uma cidade excludente: planejamento urbano e a...
TRANSCRIPT
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
2º SEMINÁRIO NACIONAL DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO ÁREA TEMÁTICA: PLANEJAMENTO TERRITORIAL, PLANEJAMENTO
URBANO
UMA CIDADE EXCLUDENTE: Planejamento urbano e a segregação socioespacial em Curitiba
André de Souza Carvalho1
Resumo
Curitiba é uma das cidades mais referenciadas no Brasil em se tratando de planejamento urbano. Reconhecida pelas ações urbanísticas e por sua a fama de “cidade modelo”, a capital do Paraná projetou-se nas últimas décadas como uma cidade inovadora e exemplar. Todavia, os planos urbanos executados a partir da década de 1960 trouxeram alterações na estrutura da cidade, as quais transformaram espaços e acirraram diferenças. Verificou-se que foi sobretudo na segunda metade do século XX que a segregação socioespacial e a exclusão social se acirraram no território curitibano, possuindo forte relação com um planejamento urbano restrito, pouco democrático e participativo que propiciou a consolidação de uma cidade excludente e com muitos constrastes. Palavras-chave: Curitiba, Planejamento Urbano, Segregação Socioespacial, Exclusão.
Abstract
Curitiba is one of the most referred cities in Brazil when it comes to urban planning. Renowned for urban actions and its "model city" fame, the capital of Paraná in recent decades was projected as an innovative and exemplary city. However, the urban plans since 1960s brought changes in the structure of the city, which transformed spaces and increased differences. It was verified that it was mainly in the second half of the XX century that the socio-spatial segregation and social exclusion were incited in Curitiba territory, having strong relationship with a restricted and little democratic and participative urban planning that led to the consolidation of an exclusionary city with many contrasts. Keywords: Curitiba, Urban Planning, Socio-spatial segregation, Exclusion .
1 Mestre em Arquitetura e Urbanismo, PGAU-UFSC. E-mail: [email protected]
Introdução
Conhecidas e referenciadas como exemplares, as inovações e ações relacionadas ao
planejamento urbano em Curitiba ganharam reconhecimento inclusive internacional.
Famosa por seus ícones urbanos e um espaço citadino bem cuidado e diferenciado em
relação a outras grandes cidades brasileiras, a capital do Paraná foi e continua sendo um
destaque nacional na área do Urbanismo.
Implantado em 1966, o Plano Diretor de Curitiba proporcionou discussões e metas
para o planejamento da cidade, deu origem ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
de Curitiba (IPPUC) que auxiliou na condução e continuidade das medidas planificadoras
da cidade e serviu como um centro aglutinador de estudos, estatísticas, decisões e projetos
urbanos para Curitiba.
Entretanto, apesar de contínuo, atuante e em certos pontos eficiete, o planejamento
urbano em Curitiba contribuiu para a formação de uma cidade expressamente segregada e
excludente, uma vez que proporcionou o acirramento das desigualdades sociais e
demonstrou pouca preocupação com a produção de um espaço citadino mais equilibrado e
democrático.
Este artigo intenta demonstrar e discorrer a respeito da conformação e afirmação da
segregação socioespacial em Curitiba nas últimas cinco décadas, período no qual o
planejamento urbano na cidade foi bastante discutido e implementado, porém de forma
restrita e desigual, gerando dualidades e contrastes especialmente entre o centro e a
periferia.
A Curitiba pré Plano Diretor
Curitiba teve sua origem na segunda metade do século XVII e manteve-se pouco
povoada e expressiva economicamente até a segunda metade do século XIX. Os primeiros
exploradores chegaram na região após 1650 em busca de pedras preciosas, porém, a
mineração foi atividade efêmera que pouco contribuiu para o desenvolvimento da Vila de
Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. No século seguinte o tropeirismo surgia para dar algum
impulso à economia local, não sendo suficiente para desenvolver o insignificante núcleo
urbano que só viria se tornar cidade em 1842. Foi somente a partir da segunda metade do
século XIX, com a atividade econômica da erva-mate (grande responsável pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
emancipação do Paraná do estado de São Paulo) que Curitiba apresentou um maior
dinamismo e desenvolvimento de seu espaço urbano. Surgem então, com os engenheiros
Pierre Taulois e Frederico Hégreville as primeiras proposições de intervenção no quadro
urbano da cidade2.
