição do corpo e da mente, que foi imposta

pelo jugo da escravidão.

1.6 QUEBRANDO O SILÊNCIO DAS MEDIDAS DE “CARÁTER EX CEPCIONAL E

DE CUNHO FILANTRÓPICO”

Nas últimas décadas do século XIX, em todo Império suscitaram discussões e

debates em relação à abolição da escravidão, o incentivo à contratação de

imigrantes como trabalhadores livres, e a propagação das idéias republicanas.

Conseqüentemente, uma tendência comum nos impressos era o incentivo às

iniciativas particulares de “caráter excepcional e de cunho filantrópico”, que

procuravam “beneficiar” os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos e os

demais da camada popular (desamparada e desvalida):

A emancipação caminha – O Correio Paulistano dar [sic] notícia das seguintes emancipações: Em Jundiahy o Sr. Francisco Soares da Silva, por um papel particular que mandou passar pelo Sr. Antonio Adriano, deu liberdade, sem condição alguma, ao seu escravo Manoel africano. Na Atibaia, D. Escholastica do Araújo Cintra há um ano, por ocasião do inventário de seu marido tenente coronel Francisco da Silveira Campos concedeu liberdade a 9 escravos. [...] O octogenário João José de Farias e sua mulher Bernardina Maria do Amor Divino, moradores do lugar Patú, desta freguesia, alforriarão os escravos [...]. Ao todo 35 escravos. Este ato de filantropia recomenda muito, os bons sentimentos de quem praticou. Na freguesia de S. João de Jaquaribe, termo de S. Bernardok, por ocasião de seu festejar a conclusão da guerra [Guerra do Paraguai], foram libertados 7 escravos menores. O Dr. Piaululino Mendes de Magalhães libertou uma criança recém-nascida de uma escrava. Em Baturibé o Sr. Manuel José libertou uma escrava de 13 anos. A Sra. D. Thereza Rocha Moreira, da capital, libertou outra escrava da mesma idade. No Aracaty o Sr. Manoel Tavares da Silva e a Sra. D. Maria Francisca de Paiva libertarão dois escravos menores. No Ceara, segundo notícia

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do Diário Oficial, falecera o padre Joaquim Ferreira Lima Serra, deixando livres dois escravos que possuía. Em Pernambuco, foi nomeada uma comissão para promover a libertação de crianças, ordenada por uma lei provincial última. Um artigo publicado no Pharol, do Juiz de Fora, encontra-se esta noticia: Em Barbacena instalou-se uma sociedade filantrópica de emancipação. Por esta ocasião foi praticado o ato mais nobre e que revela a grandeza da alma de seu autor. É ele o cidadão português José Alves Outeiro. Depois de proferir puçás, mas eloqüentes palavras, esse benemérito cidadão concedeu liberdade a 14 escravos. Eram os únicos que possuía. Empregava-os em sua fazenda sita no Distrito de Ibiti [...] Ainda fez mais. Dentre os libertos escolheu os mais inteligen tes e mandou-lhes ensinar a ler e escrever . Ações como estas não se comentam. Publicam-se simplesmente. Lê-se ainda no Diário Official do 23 passado. Na cidade da Campanha falecera neste José Carlos Pereira, fazendeiro. Deu a liberdade a todos os seus escravos, deixando-lhes alem disso 200 alqueires de terras na sua fazenda de S. Domingos [...] (Correio da Victória, sábado, 10 de setembro de 1870, nº 70, grifos meus – Arquivo Público Estadual do Estado do Espírito Santo – APEES).

O interessante é que essas iniciativas particulares permeavam entre os discurso em

defesa da abolição de forma lenta e gradual e aqueles fomentavam as iniciativas

oficiais e definitivas. Havia na imprensa uma preocupação em destacar as iniciativas

que possuíam “caráter excepcional e de cunho filantrópico”, em especial, as notícias

que ressaltavam a concessão da liberdade às crianças escravizadas (ingênuos),

bem como a preocupação em “escolher os mais inteligentes e mandar ensinar a ler e

escrever”, isto é, a educação mostrou ser um dos pilares do processo abolicionista.

Desde 1867, por meio da Falla do Trono, o Governo Imperial divulgava nas

Províncias uma preocupação em relação as mudanças que deveriam ser realizadas

na educação. A Província do Espírito Santo não ficou indiferente a tal situação que

se propagava pelo País:

Em diversas localidades surgiram adeptos para a batalha que se feria em favor de tão santa causa, e, na Capital, centro em que com mais entusiasmo se agitava a questão, acompanhando com denodo essa evolução que se operava em honra do progresso moral da Pátria, avolumava-se a falange dos apóstolos convictos desse magno ideal. Fundaram sociedades para a libertação dos cativos, e, na tribuna, nas colunas da imprensa, batiam-se com intrepidez, tendo por divisa sacrossanta - a Liberdade. A mais antiga sociedade abolicionista que existiu na Terra Capichaba [sic] foi, talvez, a “Sociedade Abolicionista da Escravatura do Espírito-Santo, instalada aos 17 de outubro de 1869, na Capital, sendo fundada sob as bases organizadas pelo Dr. Diolindo

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José Vieira Maciel, e estampadas no “Jornal da Victoria” de 18 de Setembro do mesmo ano. São as seguintes: - “ Esta sociedade terá por fim alforriar o maior numero possível de escravos de ambos os sexos e de qualquer idade, e fazer deles cidadãos úteis , velando sobre sua instrução religiosa, moral e literária, segundo as circunstâncias pecuniárias da sociedade. “A sociedade conseguirá o seu fim pelos seguintes meios: - Donativos espontâneos de qualquer espécie que seja [...]” (PEREIRA, Amâncio, 1914, p. 122, grifos meus - Coleções Especiais – Biblioteca Central - UFES).

Uma questão que passou a constar das apreensões das elites intelectuais e

dirigentes da Província e do Império, e foi veemente defendida nos impressos locais

e nacionais, diz respeito à defesa da escolarização formal para os trabalhadores

negros livres e libertos e aos demais elementos das camadas populares,

principalmente exigindo uma obrigatoriedade estabelecida em lei que superasse o

“caráter excepcional e filantrópico” dessa questão. A educação foi usada, então,

como instrumento de integração dos trabalhadores recém libertos às necessidades

da modernização da economia, ou seja, pretendia “fazer deles cidadãos úteis,

velando sobre sua instrução religiosa, moral e literária” de modo que a elite

intelectual e dirigente exercesse o controle social sobre estes sujeitos.

Dessa maneira, penso que por dessas medidas de “caráter excepcional e

filantrópico” foi possível a elite intelectual e dirigente consolidaram um processo lento

e gradual abolicionista que contribuiu para a manutenção das hierarquias sociais

mesmo após a abolição definitiva da escravidão. Além disso, contribuíram para a

fomentação de projetos legislativos legitimando a escolarização dos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos.

Algumas das medidas, decorrentes da apresentação e aprovação dos projetos

legislativos nas Assembléias Legislativas, emitiram determinações referentes a

regulamentação do fundo de emancipação, que determinava a quantia que deveria

se despendida anualmente com a alforria dos trabalhadores negros escravizados e a

quantidade de trabalhadores que deveriam ser beneficiados. Apesar de ter sido

dilapidado, sem dúvida, foi uma das maiores estratégias utilizada pela elite dirigente

para consolidação do processo abolicionista de forma lenta e gradual.

De acordo com os registros do fundo de emancipação, anexados aos Relatórios do

Ministério da Agricultura, presentes nos editoriais da imprensa local e nacional, as

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Províncias do Espírito Santo e de Santa Catarina foram as primeiras que aplicaram

todas as quotas distribuídas para a realização da emancipação.

Desse modo, “pela quota de 52:049$539” (réis) e em todos os municípios do

Império tinham sido libertados “1,503 escravos com a quantia de 876:185$000”

(réis). Segundo o mesmo impresso, havia uma estimativa de elevação deste

número para “4,000” trabalhadores negros escravizados (O Cachoeirano, 11 de

março de 1877, Ano 5, n.10 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Segundo os dados estatísticos publicados pelo jornal O Cachoeirano, de 11 de

março de 1877, as manumissões oficiais, isto é, as empregadas sob a

responsabilidade do Estado, totalizaram um número de 2.258 manumissões em todo

País, sendo apenas 78 manumissões que corresponderam aos doze municípios da

Província do Espírito Santo, isto é, aproximadamente 3,45% manumissões (ANEXO

H).

No mesmo jornal local, um segundo quadro (ANEXO I) apresenta os índices

relacionados às manumissões concedidas no País por iniciativas particulares e a

título oneroso, entre 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre) até 31 de

dezembro de 1875: um total de 22.674 manumissões em todo Império e 551

manumissões na Província do Espírito Santo (aproximadamente 2,43%), “além

daqueles sobre os quais não houve comunicação” (O Cachoeirano, 11 de março de

1877, Ano 5, n.10 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

O mapa estatístico apresentado pelo Ministério da Agricultura ao corpo legislativo da

Província do Espírito Santo demonstra a existência de 1.419.966 trabalhadores

escravizados em todo o Império, dos quais 22.659 pertenciam a Província do

Espírito Santo, ou seja, 1,59%.

O terceiro quadro (ANEXO J) apresentado no mesmo impresso, mostra o número

de filhos livres de mulher escravas matriculados (existentes entre 28 de setembro de

1871 até 31 de dezembro de 1875): totalizava um índice de 155.861, sendo que

2726 ingênuos eram da Província do Espírito Santo, correspondendo

aproximadamente 1,75 % do número total de 155.861 em todo o Império.

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É interessante salientar que apesar da incompletude desses dados, foi possível

vislumbrar o processo de manumissão da Província do Espírito Santo, bem com das

outras Províncias do Império, a contar de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre

Livre) até 31 de dezembro de 1875. Evidenciando, assim, por meio desses dados

estatísticos a preocupação em se consolidar um processo de manumissão lento e

gradual em todo o Império.

A elite intelectual e dirigente espírito-santense considerou elevado o índice de

manumissões (apesar dos números relativos as manumissões estarem incompletos

devido à falta de informações sobre as manumissões nas Províncias da Bahia e de

Minas Gerais), mostrando-se apreensiva com a inércia do Governo Imperial em

relação tal situação e exigiram providencias em relação à educação dos ingênuos.

A documentação analisada destacou também que tanto a Lei do Ventre Livre (28 de

setembro de 1871) como as medidas educacionais favoráveis aos ingênuos foram

burladas pelos senhores proprietários, que não forneceram informações corretas

sobre a realização das manumissões. Além disso, muitos desses senhores

proprietários optaram por permanecerem com os ingênuos, sob sua tutela,

principalmente do sexo masculino, pois não estavam interessados em permitir que

Estado exercesse o controle da situação.

Foi interessante observar, também, que, antes mesmo da Lei do Ventre Livre (28 de

setembro de 1871), na Província do Espírito Santo, um programa liberal já havia

concedido a liberdade às mulheres e crianças escravizadas por meio da lei nº 25 de

4 de dezembro de 1869, e autorizada em portaria de nº 546 da Presidência da

Província de 23 do referido mês e ano, que “resolve [resolveu] de conformidade

com o disposto no art. 3º da lei de orçamento vigente, abrir o crédito extraordinário

da quantia de 5:950$000 reis” (Correio da Victoria, 7 de outubro de 1871- Arquivo

Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

Segundo Amâncio Pereira (1914), o projeto inicial dessa lei estabelecia em seu

Artigo 1º que a quantia deveria corresponder ao valor de 12:000$000 reis com a

alforria de trabalhadores escravizados do sexo feminino que deveriam ter de 10 a 15

anos de idade. Após vários debates, substituíram o projeto por outro que autorizava

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despender um valor menor e delimitava a idade dos trabalhadores escravizados de 5

a 10 anos. Este projeto foi aprovado em terceira discussão, e foi assinado por dois

representantes da elite intelectual e dirigente: “A. Monjardim40 e Moniz Freire41”

(PEREIRA, Amâncio, 1914, p.125, Coleções Especiais – Biblioteca Central - UFES).

A imprensa mostrava-ser preocupada em acompanhar a questão das manumissões

do “elemento servil”42:

Elemento servil. – O São Joannense de 14 do passado [setembro de 1877] publicou o seguinte: “A imprensa, por mais de uma vez tem se ocupado largamente sobre o destino que o governo pretende dar aos ingênuos filhos de mulher escrava, muito principalmente as ingênuas, porque é quase geralmente sabido que os senhores das mães ao completarem as filhas os 8 anos, farão delas entrega optando pela indenização da apólice de 600$000. Nenhuma providência tem o governo tomado, de sorte que ao chegar o ano de 1879 se achará à barba com essa tur ba de crianças , [...] até o fim do ano de 1875 já se elevava, por uma estatística incompleta, à soma de 155,861, regulando por conseguinte os nascimentos, termo médio, em cada ano 36,486, de maneira que em 1879 estará o número de ingênuos elevado a 301, 805 indivíduos: sendo em regra geral, dois terços destes indivíduos do sexo feminino, terá o governo à sua disposição para sustentar e educar mais de 200 mil crianças, que pela maior parte terão atingido os oito anos, e outras sucessivamente o irão. Quanta desgraça aguarda a tais infelizes! A miséria, a prostituição em tenra idade será infalív el ... [sic] Havendo sido distribuída aos diferentes municípios do império a quantia de 3,624:521$506, a fim de ser aplicada a [sic] manumissões, há sido até agora empregada a de 1,294:981$298, pela qual tem sido obtidas 2,258 manumissões [...] (O Cachoeirano, 16 de setembro, grifo meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo)

O documento supramencionado evidência que a questão de gênero mostrou-se

pertinente, principalmente como tática usada pelos senhores proprietários para mais

uma vez burlar as determinações do Governo Imperial: em sua maioria fizeram a

opção por permanecerem com os ingênuos, principalmente os de sexo masculino,

entregando apenas os de sexo feminino aos cuidados do Estado. Contudo.

Também revela que o Governo Imperial não havia tomado nenhuma providência em

relação ao sustento e a educação dos ingênuos, principalmente os do sexo feminino,

40 Alpheo Adelpho Monjardim além de intelectual e político influente neste período, foi o 1º Vice Presidente da Província do Espírito Santo, em 1879. 41 Moniz Freire, que governou o Espírito Santo, primeiramente de 1892 a 1896, adotou medidas para transformar Vitória num grande centro comercial do Estado e de parte de Minas Gerais. Reelegeu-se presidente do Estado de 1900 a 1904. 42 Expressão usada com freqüência tanto nos impressos da época (imprensa, obras literárias, documentos oficiais)

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que até o fim do ano de 1875 que já se elevava para dois terços em todo Império.

Além disso, evidencia a preocupação com as conseqüências sociais (a miséria e a

prostituição) que possivelmente impostas aos ingênuos, principalmente as de sexo

feminino: “Quanta desgraça aguarda a tais infelizes!”.

A imprensa espírito-santense divulgou de forma intensa os resultados do Projeto Lei

que se transformou na Lei 25 de setembro de 1870, que autorizava entrega da carta

de liberdade a 15 trabalhadoras negras escravizadas, tecendo comentários

ambíguos relacionados ao fato de não existirem condições para a execução dessas

alforrias e a preocupação em tornar essas pessoas “cidadãos úteis”.

É interessante reiterar que de acordo com a documentação analisada,

especificamente a imprensa local, as iniciativas de manumissões oficiais e

particulares (à título oneroso) na Província do Espírito Santo antecederam à Lei do

Ventre Livre (28 de setembro de 1871) por meio da Lei Provincial nº 25, de 4 de

dezembro de 1869, bem como as iniciativas referentes à educação dos

trabalhadores negros recém-libertos, especificamente com a permissão do acesso

as aulas do Colégio Espírito Santo (Lei Provincial nº 32, de 23 de dezembro de

1869).

Assim, a imprensa espírito-santense com freqüência divulgava as notícias sobre as

manumissões:

D. Joaquina do Nascimento de Jesus, da cidade de S. Matheus, no dia 27 de dezembro último [1870] conferiu carta de liberdade ao seu escravo de nome Galdino com 6 anos de idade, obrigando-se a educá-lo e sustentá-lo até que chegue a maioridade . Na mesma cidade, o Sr. Joaquim Osório Cunha, no dia 8 do corrente, deu carta de liberdade a menor Porcina, sua escrava, de 9 anos de idade, obrigando-se a cuidar a educação dela (Correio da Victoria, quarta-feira, 25 de janeiro de 1871, n. 7, p. 2, grifos meus – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

Surgiram, também, as iniciativas das Irmandades religiosas:

[...] foram conferidas pelo Revd. Provincial Frei João do Amor Divino Costa, por ocasião da festividade da Santíssima Virgem da Penha, como já noticiamos, recebemos de um amigo a seguinte nota que abaixo publicamos:

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“Frei João do Amor Divino Costa, ex-definidor, ex-custodio, e atual vigário provincial da província da Imaculada Conceição da Senhora em o Império do Brasil, e o Revd. Divinatório legitimamente eleito, em atenção, respeito e veneração que consagram ao dia em que a Igreja solenizou este ano os Prazeres da Mãe Santíssima, deliberaram, e como de fato deliberado ficou para que tivessem execução os seguintes artigos: 1. – Foram considerados livres os ventres de todas as servas do Convento de Nossa Senhora da Penha e de todos os outros Conventos da Província Franciscana. 2. – Ficaram gozando [ilegível] desta graça [ilegível] considerados, como se de ventres livres nascessem, com todos os favores que as Leis Religiosas e Civis concedem, os inocentes seguintes: Leovigildo, filho de Basílio, Rozalina, filha de Isidora; Laurentina, filha de Carolina; Francisco, filho de Anna; Benevente, filho de Paulino e Valintina; e Michelina, filha de Joanna. 3. – Igualmente ficaram libertos, em atenção a seus serviços e idades, o servo deste Convento de Nossa Senhora da Penha, Benedicto e bem assim Isabel, Helena e Carolina. 4. – o último. – Da mesma maneira libertam os inocentes Benedicto e Theophilo, pertencentes ao Convento de Nossa Senhora do Amaro de São Sebastião, residentes nesta Província e na Capital do Império. “Estas ata foi lide, no Ofertório da Missa, pelo Presbítero Assistente, Definidor e Guardião do Convento de Santo Antônio da Côrte, Fr. João Baptista de Santa Roza, como Secretario da Província; e estava assinada pelo Revdmo. Provincial e referendada pelo mesmo Secretario”. “Achavam-se ali presentes S. Ex. o Sr. Presidente da Província, diversos funcionários públicos e imenso concurso de fiéis que assistiam a festa Santíssima Virgem, o ato foi solene, importante, e comovedor.” Praza a Deus que a grata impressão q’ experimentaram aqueles que foram testemunhas de tão edificante ato, sintam em seus generosos corações os saudáveis afluxos de tão belo exemplo, e piedosos e imitem! (Correio da Victoria, quarta-feira, 26 de abril de 1871, n. 32, p.4 – Arquivo Público Estadual do Estado do Espírito Santo - APEES).

Em 28 de setembro de 1871, foi aprovada a Lei do Ventre Livre e, simultaneamente

se acirraram os debates em torno da preocupação com o destino dos trabalhadores

negros escravizados e dos ingênuos (filhos livres das mulheres escravizadas). Isto

significava desenvolver um projeto educacional compatível com as novas condições

desses libertos, porém sem romper com a hierarquia social característica do

contexto da escravidão.

Tais preocupações salientaram a necessidade de um movimento em defesa da

educação dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, com maior

expressão após a Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871). Acentuaram-se,

então, os discursos efervescentes, os projetos e as medidas educacionais em

defesa da educação dos ingênuos e do seu acesso às instituições educacionais:

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Escolas Públicas, Companhia dos Aprendizes de Marinheiros, Casas de Educandos

Artífices, Rodas dos Expostos, Colégios, Escolas Normais. Apesar disso, diante da

pressão exercida pela imprensa, percebe-se que as medidas legislativas que

defendiam a proteção e educação dos ingênuos foram parcialmente ignoradas e não

aplicadas de acordo com as necessidades reais dos trabalhadores negros livres e

libertos recém-libertos, que conseqüentemente engrossavam-se as fileiras dos

desvalidos e desamparados (aprisionados as situações subumanas de

sobrevivência).

Dessa forma, convém ressaltar que, simultaneamente às publicações de

manumissões concedidas, intensificaram-se os anúncios sobre as fugas de

trabalhadores negros escravizados. Isto revela, mais uma vez, a presença de uma

situação de tensão, no sentido de que os resultados dos índices estatísticos e a

forma como estavam sendo realizadas as manumissões estavam longe de atender

às expectativas tão desejadas pelos sujeitos históricos submetidos ao cativeiro.

1.7 O MOVIMENTO ABOLICIONISTA NA PROVÍNCIA DO ESPÍ RITO SANTO

Já no final da década de 70 e durante a década de 80 do século XIX, a análise das

fontes evidenciou que a elite intelectual e dirigente espírito-santense assumiu uma

postura expressa de contestação (e não apenas reformista) tanto ao governo

Imperial como ao governo Provincial. Assim, intensificou-se a propaganda

abolicionista, principalmente na imprensa local, demonstrando um certo

desassossego em relação à emancipação lenta e gradual dos trabalhadores negros

escravizados.

De certa maneira, o foco de interesse intelectual se alterava, desenvolvendo-se um

certo “radicalismo moderado” que contribuiu para a intensificação das manumissões

de iniciativas particulares, como, por exemplo, as iniciativas dos estudantes do

Ateneu Provincial, que fundaram, em 23 de junho de 1878, o Clube Saldanha

Marinho, esta sociedade literária tornou-se a “célula-mater” das avultosas idéias

abolicionistas e republicanas na Província (NOVAES, 1963 e 1964).

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Tais iniciativas foram também foram fortalecidas com a participação da Associação

União e Progresso (1883), dos Clubes Abolicionistas e das sociedades maçônicas

emancipadoras, que apresentaram projetos para a solução da questão servil,

inclusive com o apoio representativo da elite intelectual e dirigente espírito-santense.

A partir da década de 80 do século XIX acirraram-se os discursos em favor do

abolicionismo, de modo que o fim da escravidão foi percebido como algo inevitável

pela elite intelectual e dirigente. Mesmo assim, essa elite não abriu mão de exercer o

controle sobre o movimento abolicionista, principalmente, por meio das medidas de

caráter “filantrópico e excepcional”, tais como: as iniciativas dos estudantes e das

senhoras na arrecadação de fundos para compra de alforrias. Medidas como essas

foram fundamentais para o acirramento do ideal abolicionista, mas, por outro lado,

contribuíram para adiar as decisões legislativas definitivas e, desse modo, visavam

impedir que os próprios trabalhadores negros escravizados assumissem as rédeas

do processo abolicionista.

Compreende-se, portanto, que o movimento abolicionista foi permeado por

contradições e tensões, de modo que o seu radicalismo social parecia não se

compatibilizar com a sua moderação política, afinal, o projeto abolicionista da elite

intelectual e dirigente priorizou o processo lento e gradual atendendo as

expectativas dos grandes proprietários. Todavia, ao mesmo tempo, que a elite

intelectual e dirigente priorizava um projeto abolicionista lento e gradual,

apresentava-se envolvida em atividades sociopolíticas que contribuíram para

acelerar este processo. Essa ambigüidade se explica pelas incertezas e

incompletudes características das novidades socioeconômicas impostas pelo

processo de modernização do País, nas últimas décadas do século XIX.

A análise dos anúncios dos jornais locais permitiu observar que, apesar do

crescimento das iniciativas abolicionistas, as fugas dos trabalhadores negros

escravizados se intensificaram caracterizando a existência de uma tensão,

demonstrando, assim, que os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos

possuíam plena percepção da situação e de seus entraves. Tal tensão foi

evidenciada nas entrelinhas das representações da elite intelectual e dirigente

postas nos “recortes” dos anúncios sobre as fugas dos trabalhadores negros

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escravizados, quando apresentavam a informação de que estes últimos “intitulavam-

se livres", demonstrando, ainda, que estes faziam uso das astúcias e das táticas de

resistências no cotidiano pela liberdade do corpo e da mente.

Mas afinal, o que seria o abolicionismo? Segundo o pensamento de Joaquim

Nabuco (2000)43, o abolicionismo não era só o combate ao tráfico negreiro, nem só

se contentava em realizar a defesa da população ainda escravizada, nem se reduzia

ao resgate dos trabalhadores escravizados e dos ingênuos. Ou seja, não era só uma

preocupação imediata, mas possuía projeções para o futuro, como por exemplo: “a

de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de

desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos

senhores” (NABUCO, 2000, p. 3).

Joaquim Nabuco (2000) acreditava, ainda, que por ser uma concepção nova da

história política do País, o abolicionismo resultaria na desagregação dos partidos

políticos da época. Dessa forma, defendia que o abolicionismo era um problema não

só de justiça e de consciência moral, mas de previdência política, ou seja, deveria

ser uma ação de assistência praticada em favor dos cidadãos do País.

Em conseqüência desse movimento político, antes mesmo da aprovação da Lei do

Ventre Livre (28 de setembro de 1871) pelo Governo Imperial, a Assembléia

Legislativa Provincial aprovou a Lei Provincial nº 30, de 11 de dezembro de 1871,

amplamente divulgada pela imprensa espírito-santense, estabelecendo a quantia

anual de 6.000$000 para manumissões das mulheres escravas da idade entre 12 a

35 anos, porém não deveria exceder ao preço de um conto de réis cada uma.

A questão de gênero, que mais uma vez se impôs, por meio da aprovação desta

Lei, se explica pelo fato de se priorizar os interesses dos senhores que não

pretendiam abrir mão dos seus direitos de propriedade, preferindo ceder uma parte

diante da pressão exercida pelo movimento abolicionista, alforriando as mulheres

escravizadas, e adiando mais uma vez a abolição total da escravidão e fortalecendo,

assim, o processo lento gradual.

43 A obra “O abolicionismo” foi escrita por Joaquim Nabuco, quando ele estava em “desterro forçado” em 1882 e foi publicado em agosto de 1883, em Londres (Inglaterra).

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Durante o governo de Antônio Gabriel de Paula Fonseca (1872) foi nomeada uma

comissão com a incumbência de selecionar as trabalhadoras escravizadas que

deveriam ser contempladas com as cartas de liberdade.

O ato de entrega das cartas de liberdade foi amplamente divulgado pela imprensa

local:

Regulação das senhoras que de conformidade com o artigo 12 do regulamento de 30 de Dezembro de ano findo [1871], até o dia 31 do mês passado, apresentaram as cartas de liberdade passadas em favor de suas escravas [...] por conta da verba, decretada na lei provincial nº 30 de 11 do mesmo mês e ano (Correio da Victória, sábado, 7 de setembro de 1872, n. 102, p. 1 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

Em 7 de setembro de 1872, as mulheres alforriadas receberam suas cartas de

liberdade, à uma hora da tarde em uma sessão pública no Palácio do Governo,

acompanhadas dos procuradores de seus senhores: Serafina, Maria, Bárbara,

Joanna, Eduarda e Margarida cujos proprietários eram respectivamente: Major José

Marcelino P. de Vasconcellos (Capital – Vitória), José Ferreira Barroso (Capital –

Vitória), Albertina Martins Meirelles de Sampaio (Capital – Vitória), Martiliana Maria

da Penha (Capital – Vitória), Anna Izabel Cândida Loureiro e Francisco de Assis

Cravo (Queimado). Porém, Justina, escrava de José Correia d’ Azevedo Rocha

(Serra), Maria, escrava de Jose Pinto Martins (Guarapari) e Claudina, escrava de

João Rodrigues Baptista (Serra), não compareceram nesta data, sendo a cerimônia

de entrega de suas cartas marcada para outra data “oportuna”, conforme descreve o

documento.

A elite intelectual e dirigente apoiou e divulgou as medidas de manumissões,

primeiramente, como já mencionei, porque pretendia impedir que os trabalhadores

negros escravizados assumissem o controle do processo abolicionista; e, em

segundo lugar, visava adiar a necessidade de uma legislação que regulasse

definitivamente o fim da escravidão, contribuindo para que o processo abolicionista

continuasse lento e gradual, priorizaram, assim os interesses dos senhores

proprietários.

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Por outro lado, uma parcela da elite intelectual e dirigente adotou medidas de

contestação que contribuíram para o fim da escravidão, em 13 de maio de 1888. Em

relação a esta proposição Papali (2003) pontuou:

Enfim, as elites do país se organizavam na tentativa de conter a rebeldia das camadas populares e de resolver questões melindrosas como a de assegurar a legitimidade da propriedade escrava através de um projeto de emancipação indenizada, já que só assim esse “direito” do senhor sobre sua propriedade, mesmo que humana, não seria afrontados em seu caráter singular (PAPALI, 2003, p. 22).

Conforme afirmou Joaquim Nabuco (2000), o que deu força ao abolicionismo não foi

o sentimento religioso e nem tampouco o espírito de caridade ou filantropia, mas

exatamente esse movimento político, que nasceu de um pensamento diverso ao

sentimento de compaixão e de solidariedade: “o de reconstruir o Brasil sobre o

trabalho livre e a união das raças na liberdade” (NABUCO, 2000, p. 14). É

interessante ressaltar que essa “união das raças na liberdade” evidenciou uma

política de branqueamento plenamente justificada por facções da elite intelectual e

dirigente.

Joaquim Nabuco (2000) afirmou que “nos outros países o abolicionismo não tinha

esse caráter de reforma primordial, porque não se queria a raça negra para

elemento permanente de população, nem como parte homogênea da sociedade”

(NABUCO, 2000, p. 14). Também ressaltou que “no Brasil a questão não é [era],

[...] um movimento de generosidade em favor de uma classe de homens vítimas de

uma opressão injusta a grande distância das nossas praias. A raça negra não é

[era] tampouco, para nós [no Brasil], uma raça inferior, alheia à comunhão ou isolada

desta” (NABUCO, 2000, p. 14). Mas, segundo ele, “para nós [no Brasil], a raça

negra é [era] um elemento de considerável importância nacional, estreitamente

ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo

brasileiro” (NABUCO, 2000, p. 14).

Joaquim Nabuco (2000) afirmou, ainda, que “a propaganda abolicionista, com efeito,

não se dirige [estava direcionada] aos escravos”, ou seja, de forma alguma o

movimento abolicionista pretendia acirrar, entre os trabalhadores escravizados, a

idéia de insurreição, mas acreditava que a emancipação deveria ser feita por uma

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lei, ou seja, seria “no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem

nas ruas e praças de cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da

liberdade” (NABUCO, 2000, p. 18).

Sem dúvida, os discursos de Joaquim Nabuco estavam de acordo com o conjunto de

idéias e de representações de uma elite intelectual e dirigente das últimas décadas

do século XIX, já que era um homem situado nos valores e crenças do seu tempo,

assim, transitava entre o radicalismo político e o liberalismo conservador.

Assim, como representante de uma elite intelectual e dirigente desse período,

Nabuco não possuía apenas um projeto voltado para as questões políticas, mas

evidenciou uma preocupação com as questões econômicas e socioculturais, no

sentido, principalmente, de perceber a necessidade de preparar os futuros libertos

para atender aos interesses das novas relações de trabalho emergentes.

Acrescenta a isso, o fato do País ainda depender do trabalho escravizado, de modo

que o fim imediato da escravidão apresentava como dispositivo de desordem

socioeconômica e de ameaça aos interesses das elites intelectuais e dirigentes.

Diante desta situação, os representantes da elite intelectual e dirigente optaram,

então, por evitar e reprimir qualquer iniciativa de resistência por parte dos próprios

trabalhadores escravizados. Para tanto, apropriaram-se das medidas de “caráter

excepcional e de cunho filantrópico” e dos projetos educacionais, as ações

aparentemente inócuas, e transformaram em estratégias e pilares de coerção

política e sociocultural. Dessa forma, o que parecia ser um paradoxo tornou-se

compreensível e condizente, porque os representantes dessa elite pretendiam,

assim, manter o controle sobre as manumissões e sobre o destino dos recém-

libertos, de modo que fosse possível “integrá-los” e “civilizá-los”, ou seja, realizar a

“modelação social”.

Nesse cenário, a questão axial que se impõe é: Qual foi, então, o projeto

estratégico de educação idealizado pela elite intel ectual e dirigente para

conseguir efetivar a escolarização dos trabalhadore s negros escravizados,

livres e libertos?

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A visão que essa elite tinha de educação estava fortemente influenciada pela

perspectiva de atender aos interesses do processo de modernização da sociedade e

da economia, e serviu como orientadora da organização da cultura escolar oferecida

às camadas populares, nas últimas décadas do século XIX. Pretendia, assim,

manter a liberdade imperfeita, ou seja, exercer o controle político e sobre as

camadas populares, principalmente sobre os trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos. Sobre isto, discorrei na terceira parte deste trabalho.

Por conseguinte, esse conjunto de idéias traz indícios fundamentais sobre os

embates bastante significativos em torno da questionável importância da educação

(defendida pela elite intelectual e dirigente) destinada aos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos.

Penso, então, que a educação oferecida aos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos não objetivava prepará-los para serem cidadãos e nem tampouco

conceder a liberdade tão desejada por esses, mas integrá-los a ordem econômica

emergente, ou seja, deveriam ser “cidadãos úteis”. Dessa maneira, para uma

liberdade imperfeita, uma educação também imperfeita ou vice-versa: uma educação

imperfeita para uma liberdade imperfeita.

1.8 AS IRMANDADES COMO ESPAÇOS DE “LIBERDADE IMPE RFEITA”

Para melhor entender as formas de controle político e sociocultural exercidas pelas

elites intelectuais e dirigentes sobre os trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos, e, simultaneamente, compreender o jogo de astúcias desenvolvido por

esses últimos, penso que seja necessário pontuar a importância das Irmandades

Religiosas de Homens Pretos e Pardos.

Segundo Maria Stella de Novaes (1964), desde o início da colonização, em Vitória,

era muito conhecida a Ladeira de Tapera, atual rua Imaculada Conceição, que

começava na rua da Lapa (Thiers Veloso), e terminava no caminho de São

Francisco, hoje rua Dom Fernando. Essa ladeira também era conhecida por “ladeira

da Senzala”. Além disso, era “de chão batido, íngreme e tortuosa, o capim

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crescendo junto das construções de taipa, e depois dos anos 50, já neste século

[século XX], foi alargada, ganhou calçamento de paralelepípedos” (ELTON, 1986,

p.42) e recebeu o atual nome, em homenagem à padroeira da Ordem Franciscana

no Brasil, Nossa Senhora da Conceição. Foi nessa rua que os franciscanos, logo

que chegaram em Vitória, em 1589, constituíram residência e capela provisórias e

posteriormente deram início à construção do Convento de São Francisco, permitindo

também a existência de um “alojamento” de trabalhadores negros escravizados.

Quando foi decretado por essa ordem o culto a São Benedito (1743), “os escravos

se agregaram numa devoção ao insubstituível padroeiro da raça” (NOVAES, 1964,

p. 48). Assim,

Em fins de 1765, a Irmandade de Nosas [sic] Senhora do Rosário dos Homens Prêtos [sic] levantou a capela da sua Padroeira, na encosta denominada Pernambuco [atual Rua Wilson Freitas], no princípio da Capixaba, e de acôrdo [sic] com a Provisão do Bispado da Bahia, a 14 de setembro do mesmo ano (NOVAES, 1964, p. 103).

Hoje existe um prédio residencial no local, porém ainda é possível, através da

memória, ouvir a ladainha desses fiéis, sentir o cheiro do suor escorrendo o rosto,

algo tão comum diante da dureza do seu dia-a-dia, afinal possuem o passado e o

presente marcados pela escravidão. Dessa forma, é possível, também, sentir sua

dor, seu desejo e sua esperança pela liberdade (depositada na devoção a São

Benedito, que foi canonizado, em 1807), bem como sua presença em um cenário

marcado pela tensão e pelo jugo do cativeiro.

Contribuindo para a elucidação dessa devoção, Mariza de Carvalho Soares (2000)

desenvolveu um estudo sobre “a religiosidade e a inserção dos africanos, escravos e

forros, em organizações religiosas constituídas no âmbito da Igreja Católica, com

destaque para as genericamente identificadas como Irmandades e/ou Igrejas ‘de

pretos’” (SOARES, M. C., 2000, p.26).

Apesar de Mariza de Carvalho Soares (2000) ter desenvolvido sua pesquisa no

contexto do período colonial, no século XVIII, período que segundo a mesma, não

existia ainda um imaginário abolicionista que só se configurou no século XIX, seus

estudos são aqui pertinentes, pois apresentam permanências que possibilitaram a

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compreensão dessas práticas relacionando-as com o período investigado neste

trabalho, como por exemplo:

O que o escravo almeja é conseguir a alforria. Quando isso é impossível, busca outras formas de escapar ao controle do senhor, em alguma esfera da vida cotidiana. No universo escravista, as esferas de liberdade podem estar na escolha dos parceiros conjugais, na freqüência aos batuques, em ir e vir pela cidade e na possibilidade de filiar-se e freqüentar uma irmandade. As irmandades são uma das poucas vias sociais de acesso à experiência da liberdade, ao reconhecimento social e á possibilidade de formas de autogestão, dentro do universo escravista (SOARES, M.C., 2000, p. 166).

As Irmandades possuíam determinadas regras e limites para que seus membros

pudessem aprender a se mover no interior de espaço de sociabilidade, submetidos

às alternativas de convivência ou contestação, de acordo com as suas condições

particulares. A autora informa que uma vez instaladas na colônia do Brasil, as

Irmandades de Pretos se organizaram regulamentando a entrada de seus membros

segundo a cor (“pretos” ou “pardos”) e também segundo as nações africanas

(“angola”, ”mina” e outras). Porém, ao longo do tempo, enfrentaram um processo de

segmentação/reagrupamento que fez surgir novas devoções e novos rearranjos

entre os grupos, dando origem a um lugar próprio para esses sujeitos históricos.

Mas que lugar próprio seria esse? Segundo Mariza Soares (2000), esse lugar

próprio caracterizava-se pela ascensão social, pois permitia aos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos serem vistos no contexto sociocultural como os

convertidos, e não mais os gentis, ou seja, estariam, então, submetidos à

doutrinação coletiva e ao incentivo às obrigações sacramentais prescritas nos

compromissos das Irmandades Religiosas.

A partir dessa situação, poderiam alterar o status quo e, durante o Período Colônia,

foram reconhecidos como súditos da Coroa, a quem deveriam prestar obediência.

Segundo a autora, diante desta situação aprenderam a viver e a tirar proveito das

regras desta sociedade escravista (SOARES, M.C., 2000). Dessa maneira, os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos encontraram nestas confrarias, o

“único espaço” onde poderiam “reunir-se e organizar-se longe do controle do

ordinário da Igreja, do Estado e das Irmandades de homens brancos, que os

excluem religiosa e socialmente” (SOARES, M.C., 2000, p. 168). Em contrapartida,

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as Irmandades foram usadas, pelas elites intelectuais e dirigentes, principalmente,

como lugares de controle sobre as manifestações socioculturais dos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos.

No prólogo do compromisso da Irmandade de São Benedito que congregavam na

Igreja de Nossa Senhora do Rosário (dos “prêtos”), da cidade de Vitória, na

Província do Espírito Santo, escrito em 1833, ficou clara a devoção a São Benedito:

Entre as devoções, que freqüentam com mais fervor os habitantes desta Cidade, é certamente a de São Benedito uma das que tem chegado ao seu maior auge. Nós os vemos correr [ilegível], e como à porfia para venerar sua Sagrada Imagem, implorar diante dela bem conhecida proteção deste Santo; e oferecer-lhe suas dádivas, [...] Ouvimos contar uns aos outros com maior entusiasmo os prodígios que este Santo tem obrado com seus Pais e com eles mesmos quando a invocam nas suas necessidades, por cuja causa lhes são devedores de seu agradecimento, de seus festejos, e de suas ações de graças. Vemos um inumerável concurso de povo correr à sua Procissão, e na entrada desta admiramos o grande excelso de sua devoção, e muito principalmente nos Pretinhos. Uns já invocando por entre suspiros a sua poderosa proteção para com Deus; outros manifestando em suas faces a alegria, que predomina seus corações; outros rogando-lhes encarecidamente que os livre de santos males, a que estão expostos neste vale de misérias; outros em fim com as lágrimas nos olhos despedindo-se dele, e pedindo-lhe, que lhes obtenha de Deus a vida, a e saúde para o chegar a ver no ano seguinte (Estatuto da Irmandade de S. Benedito de Vitória de 1833, livro 3 – Arquivo da Cúria Arquidiocesana de Vitória - ES).

No mesmo documento evidenciou o compromisso da Irmandade de São Benedito,

os seus regulamentos, seus objetivos, os pré-requisitos para ser membro e suas

normas disciplinares:

Capítulo 1º Do regulamento da irmandade

Artigo 1º A irmandade de São Benedicto é uma Sociedade de pia, que os fiéis fazem entre si debaixo da autoridade de legítimos superiores, para dar glória a Deus; promover o culto de São Benedicto; e contribuir a salvação de seus Irmãos, e a edificação do próximo. Artigo 2º Esta irmandade, ainda que é propriamente dos homens pretos, tanto forros, como cativos , contudo, ela admite ao seu grêmio todas as pessoas de qualquer estado, sexo, ou condição que s eja, excetuando os que tiverem irregular conduta que esc andalize a Corporação, e ao público. Artigo 3º

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O irmão, que se tornar incorrigível em costumes, ou vícios prejudiciais à boa ordem e decência da Corporação, a Mesa o poderá excluir da Irmandade, lavrando-se termo, em que se declare o motivo para o todo tempo constar. [...] Artigo 6 º Não se abrirá assento no Livro das entradas sem que estejam presentes o Escrivão, o Tesoureiro, e o Procurador, os quais rubricarão abaixo do assento, para mostrar que presenciaram, e entrar sem este requisito, a Mesa o poderá excluir da Irmandade, e demitir o Escrivão, que tiver feito semelhante assento.(Estatuto da Irmandade de S. Benedito de Vitória 1833, livro 3, grifos meus - Arquivo da Cúria Diocesana de Vitória - ES).

No relato acima, fica explícito a preocupação com a conduta moral e a tentativa de

realizar uma “higiene social” (MARTINS, 2003) por meio das normas das

Irmandades Religiosas, principalmente, considerando que os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos ao mesmo tempo em que realizavam seu trabalho

vivenciavam um cotidiano bastante agitado e barulhento considerado desregrado

pelas elites intelectuais e dirigentes. Tentando permitir ao leitor o vislumbramento

dessa situação, faço uso do seguinte documento:

Copia a que se refere o oficio do Sr. Dr. chefe de polícia publicado no número passado [Correio da Victória, quarta-feira, 4 de janeiro de 1871, n. 1] Copia – Ilmo.Sr. – Cumprindo a portaria de V. S. datado de 12 de dezembro do corrente ano [1871] na qual V. S. manda informar sobre os fatos denunciados na assembléia provincial pelos deputados o Rvd. Padre Joaquim de Santa Maria Magdalena Duarte no seu discurso proferido na sessão de 15 de Novembro publicado no “Espírito-Santense” de 26 do mesmo mês, passo a informar a verdade. – Estando autorizado a recrutar mandei na noite de 17 de junho às dez horas, prender na porta da matriz, a Luiz, o qual era considerado e sempre alegava que era livre, e daí o conduzira a força pra o xadrez do destacamento da guarda nacional, para no dia seguinte proceder-se as indagações necessárias. - É inexato pois o alegado pelo deputado Duarte de ter sido varejada a casa de D. Maria de Nazareth Espindola, para realizar-se a prisão, e tão mal, informado foi o deputado Duarte que avança a proposição que Luiz fora detido no espaço de nove dias no xadrez do quartel do Carmo sem culpa formada quando, não existe tal quartel nem mesmo prisão de qualquer qualidade do Convento do Carmo desta cidade. - Luiz fora da prisão apresenta-se como homem livre, e quando recrutado, alega ser escravo, e como tal isento do recrutamento; sendo necessário averiguar bem qual a verdadeira condição d’ aquele indivíduo, para o que tive de conservá-lo um dia no xadrez, até que acreditando nas informações de seu acusador, mandei por em liberdade o referido Luiz. - Procedendo, assim, julgo q’nenhuma arbitrariedade cometi, nem ofendi aos direitos de cidadão, como quis inculcar o Sr. padre Duarte. - Passando ao seguinte fato foi também infeliz o deputado Duarte na sua narração, o que houve foi o seguinte: na ocasião em que era preso Luiz, o comandante de policia entrando na matriz onde me achava disse-me

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que um escravo de idade avançada lhe dirigia palavras desrespeitosas da casa da sua senhora e que entrara para dentro da dita casa, imediatamente sai da Igreja, e mandei pela patrulha buscar o dito escravo, caso fosse encontrado, porém como não fosse, deixou de ser cumprida a minha ordem. Este escravo de nome Cypriano, pertencente a mesmo Sr. de Luiz dias antes tinha sido preso por ter injuriado aos negociantes Rodrigues & Tagarro em sua própria casa. Não foram varejadas as senzalas do sítio do finado capitão Espindula, como afirma o deputado Duarte; e V. S. poderá mandar informar-se do comandante da polícia, se prestou força para semelhante diligencia, a minha requisição e do subdelegado. - Talvez que alguém abusando da credulidade d’aquele deputado lhe contasse alguma história que, sem mais exame o Sr. padre Duarte teve com fato verdadeiro, e aproveitou para fazer-me mais um capítulo de acusação. -Tenho cumprido à ordem de V.S. informando com toda lealdade acerca das acusações articuladas pelo Sr. deputado Duarte, sentindo que o mesmo Sr. abusando da irresponsabilidade da tribuna, e da paciência de seus honrados colegas, se ocupasse de minha pessoa de modo tão injusto, veemente e mesmo desrespeitoso. - Deus guarda a V.S.- Delegado de Polícia do termo da cidade da Vitória, em 15 de Dezembro de 1870 – Ilmo. E Exm. Sr. Dr. Antonio Joaquim Rodrigues, M. De. Chefe de policia d’esta província. – O capitão Tito Lírio da Silva. – Delegado de policia – Conforme servindo de secretario – Ignacio Pereira Aguiar (Correio da Victória, domingo, 8 de janeiro de 1871, n. 2, grifos do autor – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES)

No relato supracitado, evidenciaram-se as preocupações em torno do “ir e vir” dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, caracterizando-se por ser uma

questão de interesse de segurança e moral pública. Sobre isso, a historiadora

Adriana Pereira Campos (2003), que realizou os seus estudos no contexto

sociopolítico espírito-santense, no período entre 1857 a 1888, referiu-se a

existência de

[...] políticas voltadas ao controle da rebeldia dos negros e mestiços, independente de seu status de escravo ou de liberto [...] Uma indicação desse fato pode ser obtida pelo grande número de prisões por vadiagem ou desordem, [...] no Espírito Santo, para o intervalo de 1857 a 1888 [...] uma proporção de aproximadamente um terço dos detidos pela Polícia provincial [...] Não obstante, diante do alto índice de prisões por vadiagem, embriaguez e desordem, é possível afirmar terem sido esses tipos penais mais utilizados para criminalizar as ações dos homens de cor e mantê-los sob severa vigilância. A disciplina social das camadas “perigosas” deve ter contado, provavelmente, com tipos penais da desordem e da embriaguez como instrumentos da coerção policial (CAMPOS, 2003, p. 96 e 98).

Campos (2003) salientou que “mesmo sendo uma preocupação em constante

evidência nos relatórios de Presidentes de Província e nas correspondências das

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autoridades, efetivamente, não ocorriam tantas prisões de escravos como se poderia

supor” (CAMPOS, 2003, p. 163). Apesar disso, autora chamou atenção, para “o

grande número das autuações enquadradas nas categorias de alcoolismo,

desordens e “vozerios” (CAMPOS, 2003, p. 163) na Província.

Em confluência com os postulados do “silêncio da cor”, pontuados por Mattos

(1998), Campos (2003) ressaltou que as fontes disponíveis dificultaram a

identificação adequada dos presos por não ter havido, na época, uma sistemática de

anotação da cor ou da raça. Afirmou, ainda, que as elites brasileiras fizeram a

opção por uma repressão sem a conotação racial, pois transformaria a “educação, a

posição social e a profissão em elementos de diferenciação não apenas entre

brancos e negros, mas também entre as próprias pessoas de cor. Assim, o princípio

hierárquico validado pelas políticas repressivas” (CAMPOS, 2003, p. 99) poderia

colaborar para corromper as possíveis formas de solidariedade existentes pelas

determinações étnicas e pela origem social. Para autora:

A tarefa de reprimir o comportamento popular apoiava-se amplamente nas leis penais do Império [...]. A legislação penal do Império havia oferecido, portanto, instrumentos suficientes à Polícia e ao Juiz de Paz, às autoridades locais, para impor a ordem pública de forma efetiva e célere. [...]. Em Vitória, por exemplo, elaborou-se um capítulo dedicado às vozearias, obscenidade e ofensas à moral, proibindo-se músicas, foguetes, tambores, gestos indecentes, pinturas em locais públicos entre outros. (CAMPOS, 2003, p.164 e 165).

A historiadora acrescentou, ainda, que “a esmola e a caridade não chegavam a ser,

portanto, assunto de Polícia. Os mendigos e os miseráveis eram vistos como

atribuições das associações de caridade. Às autoridades policiais cabia a disciplina

das populações pobres” (CAMPOS, 2003, p.168). Também ressaltou que o

comportamento “imoral” das camadas sociais inferiores era suscetível do

enquadramento penal, sendo procedimento padrão a aplicação sumária de uma

pena de reclusão ou açoites. Concluiu, então, que “as prisões por desordem e

embriaguez podem ser entendidas, [...] como reflexo do empenho dessas

autoridades em realizar o controle dos costumes ditos condenáveis e localizados,

comumente, entre as camadas mais desfavorecidas da população” (CAMPOS,

2003, p.168).

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Ao se referir especificamente as comemorações sacras, a autora afirmou que

[...] eram notórias as diferenças entre as manifestações da alta hierarquia capixaba e aquelas promovidas pelas camadas mais pobres da sociedade. A elite organizava seus festejos contando com instrumentos musicais clássicos e habilidosos cantores, enquanto os pardos [...] As celebrações populares, como mencionado, não eram bem toleradas e a turba, inflamada pelo efeitos sonoros de seus instrumentos e por suas danças animadas, comportava-se de forma considerada inconveniente pela elite local. [...] Durante as procissões, eram utilizados instrumentos musicais populares como casacos, camundás e chocalhos, enquanto os fiéis, embalados pela música, iam desenvolvendo um bailado durante o trajeto. Ao encerrar-se a peregrinação de quatro dias de músicas e danças profanas, resultava também uma vaga de embriagados. [...] Falando rigorosamente, a prática da coerção social não se dirigia somente aos estratos pobres da população. Ela abrangia, mais propriamente, todo o conjunto das pessoas de cor. [...] A elite local elegia, desse modo, os hábitos socialmente aceitáveis e confiava à vigilância das autoridade policiais as atitudes consideradas desordeiras.[...] Do ponto de vista da elite, a ação repressora sobre os hábitos e os costumes da população pobre não se devia unicamente à pobreza ou à cor em si, mas também ao fato de se tratar de pessoas pertencentes a uma raça “sem civilização”. A que tudo indica, a contenção dos hábitos e dos costumes era suficiente para manter o tênue equilíbrio de submissão servil existente na sociedade escravista capixaba. Outras tantas rebeldias mais perigosas de combater, como as fugas de escravos e os quilombos, não ocupavam o centro das preocupações das localidades da Província. Essas formas de resistência não trouxeram conturbações maiores, apesar da insistência das autoridades em alertar para tal “ameaça”. Na verdade, a força policial local ocupava-se majoritariamente de bêbados e desordeiros. E, de acordo com as fontes, os escravos eram a menor parcela desses presos (CAMPOS, 2003, p.169 -171).

Afinal, onde pretendo chegar com este conjunto de proposições e posições? Não ao

óbvio, mas a uma possibilidade: a inclusão das Irmandades Religiosas no contexto

dos diversos arranjos, cotidianamente experimentados pelas camadas dirigentes

para obtenção da “modelação sociocultural e moral” dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos. Por outro lado, é importante salientar que as

cerimônias organizadas pelas Irmandades Religiosas possibilitaram uma maior

mobilidade espacial aos seus confrades.

Foi relevante a quantidade e a diversidade de anúncios desencadeados em todos os

jornais da província espírito-santense divulgando as datas e a organização das

festas dedicadas aos padroeiros das Irmandades. Além disso, a análise tanto dos

estatutos das Irmandades como dos anúncios dos jornais espírito-santense

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possibilitou verificar os valores sociais, suas práticas, enfim, o universo sociocultural

no qual as Irmandades estavam inseridas, bem como os significados de vida dos

próprios confrades, nitidamente diferenciados do modo de vida e da visão da elite

intelectual e dirigente e dos senhores proprietários.