A chegada dos primeiros imigrantes europeus e da estrada de ferro, nas últimas
décadas do século XIX, foram importantes para o desenvolvimento da capital do Paraná
que atingia 50.000 habitantes em 1900. A instalação da estação ferroviária propositalmente
em uma área afastada do centro urbano - segundo projeto do engenheiro florentino Ferucci
– proporcionou a construção de uma importante via de ligação entre esta e o núcleo inicial
da cidade. Ruas paralelas e retilíneas foram projetadas e uma nova cidade mais ordeira e
higiênica era pretendida.
No contexto da República, códigos de posturas tentam expulsar o que era
“desagradável” da área central e isto incluía a população pobre. Medidas proibitivas e
padrões construtivos em regiões mais centrais impediam, já nos primeiros anos do novo
regime, a fixação de populações menos favorecidas em áreas privilegiadas da cidade.
Ainda na primeira década do séc. XX, Cândido de Abreu, em seu segundo mandato na
administração municipal (1913-1916), com a experiência de ter projetado a nova capital de
Minas Gerais, criou em Curitiba uma Comissão Especial para Melhoramento Urbanos3,
liderada pelo engenheiro Adriano Goulin, proporcionando uma expressiva transformação
urbana com abertura e retificação de ruas, instalação de bondes elétricos e propagação da
arquitetura eclética nos sobrados, prédios públicos e palacetes da cidade.
Da década de 1920 ao início de 1940 a população de Curitiba quase que duplicou,
ultrapassando os 140.000 habitantes, o “Planos das Avenidas” de Moreira Garcez e outras
tentativas de controlar e direcionar a expansão urbana já não eram eficazes. Foi quando o
prefeito e engenheiro Rozaldo de Mello Leitão contratou com a "Coimbra Bueno & Cia
Ltda" um plano de remodelação, extensão e embelezamento para Curitiba. Conhecido
como “Plano Agache”, foi responsável pelo estabelecimento de diretrizes para o
desenvolvimento de Curitiba dentro de uma proposta de intervenção urbanística formal e
funcional que ordenaria o espaço urbano.
2 Não estão sendo consideradas as proposições de Ouvidor Pardinho, representante da administração colonial, que no início do século XVIII forneceu algumas diretrizes “urbanísticas” e institucionais que deveriam controlar a ordem da incipiente vila.
3 Cf. SEGA, Rafael A. A capital belle epoque. A reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916). Curitiba, Paraná, Brasil: Aos Quatro Ventos, 2001
Considerado por alguns como um marco do planejamento urbano de Curitiba, o
Plano desenvolvido pelo urbanista francês Alfred Agache foi pioneiro a incluir medidas de
saneamento, definição de áreas para habitação, serviços, indústrias e reestruturação viária
na cidade. Estabeleceu diretrizes e normas técnicas para ordenar o crescimento físico,
urbano e espacial, propondo a divisão de Curitiba em zonas funcionais e sugerindo
normatizações e disciplinaridades das funções urbanas. Definiu também vias de circulação
concêntricas, distribuição dos espaços abertos e a reserva de áreas para a expansão da
cidade, segundo a previsão demográfica da época. Porém, o Plano foi mais perecível que o
esperado. Com o intenso crescimento populacional, em pouco tempo a cidade se expandiu
para além das zonas e fronteiras delimitadas pelo urbanista francês, antes mesmo delas
serem estabelecidas de fato. As obras de transformação urbana não acompanharam a
inesperada expansão da cidade. Embora não tenha sido aplicado em sua totalidade, o Plano
Agache divulgou e introduziu na capital paranaense a importância e benefícios do
planejamento urbano, legando, inclusive, instituições encarregadas de efetivá-lo como o
Departamento de Urbanismo da Prefeitura e o Código de Posturas e Obras do Município,
ambos no início dos anos 1950.
A partir dos governos Manoel Ribas e Moisés Lupion, o ideal “progressista”
direcionam as políticas estaduais públicas, especialmente, para a perspectiva de um
governo científico e racional. O desenvolvimento e as divisas geradas pela economia
cafeeira impulsionaram um discurso modernizante e desenvolvimentista que começava a
criar infraestrutura e integrar o estado com sua capital.4 As obras e comemorações do
centenário da emancipação do estado do Paraná em 1953 fortaleceram ainda mais este
discurso e iniciativa de transformar e modernizar a capital do estado, palco das
manifestações cívicas e espaço por excelência para demonstração da força, progresso e
identidade paranaenses.