Considerando que Mariza de Carvalho Soares (2000) afirmou, que os dois pilares

de união contratual dessas agremiações religiosas leigas eram, tradicionalmente, a

devoção e a caridade. Dessa maneira, nos seus estatutos destacaram que “os dois

grandes temas desse compromisso são a administração da morte e dos mortos e o

gerenciamento e aplicação dos recursos a serem distribuídos entre as festas, os

funerais e o auxílio aos irmãos” (SOARES, M.C., 2000, p. 169).

Quanto à administração da morte e dos mortos foi interessante observar na

documentação analisada as proposições colocadas por Mariza Soares (2000), como

por exemplo, a preocupação com a morte dos confrades, em que além de um ritual

funerário condizente com o status social, em relação aos pobres existia um

compromisso moral de um ritual suficientemente adequado para com a “boa morte”.

Devido a esta preocupação as esmolas arrecadadas eram quase que em sua

totalidade aplicadas na realização dos sepultamentos e na proteção das viúvas e

dos filhos menores de 14 anos do falecido. Isto foi demonstrando no seguinte

anúncio:

O abaixo assinado e sua mulher, pungidos de acarba dor pelo passamento de seu escravo de nome José, que, no dia 12 do corrente, depois de terríveis sofrimentos, entregou a alma ao Criador, vêem do alto da imprensa, agradecer a todas as pessoas que os acompanharam nos seus sofrimentos, com especialidade ao Ilmo. Sr. Dr. Ernesto Mendo de Andrade e Oliveira pela maneira carinhosa com que sem interesse pecuniário, tratou do seu escravo, e aos Ilmo. Srs. Tenente Coronel José Ribeiro Coelho, Francisco Pinto d’Oliveira e Ribeiro Manso, pelos favores que dispensaram durante a enfermidade e falecimento do mesmo seu escravo. Igualmente agradece à Venerável Irmandade de S. Benedicto de S. Francisco os caridos obséquio que lhes fez, acompanhando os restos mortais do mesmo finado. Àqueles senhores e à referida Irmandade, protesta eterno reconhecimento.Vitória, 13 de junho de 1876.João Barbosa das Neves (O Espírito-Santo,13 de junho de 1876, p.2 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Mariza Carvalho de Soares (2000) afirmou, ainda, que os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos, africanos ou não, desejavam tanto um funeral cristão,

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pois temiam ter o corpo insepulto ou ser sepultado sem honra. Sobre isto, a autora

afirmou que as Irmandades exerciam um poder no cuidado de seus membros e no

enterro dos seus mortos, mesmo no enterro de confrades de menor destaque, a

Irmandade comparecia, chorava e carregava o morto até a sepultura, sendo a

ausência a estas ocasiões considerada falta grave.

Além disso, havia também uma preocupação com as

[...] formas de financiamento de alforrias através das agremiações religiosas poderiam ser entendidos como uma primeira forma de organização das sociedades de emancipação. Esses financiamentos, entretanto, têm limites bem claros: são concedidos a membros da congregação em determinadas condições. Não é um direito nem tampouco um ato de caridade (no sentido contratual) mas tão-somente um privilégio concedido a alguns que pertencem à parcela do grupo étnico que está filiada à congregação (SOARES, M. C., 2000, p. 179 e 180).

É interessante observar que tal preocupação não impediu que as próprias

Irmandades e os seus confrades pudessem ter seus próprios trabalhadores

escravizados, uma vez que, segundo afirmou Mariza Carvalho de Soares (2000),

era um costume ainda presente no imaginário da época (o contexto da pesquisa

desta autora é o século XVIII, o que permite repensar essa postura nas últimas

décadas do século XIX).

Havia também uma preocupação na aplicação de recursos para a realização das

festas de devoção. Mariza de Carvalho Soares (2000) salientou que “já bem antes

da data estabelecida à Irmandade começa a arrecadar fundos para a realização da

festa [...] a taxa de inscrição, a contribuição anual e uma grande variedade de

contribuições suplementares para despesas específicas comumente chamadas

‘esmolas’” (SOARES, M.C., 2000, p. 171). Neste sentido, as festas dedicadas aos

padroeiros eram consideradas como o momento mais importante das atividades

organizadas por uma confraria, caracterizando-se como eventos importantes para a

sociedade de modo geral.

IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS HOMENS PRETOS ERETA NA CAPELA DO MESMO NOME. A mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário deliberou, em reunião última, festejar no corrente ano, com a pompa possível e devida,

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sua EXCELSA PADROEIRA, pela maneira seguinte: No dia 1 de outubro próximo, haverá vésperas, pregando o Reverendo vigário de Carapina Padre mestre Antonio Martins de Castro. No dia 2 (dia da Padroeira) terá lugar à missa solene, pelas 11 horas da manhã, [...] Às 4 horas da tarde do referido dia 2 a MESMA SANTISSIMA VIRGEM sairá em procissão pelas ruas de costume. Às 9 horas da noite desse dia, será entoada uma MAGNIFICAT, terminando assim a festividade. Em todos os atos oficiará a música do Ilmo. Sr. Professor Baltazar A. dos Reis [...].O nosso irmão Odorico José Mululo presa à música a seu cargo para tocar em todas as ocasiões precisas da festividade. A Irmandade, dispondo de limitados recursos para poder, como deseja, solenizar o dia de SUA PADROEIRA, roga a todos seus irmãos e irmãs de mandarem satisfazer n’aqueles dias o que se acharem devendo de jóias e anuais, para o que encontrarão no lugar competente o Irmão Secretario e Tesoureiro nos mesmos dias terão lugar às admissões de novos irmãos. Para maior brilhantismo a Irmandade convida a todos em geral para assistirem a esses atos de nossa Religião. Consistório da Irmandade, na cidade de Victória em 8 de setembro de 1870.

O irmão secretario J.C.S. Marinho

(Correio da Victoria, quarta-feira, 14 de setembro de 1870, n.71, p.4, grifos do autor – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

Não poderia deixar de apresentar outro anúncio que salientasse a importância das

festas para as Irmandades e para a sociedade espírito-santense:

FESTIVIDADE DE N. SENHORA DO ROZARIO DOS HOMENS PRETOS, EM SUA CAPELA DO MESMO NOME.

GLORIA IN EXCELSIS DEO. AVE MARIA GRATIA PLENA.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rozario dos Homens Pretos resolve festejar, ao presente ano, com a pompa devida a tão Excelsa Soberana, pela maneira seguinte: no dia 21 do corrente mês, terá lugar às 8 horas da noite, as vésperas, orando por essa ocasião o Ilmo. E Revdm. Sr. padre mestre vigário da freguesia Miscesláo Ferreira Lopes Wanseller: no dia 22, ao romper da aurora, uma girândola anunciará o dia da festividade de nossa Invicta Protetora: às 11 horas e ¾ da manhã, terá lugar a missa solene, orando ao Evangelho o Ilmo. e Revdm. Sr. padre mestre Joaquim de S. Maria Magdalena Duarte: as 4 horas da tarde desse dia sairá em procissão a nossa Excelsa Virgem para receber de seus inumerosos irmãos, devotos e devotas seus cumprimentos de amizade e respeito: às 8 horas da noite, terá lugar o solene TE-DEUM LAUDAMUS - orando por essa ocasião o nosso digno capelão o Ilmo. [sic] Revdm. Sr. padre mestre Manoel Rodrigues Bermude d’ Oliveira: finalizar os atos da Igreja com uma MAGNIFICAT à Nossa Excelsa Protetora? Antes do TE-DEUM terá lugar, no respectivo Cemitério, o OFFICIO pelos Irmãos defuntos. Em todos os atos da Igreja funcionará a música do Ilmo. Sr. professor Balthasar Antonio dos Reis: e na porta da Igreja tocará a música dirigida pelo Ilmo. Sr. Odorico José Mululo. Nos dias 21 e 22, estarão em o lugar competente os irmãos Secretario e Tesoureiro para receberem as jóias e anuais, e para admissão de novos irmãos: os mesmos receberão as esmolas e donativos que à nossa Soberana Protetora quiserem fazer seus imensos devotos. Nas

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noites de 21 e 22 serão levadas serão levadas a LEILÃO, na frente da capela, os brindes e mimos que se ofertarem à mesma SENHORA – Vitória 2 de Outubro de 1871.

Aureliano Manoel Nunes Pereira – Tesoureiro. João Corrêa dos Santos Marinho – Secretario.

(Correio da Victoria, sábado, 14 de outubro de 1871 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

Os anúncios, de modo geral, evidenciaram um extenso calendário de festas

religiosas para homenagear os padroeiros de cada Irmandade Religiosa. Nessas

ocasiões as procissões religiosas tomavam as ruas, passando de igreja a igreja,

entoando louvores e sermões, contribuindo decisivamente para a perpetuação da fé

cristã. Ressaltou, assim, a permanência da herança religiosa do período colonial no

século XIX, ou seja, do denominado “catolicismo barroco” (REIS, J.J., 1991): missas

“celebradas por dezenas de padres e acompanhadas por corais e orquestra”, como

também os “funerais grandiosos, procissões cheias de alegorias” e “[...] música,

dança, mascaradas e fogos de artifício” (REIS, J.J., 1991, p. 49).

Já em relação ao auxílio aos irmãos, ou seja, a caridade, Mariza Soares (2000)

afirmou que

Tal perspectiva da caridade fere de imediato a noção de filantropia, que está associada a uma ação praticada em benefício de outro, sem expectativa de retribuição. A caridade, no sentido de filantropia, é prestada pela agremiação aos necessitados, e não dos próprios confrades. [...] No compromisso de Santo Elesbão e Santa Efigênia não há menção a qualquer filantropia, apenas caridade no sentido de cumprir com o atendimento do próprio grupo, de acordo com o contrato, e sob pena de rompimento deste (SOARES, M.C., 2000, p. 167).

Os jornais espírito-santenses e a obra de Maria Stela de Novaes (1864)

evidenciaram o papel das Irmandades Religiosas de Homens Pretos e Pardos no

recolhimento de donativos para a compra de alforrias. Dessa maneira, a caridade

poderia permitir aos trabalhadores negros escravizados (homens pretos e pardos)

vislumbrarem a liberdade.

Diante do já exposto, essas Irmandades seriam espaços/lugares em que estes

sujeitos históricos puderam aproveitar para articularem uma organização étnica e

sociocultural, ou seja, de uma vida social reorganizada para enfrentar o cativeiro e

reverter ao seu favor às regras da escravidão. Dessa maneira, a caridade atenderia

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aos interesses dos senhores proprietários e as expectativas das elites intelectuais e

dirigentes, que se questionavam: “E qual é o meio de acabar a escravidão sem

quebramento da propriedade?” (Correio da Victória, quarta-feira, 14 de setembro de

1870, n. 71, p. 3 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES). Tais

interesses foram expressos pelas vozes dessas elites: “Só reconhecemos dois

meios: a libertação gratuita, e a libertação onerosa. [...] Tudo quanto sair dessa

esfera, é violência, é derrogação de um direito [direito de propriedade] ?” (Correio da

Victória, quarta-feira, 14 de setembro de 1870, n. 71, p. 3 – Arquivo Público Estadual

do Espírito Santo – APEES).

Na década de 70 do século XIX, tornou-se comum na imprensa a divulgação das

liberdades concedidas aos trabalhadores escravizados, muitas por iniciativas dos

próprios padres das Irmandades, muitas vezes realizadas em atos de batismo, e

outras por iniciativa das associações filantrópicas surgidas a partir das agremiações

religiosas. Sobre essas possibilidades, Maria Stela de Novaes (1864) contribui

informando que

No mesmo ano de 1871, na festa da Penha, os devotos de Nossa Senhora assistiram a uma novidade emocionante: - foi concedida a alforria a doze escravos oito menores e quatro adultos. O respectivo auto foi lido, na Missa festiva, com a declaração de que, daquela date em diante, eram livres os ventres de todas as escravas da Ordem Franciscano, na Penha e no Brasil. Assim, no Convento da Penha, em Vila Velha, a liberdade dos nascituros precedeu à Lei do Ventre Livre, decretada no mesmo ano, a 28 de setembro. Tinha porém a vantagem de não impor condições de tutela dos senhores, aos recém nascidos. Era verdadeiramente livre (NOVAES, 1964, p. 257).

Portanto, para os trabalhadores escravizados, livres e libertos, as Irmandades

Religiosas poderiam significar, no contexto da escravidão, uma brecha de liberdade,

mesmo que fugaz; possibilitando, então, manifestações de resistência ao controle

coercitivo exercido sobre suas vidas a serviço dos interesses senhoriais. O que

permite a adaptação da seguinte frase de Sidney Chalhoub (2003): “a cidade que

esconde é, ao mesmo tempo, a cidade que liberta” (CHALHOUB, 2003, p. 219),

resultando na seguinte assertiva: a Irmandade que esconde é, ao mesmo tempo, a

Irmandade que liberta.

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Não poderia deixar relacionar este tópico com a questão inicial deste processo

investigativo, principalmente considerando que as Irmandades eram espaços de

sociabilidade permeados pelo ler, pelo escrever e pelo contar, questionei, então: Se

poderiam ser espaços que possibilitaram aos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos se apropriarem dessas práticas culturais? Os estudos de Maria Stela

de Novaes (1964) permitiram vislumbrar uma possível resposta a esta questão ao

abordarem uma divergência de caráter religioso e sociocultural:

Continuava a imponência das festas cívico-religiosas, de 8 de setembro, já consagrado o “Dia da Cidade de Vitória”. Em 1876, quando a imagem histórica saía da matriz em procissão, a fim de percorre as praças e ruas, sob a veneração dos vitorienses surgiu uma divergência entre o vigário e o povo, porque o Pe. Mieceslau Ferreira Lopes Vanzeler, que estimava sinceramente um seu escravo, rapaz de quinze anos, desejava que o mesmo levasse a naveta e o turíbulo. A Irmandade do SS. Sacramento, porém, protestou: - Escravo não acompanha procissão!a procissão não sai! De custódia na mão, o vigário já se aproximava da porta do templo. Cresce a confusão. Formam-se partidos. A Irmandade de São Benedito do Rosário retira-se e a da Boa Morte não sai da igreja. Têm o apoio de outras Irmandades “piedosamente revoltadas” contra o vigário, posto de lado, porque defendia o princípio cristão da igualdade das criaturas humanas, perante Deus. Afinal, ainda de Custódia na mão; eis que o coração sacerdotal vence os preconceitos da sociedade: - Sobe o Padre Vanzeler num tamborete, ou num banco, e declara a liberdade de Antônio. Daquela hora em diante, os servo querido poderia acompanhar a procissão. Antônio Vanzeler, Antônio da Catedral, Antônio do Rosário, Antônio do Padre, Antônio Sacristão ... [sic] foi sacristão, até morte, a 28 de novembro de 1912. Profundo admirador de Dom Pedro II, no dia 2 de dezembro, infalível, mandava celebrar missa pelo grande monarca e convidava os amigos para assisti-la. Usava, na igreja, uma batina de seda preta. Falava latim e conhecia perfeitamente a liturgia, embora quase a nalfabeto (NOVAES, 1964, p. 271, grifos meus).

Foi preciso incorporar esta narrativa à história das tensões sociais do contexto da

escravidão. Tal situação passa pela reconstrução da organização de sobrevivência

dos indivíduos e dos grupos marginalizados e excluídos, bem como pelas nuanças

de relativa autonomia e de improvisação da própria sobrevivência.

Também não se poderia negar a presença de alguns estereótipos que reforçaram os

preconceitos, deram ênfase a diferença da cor, e impuseram o silêncio e a omissão

a esses sujeitos históricos. Muitos “Antônios” foram silenciados, já que seus

depoimentos foram registrados por terceiros que representavam o poder dirigente,

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sendo assim muitas vezes distorcidos e apresentando valores que reforçavam

estereótipos e preconceitos.

Nos anúncios da imprensa espírito-santense, no período de investigação proposto

aqui, as Irmandades Religiosas da Província do Espírito Santo possuíam as mesmas

características que foram pontuadas nos estudos de Mariza Soares (2000), apesar

apresentarem algumas nuanças peculiares. Dessa forma, essas características

possibilitavam a interação social de diversas camadas sociais diferentes, conforme

pode se perceber nos texto de Maria Stela de Novaes (1964):

Não podemos afirmar a data em que se fundou a Irmandade do beato Benedito, na Capitania do Espírito Santo. [...] devia ser posterior a 1686, visto como tudo seguia o exemplo da metrópole. [...] E, se a precedeu não podia ser contemporânea da instalação dos franciscanos, em Vitória, como os escravos e, com o tempo, pessoas humildes livres e, mesmo, de Frei Basílio Rower, o Santo era muito venerado. As pessoas mais importantes disputavam a honra de ser mordomos e juízes de suas festas. Nas Minas do Castelo, a Irmandade de São Benedito foi aprovada, em 1764, por Dom Antônio Maria do Desterro. Mais de setenta irmãos, entre livres e escravos, pagavam suas jóias, em ouro-em-pó. A imagem veio para o Itapemirim, [...]. Extinguiu-se a irmandade, em 1854. São Benedito (do Castelo) possuía ouro-em-pó, jóias e pequena casa de telha, animais e chão. É o que se lê na “Sentinela do Sul”, de 25 de janeiro de 1868. Cumpria-se portanto, no Espírito Santo, o mesmo costume do ouro-em-pó, registrado em Minas Gerais e outras zonas auríferas (NOVAES, 1964, p. 175).

Contudo, essa interação acontecia tanto num clima festivo como também por meio

de conflitos entres as confrarias, como por exemplo, na Província do Espírito Santo,

a rivalidade entre dois partidos – Caramurus e Peroás, descrita por Maria Stela de

Novaes (1964). A autora contextualizou o conflito:

Em 1832, a imagem do seu patrono [São Benedito], já canonizado, era venerada na igreja de São Francisco, e a Irmandade, em 1831, ocupava a antiga sacristia. Nesse tempo, somente o Guardião se encontrava no Convento. Não mais existia a comunidade. Ao acompanhar estas notas preliminares, resumidas embora poderá o leitor reconstituir mentalmente o cenário onde se desenrolavam os fatos históricos, origem dos dois Partidos religiosos que durante anos, dominaram a vida política e social da cidade de Vitória. Para maior elucidação, lembremo-nos de que, em fins de 1765, noutro morro distante, fronteiro, porém, ao de São Francisco, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos levantou a capela de sua Padroeira, na encosta denominada Pernambuco, no bairro Capixaba. [...] Quanto a relação com os Homens Pretos, lemos que, no Rio de Janeiro, antes de 1640, os escravos elegeram Nossa Senhora do Rosário, sua Protetora e, para se

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confraternizarem, mediante uma associação religiosa, formaram a Confraria, na igreja de São Sebastião, no Morro Castelo. Dessa Confraria, originou-se a Irmandade, que se reuniu-se posteriormente à de São Benedito. Pelo Alvará de 14 de janeiro de 1700, a Confraria obteve licença para construir uma igreja do Rosário, [...] . Um incêndio, há pouco, a destruiu. Em “Mulheres de Mantilha”, Joaquim Manuel de Macedo descreve as festas solenes à excelsa Padroeira dos escravos: - reis, rainhas, vultosa corte. Todos trajados de modo adequado e magnífico! Danças africanas (NOVAES, 1964, p. 175-176).

E em seguida descreveu-o: Recordemos o que se passou, na cidade de Vitória, em 1833: Frei Santa Úrsula retirou-se para o Rio de Janeiro. O substituto, Frei Antônio de São Joaquim, aliás muito surdo, repôs a imagem no altar. A 23 de setembro de 1833, pela manhã, aproveitando-se da solidão do Convento e da surdez do sacerdote, Domingos do Rosário, Antônio Mota e Elias de Abreu vieram pelo Porto dos Padres, seguiram pela Rua da Lapa, Ladeira dos Frades, chegaram à igreja e tiraram a imagem. Apressados, desceram a ladeira e seguiram pelo Pelames, Rua do Piolho, Largo da Conceição ... [sic] Bimbalharam, então, os sinos do Rosário. A imagem foi recolhida à guarda da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos,a o passo que os irmãos de São Francisco formaram dois grupos que se digladiaram. [...] Em alusão a um Partido Político da época e a três degredados do mesmo Partido sediado na Capital do País, que residiam na Fonte Grande, nas discussões à porta dos templos e nas ruas, o grupo fiel ao Convento recebeu do opositor a alcunha de “Rusguentos”. [...] Então os pescadores, ligando o Partido Caramuru (Rusguentos) ao peixe do mesmo nome, resolveram o caso, de modo comparativo com a mercadoria do seu ofício: - “Seus caramurus!” em represália e sendo o caramuru peixe sem valor, os Irmãos de São Francisco tomaram o nome de outro peixe, igualmente desprezado na Banca, para o apelido ridículo dos adversários: - “Seus Peroás.” [...] Ainda nesse ano (1834), a Irmandade de São Benedito do Rosário dos Homens Pretos, em cujo templo se conservou a imagem retirada espetacularmente do São Francisco, festejou a vitória de haver conseguido a aprovação do seu Compromisso, pela Carta da Regência Permanente, graças aos esforços do Cel. Dionísio Álvaro Rezendo e do Capitão João Crisóstomo de Carvalho. Este faleceu, em 1872, após, concorrer prodigamente para o embelezamento da igreja do Rosário e esplendor das festas Peroás. Seus escravos aprenderam música, a fim de cooperare m na Banda Rosariense ou Peroá, durante as festas que desafiar am o poder dos Caramurus. [...] Com a aprovação do Compromisso, extinguiu-se a esperança de reaver-se a imagem guardada no Rosário. Desistiram os Caramurus do seu intento e colocaram, no São Francisco, outra imagem do seu querido Benedito, esculpida carinhosamente pro Francisco das Chagas Coelho. Desde então, pode-se dizer, - a população da Vitória estava dividida no dois Partidos, com extraordinária rivalidade. Um procurava, em tudo, suplantar o outro, mormente nas festividades (NOVAES, 1964, p. 176-178, grifos meus).

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A análise dos jornais locais das últimas décadas do século XIX pôde confirmar esse

conjunto de assertivas, evidenciando a presença desta rivalidade, principalmente,

quando estes anunciavam seus festejos, disputando a mesma página ou o espaço

nestes impressos.

Minha intenção ao transcrever o texto de Maria Stela de Novaes (1964) é de

evidenciar a força que as Irmandades Religiosas exerciam sobre a sociedade e a

cultura espírito-santense, enquanto representantes dos interesses das camadas

dirigentes, ressentiam-se das lutas promovidas entre as diversas agremiações, das

lutas promovidas em seu interior e principalmente das lutas travadas nas tensões de

uma sociedade escravista.

Assim, procurei refletir sobre alguns “detalhes” do cotidiano dos trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos, a fim de observar mais de perto as práticas

culturais e as experiências desses sujeitos e suas táticas de luta pela liberdade do

corpo e da mente.

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CAPÍTULO 2

ENTRE O ABC E AS CORRENTES

Na tentativa de compreender as discussões sobre as medidas educacionais para os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, foi fundamental considerar que

desde o início da escravidão dos africanos no Brasil, sempre foi proibido a estes o

acesso ao ler, ao escrever e ao contar, afinal “ao senhor interessava que o escravo

aprendesse o mínimo necessário para obedecer às ordens da plantação” (VAINFAS,

1986, p.5).

Durante o período Imperial, mesmo que a Constituição de 1824 garantisse ensino

gratuito a todos, na prática ele se reduzia a alguns filhos dos homens livres,

principalmente os ricos. Essa restrição foi acentuada pelo Decreto 1331, de 1854 e o

Aviso Imperial 144, de 1864, que determinaram a “proibição de acesso à escola de

portadores de doenças contagiosas, escravos e não vacinados” (RIBEIRO, 1984,

p.48). Além disso, o Ato de 1834, ao conceder a autonomia legislativa às províncias,

permitiu a aprovação da lei que proibia ensinar a ler, escrever e a contar aos

trabalhadores escravizados, inclusive na Província do Espírito Santo, em 1835.

Confirmando essa exclusão, o censo de 1872 revelou que entre o número de

1.509.403 trabalhadores negros escravizados existentes, apenas 1.403 sabiam ler e

escrever; e acrescentou que menos de 1 por 1000, destes 958 eram homens e 445

eram mulheres. No que se refere à Província do Espírito Santo, apenas um

representante do sexo masculino era alfabetizado e nenhum do sexo feminino, e um

total de 22.658 analfabetos (CONRAD, 1978, p.358). Estes dados impuseram duas

questões, não tive condições de respondê-las, mas coloco-as para compartilhar com

meu leitor algumas das minhas incertezas e angústias: 1) Quem foi este único

trabalhador negro escravizado? (sem dúvida, caro leitor, esta questão também se

impõe a você); 2) Quais os critérios usados pelos censores para chegar a estes

dados supracitados?

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Não pretendo fazer nenhuma especulação em relação a estas questões. Assumo,

então, o risco de colocá-las sem a intenção de neste momento de resolvê-las.

Contudo, não poderia deixar de apontar para a uma investigação posteriori e traçar

algumas considerações que evidenciem a necessidade de elucidar estas e muitas

outras questões no contexto da interface escravidão e educação. É mais um desafio

que se coloca aos pesquisadores da História da Educação espírito-santense.

2.1 TÁTICAS DE SUBVERSÃO DA ORDEM

Considerando que as oportunidades educacionais foram historicamente negadas e

dificultadas para os trabalhadores negros escravizados, em particular, para mulher

negra trabalhadora, este quadro é compreensível, mas isso não significa que seja

aceitável. Principalmente, por levar em conta a possibilidade desses sujeitos

inventarem ou reinventarem sua história:

Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e representações estabelecidas. Tem que “fazer com”. Nesses estratagemas de combatentes existe uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espaço opressor. Destreza tática e alegria de uma tecnicidade (CERTEAU, 2004, p. 79).

Comparando estes números com os de outras províncias, pode-se perceber que

existe algo que não está explícito: afinal, qual a razão desta participação ínfima da

alfabetização entre os trabalhadores negros escravizados, especificamente na

Província do Espírito Santo? Até que ponto a possibilidade destes sujeitos

reinventarem sua história e criarem condições socioculturais de apropriação da

leitura, da escrita e do contar foi considerada?

Lanço estas questões, especificamente para denunciar a complexidade das relações

dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos para com os códigos de

leitura, escrita e dos números, pois esses sujeitos históricos atuavam de maneira

decisiva na construção de suas vidas, sendo assim, não se pode ignorar a

pluralidade de suas experiências socioculturais.

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Levando em consideração este conjunto de questões, é relevante acrescentar que já

existem estudos, conforme já mencionei, sobre a educação e alfabetização dos

trabalhadores negros escravizados: Eliane Peres (2002), Maria Cristina Wissenbach

(2002), Eduardo França Paiva (2003) e Cynthia Greive Veiga (2005).

Mesmo em uma sociedade escravista como a do Brasil Império, em que prevalecia

o analfabetismo (FREIRE, 2001), o dia-a-dia dos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos, principalmente o urbano, era permeado pela escrita enquanto

códigos sociais, que se caracteriza como atividade social cuja funcionalidade se

evidencia em todas as dimensões sociohistóricas.

Em Leituras (im)possíveis: negros e mestiços leitores na América português,

Eduardo França Paiva (2003)44, confirmou a possibilidade da presença da

alfabetização entre os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos:

Durante o século XVIII muitos livros entraram, legal e ilegalmente, na Capitania de Minas Gerais e foram apropriados de maneiras variadas pela população livre, liberta e escrava. Poucos eram, no meio da população total, aqueles que sabiam ler e escrever e a maioria eram compostos por homens brancos vindos do reino ou nascidos na América Portuguesa. Contudo, negros e mestiços alfabetizados foram mais comuns do que se costumou se acreditar durante muito tempo. Esses negros e mestiços letrados tiveram acesso direto a livros de variado cunho, comprando-os, herdando-os ou buscando-os nas bibliotecas particulares de pais, parentes ou conhecidos. Letrados não brancos, junto aos que ascenderam econômica e socialmente mesmo sem letramento – e que não foram poucos – atuaram fortemente contra a exclusão absoluta e a discriminação generalizada. Nesse sentido, foram responsáveis, em grande medida, por forjarem sociabilidades, relações políticas, estratégias de poder específicas daquela sociedade efetivamente mestiça (“em fase de pré-publicação”, enviado pelo autor via e-mail em 4 de fevereiro de 2005, às 9 horas).

As afirmações de Eduardo França Paiva são pertinentes, considerando,

principalmente, que os argumentos apresentados por outros estudos voltados para

essa temática, como por exemplo, os estudos de Wissenbach (2002) que trata

44 PAIVA, Eduardo França. Leituras (im)possíveis: negros e mestiços leitores na América portuguesa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL POLÍTICA, NAÇÃO E EDIÇÃO.BRASIL, EUROPA E AMÉRICAS NOS SÉCULOS XVIII-XX: O LUGAR DOS IMPRESSOS NA CONSTRUÇÃO DA VIDA POLÍTICA (FAFICH/UFMG) 07- 09 Abril, 2003.

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também do significado e do valor “mágico” e sociocultural do processo de

alfabetização e a socialização desta prática entre os trabalhadores negros

escravizados, na segunda metade do século XIX.

Cynthia Greive Veiga (2005) destacou que “a ausência do quesito cor na

documentação investigada entre 1835 e 1889 sugere a existência de uma escola

pluriétnica e corrobora os pressupostos das elites de civilizar a população

desfavorecida” (VEIGA, 2005, p.8).

Como já citei, a autora apontou para a proposição de que houve uma certa

homogeneização no tratamento deste grupo: “o Estado estabeleceu a

obrigatoriedade da freqüência à aula elementar e os instrumentos de fiscalização da

clientela alvo da aula pública: a população mestiça e pobre”. (VEIGA, 2005, p.10).

Assim, Veiga (2005), reforça o postulado que as questões raciais foram camufladas

no contexto dos problemas sociais.

Sob este viés, o presente capítulo se deterá ao exame do uso e aquisição do ler, do

escrever e do contar e o significado desse uso para a concepção que os

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos tinham de sim mesmo e do seu

cativeiro. Desse modo, não pretendo realizar um deslocamento, mas creio que a

partir deste exame será possível conhecer mais um dos aspectos particulares da

cultura, a vida e o modo de ser desses sujeitos históricos. Trata-se também de um

esforço teórico para não perdê-los de vista, principalmente, considerando que desde

a questão inicial, procurei evidenciá-los nas entrelinhas das representações da elite

intelectual e dirigente.

Conforme explicita Wissenbach (2002), a apropriação do processo de alfabetização

também se constituíram entre os bens mais cobiçados pelos trabalhadores negros

escravizados, bem como atestam os registros encontrados nos processo criminais

e inventários post-mortem por ela investigados. Além do valor mágico e

sociocultural, outros fatores contribuíram para incitar a e esses sujeitos históricos a

apropriarem das práticas de ler, de escrever e de contar, como por exemplo: a

possibilidade de usar essas práticas culturais para resolverem seus problemas

cotidianos, principalmente, os relacionados à compra e venda; bem como o prestígio

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social (possibilidade mínima, quando se trata de trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos). Dessa forma, a apropriação dessas práticas poderia ser lida como

símbolo de uma presença ou uma ausência de liberdade do corpo e da mente,

afinal estavam entre o ABC e as correntes da escravidão.

A análise da documentação referente à imprensa da Província do Espírito Santo

forneceu indícios que apontaram para essas possibilidades supracitadas. A exemplo

disso, o Correio da Vitória apresenta uma transcrição do Abolicionista, impresso da

província da Bahia confirma esta possibilidade: “Temos o prazer de noticiar que o Sr.

Vigário do Mares abriu uma escola noturna, para ensina a ler, escrever e contar ;

além disso, educar nos princípios da religião, os escravos que se lhe apresentarem

como permissão dos seu senhores” (Correio da Vitória, 30 de agosto de 1871, grifos

meus - Arquivo Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

Ainda neste contexto, Maria Stela de Novaes (1964) afirmou que

De acordo com o programa elaborado pelo Dr. Deolindo Vieira Maciel, instalou-se, a 17 de outubro de 1869, a Sociedade Abolicionista do Espírito Santo. Segundo Amâncio Pereira, essa entidade social tinha o escopo de “alforriar o maior número possível de escravos de ambos os sexos e de qualquer idade, e fazer deles cidadãos úteis, velando sua instrução religiosa, moral e literária , conforme as circunstâncias pecuniárias da mesma sociedade” (NOVAES, 1964, p. 252, grifos meus).

Reitero, então, a idéia que considero real a possibilidade da apropriação da leitura

e da escrita como um dos instrumentos presente nas práticas socioculturais dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, não somente como práticas

contestadoras, mas também silenciosas, estabelecendo nelas marcas de suas

táticas tanto para a adaptação como para resistência, com objetivo de conquistar a

liberdade do corpo e da mente, partindo da idéia de que são sujeitos históricos

capazes de reinventarem sua história.

Retornando à linha de proposição de Michel de Certeau (2004), as táticas seriam

ações individuais e espontâneas de resistência no cotidiano que acontecem fora do

campo do poder, ou seja, acontecem dentro do campo de um poder contrário.

Também de acordo com este autor, já as estratégias acontecem na esfera do próprio

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poder e de forma planejada. Penso, assim, que a apropriação da leitura, do

escrever e do contar pode ser considerada como táticas na luta pela liberdade do

corpo e da mente.

Desse modo, poderiam fazer uso do ler, do escrever e do contar e das

representações que lhes eram impostas por essas práticas, para outros fins,

subvertendo-as de acordo com seus interesses pessoais, “não as rejeitando ou

transformando-as (isto acontecia também), mas por cem maneiras de empregá-las a

serviço de regras, costumes ou convicções estranhas à colonização da qual não

podiam fugir” (CERTEAU, 2004, p. 94 e 95).

Sobre isso, Kátia Queirós Mattoso (1990) afirma que “a aparente amenidade das

relações que se estabelecem entre senhores e escravos, a semelhança de uma

adaptação da mão-de-obra obediente e humilde é, na verdade, uma forma eficaz e

sutil da resistência do negro face à sociedade que pretende despojá-lo de toda uma

herança moral e cultural” (MATTOSO, 1990, p. 103).

Nos últimos anos, a historiografia vem ampliando os estudos sobre as variadas

formas de resistência dos negros escravos, livres e libertos e revelando o quanto

eles foram sujeitos de sua própria história, sendo capazes de reelaborarem os

códigos sociais através de uma interpretação própria. Portanto, o conceito de

resistência não pode ser percebido somente no contexto de revoltas, fugas e

formação de quilombos, mas naquilo que acontece diariamente nas relações da

dimensão sócio-histórica e cultural dos trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos no Brasil escravista.

Conforme afirmou Eduardo França Paiva (2000), “a cada nova estratégia de

dominação, novas estratégias [táticas] de resistência são desenvolvidas e vice-

versa; [...]” tanto os trabalhadores escravizados adaptaram-se ao sistema quanto

este último adaptou-se aos primeiros, talvez com maior intensidade (PAIVA, E. F.

2000, p.59).

Assim, fez-se necessário situar relação escravidão e educação no contexto das

tensões, mediações dos interesses das elites intelectuais e dirigentes para melhor

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compreendê-la, permitindo, assim, o seu resgate das entrelinhas dos documentos

oficiais, ou seja, dos conteúdos normativos e coercitivos repletos de instrumentos de

controle social e de manutenção da ordem sócio-cultural e política.

2.2 AS TÁTICAS E ASTÚCIAS DE LUÍS, “O ESCRAVO”

Em relação à ordem de proposições e posições colocadas no tópico anterior, cito,

por exemplo, o caso de Luís (brasileiro e natural do Distrito de Carapina, pardo,

carpinteiro, escravo de Manoel Pinto Ribeiro, filho legítimo de Thomas) que fora

acusado de tentativa de estelionato45, na cidade de Vitória, na Província do Espírito

Santo, em 1859.

O inquérito policial de Luís, “o escravo”, me chamou atenção pelo auto de perguntas:

Qual seu nome, naturalidade, idade, estado, profissão, e lugar de sua residência? Respondeu chamar-se Luis, ser natural do Distrito de Carapina, com dezoito a dezenove anos de idade, solteiro, carpinteiro, e vide dos serviços do seu senhor naquele distrito. Perguntado quem havia mandado por ele respondente uma carta a Manoel Nunes Pereira, assinada por Joaquim Fraga, de Laranjeiras, pedindo a quantia de nove mil reis por empréstimo? Respondeu, que chegando a venda de Domingos Rodrigues Souto pediu a um caixeiro d’este de nome Francisco para lhe fazer uma carta a Manoel Nunes Pereira em nome de Joaquim Fraga morador em Laranjeiras, e o dito caixeiro imediatamente fez a carta, [...] levou ao [...] Manoel Nunes, o qual abriu a carta, e [...] respondeu que esperasse. [...] e com pouca demora veio o filho do dito Nunes [...] e o trouxe até a guarda da cadeia, onde o deixou. Perguntado para que era o dinheiro que na carta se pedia? Respondeu que era o Senhor Fraga, que pedira a ele respondente para mandar fazer a dita carta. Perguntado quando, e aonde falara com esse Fraga? Respondeu que falou em Carapina na semana passada. Perguntado se esse Fraga não sabe escrever para pedir a ele respondente que mandasse fazer semelhante carta? Respondeu que seu Fraga sabe escrever, e pediu a ele [...], por que no lugar aonde o encontrou não tinha papel, nem tinta pra escrever. Perguntado porque logo que chegou a esta repartição não declarou quem tinha sido a pessoa que escrevera a carta? [...] Respondeu que não declarou logo por não sabe isso o que era. E nada mais tendo perguntado e nem respondido, mandou o dito doutor Chefe de Polícia escrever este auto, que foi lido ao respondente, e achado conforme, pelo que assinou o mesmo Doutor Chefe de Polícia, fazendo a vez do respondente, por não saber ler, Manoel Cardozo da Silva (Processo 123, Fundo da Secretaria de Polícia, cx.652, 1859, p. 4 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

45 Fundo Secretaria de Polícia, cx. 652, grupo delegacia – 645, processo 123, 1859 – Crime de estelionato.

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O auto de perguntas evidenciou as representações do Chefe de Polícia em relação

a Luís, o “escravo”, porém permitiu nas suas entrelinhas conhecer as próprias

representações deste último, bem como perceber como se apropriou das práticas

de escrita.

Já o auto de perguntas feitas ao português, Francisco Fernandes Ciprestes, um

caixeiro de vinte anos de idade, que confirmou ter escrito a carta atendendo ao

pedido e as orientações de Luís, “o escravo”, após encontrá-lo em uma taberna ou

na venda (MACEDO, 200546). Isso demonstra que, mesmo declarando que não

sabia ler e escrever, o trabalhador escravizado teve autonomia par traçar toda a

drama e planejar a tentativa de estelionato.

É possível perceber a astúcia de Luís de forma mais explicita por meio do auto de

perguntas feitas a Adrião Nunes Pereira, filho do proprietário desse trabalhador

escravizado:

Respondeu, que o dito pardo Luís chegou ao armazém, e entregou a carta ao pai d’ele respondente, que abrindo-a leu-a, e entregou-a a ele respondente, que logo reconheceu não ser a letra do suposto autor da mesma, então seu pai perguntou ao dito pardo que havia mandado aquela carta, ao que o pardo respondeu, que quem a mandava era o senhor Fraga de Carapina, que se achava preso, e lhe pedira pra trazer a carta, e lhe levar a resposta. Então, o pai dele respondente manda que ele respondente leve nove mil reis, que na carta pedia e vá até a cadeia a fim de ver se o dito estava com efeito [ilegível] ali na cadeia, e cumprindo ele respondente a ordem de seu pai, saiu com o pardo e quando chegarão em frente do Palácio da Presidência [...] o dito pardo quis deixar a ele respondente, dizendo ter presa de ir faze umas compras, mas insistindo ele respondente para que o mesmo pardo dirigisse até a cadeia, eles chegaram; e porque ele respondente não achasse lá o dito Fraga, e visse que sendo essa mentir do dito pardo, disse ao comandante da guarda que ali detivesse o mesmo pardo, [...]Perguntado se esse Fraga de Carapina tem relações de comércio com pai dele respondente, e se costuma escrever pedindo gêneros, e mesmo dinheiro? Respondeu, que esse Fraga tem relações de comércio com o pai dele respondente, e costuma escrever-lhe sobre suas transações e pede as vezes dinheiro como se ver, da carta que ele respondente no sábado apresentou para se comparar com a letra da carta falsificada, e na qual pede a quantia de duzentos e cinco mil reis Processo 123, Fundo da Secretaria de Polícia, cx.652, 1859, p. 11 e 12 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

46 ”A venda não dorme: às horas mortas da noute vêm os quilombolas, os escravos fugidos e acoutados nas florestas, [...] E o vendelhão é uma regra a vigilância protetora do quilombola e o seu espião dissimulado que tem interesse em contrariar a polícia, ou as diligências dos senhores no encalço dos escravos fugidos” (MACEDO, 2005, p. 13)

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Luís, “o escravo”, e o caixeiro português foram acusados, porém o trecho do

documento que transcreve a pena não está legível, não sendo possível, então, saber

qual foi a pena atribuída aos dois réus. Todavia, o documento permitiu uma

aproximação mais detalhada dos aspectos físicos e culturais de Luís, “o escravo”,

forneceu indícios que possibilitaram conjecturar que este sujeito histórico desfrutava

de uma mobilidade espacial privilegiada. Também permitiu perceber quais eram as

suas formas de sociabilidade e interrelacioná-las com as formas de sociabilidade do

seu proprietário, Manoel Pinto Ribeiro e do suposto autor da carta falsa, Fraga de

Carapina. Diante disso, ficou claro que “numa sociedade marcada pelas relações

pessoais, estabelecer laços era essencial para a obtenção de um lugar, por mais

obscuro que fosse, no mundo dos livres” (MATTOS, 1998, p. 52).

Foi pertinente para o objetivo deste capítulo, perceber as relações estabelecidas

entre “Luís, o escravo”, com os códigos de escrita. Mesmo se apropriando desta

prática de forma indireta, por meio de “astúcias, seu esfarelamento em conformidade

com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável,

em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar” (CERTEAU,

2004, p. 94), mas por uma “arte de fazer com”, ou seja, de “invenção do cotidiano”

(CERTEAU, 2004). Assim, Luís, “o escravo”, se apropriou (fez uso) da escrita

estabelecendo uma autonomia do seu pensar e de sua própria concepção sobre o

mundo em que vivia reinventando suas formas de sociabilidade. Infelizmente o

documento não forneceu informações dos objetivos de Luís, “o escravo”, nessa

tentativa de estelionato e o que faria com dinheiro caso tivesse êxito no seu intento.

Para melhor compreensão da concepção de mundo dos muitos “Luís, o escravo”, se

fez necessário estabelecer a distinção dos componentes da sociedade que estavam

situados, e como enfrentavam suas necessidades variando conforme os tempos e os

lugares. Conforme afirma Carlo Ginzburg (2003a): “existe, antes de mais nada, o

nome; mas, quanto mais a sociedade é complexa, tanto mais o nome parece

insuficiente para circunscrever inequivocamente a identidade de um indivíduo”

(GINZBURG, 2003a, p. 172). Para o historiador, mesmo com a indicação de sinais

particulares sobre esses sujeitos históricos a possibilidade de erro ou substituição da

pessoa, continua sendo elevada, pois tanto os dados e as assinaturas poderiam ser

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falsificados tendo em vista a não existência de métodos mais seguros e práticos de

averiguação da identidade.

Além disso, havia o erro “de enfrentar a diversidade dos indivíduos à luz de opiniões

preconcebidas e conjecturas apressadas; dessa maneira, foi até agora impossível

fundar uma fisiognomonia científica, descritiva” (GINZBURG, 2003a, p.175).

Segundo o autor, fez necessário concentra-se “a sua atenção num dado muito

menos aparente – e nas linhas impressas nas pontas dos dedos encontrava a senha

oculta da individualidade” (GINZBURG, 2003a, p. 175).

Dessa forma, é possível apontar para as possibilidades de muitos dos “Luís, o

escravo”, sujeitos históricos silenciados reinventarem sua própria História e

procurando criar uma espécie de (re)significação pela existência e atitude, não pela

transformação e causalidade (História factual e linear), mas pela formação de

valores e concepções culturais de forma ativa na configuração de suas próprias

histórias (THOMPSON, 1990 e DAVIS, 1990). Muitos desses “Luís, o escravo”,

foram homens e mulheres “relegados a um lugar secundário na sociedade,

submetidos a atos de violência física ou moral” (PAPALI, 2003, p. 207) no transitar

entre o ABC e as correntes da escravidão.

2.3 UM RETORNO AO MEU PORTO INSEGURO E A OUTRAS IM AGENS QUE

QUEBRAM O SILÊNCIO

Neste tópico continuo transitando pela questão inicial deste processo de

investigação: Como foi possível aos trabalhadores negros escraviz ados, livres

e libertos apropriarem-se do ler, do escrever e do contar? Questão esta que foi

pertinente antes da realização da crítica as fontes, apesar da aparente mudança de

rumo, esta questão impulsiono-me a mergulhar na busca das experiências sociais

desses sujeitos silenciados na História.

Esse “mergulho” permitiu-me conhecer as experiências sociais desses sujeitos

históricos silenciados através do olhar e do escrever do outro, sendo ignorados em

um cotidiano permeado pela leitura, pela escrita e pelo contar. A exemplo disso,

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posso citar as imagens de Jean-Baptiste Debret (1978) e de George Ermakoff

(2004), que forneceram “sinais pictóricos” relevantes para abordagem desta questão

inicial, que não foi abandonada.

Desse modo, esses “sinais pictóricos” se sustentam e têm sua coerência discursiva

baseada em estratégias de dissimulação das representações do lugar de quem fala

(do pintor ou do fotógrafo) nas quais, semelhantes à imprensa, são consideradas

neste trabalho como mediadores da apreensão, expressão e representação, dando

ênfase em uma espécie de missão “civilizatória”, por meio da qual a “modelação

social” poderia ser imposta aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos e

demais sujeitos históricos excluídos.

As imagens de Debret não pertencem ao recorte cronológico proposto neste projeto

de pesquisa (são das primeiras décadas do século XIX), mas faço uso delas por

permitirem o surgimento das minhas primeiras inquietações sobre esta temática e

por apontarem para permanências de algumas práticas referentes ao contexto da

escravidão no decorrer da segunda metade do século XIX.

Além disso, é interessante considerar que essas imagens representam um olhar

repleto de fortes preconceitos raciais e culturais, e não possuía a preocupação de

evidenciar a voz dos trabalhadores negros escravizados submetendo-os a um lugar

de silêncio.

Dessa maneira, o meu objetivo na análise das imagens sob uma perspectiva

histórica foi de “quebrar esse silêncio”, para que se possa “ouvir” nas entrelinhas

destas imagens a voz dos trabalhadores negros escravizados, ou melhor, conhecer

a concepção de vida destes sujeitos históricos. Sem dúvida, esse quebrar do

silêncio foi relevante, pois permitiu vislumbrar as peculiaridades da relação

escravidão e educação, fornecendo indícios pertinentes para a elucidação da

problemática deste trabalho.

Cito a prancha nº 6 de Debret, Uma senhora brasileira em seu lar, que presentifica

três sujeitos por muito tempo silenciados pela História – a mulher, a criança e os

trabalhadores escravizados. Análise histórica evidenciou que estes três sujeitos

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simultaneamente encontravam em uma situação de submissão à estrutura

paternalista, escravista e machista da sociedade brasileira do século XIX. Assim,

estes sujeitos são apresentados e aprisionados em lugares e funções marginais e

degradantes, ou seja, são os excluídos (PERROT, 1988).

Jean Baptiste Debret (1978) salienta, mesmo que indiretamente, a presença do ler

no cotidiano desses sujeitos: “A moça da casa, pouco adiantada na leitura, embora

já bem grande mantém-se na mesma atitude de sua mãe, mas, colocada num

assento infinitivamente menos cômodo, esforçar-se por soletrar as primeiras letras

do alfabeto traçadas num pedaço de papel” (DEBRET, 1978, p. 185 e 186). Afinal,

a Cartilha além de ser o primeiro livro do aluno era o passaporte para a cultura das

letras (BOTO, 2004).

Figura 3 - Uma senhora brasileira em seu lar Fonte: DEBRET (1978, Prancha n. 6, p.184). Diante desse cenário, é interessante observar que os sujeitos históricos

presentificados nesta imagem, apresentam uma postura do corpo côncava e

inclinada, como também, apresentam as feições do rosto pouco iluminadas e os

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olhos fechados, ocupando um lugar de inferioridade no contexto desta sociedade

escravista e paternalista.

A mulher e a menina ocupam o centro da cena, em nível distanciado do chão, pois

estão sentadas em cadeiras com os pés mais altos, enquanto os trabalhadores

escravizados e as crianças negras são presentificados sentados no chão e

ocupando a superfície mais baixa que os sujeitos não escravizados (a mulher e a

menina).

É interessante mencionar que existe ainda uma luz, que provém da esquerda está

sobre esta mulher e a menina. A observação desses “detalhes” faz crer que o pintor,

em contraposição a esse lugar de destaque, colocou os trabalhadores negros

escravizados ocupando uma posição inferior, reiterando a visão que eram apenas

“peças” e “coisas”.

Enfim, todos esse detalhes estabelecem uma dicotomia entre o “ser branco” e o “ser

negro escravo”, que é reiterado pela presença imponente do chicote no cesto,

promovendo a aceitação dos valores estereotipados do pintor.

Convém ressaltar, que o ABC está localizado no centro da imagem e também está

localizado no centro do círculo formado por todos os sujeitos em postura côncava

em sua direção. Além disso, o ABC se impõe provocando o silêncio de todos e

mesmo que aparentemente absortos em suas atividades manuais, não se abstêm de

“ouvi-lo”.

Para Ana Maria de Oliveira Galvão (2002):

Pode-se considerar que vários fatores, destacando-se a leitura em voz alta, intensiva e coletiva e o papel desempenhado pela memorização, facilitada pelas situações de leitura e pela própria estrutura narrativa e formal dos poemas, contribuíam para que as relações entre analfabetos e semi-alfabetizados e a leitura de folhetos fossem marcadas pelo prazer e por um relativo desprendimento. Essas práticas permitiam a pessoas que, em sua origem, estavam pouco habituadas ao mundo da escrita, vivenciarem práticas de letramento, ou seja, experimentarem situações em que utilizavam as palavras escrita e impressa (GALVAO, 2002).

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Desse modo, considerando que a escola não era o principal locus educativo, essas

práticas poderiam acontecer nas ruas, oficinas, nos lares das “senhoras brasileiras”,

nas senzalas, nas “vendas”47. Enfim, caracteriza a relação dos que estão imersos

em um mundo com forte presença da oralidade e da palavra escrita (GALVÃO,

2002).

Assim, a imagem de Debret (1978), Uma senhora brasileira em seu lar, enfatiza o

papel da oralidade no acesso, no contato e na apropriação pelas camadas populares

aos tanto ao manuscrito como o impresso (DAVIS, 1990 e 1997 e GALVÃO, 2002).

Neste sentido, recoloco-me e aponto para a possibilidade dos trabalhadores negros

escravizados se apropriarem do ler, do escrever e do contar em espaços não

escolarizados, mesmo que seja apenas pelo ouvir. Tal afirmação aponta para uma

abordagem sobre o processo de letramento da população brasileira no passado,

sobre isso Ana Maria Galvão (2002) acrescenta que

Os modos de inserção dessas camadas da população no mundo da cultura escrita parecem estar muito mais vinculados a práticas orais de socialização do escrito, à circulação do manuscrito e a modos não-escolares de aprendizagem. Dessa maneira, pode-se considerar anacrônica a perspectiva de abordar os processos de letramento da população brasileira no passado somente a partir da análise da circulação do impresso, da freqüência da população à escola e das práticas de escrita (GALVAO, 2002).

A presença da palavra escrita foi evidenciada em outras pinturas de Debret, como

por exemplo, na prancha de nº 13, Vendedor de cestos, Debret (1978) descreve

É a esses negros carregadores, que passeiam com o cesto no braço e a rodinha dependurada a tiracolo, que se dá o nome de negro de ganho; espalhados com grande número pela cidade, apresentam-se imediatamente ao aparecer alguém à porta, tendo-se tornado tanto mais indispensáveis, quanto o orgulho e a indolência do português consideram desprezível quem se mostra no Brasil com pacote na mão, por menor que seja. E essa exigência vai tão longe, que na época de

47 Na obra “As vítimas-algozes – quadros da escravidão”, Joaquim Manuel de Macedo (2005), que teve a sua primeira impressão em 1869, destaca a importância das vendas como local em que os trabalhadores negros escravizados vivenciavam momentos de “liberdade imperfeita”, ou seja, mesmo escravizados poderiam apropriar de possibilidades permitidas somente aos livres. Macedo (2005) afirma que “o vendelhão é em regra a vigilância protetora do quilombola e o seu capitão dissimulado que tem interesse em contrariar a polícia, ou as diligências dos senhores no encalço dos escravos fugidos” (MACEDO, 2005, p.13)

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nossa chegada, vimos um de nossos vizinhos no Rio de Janeiro voltar para casa, dignamente seguido por um negro , cujo enorme cesto continha neste momento um lápis de cera para lacrar e duas penas novas (DEBRET, 1978, p.221. grifos meus).

Em vista disso, é possível afirmar os trabalhadores negros escravizados estavam

imersos no cotidiano de uma elite letrada, e em meio ao vai e vem, aspectos

importantes podem ser destacados como em relação à apropriação das práticas de

ler, escrever e contar, mas também o de raciocinar, de explicar, de observar, e

outras capacidades gerais em interação com outras situações mais complexas do

mundo letrado.

Figura 4 - Vendedor de cestos Fonte : DEBRET (1978, Prancha n. 13, p. 223).

Os estudos de Ana Maria Galvão (2002), os quais contribuíram com uma explicação

detalhada sobre a aprendizagem das habilidades básicas de leitura – a alfabetização

inicial – seja por processos autodidatas, seja por processos de escolarização formal,

afirmando que esses processos constituem o fator preponderante para que os

sujeitos se sintam mais habituados ao mundo letrado, fazendo dele parte

significativa de suas vidas (GALVÃO, 2002).

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A autora destacou, ainda, o nível de inserção dos sujeitos na cultura urbana como

elemento significativo para propiciar uma maior intimidade. Além disso, não realçou

só o “viver na cidade” como um mundo onde o impresso se encontrava em quase

todos os lugares, mas enfatizou também o papel ocupado pela própria rua e dos

demais espaços públicos de convivência que permitiram o desenvolvimento das

práticas de leitura e de escrita.

As explicações até aqui apresentadas são, em parte, conjecturais, permitiram

apontar para a possibilidade dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos

terem se apropriado das práticas de leitura e de escrita para resolver os seus

problemas do cotidiano, bem como para “se virar na vida” e no trabalho. Portanto,

poderiam servir-se das regras de dominação e reelaborá-las através das

“negociações” de convivência política e sociocultural. Isso também consistiu no

desenvolvimento de táticas de lutas individuais e coletivas em busca da liberdade do

corpo e da mente.

Outras evidências similares trouxeram preciosos indícios que contribuíram para o

“quebrar do silêncio”. Assim, não poderia deixa de citar também o texto explicativo

da prancha nº 32:

[...] Observa-se também que na classe das negras livres, as mais bem educadas e inteligentes procuram logo entrar como operárias por ano ou por dia numa loja de modista ou de costureira francesa, título esse que lhes permite conseguir trabalho por conta própria nas casas brasileiras, pois como seu talento conseguem imitar muito bem as maneiras francesas, trajando-se com rebuscamento e decência. Outras, que não dão para os trabalhos de agulha, dedicam-se ao comércio de legumes e frutas, instalando-se nas praças as mais ricas e donas de mercadorias chamam-se quitandeiras, situação que exige o ajudatório de um mulato ou de um negro livre , operário, par o pagamento de aluguel e das roupas; a atividade da quitandeira deve conseguir o restante e o lucro deve bastar ao abastecimento da mercearia e à aquisição de dois moleques que ela educa no trabalho ou no comércio de rua para com seus salários garantir os recursos da velhice. Em sua maioria, essas negras acabam casando com negros livres operários , com os quais vivem regularmente; muitas delas servem de mulheres a operários brancos , que nunca mais se separam delas. [...] Educadas com mais doçura e inteligência, como operários ou domésticos, esses negros apenas libertados eram procurados e assimilados aos brancos quanto ao salário (DEBRET, 1978, p. 294 a 296, grifos meus).

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Figura 5 - Negras livres vivendo de suas atividades e Vendedoras de aluá, limões – doces, de cana, de manuê e de sonhos Fonte: DEBRET ( Prancha n.32 e 33, p. 295).

A prancha nº 32, “Negras livres vivendo de suas atividades”, e prancha nº 33,

“Vendedoras de aluá, limões – doces, de cana, de manuê e de sonhos” são pinturas

de Debret (1978) que também permitiram o vislumbre dos espaços de interação

social entre trabalhadores negros escravizados, livres e libertos entre si e também

em relação aos brancos livres; bem com a sua inserção desses sujeitos no universo

cultural urbano - as atividades econômicas, as experiências de vida e a apropriação

de práticas culturais, como o ler, o escrever e o contar (leitura de placas de rua,

cartazes, propaganda de produtos, passar troco, leitura de almanaques e manuais

de costura, etc).

Dentro dos limites sociais nos quais esses sujeitos históricos se encontravam, essas

possibilidades supramencionadas, que não se limitavam ao espaço escolarizado e

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de sistematização do saber, mas estavam nas ruas, nas manifestações religiosas

das Irmandades de Homens Pretos e Pardos, e em outras manifestações culturais e

artísticas presentes nesse cotidiano sociocultural.

Diante de tal alegação, permito-me mais uma vez um exercício de interrelação

entre a razão e a e a emoção e, afirmo que essas imagens também presentificam

“cheiros, vozes, pregões, gestos, cantigas, grande parte das entoações e trejeitos do

quotidiano de quitandeiras sentadas em esteiras, de pito na boca ou percorrendo

caminhos, fazem parte dos discursos de sobrevivência que se perderam para

sempre” (DIAS, 1995, p.21).

Fotografia 1 - Simulação entre vendedora e comprador . JUNIOR, Christiano.Coleção Ruy Souza e Silva, de 1865 Fonte: ERMAKOFF (2004, p. 132). O vislumbre dessa interrelação também foi possível de ser apreciado a partir das

imagens apresentadas pela obra de George Ermakoff, como por exemplo: a

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fotografia de Christiano Júnior48, Simulação entre vendedora e comprador, Coleção

Ruy Souza e Silva, de 1865 (ERMAKOFF, 2004, p. 132) e a fotografia de Juan

Gutierrez49, Mercado na região entre a atual praça XV e a Igreja da Candelária,

Coleção Monsenhor Jamil Nassif Abib, de 1882 (ERMAKOFF, 2004, p. 171).

Fotografia 2: Mercado na região entre a atual praça XV e a Igre ja da Candelária . GUTIERREZ, Juan. Coleção Monsenhor Jamil Nassif Abib, de 1882. Fonte: ERMAKOFF (2004, p. 171).

48 José Christiano de Freitas Henrique Júnior atuou inicialmente em Maceió (AL), antes de se fixar no Rio de Janeiro (RJ) em 1864, dedicou-se principalmente ao retrato de estúdio, tornando-se muito conhecido pelas cartes de visite de tipos de negros produziu: O fotógrafo Christiano Junior ao retratar os negros urbanos do Rio de Janeiro, escravos ou alforriados, removeu-os de seus próprios contextos de vida e trabalho. Criou situações e moldou gestos, colocando esses homens e mulheres na condição de objetos diante de um cenário artificial, apenas com alguns elementos a lembrar os ofícios e atividades de cada um, transformando-os assim em modelos fotográficos (KOSSOY, 1993). 49 Juan Gutierrez de Padilla, nasceu nas Antilhas, provavelmente em Cuba, mas possuía nacionalidade espanhola, foi proprietário da Photographia União, situada à Rua da Carioca 114 (1880/91), e, posteriormente, da Companhia Photographica Brazileira, situada à Rua Gonçalves Dias 40 (1892/97), no Rio de Janeiro (RJ). Com a Proclamação da República se naturalizou brasileiro. Foi o primeiro fotografo a chegar em Canudos (2/12/1897).De 1892 a 1897 produziu vistas do Rio de Janeiro, vendidas principalmente para turistas brasileiros (ERMAKOFF, 2004).

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Apesar de apresentarem cenas simuladas pelo fotógrafo, estas fotografias também

permitiram conjecturar aspectos sugestivos da autonomia dos trabalhadores negros

escravizados em uma situação adversa imposta pelo cativeiro. Além disso,

evidenciaram que mesmo tendo suas vozes silenciadas, esses sujeitos se

expressavam pelo olhar, pelos gestos e pelo corpo e pelas suas “mil maneiras de

jogar/desfazer o jogo do outro” (CERTEAU, 2004, p. 79).

As “mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro” são caracterizadas pela

atividade sutil, tenaz, resistente, ou seja, por uma arte de golpes, de lances que

alteram as regras de espaço opressor (CERTEAU, 2004). Assim, a escravidão se

fazia sentir na coexistência de livres e escravizados em universo permeado pelas

tensões do cativeiro, principalmente no desempenho de atividades consideradas

mais aviltantes.

Os textos, que acompanham essas imagens, evidenciaram as possibilidades desses

sujeitos históricos reinventarem sua história, mesmo que contraditórios entre si, e,

colocados em confronto com a posição de que os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos possuíam sua própria concepção de mundo. A

exemplo disto, posso citar o texto de Debret sobre (1978) a prancha n. 21,

“Vendedores de capim e de leite”:

[...] O negro vendedor, embora bronco, ante a necessidade de calcular a fim de evitar uma correção em caso de engano, não demora em descobrir o meio de conseguir, ilicitamente, um copo de cachaça sem diminuir, entretanto, a importância a que está obrigado. Assim é que, no caminho, acrescenta ao leite um copo de água, na presença de seus companheiros e na própria venda em lhe fornecem a aguardente. Longe de nós a idéia de considerá-lo o inventor desta fraude! Esta não passa de uma imitação de outra mais; importante feita pelo seu senhor [...] (DEBRET, 1978, p. 2).

As invenções e reinvenções seriam essas “maneiras de fazer” que constituem “as

mil práticas”, pelas quais esses sujeitos históricos se reapropriaram do espaço

organizado pelas técnicas da produção sociocultural (CERTEAU, 2004).

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Sobre isto, Debret se contradiz ao explicar a prancha n. 23, “Mercado da rua

Valongo”50, afirmando que “às vezes, entre esses trabalhadores negros escravos

recém-desembarcados, encontram-se negros já civilizados, que fingem de chucros e

dos quais precisam desconfiar, pois dissimulam certamente quaisquer imperfeições

físicas ou morais, que impediram [sic] fossem vendidos diretamente” (DEBRET,

1978, p. 258).

Figura 6: Vendedores de capim e de leite Fonte: DEBRET, 1978. Prancha 21, p. 248).

Essas táticas definem-se como “trampolinagem, palavra que um jogo de palavras

associa à acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar no trampolim, e como

trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos

contratos sociais” (CERTEAU, 2004, p. 79).

50 Mercado de negros escravos no Rio de Janeiro , entreposto entre o mercado da África e o Brasil.

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Portanto, mesmo representando os trabalhadores negros escravizados como seres

incapazes de formulação de idéias autônomas e imitadores passivos dos valores

culturais e normas coercitivas dos seus senhores, Debret permitiu a apropriação de

que esses sujeitos históricos foram capazes de criarem formas de invenção cultural

autônoma individual ou coletiva e que foram capazes de reinventarem possibilidades

de experiências de vida, como também de constituírem suas famílias e tecerem

espaços de sociabilidade.

Figura 7- Mercado da rua Valongo Fonte: DEBRET (1978, prancha n. 23, p. 259).

O percurso realizado a partir das “imagens que quebram o silêncio” permitiu olhar

nas entrelinhas em que o contexto histórico e o imaginário social se enquadravam

na tensão imposta pela escravidão. Dessa maneira, busquei também, por meio

dessas imagens, uma aproximação com os valores dos trabalhadores negros

escravizados, de suas concepções de vidas e de suas experiências e aproximações

com a liberdade tão desejada, confrontando com as concepções das elites

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intelectuais e dirigentes em relação aos projetos de dominação sobre esses

trabalhadores, evidenciando, assim, os focos dessa tensão.

Procurei, então, nas fissuras indícios sobre a importância do ler, do escrever e do

contar para os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos. Desse modo,

essas imagens permitiram descortinar

O processo propriamente histórico de suas vidas em sociedade revela papéis informais, a mudança, o vir a ser, e se opõe ao domínio dos mitos e das normas culturais. É o desvendar dos espaços [...] conquistados e não prescritos, por isso em grande parte calados ou omitidos nos documentos escritos. Os papeis propriamente históricos [...] podem ser captados nas tensões, mediações, nas relações propriamente sociais que integram [...] histórias, processo social, e podem ser resgatados das entrelinhas, das fissuras e do implícito nos documentos escritos [e nas imagens ou sinais pictóricos] (DIAS, 1995, p. 50).

Assim, as experiências cotidianas dos trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos possuem múltiplos significados que permitem estabelecer uma aproximação

entre escravidão e educação, não necessariamente associado ao processo de

escolarização, mas principalmente as práticas educativas cotidianas voltadas para a

sua formação enquanto trabalhador e sujeito histórico.

Dessa forma, essas imagens quebraram o silêncio imposto pelos estereótipos e

pelas representações vinculados à urdidura mais concreta de mediadoras tensões

sociais do processo de escravidão e presentes nas fontes oficiais, nas quais

imagens idealizadas e atuações preestabelecidas parecem reforçar-se uma às

outras.

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TERCEIRA PARTE

AS GRANDES TENSÕES:

TRABALHO, MODERNIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

O tapete é o paradigma que chamamos a cada vez, conforme os contextos, de venatório, divinatório, indiciário ou semiótico. Trata-se, como é claro, de adjetivos não-sinônimos, que no entanto remetem a um modelo epistemológico comum, articulando em disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo empréstimo de métodos ou termos-chave (GINZBURG, 2004, p. 170).

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167

CAPÍTULO 1

“O TAPETE”

Neste capítulo, especificamente, procurei estabelecer a distinção dos componentes

da sociedade em que os sujeitos desta pesquisa – trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos e os representantes das elites intelectuais e dirigentes

estavam situados por meio de uma escala macro das grandes tensões que

permeavam as últimas décadas do século XIX – trabalho (escravidão e imigração),

modernização e educação. Assim, “poderíamos comparar os fios que compõem

esta pesquisa aos fios de um tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a comportar-

se numa trama densa e homogênea” (GINZBURG, 2003a, p. 170).

1.1. AS GRANDES TENSÕES NA DIMENSÃO NACIONAL – TRABALHO

(ESCRAVIDÃO, IMIGRAÇÃO), MODERNIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

As grandes tensões estavam presentes nos discursos das elites das diversas

províncias do País, permitindo conjecturar que determinaram o destino das medidas

educacionais da província espírito-santense, influenciando, ou até mesmo

desorganizando, a configuração da economia e da sociedade brasileiras nas últimas

décadas do século XIX. Estas questões, sem dúvida, permearam as medidas

educacionais das últimas décadas e não podem ser vistas sem fazer relação com os

acontecimentos políticos, sociais, econômicos e educacionais na dimensão nacional.

Dimensionar a totalidade (o “tapete”) se fez necessário no sentido de conduzir a

melhor compreensão do que estava acontecendo na Província do Espírito Santo,

apesar de suas particularidades e historicidade próprias, permitindo vislumbrar o

contexto político e o imaginário social em que se enquadrava o processo de criação

das medidas legislativas voltadas para escolarização dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos. Conforme afirma Ginzburg (2002a), “a coerência do

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desenho é verificável percorrendo o tapete com os olhos em várias direções”

(GINZBURG, 2003a, p. 170).

Dessa maneira, o objetivo fundamental deste capítulo refere-se à elucidação das

concepções da elite intelectual e dirigente em relação a medidas educacionais para

os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos no contexto dessas grandes

tensões nacionais, pois a educação para as camadas populares foi estabelecida de

forma planejada e acompanhada pelo poder político desta elite.

Dentro de tal perspectiva, a educação constituiu-se em um instrumento privilegiado

de controle e “modelação social” das camadas populares, especificamente dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos. Na realidade, ela se articulou ao

próprio ideário das últimas décadas do Império, fortemente permeado pelo

positivismo, cientificismo e pela medicina higienista. Além disso, contribuiu para a

construção e consolidação de um "projeto civilizatório" que tinha como finalidade: a

“formação” de uma nação e de um povo que deveriam ser “moldados”.

Para atingir tal objetivo, estabeleci três eixos analíticos: trabalho (escravidão e

emigração), modernização e educação, denominando-os como o conjunto das

grandes tensões na dimensão nacional, visando, assim, o enfoque em todas essas

dimensões no contexto nacional das últimas décadas do século XIX.

1.2 O CONGRESSO AGRÍCOLA DO RIO DE JANEIRO DE 187 8

Levando em consideração o “tapete”, posso afirmar que as grandes tensões que

permeavam a dimensão nacional, nas últimas décadas do século XIX, estavam

voltadas para os interesses da “grande lavoura” e para as grandes mudanças -

trabalho (escravidão e imigração), modernização e educação -, que culminaram nos

debates realizados em cinco sessões no Congresso Agrícola no Rio de Janeiro,

entre 8 a 12 de julho de 1878: uma resposta do Governo Imperial às pressões

políticas das camadas proprietárias em torno das questões que apontavam para o

fim da escravidão.

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Neste contexto, o pronunciamento do Imperador D. Pedro II (Fala do Trono) em 22

de maio 1867 “foi para a emancipação como um raio, caindo de um céu sem

nuvens” (NABUCO, 2000, p. 43). Joaquim Nabuco (2000) afirmou que:

Desde o dia em que a Fala do trono do gabinete Zacarias inesperadamente, sem que nada o anunciasse, suscitou a formidável questão do elemento servil, até o dia em que passou no Senado, no meio de aclamações populares e ficando o recinto coberto de flores, a lei Rio Branco, houve um período de ansiedade, incômoda para a lavoura; e para os escravos, pela razão contrária, cheia de esperança . A subida do visconde de Itaboraí em 1868, depois dos compromissos tomados naquela Fala e na célebre carta aos abolicionistas europeus, significava: ou que o imperador ligava então, por causa da guerra [Guerra do Paraguai], maior importância ao estado do Tesouro que é a reforma servil, ou que em política, na experiência de Dom Pedro II, a linha reta não era o caminho mais curto de um ponto a outro. Como se sabe também, aquele ministro caiu [sic] sobretudo pela atitude assumida nesta mesma questão pelos seus adversários, e pelos amigos que o queriam ver por terra. A chamada do visconde de São Vicente para substituí-lo foi sinal que a reforma da emancipação, que ficará para sempre associada entre outros com o nome daquele estadista, ia de fato ser tentada; infelizmente o presidente do Conselho organizou um ministério dividido entre si, e que por isso teve que ceder o seu lugar a uma combinação mais homogênea para o fim que a nação e a Coroa tinham em vista. Foi esse o ministério Rio Branco. Durante todo esse tempo de retrocesso e hesitação, o Partido Liberal, que inscrevera no seu programa em 1869 “a emancipação dos escravos”, agitou por todos os modos o país, no Senado, na imprensa, em conferências públicas. “Adiar indefinidamente a questão”, dizia no Senado aos conservadores naquele ano o senador Nabuco, presidente do Centro liberal, “não é possível que nisto consente o Partido Liberal, que desenganado de que nada fareis há de agitar a questão”. [...] Como podia a agitação de um dos grandes partidos nacionais, havia pouco ainda no poder, em favor dos escravos, deixar de inspirar-lhes a confiança de que a sua liberdade, talvez próxima, talvez distante, era em todo caso certa? O grito de combate que repercutia no país não era “a emancipação dos nascituros”, nem há senão figuradamente emancipação de indivíduos não existentes; mas sim “a emancipação dos escravos”. Os direitos alegados, os argumentos produzidos, eram todos aplicáveis às gerações atuais. Semelhante terremoto não podia restringir o seu tremendo abalo à área marcada, desmoronava o solo não edificado sem fender a parte contígua. O impulso não era dado aos interesses de partido, mas à consciência humana, e quando de uma revolução se quer fazer uma reforma, é preciso pelo menos que esta tenha o leito bastante largo para deixar passar a torrente. Tudo o que se disse durante o período da incerteza, quando a oposição tratava de arrancar ao Partido Conservador a reforma que este lhe sonegava

constitui outras tantas promessas feitas solenemente aos escravos. Na agitação não se teve o cuidado de dizer a estes que a medida não era a seu favor, mas somente em favor de seus filhos; pelo contrário, falava-se das gerações atuais e das gerações futuras conjuntamente, e na bandeira levantada do Norte ao Sul não havia artigos de leis inscritos, havia apenas o sinal do combate em uma palavra, emancipação (NABUCO, 2000, p. 46 e 47, grifos meus).

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O Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878 surgiu como resposta às grandes

tensões e às reivindicações dos grandes agricultores que solicitavam ao Governo

Imperial que tomasse providências em relação ao problema da falta de mão-de-obra

e de capitais para a grande lavoura. Além disso, este evento teve como objetivo

encontrar soluções em relação à crise da lavoura do Império brasileiro, diante da

imprevisibilidade do prelúdio do fim da escravidão, a elite econômica (os agricultores

produtores de café) precisava ter o controle da situação.

Os achados da maravilhosa invenção dos caminhos de ferro, do telegrafo e igualmente do telefone trazem a este país grave e complexa multiplicidade de interesses; portanto, o orador admira o tino administrativo do Sr. Ministro da agricultura, quando nessa multiplicidade de interesses teve a feliz idéia de consultar o eco do interior ; porque divergindo os habitantes do nosso país em crenças religiosas, costumes e hábitos, finalmente na multiplicidade desses referidos interesse, só consultando o acordo de seus delegantes [sic] poderá o poder central bem conduzir as rédeas do governo (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, nº 163, p.4, grifos meus - Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Penso que essa interferência do governo seja compreensível considerando que os

proprietários de terras e produtores de café (“ecos do interior”) não só detiveram

apenas o controle sobre o poder público, da mesma forma também faziam parte

dele. Assim, para a realização deste evento, o Governo Imperial convocou os

agricultores representantes das províncias que mais produziam café no País - Rio

de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.

Segundo André Luciano Simão (2005), os registro das Atas do Congresso Agrícola

de 1878 do Rio de Janeiro (publicadas pelo O Diário Official do Império do Brazil a

partir de 9 de julho a 14 de julho de 1878) contou com um número de

aproximadamente 400 representantes dos agricultores do país, sendo que apenas

278 assinaram o livro de presença e 121 inscreveram-se sem assiná-lo.

Acredito que, provavelmente, o número dos envolvidos nestas reuniões tenha sido

superior, visto que muitos dos presentes representavam associações agrícolas ou

organizações de fazendeiros de várias freguesias das províncias convidadas para

participarem.

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André Luciano Simão (2005) afirmou, ainda, que no primeiro dia participaram 279

agricultores e representantes do poder público, nos demais dias não aparecem

observações em relação ao número de participantes. O autor acrescentou que

essas Atas apresentaram 78 discursos.

Todavia, observei que a presença dos discursos dos representantes da Província do

Espírito Santo foi muito pequena em relação às demais Províncias, o que não

significa que essa participação teria sido de fato ínfima, pois indícios apontaram para

o possível silenciamento a qualquer oposição aos interesses da grande lavoura de

café.

O Diário Official do Império do Brazil , em 14 de junho de 1878, anunciou o

Congresso Agrícola no Rio de Janeiro de 1878, esclarecendo os objetivos e as

questões que seriam as bases deste evento:

Os interesses da grande lavoura, a qual, na situação atual é ainda a base da riqueza e prosperidade nacional, ocupam seria e vivamente a atenção do governo imperial que, reconhecendo a importância que exercem nas condições econômicas o país, está disposto a animá-los e promovê-los em tudo, quanto depender da ação dos Poderes Públicos. [...] O Governo Imperial que grande proveito resultará em uma reunião de lavradores, em que examinem e discutam os diversos e mais urgentes problemas que entendem com os melhoramento da agricultura, não sendo a menor das vantagens o fato de associar-se as medidas, que se houver de tomar, a responsabilidade dos mais interessados na solução dos pontos sujeitos ao estudo. Seria para desejar que nessa reunião fossem simultaneamente atendidas as necessidades de toda a lavoura nacional, e generalizados os benefícios, que se projetam. Mas, não sendo possível, nem praticável prove-las de uma vez, porquanto tais necessidades variam da grande para a pequena lavoura, assim como de uma para outra zona, e nem são idênticas, relativamente aos seus diversos ramos; ficará o campo dos estudos limitado por ora à grande lavoura das províncias do Rio de Janeiro, S. Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, de onde mais facilmente os agricultores poderão concorrer ao congresso (Diário Official Brazil, Parte Oficial, sexta-feira, 14 de junho de 1878, n.165, p.1 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Por meio de edital publicado na imprensa, o Ministro da Agricultura, Comércio e

Obras Públicas convocou os agricultores e divulgou as diretrizes da organização do

evento:

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[...] 1º O Congresso Agrícola reunir-se-á nesta cidade no dia 8 de Julho do corrente ano, no lugar que previamente será anunciado. 2º Será composto de lavradores nacionais ou estrangeiros que, por convite ou espontaneamente, a ele quiserem concorrer, com tanto que oito dias antes do prazo marcado declarem, em carta fechada dirigida à secretaria da agricultura, a intenção de comparecer. 3º Os lavradores, em seus respectivos municípios, poderão designar um ou mais delegados para representá-los no Congresso Agrícola. 4º O Congresso Agrícola será presidido pelo ministro da agricultura, comércio e obras públicas, sendo auxiliado por dois secretários eleitos pelo mesmo congresso na primeira reunião. 5º Será objeto de deliberação do congresso tudo quanto diretamente puder interessar à sorte da lavoura, [...] 6º As discussões do Congresso Agrícola, versarão sobre proposições claras e sucintamente formuladas. 7º Depois de suficientemente discutidas essas proposições serão votadas e adotadas como resoluções, para em forma de memória serem presentes ao governo imperial. 8º Todos os trabalhos do congresso serão mencionados nas atas de suas sessões, que se publicarão no Diário Official. 9º O Congresso Agrícola poderá, antes de dissolver-se, nomeará uma comissão permanente, órgão de seus interesses e reclamas perante o governo, que ouvirá sempre que julgar conveniente. 10º Com a discussão e votação dos pontos sobre que for consultado, e feita a nomeação da comissão de que trata o parágrafo antecedente, serão encerrados os trabalhos do Congresso Agrícola pelo seu presidente. Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comercio e Obras Púbicas, em 12 de junho de 1878 (Diário Official Brazil, Parte Oficial, sexta-feira, 14 de junho de 1878, n. 165, p.1 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

A apresentação dos discursos e a publicação dos textos dos congressistas tiveram

como premissa as sete questões distribuídas pelos organizadores do evento:

[...] convindo especialmente esclarecer o governo sobre os seguintes pontos:

I. Quais as necessidades mais urgentes e imediatas da grande lavoura? II. É muito sensível a falta de braços para manter ou melhorar ou

desenvolver os atuais estabelecimentos da grande lavoura? III. Qual o modo mais eficaz e conveniente de supri r essa falta? IV. Poder-se-á esperar que os ingênuos, filhos de e scravas,

constituam um elemento de trabalho livre e permanen te na grande propriedade? No caso contrário, quais os meios para reorganizar o trabalho agrícola?

V. A grande lavoura sente carência de capitais? No caso afirmativo, é devido este fato à falta absoluta deles no país, ou à depressão do crédito agrícola?

VI. Qual o meio de levantar o crédito agrícola? Convém criar estabelecimentos especiais? Como fundá-los?

VII. Na lavoura têm-se introduzido melhoramentos? Quais? Há urgência de outros? Como realizá-los. (Diário Official Brazil, Parte Oficial, sexta-feira, 14 de junho de 1878, n.165, p.1, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

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De acordo com Peter Eisenberg (1989), a terceira e a quarta perguntas atingiram o

centro das preocupações – a necessidade de mão-de-obra. Penso que essas

preocupações apresentaram como pano de fundo a manutenção da ordem

socioeconômica e política, sendo necessário, então, reconstruir a propriedade rural

sobre as bases do trabalho livre, o que foi considerada a principal missão dos

representantes neste Congresso.

De acordo com tal perspectiva:

Proposta de resolução apresentada ao Congresso Agrícola. O Congresso Agrícola resolve que a comissão permanente, que ele tem de eleger como seu órgão, represente ao governo e ao futuro corpo legislativo, quais sejam as verdadeiras necessidades da lavoura, e os meios de satisfazê-las, indicando especialmente o seguinte: Art. 1ºQue a primeira necessidade da lavoura é a aquisição de trabalhadores livres mediante salários módicos, e de trabalhadores que se habituem ao nosso clima, e ao sistema de cultura extensiva, que em geral, e por muitos anos será quase a única do Brasil; para cujo fim de modo algum se poderá contar por enquanto com os europeus, devendo-se antes preferir, como meio de transição de trabalhadores entre o trabalho servil e o de todo livre, a aquisição de trabalhadores de outros povos de raça ou de civilização inferior à nossa própria; §1º Que por enquanto os trabalhadores que poderão ser úteis à nossa lavoura são em primeiro lugar os africanos (não e reclamações ), e em 2º (quando de todo não se possa obter estes) os lavradores bem escolhidos, e não daqueles que vivem sobre as águas ou como em formigueiros nas grandes cidades da China, os quais, com razão, já estão desacreditados neste país, é realmente não servem. §2º Que estes colonos devem ser importados pelo Estado (não apoiados ), devendo-se para este fim aproveitar a oficialidade e marinhagem da armada nacional, e adquirir transportes apropriados à boa acomodação dos imigrantes. E os colonos assim importados devem ser muito bem tratados nos portos do Império destinados ao seu desembarque. § 3º Que em cada porto onde desembarcarem os referidos colono haja empregados públicos especialmente encarregados do seu tratamento, da sua matrícula ou arrolamento, e de lhes procurar colocação por meio de contratos de locação de serviços; devendo estes contratos ser registrados não só aí, como também, por meio de extratos enviados ex-oficio à respectiva autoridade, na paróquia onde tenham de ser cumprido. [...] (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, n.163, p. 2, grifos meus - Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Tal resolução priorizou o incentivo à imigração estrangeira como alternativa para

solucionar o problema da mão-de-obra enfrentado pela grande lavoura de café e,

além disso, evidenciou uma suposta falta de capacidade atribuída aos africanos,

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aos coolies51 e aos chins52. Porém, a conjugação de diversos interesses possibilitou

o aparecimento de posições divergentes a esta resolução e aumentou o poder de

pressão dos participantes do Congresso, culminando nos discursos pronunciados e

nos textos publicados no Diário Official do Império do Brazil.

Dessa maneira, esses discursos e textos evidenciaram as grandes tensões e o

desvendamento das concepções da elite intelectual e dirigente sobre os rumos que

deveria ao trabalho, ao processo de modernização e à educação do país.

1.3 OS DISCURSOS DOS “ECOS DO INTERIOR”

No decorrer das cinco sessões, vários discursos foram pronunciados e muitos textos

com as respostas ao questionário foram publicados. Não me detive na análise dos

procedimentos utilizados na construção desses discursos, como por exemplo: os

seus dispositivos e os seus recursos retóricos, suas estratégias de persuasão, de

sedução e de manipulação; bem como na presença de exortações, de narrativas, de

confirmações e de refutações utilizadas na construção dos argumentos

pronunciados no Congresso; preocupei-me apenas em relacionar as “falas” dos

“ecos do interior” com os objetivos deste estudo.

De acordo com os postulados de Carlos Ginzburg (2002) os discursos “não são

outra coisa além de tentativas conjecturais destinadas a captar a realidade”

(GINZBURG, 2002, p. 87), podendo também revelá-la ou velá-la e estabelecer

ambivalências.

Assim, para compreendê-los, relacionei-os às grandes tensões do Brasil Imperial,

nas últimas décadas do século XIX (trabalho (escravidão e imigração),

modernização e educação), evidenciando que a posição assumida pelos “ecos do

interior” representava os interesses das elites intelectuais e dirigentes e dos grandes

agricultores produtores de café.

51 Trabalhadores braçais provenientes da China ou da Índia. 52 Chineses.

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Dessa maneira, tentei construir uma descrição que estabelecesse os fundamentos

desses discursos, de modo possibilitar as condições mínimas de entendimento, para

que esses não fossem desqualificados ou perdessem o sentido. Para isto,

considerei o pensamento de Eni Orlandi (2001) ao afirmar que o discurso é uma

palavra em movimento e, é um dizer que tem relação com outros dizeres realizados,

imaginados ou possíveis.

Considerei tanto o discurso explícito, como também o implícito, ou seja, aquilo que

não foi dito, que foi silenciado (ORLANDI, 1992), como por exemplo, aqueles que

camuflaram estereótipos e preconceitos. Quanto aos discursos explícitos foi

interessante observar que a sua compreensão foi seriamente prejudicada em

conseqüência de não sido possível identificar o tom que os oradores usaram para

impressionar e sensibilizar a sua platéia.

Já os discursos implícitos foram desvelados na medida que procurei ir além da

visão dos congressistas em relação às questões norteadoras do evento, procurei,

então, verificar o que intrinsecamente relacionavam-se aos valores, aos

estereótipos, aos preceitos e aos preconceitos morais, étnicos e éticos tanto dos

oradores enquanto sujeitos ou representantes de um grupo.

Na realidade, os discursos foram articulados ao próprio pensamento das últimas

décadas do século XIX, fortemente permeados pelo positivismo, cientificismo e pela

medicina higienista. Desse modo, cada orador construiu e assimilou as questões

norteadoras a partir de seus conhecimentos, suas vivências, suas crenças, seu

grupo social, sua cultura e história de vida, enfim, foram homens do seu tempo.

1.3.1 Adentrando os discursos

Os discursos dos “ecos do interior” permitiram observar como os representantes da

elite intelectual e dirigente lidaram com a questão escravocrata nas últimas décadas

do século XIX, e, apesar de um discurso de integração, reforçaram os estereótipos

negativos e construíram um processo perverso de exclusão dos trabalhadores

negros.

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Muitos dos discursos pronunciados no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de

1878 reavaliaram o significado da utilização da mão-obra dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos no contexto das transformações socioeconômicas das

últimas décadas do século XIX. Como por exemplo, posso citar o discurso do “eco

do interior” Joaquim Antonio de Carvalho Agra (Niterói):

Ilmo.e Exm. Sr. Presidente do Congresso Agrícola. – Tendo de reunir-se no dia 8 de Julho corrente os lavradores nacionais e estrangeiros que têm de compor o Congresso Agrícola convocado pelo Exm. Sr. Ministro da agricultura, e no qual têm de ser apresentadas considerações que tenham a esclarecer o governo imperial sobre os interesses da lavoura: satisfazendo ao quesitos apresentados que são objeto de deliberação do mesmo Congresso, o abaixo assinado também lavrador, apresenta esta humilde idéia que julga ser de interesse à lavoura e ao país. Quanto ao 1°, 2º e 3º quesitos responde o abaixo assinado: A criação de uma lei que regule o domínio geral das terras as que se acham ocupadas com as que se forem ocupando, sendo nestes aforamentos preferidos os possuidores de benfeitorias que já se achem estabelecidas nas mesmas terras, e com esta medida desenvolvida conhecerão todos a grande vantagem que dela resulta; ao governo o grande rendimento para o Estado; ao povo a garantia de propriedade, com a qual fica livre de demandas injustas e odiosas, porque a primeira base sólida de uma nação é o território da mesma; se este tem um valor real, tem aquela uma renda firme e os povos sua garantia, como acontece. Com esta medida influirá de modo a imigração que será abundante e espontânea e com isso lucrará a lavoura que encontrará auxílio e abundância de braços nos imigrante, por isso que com tal medida todos terão garantia no seu trabalho, visto como o imigrante que estabelecer-se em um ou mais prazos aforados só tem por única obrigação satisfazer anualmente ao Estado a pensão módica que lhe for estipulada como foro do prazo ou prazos que ocupar; enquanto este imigrante não poder colher de sua lavoura própria os meios de subsistência, o governo lhe fornecerá todo o necessário por espaço de oito meses, não percebendo o imigrante pensão alguma do governo; e cinco anos depois do imigrante estabelecido deverá indenizar o governo das despesas que tiver feito, sendo os terrenos que lhe forem dados livres de foro pro espaço de 10 anos. Além do que fica dito poderá o imigrante trabalhar de parceria com aqueles vizinhos que lhe convier, e com isso desaparecerá a muito sensível falta de braços que evita a melhora e desenvolvimento dos atuais estabelecimentos da lavoura que só conta com o rotineiro trabalho do braço escravo ordinariamente feito de má vontade. Ao 4º quesito: Não pode se esperar que os ingênuos filhos de escravas constituam um elemento do trabalho livre e permanente na grande propriedade, por isso que concorrem muitas circunstâncias, e, além disso o número desses ingênuos torna-se limitadíssimo, em 1º lugar pela morte de muitos deles; em 2º pelas alforrias das mães das quais não se podem separar; em 3º pelo grande lapso de tempo a esperar pelos seus serviços; em 4º pela educação licenciosa e animada por essa liberdade que os autores a não sujeição e trabalho; e finalmente por muitas outras causas que para isso concorre e seria longo em relatar.

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O abaixo assinado solicita a V. Ex. a bondade de mandar ler perante o Congresso esta idéia, humilde e simples, porém, mesmo assim a apresenta, pelos desejos que nutre de ver prosperar o país. Niterói, 6 de julho de 1878. Joaquim Antonio de Carvalho Agra.(Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, p.3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Também se destacou a preocupação com o trabalho escravizado, apresentado

como “rotineiro” e “ordinariamente feito de má vontade”, ou seja, como um entrave

ao processo de transformação econômica. Na verdade, o que se pretendia era

corrigir os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, ou seja, afastá-los de

um meio social permissivo e degradante, afinal fazia parte do “projeto civilizatório”

manter a ordem hierarquia socioeconômica, ou seja, o controle sobre o trabalho e a

vida desses trabalhadores.

No texto anteriormente citado, ficou evidente, também, a preocupação em valorizar o

trabalho do imigrante estrangeiro como alternativa de reorganização do trabalho

livre. Simultaneamente, havia uma preocupação em efetuar a transição do trabalho

escravizado para o trabalho livre, assunto que juntamente com a questão da

disponibilidade de capitais, tornou-se o cerne dessas discussões. Entretanto, o

pensamento sociopolítico da elite intelectual e dirigente estava conectado a um

projeto de modernização e uma preocupação com os procedimentos de “modelação

social” dos trabalhadores livres, especificamente os descentes de africanos.

Assim, foi pertinente observar a desqualificação do trabalho escravizado associado à

ociosidade, a imagem do selvagem embrutecido e dotado de raciocínio curto

(SCHWARCZ, 1987). Além disso, implicitamente havia a presença de uma

preocupação com as questões raciais, especificamente com a tentativa de

branqueamento da sociedade em uma perspectiva de um “futuro cada vez mais

branco” (SCHWARCZ, 2000, p. 31).

Dessa maneira, as medidas legislativas implicitamente um lugar predeterminado, e,

insignificante aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, podendo “ser

identificadas ações que procuram explicitar a exclusão e a marginalização dos

negros e mestiços e desarticulara manifestações de preconceito explícito e

camuflado” (SCHWARCZ, 2000, p. 95).

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Em outro discurso, que diferentemente do anterior, apresentou-se favorável ao

incentivo ao trabalho nacional do negro recém-liberto, do Sr. Pedro Dias Gordilho

Paes Leme53 (representante da província do Rio de Janeiro), algumas

considerações relacionadas à lavoura brasileira (assunto que segundo ele mesmo

afirmou estudava há 14 anos):

[...] É sabido que os elementos essenciais para a lavoura são justamente estes: capitais e braços . Braços temos com 10 milhões de habitantes, não há razão para pedi-los ao estrangeiro; e quanto a capitais, é preciso criá-los. Como? Pelo trabalho. Não se pode improvisar, decretar capitais. [...] Há ainda outro meio: a garantia de propriedade . Cumpre reformar a legislação que se refere à propriedade. O processo é longo nas hipotecas e dispendioso. O orador é apologista da colonização nacional, mas em pequena escala. O operário nacional precisa ser guiado, educado, co mpelido mesmo (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, n.163, p. 2, grifos meus - Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Assim, o discurso supramencionado forneceu indícios pertinentes em relação ao

pensamento da elite intelectual e dirigente sobre a importância da educação para a

formação dos trabalhadores nacionais e apontou para o desdobramento de medidas

educacionais como instrumentos do poder público no desenvolvimento de um

projeto de educação para o trabalho que tinha como finalidade prepará-lo para a

nova ordem econômica emergente e corrigi-lo por meio de uma prevenção moral.

Portanto, foi possível conjecturar que o esforço da instrução pública deveria se

apresentar para além da instrução elementar e deveria desenvolver um projeto

moralização dos trabalhadores negros recém-libertos, pois conforme Paes Leme

afirmou: “o operário nacional precisa ser guiado, educado, compelido mesmo”.

Sobre isto, a voz de outro “eco do interior”, Sr. José da Silva Figueira (freguesia de

Santo Antônio de Pádua), ao apresentar as suas respostas ao questionário deste

Congresso (publicadas no Diário Official do Império do Brazil) também forneceu

pistas sobre o pensamento da elite intelectual e dirigente em relação às questões

voltadas para a formação do trabalhador nacional. Afirmou, ainda, ser uma

necessidade das mais urgentes e imediatas da lavoura seria a disponibilidade

53 É interessante observar que o mesmo foi autor do texto “Agricultura americana em 1876”, publicado na coluna especifica do Ministério da Agricultura, redigido em 4 de agosto de 1877 e publicado entre 5 a 9 de janeiro de 1878 no Diário Official do Império do Brazil, ocupando em média duas a três páginas do jornal.

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estratégias coercitivas: “colonizando os nacionais por meio de uma lei que os sujeite

ao trabalho, e ostensiva aos proprietários, que se obrigarão a não acolhê-los de

agregados senão para empregá-los em seus cultivos, e sendo pais de família,

trabalharão tantos dias na semana, ele e seus filhos” (Diário Official do Império do

Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, n. 163, p. 3 – Biblioteca Pública Estadual do

Espírito Santo).

Tal afirmação evidencia o reconhecimento citado por Robert W. Slenes (1999) “de

que o ‘aburguesamento’ do modo de ser do trabalhador livre não aconteceria por um

processo natural, mas dependeria da ‘tutela’ da própria burguesia e do Estado”

(SLENES, 1999, p. 141). O mesmo autor menciona ainda que:

Na Europa e nos Estados Unidos nesse período, os grupos dominantes e os intelectuais e profissionais a eles ligados elaboraram estratégias para levar a “disciplina ao domicílio”, como parte de uma tentativa de criar novos valores entre as classes populares, permitindo dessa forma um controle mais eficaz sobre seu trabalho ” (SLENES, 1999, p. 141).

Robert W. Slenes (1990) apontou para as mudanças nas práticas disciplinares no

processo de transição do trabalho escravizado para o trabalho livre, que sem dúvida,

contribuíram para a modelação social do trabalhador nacional.

Sr. José Figueira ao comentar o “4º ponto” do questionário – sobre a possibilidade

dos ingênuos filhos de mulheres trabalhadoras escravizadas continuarem a trabalhar

como livres e independentes na grande propriedade – respondeu: que seria

possível, mas sob a condição de “que haja lei que os obrigue por mais nove anos,

mediante jornal estipulado com as mesmas condições e completa emancipação nos

21 anos, podendo ser dispensados, quando justifiquem terem alcançado meios para

si tratarem convenientemente” (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de

julho de, 1878, n. 163, p. 3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Este posicionamento forneceu pistas para que se pudesse corroborar a “tensão”

entre escravidão e educação postulada nos estudos de Marcus Vinicius Fonseca

(2002 a e b) e nos estudos de Maria Aparecida Papali (2003), que evidenciaram a

Lei do Ventre Livre de 1871 como mote para as elites intelectuais e dirigentes

desencadearem o debate sobre a educação para o trabalho.

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No pensamento de Papali (2003):

A partir de 1871, com a Lei do Ventre Livre, uma nova modificação aprofundou o projeto filantrópico, com a ingerência de médicos e sanitaristas e atuação cada vez maior dos juristas sobre a vida dos menores carentes. Os médicos incorporaram cada vez mais a idéias higienistas e preventivas, as quais iam buscar em congressos europeus. Os juristas, adotando teorias que explicassem a criminalidade ou a “vadiagem”, foram ao encontro dos grandes debates que o tema suscitava em toda a Europa, no bojo dos ventos modernizantes. [...] Outra questão que passou a constar das apreensões das elites dirigentes do Império, suscitando discussões e debates, diz respeito à educação e instrução escolar que deveriam ser ministrados aos mais carentes, até então tão distantes dos bancos escolares quanto das preocupações a respeitos. Foi a partir também de meados do século XIX que tais questões tornaram-se relevantes (PAPALI, 2003, p. 122 e 123).

Foi no contexto das discussões sobre as conseqüências da Lei do Ventre Livre

(1871) que surgiram as principais questões postas em debate tanto no Congresso

Agrícola do Rio de Janeiro como no Congresso Agrícola de Recife, ambos

aconteceram em 1878:

Art. 1o: Os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. §1o: Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de rec eber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar- se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completo s. No primeiro caso o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de trinta anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de trinta dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor (BRUNO (org.), 1979, p. 291 e 292, grifos meus).

Em seus estudos, Maria Aparecida Papali (2003) observou que o artigo supracitado

da Lei do Ventre Livre (1871) teve como objetivo de definir a condição de livres para

os filhos de mulheres escravas. Além disso, apresentou outro objetivo que foi o de

determinar que destinos teriam tais crianças e jovens até os 21 anos de idade.

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A autora também salientou que o mesmo artigo iniciava um processo de orientações

dadas no sentido de se deixar a cargo do senhor das trabalhadoras escravizadas a

criação dos ingênuos, garantindo-lhes moradia e alimentação, em troca deveriam

prestar serviços gratuitos após os 8 anos de idade como forma de pagamento.

Essa situação evidenciou a preocupação das elites intelectuais e dirigentes em

relação às conseqüências socioeconômicas e políticas da Lei do Ventre Livre (1871)

e contribuiu para gerar um clima de desestabilização e insegurança entre os

senhores proprietários dos trabalhadores escravizados em relação à possibilidade

de culminar uma “falta de braços” para a lavoura.

Simultaneamente, as discussões suscitadas no Congresso Agrícola do Rio de

Janeiro de 1878, acentuaram as preocupações em relação vinda dos trabalhadores

imigrantes europeus:

Sobre uma base tão instável, que estabelecimentos sólidos se poderá fundar? É ponto que deve ser tratado com máxima prudência. Na questão de braços, cuja aquisição todos desejam, manifesta-se igual discordância, quanto à procedência. Os que preferem a importação do trabalhador europeu, contando coma inteligência e perícia do operário e também com o estímulo que é próprio do trabalho livre, não desconhece que a elevação do salário é condição indispensável para essa classe de trabalhadores, que, habituados a certos confortos de vida civilizada, carecem de partilhar dos lucros da produção uma quota maior que os remunere do aumento de suas despesas. Além disto cumpre observar que a tendência natural é o emigrante europeu não é para ser prestar ao serviço de assalariado, mas, sim para se constituir também propriedade. E, se por acaso a ele se sujeitam ou se empregam nas fazendas pelo sistema de parceria, fazem-no por tempo limitado como mera transição (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, n.163, p.2, grifos meus - Biblioteca Pública Estadual do Estado do Espírito Santo).

Sem dúvida, esse conjunto de proposições pertencentes ao relato acima atribuía ao

Estado as condições de efetivar a medidas legislativas necessárias para incentivar a

sujeição do trabalhador livre por meio de atitudes coercitivas. Tais medidas deveriam

estar subordinadas à representação de um pensamento que priorizava a

modernização da lavoura por meio do uso de máquinas e de trabalhadores

preparados para manuseá-las, assim, deveria atender às necessidades da

racionalidade capitalista.

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Retomando as principais questões pontuadas nesses discursos pronunciados no

decorrer da programação do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, foi

possível observar que surgiram posicionamentos que rejeitaram o aproveitamento do

trabalhador negro liberto por acreditarem que poderia dilacerar todo o projeto

socioeconômico implantado pela elite intelectual e dirigente.

Conforme já mencionei, alguns desses discursos argumentaram uma suposta falta

de capacidade atribuída aos trabalhadores negros recém-libertos de se adaptarem

ao projeto modernizador na economia brasileira. Mesmo assim, posso afirmar que

encaminharam resoluções no sentido de investir na educação como solução para a

falta de “braços” e na preparação da mão-de-obra deveria ter condições de

acompanhar este projeto modernizador da sociedade. Porém, foi interessante

observar que, nos termos de uma interpretação mais profunda sobre esses

discursos se fez necessário ter em mente outras ordens de questões relacionadas

com essa “tensão” presente na interface escravidão e educação.

A primeira delas seria relativa à preferência pela mão de obra do imigrante europeu,

levando em conta não só a procedência desses trabalhadores, como também as

condições que favoreciam a essa possibilidade: o apoio financeiro do Governo

Imperial e conhecimentos técnicos que esses trabalhadores possuíam; além disso,

os imigrantes europeus, atenderiam as expectativas implícitas relacionadas as

políticas de branqueamento da sociedade brasileira.

Assim, esta proposição pode ser confirmada pelos discursos dos congressistas, por

exemplo, do Sr. Manoel Ribeiro do Val (província do Rio de Janeiro) que defendeu a

necessidade de investir na colonização estrangeira, ao afirmar que:

É portanto [sic]a boa colonização educada e fundada em terreno próprio quem nos há de ensinar e trazer a produção e a indústria que precisamos para alimentar e libertar nossas vias de comunicação que não podem viver nem prosperar independentemente delas. O que as nossas colônias precisam, é de diretores experientes, patriotas e de coração que compreendam as necessidades dos colonos, o fim útil e civilizador da colonização e com ela que havemos de reformar a ordem social, moral e física (Diário Official do Império do Brazil, quarta-feira, 10 de julho de 1878, nº 164, p.6, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Estado do Espírito Santo).

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Isto posto, uma pergunta se fez necessária para a construção desta análise: Como

se explica essa preferência pela mão-de-obra estrangeira no Congresso Agrícola de

1878 em um País onde predominava a população de trabalhadores livres neste

período (censos de 1872 e 1874)? Afinal, qual o pensamento da elite intelectual e

dirigente sobre essa ordem de questão?

O discurso do mesmo congressista forneceu indícios que permitiram a interpretação

sobre esta situação-problema que se colocou de forma pertinente:

Também deve-se olhar para a falta de braços; mas estes se adquirem com capitais e é uma necessidade remediável. Enquanto houver escravos à venda supridos pela lavoura onerada ou por qualquer outra fonte a lavoura desembaçada recorrerá a eles, e na falta à imigração estrangeira, porque a imigração nacional não serve para o serviço de nossas fazendas. (Apoiados e não apoiados.) O nosso povo é de um natural indolente e não se presta geralmente ao ser viço da agricultura . Os operários nacionais entendem que nele se degradam e não o querem prestar , preferindo comer lá no seu canto um pedaço de rapadura e beber uma xícara de café, a adquirir por meio de trabalho agrícola nas fazendas os meios de alimentarem-se melhor em suas choupanas. É preciso, portanto, promover a imigração estrangeira , sem interferência do governo, mas pela iniciativa individual. Quem precisa de colonos, mande buscá-los; forme-se associações de poucos e de muitos, que se incumbam da imigração e o governo que as auxilie, não criando embaraços nas alfândegas (apoiados); dando entrada à essa gente livre, desembaraçada; não opondo tropeços à sua introdução no país (Diário Official do Império do Brazil, quarta-feira, 10 de julho de 1878, n.164, p.4, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Os “ecos do interior” apresentaram uma proposta interessante e inovadora para

época, porém os argumentos apresentados por eles, eram implicitamente repletos

de juízo de valor em relação aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos

e aos brancos pobres, e caracterizados por expressões pejorativas: ociosidade,

barbaridade, habituados a miséria e imersos na ignorância.

Isto demonstrou que o trabalho escravizado foi visto como algo degradante,

indolente e ineficiente e o trabalhador negro escravizado relacionado com a

ociosidade. Posição reiterada pelo uso de adjetivos que expressaram a alteridade

de forma estereotipada e preconceituosa: vagabundos e instáveis no trabalho.

Assim, os discursos implícitos não permitiram que as decisões avançassem, ficaram

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circulando e circulando, e o debate se enrijeceu e análise da situação foi

prejudicada.