No decorrer da segunda metade do século XX, em questão de uma década a
população de Curitiba praticamente dobrou e o plano Agache mostrava-se mais que
desatualizado. Entre os finais da década de 1950 e início dos 60 comissões e legislação
referentes ao zoneamento, plano piloto e uso e regulamentação do solo foram efetivadas,
porém, a capital do pujante estado, que produzia e exportava a maior parte do café
4 Até então o estado do Paraná não possuía pouca coesão territorial, política e “identitária”. O Norte, que se destacava com a economia cafeeira possuía acesso mais fácil a São Paulo, por onde escoava boa parte da produção via porto de Santos e ligações mais fortes com o estado vizinho. Atribui-se a Lupion o processo de integração do Paraná.
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
brasileiro, necessitava de uma reestruturação mais ampla advindas de demandas de uma
expansão urbana inesperada e descontrolada.
Foi então, num contexto nacional de ascensão de forças burocrático-militares5 e do
fortalecimento da ideologia de um planejamento racional, técnico e ligado ao aparelho
estatal – portanto autoritário, que se almejou implantar um novo plano urbanístico para
Curitiba.
O Plano Diretor de Urbanismo
Os fins da década de 1960 configurou um período bastante emblemático no que se
poderia identificar como “trajetória” ou “história” do planejamento urbano de Curitiba.
Bastante relembrado, muitas vezes de forma intencional, acrítica e mítica, o processo de
estabelecimento do Plano Diretor de Urbanismo conduziu uma série de regulamentos e
diretrizes que direcionaria o planejamento urbano da cidade.
Assim como ocorreu em esfera nacional e estadual, a década de 60 foi marcada por
um ideal e comprometimento com o planejamento em nível municipal, compreendido
naquele momento como um dos elementos mais importantes e necessários para garantir o
êxito de políticas públicas nas mais diversas áreas e esferas. Ao assumir o cargo de prefeito
municipal, em 1962, o engenheiro Ivo Arzua Pereira expôs sua "Diretriz Geral em Ação"
na qual deixava evidente a preocupação e vontade em revisar o plano urbanístico de
Curitiba (Plano Agache), reajustando-o aos novos tempos e o adaptando às novas
realidades. Promoveram-se pesquisas e previsões técnicas para o desenvolvimento futuro
da cidade, enfatizando principalmente aspectos legais da planificação, diretrizes do uso do
solo, ordenação dos espaços e projetos de circulação e transporte.
Curitiba nesta época já sentia em seu espaço urbano o resultado das rápidas
transformações na sua estrutura populacional, social e econômica. A cafeicultura do Norte
Paranaense, ao financiar obras na capital do estado e promover investimentos em sua infra-
estrutura, proporcionava à capital a oportunidade de se transformar e consolidar em um
centro conversor e aglutinador tanto de investimentos como de populações e problemas,
especialmente após a crise da economia cafeeira e o consequente êxodo rural no interior
paranaense. Na visão do executivo municipal, o Plano Diretor tornava-se imprescindível
5 “O regime militar acabou tendo conseqüências no desenvolvimento de Curitiba, devido ao apoio aos programas dos prefeitos nomeados.” Depoimento de Ney Aminthas de Barros BRAGA. IPPUC. Memória da Curitiba urbana. Curitiba, dezembro de 1990. (Depoimentos 5). p.3
para controlar o constante crescimento, processo de metropolização, favelização, déficit
habitacional, problemas no transporte, poluição das águas e ar, etc.
A proposição do Plano Preliminar de Urbanismo (PPU), elaborado por Serete
Engenharia S.A. e por Jorge Wilheim Arquitetos Associados e convertido em Plano Diretor
(PD) com a subsequente aprovação da Lei do Plano Diretor de Curitiba despontaram neste
contexto e garantiriam um “direcionamento” urbano – e porque não político, cultural,
econômico e “imagético” – a Curitiba, cujos reflexos e continuidades se prolongam até nos
dias atuais.