Por outro lado, outros pronunciamentos dos participantes afirmavam que “quanto ao

trabalhador nacional, em todo o caso, bem aproveitado será um prestimoso

elemento para nossa lavoura tem contra si o fato de se não prestar a um serviço

continuado e aturado” (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de

1878, n.163, p.2 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Assim, os discursos articulados no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878

são indícios que apresentaram e respaldaram a falta de estímulo para o trabalhador

livre nacional:

[...] Quem vive nas nossas grandes cidades não conhece o povo brasileiro; para conhecê-lo é preciso ir dentro dos matos e encontrá-lo alimentando-se como os produtos espontâneos do solo, e recusando trabalhar nos estabelecimentos rurais do solo, e recusando trabalhar nos estabelecimentos rurais porque entende que o salário que se lhes dá é muito pequeno. Se houver da parte do governo promessa e garantia de prêmios, os trabalhadores brasileiros virão buscar trabalho na agricultura (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, nº 163, p.3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Além da argumentação do desinteresse pelo trabalho, foi traçado um argumento que

objetivava mostrar que o trabalhador nacional precisava de estímulos, como, por

exemplo, o aumento de salários e prêmios. Esses argumentos para os agricultores

foram considerados embaraços, principalmente, no sentido de acarretar maiores

gastos.

Em relação a essa ordem de proposições, Peter Eisenberg (1989) apontou para

duas hipóteses: primeiramente, “um tipo atribui ao elemento nacional uma

incapacidade ou falta de vontade de participar no setor exportação”; depois, “outro

tipo aponta as circunstâncias fora do controle do próprio elemento, que constituíram

barreiras insuperáveis, impedindo sua participação na economia do café”

(EISENBERG, 1989, p. 230).

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O autor apontou, também, para a taxa de reprodução da população livre de cor ser

insuficiente, para a questão da ociosidade e para a indolência que fazia parte do

estereótipo da população livre; e, por não serem proprietários da terra utilizavam

técnicas e ritmos de trabalho insuficientes para o desenvolvimento da lavoura.

No Congresso Agrícola de 1878 também foi mencionada a questão da preparação

para as intempéries:

[...] a agricultura está irremissivelmente [sic] subordinada à ação do tempo. O relógio das estações é que lhe indica os momentos fatais; qualquer manobra precoce ou tardia pode importar a perda de uma colheita. Em tais condições, confiar a sorte da lavoura somente a um elemento incerto, como é o trabalho nacional, que, sem o estímulo das necessidades impostas pela civilização, com dificuldade se entre a um serviço continuado, não é ainda o modo, na opinião de alguns, de resolver o problema do trabalho (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, nº 163, p.3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Peter Eisenberg (1989) chamou atenção para outra explicação, que atribuiu à

escravidão o desinteresse do elemento livre para o trabalho no setor de exportação,

principalmente, porque temia enfrentar uma organização do trabalho ainda

fundamentada na escravidão, ou seja, que não atendessem às expectativas da

modernização tão defendida pela racionalidade capitalista.

O autor afirmou, ainda, que essa questão ainda não foi respondida e merece ser

investigada, e, assim, limitou-se a apontar para a reflexão a respeito. Neste sentido

não buscou a exaustão do tema, mas evidenciou outras possibilidades de olhar

sobre essas tensões.

No Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878 foi salientada, entre os debates,

a possibilidade de se aproveitar a mão-de-obra do imigrante asiático. As críticas

passaram pelas questões raciais, sendo os imigrantes asiáticos depreciados de

modo geral, porém elogiados quando comparados aos trabalhadores negros.

Evidenciou-se, assim, que existe algo nesta situação que não foi revelado, poderia

ser, implicitamente, uma tentativa de priorizar os interesses da lavoura do Oeste

Paulista, representados neste sentido pelo Club de São Carlos, que participou

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efetivamente dessa discussão. Isto pode ser percebido a partir de muitos

pronunciamentos, especificamente, em relação aos coolies.

Outros discursos apontaram para a possibilidade de se aproveitar a alternativa da

mão-de-obra do imigrante asiático, por exemplo, na conferência do Sr. Blacklaw,

inglês, representante da lavoura de S. Paulo, que administrava a fazenda da

Angélica e esteve por quinze anos em Ceilão, onde teve oportunidade de ver e

praticar o trabalho asiático feito por coolies. No decorrer do seu discurso fez

menção a possibilidade se optar pela mão-de-obra asiática, que já tinha sido

adotada com êxito em outros países:

[...] Mas ainda que o nobre ministro da agricultura possa celebra um contrato para obter das Índias britânicas, convém pondera que o coolie não é um colono. O governo da Índia não o deixa vir para aqui sem um contrato, no qual se estipule que lhe paga a passagem de volta. O coolie, portanto, não ficará aqui definitivamente estabelecido e localizado. Admitido, porém, que eles aqui fiquem, serão uma ra ça pior do que a dos negros? Não, é uma raça muito sup erior à dos negros ( apoiados, muito bem); uma raça igual à nossa, com a diferença de ter a cor bronzeada; eles têm o sembl ante e o cabelo iguais o nosso, e, estando bem pintados, não se pod e distinguir se são europeus ou asiáticos. O corpo dos coolies, que ele sempre conservam untados 54de azeite, não é grosso como o do negro, e eles todos os dias tomam banho nos ribeirões; são a sseados (Diário Official do Império do Brazil, domingo, 14 de julho de 1878, n.168, p. 5, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Não poderia deixar de citar este relato, principalmente para ressaltar tanto as

representações em relação aos próprios coolies como um dos sujeitos históricos

que interessam neste trabalho – os trabalhadores negros escravizados.

Em relação aos coolies a posição específica deste orador é de valorização destes

enquanto mão-de-obra alternativa para as nossas lavouras, porém ao se referir aos

aspectos culturais, procurou semelhanças desconsiderando as diferenças, ou seja,

os analisou a partir da cultura ocidental, neste sentido continuava sendo

representado como o outro.

54 O corpo untado com óleo era uma observação feita principalmente ao se referir aos negros, pois significava que teriam um proteção natural em relação a exposição ao sol aos exercerem os trabalhos na lavoura.

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Já em relação aos trabalhadores negros escravizados, estes foram depreciados em

todos os sentidos, indiferentes de serem escravizados, livres e/ou libertos. Mas de

modo geral, predominou a rejeição a alternativa de demanda da mão-de-obra dos

coolies.

A tese defendida no texto pronunciado na conferência do Sr. Blacklaw é de uma

representação da sua convicção da inferioridade dos trabalhadores negros em

todos os aspectos - humano (físico), social, cultural, científico - e também como

mão-de-obra, ou seja, de forma sincrônica e anacrônica, destacando os traços

físicos (como cor, semblante, cabelos) e higiene.

É interessante notar que, por meio da representação do outro, os congressistas

articulavam discursos que expunham também a sim mesmos em uma tentativa de

ser visto igual aos europeus – o superior e o belo. De modo geral, tanto asiáticos

como os trabalhadores negros escravizados foram excluídos, pois alegavam que

precisavam de trabalhadores “inteligentes” (imigrantes europeus).

Apesar de ter sido apresentada uma resolução única no decorrer do Congresso

Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, este evento não se caracterizou pelo consenso,

mas pelo conflito. Assim, as decisões do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de

1878 não beneficiaram e nem atenderam às expectativas de todos os

representantes das províncias que participaram, como, por exemplo, a decisão de

incentivar a imigração estrangeira que favoreceu primordialmente aos cafeicultores

paulistas.

Dessa maneira, o Congresso do Rio de Janeiro de 1878 representou o triunfo do

discurso da elite intelectual e dirigente paulista, que preconizava a necessidade do

progresso como forma de ‘civilizar-se’ perante o mundo industrial europeu. Porém, a

“resolução única e final” deste evento não foi adotada por todas as províncias, que

na prática optaram por assumir posturas diferentes de acordo com a sua situação

regional.

Mesmo assim, os pronunciamentos dos “ecos do interior”, no Congresso Agrícola do

Rio de Janeiro de 1878, priorizaram a reorganização da economia, da sociedade e

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do Estado, demolindo as referências anteriores, e, ainda, apontaram para novas

possibilidades de se pensar a escravidão e as relações de trabalho. Evidenciaram,

também, a erosão ou esvaziamento dos espaços políticos de representação sobre a

escravidão. Isto ficou claro porque foi se armando uma cena em que, mais do que a

destituição do direito de propriedade e das conquistas sociais das lutas

abolicionistas caracterizou-se pelo desmanche dos direitos de propriedade e das

conquistas sociais, das últimas décadas do século XIX, expresso, principalmente,

por uma espécie de descaracterização do que seria a representação das práticas

de trabalho. Tal fato determinou que Governo Imperial disponibilizassem recursos

(capital) para investir no trabalho do imigrante estrangeiro, numa expectativa de

estarem mais preparados para a consolidação das medidas necessárias para a

modernização da economia e manutenção da ordem social e econômica vigente.

Em outubro de 1878, ocorreu outro Congresso Agrícola, em Recife (em resposta à

exclusão das províncias do norte e nordeste do País). Algumas medidas foram

divergentes do primeiro, porém convergiram no sentido de perceber a necessidade

de encontrar uma solução para o problema da mão-de-obra. Peter Eisenberg (1989)

observou em seus estudos que

As grandes semelhanças entre as respostas dos congressistas, nos dois congressos, ao questionário do ministro da Agricultura, com apenas algumas diferenças que são diretamente explicáveis pelas diferenças concretas nas condições de produção, reforçam e qualificam uma conclusão [...]: a classe dos proprietários de terra, cuja produção era exportada e cuja força de trabalho tinha sido escrava, em sua atitude para com o governo central, estava relativamente de acordo em 1878 quanto à viabilidade da escravidão a [sic] médio prazo, quanto à disponibilidade do trabalho do ingênuo e quanto à necessidade de reformar a legislação existente que regulava relações de trabalho livre, visando a tornar os brasileiros livres mais disponíveis para os interesses da grande lavoura. Assim, quanto à questão da mão-de-obra e das relações de trabalho, as opiniões de proprietários no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista, assim como na zona cafeeira do Sul e na zona açucareira no Nordeste, tendiam a coincidir (EISENBERG, 1989, p.181).

O mesmo autor concluiu que mesmo que se predomina as semelhanças, os conflitos

políticos não deixaram de existir e insistiu que, “no Brasil em geral, a uma década

da abolição, já não se pensava mais em prolongar a instituição da escravidão para a

grande lavoura, mas em substituí-la, com assistência direta do Estado, por

modalidades de trabalho livre” (EISENBERG, 1989, p. 181).

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A esse respeito posicionou-se Marcus Vinicius Fonseca (2002a), afirmando que os

Congressos ocorridos no Rio de Janeiro e em Recife tiveram como base motivações

diferentes:

[...] já que o primeiro era motivado por uma ação do governo do Império e o segundo por uma reação a essa suposta proteção do governo à agricultura cafeeira do Sul, teve implicações claras na posição e nos resultados alcançados por esses eventos. O Congresso do Rio de Janeiro caracterizou a crise na lavoura como um problema de capitais e mão-de-obra . Os seus participantes entendiam que cabia ao governo ampliar os financiamentos na agricultura e também resolver o problema da mão-de-obra com a introdução de imigrantes europeus para suprir a falta de braços n a lavoura . Quanto aos participantes do Congresso Agrícola do Recife , esses entendiam que a crise na lavoura era somente um problema de capitais . Em relação à mão-de-obra o que se reivindicava era um melhor aproveitamento dos trabalhadores nacionais, sendo essa posição de certa forma contrária à introdução de im igrantes , conseqüência do peso que o trabalho escravo tinha na organização da agricultura nas províncias do Norte. Como afirmamos anteriormente, nas décadas que se seguiram a 1850 as províncias do Norte do País foram obrigados a fazer uma transição forçada para o regime de trabalho livre. Isso quer dizer que o peso que o trabalho escravo tinha nessa região, no contexto dos debates de 1878, era menor que no Sul. Os agricultores nortistas julgaram a crise na lavoura, no que diz respeito à mão-de-obra, a partir dessa transição forçada, que em pouco mais de duas décadas havia realizado transferência de boa parte de seus trabalhadores escravos para outras regiões do Império. Sendo assim, a crise da lavoura era, para eles, um problema de capitais e não especificamente de mão-de-obra, como manifestaram os agricultores do Sul (FONSECA, M. V., 2002a, p. 82, grifos meus).

Assim, ficou evidente que os “ecos do interior” do Congresso Agrícola do Rio de

Janeiro de 1878 optaram pela necessidade de investimento nas “ondas imigratórias”,

que deveriam ser patrocinadas pelo próprio governo. Enquanto os participantes do

Congresso Agrícola de Recife (1878) priorizaram o incentivo à mão-de-obra livre do

trabalhador nacional, afinal, a “liberdade veio do norte” (GOUVEA, 1988).

A decisão dos “ecos do interior” teve como objetivo, diante da possibilidade do fim da

escravidão, trazer trabalhadores aptos não só para substituírem a mão-de-obra

escravizada na agricultura, como, também, contribuírem para o desenvolvimento

econômico do País e das províncias acirrando o processo de modernização,

conforme compromisso assumido no Congresso Agrícola de 1878, no Rio de

Janeiro. Portanto, ao priorizar a imigração dos trabalhadores europeus e rejeitar a

vinda dos trabalhadores chineses e indianos (coolies), o Congresso Agrícola

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privilegiou a voz e os ecos dos representantes do Oeste paulista, que já haviam se

estruturado neste sentido. Dessa maneira, essa opção prejudicou as demais

províncias, em especial a de Minas Gerais cuja situação seria mais beneficiada pelo

incentivo ao investimento no trabalhador nacional, levando em consideração que

esse contingente populacional era representativo nas suas lavouras.

Ressaltou-se, assim, a pressão exercida pelos agricultores do Oeste paulistas no

sentido que as resoluções priorizassem os seus interesses em detrimento da

participação das demais províncias, especificamente a Província do Espírito Santo.

Porém, isso não impediu que as demais províncias articulassem com essas

“tensões” de acordo com suas particularidades e adotando projetos próprios.

Os discursos pronunciados no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878

expressaram a preocupação com a manutenção da ordem social e econômica e o

temor diante das incertezas que eram anunciadas pelo prelúdio do fim da

escravidão.

Colocaram-se, então, de maneira favorável às estratégias que incentivassem o

processo de emancipação dos trabalhadores negros escravizados de forma lenta e

gradual, pois a Lei Eusébio de Queiroz (1871) obrigou as elites intelectuais,

dirigentes e econômicas a encontrarem encaminhamento para o fim inevitável da

escravidão diminuindo os abalos ao direito de propriedade.

Os pronunciamentos possibilitaram o levantamento das representações sobre as

grandes tensões no quadro de mudanças da sociedade imperial nas últimas

décadas do século XIX, permitindo, assim, a compreensão do pensamento político

e econômico que norteou as resoluções tomadas neste evento e a revelação da

visão de mundo destes sujeitos históricos, bem como conhecer as suas práticas

socioculturais.

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1.4 O CONGRESSO AGRÍCOLA DE 1878 E O PROJETO EDUCAC IONAL

Os pronunciamentos dos representantes da elite intelectual e dirigente permitiram-

me profícuas reflexões acerca da educação, da sociedade e da cultura no século

XIX, principalmente, porque fizeram emergir discursos e sociabilidades que se

engendraram nesse período tanto da História do Brasil como da Província do

Espírito Santo.

Os congressistas do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro em 1878, procuraram

estabelecer medidas educacionais que favorecessem à transição da mão-de-obra

escravizada para o trabalho livre, assumiram, então, a postura de investir em um

processo lento e gradual (festina lente), atribuindo a educação à responsabilidade da

preparação para o trabalho.

Neste sentido, posso confirmar o pressuposto de que a elite intelectual e dirigente

pretendia desenvolver um modelo de trabalho, modernização e educação, em que

os seus interesses fossem atendidos, principalmente o da formação de

trabalhadores, especificamente aos trabalhadores negros, que atendessem à

demanda da lavoura em expansão.

Como já mencionei, os objetivos da educação oferecidas às camadas populares

podem ser dados como certos: deveria exercer a “modelação social” (“civilizar”) e ser

complementado por um conjunto de atividades voltadas para a prática,

experimentação e incorporação permanente de conhecimentos voltados para o

desenvolvimento para o trabalho. Enfim,

[...]a educação foi associada aos negros como um fator indispensável para a sua integração social [...] Não se pode compreender o processo de abolição do trabalho escravo no Brasil sem associá-lo ao processo de construção de uma nova sociedade que emergiria da superação da escravidão. A educação foi um dos pontos de manifestação desse pensamento de reconstrução do País e, dentro dessa reconstrução os negros eram tidos como um dos elementos indispensáveis de serem adequados às novas relações sociais que começavam a ser esboçadas” (FONSECA, M.V., 2002 a, p. 61 e 62).

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Dessa forma, o significado de educação não se limitou à questão da formação e do

aprender a ler, escrever e contar, mas priorizou a aprendizagem das técnicas e

habilidades para o uso de máquinas. Aprendizagens necessárias para acompanhar

a modernização e o capitalismo emergente.

O que dizer, então, desse tipo de educação? Deveria atender de fato as

necessidades “de uma nova sociedade que emergiria da superação da escravidão”?

1.4.1 Uma educação imperfeita para uma liberdade imperfei ta

O final do século XIX, no Brasil e, em especial, na Província do Espírito Santo foi

marcado por acontecimentos que deram novos rumos não só para a economia, mas,

também para a vida política e intelectual do país. Assim, o novo quadro em

construção que se apresentava marcado pelas grandes tensões - trabalho

(escravidão e imigração), modernização e educação teve papel importante no

processo de transformação da vida sociocultural, política e educacional do País.

Foi nesse cenário de transformações e tensões, onde grupos distintos conviviam,

que a educação passou a exercer um papel importante, pois parecia atender às

expectativas de desenvolvimento e prosperidade que os discursos das elites

intelectuais e dirigentes amplamente anunciara.

Tal defesa era tanto para os filhos daqueles pertenciam à elite, como para os outros,

os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, bem como os imigrantes e os

pobres brancos, – e seus filhos – que de modo geral, eram considerados os

desamparados e desvalidos, ou seja, uma educação erudita para aqueles primeiros

e uma educação popular, priorizando a formação para o trabalho, para estes

últimos.

Maria Aparecida Papali (2003) em pesquisa recente sobre a construção da liberdade

realizada pelos trabalhadores negros escravizados após a Lei do Ventre Livre

(1871), teceu as seguintes considerações sobre a educação popular:

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No entanto, o que pôde ser observado, é que tais projetos visavam atingir a chamada educação popular, entendendo-se educação popular como instrução primária destinada a crianças e jovens pobres livres. O poder público, ao incumbir-se da instrução primária extensiva à pobreza (e somente da instrução primária), ao mesmo tempo em que buscava incluir essa camada social, forjava também sua exclusão, ao legislar sobre a educação secundária, mantendo assim fortes hierarquias sociais dentro de um projeto educacional. [...] Algumas medidas decorrentes dessas discussões em torno da educação popular foram sendo concretizadas na forma de instituições profissionalizantes, casas de educandos artífices e similares [Companhia de Aprendizes de Marinheiros], voltados para o atendimento de órfãos, filhos de pais pobres e menores “abandonados e ociosos”. Eram ensinadas as primeiras letras, noções de aritmética e alguns ofícios artesanais, como serralheiro, sapateiro, marceneiro e outros. Tais casas foram fundadas inicialmente no Maranhão, Ceará, Pará, Sergipe, Amazonas, Rio Grande do Norte, Paraíba, São Paulo e Rio de Janeiro, disseminando-se mais tarde por outras províncias (PAPALI, 2003, p. 123 e 124).

Dessa forma, evidenciou-se que a educação oferecida aos trabalhadores negros

recém-libertos pela Lei do Ventre Livre (1871) priorizou a preparação para o trabalho

conforme os estudos de Marcus Vinicius Fonseca (2002 a e b) e Maria Aparecida

Papali (2003).

Para maior e melhor compreensão sobre as medidas educacionais implementadas a

partir do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, iniciei a análise a partir do

postulado evidenciado pelos discursos dos congressistas: de que a reforma

educacional proposta pela elite intelectual e dirigente foi implementada no sentido de

procurar adequar a sociedade vista como atrasada ao modelo dos países avançados

e, principalmente, atender as necessidades de mão-de-obra para a grande lavoura

de café.

Comparei os discursos dos congressistas com as notícias que ocupavam relevância

na imprensa local. Afinal, a imprensa divulgou de forma intensa os projetos

educacionais, consolidando as representações das elites sobre a educação dos

trabalhadores negros escravizados e libertos nas últimas décadas do século XIX,

especificamente diante do crescente movimento abolicionista e republicano.

Assim, da mesma forma que os discursos dessa elite insistiram no papel estratégico

da educação para a preparação da mão-de-obra para o trabalho, a imprensa

enfatizou a importância da criação de escolas noturnas e de escolas agrícolas

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demonstrando as grandes tensões que abarcavam os problemas relacionados com

a demanda de mão-de-obra. Surgiram, então, os projetos educacionais que

evidenciaram a instrução e a educação popular voltados para, especificamente para

o trabalho agrícola. Esses projetos apresentaram-se a dicotomia entre o ensino

profissional e o ensino voltado para as camadas intelectuais e dirigentes,

principalmente a partir das últimas décadas do século XIX.

Além de atenderem as expectativas das necessidades de formação da mão-de-obra

livre para a grande lavoura, principalmente cafeeira, outra questão que constou das

apreensões das elites intelectuais e dirigentes, suscitando discussões e debates, diz

respeito aos projetos educacionais que deveriam prevenir a criminalidade e as

“desordens sociais”. No entanto, o que pôde ser observado, é que essas medidas

preventivas evidenciaram a presença dos estereótipos e dos preconceitos presentes

nas propostas educativas, direcionadas aos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos.

Uma outra questão fez parte da pauta de discussão do Congresso: os projetos

educacionais e a sua íntima relação com a política emancipacionista do Governo

Imperial, especificamente com a Lei do Ventre Livre (1871). Dessa forma, os

discursos também evidenciaram a preocupação com os recém-libertos e com o

futuro dos ingênuos no sentido social e econômico. De modo geral, temiam que os

trabalhadores nacionais não se adaptassem ao trabalho livre e às relações

contratuais do capitalismo emergente, apontaram, então, para a necessidade de

uma educação que possibilitasse a integração destes as nuanças do processo de

modernização.

No Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, os discursos sobre as medidas

educacionais visavam apresentar, em linhas gerais, propostas e estratégias que

veiculasse a implementação de um projeto da instrução pública primária obrigatória.

Assim, a elite intelectual e dirigente pretendia atingir os seus objetivos em relação à

educação voltada para a integração ao trabalho, que deveria ser destinada,

especificamente, aos negros livres e libertos, que formavam a maioria deste

contingente de trabalhadores livres, bem como da camada popular caracterizada

pela situação social desfavorável.

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Desse modo, no Congresso Agrícola foi apresentado um projeto de instrução

obrigatória com as seguintes propostas:

Título único da instrução primária obrigatória CAPÍTULO I

Art. 1º Haverá em cada paróquia do Império ao menos uma escola pública de instrução primária para meninos, e a proporção que as forças do imposto o permitirem, outra para meninas. Parágrafo único. Cada escola terá uma casa apropriada à instrução da infância, devendo conte acomodações suficientemente espaçosas e higiênicas para admitir, além de um externato, um numeroso internato. Mas em caso algum serão casas casas [sic] construídas com luxo, bastando que ofereçam as condições de solidez, duração, salubridades e capacidade relativa ao número de alunos a que são destinadas. [...]

CAPÍTULO II Art. 5º Nas escolas públicas mantidas pelo Estado haverá curso de seis anos, em que se ensinará a ler e escrever corretamente a língua portuguesa, aritmética teórica e prática, noções gerais de geometria, de geografia, de história e geografia do Brasil, e bem assim de ciências naturais, e particularmente de zoologia, botânica e física; e finalmente o conhecimento dos deveres morais do homem para com Deus, para consigo mesmo, para com a família, a sociedade e o país, sem filiação à seita alguma religiosa, fazendo-se ao mesmo tempo uma ligeira analise da constituição política do Império, para que o cidadão fique conhecendo os seus direitos e deveres. [...] Art. 6º Todos os meninos, e logo que for possível, todas as meninas de seis anos de idade (onde para elas já houverem escola providas) serão obrigados a freqüentar a escola pública [...] (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, n.163, p.2l, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Na primeira sessão do Congresso Agrícola de 1878, as questões voltadas para a

educação se evidenciaram com a apresentação de um projeto de reforma

educacional que além de instituir a obrigatoriedade e liberdade de ensino, introduziu

os princípios elementares de agricultura, culminando em abril de 1879, na Reforma

Educacional do Ministro do Império Leôncio de Carvalho.

Notei que esta preocupação evidenciou-se em muitos dos discursos pronunciados,

principalmente quando fizeram menção à necessidade de uma educação voltada

para o trabalho, especificamente, o ensino da agricultura.

É de admirar que um país completamente agrícola como o Brazil até hoje não possua por conta do governo uma escola onde se ensine a agricultura. Estes estabelecimentos que aqui se têm criado com este título, nada têm produzido para a lavoura do interior, têm apenas servido para se enfeitarem as chácaras dos arredores do Rio de Janeiro: um o outro lavrador predileto tem podido obter uma semente ou uma muda, e nada mais. Não se pode dizer que seja descuido, incúria dos governos

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conservarem um país agrícola até hoje sem uma escola pública onde se ensine os primeiros rudimentos da agricultura. O prestante cidadão, de saudosa memória, o Sr. Ferreira Lage, tentou uma escola em Juiz de Fora; mas os honorários ou emolumentos, as matrículas eram tais que não era uma escola para os pobres, mas sim para os ricos. E quem ignora que os ricos entre nós não vão aprender a manejar o arado nem a charrua? (Apoiados.) Cada um município, pelo menos cada uma comarca rural deve ter uma escola, não uma escola de aparato, cheia de lentes, mas uma escola apropriada à zona em for estabelecida. (Apoiados, muito bem, muito bem.) (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, n. 163, p. 5 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Não obstante, foram colocados nessas reuniões os anseios de mudanças na

educação objetivando a manutenção de uma ordem social e econômica que

privilegiassem os interesses das elites intelectuais e dirigentes, mas ao mesmo

tempo, deveriam atender às expectativas em relação ao processo de modernização

da sociedade brasileira e às transformações que se processavam nas últimas

décadas do século XIX. Em suma, tal educação deveria dar continuidade as

hierarquias da sociedade escravista, ou seja, caracterizou-se por uma educação

imperfeita, para uma liberdade imperfeita. Além disso, não poderiam deixar de

considerar o processo lento e gradual de abolição da escravidão e transição para o

trabalho livre. Porém, cada uma das províncias desenvolveu variações e

especificações de acordo com suas prerrogativas econômicas e interesses políticos.

Na abertura da 2ª sessão em 9 de julho de 1878 foi lido o ofício do Sr. Visconde do

Jaguary, Justo Maciel e João de Almeida Pedroso, delegado dos lavradores de

Baependy, apresentou o extrato da ata dos lavradores:

São os seguintes: 1º Quais as necessidades mais urgentes e imediatas da grande lavoura? - São as seguintes por ordem de importância:

Primeira. – EDUCAÇÃO PUBLICA Uma sólida educação moral, religiosa, cívica, intelectual e profissional, por meio da qual não só a lavoura com seus recursos atuais de braços e capitais, conseguirá a dupla vantagem de aumentar, melhorando, seus produtos, como ainda adquirirá milhões de operários ociosos no país, uns, os camponeses, em quase barbaria, outros, os índios, em completa barbaria, e que neste triste estado pouco ou nada trabalham, porque habituaram-se ao pouco ou mesmo à miséria, e porque, imersos na ignorância, não consideram o trabalho sob seu verdadeiro aspecto – como uma lei da natureza humana e uma necessidade social (Diário Official do Império do Brazil, quarta-feira, 10 de julho de 1878, n. 162, p. 2, grifos do autor – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

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É interessante acrescentar que, neste discurso, a educação apareceu na primeira

ordem de importância, seguida pela viação pública (modernização) no sentido de

incentivar a abertura de estradas e investimentos nos transportes visando à

exportação do café e o escoamento dos produtos para o abastecimento das cidades;

na terceira ordem de importância apresentaram a necessidade de braços (trabalho).

Ao abordarem o tema educação das “classes operárias”, ou seja, para o trabalho,

incentivaram a criação de leis para normalizaram a organização do trabalho, a

locação de serviço e evidenciaram a necessidade de medidas coercitivas ao crime e

a ociosidade; bem como, a colonização dos trabalhadores nacionais aproveitando

os ingênuos e os retirantes cearenses55 e da colonização estrangeira. Dessa

maneira, a educação deveria assumir o papel de “modelação social” dos

trabalhadores livres.

Na quarta ordem de importância estava o capital, ou seja, os créditos agrícolas; na

quinta ordem, a revogação da Lei de 1860 que obrigou a diminuição dos

investimentos feitos pelo governo em função das dificuldades dos bancos de

manterem a relação entre a emissão e o fundo, além de defrontarem-se com a

redução dos lucros, ameaçado mesmo de liquidação, exigindo maior iniciativa

particular.

Os congressistas apresentaram uma outra necessidade na sexta ordem de

importância – a reforma no sistema tributário. Por último, na sétima ordem de

importância, os melhoramentos de engenhos, das indústrias açucareiras, das

industrias auxiliares da lavoura (as de instrumentos agrícolas) e as extrativas de

ferro além do “acoroçoamento das indústrias que preparam o papel e as outras

matérias-primas dos livros e jornais, necessidade da gente em um país povoado em

sua maioria de analfabeto e onde por isso a educação pública é o serviço capital

para a lavoura como para as outras classes” (Diário Official do Império do Brazil,

quarta-feira, 10 de julho de 1878, n. 162, p. 2 - Biblioteca Pública Estadual do

Espírito Santo).

55 Em conseqüência da grave seca que assolou o Ceará (1877 a 1879), um número muito grande de flagelados se retirou procurando sobreviver em outras províncias. O governo Imperial e os dirigentes das províncias adotaram medidas amplamente divulgadas pela imprensa.

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Na minha reinterpretação em relação às “necessidades” inseridas no contexto das

grandes tensões das últimas décadas do século XIX, reafirmo que os discursos dos

“ecos do interior” foram marcados por um forte viés de idéias que atribuíram à

educação um papel crucial no processo de modernização da sociedade, em

particular no fortalecimento do capitalismo emergente, conferindo-lhe a capacidade

ímpar de organizar a nova ordem econômica do País. Isso não significa que a

aplicabilidade das medidas necessárias para efetuar as mudanças na educação

tenha ocorrido sem a presença do confronto e de tensões. Todavia, foram

fundamentais para a mudança de pensamento da sociedade brasileira no sentido

de aumentarem as discussões sobre em relação à responsabilidade da sociedade

no processo de modernização do País.

1.4.2 A influência do pensamento norte-americano e a ciência na criação das

escolas agrícolas – “ help your self”

Muitos foram os “ecos do interior” que proclamaram a necessidade de estabelecer

uma política de educação voltada para a instrução elementar e para a formação

moral e religiosa. Para além dessas questões, evidenciou-se a preocupação com o

ensino voltado para o trabalho rural, com o intuito de conservação de uma mão-de-

obra dependente e conformada nas fazendas agrícolas.

Desse modo, os discursos pronunciados estabeleceram os principais fundamentos

e objetivos das políticas educacionais deste período, ou seja, ressaltaram a

preocupação com a “modelação social”. Nesse sentido, educar era civilizar, isto é, a

educação possuía a responsabilidade na formação de uma nação civilizada. Além

disso, a elite intelectual e dirigente atribuiu as escolas agrícolas um papel essencial

nesse processo de “civilizar” as camadas populares, possibilitando a sua integração

no processo de modernização do País.

Em relação a isso, às Atas do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878 foram

anexadas as considerações a respeito da necessidade da implantação da educação

agrícola, como por exemplo, o texto escrito pelo Sr. José Caetano de Moraes e

Castro:

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Apresentei perante o Congresso dos lavradores como urgentes necessidades da lavoura, a educação agrícola, a falta de capital, a próxima falta de braços,a falta de fáceis e baratas via de comunicação e exportação dos produtos agrícolas. Felizmente o Congresso em sua maioria manifestou as mesmas necessidades. Alguns oradores, porém, sem rejeitar em absoluto a educação agrícola, entendem com tudo, que esta pode ser espaçada: eu penso o contrário; por que o lavrador, versado na agronomia não se o faz de momento, é necessário 5 e mais anos: logo desde já deve o governo criar algumas escolas agrícolas para que possa em tempo oportuno ter lavradores, que com pouca terá e limitado número de braços, auxiliados pela mecânica e mias [sic] [mais] recursos que a ciência fornece, aufiram de seu trabalho grande e vantajoso resultado: isto é colherão de 1000 pés de café arrobas em de 35 arrobas! Falta capitais [...] (Diário Official do Império do Brazil, domingo, 14 de julho de 1878, Ano XVII n. 168, p.5 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

O Diário Official do Império do Brazil por sucessivos dias, especificamente de 5 a 9

de janeiro de 1878, publicou os textos de autoria do Sr. Pedro Dias Gordilho Paes

Leme (Rio de Janeiro) referindo à “agricultura americana em 1876”, é interessante

salientar que esta publicação antecedeu a divulgação do Congresso Agrícola do Rio

de Janeiro de 1878 e ocupava a cada publicação duas páginas desse impresso.

Paes Lemes nesses textos abordou o sistema de cultura e os aspectos geográficos

– condições climáticas, solos, produção, tabelas com as quantidades e valores

referentes a 1871 a 1874; números de operários agrícolas por Estados e territórios e

os principais agricultores; além disso, fez referência aos estabelecimentos agrícolas

públicos e particulares, entre outras informações relevantes.

De certa maneira, o que Paes Leme pretendia era estabelecer a agricultura

americana como modelo para a implementação da educação agrícola no Brasil.

Assim, salientou que:

[...] O governo dos Estados Unidos procura sempre respeitar os hábitos do povo americano, e com ele diz a seus filhos: help your self. Acontece, pois, que para a fundação de universidades e colégios agrícolas o estado só entra com uma quota de terras, assaz importante, e deixa o resto a iniciativa particular que nunca deixa de manifestar-se de maneira admirável, oferecendo milhões de dólares para a construção dos edifícios e manutenção de escolas (Diário Official do Império do Brazil, segunda-feira, 7 de janeiro de 1878, Ano XVII, n. 5, p. 3, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

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Além de sugerir a agricultura americana como modelo, Paes Leme, como

representante do pensamento da elite intelectual e dirigente, defendeu as iniciativas

particulares e a criação de associações que deveriam implementar a educação

agrícola e atenderiam às necessidades de desenvolvimento da grande lavoura

brasileira, principalmente a paulista. Porém, ele não se limitou à defesa das

iniciativas particulares, também fez menção às iniciativas do próprio governo norte-

americano:

Há, entretanto, um colégio agrícola que faz exceção a regra, e ao qual o governo dos Estados Unidos tem feito grandes favores, é o colégio de Amherst, no Massachussets. Goza esta escola de merecida forma, e nela tem feito seus estudos alguns brasileiros. A escola tem espaçoso edifícios, construídos expressamente para receberem todos os laboratórios e salas para aulas, e ainda para alojar os alunos, aos quais fornece alimentação por preço razoável. Seus gabinetes de física, química, botânica e mineralogia, posto que modestos, prestam reais serviços, e neles se fazem interessantes experiências e análises. [...] Para os trabalhos do campo, que fazem em larga escala, tem a escola diversas maquinas agrícolas construídas e usadas no país, porém, que não ofereciam particularidade alguma. [...] O curso está dividido em quatro anos. [...] Encontram-se mais de 40 colégios deste gênero nos diversos Estados da União mesmo nos mais longínquos como Iowa, Arkansas e Nebraska , freqüentados por milhares de estudantes [...] (Diário Official do Império do Brazil, segunda-feira, 7 de janeiro de 1878, Ano XVII, n. 5, p. 3 e 4 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Paes Leme também se preocupou em realizar uma extensa descrição da arquitetura,

dos objetos, das subdivisões internas e dos espaços externos, das disciplinas do

currículo e outros aspectos relevantes relacionados ao colégio agrícola. A riqueza

das informações e dos detalhes com os quais o redator caracterizou e representou a

instituição permitiu, ainda que parcialmente, o vislumbre das funções dos espaços,

e, conseqüentemente, influenciou os projetos de criação de escolas agrícolas no

Brasil.

Conforme os estudos de Marcus Vinicius Fonseca (2002 a e 2002 b) e de Maria

Aparecida Papali (2003), entre os futuros educandos dessas instituições deveriam

estar os filhos das mulheres trabalhadoras escravizadas; bem como os

desamparados e desvalidos. Para essa clientela, o currículo de ensino abrangeria a

educação moral e religiosa, o ensino das primeiras letras e as noções práticas de

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agricultura, porém se evidenciou, em primeiro lugar, a preparação para o trabalho no

sentido de priorizar as técnicas agrícolas.

No seu texto sobre a “agricultura americana de 1876”, Paes Leme, também realizou

um paralelo entre a situação do desenvolvimento agrícola dos Estados Unidos e o

do Brasil:

[...] Ora, o homem que se acha em país frio, sem poder obter facilmente meios de nutrir-se, onde as leis oprimem severamente so não te ocupação, onde a propriedade é sagrada , não precisa ser muito virtuoso para entregar-se ao trabalho, que aliás é generosamente recompensado em todos os Estados Unidos. Há tantas indústrias, o desenvolvimento material é de tal ordem os exemplos de grandes fortunas adquiridas pelo trabalho são tão freqüentes, que o homem chegando a essa terra abençoada, é levado pela grande corrente, que anima e vivifica o poderoso gigante que abraça a América Setentrional. Nós, no Brasil, temos justamente o reverso da medal ha. País muito mais rico, cheio de recursos, precisava fazer respe itar a fazenda alheia. Mas tal não acontece: as leis frouxas e os processos custosos dão lugar a abusos de toda a sorte. É uma das necessidades da agricultura no Brasil, poder fazer respeitar suas propriedades sem os meios reprovados que emprega os mandões da aldeia. Quando tivermos meios de proibir, com facilidade e legalmente, o abuso que se faz de nossas propriedades, quando não tivermos necessidade de sufrágio eleitoral, e melhor educado compreendermos a vantagem de negar o pão esmolado, proporcionado ao proletário meios de multiplicar seus esforços, que no Brasil serão transformados em verdadeira riqueza, então não veremos nossos campos abandonados, transpirando miséria, como se encontra justamente nas províncias onde há maior número de habitantes livres. É um quadro desolador, no Brasil, visitar-se as antigas províncias que há, vinte anos constituem o melhor patrimônio da coroa brasileira. Enquanto estivermos nestas condições, não poderemos acompanhar os irmãos do norte; é necessário, essencialissimo [sic], o contrato entre patrão e operário , se quisermos agricultura estável, [...] (Diário Official do Império do Brazil, segunda-feira, 8 de janeiro de 1878, Ano XVII, n. 6, p. 1 e 2, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Paes Leme também discorreu sobre o decreto de 10 de setembro de 1855, que

estabeleceu a caderneta de trabalho, iniciativa tomada pelo vice-almirante Gueydm

para salvar as Antilhas Francesas da anarquia. Além disso, fez menção aos treze

artigos deste decreto: “todo este longo regulamento pode ser substituído por uma

única palavra – Educação . E será para o Brasil uma fortuna quando puder prescindir

de leis e regulamentos, que só perturbam sou [seu] desenvolvimento moral e

material” (Diário Official do Império do Brazil, segunda-feira, 8 de janeiro de 1878,

Ano XVII, n. 6, p. 1 e 2, grifo meu – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

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Assim, concluiu o seu texto retomando a questão da iniciativa particular e enfatizou

a necessidade de valorizar o exemplo a “agricultura americana de 1876”, objetivando

incentivar o surgimento das medidas necessárias para melhorar a agricultura

brasileira, principalmente por meio das fazendas modelos:

[...] Precisamos fazer ver, e convencer [...] A criação destes estabelecimentos, verdadeiras escolas, deve presidir a mais severa economia, e todas as experiências científicas serão feitas em um laboratório central instituído para esse fim. Acreditamos que os bons exemplos reformarão as práticas absoletas de nossa agricultura.

Rio de Janeiro, 4 de agosto de 1877. Pedro Dias Godilho [Gordilho] Paes Leme

(Diário Official do Império do Brazil, segunda-feira, 7 de janeiro de 1878, Ano XVII, n. 6, p. 3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

O relato supracitado, de modo geral, defendeu os bons resultados alcançados na

criação das escolas e da educação agrícolas, no sentido de resolver os dilemas

relacionados tanto com reestruturação do regime de trabalho, quanto com

atualização das políticas de domínio e controle social, como já citei anteriormente.

A proposta de educação agrícola apresentada por Paes Leme estava

intrinsecamente relacionada às questões colocadas no Congresso Agrícola do Rio

de Janeiro de 1878: trabalho (escravidão e imigração), modernização e educação.

Especificamente ao que estava relacionado à educação das camadas populares e

trabalhadoras: instruir e educar menores desamparados e desvalidos, incluindo os

libertos pela Lei do Ventre Livre de 1871, os ingênuos. Isto significou, antes de tudo,

a manutenção de algo que não estava explicitamente revelado, porém, indícios

evidenciaram que seria a tentativa de manter nas mãos dos antigos proprietários, os

poderes de decisão e intervenção sobre vidas dos ingênuos, controlando sua

liberdade e resguardando a sua autonomia. Enfim, implicitamente procurou-se

articular medidas para a implementação da “liberdade imperfeita”.

Conforme afirmou Marcos Vinicius Fonseca (2002a):

A educação foi defendida como uma estratégia voltada para a construção de uma subjetividade nos negros livres e para a manutenção da hierarquia racial construída ao longo da escravidão. Essa defesa da educação de forma tão incisiva em uma sociedade onde poucas pessoas livres desfavorecidas economicamente podiam contar com uma estrutura que lhes permitissem acesso a práticas educacionais

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diferenciadas das que eram desenvolvidas no espaço privado, indica o quanto à educação foi acionada como um importante mecanismo de dominação em relação aos negros no Brasil, e isso já nos estágios finais da escravidão. A educação foi valorizada como um instrumento capaz de construir o perfil ideal para os negros em uma sociedade livre, garantindo que estes continuariam nos postos de trabalho mais baixo do processo produtivo e que não subverteriam a hierarquia era fundamental para um país que, apesar da diversidade racial de sua população, objetivava manter vivas suas origens européias e retratando a si mesmo como uma nação cujo destino era edificar um futuro que deveria se assemelhar ás nações do chamado Velho Continente (FONSECA, M. V., 2002 a, p. 59, grifos meus).

Assim, por meio de um projeto educacional, a elite intelectual e dirigente defendeu

seus interesses socioeconômicos, e ofereceu uma instrução agrícola não só com a

intenção de formar uma oferta de trabalhadores livres, mas também exercer o

controle sobre essa oferta, que era na sua maioria, formada pelos descendentes de

trabalhadores negros escravizados das grandes lavouras.

Desse modo, essa elite pretendia impedir que esses trabalhadores fizessem uso das

táticas usadas na resistência do corpo de da mente, permitindo-lhes que

conseguissem a “liberdade” para cultivar sua própria propriedade agrícola, afinal

deveriam manter-se “nos postos de trabalho mais baixos” e submetidos a uma

liberdade limitada, ou melhor, e mais uma vez enfatizando: uma educação

imperfeita, para uma liberdade imperfeita.

1.4.3 A educação das camadas populares – pobres, ór fãos e ingênuos

desamparados e desvalidos

A reforma educacional proposta no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878,

conforme já mencionei, propunha que a educação oferecida às camadas populares

deveria ter a finalidade de instruir ou adaptar ou modelar ou coibir ou treinar ou

adestrar (todas essas ações poderiam se apontadas como respostas ao se

considerar os interesses das elites intelectuais e dirigentes) as camadas populares.

Dessa forma, a idéia de modernização tão defendida pela elite intelectual e dirigente

encontrava plausibilidade em uma “modelação social”, que era ancorada na abertura

de oportunidades de uma educação voltada para a preparação de uma mão-de-obra

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livre que deveria atender às demandas próprias da moderna vida urbana e ao

mesmo tempo às necessidades da expansão da lavoura cafeeira, subvertendo se

necessário às regras de uma sociedade escravista.

Assim, para a elite intelectual e dirigente, a educação das camadas populares e de

todos os que transitam nas franjas da sociedade como os trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos, bem como também os não-negros pobres (exaltada

pelo discurso humanitário, caracterizado pelo “caráter excepcional e filantrópico”),

além do dever moral, também deveria integrá-los às novas regras socieconômicas.

Os discursos pronunciados por essa elite intelectual e dirigente, enfatizaram as

representações estereotipadas sobre os trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos, e também sobre os pobres, enfim, sobre todos os desamparados e os

desvalidos (“excluídos”). Tal assertiva evidencia a construção de uma imagem de

uma sociedade dualizada como se fossem dois mundos separados: de um lado, o

locus da modernidade, da intelectualidade e da riqueza e, de outro, os que estão no

limiar da civilização e da pobreza, tratando-se, não de garantia de direitos à

cidadania, mas de atender suas necessidades básicas de sobrevivência e de

“modelação social”. Desamparados e os desvalidos são termos que dizem respeito

a uma certa figuração pública da questão social pela qual o outro – o pobre excluído

– foi fixado em um mundo necessidades e das carências, regido pelas leis

inexoráveis e excepcionais da filantropia, ou seja, como problema humanitário que

interpelado pela consciência moral de cada cristão. Assim, a caridade religiosa foi

se transformando lentamente em filantropia de caráter excepcional e não obrigatório.

Em relação a essa ordem de posições e proposições, o ofício do Visconde do

Jaguary, Justo Maciel e João de Almeida Pedroso, delegado dos lavradores de

Baependy lido na abertura da 2ª sessão em 9 de julho de 1878, remetendo as

respostas do questionário do Congresso, discorreu sobre as necessidades básicas

da educação e trançou algumas propostas atribuindo a educação o poder de

transformação das camadas populares e pobres em trabalhadores para a grande

lavoura.

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Além disso, neste mesmo ofício o Visconde do Jaguary, salientou a necessidade de

efetuar medidas para realizar a integração dessa camada social ao processo de

modernização socioeconômico por meio de uma educação voltada para uma

formação para o trabalho que pudesse diminuir a ociosidade, a barbárie, os crimes,

e garantir a manutenção da ordem do Estado e os privilégios sociais e econômicos

das elites intelectuais e dirigentes (proposições e posições já pontuadas neste

trabalho).

Nestes termos, as idéias modernização e educação nortearam as reconfigurações

da vida das camadas populares, especificamente dos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos. Esse conjunto de idéias pode ser corroborado pelo

seguinte “eco do interior”:

Quanto a este ensino, o Estado deve abrir escolas primárias em todas as freguesias, capelas, pequenos povoados, onde ainda não existam; especialmente escolas práticas especiais de agricultura, entre estas algumas das indústrias auxiliares da agricultura, para os órfãos e para os ingênuos entregues ao governo, onde estes desvalidos, a par de um bom ensino elementar, teórico e prático , recebam a educação santa do trabalho , e que devem ser distribuídas pelas províncias com a relativa igualdade, ao alcance da grande lavoura, para lhe fornecerem braços, e em lugares d’onde seja fácil a exportação para servirem de núcleo à colonização estrangeira. [...] Este ensino, de que acabamos de falar, o primário, não dever ser ministrado exclusivamente aos menores: só é preciso que o Estado cumpra o sagrado dever de instruir 1583.705 crianças de idade escolar que não freqüentam as escolas, compete-lhe não menos melhorar pela instrução a massa de adultos analfabetos em número muito superior a este formam uma contristadora [sic] mancha em nossa sociedade; enquanto preparamos o futuro de nossa pátria, instruindo os menores, melhoremos o presente instru indo os adultos , com isso também apressamos o futuro de civilização que anelamos para o país, pois a EDUCAÇÃO DOS ADULTOS representa na ordem moral o que a locomotiva representa na mat erial . (Diário Official do Império do Brazil, quarta-feira, 10 de julho de 1878, Ano XVII, n. 165, p. 2, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Diante deste cenário, posso reiterar que os discursos dos representantes das elites

intelectuais e dirigentes atribuíram ao Estado a responsabilidade para sobre a

situação de ignorância e despreparo das camadas populares pobres e miseráveis.

Assim, a autoridade da família foi gradualmente decrescendo e se tornando

subordinada ao Estado.

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Convém ressaltar, que o Estado assumiu a responsabilidade de promover a

educação, pois acreditavam que a escola deveria ser um instrumento de civilização

e força motriz para a modernização e crescimento econômico do país, além de

garantir a inserção dos membros dessa camada social ao mundo das novas

relações de trabalho.

Não obstante, o desenrolar do processo de escolarização, ou de implantação de

uma educação popular, foi caracterizado pela instrução elementar e pela preparação

para o trabalho tanto dos ingênuos e adultos, sendo brancos ou sendo trabalhadores

negros escravizados, livres e libertos (pretos, pardos ou caboclos).

Dessa maneira, conforme afirmou o Visconde de Jaguary, se viabilizou a

implantação de uma “educação santa do trabalho”, ou seja, uma educação que

instruísse para o trabalho e educasse no sentido de formação de valores e

comportamentos sociais que não contrariasse a ordem social interferindo nas

experiências sociais e cotidianas das camadas populares; instituíram, então, a

criação de asilos, escolas primárias, escolas agrícolas e industriais.

De acordo com José Ricardo Pires de Almeida (2000), o Brasil desde o Congresso

Pedagógico, reunido em Bueno Aires, em 1882, já desempenhava um papel notável

em relação à visão voltada para ao “amor ao progresso” e “à perseverança na trilha

da civilização” (ALMEIDA, 2000, p. 17).

Nesse contexto, José Ricardo Pires de Almeida (2000) enfatizou a preocupação do

País com a instrução das “crianças pobres”, e salientou que havia, em cada

província brasileira, pelo menos uma colônia orfanológica56 subvencionada pelos

cofres públicos, que exercia as funções de escola primária, agrícola e profissional.

Sobre isto o autor exemplifica:

A colônia de Santa Isabel, fundada em 1885, na Província do Rio de Janeiro, sob a nobre proteção de S. A. Madame, a Princesa Imperial e de seu esposo, Senhor Conde D’Eu, destina-se a receber crianças de

56 Conforme Relatórios dos Presidentes de Província, a colônia orfanológica na Província do Espírito Santo enfrentou sérios problemas relacionados à disponibilidade da verba pública, sendo suas obras adiadas. Porém, as fontes documentais evidenciaram a opção desta Província pelo investimento no desenvolvimento da Escola de Aprendizes de Marinheiros.

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mães escravas , crianças livres em virtude da Lei Rio Branco de 20 [sic] [28] de setembro de 1871. O nome dado a esta fundação é uma justa homenagem feita aos sentimentos de virtuosa princesa, que, em sua qualidade de regente, em conseqüência da ausência de seu augusto pai, sancionou e promulgou a referida lei. Esta colônia é, também, uma escola agrícola. [...] A capital do império possui, igualmente, um asilo para as crianças pobres ou abandonadas. Criado em 1874 pelo Conselheiro João Alfredo Correa de Oliveira, aí 300 crianças são cuidadas até a idade de 21 anos; recebem uma instrução primária completa ao mesmo tempo [sic]que seguem cursos profissionais, organizados de tal maneira que, ao saírem do asilo, os jovens estão prestes a se tornar excelentes mestres de oficinas. As escolas fundadas e mantidas pelo imperador, já mencionadas, são não somente escolas primárias, mas também e [sic] sobretudo, escolas profissionais, destinadas uma, às crianças dos servidores da Casa Imperial, outra, aos filhos dos antigos escravos da Coroa, liberto depois de um quarto de século (ALMEIDA, 2000, p. 22, grifos meus).

Conforme já fiz referência, os objetivos das elites intelectuais e dirigentes foi tentar

manter o controle sobre as resistências manifestadas no cotidiano pelos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos e pelos brancos pobres e de

consolidar uma liberdade controlada.

Pretendiam resolver, assim, as questões voltadas para a carência de braços

(trabalho) e ao mesmo tempo obteriam o controle da ordem e da hierarquia social,

mais uma vez, não posso deixar de afirmar que isto diz respeito à idéia que uma

educação imperfeita para uma liberdade imperfeita.

Adentrando as estimativas estatísticas de 1872 e 1874, foi possível perceber que a

camada popular e pobre era formada na sua maioria por trabalhadores negros

escravizados (duplamente desqualificados), livres e libertos (pardos, pretos e

caboclos), como também pelos pobres brancos, que de modo geral, apresentavam

uma moral estereotipada e rejeitada pelas camadas favorecidas.

O que pôde ser evidenciado também pelos dois parágrafos do Art. 7º do projeto de

instrução pública primária proposto no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de

1878:

[...]1º Todos os meninos ou meninas, que tiverem impedimento físico ou moral atestado por médico, ou jurado perante o delegado de instrução pública, ou perante comissão fiscal das escolas da paróquia.

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2º Aqueles que por si, ou seus pais, não tendo meios suficientes para freqüentar o internato escolar, não possam ser nele colocado gratuitamente, ou à custa do imposto especial para a manutenção das escolas. [...] (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, Ano XVII, n.163, p.3, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Os desamparados e desvalidos, segundo as representações da elite intelectual e

dirigente apresentavam “impedimento físico e moral”, pois contrariavam os preceitos

da regeneração moral da sociedade, enraizada na concepção de uma natureza

humana perfectível.

Posso, então, concluir e reiterar que o projeto educacional desenvolvido pela elite

intelectual e dirigente foi um dos elementos centrais no estabelecimento das novas

relações socioeconômicas. Além disso, se configurou como uma das estratégias

não só de preparação para o trabalho, como também de preservação de valores e

de controle sociocultural sobre os trabalhadores, especificamente, negros

escravizados, livres e libertos.

Assim, os princípios e determinações desse projeto educacional deveriam fazer

referência predominantemente à formação moral e aos conhecimentos elementares

(gerais) no sentido de manter a ordem social vigente baseada na desigualdade

social e “modelação” da camada popular desamparada e desvalida da sociedade.

1.4.3.1 A educação dos ingênuos

Conforme mencionei no tópico anterior, muitos foram os discursos que proclamaram

a necessidade de educar os desamparados e desvalidos, ou seja, pobres e

abandonados, propondo até mesmo a criação de instituições governamentais para

o ensino agrícola.

Foi neste contexto que ocorreu a inserção dos discursos relacionados com a

educação dos ingênuos, e simultaneamente nos discursos referentes às questões

do trabalho, especificamente relacionados com o problema da oferta de mão-de-

obra.

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Evidenciando esta preocupação, o projeto de instrução pública primária,

apresentado no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, estabelecia que:

Art. 21. Para a manutenção das escolas de instrução primaria, além das multas impostas por violação da presente e seus regulamentos, se cobrará, anualmente, na paróquia os seguintes impostos especiais, que de modo algum poderá ter outro destino: [...] 9º Dos proprietários agrícola (500) quinhentos réis por cada um ingênuo, cujos serviços forem preferidos à sua entrega ao governo, e mais trezentos réis por cada trabalhador rural efetivo, seja livre, ou cativo. (Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, Ano XVII, n.163, p.3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

De acordo com a Lei nº 2.040 (Lei do Ventre Livre) de 28 de setembro de 1871, era

“de condição livre os filhos de mulher escrava” a partir desta data de promulgação, o

artigo 1º estabeleceu restrições à imediata e plena liberdade desses, afirmando que

“os ditos filhos menores em poder e sob autoridade do senhor de suas mães, os

quais obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos”.

Diante disso, os senhores teriam a obrigação de estabelecerem “escolas agrícolas,

inclusive de primeiras letras, mediante a quantia 6000$000, que marca a mesma lei,

pela indenização da criação, para que no fim dos 21 anos estejam incorporados e

habilitados a governarem-se a si próprios” (Diário Official do Império do Brazil,

quinta-feira – 11 de julho de 1878, Ano XVII, n. 165, p. 2 – Biblioteca Pública

Estadual do Espírito Santo).

Dessa maneira, essa lei atribuiu aos senhores escravizadores a responsabilidade

pela educação dos ingênuos, caso rejeitassem essa possibilidade, deveria entregá-

los aos cuidados do Estado, que deveria colocá-los em associações criadas para

propósito de educá-las. Porém, isso não significa que a aplicação desta lei não

tenha sido relapsa, resultando na exploração indevida do trabalho desses ingênuos,

diante da ausência de uma política de controle mais eficaz por parte do Estado.

Sobre isto, afirmou Kátia de Queirós Mattoso (1991), a Lei do Ventre Livre foi “o

triunfo das mentalidades antiquadas e perversas” funcionando como instrumento de

controle da emancipação dos escravos, que deveria ser lenta e gradual conforme os

interesses das elites dirigentes, intelectuais e econômicas. (MATTOSO, 1991, p. 93).

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Os discursos pronunciados no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878

evidenciaram as exigências dos grandes agricultores atribuindo ao Estado a

responsabilidade de socializar os custos para a formação de uma força de trabalho

para a lavoura de café.

Tais fatos contribuíram para a inércia do processo abolicionista, que foi acentuada

pelas tensões que se manifestaram entre “os ecos do interior” em decorrência da

preocupação com a possível disponibilidade ou não da mão-de-obra dos ingênuos,

pois temiam que estes últimos acompanhassem suas mães e abandonasse as

fazendas, logo que elas estivessem emancipadas. Além disso, apresentou-se,

ainda como obstáculo, o fato da educação desses ingênuos requerer uma aplicação

de recursos financeiros submetida ao risco de retorno apenas ao longo prazo.

Portanto, o que parecia ser a inspiração nacional foi só em parte vivida como tal.

Mesmo assim, entre os debates desenvolvidos no Congresso Agrícola do Rio de

Janeiro de 1878 predominou a defesa da implantação de escolas agrícolas nas

fazendas como uma das estratégias de moralização e de ajustamento desses

ingênuos à nova ordem socioeconômica. Assim, a legislação abolicionista enfrentou

os inevitáveis confrontos de opiniões e resistências para sua aplicabilidade,

exigindo diversas medidas de redefinições sucessivas no sentido de articular suas

possibilidades, abandonando certas iniciativas e abraçando perspectivas que, se de

um lado, foram mais modestas ao nível das metas estabelecidas se manifestando de

forma gradual e lenta conforme os interesses das camadas proprietárias dos

trabalhadores escravizados.

Retorno a afirmar, então, que prevaleceu, no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro

de 1878, a opinião de se priorizar o investimento no trabalho do imigrante europeu,

e conseqüentemente, menosprezou a possibilidade de aproveitar o trabalho dos

ingênuos de forma imediata, adiando em conformidade a uma educação para o

trabalho que deveria prepará-los para atender as necessidades da nova ordem

econômica de forma lenta e gradual.

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CAPÍTULO 2

AS GRANDES TENSÕES NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO

Neste capítulo apresento o processo investigativo sobre a circularidade das grandes

tensões na Província do Espírito Santo, estabelecendo uma análise pontual sobre as

medidas legislativas educacionais em relação aos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos.

O processo investigativo centralizou-se em uma documentação formada pela

imprensa local (já relacionada), nos Relatórios dos Presidentes da Província do

Espírito Santo e nos Anais das sessões das Assembléias Provinciais das últimas

décadas do século XIX, especificamente entre 1869 a 1889.

A documentação investigada evidenciou, a princípio, que a Província mostrou-se

conveniente com o projeto de homogeneização e de modernização da nação

desenvolvido pelo Governo Imperial. Porém, no decorrer da investigação foi possível

perceber que a Província desenvolveu um processo de historicidade próprio e

desenvolveu uma certa autonomia política57, principalmente por meio, das iniciativas

legislativas que muitas vezes anteciparam as decisões do Governo Imperial.

2.1 A PARTICIPAÇÃO DOS REPRESENTANTES DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO

SANTO – “FESTINA LENTE”

De modo geral, a participação dos representantes da Província do Espírito Santo no

Congresso Agrícola do Rio de Janeiro (1878) não foi evidenciada pela imprensa

nacional e local e nem nos Relatórios do Presidente da Província espírito-santense

da época. Em comparação a participação dos representantes de São Paulo, Rio de

57 Uma ressalva importante diz respeito à nomeação e origem dos Presidentes da Província: foram todos nomeados pelo Governo Imperial e não eram espírito-santenses, além disto, permaneciam por pouco tempo no poder.

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Janeiro e Minas Gerais, a participação dos representantes espírito-santense se

apresentou de forma ínfima nos registros das Atas do Congresso Agrícola do Rio de

Janeiro de 1878. A princípio não consegui entender este falso estatuto de silêncio,

tendo em vista que algumas das decisões do governo da Província do Espírito Santo

já anteviam a proposta de resolução desse Congresso, ou seja, já expendiam

medidas legislativas em conformidade com os preceitos do programa deste evento.

O corpus desta pesquisa evidenciou uma documentação que salientou essas

medidas, como por exemplo: a Lei de 4 de dezembro de 1869 que aboliu da

escravidão dos filhos de escravas (Lei nº 25), no mesmo ano, foram aprovadas as

medida legislativas que permitiram o acesso dos trabalhadores negros livres e

ingênuos ao Colégio Espírito Santo (Lei nº 32), a defesa de uma educação para o

trabalho e de uma educação agrícola (1870); bem como permitiram a criação das

escolas noturnas (1872) em Vitória, São Mateus e Cachoeiro de Itapemirim e em

outros municípios da Província.

Além dessas medidas, destacaram-se também algumas iniciativas particulares, por

exemplo: a instalação da Sociedade Abolicionista do Espírito Santo, em 17 de

outubro de 1869, cuja finalidade principal era aumentar o número de alforrias de

trabalhadores escravizados, tanto do sexo masculino como do sexo feminino, de

qualquer idade, e fazer deles cidadãos úteis, responsabilizando-se pela sua

instrução religiosa, moral e literária (PEREIRA, 1914, Coleção Especial/ Biblioteca

Central - UFES).

Também não poderia deixar de mencionar, que, em 1871, no decorrer de uma festa

organizada pela Ordem dos Franciscanos em devoção a Nossa Senhora da Penha,

foram concedidas cartas de liberdade a 12 trabalhadores escravizados (8 menores e

4 adultos) e declararam, ainda, que “eram livres os ventres de todas as escravas”

desta ordem, “na Penha e no Brasil” (NOVAES, 1964, p. 257).

A documentação examinada permitiu, pois, apreender que a articulação escravidão,

liberdade, educação e trabalho foram pertinentes também em outras províncias,

como por exemplo, no Grão-Pará, quando a Assembléia Legislativa decretou a Lei

nº 781, em setembro de 1873, elevou o número de educandos do Instituto paraense

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e mandou montar oficinas de alfaiate, sapateiro, correeiro, latoeiro e fundidor. Na

mesma província, por meio de outro decreto legislativo, no mesmo ano, determinou

a disponibilidade de até quinze vagas para o Colégio do Amparo para serem

preenchidas com a “admissão de menores libertados” (MOACYR, 1939, Coleção

Especial/ Biblioteca Central - UFES).

Segundo Novaes (1864), em 1871, no mesmo ano da Lei do Ventre Livre, e ainda

antecedendo a ela, os jornais locais ressaltaram, que prevaleceu na Província do

Espírito Santo a defesa da colonização estrangeira no sentido o “braço livre”

substituísse o “elemento servil”. Assim, em linhas gerais, estas medidas serviram de

incentivo a imigração estrangeira numa tentativa também de branqueamento da

população e de desenvolvimento de um projeto de civilização e moralização da

sociedade associada às medidas educacionais.

Dentre os 78 discursos pronunciados no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de

1878, as Atas destacam a presença de apenas um discurso cuja autoria pertencia

aos representantes espírito-santense. Contudo, os “ecos do interior” de São Paulo,

Rio de Janeiro e Minas Gerais tiveram uma expressiva e superior participação.

Considerei importante procurar compreender o porque dessa disparidade e desse

falso estatuto de silêncio imposto a Província do Espírito Santo, por conseguinte, o

meu primeiro procedimento foi investigar a participação da Comissão formada pelos

representantes do Rio de Janeiro58, Minas Gerais e Espírito Santo e, em seguida,

investigar a participação individual de cada uma dessas províncias.

No entanto, o que pôde ser observado, é que a apresentação dessa Comissão

iniciou, em 10 de julho de 1878, após uma longa reunião que só terminou a meia

noite do dia anterior (o documento não esclarece a razão desse atraso, mas creio,

fundamentando-me em indícios, que não conseguiram chegar a um consenso). O

parecer dessa Comissão foi apresentado pelo Sr. Manoel Peixoto de Lacerda

Werneck, representante da Província do Rio de Janeiro:

58 Entre os participantes dessa comissão encontrava-se Pedro Dias Gordilho Paes Leme, representante da Província do Rio de Janeiro, que foi redator dos textos sobre a “agricultura americana de 1876” C.f. Diário Official do Império do Brazil a partir de 7 até 9 de janeiro de 1878, assinatura na página 3 de 9 de janeiro de 1878.

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São tantas e tão variadas as necessidades da lavoura, que, se de todas se quisesse tratar a um tempo, a nenhuma se atenderia. A sociedade não comporia transformações senão sucessivas e parciais. Na reformas que ela exige convém recordar estas palavras de Carey: “a natureza trabalha lentamente e sem estrondo; o homem devia imitá-la, não esquecendo o sábio preceito que se contém nestas duas tão simples palavras: festina lente.” As principais necessidades da lavoura são: braços, crédito, viação e instrução . O braço escravo desaparece pela manumissão e pela morte o ingênuo, embora alguns o possam considera um auxiliar permanente, se a lei de 28 de setembro for executada, como é de esperar, com a mesma lealdade com que os lavradores a aceitavam, não satisfaz a todas as necessidades da lavoura; é, portanto, indispensável importar braços livres, e como ensaio e meio de transição pra uma colonização de raças mais aperfeiçoadas, o jornaleiro chin é conveniente. A instituição de um estabelecimento de crédito real, com filiais nos grandes centros agrícolas, é necessidade indeclinável; se a lei de 6 de novembro de 1875 não é suficiente, urge modificá-la ou votar outra que com a garantia do governo, dê aos lavradores crédito proporcional ao seu capital. A viação férrea, poderoso estimulante da produção, deve merecer toda a atenção do governo, tendo-se muito em vista a moderação das respectivas tarifas, pra não gravarem excessivamente os gostos da produção. A instrução agrícola elementar , dada nas Escolas, de modo a desenvolver nas gerações novas a vocação pela lavoura, é uma conveniência a que cumpre atender: é na flor que se cultiva o fruto. A lavoura tem incontestavelmente introduzido melhoramentos, que se manifestam no aumento e perfeição dos produtos, apesar da considerável diminuição dos braços; entretanto é certo que muito longe estão eles de atingir os que observamos nos países mais adiantados; enumerar porém quais sejam seria objeto de larga discussão. Dadas assim as respostas aos quesitos tão resumidamente, porque demasiada foi a escassez do tempo para o presente trabalho, compromete-se a comissão a desenvolver no debate essas teses. Seja-lhe, porém permitido acrescentar desde já que urge promulgar uma boa lei de locação de serviços e adotar medidas tendentes a chamar para a lavoura braços nacionais que não deixarão de procurar emprego, desde que lhes forem oferecidos incentivos como a dispensa do imposto de sangue e outros favores igualmente ambicionados pela nossa população. Felizes serão os lavradores das três províncias se suas idéias poderem harmonizar-se com as de seus colegas de S. Paulo. A convocação do Congresso Agrícola é entre nós um fato novo que reconhece a intervenção muito legítima que a importante classe da lavoura de exercer na solução de questões econômicas e sociais que tanto lhe interessam: os lavradores das províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo faltariam a um dever se por tão lisonjeiro acontecimento deixassem de manifestar o seu reconhecimento ao gabinete e especialmente ao ilustre presidente do conselho, ministro da agricultura: a comissão lisonjeia-se de ser órgão dessa manifestação.Rio de Janeiro, 10 de julho de 1878 – Barão do Rio Bonito. – Antonio Álvares de Abreu e Silva Junior. – Pedro Dias Gordilho Paes Leme. – Barão de Nova Friburgo. - Theophilo D. A. Ribeiro. – Manoel Peixoto de Lacerda Werneck. (Diário Official do Império do Brasil, quinta-feira, 11 de julho de 1878, Ano XVII, n. 165, p. 3, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Segundo observou Sr. Galdino Fernandes Pinheiro (da província de Minas Gerais),

esse parecer não enunciou todas as proposições propostas pelos organizadores do

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evento, pois praticamente quase todos os pontos da pauta de discussão já haviam

sido votados, não necessitando então de se prolongar a apresentação da Ata da

reunião dessa Comissão.

Na sessão do dia seguinte (11 de julho e 1878), os organizadores do evento

apresentaram um aditivo ao parecer da mesma comissão:

Ao parecer da comissão dos lavradores do Rio de Janeiro, Minas e Espírito Santo. Que se promova modificação no processo judicial para repressão dos crimes de furto dos produtos da lavoura, tornando-o sumaríssimo, de procedimento oficial, e julgado definitivamente pelos juízes de paz. Que se institui uma guarda de polícia rural mantendo-se por um imposto com essa aplicação especial: Que nos estabelecimentos de crédito real, que se criarem por qualquer sistema que seja, se adote o princípio que o aceite da letra por empréstimo para aplicação à lavoura determine e constitua ônus hipotecário sobre o imóvel e seus anexos, independentemente das solenidades de escritura e de oficial público, uma vez esteja previamente verificado pela certidão negativa a ausência de outros ônus referentes a terceiros, e que haja subseqüente registro da mesma letra no livro das hipotecas (Diário Official do Império do Brasil, quinta-feira, 11 de julho de 1878, Ano XVII, n. 165, p. 3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

O Sr.Julio Cezar de Morais Carneiro (Mar de Hespanha, Minas Gerais), em uma

reunião realizada na mesma, criticou o silêncio imposto à Comissão dos

representantes das Províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo,

principalmente pelo Diário Official do Império do Brasil, que não publicou o parecer

na íntegra:

[...] sem segunda intenção, [...], que não omitiu certas contestações que teve quando aduziu algumas idéias, esqueceu-se de notar o assentimento de uma parte da assembléia a essas idéias. É assim que quando tratou do fato muito conhecido de não poderem os lavradores obter facilmente do banco do Brasil capitais, nem mesmo dando como garantia o valor de suas propriedades rurais, teve é verdade contestações, mas também mereceu o assentimento de uma parte da assembléia (apoiados), como ninguém contestará. No entanto não consta isto do Diário Official. Da mesma forma, quando o orador fez entende que pra supri as necessidades da lavoura e dar remédio à grande crise que a soberba não julgava conveniente uma nova emissão de papel moeda, porque ela não estava de acordo como os interesses reais do país, ao qual repugna mais emissão de papel, teve contestações mas também foi apoiado por alguns membros do Congresso, o que também não consta do Diário Official. Pede por tanto a retificação de todos estes pontos, tanto mais que nos extratos feitos pelo Cruzeiro e Gazeta de Notícias confirma-se o que acaba de dizer. É verdade que do Jornal do Commercio também não consta estes sinais

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de assentimento, mas contra isso não tem o direito de queixar-se, o que faz quanto ao Diário Official [que não publicou o parecer desta comissão] (Diário Official do Império do Brasil, sexta-feira, 12 de julho de 1878, Ano XVII, n. 166, p.3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Uma questão me inquietou em relação a participação aparentemente pequena dos

representantes da Província do Espírito Santo: O que de fato significou esse falso

estatuto de silêncio? Como já afirmei, o Congresso Agrícola de 1878 estabeleceu

um projeto de resolução único para todo o Império, sem considerar as diversidades

regionais, beneficiando primordialmente a lavoura cafeeira paulista. Sendo assim,

cada uma dessas províncias apropriou-se destas medidas conforme suas

particularidades e com mais dificuldades que a Província de São Paulo.

Tendo em vista esta proposição, a maioria das medidas decorrentes dessas

decisões priorizou os interesses as propostas da Comissão paulista, atendendo

assim aos interesses da grande lavoura de café do Oeste Paulista, como, por

exemplo: o projeto de incentivo a imigração estrangeira e a morosidade em relação

à integração social e econômica dos trabalhadores negros libertos por meio das

medidas educacionais.

Uma outra questão que consiste entre as minhas apreensões remete a participação

da Província do Espírito Santo, que forçosamente apresentou-se menor que as

demais províncias. Creio que, tal situação pode ser entendida a partir das

considerações de Bittencourt (1987):

O Espírito Santo, em que pese as similitudes econômicas aos demais estados da região cafeira [sic], apresentava um desempenho bastante secundário em relação àquela unidades da federação, apesar de sua performance nas últimas décadas. Na fase imperial a dinâmica cafeeira não fora suficiente para superar a herança colonial que tornara a região estagnada durante longos períodos (BITTENCOURT, Gabriel, 1987, p. 102).

Outra possibilidade para compreensão dessa situação reporta-se a proposição de

Juçara Luzia Leite (2002) ao fazer menção ao “o antigo ‘mito do atraso’, que nunca

deixou a mentalidade capixaba” (LEITE, 2002, p. 275). Tal mito permeou tanto o

pensamento da elite intelectual e dirigente espírito-santense como se apresentou

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engendrado ao pensamento da elite nacional em relação à Província. Dessa

maneira, o Diário Official do Império do Brazil ao ignorar a publicação do parecer da

Comissão das Províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito evidenciou a

presença do silenciamento das vozes dos seus representantes.

O pronunciamento do Sr. Morais Carneiro (Mar de Hespanha, Minas Gerais) deixou

claro a sua ressalva “a idéia de pedir-se ao governo medidas tendentes a favorecer

no país a emigração chinesa” defendida pela Comissão formada pelas Províncias do

Rio de Janeiro, Minas Gerais e , porque na sua concepção “a emigração asiática,

quer de chins, quer de coolies, importará neste país o estabelecimento de uma raça

inferior, corrompida e degradada” (Diário Official do Império do Brasil, sexta-feira, 12

de julho de 1878, Ano XVII, n. 166, p.3, grifos do autor – Biblioteca Pública Estadual

do Espírito Santo). É importante salientar, que os representantes de Cachoeiro de

Itapemirim divulgaram pela imprensa local argumentos favoráveis à vinda dos

trabalhadores asiáticos para a Província do Espírito Santo.

Finalmente, encontrei um “eco do interior espírito-santense” por meio da voz do

Sr. Francisco Antônio da Motta, o único representan te do município de São

Mateus que participou deste Congresso Agrícola . Ao enunciar sua fala, referiu-

se ao Ministro da Agricultura e ao Presidente do Conselho Agrícola com votos de

gratidão e afirmando ainda que se julgava escusado pronunciar-se de alguma forma

acerca do que se tem discutido, tendo em vista que a comissão das três Províncias

– Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo – apresentou um parecer digno dela.

Dando continuidade a sua fala, construiu um argumento fundamentando-se na

descrição sobre os aspectos geográficos e econômicos da região de São Mateus:

Conforma-se inteiramente com as opiniões dessa comissão quanto à criação de bancos para auxiliar a lavoura, quanto à locação de serviços, e dos mais assuntos. Não é o orador o único representante do norte da província do Espírito Santo. Tem no congresso um colega, delegado pelo município da capital, mas é natural de São Mateus e lavrador nessa comarca há 35 anos; conhece-a e por isso pode declarar sem receio e contestação, que ela está inteiramente esquecida, quando é digna de melhor sorte. Não se sabe que existe comarca de S. Mateus; entretanto tem um bom proto por onde entram carregados navios de 14 palmos de calado. Do litoral até 20 léguas para o centro o terreno é ubérrimo, magnífico para o plantio da cana, mandioca e todos os cereais; e daí para cima, o terreno é argiloso, não arenoso. Encontra-se nessa comarca terra roxa, como na província de São Paulo, que o

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orador teve o prazer de visitar há [sic]poucos dias, e muito próprio à lavoura de café: O rio de S. Mateus é navegável 25 léguas; 7 por navios de 14 palmos de calado, e 19 por embarcações menores. Partindo da cidade de S. Mateus para Diamantina, província de Minas, encontra-se um picadão, pelo qual tem já descido e subido tropas carregadas de mantimentos. Aquela zona, portanto está explorada, mas falta-lhe um via de comunicação fácil, e que é reclamada pelos habitantes do norte de Minas que desejam e precisam ter um porto de mar na comarca de S. Mateus. Naquela zona, na distância de 60 léguas, de S. Mateus à Minas, não existe serras a cortar ou abrir, ali não será necessário fazer-se nem um túnel, quando for construída uma estrada de ferro econômica de bitola estreita que, partindo de S. Mateus para o norte de Minas abranja Diamantina, Minas Novas, Serra, Grão-Mogol, Capelinha etc. Nas margens do picadão encontrar-se-ão madeiras de todas as qualidades para a construção dessa estrada, não será preciso conduzi-las por animais. Essa estrada tornar-se-á mais barata do que uma estrada de rodagem, cuja boa conservação exige sempre grande dispêndio. Essa via de comunicação fácil e barata entre S. Mateus e o norte da província de Minas, irá dar recursos a 265 mil habitantes que estão clamando por ela. Uma arroba de toucinho vende-se no norte de Minas por 1$000, ao passo que em S. Mateus custa 14$000; um alqueire de sal vende-se no norte de minas por 22$000, quando em São Mateus custa 2$000. Já se ver que a causa de tamanha diferença nos preços é não existir uma via de comunicação fácil. Pede, portanto, o orador que o governo preste atenção à esse assunto. Já existe um projeto dos muito dignos Srs. Drs. Antonio Felício dos Santos e Epiphanio Pitanga; mas o ministro de então, o Sr. Costa Pereira59, aliás deputado pela província do Espírito Santo, não deu a menor solução a esse projeto. Empenhando-se o orador a esse respeito, S. Ex. respondeu: o Sr. vem pedir para republicanos e eu sou conserva dor (riso) esquecendo-se de que os autores desse projet o, embora republicanos, são cidadãos brasileiros. [...] O SR. MOTTA acrescenta que a comarca de S. Mateus, não obstante achar-se nas condições que acaba de expor, tendo um rio navegável e terrenos devolutos muito baratos, próprios para toda a cultura, não tem merecido atenção de sua própria capital; o governo da província não se tem lembrado daquela [ilegível] [...] Deve o governo ter muito em vista as vias de comunicação fácil. Se quando começou-se a construir a estrada de Pedro II, há 22 anos, se tivesse dado garantia de juros para estradas de ferro nas províncias centrais, cujo clima e tão saudável, certamente viriam espontaneamente da Europa muitos homens de trabalho estabelecer-se no Brazil, estaríamos com maior população; mas infelizmente só se tem despesas sem resultado algum. Se houvesse vias de comunicação fácil nas províncias centrais, não estaríamos lamentando a desgraça do Ceará60, onde têm morrido à fome milhares de brasileiros. Concluindo, repete o orador que está muito satisfeito com o parecer da comissão o que se tem expendido acerca da comarca de S. Mateus para que não fique inteiramente no ouvido. Precisa acrescentar que não esteve presente no clube com os representantes do Espírito Santo, à noite passada, e que se estivesse, não concordaria na parte relativa à colonização chinesa, porque é contrário à colonização oficial de chins para o Brasil. Sem ter tido a pretensão de fazer um discurso, o orador

59 Eleito deputado pelo Espírito Santo, Costa Pereira foi, posteriormente, Ministro da Agricultura, Ministro do Império e agraciado com o títulos de Conselheiro C.f. Bittencourt (1987, p.36). 60 Vide por exemplo Bittencourt (1987) afirmando que esta área mais tarde abrigaria boa parte dos retirantes cearenses e imigrantes italianos, às vésperas da Proclamação da República, viabilizando a fundação da atual Nova Venécia (BITTENCOURT, 1987, p. 60).

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agradece a atenção com que foi ouvido no que disse com relação a comarca de S. Mateus (Diário Official do Império do Brasil, sexta-feira, 12 de julho de 1878, Ano XVII, n. 166, p.4, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito).

Em resposta ao Presidente do Conselho Agrícola pronunciou-se afirmando que:

-Tenho de declarar ao Sr. Representante da lavoura do Espírito Santo que, antes mesmo das importantes informações que me acaba de dar, expedi ordem para se abrir uma estrada que partindo de Philadelphia vá procurar a cidade de S. Mateus até o Alto dos Bois ou Minas Novas. (Muito bem.)Vozes: - É um ato patriótico. (Diário Official do Império do Brasil, sexta-feira, 12 de julho de 1878, Ano XVII, n. 166, p.4, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Segundo Bittencourt (1987) a cidade de São Mateus61 era, historicamente, uma das

mais importantes do Espírito Santo, destacando-se na produção de farinha de

mandioca, o que contribuiu para a modernização do Porto de São Mateus, além de

ter criado também uma infra-estrutura à exportação de café. Segundo autor, a

construção de vias de comunicação tinha como o principal escopo: ligar o norte de

Minas Gerais ao mar, através do Porto de São Mateus, evitando as vizinhas de rios

e, por conseqüência, as temidas febres paludosas, projetando-se, assim, a estrada

São Mateus ao Peçanha, no município do Serro, considerada uma das mais ricas

regiões de Minas Gerais. Todavia, o Sr. Motta ao se pronunciar no Congresso

Agrícola do Rio de Janeiro de 1878, destacou a importância das vias de

comunicação no intuito não só de intensificar a cafeicultura e, sim priorizar a queda

dos preços dos produtos comercializados entre as duas Províncias.

Conforme sugestão de Bittencourt (1987), realizei uma leitura dos Relatórios dos

Presidentes da Província do Espírito Santo procurando confirmar suas proposições:

A dinâmica econômica do café, no entanto, exigia medidas vigorosas ao escoamento da produção. Por volta de meados do século, os esforços do governo concentravam-se na recuperação de vias consideradas vitais à economia provincial e criação, pela hinterlândia do Espírito Santo, de um “corredor de exportação” para Minas Gerais [...] Mas era nos núcleos das colônias cafeeiras, sem dúvida, que se concentravam

61 Nesse período contavam-se os fazendeiros abastados como Antônio Rodrigues da Cunha, o barão de Aimorés, proprietário da Fazenda São Domingos, onde se cultivava a cana-de-açúcar em grande escala, Graciano dos Santos Neves (Fazenda do Palhar), José Gomes Sodré (Fazenda Córrego Grande), Otávio José Esteves, Reginaldo Gomes dos Santos (Campos Redondo), José Faria, Jacinto Rodrigues (Fazenda Jurema), Manoel Ribeiro Silvares (Roda D’Água), José Esteves e o barão de Timbuí (Fazenda Itaúnas), entre outros (BITTENCOURT, 1987, p. 61 e 62).

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as atenções dos responsáveis pela viação da Província. [...] Os governantes capixabas ainda acreditavam que a viabi lidade econômica do Espírito Santo, dependia de sua ligaçã o com Minas Gerais . Esta última interessava-se por uma saída alternativa para o mar. Assim sendo, com a estrada de ferro pretendia-se atrair a colonização e a imigração para as terras ainda incultas, ampliar a lavoura existente, promover o setor terciário e, sobretudo a navegação com o exterior (BITTENCOURT, 1987, p. 77, 78 e 93, grifos meus).

Dessa forma, por meio da voz do Sr. Motta foi apresentada a prioridade do município

de São Mateus que seria conseguir o apoio do Governo Imperial nos investimentos

das vias de comunicação da região, no sentido de aumentarem o controle sobre os

preços dos produtos comercializados com a Província de Minas Gerais. Penso que,

implicitamente, o que ele defendeu estava relacionado à descentralização da

economia espírito-santense do eixo com o Rio de Janeiro e São Paulo, reforçada

pelos interesses de Cachoeiro de Itapemirim, e não de São Mateus.

Diante de todas essas preocupações apontadas no Congresso Agrícola do Rio de

Janeiro de 1878, continuei procurando respostas sobre o falso estatuto de silêncio

investigando os Anais e as Atas das sessões das Assembléias Provinciais a partir do

ano de 1878. Sendo possível, então, por meio dos registros desses documentos

examinar o que de fato foi articulado na Província comparando-o com as resoluções

do Congresso Agrícola de 1878.

Os Anais da Assembléia da Província do Espírito Santo, entre 1868 a 1878,

evidenciaram uma série de discussões sobre projetos em defesa da Reforma de

Instrução Pública, como por exemplo, o projeto de Moniz Freire que defendeu a

reorganização62 da escolarização feminina (diferenciada da instrução para os

meninos), bem como foram discutidos outros projetos em defesa da educação para

o trabalho e a criação de escolas noturnas (1869). Além desses, também foi

aprovado o projeto de criação da Escola Normal, que substituiu o antigo Colégio

Espírito Santo, que desde 1869 permitia o acesso dos ingênuos (todas essas

medidas foram aprovadas mesmo antes dessa postura ser assumida pelo

62 De acordo com Lucas (2006), em 1835, foi criada a primeira cadeira de primeiras letras para meninas (Lei Provincial n° 4). Porém, a cadeira que ficou vaga até 1845 por “falta de profissional capaz”. A autora acrescentou, ainda que a organização da primeira escola pública para meninas na Vila de Vitória sob a responsabilidade da professora Maria Carolina Ibrense Brasileira, em 1845, sob a determinação da Lei Provincial n°1 de 1843 (LUCAS, 2006, p.2).

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Congresso Agrícola no Rio de Janeiro, em 1878). É importante ressaltar que isso

aconteceu no mesmo período que Moniz Freire assinou, juntamente com “A.

Monjardim”, o Projeto em defesa da liberação da verba para a mobilização das

emancipações das filhas das mulheres negras escravizadas. Quanto a isto, caro

leitor, não estabeleço conjecturas, apenas apresento os fatos na tentativa mostrar

uma necessidade de uma investigação posteriori.

Neste contexto, da mesma forma se destacaram nos registros desses documentos

os fatores internos que dificultaram a implementação da reforma educacional na

Província do Espírito Santo: a precariedade de recursos financeiros, a escassez de

escolas, a existência de professores não habilitados (“educação falseada e

viciosa”)63, como também a insuficiências dos seus vencimentos, e a ineficiência do

controle do poder público na aplicação das medidas educacionais necessárias.

Havia também a necessidade de controlar os recursos investidos na educação, que

ocupavam uma percentagem elevada dentro do orçamento financeiro da Província.

Tal situação foi reiterada por meio da afirmação do deputado José Corrêa de Jesus:

Mas não se pode contestar que é este o quadro que existe em relação a Instrução pública da província e se não vede à quantos anos as Assembléias têm consignado a terça parte das rendas da províncias com a instrução Pública e no entanto, Senhores, vós encontrareis por aí os milhares de analfabetos para protestar e mostrar, que não existe instrução na província (Anais das Sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1878, sessão ordinária de 23 de outubro de 1878, p. 156 – Anais das Sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1878, sessão ordinária de 23 de outubro de 1878, p. 156, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Além disso, desde o pronunciamento do Presidente da Província Francisco Corrêa,

em 1871, até o Relatório do Presidente da Província Manoel da Silva Mafra, em

1878, foram pertinentes as medidas legislativas voltadas para o incentivo a

imigração estrangeira, como também a educação para o trabalho, em especial ao

trabalho agrícola e a criação de escolas noturnas para Província.

Proferir esta palavra [colonização] é, Senhores, exprimir a mais palpitante necessidade deste país, mas é também e ainda hoje, confessemo-lo, formular um problema que exige solução. Que esforços,

63 Anais das sessões da assembléia provincial do Espírito Santo de 1878, sessão ordinária de 23 de outubro de 1878, p. 155 – Arquivo da Assembléia Legislativa do Espírito Santo.

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que decepções, que experiências amargas, que somas avultadas nos tem custado o empenho de povoar os nossos vastos sertões? Entretanto, cumpre caminhar. Não há recuar – que as nossas matas e nossas riquezas, ocultas no solo, aí jazem em silencio eloqüente a pedir braços e braços. Só destes pode resultar o aumento da riqueza pública, e é preciso atraí-los pela emigração. Nada tem poupado os poderes públicos para consegui-la, e esta província é das que mais testemunho pode dar desse fato, pelas despesas, que nela se tem feito e continua-se a fazer, para desenvolver os seus núcleos coloniais e constituí-los os centros de atração. Nas colônias do Rio Novo e Santa Leopoldina podem os imigrantes recém chegados na abastança, e mesmo nos modestos haveres de seus habitantes ver o que podem o trabalho, a – diligência, e o empenho em garantir-se por eles o bem estar da família. Tem nos antigos e laboriosos colonos os exemplos a seguir para prosperarem (Relatório do Presidente de Província Manoel da Silva Mafra a Assembléia Legislativa Provincial, 22 Outubro 1878, p. 42 –Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

A documentação investigada possibilitou, também, perceber que a elite intelectual e

dirigente espírito-santense priorizou investir na imigração européia como solução

mais efetiva e imediata para o problema da mão-de-obra, deixando as medidas

voltadas para a educação dos ingênuos e negros adultos libertos para serem

efetuadas de forma lenta e gradual (festina lente), principalmente justificando tal

opção por meio dos discursos educacionais. O que estou procurando argumentar é,

sem dúvida, que essa aparente ambigüidade se explica não pela incerteza, mas foi

adotada como estratégia de ação política que favoreceu os interesses dos grandes

proprietário que desejavam tornar o processo abolicionista lento e gradual e manter

o controle sobre as emancipações dos trabalhadores negros escravizados.

Assim, por diversas vezes as discussões nas sessões das Assembléias

Provincianas64 foram contraditórias ao que de fato se articulava na Província, em

função das divergências entre os próprios deputados, ou entre eles e o Presidente

da Província, ou melhor, entre os representantes do Partido Conservador e os do

Partido Liberal. Esse confronto evidenciou-se tanto em relação às questões

voltadas para as despesas com a instrução pública como também em relação às

determinações legislativas relacionadas com as grandes tensões (trabalho,

modernização e educação).

64 C.f. Anais da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1878, p. 107, 108 e 154 à 170 – Arquivo da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo.

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O pronunciamento do deputado José Corrêa de Jesus contribuiu para a construção

desta assertiva:

Ainda mais, Sr. Presidente, os nobres deputados membros da comissão de instrução pública, no artigo 4º consignam disposições que restringem a liberdade de entrar na escola; trancam a porta da escola àquele que por ventura tiver atingido a idade de 10 anos, não permitindo que ele aí penetre. Pois, senhores, quando hoje em toda a parte se abrem escolas para aqueles que precisam de trabalho para viver; para aqueles que largando o banco do trabalho tem necess idade de aprender a ler, escrever e contar; quando por toda a parte se abrem escolas noturnas que são reconhecidas de grande uti lidade [...] (Anais das Sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1878, sessão ordinária de 23 de outubro de 1878, p. 159, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

As grandes tensões e a inércia do Estado, muitas vezes, provocaram a ineficiência

na implementação dos projetos educacionais, principalmente daqueles voltados

especificamente para a população negra escravizada, livre e liberta. Porém,

surgiram algumas iniciativas particulares e bastante significativas, como por

exemplo:

Aulas noturnas Grêmio [ilegível] Cachoeirense

É dever de todas as empresas provenientes de iniciativa particular, respeitar os sentimentos do poso que a acalora com os seus aplausos; mas também é de estrita obrigação dos seus membros, guiarem os que são ou que pretende ser ignorantes da vida econômica de tais empresas. O “Grêmio” rico de seiva e de sentimentos humanitários funda e mantém a aula noturna de primeiras letras e pouco tempo depois procede do mesmo modo com a de música, a qual foi sustentada particularmente pelos prestantes sócios srs. dr. [sic] D. Maciel, A. Machado, V. Campos, B. Horta, J. Loyola e Dr. E. Amorim. Ao custeio dessa aula acompanhava o desejo dos sócios de dotarem à sociedade com uma banda musical própria (O Cachoeirano, 15 de fevereiro de 1885, Ano XII, n.7 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Estas considerações dizem respeito, principalmente, as iniciativas particulares

lideradas pela elite intelectual e dirigente e ao seu caráter “excepcional e filantrópico”

(conforme já fiz menção). Sobre isto, é interessante salientar que os “prestantes

sócios” faziam parte da elite cachoeirense e eram representantes da geração de

intelectuais da década de 80, compromissados principalmente com os ideais

abolicionistas e republicanos, e, diferentemente dos representantes dos intelectuais

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da década de 70, foram para além do movimento reformista e entraram em confronto

com as medidas governamentais do Império.

Na sua maioria, eram profissionais liberais, jornalistas e precursores do movimento

republicano no sul-capixaba, como por exemplo: Bernardo Horta de Araújo e João

Loiola (redator e proprietário do jornal O Cachoeirano) que fizeram parte da

comissão permanente do Partido Republicano (1888) juntamente com assim

Eugênio Brandão do Vale, Afonso Cláudio e Pedro José Fernandes Medina. Tal

comissão foi formada no primeiro Congresso Republicano do Espírito Santo, que

“realizou-se também em Cachoeiro de Itapemirim, no dia 16 de setembro de 1888, o,

com a presença de todos os representantes dos clubes provinciais” (COSTA, D.M.

V., 2005). Dessa forma, a “região sul, além de ter sido pioneira na fundação de

clubes republicanos, concentrou o maior número desses clubes atuando como

centro de maior difusão dessas idéias na Província” (SILVA, M. Z., 1995, p. 65).

Diante disso, não poderia deixar de relacionar a implementação das escolas

noturnas com o crescente movimento republicano, pois

Tornando-se difícil a realização dessa idéia pela má vontade dos alunos para com o sr. Francisco Rodrigues Marques, então, professor e também por falta de verba suficiente para a compra dos instrumentos; resolveram os sócios sustentadores dispensaram e sr. F. Marques de professor. Feito isso reuniram-se e angariando ainda o auxílio dos srs. sócios dr. J. Amorim e Emygdio Martins, obtiveram para professor da dita aula o sr. Benedicto Correia de Toledo Junior. Por enquanto a escola funcionará à noite, das 6 às 8 horas nos sábados e domingos, passando mais tarde à ser diária. É claro que o desejo, o único intento do “Grêmio” e de seus associados e divulgara instrução que aproveite, é contribuir para o engrandecimento local, é honrar à população que o favorecia e mesmo à que o rebaixa [e não poderia deixar de acrescentar o interesse de divulgar as idéias republicanas]. Mas é tão limitado o número dos que o guerreiam, são tão fracas as acusações, se elas podem existir, que esses só dignos são do desprezo. E quantos desses que retiraram-se de sócios, que nunca o foram e que falam – tem-se utilizado das [sic] aulas da sociedade e dos seus livros? Será esse o modo de obrar honroso? Se a sociedade não convém, não tem préstimo, não é digna de tê-los como sócios, concorrendo com as suas mensalidades para auxiliar os seus intentos como animam-se a desfrutá-la mandando seus filhos, criados, ingênuos , etc., para as aulas existentes onde recebem a instrução, bem como livros, papel, tinta, penas, canetas , etc. Se todos assim procedessem ficariam com algumas patacas a mais na burra, mas a existência da sociedade seria utopia. Convençam-se da utilidade da sociedade e auxiliem-na, não como dinheiro, se assim quiserem, mas com boa vontade que todas as grandes almas consagram às instituições prestantes. Alguns momentos

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consagrados à sociedade os tornarão respeitados no futuro, e embora os vossos sucessores, esta vida não é eterna, esbanjem os vossos haveres acumulados pelo trabalho honrado os vossos noves serão sempre lembrados com gratidão pelos vindouros. Menos egoísmo e mais amor as tornarão em que vivemos.

B. Horta (O Cachoeirano, 15 de fevereiro de 1885, Ano XII, n.7, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

O documento acima permitiu desvelar “detalhes” que apontaram para outras razões

que permearam a criação das escolas noturnas confirmando que tais projetos

educacionais de caráter particular visavam atingir a camada popular por meio da

educação no sentido de também fazer a propagação das idéias em defesa do

movimento republicano.

O texto de Bernardo Horta evidenciou a preocupação com a educação elementar,

inclusive para os próprios ingênuos e a necessidade de adaptar os horários das

aulas de acordo com a disponibilidade dos alunos, evidenciando a premência da

formação para o trabalho. Desse modo, é importante mencionar que o processo de

modernização e a educação para o trabalho se tornaram os pilares sobre os quais

se alicerçaram as medidas oficiais de inovação educacional nas últimas décadas do

século XIX. Isto é, a escola popular, e inclusive as aulas noturnas foram elevadas à

condição de redentora da nação, priorizando um ensino primário voltado para a

formação dos trabalhadores. Por outro lado, o ensino secundário foi destinado a

uma educação mais erudita e apropriada para a formação da elite intelectual e

dirigente. Todavia, ambos estavam relacionados aos interesses econômicos e

políticos dessa elite e vinculadas ao contexto das grandes tensões nacionais.

De acordo com que foi noticiado no jornal A Província do Espírito Santo (Vitória,

edição de quinta-feira, 19 de julho de 1883, Ano II, n. 272), em 1º de julho de 1883,

uma escola popular foi instalada (gratuitamente) na propriedade do negociante

Araújo Machado, que na ocasião doou “cento e tantos volumes” entre os mais de

1.000 que pertenciam ao Grêmio. Outro ponto considerado relevante em relação a

esta escola, segundo o presidente eleito, o engenheiro Deolindo Maciel, é que essa

escola tinha como missão a manutenção de aulas noturnas e o estabelecimento de

uma biblioteca popular. Assim, no dia 21 de outubro de 1883, instalou-se a aula

noturna de primeiras letras mantida pelo Grêmio Cachoeirense, funcionando às

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segundas, terças, quartas, sextas e sábados, sob a direção do Dr. Joaquim Pires de

Amorim. Dessa maneira, o Grêmio “passou a constituir um centro de interesse (uma

sala de leitura com um formidável acervo literário), prestigiado pela população

Cachoeirense, pois prestavam serviços educativos e sociais” (COSTA, D.M.V, 2005).

Deane Costa (2005) destacou, também, que os intelectuais que assumiram o

controle do movimento republicano no sul-capixaba haviam estudado nas faculdades

das Províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Dessa forma, por meio

do Grêmio Cachoeirense contribuíram para a implementação da educação popular e

para a divulgação das idéias republicanas na Província do Espírito Santo.

A propagação das idéias republicanas foi favorecida pelo fato de existir em

Cachoeiro de Itapemirim um setor da população urbana formado por profissionais

liberais, pequenos proprietários, e jornalistas para o qual o regime monárquico

representava um entrave, limitando as oportunidades políticas, econômicas e sociais

da Província do Espírito Santo (COSTA, D.M.V., 2005). Tal situação favoreceu a

fundação do Clube Republicano, no dia 23 de maio de 1887, na residência de

Joaquim Pires de Amorim, onde atualmente está localizado o Colégio Cristo Rei.

Assim, em clima de efervescência expresso através de comícios, reuniões e

conferências, os princípios republicanos foram propagados na Província do Espírito

Santo (COSTA, D.M.V, 2005).

Assim, a escola noturna fundada pelo Grêmio Cachoeirense estava vinculada ao

ideal republicano e as tensões conseqüentes da iminência do final da escravidão e

da crise de mão-de-obra para a lavoura cafeeira, de modo que foi criada,

principalmente, para atender aos interesses das elites intelectuais e dirigentes e dos

grandes produtores de café que apoiaram ao movimento republicano e priorizaram a

educação para a formação do trabalhador livre. Além disso, estava vinculada as

grandes tensões – trabalho (escravidão/abolição, imigração), modernização e

educação) – que caracterizaram as últimas décadas do século XIX.

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2.2 UM PERCURSO HISTÓRICO DE UMA MUDANÇA DE PENSAME NTO - UMA

EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO

Um dos objetivos axiais deste capítulo é evidenciar a mudança de pensamento da

elite intelectual e dirigente espírito-santense em relação à educação, nas últimas

décadas do século XIX. Assim, fiz a opção de consultar a documentação oficial

para conhecer as estratégias usadas por essa elite para realizar as reformas

educacionais na Província do Espírito Santo, nesta época, e principalmente, busquei

conhecer as vicissitudes das ações legislativas voltadas para as camadas populares,

especificamente aquelas que tinham o intuito de exercer a modelação social. Dessa

forma, minha primeira preocupação foi realizar um percurso que me permitiu

compreender como foram construídas especificamente as representações, as

apropriações e práticas da elite intelectual e dirigente em relação à educação para

o trabalho que deveria ser oferecida aos trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos.

O percurso realizado até então, permitiu conclui que no contexto das grandes

tensões ocorreu uma mudança no pensamento da elite intelectual e dirigente

espírito-santense, proporcionando o surgimento de uma nova escala de valores para

se pensar o trabalho manual e agrícola; bem como ocorreram mudanças nos

costumes e hábitos do povo desta Província. Desenvolveu-se, então, uma ética do

trabalho, destinada também à formação da moral e ao controle social, ou seja,

desenvolveu-se uma educação imperfeita respaldada por um novo discurso

respaldado nas transformações socioculturais das últimas décadas do século XIX.

Confirmando este conjunto de asserções, cito um texto extraído do jornal O

Operário do Progresso versando sobre o “Amor ao trabalho” afirmou que:

Um dos mais importantes benefícios que se podem fazer aos homens, e em especial a classe popular, é inspirar-lhes o amor as suas inapreciáveis vantagens, os seus felizes resultados: fazer entrar este assunto, como parte essencial, no plano da instrução das primeiras escolas. O trabalho é o destino comum de todos os homens que existem sobre a terra: comerdes o pão (disse Deus ao nosso primeiro pai) comerdes o pão à custa do autor suor do teu rosto. Quem trabalha cumpre com o seu destino: obedece à voz do seu Criador. O trabalho é a verdadeira pedra filosofal , que os antigos com tanto empenho, e tanto em vão, pretenderam indagar. A pedra filosofal consistia em converter os mesmo a arte de criar o ouro: basta-lhe por em movimento

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os seus braços e as suas mãos. O trabalho não deslustra, antes enobrece e exalta a dignidade do homem. Pelo trabalho consegue o homem subjugar a natureza, e fazer-se senhor dele; conquista a sua riqueza e o seu poder; transforma de mil modos os seus produtos, e os multiplica; governa em fim à seu arbítrio, e faz fecundas as forças que ela tem dispersas, e talvez ociosas, pelo ar, pelas águas, no seio da terra e pelo mais recôndito dos elementos. O trabalho fixa e ao mesmo tempo entretem [sic] a inquieta atividade do homem, regulando-a e desviando-a de perigosos extravios e excessos; cativa-lhe os sentidos, e os submetem a um regime salutar. Os exercícios do trabalho previnem ou acalmam as agitações da fantasia; dissipam os seus vãos prestígios, e extravagantes quimeras: trazem o homem ao conhecimento do positivo, do útil, ao país das realidades. O trabalho é uma escola de sobriedade, de temperança, de virtude, e livra o homem dos funestos perigos da ociosidade. Os vícios não entram de ordinário, ou não entram com facilidade [...] A estatística dos crimes mostra que as classes laboriosas são proporcionalmente as que menos figuram no odioso e abominável quadro das maldades humanas. O trabalho é também uma escola de resignação, por que nos ensina e lembra a nossa dependência; corrige e castiga o nosso orgulho e vaidade [...] Com o trabalho, pega o homem o tributo que deve à s ociedade que o protege e defende: concilia o amor de sua família , dos seus vizinhos, dos seus concidadãos, e dar bons conselho s a seus filhos. Enfim, o homem amigo do trabalho é essenci almente interessado na conservação da boa ordem pública, po r que dela depende a posse, e gozo pacífico dos frutos da sua indústria . [...] (O Operário do Progresso, 5 de abril de 1875, Ano 4, n. 15, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo).

Textos, como este supracitado, foram divulgados com freqüência pela imprensa

local, possibilitaram, assim, apreender as representações da elite intelectual e

dirigente, seja no âmbito nacional ou local, sobre as práticas educacionais que

deveriam ser oferecidas e apropriadas pelas camadas populares, e em especial,

aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos. Tais práticas foram usadas

para atender as demandas das transformações socioeconômicas e políticas deste

período. Dessa maneira, o ensino das habilidades técnicas para o trabalho e a

modelação da moral foram questões de ordem para a educação deste período.

Conseqüentemente, no final do século XIX, a escola popular foi elevada à condição

de redentora da nação e passou a ser usada no processo de modernização da

sociedade. A preocupação com a escolarização das camadas populares tornou-se

uma temática central atrelada aos interesses políticos, ideológicos, religiosos,

sociais, econômicos e culturais da elite intelectual e dirigente. Porém, não impediu

que as camadas populares se apropriassem da instrução pública objetivando a

ascensão social e a consolidação da liberdade corpo e da mente.

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Nas últimas décadas do século XIX, primordialmente na década de 80, a instrução

pública surge como uma necessidade social, tornando-se objeto da criação de um

sistema nacional de ensino que preparasse o trabalhador e o “cidadão útil”.

A educação foi considerada, então, a alavanca que atenderia as expectativas do

prelúdio da nova ordem política e deveria contribuir na formação e integração dos

trabalhadores às exigências do processo de modernização socioeconômica do País.

Tal situação foi uns dos pontos fulcrais da reforma do ensino primário organizada

por Rui Barbosa65, em 1883, que propôs por meio de um programa enciclopédico

atender as necessidades de ampliação da cultura escolar para o povo; bem como

também se preocupou com as questões nacionais, principalmente, a tensão em

torno da transformação do trabalho escravizado em assalariado.

2.2.1 “Dai-me a instrução pública durante um século , que mudarei a face do

mundo” 66 - educar para civilizar

Ao traçar um percurso histórico das discussões sobre a importância da educação

para a modernização do Brasil, não posso deixar de fazer menção Lei Geral da

Educação de 15 de outubro de 182767 , que determinou no seu Artigo 1º a criação de

escolas de primeiras letras, em todas as cidades, vilas e lugarejos mais populosos

do Império, desencadeando uma série de medidas que em longo prazo exerceram

mudanças que atribuíram ao Estado efetivamente o controle sobre a organização e

administração da educação do País.

65 As concepções e propostas contidas no parecer educacional de Rui Barbosa foram adotadas nas reformas da instrução pública realizadas em várias províncias na década de 1880, e posteriormente pelos estados nas primeiras reformas educacionais da era republicana. 66 Expressão de Gottfried Wilhelm Von Leibnitz (1646-1716), filósofo, matemático e diplomata alemão, citada no Relatório do Presidente de Província do Espírito Santo Pedro Leão Velloso, em 25 de maio de 1859. Expressão inspirada na frase de Arquimedes dita há acerca de 2800 anos: "daí-me uma alavanca e um ponto de apoio que eu moverei o mundo". 67 Primeira Lei Geral sobre a instrução pública no Império (e única). Essa Lei tratou dos mais diversos assuntos como descentralização do ensino, remuneração dos professores e mestras, ensino mútuo, currículo mínimo, admissão de professores e escolas das meninas. O seu artigo 1ºdeterminava que “em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos, haverão as escolas de primeiras letras que forem necessárias”. Nos artigos 6º e no 12º fazia distinção entre a educação dos meninos e das meninas: as Escolas de Primeiras Letras deveriam ensinar, para os meninos, a leitura, a escrita, as quatro operações de cálculo e as noções mais gerais de geometria prática. Para as meninas deveriam ensinar a economia doméstica, como por exemplo:costurar, bordar, cozinhar etc (BRASIL. Decreto-Lei de 15 de outubro de 1827).

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Primitivo Moacyr (1940) ao se referir ao panorama da educação espírito-santense

em 1847, procurou enfatizar a necessidade de uma reforma educacional, afirmando

que “em quase todo o país se há reconhecido que a lei geral de 15 de outubro de

1827 não é [foi] por si suficiente para conseguir o melhoramento da instrução

pública” (MOACYR, 1940, p. 5). Tal situação se explica devido a existência de

problemas relacionados à freqüência das aulas, às condições materiais e a formação

dos professores que deveriam ser resolvidos. Dessa forma, neste momento início

um percurso pelos relatos dos Presidentes de Província tentando assim

compreender as vicissitudes desta afirmação de Primitivo Moacyr.

O Presidente da Província do Espírito Luiz Pedreira de Couto Ferraz no seu

Relatório apresentado a Assembléias Provincial, em de 1º de março de 1848,

ressaltou o “dever urgente de reformar o ensino” por meio de uma série de medidas

legislativas que resultaram na promulgação do Regulamento das Escolas de

Primeiras Letras da Província do Espírito Santo, de 20 de fevereiro de 1848. Esse

Regulamento respaldou a organizar e a administração da instrução pública da

Província do Espírito Santo, determinando que:

As escolas públicas primárias dividem-se em duas classes. Nas de primeira ensinar-se-á leitura, escrita, rudimentos de gramática nacional, teoria e pratica [sic] de aritmética até proporções, noções gerais de geometria pratica, moral cristã e doutrina da religião do Estão. Nas de 2ª classe: as mesmas matérias excluindo a geometria e limitada a aritmética à teoria e pratica [sic] das quatro operações de números inteiros. As escolas de 1ª classe serão estabelecidas nas cidades, vilas e freguesias mais notáveis pela população. As de 2ª classe serão criadas pelo presidente da província [sic] nas outras freguesias e nas povoações em houver mais de 20 meninos de idade escolar. A instrução do sexo feminino compreenderá as das escolas de 2ª classe e mais costura, bordado e mais prendas [...] As escolas de 1ª classe serão providas por exame público feito perante o presidente da província e uma comissão de três membros. [...] Ninguém poderá abrir escolas, nem ensinar em aula particular, sem licença do presidente. Para concessão desta licença é necessário provar o pretendente: atestado de moralidade, apresentar folha corrida, maioridade. O método de ensino é, em geral, o simultâneo, mas poder-se-á adotar outros que forem mais adequados, conforme os lugares, suas necessidades e recursos. Não serão admitidos à freguesia das escolas publicas o que padecerem de moléstias contagiosas e escravos. Os professores particulares são obrigados a dar aos inspetores locais as informações pedidas e os mapas trimensais e anuais de alunos, sob pena de multa de 50$000 e penas criminais. O produto das multas será aplicado em proveito da instrução (MOACYR, Primitivo, 1940, p.5-7, grifos meus – Coleção Especial/ Biblioteca Central - UFES).

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Tais determinações deixaram de forma explícita a exclusão dos trabalhadores

negros escravizados. Porém, segundo Primitivo Moacyr (1940), em 1847, havia na

Província do Espírito Santo 15 escolas com freqüência de 487 alunos e duas de

latim com 27 alunos. Diante destes dados insignificantes, ficou claro, então, que

estes números evidenciaram também a presença de uma exclusão da maioria da

população formada pelos os não-escravizados, ou seja, os brancos, livres e, sem

dúvida, pobres, e não exclusivamente os trabalhadores escravizados.

Todavia, conforme o Relatório do Presidente da Província, o Dr. Pedro Leão Velloso,

a aprovação deste Regulamento de 1848 permitiu uma certa melhora da situação

da instrução pública a partir da organização de uma inspeção sobre cada escola da

Província. Por um lado, essa melhora foi percebida tendo em vista o aumento do

número de alunos que freqüentavam as escolas de instrução elementar: em 1858, o

número de alunos passou para 958. Por outro lado, ressaltou que este número

ainda era insignificante em comparação ao índice populacional da Província, que

aproximadamente de 50.000 pessoas (1 por 52 habitantes).

Dessa forma, tanto os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos como os

trabalhadores não-negros, livres e pobres estavam alijados do processo educacional

na Província do Espírito Santo. O que não significa que a situação de exclusão dos

trabalhadores negros escravizados deva ser menosprezada. Não é isso, de forma

alguma quero tornar o argumento da exclusão racial tênue, apenas apresento os

fatos.

Apesar da construção de um pensamento voltado para a valorização da instrução

pública, de modo geral, a educação brasileira no século XIX caracterizou-se pela

dicotomia entre a educação destinada aos filhos da elite, que deveriam assumir as

atividades públicas, constituindo a elite intelectual e dirigente do País; e a educação

destinada aos filhos das camadas populares que deveriam ser “disciplinados” para o

trabalho nas lavouras de café e para o lidar com as máquinas das indústrias

emergentes.

O Relatório do Dr. Pedro Velloso, Presidente da Província do Espírito Santo, em

1859, também salientou a situação da instrução secundária, que segundo ele

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apresentava um quadro mais problemático que o da instrução primária. Todavia,

afirmou no seu Relatório que tempo diminuto da sua administração não permitiu que

colocasse em prática as medidas necessárias sanar a situação, mas que acreditava

que a sugestão dada pelo Diretor da Instrução deveria ser considerada: a criação de

internatos ou a transformação do Liceu numa escola. Dessa forma, Dr. Pedro

Velloso se apropriou do pensamento que a instrução secundária deveria

desenvolver uma “instrução de mais pratica utilidade, onde se ensine a língua

nacional, a francesa, a aritmética e contabilidade, a geometria em suas aplicações

mais usuais, a geografia e a história, e por ventura noções das ciências físicas e

naturais” (Relatório de Presidente da Província, 25 de maio de 1859, p.50 - Arquivo

Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Evidenciou-se, então, a necessidade de se criar iniciativas que provocassem

melhoras no quadro educacional deficiente da Província. Curiosamente, Velloso,

porém, confessou que não era inclinado às inovações, pois concordava com as

idéias do Conde Mole: “que a par da vantagem de inovar está sempre o perigo de

destruir” (Relatório de Presidente de Província, 24 de maio de 1859, p. 47 - Arquivo

Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

Também se destacou a preocupação com o poder que a educação poderia exercer

em relação à alteração da ordem social. Esse conjunto de idéias pode ser

corroborado por meio dos Relatórios dos Presidentes da Província do Espírito Santo

e com as Atas da Assembléia Legislativa Provincial, principalmente, quando os

dirigentes enfatizaram a necessidade de consolidar a obrigatoriedade do ensino sob

um caráter coercitivo:

É preciso que as Leis se conformem com as circunstâncias da cidade [...]. Sou de parecer que ainda não e chegada à época de fazer as grandes reformas neste ramo do serviço provincial [instrução pública]. O que precisamos, Senhores, é de um grande aparato de Regulamentos de mera ostentação, conseguiremos não só instruir os alunos que freqüentam as escolas, mas ainda, pela doutrina, pelos exemplos e pela regra, educá-los e formar deles bons cidadãos [...] A instrução primária não deve limitar-se a ser gratuita, deve também ser obrigatória [...] Dir-vos-ei, entretanto, que essa necessidade é geralmente sentida. Assim, que na Lei de Província de Pernambuco nº 369 de 14 de março de 1855 art. 64 – diz – que os Pais, Tutores, Curadores ou Protetores, que tiverem em sua companhia meninos maiores de 7 anos, sem impedimento físico ou moral , e não lhes derem ensino, pelo menos do

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1 º grau, incorrerão na multa de 20 a [documento mutilado] reis [...]. A Lei [documento mutilado] novembro de 1850 art. 30 da Província de São Pedro, também determina: que os Pais, Tutores ou encarregados [documento mutilado] qualquer menino ou menina, que não mandarem freqüentar as escolas públicas ou particulares de sua Paróquia, depois de intimados três vezes durante um ano pelos respectivos Inspetores serão multados anualmente na quantia de 5$000 [reis] excetuando-se 1° os que morarem meia légua distante das escolas; 2º os que tiverem Mestres particulares em suas casas.E não é só no Brasil; nos Países mais cultos da Europa uma igual necessidade foi reconhecida. Assim, no mais clássico País da instrução pública – na Prússia – por uma lei de 1819 impor-se as famílias o dever de mandar seus filhos à escola, a menos que não provem que lhes dão uma educação suficiente. E este preceito foi acompanhado de sanções penais para assegurarem as sua aplicação [documento mutilado] aplicando-lhes depois multas, a prisão mesmo [...] (Relatório de Presidente de Província, 1856, s/d, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Dessa maneira, os dirigentes adequavam a legislação aos padrões dos discursos

moralizantes e coercitivos, sempre enfatizando os modelos clássicos adotados por

outros países. Além disso, os Relatórios oficiais evidenciaram que os principais

fatores que geram preocupações para a elite intelectual e dirigente espírito-santense

em relação a instrução pública foram: a freqüência reduzida dos alunos, o

“desmazelo dos pais”, a “mesquinha remuneração dado ao professorado”68, a falta

de habilitação dos professores, a falta de recursos financeiros, o caráter ocioso e

lascivo da camada popular e o método de ensino, entre outros fatores.

Em relação a essas ineficiências, o Presidente da Província José Bonifácio

Nascentes Nascimento de Azambuja, em 1852, afirmou:

Concorrem para o mau estado da instrução [sic] a falta de pessoas habilitadas para o ensino; poucos sãos os professores que tem os predicados preciosos para poderem com vantagem exercer o magistério. Esta causa com dificuldade e só com o tempo poderá ser removida, pois que depende de estudos que a Província não oferece, e nem podem ser procurados em outra parte pela deficiência de meios dos seus habitantes; resignemo-nos [sic] pois à nossa sorte. Os pequenos ordenados dos professores, e a pouca consideração que em nosso país se dá a cadeira do ensino subalterno também impedem que se obtenham bons mestres: o 1º inconveniente desaparecerá quando crescerem os recursos da Província, e o 2º com a sua maior civilização. Menciono também o pouco zelo dos professores, em geral como uma das causas, e talvez a principal, para o mão [não] resultado que se colhe do ensino. Deriva daí, da disseminação da nossa população, da falta de

68 Expressões usadas no Relatório o Barão de Itapemirim, Primeiro Vice-Presidente da Província do Espirito Santo, apresentado no ato de entrega da administração da Província ao Presidente de Província, o Dr. José Mauricio Fernandes Pereira de Barros no dia 8 de março de 1856.

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recursos nos [dos] pais para mandarem os seus filhos às escolas que muitas vezes distão [distantes estão] léguas de suas moradas, e finalmente o pouco apreço que se dá às letras (Relatório Presidente da Província do Espírito Santo José Bonifácio Nascentes d’Azambuja de 24 de maio de 1852, p. 27 e 28 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

Conforme esse Relatório, esses fatores contribuíram para a redução do número de

alunos que freqüentavam as escolas públicas. Dessa maneira, segundo o mapa de

freqüência citado, em 1851, as 29 escolas de primeiras letras existentes na

Província foram freqüentadas por apenas “775 meninos, incluindo 36 do sexo

feminino, pertencentes à única escola deste sexo estabelecida na Capital, e 34

cursaram as duas aulas de Latim da Capital, e da Cidade de São Matheus, e a de

Filosofia e Francês há pouco tempo criada ali” (Relatório Presidente da Província do

Espírito Santo José Bonifácio Nascentes d’Azambuja de 24 de maio de 1852, p. 27 e

28 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

O Dr. José de Azambuja não se limitou a relacionar as causas da ineficiência da

instrução pública espírito-santense, mas apontou para a necessidade de se aplicar o

Regulamento de 1848, principalmente ao que condiz com a determinação da

organização de uma inspeção em cada escola da Província, principalmente

procurando exercer o controle sobre o trabalho do professor. Justificou tal decisão,

afirmando que se preocupava com o excesso de faltas dos professores; bem como

com a não apresentação “das necessárias habilitações” dos professores, e

acrescentou, ainda, que esses eram “pouco zelosos” (Relatório Presidente da

Província do Espírito Santo José Bonifácio Nascentes d’Azambuja de 24 de maio de

1852, p. 30 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

Curiosamente, no mesmo Relatório, o Dr. Azambuja citou, como exceção, o trabalho

desenvolvido pelo Professor Manoel Ferreira das Neves (2ª cadeira da Capital) e

pela Professora de D. Maria Carolina Ibrense Brasileira (professora de meninas)

como sendo dignos de elogios. Em relação à professora, o Presidente da Província

ressaltou que : “[...] os conhecimentos foram obtidos fora da Província [...] sendo

essa credora de todo o respeito e proteção pelo seu caráter, educação, e incansável

zelo. Acrescentou, ainda, que o número de alunas dessa professora aumentado de

forma relevante: “no ano passado foi de 36, este ano [1852] excede à 40” (Relatório

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Presidente da Província do Espírito Santo José Bonifácio Nascentes d’Azambuja de

24 de maio de 1852, p. 30 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito

Santo).

Assim, Dr. Azambuja delineou alguns caminhos possíveis para a formação de

professores numa perspectiva indispensável para a melhoria da qualidade da

instrução pública. Apontou para a necessidade de uma inovação nas práticas dos

professores, mesmo que “os conhecimentos [fossem] obtidos fora da Província”, ou

seja, enfatizou a busca dos conteúdos científicos para capacitá-los no exercício de

suas atividades e para que eles pudessem reproduzir e aplicar o ensino apropriado

para a formação para o trabalho.

De modo geral, os Relatórios dos dirigentes afirmaram que a ineficiência da

instrução pública estava relacionada à formação dos professores e a falta de uma

inspeção sobre o trabalho deles. No entanto, tentando encontrar solução para essas

ineficiências, aproximaram-se das propostas de reforma educacional que

começaram a serem divulgadas por pensadores dos países europeus e norte-

americanos na defesa de inovações necessárias a serem implantadas na instrução

pública, a partir da segunda metade do século XIX, principalmente a partir da

década de 70. Assim, as idéias desses pensadores influenciaram a elaboração dos

projetos educacionais da Província do Espírito Santos e suas reformas econômicas

e socioculturais. Exemplificando tal influência, posso citar o Relatório do Dr. Pedro

Leão Velloso, dirigido a Assembléia Legislativa Provincial, em 25 de maio de 1859,

que construiu sua análise sobre a instrução pública se fundamentado nas idéias de

Gottfried Wilhelm Von Leibnitz69 (1646-1716):

A instrução e educação pública é a mais poderosa alavanca da civilização; daí vem o muito conhecido dito de Leibnitz: “Daí-me a instrução pública durante século, que mudarei a fac e do mundo” . É porque um dos nossos mais distintos estadistas, o Sr. Conselheiro Eusébio já escreveu: - que não há descanso, não há marco miliario na carreira da civilização para debelar a ignorância do povo e pra a emancipação moral da humanidade (Relatório de Presidente de Província, 24 de maio de 1859, p.46, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

69 Filósofo, matemático e diplomata alemão.

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A preocupação com a “emancipação moral da humanidade” e com o exercício do

controle social também foi evidenciada no Relatório do Dr. Francisco Ferreira

Correa, Presidente da Província do Espírito Santo, em 1871, que defendeu que

educação poderia resolver as questões voltadas para a ociosidade, a delinqüência e

a criminalidade da população:

Ao meu ver, além de outras coisas a que já aludi passageiramente, a falta de instrução suficiente que se nota na maioria das autoridades subordinadas, são causas principais da pouca atividade, da pouca energia, e de pouca celebridade na expedição e execução das ordens do Chefe de Polícia [...] Notei a necessidade de aumentar o edifício [da cadeia] [...] a fim de que possa, como, estabelecer-se ali a devida classificação dos presos, e atender-se a outras providências que senão podem dispensar, no interesse da reabilitação moral do delinqüente, e modificação dos seus costumes, predispondo-o a ser útil à sociedade [...] Insisti na criação de algumas oficinas como meio de utilizar o trabalho do réu, distraí-lo e muitas vezes até facilitar-lhe um meio de vida, fazendo-o aprender um ofício, que mais tarde lhe ministre os recursos para viver honestamente na sociedade (Relatório de Presidente de Província Francisco Ferreira Correa, sessão ordinária, de 9 de outubro de 1871 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Dessa maneira, os discursos oficiais evidenciaram a defesa de uma educação que

deveria ser um instrumento, principalmente, de “modelação social” e teria a função

de “civilizar” para “mudar a face do mundo”, ou seja, a educação, que deveria se

vincular ao processo de modernização econômica do País. A esse respeito, o

Presidente da Província do Espírito Santo, José Fernandes da Costa Pereira

Junior70, por meio do seu Relatório dirigido à Assembléia Legislativa Provincial (23

de maio de 1861) salientou os melhoramentos que haviam acontecido na Província,

como por exemplo: a abertura de estradas, a chegada de imigrantes europeus, o

desenvolvimento da navegação e a criação de colônias; bem como também chamou

à atenção para a responsabilidade de “civilizar” a população espírito-santense pelo

desempenho da educação.

Afirmou, ainda, que: o “benefício da educação e do ensino que, ilustrando o povo,

despertando hábitos, multiplicando por uma cultura inteligente e pratica ilustrada”

(Relatório de Presidente José Fernandes da Costa Pereira Junior da Província do

Espírito Santo, 23 de maio de 1861, p. 38 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa 70 Dr. Fernandes da Costa Pereira Jr. assumiu o governo da Província do Espírito Santo em 20 de fevereiro de 1861.

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do Estado do Espírito Santo). Defendeu também que a educação deveria exercer o

papel na promoção da riqueza e do bem estar público e privado. Além disso,

fundamentando-se nas idéias do economista liberal Miguel [Michel] Chevalier71,

advogou a idéia que o ensino das escolas de instrução deveria atender muito o lado

prático da vida, ou seja, deveria priorizar a preparação para o trabalho,

principalmente priorizando a formação de mão-de-obra e a “modelação social” da

camada popular.

Demais, como povo, na frase sensata de Miguel Chevalier, é por sua condição, trabalhador e não literato, filosofo ou publicista, o ensino nas escolas de instrução primária deve atender muito ao lado prático da vida. Não podemos por ora ter a educação industrial que o ilustre economista pedia para o seu país, aliás civilizado, mas convinha ao menos que os mestres, n’esta província como em todo o império, ao mesmo tempo que [sic] ensinassem as letras, instruíssem os discípulos a respeito das noções econômicas precisas para toda e qualquer profissão (Relatório do Presidente de Província José Fernandes da Costa Pereira Junior, em 23 de maio de 1861, p. 42 e 43 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Isto demonstra a circularidade das idéias dos pensadores europeus e suas

influências no pensamento da elite intelectual e dirigente, principalmente diante das

mudanças socioeconômicas que se processavam no País e na Província, a partir

das últimas décadas do século XIX.

A partir da metade do século XIX, algumas ações foram implementadas no sentido

de se buscar uma solução para os problemas enfrentados pela educação na

Província. Em relação ao “desmazelo dos pais” ou a “falta de apreço”, em 1852, o

Dr. Azambuja, Presidente da Província, também tornou visível a situação ao relatar

que:

A aula de latim da Cidade de São Matheus que no ano passado [1851] foi freqüentada por 3 alunos [...] este ano [1852] não tem tido nenhum segundo informa o respectivo Professor, que dar como causa disto (refiro as suas próprias palavras) “o pouco amor e nenhum apreço que os habitantes tem as ciência e letras, tendo ouvido a alguns disserem que para plantar mandiba e ser lavrador não é preciso saber latim, e a outros

71 A direção do ensino público era atraente aos olhos de uma elite ciosa de assemelhar-se ao estrangeiro, e pensadores de fora do país eram os referencias para a instrução pública das crianças, como por exemplo, Miguel [Michel] Chevalier (1806-1879), professor de economia no Colégio da França, que defendeu o desenvolvimento industrial como a chave ao progresso social. Também um proponente do comércio livre, negociou com o Richard Cobden o tratado de comércio Anglo-Francês de 1860.

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que de nada serve mandarem os seus filhos aprender o dito idioma, si depois não os podem levar a estudos maiores, nem dar-lhes outro emprego que seria a lavoura – e acrescenta – que este modo de pensar data de tempos remotos, pois não consta que um só filho do lugar, onde aliás há casas abastadas, tenha seguido qualquer carreira literária” (Relatório Presidente da Província do Espírito Santo José Bonifácio Nascentes d’Azambuja de 24 de maio de 1852, p. 30 e 31 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

Tal relato permitiu o vislumbre da visão de mundo dos sujeitos das camadas

populares em relação à instrução clássica, percebendo-a como dissociada das

necessidades práticas do seu cotidiano. Além disso, pôs em relevo a falta de

perspectiva em relação ao futuro, e conseqüentemente o desinteresse pela

educação dos seus filhos. Essa visão sobre a educação, com certeza, comprometeu

o êxito da epígrafe “civilizar para mudar o mundo”, a final a escola tornara o locus

da modernização. Impondo, assim, a elite intelectual e dirigente a necessidade de

implementar estratégias baseadas na obrigatoriedade do ensino por meio medidas

coercitivas.

Diante desse cenário, O Dr. José Mauricio Fernandes Pereira de Barros, o Barão de

Itapemirim e Presidente da Província do Espírito Santo, em seu Relatório à

Assembléia Legislativa Provincial, em 1856, já defendia a necessidade de se

organizar uma inspeção sobre o ensino e as práticas dos professores:

É preciso que as Leis se conformem com as circunstâncias da cidade [...]. Sou de parecer que ainda não e chegada a época de fazer as grandes reformas neste ramo do serviço provincial [instrução pública]. O que precisamos, Senhores, é de um grande aparato de Regulamentos de mera ostentação, conseguiremos não só instruir os alunos que freqüentam as escolas, mas ainda, pela doutrina, pelos exemplos e pela regra, educá-los e formar deles bons cidadãos [...] A instrução primária não deve limitar-se a ser gratuita, deve também ser obrigatória [...] Dir-vos-ei, entretanto, que essa necessidade é geralmente sentida. Assim, que na Lei de Província de Pernambuco nº 369 de 14 de março de 1855 art. 64 – diz – que os Pais, Tutores, Curadores ou Protetores, que tiverem em sua companhia meninos maiores de 7 anos, sem impedimento físico ou moral, e não lhes derem ensino, pelo menos do 1º grau, incorrerão na multa de 20 a [documento mutilado] reis [...]. A Lei [documento mutilado] novembro de 1850 art. 30 da Província de São Pedro, também determina: que os Pais, Tutores ou encarregados [documento mutilado] qualquer menino ou menina, que não mandarem freqüentar as escolas públicas ou particulares de sua Paróquia, depois de intimados três vezes durante um ano pelos respectivos Inspetores serão multados anualmente na quantia de 5$000 [reis] excetuando-se 1° os que morarem meia légua distante das escolas; 2º os que tiverem Mestres particulares em suas casas.E não é só no Brasil; nos Países

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mais cultos da Europa uma igual necessidade foi reconhecida. Assim, no mais clássico País da instrução pública – na Prússia – por uma lei de 1819 impor-se as famílias o dever de mandar seus filhos à escola, a menos que não provem que lhes dão uma edu cação suficiente. E este preceito foi acompanhado de sanç ões penais para assegurarem as sua aplicação [documento mutila do] aplicando-lhes depois multas, a prisão mesmo [...] (Relatório de Presidente de Província, 1856, s/d, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa Estadual do Espírito Santo).

Em 1861, o Presidente da Província, o Dr. José Fernandes da Costa Pereira Junior

apresentou um argumento semelhante:

Da relação incompleta que me foi apresentada e cuja exatidão não se pode assegurar, pelas razões já emitidas que impedem uma severa inspeção, vê-se que em 30 escolas foram lecionados 893 meninos e na escola do sexo feminino desta capital 20 alunas. Se considerarmos que o n. das escolas particulares é limitadíssimo e que os 2 terços da população da província se compõem de pessoas livres, de certo que acharemos muito diminuto aquele n.º. Maior seria indubitavelmente se fosse possível empregar algum meio coercitivo contra os pais de família desleixados e imprevidentes que não mandassem seus filhos à escola (Relatório do Presidente José Fernandes da Costa Pereira Junior de Província do Espírito Santo, 23 de maio de 1861, p. 44 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

O Dr. Costa Pereira Junior, fundamentando-se nas idéias de Stuart Mill72 “cujo

nome e autoridade respeitáveis tem sido invocados freqüentas vezes nos debates

da imprensa e do parlamento Inglês”, argumentou, ainda, em defesa da intervenção

do Estado na esfera privada (Relatório do Presidente José Fernandes da Costa

Pereira Junior da Província do Espírito Santo, 23 de maio de 1861, p. 44,– Arquivo

Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

O Presidente da Província o Dr. Antonio L. R. de Almeida, em seu Relatório de 9 de

Julho de 1888, se posicionou contrario “a proposta de supressão de diversas

escolas da província – pelo motivo da falta de freqüência legal”. Justificou a sua

posição afirmando que “Lei n. 3.353 de 13 de Maio do corrente ano [1888], abolindo

a escravidão, aumentou sem dúvida a população escolar” (Relatório do Presidente

de Província Dr. Antônio L. R. de Almeida, em 9 de julho de 1888, p. 24 – Arquivo

Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo). Explicou, ainda, que a razão da

72 John Stuart Mill (1806-1873) – economista e filosofo que cultuava o utilitarismo como ideologia suprema, estudou as obras de John Locke Adam Smith e David Ricardo.

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supressão de diversas escolas da Província foi devido ao fato das “despesas com

Instrução Pública excederam as verbas votadas para o exercício de 1886 e 1887;

em vista de lei que criou maior número de escolas” (Relatório do Presidente de

Província Dr. Antônio L. R. de Almeida, em 9 de julho de 1888, p. 26 – Arquivo Geral

da Assembléia Legislativa do Espírito Santo), no decorrer dos governos que

antecederam ao seu.

Conforme já mencionei, nas últimas décadas do século XIX, a elite intelectual e

dirigente desenvolveu inúmeras estratégias e dispositivos visando à moralização e o

ajustamento do trabalhador às transformações da ordem social, inclusive divulgando

suas idéias por meio da imprensa no intuito de realizarem a propagação de seus

projetos, afinal, o acesso à escola era primordial para o êxito de suas estratégias.

Todavia, de acordo com as evidências empíricas, apenas uma minoria da população

teve acesso à instrução pública, prevalecendo o alijamento, principalmente, entre as

camadas populares: trabalhadores negros escravizados, livres e libertos e os não-

negros, livres e pobres, ou seja, quase todos, sendo beneficiada apenas uma

minoria.

No bojo dessas estratégias, a elite intelectual e dirigente também estabeleceu

medidas para exercer o controle sobre as manifestações socioculturais e das

camadas populares, no sentido de “modelá-los socialmente” para uma vida

“civilizada” e “laboriosa”73. Desse modo, fizeram a opção de exercerem a transição

do trabalho escravizado para o trabalho livre de forma lenta e gradual. Além disso,

outras preocupações foram pertinentes, como por exemplo, aquelas voltadas para

as questões morais: ociosidade, vadiagem, vozerios, lascívia, etc. Dessa forma, os

discursos atribuíram a educação à capacidade de transformar e civilizar o mundo,

além disso, era necessário preparar para o trabalho, ou seja, pretendia oferecer

uma educação imperfeita para uma liberdade imperfeita.

A documentação analisada apontou para uma crescente intervenção do Estado

sobre instrução pública, bem como para a criação de diversas medidas legislativas

que objetivavam consolidar os meios coercitivos para garantir a freqüência dessas

73 Expressões diligentemente citadas nos Relatórios dos Presidentes de Província.

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camadas populares à escola. Essa preocupação contribuiu para o planejamento de

práticas estratégicas para a implementação de uma reforma educacional.

Diante disso, projeto de modernização da sociedade enfrentou o grande desafio: a

escolarização das camadas populares. Vencer este desafio tornou-se inexeqüível

para a família. Assim, para enfrentá-lo, o Estado assumiu as rédeas da educação

dos desamparados e desvalidos e se preocupou em regulamentar a formação dos

professores que atuariam no sistema público de ensino. Dessa forma, o Governo

Imperial providenciou, em 1867, a execução de um quadro estatístico sobre a

população escolarizada no País (ANEXO L), visando assim, a exeqüibilidade de

medidas que pudessem atender a demanda de mão-de-obra livre e a criação de

estratégias de coesão social. Tal quadro estatístico apresentou um número de

107.483 alunos relacionado a uma população de um total de 10.200.000 habitantes

(“almas”), isto é, aproximadamente 1, 05% do valor total da população do Império,

em 1867.

Os resultados da estatística evidenciaram os números ínfimos de alunos em relação

à população das respectivas províncias, na Província do Espírito Santo havia

apenas 1.048 alunos para uma população de 70.000 habitantes, em 1867. Tal

situação foi justificada nos discursos dos dirigentes, pela falta de interesses dos pais

dos alunos, pela distância das escolas. Além disso, é possível afirmar que muitos

não tiveram acesso às escolas devido a premente necessidade de contribuir com o

sustento de suas famílias, em conseqüência da pobreza e da miséria que

caracterizavam a realidade das camadas populares da Província.

Antes disso, em 1862, o Presidente da Província, José Fernandes da Costa Pereira

Junior, já havia se mostrado apreensivo com a situação da instrução pública na

Província, conseqüentemente autorizou por meio da Lei nº 15 e do Regulamento de

17 de outubro, do mesmo ano, a organização do quadro estatístico específico

(ANEXO M) sobre a população livre e escravizada na Província espírito-santense.

Os resultados desses dados estatísticos salientaram que os índices da população

livre (51825 pessoas) era maior que os da formada por trabalhadores negros

escravizados (18832 pessoas). Assim, o Costa Pereira Junior construiu uma base

de dados que disponibilizou informações a respeito da situação populacional de

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cada freguesia da Província e proporcionou, em especial, dados relevantes para a

criação de medidas legislativas relacionados a necessidades educacionais da

Província.

O Relatório do Presidente da Província do Espírito Santo Francisco F. Corrêa, em

1871, apresentou a afirmação de que a província espírito-santense possuía “uma

população de aproximadamente 109.000 habitantes, segundo o cálculo inexato, é

verdade, de uma estatística oficial de 1867, e que esta província conta apenas em

suas escolas de instrução primaria do sexo masculino 1.136 alunos, e nas de sexo

feminino 234 alunas” (Relatório de Presidente de Província Francisco Ferreira

Corrêa, Sessão ordinária de 9 de outubro 1871 – Arquivo Geral da Assembléia

Legislativa do Estado do Espírito Santo). Esses dados permitiram ao Presidente de

Província realizar sua análise sobre a situação da instrução na Província, para isto

fundamentou-se no o relatório de M. Célestin Hippeau74 dirigido ao Ministério da

Instrução Pública em França, abordando temas relativos a reforma educacional,

como por exemplo:

[...] aos jardins de infância, à formação de professores – escola normal -, à administração, ao financiamento da instrução pública, ao ensino particular e de ordens religiosas, à classificação das escolas, ao currículo, às lições de coisas, à co-educação, à educação feminina; à educação de adultos; à obrigatoriedade escolar, à laicização do ensino, à posição social dos professores, à disciplina escolar, ao tempo escolar, ao material escolar, aos prédios escolares e mobília escolar, aos museus pedagógicos, às bibliotecas populares, às conferências pedagógicas, às disciplinas escolares; às publicações pedagógicas, à estatística da educação. As obras são ilustradas com várias gravuras de instituições escolares (BASTOS, 2005, p. 2).

O relatório de Hippeau fez referência à instrução pública dos Estados Unidos e a

sua oferta de “largas e sólidas bases” para uma reforma educacional. Dessa

maneira, o Presidente da Província Francisco Ferreira Corrêa fez uso desse

referencial para defender a necessidades de uma reforma da instrução pública na

província espírito-santense, sob os moldes das reformas norte-americanas, que não

74 Celéstin Hippeau (1803-1883), educador francês, que em seus relatórios sobre educação enfatizou o uso do modelo educacional norte-americano. Sua obra foi traduzida para o português segundo as orientações do governo imperial e divulgada pelo Diário Oficial do Império do Brasil (fev. e mar de 1871). Estes relatórios tiveram ampla circulação na América Latina, no Brasil e na Província do Espírito Santo, influenciando o debate e as reformas implementadas nas últimas décadas do século XIX.

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como modelo único. Fez também menção aos projetos educacionais da Alemanha,

enfatizando as questões voltadas para a diminuição dos índices de analfabetismo:

Falando da Alemanha com referência à superstição e o fanatismo pondera um outro escritor: “Na Alemanha não há semelhante risco. Os benefícios da instrução primária e secundária, derramados profusamente, não só nas grandes como nas pequenas povoações, asseguram o comedimento, a tolerância, a moderação dos rústicos assim como dos urbanos. Em quanto em Roma, capital do orbe católico, ainda há pouco, de entre 150 fiéis, apenas um sabia ler e escrever, na venturosa Baviera em 200 habitantes apenas se encontra um analfabeto, por 100 na Prússia, três na Saxônia e no Wurtemberg, quatro por 100 na Áustria, ao passo que na Boemia há 32 por 100 analfabetos, 44 na Moravia, 50 na Styria e 53 na Hungria. Em tais condições a Alemanha nada tem a recear da superstição e do fanatismo; pode caminhar para a reforma religiosa, depois de haver consolidado pelas suas vitórias a reforma política” (Relatório do Presidente de Província Francisco Ferreira Correa, sessão ordinária de 9 de outubro de 1871, p.45 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Em suma, as elites intelectuais e dirigentes espírito-santense atribuíram à instrução

pública a responsabilidade de “civilizar” a população no sentido de que se

construísse um sentimento de preocupação com processo de modernização da

sociedade. Além disso, revelaram e reiteraram a idéia que: a Educação deveria se o

pilar adotado para definir as condições necessárias para a formação do trabalhador

na nova ordem socioeconômica, ou seja, a educação foi considerada por essa elite a

“mais poderosa alavanca da civilização” e do processo de modernização

socioeconômica característico das últimas décadas do século XIX.

2.2.2 O desafio de um quadro estatístico e a escass ez de recursos financeiros

O período de realização do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro de 1878 coincidiu

exatamente com os relatos oficiais sobre que a questão do enfrentamento de uma

crise financeira que atingiu diversas províncias do Império. Tal fato exerceu fortes

influências na Província espírito-santense devido, principalmente, à falta de recursos

financeiros, prejudicando o empreendimento de uma reforma educacional que

estivesse de acordo com as propostas nesse evento. Esta ordem de questão

também foi possível de ser observada a partir das acirradas discussões entre os

parlamentares nas sessões da Assembléia Legislativa da Província.

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É possível conjecturar que havia uma necessidade dos dirigentes da Província

evidenciarem a escassez de recursos financeiros objetivando pressionar o Estado a

liberar as verbas necessárias para a implementação dos projetos de modernização.

Isso ocorria em decorrência do Governo Imperial optar por favorecer a Província de

São Paulo com a maior distribuição das verbas para investir na imigração européia e

na lavoura cafeeira.

Sem dúvida, a escassez de recursos foi um grande obstáculo à implementação das

transformações na educação da Província. Posso citar, por exemplo, as dificuldades

para dar prosseguimento às obras da Casa de Instrução Pública, cuja parte já

construída estava exposta às intempéries, e seu o orçamento comprometido, pois o

Presidente da Província, Domingos Monteiro Peixoto, limitara a despesa em

600$000 (réis) mensais (até então já havia sido despendido com essa obra

17:076$059 (réis)). Dessa forma, procurando dar continuidade à execução da obra,

o Governo Provincial optou por fazer os pagamentos em dez anos por prestações

anuais de 10 por cento (%), de modo que não acarretasse deficit para os cofres

públicos.

Tal dificuldade foi reiterada em Relatórios de outros Presidentes de Província. Como

por exemplo, em 1878, o Presidente Provincial, Dr. Manoel da Silva Mafra,

apresentou um quadro estatístico que acirrou as preocupações em relação à

instrução pública, principalmente, relacionadas às dificuldades referentes à distância

das escolas, a não existência de recursos financeiros para o investimento com a

instrução pública e o aumento da evasão escolar (número elevado da população

escolar de 6 a 15 anos que não freqüentava a escola).

O Relatório que o Dr. Manoel da Silva Mafra apresentou à Assembléia Legislativa e

ao inspetor de instrução, também apresentou os problemas enfrentados pela

educação da Província. Assim, enfatizou a necessidade de liberação de recursos

financeiros que cobrissem as despesas necessárias para investimento na instrução

pública.

O número das escolas é de oitenta, e sendo o número total da população da província de 82,137 é a proporção da escola para os habitantes de um para mil e vinte e seis. E sendo a população capaz de

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freqüentar as escolas de 11,424. teriam de freqüentar cada uma das 80 escolas 142 alunos, o que é absurdo (Relatório de Presidente de Província Dr. Manoel da Silva Mafra, 22 de outubro de 1878, p. 52 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa Estadual do Espírito Santo).

No relato supracitado, o Dr. Manoel da Silva Mafra salientou que apesar do aumento

do número de escolas havia um elevado número de pessoas fora dela. Reivindicou,

então, à Assembléia Legislativa Provincial a tomada de medidas para solucionar

este problema. Baseando-se nas informações fornecidas pelo Inspetor de Instrução

Pública, o Dr. Manoel da Silva Mafra mostrou-se preocupado com a distribuição

desequilibrada das escolas pela Província, constatou que havia uma proporção de

uma escola para 351 habitantes (ANEXO N). Assim, constatou que a instrução

pública na Província “além de dispendiosa”, também se caracterizava pela

dificuldade de acesso dos alunos, pois havia meninos que caminhavam “cerca de

légua e meia para irem e voltarem da escola” (Relatório de Presidente de Província

Dr. Manoel da Silva Mafra, 22 de outubro de 1878, p. 51 – Arquivo Geral da

Assembléia Legislativa do Espírito Santo). Mafra mostrou-se também apreensivo

com o elevado índice de analfabetismo na Província, pois havia uma estimativa de

“49,137” habitantes analfabetos, isto é mais da metade da população espírito-

santense (“82,137” habitantes).

Dessa maneira, Mafra tomou a decisão de não investir na construção de mais

escolas, porém procurou melhorar o atendimento a população realizando a alteração

na disposição e distribuição das escolas pela Província. Justificou tal medida

afirmando que havia necessidade de oferecer a instrução escolar elementar: “ao

menos, ensinar ler, escrever e contar. É melhor saber apenas isto do que ser

analfabeto” (Relatório de Presidente da Província Dr. Manoel da Silva Mafra, 22 de

outubro de 1878, p. 52 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do

Espírito Santo). Defendeu, também, “a conveniência de, nas cidades e vilas da

Província, ensaiar as escolas noturnas para os adultos”, salientando assim, a

preocupação em aumentar o número que escolas que se preocupasse com a

formação para o trabalho (Relatório de Presidente da Província Dr. Manoel da Silva

Mafra, 22 de outubro de 1878, p. 52 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do

Estado do Espírito Santo).

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A educação para o trabalho se constituiu como uma necessidade intrínseca às

transformações econômicas e sociais das últimas décadas do século XIX. De modo

geral, o pensamento da época não atribuía à escola um espaço de preparação para

o trabalho, tornando até mesmo inútil para as camadas pobres da população, afinal

pensavam que o trabalho braçal se aprendia pelas experiências do cotidiano, sendo

a escola, até então, privilégio de uma elite socioeconômica.

Neste período, a influência francesa ainda se apresentava predominantemente nas

iniciativas das práticas escolares, mas houve também a importação de teorias ou

modelos europeus e norte-americanos. As idéias importadas contribuíram para a

formação de uma política nacional de formação de mão-de-obra para o trabalho.

Entretanto, nenhuma dessas idéias atendeu as especificidades dos problemas da

realidade do País e da Província do Espírito Santo, pois a formação dos

trabalhadores do Brasil possuía características peculiares e distintas da formação

dos trabalhadores europeus e norte-americanos.

Assim, salientou-se a idéia de uma educação que além de “civilizar” deveria preparar

para o trabalho. Isto, na verdade, significou um grande desafio para a elite

intelectual e dirigente desse período, principalmente considerando a visão

preconceituosa que existia em relação aos trabalhos braçais relacionados sempre ao

trabalho realizado pelos trabalhadores negros escravizados ou pelas camadas

pobres da população.

Nas últimas décadas do século XIX, o quadro educacional da Província do Espírito

Santo, semelhante à situação nacional, foi marcado pela desigualdade social, pela

predominância do analfabetismo, pela falta de escolas e pela escassez de recursos

financeiros, mostrou-se, então, contraditório à necessidade de se investir no projeto

de modernização proposto pela elite intelectual e dirigente. Neste contexto, a

documentação não só ressaltou as condições precárias e a obrigatoriedade do

ensino, destacaram também a preocupação com a tranqüilidade pública e o controle

sobre as camadas populares da Província.

Desse modo, os Relatórios dos Presidentes de Província evidenciaram os entraves

para a implementação das reformas educacionais, como por exemplo, a de Leôncio

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de Carvalho (1879) e a de Rui Barbosa (1883), que não foram resolvidos, segundo

as reclamações dos dirigentes, devido às dificuldades financeiras da Província e a

falta de apoio do governo Imperial. Por outro lado, os jornais locais possibilitaram o

vislumbre das iniciativas em defesa de uma educação redentora da sociedade.

Dessa maneira, a elite espírito-santense (intelectuais abolicionistas e republicanos),

as mulheres das Irmandades religiosas, as Associações Abolicionistas e as Lojas

Maçônicas fomentaram as ações para a arrecadação dos recursos financeiros

necessários para a criação e manutenção das escolas.

Neste cenário, as inaugurações e atividades referentes à instrução escolar foram

amplamente divulgadas pela imprensa espírito-santense, privilegiando as iniciativas

voltadas para a criação de escolas de instrução primária, a implementação das aulas

noturnas, bem como das escolas secundárias e das escolas nas colônias dos

imigrantes estrangeiros.

Preocupada com essas iniciativas, a elite intelectual e dirigente providenciou as

pesquisas sobre os dados estatísticos relacionados a índices da população livre da

Província do Espírito (ANEXO O). Os resultados dessa pesquisa revelaram a cor

dos “homens” como também das “mulheres” (brancos, pardos, pretos e caboclos),

contribuindo dessa maneira também para romper, em parte, com o “silêncio da cor”

(MATTOS, 1998). Além disso, também permitiram vislumbrar a presença

predominante da população não-branca, que correspondia a uma estimativa total de

32.896 pessoas, enquanto a população branca livre apresentou uma estimativa de

26.582 pessoas. Isto justifica o referencial racista e biológico implícito na aplicação

das medidas assistencialistas, coercitivas e moralizantes que caracterizaram as

iniciativas em defesa de uma educação popular, nas últimas décadas do século XIX.

Em suma, o que pôde ser observado, é que os projetos educacionais voltados para

os trabalhadores negros escravizados, livres e libertos priorizaram uma formação

destituída de status social, e inclusive destituída também de intelectualidade. Toda

essa demonstração corrobora o argumento que uma educação imperfeita para uma

liberdade imperfeita caracterizou a educação oferecida aos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos nas últimas décadas do século XIX.

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2.2.3 As instituições de assistência aos desamparados e desvalidos

Como já foi explicitado, além de conhecer as representações das elites intelectuais

e dirigentes sobre a educação que deveria ser oferecida aos trabalhadores negros

escravizados, livres e libertos, busquei entender os papéis exercidos por esses

últimos sujeitos históricos, enquanto desamparados e desvalidos, nas relações

educacionais. Para isto, investiguei “pistas, indícios, sinais e sintomas” da existência

de mecanismos da produção autônoma dos trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos, bem como conhecer um pouco mais das relações que teciam entre

si e em relação ao outro, os livres e brancos.

O conhecimento dessas relações permitiu à compreensão dos significados e da

extensão das formas de sociabilidade e solidariedade tecidas nas experiências de

vida deste sujeitos. Foi possível, também, conhecer as diversas formas encontradas

por esses para amenizarem o sofrimento submetido pela herança da escravidão e

alcançar uma situação de sobrevivência suportável em um mundo de incertezas e de

submissão ao controle social, econômico e cultural imposto pelos os representantes

das camadas dirigentes. Além disso, possibilitou o vislumbre das vivências dos

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, dos seus conflitos e das suas

lutas cotidianas pela liberdade, enfim, como esses se fizeram partícipes na

construção de seu tempo e da História da Educação do Espírito Santo. Assim,

tornou-se perceptível também as características da relação escravidão e educação

na Província do Espírito Santo, nas últimas décadas do século XIX.

Nesse período, intensificaram-se os discursos da elite intelectual e dirigente que

evidenciaram as preocupações com a educação, especificamente dos ingênuos, e,

também, a assistência social aos desamparados e desvalidos dos demais

representantes das camadas populares que seria oferecida pelas colônias

orfanológicas como formas de “regeneração” desses que viviam na miséria e meio

aos vícios e a ociosidade. Dessa maneira, a elite acreditava que tal “regeneração”

seria possível por meio de uma aprendizagem voltada para o ensino de um ofício ou

da “arte útil” e para a “modelação social”, para a formação da moral e do caráter

dos desamparados e desvalidos.

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Considerando a presença do “silêncio da cor” (MATTOS, 1998), foi possível deduzir

a possibilidade da diluição dos trabalhadores negros livres e libertos (forros e

ingênuos) e filhos e adultos pobres, enfim todos aqueles que viviam situações

sociais desesperadoras e precárias, nas camadas populares. Isto foi importante, pois

possibilitou a compreensão das representações da elite intelectual e dirigente em

relação a essa camada social, principalmente, por meio dos discursos que

atravessavam as medidas articuladas no campo educacional como também em favor

da caridade aos pobres. Aliás, os discursos em favor da caridade aos pobres se

fizeram presentes na memória espírito-santense desde os primórdios de sua história.

Maria Stella Novaes (1964) ressaltou a presença desta pobreza ao fez referência ao

ano de 1728, afirmando que

[...] a Vila da Vitória atravessava situação econômica difícil, “por falta de negócios”. Seus moradores “eram muito pobres”. Com setecentos fogos e “cinco mil vizinhos entre brancos, pardos, pretos, fôrros e cativos”, seus dízimos, em muitas ocasiões, não davam para cobrir os filhos da folha, não passando seus rendimentos de 2.5000$000 (NOVAES, 1964, p. 87).

Maria Stela de Novaes (1964) salientou também que desde os fins de 1765, a

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos já atuava no sentido

de amparar e supostamente “controlar” estes que eram duplamente desfavorecidos

– eram trabalhadores negros escravizados e necessitados, mesmo que livres ou

libertos, enfrentaram este universo de dificuldades. Neste sentido, a autora

evidenciou também a importância da Casa da Caridade de Nossa Senhora da

Misericórdia, junto a Igreja da Misericórdia no serviço “de amparo aos necessitados

batidos pelo sofrimento” (NOVAES, 1964, p.53).

Tentando estabelecer um percurso histórico para essa questão, constatei que

naquela época, o campo de assistência social da Província do Espírito Santo

reduzia-se à Santa Casa da Misericórdia. Segundo Basílio Daemon (1879) a Casa

de Caridade, fundada em Vila Velha, em 1595, por Miguel de Azeredo, seria uma

espécie de asilo onde recolhiam doentes pobres afetados de certas moléstias.

Affonso Schwab e Mário Aristides Freire (1979) afirmaram que a Irmandade da

Misericórdia do Espírito Santo regeu-se pelo Compromisso de Lisboa, de 1498, até

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julho de 1516 e confirmado em 1564 e posteriormente Felipe III teria concedido a

esta instituição os mesmos privilégios da Misericórdia de Lisboa, passando a ser

uma das sete misericórdias fundadas no Brasil, com Alvará de 1 º de junho de 1605.

Em 1606, fundou-se a Casa da Caridade de Nossa Senhora da Misericórdia. Mas só

em 1817, a capital da Província teria seu primeiro hospital, construído no anexo à

Santa Casa de Misericórdia, e além de se preocuparem com a construção de um

hospício em anexo, havia um atendimento as crianças desamparadas e desvalidas.

Isso graças a doações concedidas pela camada populacional mais privilegiada da

sociedade (doações amplamente divulgadas pela imprensa local). Já em 1859, na

gestão do provedor Capitão Francisco Luís da Gama Rosa, foram construídas novas

dependências no Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

O presidente Carlos de Cerqueira Pinto em seu Relatório fez menção a este

estabelecimento de caridade, afirmando que além do tratamento que prestava aos

enfermos pobres desenvolvia a manutenção dos expostos que eram depositados na

roda que ali existia.

As rodas dos expostos75

[...] ou Casa dos Enjeitados, ou simplesmente “a Roda”, era uma forma de atendimento à infância abandonada que teve início do antigo Egito e existiu em vários países do mundo nos séculos XVIII e XIX. A primeira Casa dos Expostos no Brasil foi fundada em 1726, em Salvador, pelo então vice-rei. Consistia em um cilindro que tinha um de seus lados abertos e girava em torno de um eixo vertical. As mães e pais colocavam o seu filho nesta abertura e giravam, e, do outro lado, uma instituição recolhia a criança, preservando assim o sigilo sobre a identidade dos pais. Em 1738 foi fundada a Casa dos Expostos do Rio de Janeiro, por Romão Mattos Duarte, e em 1882 a Roda dos Expostos já existia em todas as províncias do território brasileiro. As crianças colocadas nas Casas das Rodas eram basicamente os filhos das escravas, as quais muitas vezes utilizavam as rodas como forma de livrá-los da escravidão e para quem colocar os filhos na Roda significava uma esperança. A Roda dos Expostos recebia criança de qualquer cor, e preservava o anonimato dos pais. A partir de 1775, as crianças escravas colocadas nas Rodas eram consideradas livres, ainda que nem sempre isso acontecesse. A Roda também era amplamente

As expressões “criança exposta” ou “criança enjeitada”. A expressão “criança abandonada” passou a ser usada correntemente a partir do final do século XIX (BENEDITO, 2005). Neste trabalho fiz a opção pelas expressões desamparados e desvalidos para referir tanto as crianças e adultos submetidos a miséria e ao abandono.

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utilizada pelos proprietários de escravos que não queriam se responsabilizar pelos encargos da criação da prole, seja ela de seus próprios filhos ou filhos de suas escravas. Com a Lei do Ventre Livre a quantidade de crianças colocadas nas “Rodas dos Expostos” cai, e a Casa de Misericórdia passa a atender os órfãos e os abandonados . [...] Em 1738 foi fundada a Casa dos Expostos do Rio de Janeiro, por Romão Mattos Duarte, e em 1882 a Roda dos Expostos já existia em todas as províncias do território brasileiro. As crianças colocadas nas Casas das Rodas eram basicamente os filhos das escravas, as quais muitas vezes utilizavam as rodas como forma de livrá-los da escravidão e para quem colocar os filhos na Roda significava uma esperança. A Roda dos Expostos recebia criança de qualquer cor, e preservava o anonimato dos país. A partir de 1775, as crianças escravas colocadas nas Rodas eram consideradas livres, ainda que nem sempre isso acontecesse. A Roda também era amplamente utilizada pelos proprietários de escravos que não queriam se respon sabilizar pelos encargos da criação da prole, seja ela de seu s próprios filhos ou filhos de suas escravas. Com a Lei do Ventre Livre a quantidade de crianças colocadas nas “Rodas dos Expostos” cai, e a Casa de Misericórdia passa a atender os órfãos e os abandonados. Entre os 13 e os 18 anos os “expostos”, como eram chamadas as crianças colocadas na roda, deveriam receber um salário das famílias que lhes permitisse trabalhar. Os que fossem devolvidos à Casa da Roda por mau comportamento seriam transferidos ou para o Arsenal de Guerra, ou para a Escola de Aprendizes de Marinheiros (fundada em 1873) ou para as Oficinas do Estado. As meninas tinham como destino o recolhimento das Órfãs, onde permaneciam até saírem, casadas. A Roda dos Expostos foi um dos maiores símbolos do pensamento assistencial brasileiro (BENEDITO, 2005, p. 2, grifos meus).

Os estudos de Affonso Schwab e Mário Aristides Freire (1979) atentaram para as

taxas de mortalidade elevadíssimas dos expostos devido ao contágio de moléstias

dentro dos estabelecimentos, inclusive dos escravizados. Os autores anunciaram

também as precárias condições destes estabelecimentos, a falta de recursos

financeiros, material e humano e apontaram para a influência das práticas

higienistas e sanitárias da época.

Além das rodas dos expostos, também se desenvolveram outras formas de

assistência social aos desamparados e desvalidos na Província do Espírito Santo.

Segundo Maria Stela Novaes, na gestão do presidente da Província Pedro Leão

Veloso construiu-se um Colégio para Educandos Artífices (1859), não localizei

nenhuma “indício” que demonstrasse a possibilidade de ser uma modalidade de

aprendizagem do ler, escrever e do contar, deduzo que aprendiam ofícios em que

perpassavam essas aprendizagens, ou seja, que não deixaram de apropriar dessas

práticas culturais.

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Foi possível, ainda, verificar a preocupação com assistência social aos

desamparados e aos desvalidos, a partir do trabalho desenvolvido pela Companhia

de Aprendizes de Marinheiros, que foi criada pelo decreto nº 2890, de 8 de fevereiro

de 1861, na Província do Espírito Santo. Segundo consta o Relatório do Presidente

de Província, Francisco Ferreira Corrêa, essa Companhia foi projetada para atender

a 200 aprendizes de marinheiro, porém no decorrer do seu governo prestava

assistência à apenas 44 aprendizes. Neste período a Companhia estava sob o

comando do interino do capitão de fragata João Paulo da Costa Netto, que segundo

Corrêa, era responsável pela a “boa ordem do ensino”, e “conveniente tratamento

dos aprendizes marinheiros”.

Duas questões se colocaram nesse contexto: primeiramente, o que significava essa

“boa ordem do ensino” e o que foi ser “convenientemente tratado”? Considerando

que possuía um rígido caráter disciplinador característico de uma instituição

hierarquia, esse estabelecimento dispunha-se, sem dúvida, a realizar a “boa ordem

do ensino” no sentido se exercer o controle sobre a moral e a conduta dos

aprendizes. Isto foi possível por meio de práticas de controle e de coesão social,

que foram usadas para manter a ordem social e a “modelação do caráter”. Dessa

maneira, a Companhia de Aprendizes de Marinheiros fundamentou-se em um saber

que deveria servir ao princípio regulador e disciplinador da sociedade característico

das últimas décadas do século XIX.

Os aprendizes eram recrutados entre os desamparados e desvalidos das camadas

populares e pobres, vistos como vadios e ociosos, ou pela força da ação do poder

público ou das iniciativas particulares devido ser uma alternativa de sobrevivência

para aqueles que normalmente eram privados do alimento, da moradia ou expostos

aos mal tratos. Sendo assim, eram arregimentados entre os órfãos, os ingênuos e

os filhos de famílias pobres encontrados expostos a miséria, ao abandono e as

doenças epidêmicas, ou muitas vezes, eram enviados pela polícia ou por juízes de

órfãos.

Nos anúncios da imprensa local, principalmente do Correio da Victoria, era comum o

a divulgação de uma lista de compras para o abastecimento de alimentos e matérias

diversos necessários na Companhia de Aprendizes de Marinheiros. Constava entre

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os produtos relacionados na lista de compras, começando pelos alimentos como

azeite, açúcar branco, arroz, aguardente (medida de quatro garrafas), bacalhau,

canjica, entre outros; bem como produtos que deveria atende a outras

necessidades: canetas finas, canivete para aparar penas, compasso, papel almaço

pautado, resma, cadernos, tinta preta para escrever, lápis, livros em branco, etc.

A lista de material fornece pistas sobre a instrução do que era aplicada aos

aprendizes, como por exemplo: cadernos, lápis, canetas, etc, permitindo deduzir que

a Companhia de Aprendizes na Província do Espírito Santo seguia as

determinações do Decreto de 1855 instituído pelo Governo Imperial, autorizava e

regulamentava a prática do ensino elementar. Assim, conforme tais determinações,

todas as Companhias de Aprendizes, além dos estudos náuticos e da moral cristã,

deveriam ensinar os aprendizes a ler, escrever e contar.

Levando em consideração que a ocupação das vagas sempre se mostraram aquém

do que esta instituição projetava, como por exemplo, em uma estimativa de 200

vagas, apenas 44 eram ocupadas, pode-se conjecturar que isto aponta para algo

que não foi revelado: primeiramente, existia por parte da camada popular uma

resistência ao ingresso nessa Companhia. Tal situação poderia ser explicada pela

prática de uma disciplina rígida similar aos castigos corporais impostos aos

trabalhadores escravizados. Ou, ainda, porque, provavelmente, algumas das

famílias desses aprendizes estavam preocupadas com os efeitos da Guerra do

Paraguai (1865 -1870) ou temia a separação, optando por enfrentar as dificuldades

da vida social por meio de outros recursos. Bem com, tendo em vista a situação de

precariedade enfrentada pela Companhia - falta de condições físicas e de recursos

financeiros - ambos comumente citados nos Relatórios dos Presidentes da

Província, a vida desses aprendizes tornava-se mais difícil no interior dessas

instituições do que junto às suas famílias. Por outro lado, não poderia deixar de

mencionar o fato das Companhias estabelecerem critérios rigorosos na

arregimentação desses aprendizes, submetendo a maioria à exclusão e ao

abandono. São apenas posições conjecturais, que não poderia deixar de mencionar,

pois com certeza proporcionam ao leitor a reflexão sobre a situação.

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Apesar de todas essas vicissitudes, sem dúvida as prerrogativas da organização da

Companhia de Aprendizes de Marinheiro atendia às expectativas da elite dirigente e

intelectual, no sentido de contribuir para o “ideal civilizatório” e para a “modelação

social” dos desamparados e dos desvalidos, bem como para evitar que esses

sujeitos pudessem apresentar problemas para a manutenção da ordem pública e

moral. Assim, a arregimentação e a permanência dos menores estavam submetidas

aos rígidos critérios de seleção, conforme já foi citado, estabelecidos pela medicina

higienista e sanitária, que associavam a higiene do corpo à conduta moral. Tal

situação foi comumente divulgada na imprensa local. No entanto, algumas condições

ainda permaneceram veladas pela documentação oficial.

Logo, os objetivos da Companhia era evitar qualquer degradação física e moral, pois

era entendida como espaços de socialização ou transmissão de costumes, normas

de comportamento e valores sociais. Sendo, então, vista pela elite dirigente e

intelectual sob um ângulo, em que cabia à educação a função precípua de manter,

perpetuar e reproduzir as estruturas sociais. Isto à medida que transmitia os padrões

de conduta e treinava para os papéis socialmente desejáveis e contribuía para a

manutenção do status quo e não a mudança do sistema social.

Além dessas instituições apresentadas, as vozes dos parlamentares também

proclamaram a necessidade de educar os desamparados e desvalidos – os órfãos,

os pobres, os ingênuos e até mesmo os trabalhadores escravizados em outras

instituições criadas tanto por iniciativas do poder público como por meio de

associações particulares, como por exemplo: asilos e colônias orfanológicas.

Alessandra Frota Martinez de Schueler (2000), ao desenvolver um estudo especifico

sobre a criação da Associação Protetora da Infância Desamparada, na Província do

Rio de Janeiro, informou que

Algumas iniciativas individuais de senhores de terras e escravos do Vale do Paraíba, visando a criação de escolas no interior de suas propriedades, destinadas aos filhos dos agregados, colonos e trabalhadores livres e libertos, deixaram registros históricos, ainda que escassos. Tais foram os casos de José Joaquim de Souza Breves – que fundou uma escola na Fazenda Ipiabas, em 1874, onde se ensinavam os "ingênuos" e até mesmo alguns escravos – e do Visconde de Pimentel que, em 1879, na Fazenda Vista Alegre, fundou um

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estabelecimento de ensino primário para as crianças livres e libertas. Em 29 de julho de 1883, um grupo de homens públicos resolveu colocar em prática uma proposta coletiva de instrução primária e rural às crianças então identificadas como "desamparadas". Ilustres dirigentes imperiais reuniram-se para fundar a Associação Brasileira Protetora da Infância Desamparada. Presidindo a iniciativa, o Sr. Gastão de Orleans e Bragança, o Conde D’Eu. Juntamente com o genro do Imperador, encontravam-se na diretoria: o Visconde do Bom Retiro (Luiz Pedreira do Couto Ferraz), autor do primeiro Regulamento de Instrução Primária e Secundária da Corte; os Conselheiros Manoel Francisco Correia e Carlos Leôncio de Carvalho; Henrique de Beaurepaire-Rohan; Nicolau Joaquim Moreira; o Deputado Franklin Américo de Menezes Dória e Luiz Monteiro Caminhoá.Concentrando importantes autoridades e figuras destacadas da política imperial, a finalidade da Associação era fundar Asilos Agrícolas, para onde seriam levadas as crianças e os menores que circulavam "abandonados" nas ruas das grandes cidades do Império, destacando-se a Corte.3 Mantendo a cidade do Rio de Janeiro como sede das reuniões de associados e do empreendimento, seus membros pretendiam estender os seus benefícios por toda a Província, quiçá por todo o Brasil.Para concretizar sua proposta, a Associação organizou as diretrizes gerais para o ingresso de associados e para a obtenção dos recursos financeiros. A entrega de uma jóia e o pagamento de contribuições anuais eram as prerrogativas básicas para a entrada na lista de sócios beneméritos. Além disso, os integrantes da iniciativa deveriam realizar constantes campanhas em prol da "proteção da infância" entre os abastados comerciantes da cidade e os potentados proprietários do interior, a fim de angariar o auxílio de particulares (SCHUELER, 2000, p.1).

A defesa dessa iniciativa também se fez presente nas sessões da Assembléia

Provincial, pela voz do deputado Emílio da Silva Coutinho, em setembro de 1876,

apresentando o projeto nº 10 que tratava da “criação de uma colônia orfanológica,

na qual seriam admitidos órfãos desvalidos do sexo masculino”:

Vejo, Sr. Presidente, que o governo geral já tem a respeito dos órfãos determinado alguma coisa, estabelecendo Companhias de aprendizes marinheiros nesta e outra províncias, assim como Companhias de artífices militares. Mas, todos nós vemos a relutância que têm os órfãos de seguirem as armas; ao passo que se todos se dedicarem a esta nobre profissão, a lavoura virá a ressentir-se algum dia. Não é conveniente que todos os órfãos sejam militares; e entendo que eles podem ser convenientemente aproveitados na lavoura. É essa instituição que ocorreu-me, de certo merecerá o apoio de todos, merecerá a coadjuvação dos Juízes de Órfãos, que são os naturais protetores dos órfãos quando bem exercem a sua missão ... [sic] [...] Na província de Pernambuco, no município de Casa Branca, da província de S. Paulo, existem colônias desta natureza. Por isso, não é uma idéia nova; e eu me orgulho de ter buscado em províncias mais adiantadas, as luzes para confecção de meu projeto, vou ler: (Ler) Em bem mesmo da instrução publica, Sr. Presidente, apresento este projeto. Nós sabemos que nesses centros existem escolas, mas que elas são dificilmente concorridas. Em uma colônia, cujo perímetro é limitado, colocada no centro dela uma escola, e havendo a

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obrigatoriedade do ensino, de certo que os órfãos a ela concorrerão; e assim, esses que deixam de receber instrução, vindo um dia a serem pesados ao país, pelo contrário, a receberão obrigatoriamente, e se tornando assim aproveitáveis à sua pátria (Anais das sessões da assembléia provincial do Espírito Santo de 1876, 21 de outubro de 1876, p. 24 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

O deputado prosseguiu sua exposição, apresentando o seu projeto como alternativa

que contribuiria juntamente com a Companhia de Aprendizes de Marinheiros e com

as escolas para alicerçar a educação dos órfãos livres e, inclusive, dos ingênuos:

A ASSEMBLÉIA PROVINCIAL DO ESPIRITO SANTO. Resolve:

Art, 1º - Fica o Presidente da província autorizado a conceder o auxílio anual de 6:000$000, a quem maiores garantias oferecer, para estabelecer em terrenos próprios para cultura um núcleo colonial orfanológico, em que sejam admitidos órfãos desvalidos do sexo masculino. § Por contrato assinado perante o Presidente da província, com assistência do Juiz de Órfãos, obrigar-se-á o concessionário: 1º A prestar aos órfãos alimentados, residência, vestuário e curativo. 2ºA dar-lhes instrução primária elementar nos termos do Art. 35 do Regulamento da Instrução de 20 de Novembro de 1873. 3º A não admitir à matrícula na colônia menores de 7 anos e maiores de 14, nem indivíduos que sofreram moléstias contagiosas. 4º A fornecer compêndios para o ensino primário, assim como papel, tinta e utensílios para a escola. 5º A dar aos órfãos colonos instrução pratica de cultura do solo e serviço de lavoura, acompanhando-os em tais exercícios o professor ou pessoas de confiança deste. Art. 2º - É expressamente proibido a convivência dos órfãos c om escravos, quer no trabalho agrícola quer fora dele. § Dois anos depois da matrícula do órfão, como colono terá direito a criação de um pecúlio, para o qual concorrerá o concessionário com a entrada anual para a Caixa Econômica da quantia que for estipulada no contrato, devendo ser a caderneta passada em nome do órfão. Art. 3º - Terá direito ao auxílio pecuniário do Art. 1º a existência de órfãos na colônia, a metade do auxílio o número de 30, e lego [sic] que hajam 15, o concessionário receberá a quarta parte do mesmo auxílio. Art.4º - Além do auxílio estatuído, o Presidente da província, sob propostas do Juiz de Órfãos, nomeará para a colônia um professor habilitado, de conformidade com o Regulamento da Instrução Pública, logo que existam na colônia 20 órfãos. § Esse professor terá os vencimentos fixados na lei vigente para os de sua categoria, pagos os ditos vencimentos pelo cofre provincial. Art. 5º - O Presidente da província expediria de acordo com o Juiz de Órfãos, Regulamento para a observação desta lei, podendo estatuir as penas de rescisão do contrato e multas. Art. 6º - Ficam revogadas as disposições em contrario. S.R. – Paço da Assembléia, 21 de outubro de 1876. – O deputado: E. da Silva Coutinho. (Anais das sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1876, 21 de outubro de 1876, p. 24 e 24 b, grifos meus – Arquivo da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

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Nas discussões desenvolvidas nas sessões da Assembléia Provincial alguns

deputados, representados na voz do Sr. Raulino, consideraram a quantia ínfima em

relação ao número de 60 órfãos, porém concordaram devido as condições

financeiras da Província. Prosseguiram a discussão e o mesmo deputado levantou

as seguintes questões:

Diz o § 3º do Art. 1º que não se pode admitir à matrícula menores de 7 anos, nem maiores de 14. Ora, Sr. Presidente, que serviço poderão prestar es ses órfãos de 7 a 14 anos no estabelecimento colonial? Que vantagen s, que interesse terá quem quer que seja fundar um centro colonial orfanológico, quando estes menores nenhum serviço poderão prestar? Só pelo auxílio da província? Tão insignificante é, que absolutamente não dará para a assistência de 60 órfãos! De sorte que ninguém quererá. O Art. 2º proibi a convivência dos órfãos com escravos. Sem dúvida é esta uma medida de toda conveniência: mas o que irão fazer esses menores de 14 anos em um estabeleciment o agrícola, onde o trabalho é árduo, superior as forças dessas crianças, por assim dizer?! O Sr. TITO: - Com trabalhadores livres. O Sr. RAULINO: - Mas se há trabalhadores livres. Já estes órfãos não ficam sós; então é preciso que aquele que propuser a estabelecer esta colônia já tenha certos preparos indispensáveis, já tenha lavoura pronta, divida seu serviço, etc. O Sr. EMILIO COUTINHO: O que não é impossível.[...] (Anais das sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1876, 21 de outubro de 1876, p. 74, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Os deputados continuaram a discussão sobre a viabilidade do projeto, porém Emílio

da Silva Coutinho ressaltou que era muito importante para o futuro da Província o

incentivo à formação para o trabalho livre:

[...] contribuir para o progresso desta província. Entre outras medidas lembrei-me desta: não só porque sabemos qual é a sorte dos órfãos, como porque entendi que este projeto iria acautelar os interesses futuros da província, e interesses imediatistas dos pobres órfãos que tantas vezes são ludibriados, que tantas vezes são vilmente tratados [...] O Sr. RAULINO: A questão é a possibilidade prática. [...] O Sr. E. COUTINHO: - [...] Quanto à dificuldade de levar-se a efeito um estabelecimento desta ordem, sem a convivência de órfãos com escravos, apenas direi que Deus me livre que nesta época eu tivesse idéias tão retrogradas que viesse indicar que os órfãos que temos de habilitar para o futuro [...] vão ser entregues à convivência de escravos. (Anais das sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1876, 21 de outubro de 1876, p. 74, 74 b e 75 – Arquivo da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

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Os demais parlamentares reiteraram o apoio a este pensamento e firmou-se, então,

um contrato entre o deputado e o tenente Emílio da Silva Coutinho de modo a

apoiarem a fundação da colônia orfanológica. Porém, de acordo com as informações

fornecidas por Maria Stela Novaes (1964), a fundação dessa colônia não se realizou.

Mesmo assim, considerei relevante a discussão na Assembléia Legislativa

Provincial, no sentido que contribuir para a compreensão de algumas questões

importantes articuladas na Província em relação à educação das camadas

populares, bem como permitiu reiterou a existência de uma preocupação com

“modelação social, moral e econômica “ (liberdade imperfeita).

A exemplo disso, o Juiz de Órfãos da Vila de Benevente, Joaquim Ferreira N. de

Siqueira, em 12 de outubro de 1882, comunicou que recebeu o ofício circular sob nº

320, constando que o Ministro dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras

Públicas resolveu enviar nos filhos livres de mulher escrava entregues ao Estado

para a Companhia de Aprendizes de Marinheiros, em virtude da opção da Lei nº

2040 de 28 de setembro de 1871 de que trata o artigo 1º§1º. Porém, o mesmo em

resposta afirmou que quando houvesse meninos nesta situação estaria pronto para

cumprir tal resolução.

Tal documento aponta para três possibilidades: uma que poderia ser a confirmação

de não havia crianças em tal situação na Província, uma segunda que aponta para

o velar das condições de desamparo e exclusão social que os filhos da camada

popular estavam submetidos e a outra, a mais provável, que revela a tentativa dos

senhores proprietários de burlar a Lei do Ventre Livre (1871) evitando mais uma vez

de entregar os filhos das trabalhadoras escravizadas ao cuidados e tutela dessas

instituições públicas.

Além, a análise desse documento demonstra a mobilização do Governo da

Província em relação a agilizar as determinações desta Lei e aponta também para a

importância da Companhia de Aprendizes de Marinheiros como instituição que

poderia colocar em prática as medidas educacionais voltadas para os interesses e

“modelação social, moral e econômica”, principalmente dos ingênuos. Salientou,

ainda, a preocupação com as camadas pobres da população, não no sentido de

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estabelecer direitos sociais, ficando explícito que essas medidas deveriam atender

às demandas imediatas do trabalho nas lavouras.

Dessa maneira, esse esforço deveria priorizar as iniciativas particulares, ficando em

segundo plano o assistencialismo social sob a responsabilidade do Governo

Provincial, principalmente, porque nesse momento era prioridade para a elite

dirigente enfrentar os problemas relacionados com doenças epidêmicas que

atenuava a situação social da Província. Nesse sentido, os discursos da elite

intelectual e dirigente defendiam que os problemas sociais deveriam ser

contemplados pelas ações de caridade, que eximiam o Estado da responsabilidade

de solucioná-los. Mas, ao mesmo tempo, o Estado assumia as rédeas de controle

da situação de abandono e desamparo desta camada social, pois temia o abalo da

ordem socioeconômica, ou seja, era preocupação do Estado, não no sentido do

reparo do drama social, mas porque pretendia sanar os obstáculo à modernização

econômica da Província.

Dessa forma, a elite intelectual e dirigente procurou adequar a legislação aos

padrões dos discursos moralizantes e coercitivos e vice-versa, sempre enfatizando

os modelos clássicos adotados por outros países, dando ênfase a educação popular

e assistência social aos desamparados e aos desvalidos.

Levando em consideração os discursos em defesa de medidas de caráter

excepcional e de assistencialista aos desamparados e aos desvalidos foram

desenvolvidos inúmeros dispositivos e estratégias, visando, principalmente, à

moralização e o ajustamento destes enquanto possibilidades de oferta de trabalho

para a nova ordem social e econômica emergente, além do aprendizado de um

ofício. Enfim, a educação era uma questão de ordem social e de trabalho, ou seja,

era uma educação imperfeita. Neste sentido, a elite pretendia suplantar através dos

argumentos fundamentados na defesa de uma formação para o trabalho e da

caridade, a manutenção da hierarquia social e incentivar a modernização

econômica.

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2.2.4 A educação dos libertos na Província do Espír ito Santo

O Relatório do Presidente da Província Francisco Ferreira Corrêa evidenciou a

preocupação com as manumissões das trabalhadoras escravizadas, estabelecendo

uma intrínseca relação com a necessidade de “emancipação do espírito cativo da

ignorância”:

Foi com verdadeiro transporte de viva emoção, que ultimamente dei execução a lei nº 25 de 1869 [Governo de Antônio Paes Leme], autorizando a despesa anual de reis 6:000$ com alforrias de escravas de 5 a 10 anos de idade .Quando em todas as províncias a sublimidade de uma idéia tão santa e humanitária se tem inoculado em todos os espíritos; quando associações inúmeras existem conferindo generosamente liberdade a tantos infelizes vergados ao peso da escravidão; quando as assembléias provinciais seu maior número, tem concorrido com edificante espontaneidade para a realização desse benefício; quando, enfim, os altos poderes do estado à assembléia geral legislativa com tanto interesse se empenham por dotar o país de uma lei, que sem ofensa do direito de propriedade , nos traga em breve tempo, a solução completa desse difícil problema a emancipação do elemento servil: quando tudo isso vejo, Senhores, deveria se lamento contar que a província do Espírito Santo não podia se indiferente à esse impulso nobre e magnânimo que presentemente atua nos corações, sempre sensíveis dos filhos do império do cruzeiro. Sim, já era tempo: o grau de civilização, que a sociedade brasileira vai atingindo, contrasta com a manutenção de uma instituição bárbara e caduca, condenada pela religião e repelida pelas luzes deste século de maravilhosas descobertas! Nem se diga que interesses máximos acobertados por altas razões de estudo aconselham a permanência do status quo em relação a magna questão do elemento servil. “Em verdade, exclama o ilustrado Dr. Tavares Bastos com o assento da mais profunda convicção e com esse rasgo de eloqüência só própria das inteligências privilegiadas, em verdade o mais digno objeto das cogitações dos brasileiros é, depois da emancipação do trabalho a emancipação do espírito cativo da ignorância” (Relatório do Presidente da Província Francisco Ferreira Corrêa de 9 de outubro de 1871, grifos meus - Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

Penso que esse pronunciamento foi o resultado das diversas discussões realizadas

nas reuniões no “palácio da presidência ” que foram amplamente divulgadas no

jornal Correio da Victoria. Ao meu ver, provavelmente nessa reunião os temas da

pauta foram os mesmos que nortearam os debates no Congresso Agrícola do Rio de

Janeiro e no Congresso Agrícola de Recife, que ocorreram em 1878: trabalho

(escravidão e imigração), modernização e educação. Isto ficou evidente a partir da

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referência feita às idéias articuladas por Aureliano Cândido Tavares Bastos76 e

também pelas sutis referências feitas as grandes tensões que nortearam esses

eventos e fizeram parte das preocupações da elite intelectual e dirigente, nas

últimas décadas do século XIX.

Além disso, as próprias medidas administrativas do governo de Francisco Ferreira

Corrêa, as discussões nas sessões das Assembléias Legislativas Provinciais e o

próprio texto que divulgava na imprensa essa reunião foram indícios significativos

para perceber o esforço de se instituir os pilares das transformações emergentes na

Província do Espírito Santo:

Reunião no palácio da presidência. – Estamos autorizados para declarar que a terceira reunião terá lugar no próximo domingo às 10 horas da manhã, tendo por fim discutir-se e aprovar-se a ata da sessão anterior, bem com assentar-se nos meios práticos de obter-se para a lavoura dessa província colonos estrangeiros ou homens laboriosos e moralizados de qualquer procedência. S. Ex.o Sr. presidente da província [Francisco Ferreira Corrêa], em uma carta circular, que temos a satisfação de publicar neste número, lembra a conveniência da organização de associações agrícolas, e aconselha aos nossos fazendeiros e lavradores, que empreguem todos os meios ao seu alcance para introduzir em seus estabelecimentos agrários máquinas úteis de moderna invenção movidas por braços livres em substituição ao trabalho escravo , sem dúvida menos produtor; o que é um axioma firmado nos princípios inconcussos da ciência econômica, política social. Convida-se, pois, por esse meio os prestantes cidadãos já convidados para as reuniões anteriores (Correio da Victoria, 5 de maio de 1871, grifos meus (com exceção do título) - Arquivo Público Estadual do Estado do Espírito Santo -APEES).

Não poderia ignorar outros indícios, como, por exemplo, antecedendo a reunião

supramencionada, em 1º de março de 1871, o Presidente da Província, Francisco

Ferreira Corrêa, “em douta Circular, comunicava ao povo capixaba que uma 76 Aureliano Cândido Tavares Bastos, jornalista, político e publicista, que teve sua carreira política marcada pela preocupação com as questões sociais e econômicas do seu tempo, sobretudo a escravidão, a imigração, a livre navegação do Amazonas, a educação, a questão religiosa. Em 1867, Tavares Bastos publica Reflexões sobre a imigração, faz oposição ao Gabinete Zacarias, deixando de ser deputado ao dissolver-se a Câmara em 18 de julho de 1868. Passou a dirigir o Diário do Povo, com Lafayette Rodrigues Pereira, e colaborou com o jornal A Reforma do recém-fundado Clube da Reforma (1869). Já em 1870, ele publicou A Província, livro que apresentou as suas idéias fundamentais: a da descentralização ou da federalização do Brasil, dando certa autonomia às províncias e acabando com o centralismo unitarista imperial que as sufocavam e lhes negavam praticamente qualquer iniciativa. Suas obras de maior relevância foram: Cartas do Solitário (1862); O vale do Amazonas (1866); Reflexões sobre a imigração (1867); A província (1870); Reforma eleitoral e parlamentar e a obra Constituição da magistratura (1873). Disponível em: http://www.biblio.com.br/Templates/TavaresBastos/TavaresBastos.htm. Acesso em 15 de agosto de 2005, às 13 horas e 56 minutos.

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Comissão, para angariar donativos destinados a uma Casa de Instrução, na Vitória,

iniciativa que se estenderia a todos os povoados da Província” (NOVAES, Maria

1964, p.255).

A documentação apresentada também apresentou indícios que evidenciaram a

preocupação da elite intelectual e dirigente espírito-santense com relação entre

emancipação e educação para o trabalho, principalmente no sentido pontuado nos

Congressos Agrícolas, de 1878.

Sobre isto, Marcus Vinicius Fonseca (2002 a) afirmou que :

De acordo com as posições manifestadas nesses congressos, nota-se que, do ponto de vista os proprietários rurais, era indispensável a criação de um sistema de educação voltado para o trabalho, e dentro desse sistema, uma modalidade de educação para as crianças nascidas livres de mães escrava, objetivando que elas se convertessem em seres úteis à ordem social estabelecida mediante a agricultura. Em relação às posições a que expressavam os proprietários rurais tanto no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, como no Congresso Agrícola do Recife, a educação dos ingênuos deveria ter um caráter essencialmente agrícola. A análise das posições que foram manifestadas nesses congressos nos permitem concluir que os problemas colocados pela Lei do Ventre Livre proporcionaram o momento ideal para que os agricultores reivindicassem com veemência a criação do ensino agrícola no País. Nesses dois eventos, pudemos mesmo encontrar projetos detalhados para a criação dessas escolas e elas teriam entre os objetivos o de preparar os descendentes de escravos para o trabalho agrícola (FONSECA, M.V., 2002a, p.83).

Seguindo as assertivas de Fonseca (2002a), ficou clara a opção da Província

Espírito Santo em relação à integração dos trabalhadores negros recém-libertos à

educação para o trabalho. Todavia, a documentação oficial evidenciou que,

simultaneamente, se priorizou uma preocupação com os investimentos financeiros

necessários para a articulação da imigração européia, como alternativa imediata

para solucionar os problemas voltados a falta de mão-de-obra para as lavouras de

café. Tentando elucidar esse conjunto de idéias situei neste contexto, o Relatório

Oficial do presidente Francisco Ferreira Corrêa (1871):

Assunto é hoje da maior atenção do governo o desenv olvimento a colonização no país: de dia para dia se torna mais urgente a aquisição de braços livres que venham povoar as desertas e extensas matas do nosso abençoado solo. Desde muito, com mais ou mentos empenho, mais ou menos acerto nas medidas tomadas, mais ou menos

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êxito nos resultados obtidos, tem sido a colonização estrangeira um dos pontos principais das constantes solicitude do governo. [...] Em face da urgência de promover em grande escala a imigração estrangeira, necessidade por ninguém hoje contestada, todos os esforços empregados não são demais, todo apoio e cooperação dos particulares no intuito de secundar as vistas do governo será mais um grande passo no dado para o alvo que fitamos, mais um motivo para comprovar o nosso adiantamento moral, que nos faz assim reconhecer e abraçar com afinco essa idéia que hoje preocupa os espíritos mais refletidos. É tal o efeito da germinação se assim posso dizer, da idéia e sua inoculação nos espíritos mais esclarecidos,que não só o governo, sendo também as províncias, os particulares hão de reconhecido as vantagens de sua realização completa. A importante província de S. Paulo aí está, como espelho vivo, para atestar-nos o quanto vale no país a colonização bem estabelecida, e conservada pela prática inteligente de homens amestrados e que de coração se dedicarão a realização dessa medida de tão sabido alcance para os interesses do país. Sei que nem todas as províncias estão em idênticas condições de engrandecimento, que nem todas podem dispor dos mesmos recursos; mas dentro das raias do possível, sem exceder a meta dos seus meios pecuniários, cada qual, ainda que em pequena escala, dever ir iniciando qualquer providência, embora de pequeno alcance, no intuito de acompanhar essa onda que envolve o país inteiro: os grandes rios em sua nascença não são muita vez mais do que escassos e pequeninos regatos. A solicitude do governo imperial não menos preza qualquer esforço por pequeno, tendente ao máximo empenho social, antes o ampara quanto em si cabe, nada olvidando daquilo que pode concorrer para aumentar os esforços de todos (Relatório do Presidente da Província Francisco F Correa, Sessão Ordinária de 9 de outubro de 1871, p. 99, grifos meus - Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo).

O olhar de Francisco Correa evidenciou um conjunto de representações sobre o

trabalho escravizado a partir da negação do “ideal”, ou seja, a partir da negação da

produtividade. Assim, os trabalhadores negros escravizados foram apresentados no

imaginário da elite intelectual e dirigente como os “não laboriosos e não

moralizados”. Além disso, esse documento possibilitou conjecturar que havia,

mesmo em longo prazo, uma preocupação com a integração dos libertos ao

trabalho livre através da educação77, tanto pela Lei do Ventre Livre (1871), como por

meio da concessão das alforrias. Dessa maneira, essa educação deveria priorizar a

formação para o trabalho e a generalização do ensino agrícola. Entretanto, deveria

manter também o status quo das profissões mais intelectualizadas, de modo não

dissipar a dualidade entre o trabalho intelectual e o braçal.

77Marcus Vinicius Fonseca (2002a) destaca que não era como crianças que esses ingênuos eram tratados, mas como os trabalhadores negros do futuro, através daquilo que se poderia chamar de pedagogia do chicote. E a única vez em que a palavra educação aparece no texto da lei é na própria Lei do Ventre Livre (1871), pois o termo educação foi substituído por criação (FONSECA, M.V., 2002a, p. 47, 53 e 62).

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É importante ressaltar que essas articulações na Província do Espírito Santo

anteviram as decisões dos dois Congressos Agrícolas de 1878. Assim, foi possível

perceber que a elite intelectual e dirigente espírito-santense possuía um olhar

inserido no e para além do seu tempo.

Afinal, as grandes tensões, de forma bastante peculiar, já se mostravam articuladas

na Província do Espírito Santo desde os últimos anos da década de 60 do século

XIX, principalmente considerando que em 1865, o Imperador havia solicitado ao

Senador Antônio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente), que elaborasse um

projeto para emancipação dos trabalhadores escravizados (COSTA, E. V., 1988).

Acirraram-se, assim, os debates e as preocupações em torno da questão sobre

falta de braços para a lavoura em todas as províncias do Império.

Continuando a argumentação, convido ao leitor a acompanhar-me em um percurso

pelas iniciativas (algumas já pontuadas neste trabalho) que consolidaram a relação

escravidão e educação na Província do Espírito Santo. Primeiramente, pela Lei nº

25, de 4 de dezembro de 1869 (Decreto 640), que foi sancionada pelo, então

Presidente da Província do Espírito Santo, Antônio Dias Paes Leme:

Art.1º O presidente da província fica autorizado a despende anualmente a quantia de seis contos de reis (6:000$000) com alforria de escravos do sexo feminino de cinco a dez anos de idade. Art.2º O preço de cada alforria não poderá exceder de seiscentos mil réis (600$000). Art.3º Até o dia sete de setembro os possuidores ou protetores dos escravos que pretenderem o favor da presente lei, apresentarão ao presidente da província petições documentadas com certidões de idade e atestado de saúde declarando-se na mesma (petição o preço da alforria). § 1º O atestado de saúde de que trata este artigo será passado por médico, quando o houver no lugar, ou por três cidadãos de reconhecida confiança. Art.4º Recebidas as referidas petições no artigo antecedente, o presidente nomeará uma comissão de cinco membros para em quinze dias dar parecer sobre as ditas petições indicando quais dos peticionários devem merecer a preferência, de maneira que as alforrias não excedam a quantia votada no art. 1º. Art. 5º A preferência será fundada no menor preço relativo de cada alforria, ou seja este devido a filantropia dos possuidores, ou a qualquer auxílio prestado pelos protetores. Art. 6º Se o valor dos escravos que se acharem em circunstâncias idênticas de preferência, for maior do que a quantia votada a sorte designará os que nesse ano deverão ser alforriados.

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§1º Este sorteio será feito em palácio em presença do presidente, da comissão e de todas as mais pessoas que quiserem assistir. Art. 7º As respectivas cartas de liberdade serão entregues as beneficiadas no dia da abertura das sessões ordinárias da assembléia provincial. Art. 8º No regulamento que o presidente da província expedir pra a boa execução desta lei determinará o destino que se dará as alforriadas. Art. 9º Ficam revogadas as disposições em contrário. [...] (Regulamento sobre o auxílio para liberdade de escrava nº 82 a de 20 de julho de 1870 – Secretaria do Governo e Correio da Victória, sábado, 18 de dezembro de 1869, n. 99 – Biblioteca do Arquivo Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

Destarte, não poderia deixar de construir esta argumentação sem mencionar a

aprovação da Lei nº 32 (Decreto 647), em 23 de dezembro de 1869, a que permitiu

o acesso de trabalhadores negros libertos nas aulas do Colégio Espírito Santo, que

posteriormente passou a se denominado Colégio Normal:

DECRETO Nº 647 (1869 – Nº 32)

ANTONIO DIAS PAES LEME, BACHAREL FORMADO EM [sic] ciências jurídicas e sociais pela faculdade de São Paulo e presidente da província do Espírito Santo – Faço saber a todos os seus habitantes que a assembléia legislativa provincial decretou, e sancionei a resolução seguinte: Art. 1º - O colégio Espírito Santo será d’ora em diante o centro da instrução pública, e tomará a denominação de Colégio Normal. Art. 2º - No mesmo colégio fica criado um curso de pedagogia, que constará das seguintes matérias: Aritmética, sistema métrico, geografia e história, gramática filosófica e latina, explicação da doutrina cristã, e métodos e escrita. [...] Art. 4º - O fim do curso, que será de dois anos é habilitar professores para o ensino primário. Art. 5º - Neste curso só poderão matricular-se os indivíduos que: que: § 1º Souberem ler, escrever e contar as quatro operações e tiverem noções de gramática portuguesa. § 2º Tiverem 16 anos para cima. § 3º Forem de ótima conduta social. § 4º Forem cidadãos brasileiros, ingênuos ou adotivos, em pleno gozo dos seus direitos. Art. 6º - Pela matrícula deste curso se pagará dez mil reis ao princípio de cada ano letivo. [...] Art. 17 - O tempo de duração do ensino primário será o que exigir a inteligência e aplicação do aluno e constará, leitura, gramática portuguesa, escrita, doutrina cristã, operações materiais: Aritmética, sistema métrico, geografia e história, gramática filosófica e latina, explicação da doutrina cristã e métodos e escritas.[...] Registrada a fl. 206 v. do livro de leis e resoluções provinciais –Secretaria da presidência da província do Espírito Santo, aos 23 dias do mês de dezembro de 1869.

O 2º oficial

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Joaquim Corrêa de Lirio (Livro das Leis e Decretos da Província do Espírito Santo, 1869, p. 90 -98, grifos meus – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

Ambas Leis, anteriormente mencionadas, trouxeram um dado novo e instigante para

a construção da análise deste trabalho de pesquisa, pois permitiu vislumbrar que a

Província do Espírito antecedeu as medidas legislativas abolicionistas e os projetos

educacionais que foram articulados no Império a partir da Lei do Ventre Livre (28 de

setembro de 1871). Demonstrando, assim, que a elite intelectual e dirigente espírito-

santense era portadora de uma visão para além do seu tempo e também já se

apresentava comprometida com as grandes tensões (trabalho, modernização e

educação) das últimas décadas do século XIX, pois desejavam fazer parte do

mundo civilizado e pretendiam alcançar os padrões econômicos e sociocultural dos

europeus. Assumindo, assim, uma postura salvacionista e de superação do mito do

atraso que permeava o imaginário da Província.

Dando continuidade ao percurso proposto, não poderia ignorar que já havia a

preocupação com a promoção e a “criação de cursos para o ensino primário dos

adultos analfabetos” (MOACYR, 1937, p. 187 e 188), desde 1969, antecipando os

postulados da Reforma Educacional de Leôncio de Carvalho (abril 1879).

Evidenciando-se, assim, a presença dos trabalhadores negros escravizados, livres e

libertos nas aulas noturnas, considerando, principalmente, o contexto do processo

abolicionista.

Da mesma forma, e antevendo a Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871), se

concedeu, nesta Província, liberdade às mulheres e crianças escravizadas sem

qualquer condição de prazo. Em 11 de dezembro de 1871, a aprovação da Lei nº 30

autorizou a consignação da quantia anual de 6.000$000 para a manumissão destes

sujeitos históricos. Sobre isso, Pas (1992) acrescentou que:

Os senhores de escravos que se propuseram a obter o benefício da manumissão outorgado por aquela lei foram muitos, chegando ao número de 35 os requerimentos apresentados. Tantos foram os pedidos que o Presidente da Província Dr. Antonio Gabriel de Paula Fonseca [nomeando em 31 de maio de 1872, entrando em exercício em 19 de junho] nomeou uma comissão composta do chefe de polícia interino – Dr. Fernando Afonso de Mello, do juiz de Direito da Comarca de Vitória – Dr. Luiz Duarte Pereira e do Inspetor da Tesouraria da Fazenda Geral

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– Thomé Arvellos Espíndula, que escolheram entre as propostas apresentadas, nove, que reuniam os motivos de preferência da referida lei. Aprovada pela Assembléia Provincial a escolha das noves escravas, foram as cartas de liberdade passadas com todas as formalidades legais e entregues pelo Presidente da Província, Dr. Antonio Gabriel de Paula Fonseca [sic], às libertadas. E, sessão pública realizada no Palácio da Presidência no dia 7 de Setembro de 1872 (qüinquagésimo ano da Independência do Brasil). Na ocasião assim se expressou o Presidente: “Não há, senhores Deputados, meios mais consecutâneo para festejar o grande dia que recorda a nossa emancipação política. É justo que a Província do Espírito Santo concorra com o que pode, para acompanhar as suas irmãs, no empenho de patentear o mundo civilizado, que o Brasil não conserva a escravidão senão por suprema necessidade, e que essa instituição, triste legado de nossos, sabiamente interpretada pelo Governo Imperial na memorável Lei nº 2.040 de 28.09.1871. Devo porém fazer-vos algumas reflexões que sugeriram a execução da Lei Provincial sobre manumissões. Duplo seria o benefício outorgado por ela, si, acrescentada a sociedade livre anualme nte com algumas mulheres que foram escravas, essas fossem m oralizadas, honestas, de uma idade mais susceptível de instruçã o, e reunissem atributos pelos quais se pudesse delas esperar boa s mães de família . Essas deviam ser as qualidades sobre tudo preferidas, e não um pecúlio com que a liberdade se apresente para diminuir o sacrifício pecuniário da Província, porque esse pecúlio há de ser naturalmente desejado, e para sua aquisição podem ser empregados meios reprovados pela moral, e que deslustrem o grande fim do legislador. Assim entendo que a lei nº 30 do ano passado pode ser muito vantajosamente modificada, quanto ao máximo da idade que ela exige para o benefício da liberdade, e principalmente pela revogação da preferência dada ao pecúlio” (PAS, 1992, p.68, grifos meus).

Assim, os filhos das mulheres escravizadas passaram a ser visto como

possibilidades de oferta de trabalho livre, desencadeando, assim, uma série de

medidas educacionais que priorizavam a formação para o trabalho. Sobre isto,

discorreu Marcus Vinicius Fonseca (2002 a e 2002b):

De acordo com a Lei do Ventre Livre, as crianças que nasciam de mães escravas após 28 de setembro de 1871 poderiam ser criadas ou educadas que vigoravam durante a escravidão, caso ficassem sob posse dos senhores de suas mães, ou poderiam ser expostas a uma outra forma de educação, que tinha a intenção de prepará-las para a vida como seres livres, caso fossem entregues ao Estado. Os problemas decorrentes da falta de braços para serem utilizados como mão-de-obra, resultado direto do fim do tráfico de africanos para o Brasil em 1850, e a própria maneira como foi resolvida a questão da liberdade das crianças que nasciam livres de mães escravas, fazendo várias concessões aos interesses os proprietários de escravos, deixa uma ampla margem de dúvida para sabermos qual foi de fato o destino das crianças que nasceram de mães escravas após 28 de setembro de 1871.[...] Seja na condição de libertos, ingênuos ou mesmo de escravos, a educação foi associada aos negros como um fator indispensável para sua integração social (FONSECA, M. V., 2002 a, p.61).

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O mesmo autor, ainda, afirmou que:

Embora fossem as crianças negras que estivessem em questão e sob o foco da ação e do discurso do governo e dos abolicionistas, não era como crianças que elas eram efetivamente tratadas, mas sim, como os trabalhadores negros do futuro. A noção de criança é uma metáfora que expressa o negro e seu lugar em uma sociedade que se encaminhava para o trabalho livre. [...] ou seja, apreender as formas como os indivíduos que se referiam às crianças expressavam seu verdadeiro interesse, que era de fato, projetar a condição dos negros na sociedade livre que estava sendo pensada e construída. A Lei do Ventre Livre, como resposta e solução para o difícil problema da questão do elemento servil, foi uma solução indireta e inteligente da elite dirigente para estabelecer um plano de superação do escravismo no Brasil (FONSECA, M. V., 2002 a, p.62).

Tanto na Lei Provincial nº 25, de 1869, como na Lei do Ventre Livre (1871), estava

implícito o discurso em defesa de uma educação com o objetivo formar e conformar

ingênuos, outros libertos e livres para o mundo do trabalho, do final do século XIX no

contexto da transição do escravismo para o trabalho livre, buscou-se exercer o

controle social sobre estes sujeitos históricos, especialmente dos ingênuos, como

também dos filhos das classes populares.

Desse modo, tornou-me mister compreender esse conjunto de medidas adotadas

pela Província do Espírito Santo, que curiosamente antecipava as medidas

nacionais, dentro de um contexto de uma escala mais ampla: o país enfrentava o

fim da Guerra do Paraguai. Tal fato também mobilizou os discursos e as medidas

legislativas em torno da questão da emancipação dos trabalhadores escravizados.

Além disso, a Guerra de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos havia mostrado

que realmente o fim do escravismo era inevitável. Creio que se possa acrescentar a

esse contexto a crise política desencadeada pela queda do Ministério Liberal (em

1868) e os debates travados na Câmara e pela imprensa em torno da Lei do Ventre

Livre (28 de setembro de 1871), que fizeram em seu conjunto a crise do escravismo

uma questão nacional. A incapacidade do Império em resolvê-la tornava se cada dia

mais patente.

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Surgiu também um movimento contrário à emancipação e favorável à defesa dos

interesses das camadas proprietárias. Assim, foram muitas as tentativas para

impedir a tramitação do projeto em defesa da Lei do Ventre Livre (1871), mas

Apesar dessa tentativa de bloqueio, o projeto foi sendo discutido e aprovado.Havia na Câmara um número suficiente de deputados que o apoiavam, tanto entre os conservadores quanto entre os liberais. Entre estes, destacava-se um pequeno grupo de radicais para quem o projeto parecia demasiado conservador. Gostariam de ver adotada uma medida mais drástica que marcasse prazo para a emancipação definitiva e completa de todos os escravos. Esse grupo constituía uma minoria, mas sua presença contribuía para que a solução proposta por Rio Branco se tornasse mais aceitável aos olhos dos escravistas: antes esta do que emancipação total! [...] Essa era, de fato, a idéia do próprio Ministro Rio Branco: reformar, para evitar maior radicalização (COSTA, E.V., 1988, p. 46 e 47).

Emilia Viotti da Costa (1988) acrescentou que

Depois de meses de debates e manobras políticas de parte a parte, e apesar dos protestos dos representantes dos interesses escravistas, o projeto foi finalmente aprovado sob os aplausos do povo apinhado nas galerias da Câmara. Votaram a favor 65 deputados. Quarenta e cinco votaram contra. A principal oposição veio das bancadas de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. Unidas, essas bancadas contavam com 48 deputados, 34 dos quais votaram contra, ou seja, dos representantes dessas regiões, apenas 14 apoiaram o projeto. Já os representantes das províncias do Norte e Nordeste votaram maciçamente a favor. [..] Pode-se, portanto, concluir que o projeto foi aprovado à revelia da maioria dos representantes do Centro-Sul do País, onde se encontravam as maiores concentrações de escravos (COSTA, E.V., 1988, p. 48, grifos meus).

A autora destacou que, mesmo entre as províncias do Centro-Sul o número de votos

contra e a favor foram idênticos, com exceção da Província do Espírito Santo onde

não houve votos a favor. Diante disso, tornou-se mais difícil compreender essa

postura, considerando, principalmente, que o Governo Provincial já havia antecipado

essas medidas desde 1869, inclusive libertando os ingênuos sem estabelecer

condições.

As iniciativas da Província espírito-santense, em 1869, e, posteriormente sua

posição contraria ao projeto-lei Rio Branco (Lei do Ventre Livre, 1871), me permitiu

conjeturar a seguinte ordem de idéias: primeiramente, investir no trabalho do

ingênuo significava investir em uma medida que geraria resultados em longo prazo;

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e em segundo lugar, a opção de investir na imigração estrangeira78 tornou-se

prioridade para a Província espírito-santense como solução para esses problemas

de forma imediata.

Dessa maneira, ao manifestar-se contrária a Lei do Ventre Livre (1871), a Província

do Espírito Santo, pretendia exercer uma pressão política com objetivo de exigir do

Governo Imperial incentivo e apoio à imigração estrangeira, ou seja, exigir medidas

imediatas para solucionar a crise de mão-de-obra para a economia cafeeira. Além

disso, tal postura poderia significar que a elite intelectual e dirigente espírito-

santense possuía uma concepção de que essa Lei apenas adiaria a solução do

problema e não impediria o acirramento do movimento abolicionista.

Isto demonstra que a elite intelectual e dirigente espírito-santense transitava entre as

tensões das últimas décadas, assumindo posturas ambíguas características de um

período de incertezas. Conseqüentemente, ao mesmo tempo em que se assumia

uma postura de manter o processo abolicionista lento e gradual, tanto na Província

do Espírito Santo e em todo o Império, foram fundadas diversas sociedades

abolicionistas a fim de organizar a luta pela emancipação dos trabalhadores negros

escravizados. Também foram inúmeras as publicações na imprensa local e nacional

em defesa da abolição definitiva da escravidão.

Além disso, Maria Stela de Novaes (1963 e 1964) mostrou a crescente ação da elite

intelectual espírito-santense a favor do fim da escravidão; bem como a não

passividade dos trabalhadores negros escravizados, que agiram, principalmente,

por meio de organização de fugas e quilombos em todo o País, inclusive na

Província do Espírito Santo (ações divulgadas de forma intensa pela imprensa local

e nacional). Na verdade, essas ações demonstraram a passos lento e gradual como

o poder escravista foi seriamente abalado e o Império, atingido em seus alicerces.

2.2.5 As escolas noturnas

Na segunda metade do século XIX, intensificavam-se os discursos em defesa de

uma educação que constituiria um dos pilares para o desenvolvimento social e 78 4.789 da população da província do espírito-santo era formada por estrangeiros C.f. PAS, 1992)

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econômico da Província. Mas, se por um lado, buscavam-se braços para a lavoura,

por outro, o Brasil recebia trabalhadores de países em franco processo de

industrialização. Era, assim, inevitável que o pensamento da modernidade

avançassem sobre proposta de um País agroexportador.

Neste cenário, surgiram diversas iniciativas voltadas para a educação dos

trabalhadores:

Criaram-se, assim, os cursos noturnos, pelo Decreto 7.031 de 6 de setembro de 1878. No ano seguinte, a Reforma do Ensino Primário e Secundário proposta por Leôncio Carvalho completava o projeto educacional do Império: instituía a obrigatoriedade do ensino dos 7 aos 14 anos e eliminava a proibição de escravos freqüentarem as escolas públicas. Há registros de que em algumas pr ovíncias os escravos os escravos não só eram incentivados a fre qüentarem aulas noturnas como de fato freqüentavam. Os cursos poderiam ser criados ou por decisão dos poderes públicos ou por particulares, incluindo associação e/ou entidades literárias e políticas. O fato de existirem iniciativas com vistas à inclusão dos esc ravos e dos negros livres em cursos de instrução primária não n os autoriza inferir que essa tenha sido uma experiência univers al (GONÇALVES, 2000, p.327, grifos meus).

Dessa maneira, proprietários de terras, intelectuais, representantes da maçonaria e

políticos registravam as iniciativas de construírem escolas, muitas delas não só

destinadas aos filhos da elite, mas principalmente destinadas às camadas populares:

“Crianças e adultos, homens pobres livres e até mesmo escravizados, puderam na

década de 70 do século passado [século XIX], cursar aulas noturnas mantidas pela

loja maçônica [...]“ (SOUZA, 1998, p. 158). A exemplo disso, o Presidente da

Província do Espírito Santo Francisco Ferreira Corrêa solicitou que:

Promova-se o desenvolvimento da generosa idéia da fundação das aulas noturnas para adultos, de que há já brilhantes exemplos nesta capital, onde temos uma de primeiras letras, regida pelo professor José Francisco de Lellis Horta, que conta 44 alunos, e promete ser numeroso e a de francês de que é professor o D. Manuel Goulart de Souza, ambas lecionadas gratuitamente pelo oferecimento espontâneo daqueles dignos cidadãos. Com uma e outra a Província apenas gasta o indispensável pra o custeio da iluminação [...] Com o fim de regularizar o ensino das aulas noturnas para adultos, expedi a resolução de 13 de abril contendo instruções sobre esse assunto; [...] (Relatório de Presidente de Província Francisco Ferreira Correa, em 9 de outubro de 1872 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

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De forma intensa o jornal Correio da Victoria, de cunho conservador, divulgou

criação das escolas noturnas. Dessa maneira, tornou-se notório que em 21 de abril

de 1872, às 20 horas foi inaugurada a primeira escola noturna para instrução de

adultos, em uma das salas que pertenciam ao Colégio Espírito Santo (o mesmo

colégio que segundo a Lei nº 32 (Decreto 647), de 23 de dezembro de 1869, deveria

permitir o acesso de trabalhadores negros libertos nas suas aulas e posteriormente

passou a ser a Escola Normal).

A partir desse documento foi possível observar o aparato sumptuoso em torno dessa

inauguração, demonstrou, ainda, que essa medida atendia aos anseios da elite

intelectual e dirigente; bem como atendeu também as expectativas das demais

camadas da população, visto que a inauguração dessas aulas contou não só com a

presença das principais autoridades da capital, mas também dos “cidadãos de

todas as classes ” (Correio da Victoria, terça-feira, 23 de abril de 1872, nº 44, p. 3,

grifos meus – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo). Corroborando a

expectativa em torno da inauguração dessas aulas, o documento evidenciou

também que já havia sido “matriculados 33 alunos, e muitos outros se ainda se

matricularão, e dentre eles um criado do S. Ex. o Sr. presidente, natural do

Paraguay ” (Correio da Victoria, terça-feira, 23 de abril de 1872, nº 44, p. 3, grifos

meus – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo). O Secretario de Instrução

Pública, o Dr. Tito da Silva Machado, forneceu também a imprensa uma lista com os

nomes de 34 alunos matriculados nessa aula noturna (ANEXO P).

Além disso, o documento ressaltou que entre as autoridades presentes na

inauguração dessas aulas estavam o Presidente da Província Dr. Francisco Ferreira

Corrêa, o chefe de polícia interino o juiz de direito Epaminondas de Souza

Gouvêa, o Diretor Geral da instrução pública coronel Dionyzio Álvaro Resendo, o

diretor do Colégio Espírito Santo, todos os professores do referido colégio e “muitos

outros cidadãos e funcionários públicos” (Correio da Victoria, terça-feira, 23 de abril

de 1872, nº 44, p. 3, grifos meus – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo).

Assim, foi possível perceber que existe uma relação entre a criação das escolas

noturnas e o Decreto 647, de 23 de dezembro de 1869, e os princípios defendidos

pela elite intelectual e oficial em relação à educação das camadas populares.

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Segundo Eliane Terezinha Peres (2002), “outro fator a ser considerado é que os

cursos noturnos foram projetados não exclusivamente, mas principalmente, para os

trabalhadores” (PERES, 2002, p. 88). Segundo a autora, esses eram “indivíduos das

classes populares, já inseridos no mercado de trabalho e vivenciando relações do

trabalho concretas. [...] Ser trabalhador, porém, era antes uma justificativa que uma

exigência” (PERES, 2002, p. 88).

Em relação a este conjunto de proposições colocadas por Peres (2002), o Relatório

apresentado a Assembléia da Província do Espírito Santo pelo Presidente Dr.

Francisco Ferreira Correia, fez referência tanto à segurança individual e de

propriedade como à instrução pública, inclusive em relação à propagação das

escolas noturnas advertindo que:

Se não é inteiramente lisonjeiro o estado da segurança individual, não inspira ele todavia mui sérios cuidados, desde que as autoridades se mostrem sempre vigilantes e solicitas no cumprimento de seus deveres. Poderiam, porém, ser outras as circunstâncias em que se achasse a Província, se outras fossem também os meios, os recursos de que ela pudesse dispor, se outro fosse o desenvolvimento intelectual e moral de sua população. É por demais limitado o número de praças que compõe a força policial, [...] À tudo isto junte-se a ignorância que lavra geralmente na classe mais baixa, no qual, com pouca e raríssima exceções se encontra um indivíduo que saiba, não di rei ler e escrever, mas assinar seu nome. Essa ignorância ai não fica, vai além, afeta ao indivíduo pelo lado da educação religiosa, e o abandono, o esquecimento em que se tem geralmente o ensino e a observância dos preceitos da religião, prejudicando a moralidade do indivíduo, o destitui dessa nobreza e pureza de sentimentos, que só os constituem um coração bem formado, avesso à injustiças e respeitador dos direitos alheios. Promova-se o desenvolvimento da instrução pública, e ela nos dará o almejado resultado: não é de chofre, mas com o tempo, e muita Constancia, que conseguiremos arrancar de embrutecimento tantos indivíduos, que aliás com alguma educação, não seriam pesados à sociedade (Relatório de Presidente de Província Francisco F. Corrêa, Sessão Ordinária, em 9 de outubro de 1871, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa).

Uma das prerrogativas postas neste documento foi o exercício do controle social

sobre os trabalhadores negros recém libertos, por meio de uma justificativa

sustentada pela necessidade de prepará-los e integrá-los de forma ambígua ao

processo de modernização das relações de trabalho, da economia e da sociedade.

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O relatório do Presidente de Província, Antonio J. de M. Nogueira da Gama,

apresentado à Assembléia Legislativa Provincial, em março de 1877, salientou que

as aulas noturnas continuavam a funcionar em uma das salas do Ateneu, contava

com 18 alunos que a freqüentaram em dias alternados. Acrescentou, ainda, que em

janeiro desse mesmo ano, foi aprovada a gratificação mensal de trinta mil réis ao

professor José Francisco de Lellis Horta, responsável por ministrar as primeiras

aulas noturnas, desde a inauguração, em 1872. Assim, a iniciativa desse professor

resultou no mais antigo curso de aulas noturnas da Província espírito-santense,

“com freqüência expressiva e efetivo aproveitamento”.

Em 1874, já havia as escolas noturnas oficiais na Capital e São Mateus,

posteriormente foi inaugurada a escola de Cachoeiro de Itapemirim. Além dessas,

também teve as iniciativas particulares (associações abolicionistas e maçonarias)

que totalizaram um número de 13 escolas, “em várias localidades da Província,

sendo dez do sexo masculino e três do feminino, com uma freqüência de 166

alunos” (MOACYR, 1940, p. 46). Segundo notícias divulgadas pela imprensa e os

Relatórios dos Presidentes de Província, essas escolas funcionaram de maneira

eficaz e regular. Sobre esse conjunto de idéias, tornou-se pertinente citar Gonçalves

e Silva (2000) ao se referirem ao público alvo desses cursos noturnos:

Tendo como público alvo o indivíduo livre e liberto, pode-se inferir que, desde sua origem, as escolas noturnas eram vetadas aos escravos. Tal veto caiu, em abril de 1879, um ano após a criação dos cursos de jovens e adultos com a Reforma do Ensino primário e secundário apresentada pelo próprio Leôncio de Carvallho. Alguns estudos registram que, em algumas províncias, escravos freqüentavam as escola s noturnas [...] Já em outras, como a de São Pedro do Rio Grande do Sul, vetava-se completamente a presença dos escravos e dos negros e livres [...] O Estado não foi o único provedor de escolas noturnas. Associações particulares, de caráter literário e/ou político, mantiveram suas próprias escolas. Por vezes, serviram de espaço de propaganda polític a, buscando aliciar os negros em prol da causa abolici onista e republicana [...] Em suma, as escolas noturnas representavam, no período em questão, uma estratégia de desenvolvimento da instrução pública, tendo em seu bojo poderosos mecanismos de exclusão , baseado em critérios de classe (excluíam-se abertamente os cativos) e de raça (excluíam-se também negros em geral, mesmo que fosse livres e libertos). Ainda que amparadas por uma reforma de ensino, que lhe dava a possibilidade de oferecer instrução ao povo, essas escolas tinham de enfrentar o paradoxo de serem legalmente abertas a todos em um contexto escravocrata, por definição, excludente (GONÇALVES e SILVA, 2000, p. 136, grifos meus).

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Muito embora tal ambigüidade apresentada por Gonçalves e Silva (2000) tenha se

prolongado bastante (e tenha sido muito bem documentada), algumas questões não

podem escapar à análise, como, por exemplo, a existência também de documentos

que comprovam que de fato havia uma preocupação em torno da criação das

escolas noturnas com o objetivo de implementar uma educação para o trabalho. Tal

situação reitera a presença dos embates característicos de um contexto

caracterizado pela escravidão, mas que simultaneamente vislumbrava o prelúdio de

uma nova ordem socioeconômica.

Dessa forma, no Relatório do mesmo Presidente de Província referiu-se

especificamente a obrigatoriedade da instrução pública:

Torna-se por demais urgente uma reforma em matéria de instrução publica, ma uma reforma completa, sistemática, bem pensada e adaptada as atuais circunstancias da Província. Resumidamente farei algumas considerações sobre o assunto, começando pelo sistema que se deve adaptar para a difusão do ensino pelo maior número possível. Convirá, entre nós, a instituição do ensino obrigatório , hoje tão preconizada e geralmente abraçada pelos países da velha Europa? Em meu humilde pensar, sem tocarmos os extremos, alguma coisa pode-se iniciar neste sentido. Em um interessante escrito do ilustrado Dr. Corrêa de Freitas, publicado no Dia de Belém, encontro o seguinte trecho, que toda aplicação as circunstâncias atuais da província. “A lei do ensino obrigatório só pode por tanto, ser executada entre nós, com algumas modificações, entre elas a de não serem os pais de família morarem mais de 2 léguas distante da escola, obrigados a dar a seus filhos o ensino primário nessa escola” Não é este todo o pensamento sobre o assunto, apenas transcrevo esse tópico que, sem dificuldade, poderia ser reduzido a disposição legislativa. Só por esse modo não se atende ao dever de dar, em geral, a instrução à todos, faz-se o que é possível no intuito de ir alargando as raias à propagação do ensino da mocidade. (Relatório de Presidente de Província Francisco F. Corrêa, Sessão Ordinária, em 9 de outubro de 1871, p. 37, grifos meus – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo).

Assim, o ensino elementar tornou-se obrigatório para todos os indivíduos de 7 a 14

anos de idade, que deveria freqüentar as escolas para esse intuito, com exceção os

alunos que possuíam domicílio superior mais de 2 léguas de distância da escola.

Essa obrigatoriedade se estendeu também à freqüência nas escolas noturnas.

Entretanto, a falta de observância desta disposição acarretava supostamente a

cobrança de multas. Não encontrei indícios que evidenciasse de fato tal prática, mas

o próprio Presidente da Província salientou que esta questão não poderia ser

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reduzida apenas à disposição legislativa deveria ser analisado caso por caso,

abrindo brecha para que esta decisão legislativa fosse burlada.

De acordo com essas observações, é possível confirmar que as mudanças

efetuadas na educação denunciaram as deficiências políticas, econômicas e sociais

vigentes em todo o Império. A moralização cristã e o controle social foram elementos

balizadores da ordem social e da manutenção dos interesses das camadas

proprietárias. Além disso, evidenciou-se que a educação foi um dos pilares da

construção da civilização e da modernização.

2.2.6 A educação agrícola

A agricultura ocupou, por muito tempo, o cerne da economia brasileira, não deixando

de ser diferente na Província do Espírito Santo. O trecho Relatório do Presidente da

Província Antônio Dias Paes Leme sobre a agricultura reitera essa posição:

[...] Agricultura É esta a base de toda a riqueza do nosso país, é a fonte perene de todos os nossos recursos para ela pois devemos dirigir nossos cuidados, atenção e estudos [...] Não será fora de propósito nesta ocasião e em referência à esta matéria lembrar por último mais uma idéia nova entre nós; mas velha e bem julgada por seus bons resultados nos países mais adiantados do que nós. As especialidades que são uma forma da divisão do trabalho, têm sempre produzido felizes conseqüências, tanto na ciência como na indústria. [...] (Correio da Victoria, quarta-feira, 26 de outubro de 1870, n.83, p. 2 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

Tal argumentação também foi divulgada no O Cachoeirano79, de 27 de maio de

1877:

O Brasil é essencialmente agricultor. A agricultura precisa de um estudo aplicado (teórico e prático), e no entanto, o governo não trata de reabilitar ao agricultor fundando escolas agrícolas. A fundação de escolas agrícolas, seria de grande vantagem para o país, porque dali poderia sair os empregados e administradores da agricultura para as colônias do governo, assim como para as fazendas e colônias particulares [. (O Cachoeirano, 27 de maio de 1877 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES).

79 Este jornal tinha como redator e proprietário Luiz de Loiola e Silva e tinha abaixo do título a seguinte afirmação: “Órgão do povo. Colunas francas a todas as inteligências”.

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Em uma nota de rodapé do texto supracitado, está escrita a seguinte afirmação:

“existe apenas uma [escola agrícola] no Juiz de Fora, segundo consta-nos”, o que

demonstra a preocupação de incentivar a criação de mais escolas agrícolas,

principalmente seguindo o modelo norte-americano. Isto é, a exemplo do que já

estava acontecendo na dimensão nacional, a elite intelectual e dirigente espírito-

santense divulgou idéias em defesa da ética do trabalho, pois era preciso que o

trabalho manual deixasse de ser algo aviltante à condição humana.

Dessa forma, ergueu-se uma nova escala de valores para se pensar o trabalho

manual e agrícola, indicando uma mudança de ação e pensamento entre homens

que em épocas anteriores repugnaram toda moral fundada no trabalho manual. Tal

postura também foi usada com objetivo de conter o risco potencial de criminalidade

e anarquia que sempre acreditaram que a camada popular contivesse. O

interessante foi observar que esse incentivo se manifestou mesmo antes da

aprovação da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871), isso pôde se verificado

também por meio das anotações do livro de registro de oficio da Diretoria da

Instrução Publica da Província do Espírito Santo, que predominantemente

evidenciou a preocupação com o a educação para o trabalho agrícola.

O desenrolar de muitas ações administrativas confirmam tal preocupação, como, por

exemplo, em 21 de março de 1871, o Presidente da Província Francisco Ferreira

Corrêa e o Diretor de Instrução Pública, Francisco de Souza Cisne Lima autorizaram

em resposta a um oficio de nº 49 a compra de mais uns exemplares além dos cem já

comprados do “Catecismo da agricultura do Senhor Doutor Antonio de Castro

Lopes”, que deveriam ser divididos pelos meninos pobres das aulas das escolas da

Província. Também providenciaram uma compra futura de mais duzentos

exemplares se necessário fosse. A documentação analisada evidenciou que

constantemente os professores reivindicavam esse material, evidenciando, assim,

que o ensino agrícola tornou-se indispensável e de certa maneira estava associado

ao prelúdio do fim da escravidão e a preocupação com a formação de mão-de-obra

apropriada para o trabalho livre para as lavouras de café. A exemplo dessa

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situação, transcrevo o texto de Miguel Teixeira da Silva Sarmento80, professor

público de primeiras letras de São Mateus, que lecionava para uma classe de

meninos pobres 81, evidenciando suas preocupações com as questões relacionadas

à educação agrícola:

A PEDIDO [uma das colunas deste jornal] S. Matheus [sic] 20 de Dezembro de 1871

Instrução Publica O abaixo assinado, professor publico da cadeira de instrução primaria desta cidade, julgando prestar algum serviço à mocidade [meninos pobres ] que freqüenta sua aula, resolve de janeiro vindouro em diante lecionar além das horas marcadas no regimento interno das escolas, das 3 às 5 e meia da tarde, tempo este que será consagrado ao ensino de geografia geral e descritiva, constituição do Império, Agricultura, e leitura corrente e por subtração, sendo as três primeiras matérias para as classes adiantadas, e a ultima para os principiantes, podendo assistir às referidas lições as pessoas que delas quiserem utilizar. Em poucas palavras mostrará o mesmo abaixo assinado a utilidade destas matérias [...] Em relação à agricultura, tem ela em todo tempo inspirado ao povo o mais vivo interesse. Os maiores homens da antiguidade honravam se de voltar ao arado, depois de haver exercido as mais altas funções do estado: ela é, por tanto a verdadeira riqueza das nações, e fonte das leis civis. Era máxima do grande Sully que “As pastagens para criação de animais, e as lavouras são as verdadeiras fontes de riqueza da França, suas verdadeiras minas, e tesouros do Peru”. E por conseqüência dessas idéias, adotadas por todo o mundo sem contestação, que se estabelecido em todos os paises cultos cursos de agricultura nas aulas normais primarias. A agricultura tem regras que fazem a sua parte teórica, a qual deve andar de acordo com a prática, afim de se prestarem mutuo auxilio – Deve-se, por tanto, envidar todas as forças para fazer sair este importante ramo da ignorância em que se acha desprezando-se [...] a velha rotina dos tempos coloniais. Em nosso país, cujo solo é fertilíssimo sumamente favorável não só para as produções de vegetais das regiões abrasadoras da Ásia e da África como também para as qual prosperam nos climas temperados da velha Europa, torna-se da maior necessidade este estudo, que auxiliado com a introdução de maquinas e de colonos hábeis, produzirá sem duvida um resultado mais proveitoso do que o lidar sem inteligência do s escravos.

O professor público Miguel Teixeira da Silva Sarmento

(Correio da Victória, sábado, 6 de janeiro de 1870, Ano XXII, n. 1, grifos meus – Arquivo Público do Estado do Espírito Santo - APEES).

80 Professor efetivo nomeado pela Lei nº 4 de 1838, desde de 19 de dezembro de 1959. Foi removido de São Matheus em 12 de outubro de 1872 para capital (Fundo Educação, livro 40 p. 2 e 3 – APEES). 81 A classificação social destes alunos me foi possível devido a comunicação do Diretor Geral de Instrução Pública através do jornal Correio da Victoria (28 de setembro de 1870) na Parte Oficial em que a Secretaria do Governo mandar entregar a este professor a quantia de 67$560 (reis), para a compra de 6 métodos de Monteverde, e outros objetos, para os meninos pobres da aula a seu cargo, em São Mateus.

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O discurso construído no documento supracitado deixou explícito não só a

valorização da agricultura, como também uma representação do trabalho

escravizado – “lidar sem inteligência”,ou seja, “apontando para a irracionalidade e a

ineficiência do trabalho escravizado, quando confrontado com o trabalho livre“

(EISENBERG, 1989, p. 195) dos “colonos hábeis”. Além disso, Peter Eisenberg

(1989) afirmou que:

[...] frisando a irracionalidade da escravidão, freqüentemente alega-se que o trabalho escravo inibe a qualificação do trabalho e seu aperfeiçoamento e assim freia o progresso técnico. Uma versão desse argumento afirma que o senhor na se interessava pela educação de seu escravo, fora do mínimo necessário para executar as tarefas, porque a educação, além de custosa para o senhor em termos de horas de trabalho perdidas, tornaria o escravo “perigoso”, isto é, criaria problemas de conscientização. Tampouco o senhor se interessava em aperfeiçoar os instrumentos ou, se sabia, era tão revoltado que terminava estragando ou fazendo sabotagem na máquina (EINSENBERG, 1989, p. 197).

Na “fala” do professor Miguel Teixeira da Silva Sarmento, representante da

intelectualidade espírito-santense, evidenciou-se, a princípio, a incompatibilidade

entre a escravidão e o progresso técnico da agricultura. Ora, como representante da

intelectualidade espírito-santense, era um homem do e para além do seu tempo,

tendo condições de vislumbrar possibilidades para se colocar em prática medidas

sistemáticas para a consolidação de uma educação agrícola, priorizando a formação

para o trabalho e que viesse de acordo às necessidades das transformações

socioeconômicas da Província e do País.

Desse modo, o professor Sarmento era um homem cujas representações e

contradições estavam inseridas no contexto das grandes tensões – trabalho

(escravidão, imigração), modernização e educação. Assim, a questão do incentivo

à formação dos trabalhadores nacionais ou estrangeiros foi o ponto fundamental

para o desenvolvimento das discussões sobre a transição da mão-de-obra

escravizada para a livre.

No texto do professor Sarmento, as questões étnicas apresentavam-se implícitas e

estereotipadas através da justificativa de que o trabalhador negro, ainda que livre,

não estava preparado para atender as demandas da modernização anunciada.

Conforme pontuou Lilia Schwarcz (2000), no Brasil as teorias raciais percorreram

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um trajeto com nuanças específicas e particulares: “tomaram força e forma

conjuntamente com o debate sobre a abolição da escravidão, transformando-se em

‘teorias das diferenças’, [...] e transformaram em estrangeiros aqueles que há muito

habitavam o país” (SCHWARCZ, 2000, p. 32).

O pensamento do professor Sarmento também estava inserido no contexto das

reformas educacionais, como, por exemplo, a Reforma do Ministro Paulino de

Souza (1869) caracterizada pela doutrina de inteira liberdade do ensino e da

Reforma João Alfredo (1871) caracterizada pelo preceito de obrigatoriedade do

ensino. Tais reformas educacionais que viabilizaram a promoção e ampliação da

instrução pública, não só de escolas regulares, mas as escolas de infância

desvalida e as escolas noturnas para os trabalhadores. Posteriormente, a Reforma

Leôncio de Carvalho (1879) articulou com esses dois princípios (liberdade e

obrigatoriedade), considerando a liberdade de ensino o alicerce da educação

nacional.

Adotada em sua maior latitude nos Estados Unidos onde tem um valor de um dogma, a liberdade de ensino encerra o segredo da prodigiosa prosperidade dessa grande nação, assim como do estado de adiantamento a que tem atingido a instrução na generalidade dos países do velho mundo (MOACYR, Primitivo, 1937, p.169, grifos meus – Coleção Especial da Biblioteca Central - UFES).

E estabelecendo as bases do ensino obrigatório:

[...] compreenderá todos os indivíduos de um e outro sexo que tiverem mais de sete a quatorze anos; os pais que preferirem educar os seus filhos em suas próprias casas ou em estabelecimentos particulares de instrução não serão obrigados a mandá-los à escola pública, mas deverão provar que cumprem o preceito legal , e no fim de cada ano os apresentará a exame a fim de verificar-se o seu estado de aproveitamento. Igual obrigação incumbe aos tutores e em geral a todas as pessoas que tiverem a seu cargo ou em sua companhia menores compreendido na idade escolar, as quais pela omissão, ficarão sujeitos a uma multa variável entre limites prefixados. Os meninos que residirem a mais de um quilometro e meio da escola não serão obrigados à freqüentá-la (MOACYR, Primitivo, 1937, p.184, grifos meus – Coleção Especial da Biblioteca Central - UFES).

Já as reformas educacionais propostas por Rui Barbosa - a "Reforma do Ensino

Secundário e Superior" (1882) e a "Reforma do Ensino Primário e várias Instituições

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Complementares da Instrução Pública" (1883), demonstraram o interesse pela

criação de um sistema nacional de ensino (gratuito, obrigatório e laico, desde o

jardim de infância até a universidade) que contribuísse com a instrução escolar das

camadas populares, enfatizando a liberdade e se caracterizou pela defesa da

modernização do País.

Tais reformas educacionais evidenciaram a idéia da educação para o trabalho, que

foi amplamente discutida pelos grandes proprietários, pelos dirigentes políticos e

pelos intelectuais. Assim, a educação para trabalho foi evidenciada nas manchetes

dos jornais locais e também foi apresentada como um dos pilares mantedor da

ordem e, ao mesmo tempo, como força motriz da modernização.

Dessa forma, teve início, pode-se dizer, uma certa ambigüidade nos debates

desenvolvidos tanto na imprensa como nas discussões das sessões das

Assembléias Legislativas da Província do Espírito Santo, na qual as várias nuances

surgiram como propostas para conduzir o processo de implementação da educação

para o trabalho e do ensino agrícola.

Assim, não poderia deixar de afirmar que a educação contribuiu para que este

processo se efetuasse de forma lenta e gradual (festina lente), atendendo as

expectativas da elite intelectual e dirigente. Dessa maneira, é possível concluir que

problema principal, contudo, não foi o tipo de educação, mas a finalidade desta

educação. Conforme afirmou Papali (2003), o que se discutia não era o fato de se

buscar transformar a população formada pelos desfavorecidos em “cidadão úteis”,

mas “a concepção de cidadania útil vinha sendo ligada a uma maior ou menor

capacidade de adequação ao trabalho disciplinado. Discutia-se apenas como isso

deveria ser feito” (PAPALI, 2003, p.142).

Foi interessante observar que a educação que se ofereceu às camadas populares,

inclusive aos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos não evidenciava a

preocupação em contribuir para o processo de construção da cidadania (conceito já

utilizado pelos discursos políticos da época). Nem se quer se questionava e

combatia as idéias preconceituosas e a circulação dos estereótipos depreciativos em

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relação ao não-brancos e aos brancos pobres, mas o fortalecimento dos processos

de “visibilidade de ocultação da diferença” (FONSECA, M. N. S., 2000).

Há momentos em que o passado está tão presente, e até mesmo parecer ser o

presente, ou melhor, passado e presente se entrelaçam, apontando para questões

ainda não resolvidas. Assim, a instrução pública oferecida às camadas populares,

nas últimas décadas do século XIX, priorizou a formação de uma mão-de-obra que

atendesse as expectativas da nova ordem econômica e não a conquista da

liberdade do corpo e da mente, ou seja, afinal eram “semi livres” ou “quase livres” e

não “cidadãos”. Enfim, consolidou-se uma educação imperfeita, para uma liberdade

imperfeita, ou seja, a idéia de educação estava relacionada à tentativa de civilizar as

camadas populares ao moldes europeus, prepará-las inserir na nova ordem

socioeconômica e submetê-la ao controle moral e social. Trata-se, portanto, de uma

educação para o trabalho e não para o exercício da liberdade do corpo e da mente,

isto é, não priorizava a formação para cidadania.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Elementar, meu caro Watson...

Sherlock Holmes

O processo de pesquisa possibilitou perceber que a História da Província do Espírito

Santo, nas últimas décadas do século XIX, foi marcada por profundas

transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, e, inclusive, também no

campo educacional, e estavam intrinsecamente relacionadas as grandes tensões

nacionais – trabalho (escravidão e imigração), modernização e educação.

Os discursos da elite intelectual e dirigente evidenciaram as estratégias utilizadas

para garantir a manutenção da ordem social e, ao mesmo tempo, inserir o País e a

Província do Espírito no processo de modernização sócio-econômica.

Dessa maneira, com esses objetivos, foram aprovadas as medidas legislativas

educacionais que organizaram a instrução pública oferecida às camadas populares:

trabalhadores negros escravizados, livres e libertos, e, brancos pobres, ou seja, para

os desamparados e desvalidos. Assim, foram criadas as escolas de instrução

elementar, as escolas noturnas e de escolas agrícolas para prepará-los para

trabalho.

O uso da imprensa e dos Relatórios dos Presidentes de Província como fontes de

pesquisa possibilitou também o conhecimento das representações da elite

intelectual e política espírito-santense sobre os trabalhadores negros escravizados,

livres e libertos e, também, o vislumbre das diversas possibilidades nas relações

sociais entre esses sujeitos e as experiências sociais destes que foram subjugados

pelo silêncio. Permitiu, sem dúvida, também a compreensão que esses sujeitos

históricos tiveram de si mesmos e de seu tempo, e de suas experiências sociais ou

práticas culturais; contribuindo para a compreensão das suas visões plurais de

mundo e para o estabelecimento de suas representações, não de forma pacífica e

nem consensual, mas conflituosa.

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A versão da elite oficial e intelectual sobre a temática proposta nesta pesquisa,

apresenta-se, na maioria das vezes, sob a forma de uma abordagem que, tendo por

os lugares institucionais e políticos que representavam. Do ponto de vista ético,

eram estes sujeitos históricos, antes de tudo, portadores de valores, de engajamento

e interesses políticos e de uma maneira própria de pensar e representar diacrônica

e sincronicamente o mundo.

Além disso, o pensamento da elite intelectual e dirigente mostrou-se relacionado

com um parâmetro na descrição e problematização da realidade social das últimas

décadas do século XIX, como linguagem política articulada por eles com um olhar

repleto de representações estereotipadas e como elemento de um senso comum

inscrito em formas de vida, identidades e regras de sociabilidade.

Conseqüentemente, refletiu nas questões relacionadas com a educação como um

projeto de modernização de uma sociedade respaldada ainda no escravismo. Essa

perspectiva de projeção para um futuro idealizado em função de um processo de

modernização não se fez sem problemas, muito pelo contrário, se fez tanto pela

descrição da sociedade brasileira pela negativa pontuada por suas faltas e por suas

distâncias como pela valorização do modelo europeu de sociedade.

Da mesma forma, esteve presente nas estratégias da elite intelectual e dirigente a

defesa de uma educação que se confundia com bons sentimentos de “caráter

excepcional e de cunho filantrópico” reiterando o mito da modernização e da

integração nacional. Porém, a questão está longe de ser simples tanto nas últimas

décadas do século XIX como na atualidade, caracterizando-se por várias

incompletudes.

A fragilidade dessas incompletudes reflete em uma indefinição ou imprecisão das

próprias noções de direitos e na ausência da cidadania nas últimas décadas do

século XIX, tal como formuladas nos debate público e acadêmico brasileiro da

atualidade.

As experiências dos trabalhadores negros escravizados, livres e libertos também se

fizeram presentes por meio do implícito na documentação oficial. Estes que não são

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apenas os sujeitos históricos excluídos, mais do que isto, eles são os que hoje são

os excluídos do mercado de trabalho e da vida social organizada.

Trata-se da busca de um lugar que se perde na invisibilidade social, escapa às

referências de identidade e de representações e se dissolve permeado pelo silencio

imposto pelas fontes históricas. Assim, é uma busca pelos que não tem nome, nem

rosto, nem voz, são apenas os “excluídos da história”.

Além disso, creio que este trabalho não só aponta para a possibilidade de esclarecer

uma série de questões como também poderá contribuir para o incentivo ao

surgimento de outras pesquisas acadêmicas no contexto da interface escravidão e

educação.

Portanto, considerando a imensa riqueza dessa temática, estamos apenas

começando, muito ainda há para se fazer ... o campo é profícuo ...

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social . Cad. CEDES, abr.. 2003, vol.23, n..59, p.79-90.

58 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no

Sudeste escravista , Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

59 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed.. São Paulo:

Brasiliense, 1990.

60 ______ . O filho da escrava, in: DEL PRIORE, Mary (org.). História da criança

no Brasil . São Paulo: Contexto, 1991, p. 3.

61 MOACYR, Primitivo. A instrução e o Império: subsídios para a história da

educação no Brasil (1854-1888). São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1937, v. 2.

62 ______. A instrução e as províncias: subsídios para a história da educação no

Brasil (1834-1889). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Cia. Ed.

Nacional, 1940.

63 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São

Paulo: Publifolha, 2000, Grandes nomes do pensamento brasileiro.

64 NOVAES, Maria Stella de. História do Espírito Santo. Vitória: FEES, 1964.

65 ______. A escravidão e a abolição no Espírito Santo. História e

folclore.Vitória: Espírito Santo, 1963.

66 OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do Espírito Santo . 2. ed. Vitória –

ES, 1975.

67 ORLANDI, Eni. As formas do silêncio . Campinas: UNICAMP Editora, 1992.

68 ______. Analise de Discurso : princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes,

2001.

69 PAIVA, Eduardo França. 2ª ed. Escravos e libertos nas Minas Gerais do

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Annablume, 2000.

70 PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos:

contribuição à História da Educação Brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1973.

71 PAPALI, Maria Aparecida C. R. . Escravos, libertos e órfãos: a construção da

liberdade em Taubaté (1871-1895).São Paulo: Annablume:Fapesp, 2003.

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291

72 PAS, Maria Verônica (coord.). Seminário Internacional da escravidão .

(1988:Vitória). Vitória: Ed. Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1992.

73 PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a

nação. São Paulo: Ática, 1990.

74 PEREIRA, Amâncio. Homens e cousas espirito santenses. Vitória: Artes

Graphicas, 1914.

75 PERES, Eliane. Sob (re) o silêncio das fontes...: A trajetória de uma pesquisa em

história da educação e o tratamento das questões étnico-raciais. In.: Revista

Brasileira de História da Educação. Campinas, SP: Autores Associados, n. 4,

p. 75-102, jul./dez., 2002.

76 PERROT, Michelle. Os excluídos da história: os operários, mulheres e

prisioneiros. Rio de Janeiros: Paz e Terra, 1988.

77 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil

do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

78 REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história

dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

79 REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. Uspiana

– Brasil 500 Anos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa

Oficial do Estado, 2001.

80 RIBEIRO, Maria Luiza. História da Educação Brasileira: a organização escolar.

5. ed. São Paulo: Moraes, 1984.

81 RODRIGUES, Márcia B. F. Razão e sensibilidade: reflexões em torno do

paradigma indiciário. Texto usado no Mini-curso: Micro-história e paradigma

indiciário: as possibilidades do indiciarismo no estudo das relações de poder. XV

Simpósio de História: Etnia Gênero e Poder. 21 a 24 de nov. 2005, em prelo.

82 SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte: Ed.

Itatiaia/ Ed. USP, 1974, p.45.

83 SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de. A “infância desamparada” no

asilo agrícola de Santa Isabel: instrução rural e infantil (1880-1886).

Educação e Pesquisa . [online]. Jan./June 2000, vol.26, n.1 [citado

28 Agosto 2005], p. 119-113. Disponível em: <http:www.scielo.br/php?scrpt=sci_

arttext&pid=S151797022000000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 de

janeiro de 2006.

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292

84 SCHWAB, Affonso e FREIRE, Mário Aristides. A irmandade e a Santa Casa da

Misericórdia do Espírito Santo. Memória organizada no ano de 1945, quando

das comemorações do IV centenário da Irmandade da Misericórdia de Vitória,

sendo seu Provedor o Irmão Pietrângelo De Biase. Arquivo Público Estadual.

Vitória, 1979.

85 SCHWARTCZ, Lília Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e

cidadão em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,

1987.

86 ______ . Raça como negociação: sobre as teorias raciais em finais do século XIX

no Brasil. In.: FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.). Brasil afro –brasileiro.

Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

87 SILVA, Adriana M.Paulo da. Aprender com perfeição e sem coação: uma

escola para meninos pretos e pardos na Corte.Brasília: Editora Plano, 2000.

88 ______ . A escola de Pretextato dos Passos e Silva: questões a respeito das

práticas de escolarização no mundo escravista. In. Revista Brasileira de

História da Educação. Campinas, SP: Autores Associados, n. 4, p. 145-166,

jul./dez., 2002.

89 SILVA, Marta Zorzal e. Espírito Santo: Estado, interesses e poder. Vitória:

FCAA/SPDC, 1995.

90 SIMÃO, André Luciano. Minas Gerais e o Congresso Agrícola de 1878:

demandas, temores e percepções dos produtores rurais mineiros. Disponível em

: http://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2004/textos/D04A053.PDF. Acesso em

22 de janeiro de 2006.

91 SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na

formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1999.

92 SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX.

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8, n. 16, p. 107-142, mar./ago.,

1988.

93 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor . Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2000.

94 SOUZA, Rosa Fátima.O direito à educação: lutas populares pela escola em

Campinas. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP/ Área de publicações

CMU/UNICAMP, 1998.

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293

95 THOMPSON, E. P.. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma

crítica ao pensamento de Althusser. (trad.) Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

96 ______. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade.(trad.)

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

97 ______ . Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

98 ______. Formação da classe operária inglesa: a força dos trabalhadores.

(trad.) 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

99 THOMPSON, E. P. e SHARPE, Jim. A História vista de baixo. In: BURKER,

Peter. A Escrita da História . São Paulo, Ed. Unesp, 1992.

100 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão – os letrados e a sociedade

escravista no Brasil Colonial. Petrópolis: Vozes, 1986.

101 VEIGA, Cynthia Greive. Conflitos e tensões na produção da inclusão escolar de

crianças pobres, negras e mestiças, Brasil, século XIX. In.: VII CONGRESSO

IBEROAMERICANO DE HISTÓRIA DE LA EDUCACION LATINOAMERICANA.

(Universidad Andina Simon Bolívar , Quito –Equador) 13 a 16 setembro de 2005.

102 WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cartas, procurações, escapulários e

patuás: os múltiplos significados da escrita entre escravos e forros na sociedade

oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas,

SP: Autores Associados, n. 4, p.103122, jun./dez.2002.

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294

FONTES DOCUMENTAIS

1 Anais das sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1876, 21 de

outubro de 1876, p. 24 e 24b – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do

Estado do Espírito Santo.

2 Anais das sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1876, 21 de

outubro de 1876, p. 74, 74b e 75 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do

Estado do Espírito Santo.

3 Anais das Sessões da Assembléia Provincial do Espírito Santo de 1878, sessão

ordinária de 23 de outubro de 1878, p. 156 - 159 – Arquivo Geral da Assembléia

Legislativa do Estado do Espírito Santo.

4 Leis da Província do Espírito Santo. Tomo XXXIII, Victoria: Typografia do Correio

da Victoria, 1869.

5 A Província do Espírito Santo, quinta-feira, 19 de julho de 1883, Ano II, n. 272 –

Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo.

6 BRASIL. Decreto-Lei de 15 de outubro de 1827.

7 Correio da Victoria, quarta-feira, 21 de julho de 1869, Ano. XXI, n. 57 – Arquivo

Público Estadual do Espírito Santo –APEES.

8 Correio da Victoria, sábado, 16 de dez. de 1869, Ano XXI, nº 99 – Arquivo

Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

9 Correio da Victória, 25 de dezembro de 1969, Ano XXI, - Arquivo Público

Estadual do Espírito Santo – APEES.

10 Correio da Victória, sábado, 6 de janeiro de 1870, Ano XXII, n. 1 – Arquivo

Público do Estado do Espírito Santo – APEES.

11 Correio da Victória, quarta-feira, 31 de agosto de 1870, Ano XXII , nº 67, p. 3 –

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

12 Correio da Victoria, sábado, 7 de setembro de 1870, Ano XXII, n..69, p.2,

Noticiário – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

13 Correio da Victória, sábado, 10 de setembro de 1870, Ano XXII, n. 70 – Arquivo

Público Estadual do Estado do Espírito Santo – APEES.

14 Correio da Victoria, quarta-feira, 14 de setembro de 1870, Ano XXII, n.71, p.4–

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

15 Correio da Victória, sábado – 15 de outubro de 1870, Ano XXII, n. 80, p. 4 –

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

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295

16 Correio da Victoria, quarta-feira, 26 de outubro de 1870, Ano XXII, n.83, p. 2 –

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

17 Correio da Victoria, domingo, 4 de janeiro de 1871, Ano XXIII, n. 2, p. 2 – Arquivo

Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

18 Correio da Victoria, quarta-feira, 25 de janeiro de 1871, Ano XXIII, n. 7, p. 2 –

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

19 Correio da Victoria, quarta-feira, 26 de abril de 1871, Ano XXIII, n. 32, p.4 –

Arquivo Público Estadual do Estado do Espírito Santo – APEES.

20 Correio da Victoria, 5 de maio de 1871, Ano XXIV - Arquivo Público Estadual do

Estado do Espírito Santo –APEES.

21 Correio da Victoria, terça-feira, 30 de abril de 1872, Ano XXIV, n. 47 – Arquivo

Público do Estado do Espírito Santo – APEES.

22 Correio da Victória, sábado, 7 de setembro de 1872, Ano XXIV n. 102, p. 1 –

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

23 Diário Official do Império do Brazil, segunda-feira, 7 de janeiro de 1878, Ano XVII,

n. 5, p. 3 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo.

24 Diário Official do Império do Brazil, segunda-feira, 8 de janeiro de 1878, Ano XVII,

n. 6, p. 1 e 2, adaptação do texto para a ortografia atual, sendo o grifo em negrito

é meu – Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo.

25 Diário Official do Império do Brazil, terça-feira, 9 de julho de 1878, Ano XVII, n.

163, p. 1- 4 - Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo.

26 Diário Official do Império do Brazil, quarta-feira, 10 de julho de 1878, Ano XVII, n.

164, Ano XVII p.6, adaptação a ortografia atual – Biblioteca Pública Estadual do

Espírito Santo.

27 Diário Official do Império do Brazil, quarta-feira, 11 de julho de 1878, Ano XVII, n.

165, Ano XVII p.1-6, adaptação a ortografia atual – Biblioteca Pública Estadual

do Espírito Santo.

28 Diário Official do Império do Brasil, sexta-feira, 12 de julho de 1878, Ano XVII,

n.166, p. 6,– Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo.

29 Diário Official do Império do Brazil, Parte Oficial, sexta-feira, 14 de junho de 1878,

n.168, Ano XVII, p.1-5, adaptação do texto para a ortografia atual – Biblioteca

Pública Estadual do Espírito Santo.

30 Estatuto da Irmandade de S. Benedito de Vitória 1833, livro 3 – Arquivo da Cúria

Arquidiocesana de Vitória – ES.

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296

31 Festa de Nossa Senhora dos Remédios - Correio da Victoria, data, ano e número

ilegível – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

32 Fundo Governadoria, série Acyoli, Escravidão, Escritura de vendas de escravos –

1882 a 1887, cx. 557 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

33 Fundo Governadoria, série Educação, 383 livros, Livro 69, n.10 – 1871/1872.

Livro de registro de ofício da Diretoria da Instrução Pública da Província -

diversos - Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

34 Livro das Leis da Província do Espírito Santo, 1869 – Arquivo Público Estadual

do Espírito Santo – APEES.

35 Livro de registro de Biografias resumidas dos confrades da Irmandade Nossa

Senhora dos Remédios – Capela Santa Luzia, 1845 – Arquivo da Curia

Diocesana de Vitória –ES.

36 O Cachoeirano, 11 de março de 1877, Ano 1, n.10 – Biblioteca Pública Estadual

do Espírito Santo.

37 O Cachoeirano, 1º de abril de 1877 – Biblioteca Pública Estadual do Espírito

Santo.

38 O Cachoeirano, 10 de junho de 1877 – Arquivo Público Estadual do Espírito

Santo – APEES.

39 O Cachoeirano, 16 de setembro de 1877 – Arquivo Público Estadual do Espírito

Santo – APEES.

40 O Cachoeirano, 14 de agosto de 1881, ano IV, n. 33 – Biblioteca Pública

Estadual do Espírito Santo.

41 O Cachoeirano, 21 de agosto de 1881, ano IV, n. 34 – Biblioteca Pública

Estadual do Espírito Santo.

42 O Espírito-Santo,13 de junho de 1876, p.2 – Biblioteca Pública Estadual do

Espírito Santo.

43 O Espírito-santense, 13 de jan. 1877, n.6, p. 3 – Biblioteca Pública Estadual do

Espírito Santo.

44 O Espírito Santense,13 de jan.1877, n.6, p. 4 – Biblioteca Pública Estadual do

Espírito Santo.

45 O Operário do Progresso, 5 de abril de 1875, Ano 4, n. 15 – Biblioteca Pública

Estadual do Espírito Santo.

46 Processo 123, Fundo da Secretaria de Polícia, cx.652, 1859, p. 4 – Arquivo

Público Estadual do Espírito Santo – APEES.

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297

47 Regulamento sobre o auxílio para liberdade de escrava nº 82 a de 20 de julho de

1870 – Secretaria do Governo – Biblioteca do Arquivo Público Estadual do

Espírito Santo – APEES.

48 Relatório do Presidente de Província do Espírito Santo José Bonifácio Nascentes

d’Azambuja, em 24 de maio de 1852, p. 27 e 28 – Arquivo Geral da Assembléia

Legislativa do Espírito Santo.

49 Relatório de Presidente de Província, 1856, s/d – Arquivo Geral da Assembléia

Legislativa do Estado do Espírito Santo.

50 Relatório de Primeiro Vice-Presidente de Província Barão de Itapemirim, 8 de

março de 1856 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito

Santo.

51 Relatório de Presidente de Província Pedro Leão Velloso, 24 de maio de 1859,

p.46 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Espírito Santo.

52 Relatório de Presidente da Província Pedro Leão Velloso, 25 de maio de 1859,

p.50 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo.

53 Relatório do Presidente de Província José Fernandes da Costa Pereira Junior,

em 23 de maio de 1861, p. 38, 42 e 43 - Arquivo Geral da Assembléia Legislativa

do Estado do Espírito Santo.

54 Relatório do Presidente de Província Dr. Luiz Antonio Fernandes Pinheiro, 10 de

outubro de 1868 – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito

Santo.

55 Relatório do Presidente de Província Francisco Ferreira Correa de 9 de outubro

de 1871, sessão ordinária – Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado

do Espírito Santo - APEES.

56 Relatório do Presidente da Província Domingos Monteiro Peixoto remetido ao

vice-presidente Manoel R. Coitinho Mascarenhas, em 24 de dezembro de 1875 –

Arquivo Geral da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo.

57 Relatório do Presidente de Província Manoel da Silva Mafra a Assembléia

Legislativa Provincial, 22 Outubro 1878, p. 42 - 52 – Arquivo Geral da

Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo.

58 Relatório do Presidente de Província Dr. Antônio L. R. de Almeida, em 9 de julho

de 1888, p. 24 – Arquivo da Assembléia Legislativa do Estado do Espírito Santo.

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ANEXOS ANEXO A – Anúncio da Companhia Espírito Santo e Cam pos

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ANEXO B - Anúncio “Vende-se uma fazenda”

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300

ANEXO C - Profissões em Cachoeiro de Itapemirim

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301

ANEXO D – Anúncio da fuga de Affonso

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302

ANEXO E - Anúncio sobre o desaparecimento de uma b esta vermelha

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303

ANEXO F - Anúncio sobre a fuga do trabalhador escr avizado Gregório

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304

ANEXO G - Fuga da trabalhadora escravizada Izido ra

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ANEXO H - Manumissões oficiais (1875)

Províncias Municípios Manumiss ões Amazonas...................................1 .................................................... .3 Pará .........................................25.....................................................64 Maranhão..................................14 ..................................................156 Piauhy ...................................... 2 ....................................................22 Ceará ....................................... 17.....................................................97 R. G. do N. ................................ 4.....................................................37 Parahyba ......................... ....... 10 ................................................... 64 Pernambuco...............................27 ................................................. 239 Alagoas......................................15 .......................................... 100 Bahia ........................................33 ..................................................320 Espírito Santo ....................... 12 ....................................................78 Município da côrte ..................... 1 ..................................................185 Rio de Janeiro ......................... 16 ..................................................292

S. Paulo ........................... ..... 27 ..................................................157 Minas Gerais ............................ 8 ....................................................61 Paraná ...................................... 9 ....................................................23 Santa Catharina .......................10 ....................................................45 Goyas .........................................9 ......................................................9 Matto-Grosso ............................. 3 ……………………………….. .....17 S. Pedro ....................................22..................................................287 Total ..............................273 ..............................................2, 258

(O Cachoeirano, 16 de setembro de 1877, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual).

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306

ANEXO I - Manumissões particulares e onerosas (187 5)

Província

Manumissões

Amazonas 18

Pará 1,631

Maranhão 1,415

Ceará 825

Rio Grande do Norte 227

Parahyba 499

Pernambuco 1,049

Alagoas 421

Sergipe 546

Bahia 169

Espírito Santo 551

Município da côrte 3,059

Rio de Janeiro 2,089

S. Paulo 3,410

Paraná 347

Santa Catharina 321

S. Pedro 2,601

Minas-Gerais 2,111

Goyaz 222

Mato-Grosso 127

Total

22,674

(O Cachoeirano, 16 de setembro de 1877, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual).

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ANEXO J - Matrículas de ingênuos Amazonas ............................................. 92 Pará ...................................................... 3,167 Maranhão ............................................. 8,758 Piauhy ................................................... 2,605 Ceará .................................................... 4,856 Rio Grande do Norte ........................... 2,086 Parahyba .............................................. 1,929 Pernambuco ......................................... 9,510 Alagôas ................................................ 3,520 Sergipe ................................................. 4,098 Bahia ................................................... 11,216 Espírito-Santo .................................... . 2,726 Côrte ................................................... 3,183 Rio de Janeiro .................................... 34,062 S. Paulo ............................................. 18,654 Paraná ............................................... 1,244 Santa Catharina ................................ 1,649 S. Pedro ............................................ 11,167 Goyaz ............................................... 921 Matto Grosso ................................... __612 Total 155,861 (O Cachoeirano, 16 de setembro de 1877, grifos meus – Biblioteca Pública Estadual).

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ANEXO L - Quadro estatístico da população escolari zada no Império (1867)

Província População Alunos Amazonas 76.000 almas 640 Pará 320.000 “ 4.804 Maranhão 400.000 “ 4.592 Piauí 220.000 “ 1.051 Ceará 560.000 “ 5.207 Rio Grande do Norte 240.000 “ 1.505 Paraíba 300.000 “ 4.119 Pernambuco 1.250.000 “ 6.646 Alagoas 300.000 “ 4.119 Sergipe 280.000 “ 3.197 Bahia 1.400.000 “ 10.162 Espírito Santo 70.000 “ 1.048 Rio de Janeiro 1.100.000 “ 8.476 S. Paulo 850.000 “ 11.678 Paraná 100.000 “ 2.501 St, Catarina 140.000 “ 2.355 S. Pedro do Rio- Grande do Sul 440.000 “ 10.086 Minas Gerais 1.500.000 “ 16.909 Goiás [ilegível] [ ilegível] Mato Grosso 64.000 “ Município da Corte 430.090 “ 8.434 10.200.000 “ 107.483 [...] O cálculo é feito sobre a população absoluta, incluindo nela dois milhões de escravos. (Correio da Victoria, sábado, 16 de dez. de 1869, nº 99 – Arquivo Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

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ANEXO M - Quadro estatístico da população livre e escravizada na Província

do Espírito Santo

Freguesia Livres Escravos Victoria 5991 906 Espírito-Santo 882 297 Vianna 3857 1139 Cariacica 3391 793 Santa Leopoldina 3037 471 Queimado 1512 581

Guarapary 4835 678 Serra 2513 1240 Santa Cruz 2274 127 Nova Almeida 1358 498 Linhares 1159 89 Riacho 636 52 Carapina 738 290 Cidade de S. Matheus 2651 1951 Vila da Barra 1446 642 Itaúnas 625 88 Itapemirim 4680 2013 Cachoeiro 1502 2046 Alegre 933 912 S. Pedro de Itabapoana 2161 2009 Veado 688 728 Rio Pardo 1979 486 Benevente 2977 796 51825 18832 (Correio da Victória, 25 de dezembro de 1969 e Relatório do Presidente de Província Francisco Ferreira Correa de 9 de outubro de 1871 -Arquivo Público Estadual do Espírito Santo - APEES).

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ANEXO N - Número de escolas da Província do Espíri to Santo (1878)

Cariacica “ “ 455 Benevente “ “ 955 Nova Almeida “ “ 1, 046 Linhares “ “ 931 S. Matheus “ “ 1,634 Carapina “ “ 289 Queimado “ “ 1,692 Capital “ “ 872 Cachoeiro de Itapemirim “ “ 1,000 (Relatório de Presidente de Província Dr. Manoel da Silva Mafra, 22 de outubro de 1878, p.52 - Arquivo Geral da Assembléia Legislativa Estadual do Espírito Santo).

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ANEXO O - População livre da Província do Espírito Santo (1872)

POPULAÇÃO LIVRE [...] RAÇAS

Dos homens Brancos ...................................................................................... 13.555 Pardos ........................................................................................ 9.648 Pretos ........................................................................................ 3.395 Caboclos .................................................................................... 3.009

Das mulheres Brancas ...................................................................................... 13.027 Pardas ........................................................................................ 10.881 Pretas ....................................................................................... 3.443 Caboclas ................................................................................... 2.520 Total ............................................ 59.478 (O Operário do Progresso, 5 de abril de 1875, ano 4, n. 15 – Biblioteca

Pública Estadual do Espírito Santo).

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ANEXO P - Relação de adultos matriculados na aula n oturna (1872)

1 Antonio Pinto de Vasconcellos. 2 Claudino Gomes Azambuja. 3 Manoel Moreira da Motta. 4 Henrique Manoel da Victoria. 5 Manoel Pinto dos Remédios. 6 Lino Ferreira do Rozario. 7 Miquelino Jose dos Santos. 8 Daniel Francisco de Gouvêa. 9 Antônio Nunes Gonçalves. 10 Manoel Soares do Rozario. 11Manoel Buzio 12Theodoro Pinto Ribeiro 13Henrique Pinto do Sacramento 14Miguel Pereira Gâmboa 15João Chrysostomo da Costa 16Luiz Alves Cabral 17Firmino João de Carvalho 18José Joaquim da Victoria 19Severo Pinto do Nascimento 20Francisco Rodrigues do Nascimento 21José Francisco dos Reis 22Heliodo João de Carvalho 23Luiz Espindola 24Vicente Gomes da Silva 25Luiz Martins de Castro 26José Pinto da Rocha Corisco 27Justino Ramiro de Gosmão 28José Pires dos Santos 29Valerio José da Silva 30José Ferreira dos Passos 31Manoel José da Silva Santos 32Benedicto Ferreira da Conceição 33 Geraldo Aliendre 34João Francisco do Nascimento

Victoria 23 de abril de 1873 O professor José Francisco Lelles [Lellis] Horta

Conforme O secretario

Tito da Silva Machado (Correio da Victoria, terça-feira, 30 de abril de 1872, ano XXIV, n. 47 – Arquivo Público do Estado do Espírito Santo - APEES).