Instituído pela Lei 2828 de 1966 o Plano Diretor de Curitiba tornou-se um “marco”
importante para a definição dos rumos da cidade. Representaria, especialmente na visão os
seus formuladores e executores, uma “ruptura” e uma transformação “revolucionária” no
modo de pensar a questão urbana da cidade. No contexto da elaboração do mesmo
originaram-se duas instituições de suma importância para o futuro do plano e do
planejamento urbanos Curitibano: o IPPUC – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
de Curitiba, a quem coube a função de detalhar e implementar o Plano, e a COHAB –
Companhia de Habitação Popular de Curitiba, que atuaria na desfavelização e na
localização da população carente em conjuntos habitacionais localizados distantes do
núcleo urbano.
Previsto e proposto no Plano Preliminar de 1965 como órgão que acompanharia o
detalhamento e execução do plano, o IPPUC, a partir da década de 1970,
progressivamente, tornar-se-ia o grande responsável pela execução, prática e orientação do
planejamento urbano curitibano e pela promoção da imagem de Curitiba. Como órgão
máximo da planificação de uma cidade que se via totalmente envolvida com questões e
transformações urbanas advindas de um planejamento que prosseguiu em gestões
municipais consecutivas, o IPPUC utilizou-se de sua influência e poderio para atrelar suas
ações e realizações à imagem da cidade.
Curitiba ganharia a partir de então um novo marco fundador: uma cidade
organizada, planejada, de primeiro mundo graças a uma instituição que, preocupada com
seu futuro, teria projetado e definido diretrizes e planos que modificariam e transformariam
o aspecto da cidade.
Uma transformação seletiva e excludente
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
Com a lei do Plano Diretor e atuação do IPPUC, a partir da década de 1960, foi
planejada e executada a organização e “transformação” urbana de Curitiba, porém, de
forma seletiva e excludente. À medida que a cidade estava sendo planejada, algumas áreas
foram valorizadas com investimentos em transporte, parques, equipamentos públicos.
Todavia, na maioria das vezes, estas áreas já eram habitadas por uma população de alta
renda e, quando não fosse, restrições impostas por um zoneamento restritivo e não
includente, além do próprio aumento do valor do solo urbano dessas regiões estruturadas,
impediam e impossibilitavam delas serem habitadas por habitantes de menores
rendimentos. A parte da cidade que foi alvo do planejamento e investimentos urbanos
estaria restrita a seletos moradores, excluindo famílias de baixa renda e conseqüentemente
habitações de interesse social.
Através de volumosos investimentos na infraestrutura, especialmente de transporte,
trânsito e saneamento, a capital do Paraná foi sendo estruturada a partir dos “eixos
estruturais” ou “sistema trinário”: vias expressas de trânsito rápido entremeadas por faixas
exclusivas para transporte coletivo a partir dos quais seria planejada a densificação e o
direcionamento do crescimento da cidade. Um zoneamento que até 2000 não teria se
preocupado em instituir áreas de interesse social na cidade, definiu, a partir da década de
1960, as especificidades destes eixos estabelecidos pelos PPU e PD, os quais seriam
beneficiados pelo transporte de massa de qualidade, vias de rápido acesso às principais
partes da cidade e uma série de cuidados urbanos que diferenciaria as regiões de Curitiba
cortadas ou tangenciadas pelos mesmos.
Criava-se então, em determinadas áreas do núcleo urbano, um sistema viário
planejado para ser um instrumento de indução e controle do crescimento urbano, evitando
que a cidade crescesse descontroladamente de forma concêntrica. Configurando-se eixos
lineares de circulação, as estruturais concentrariam oferta necessária de meios de transporte
coletivo e caracterizariam como zona principal para o adensamento populacional de
Curitiba. Crescendo ao longo dos eixos viários N-S, L-O e SE, evitar-se-ia a expansão e a
consequente deterioração do centro tradicional, o qual deveria ser destinado
preferencialmente aos pedestres. Tal estruturação viária pretendia ser condutora e indutora
do crescimento da cidade, devidamente integrada à legislação concernente ao uso do solo.
De forma que os prédios de maior altura se restringiriam às vias estruturais, onde também
se concentrariam os melhores serviços e equipamentos urbanos da cidade. (OLIVEIRA,
2000, p.51-53)
A maior parte das áreas que receberam os eixos estruturais, não por um acaso, já
abrigavam a população de mais alta renda e eram, em geral, as mais valorizadas da cidade,
valorizando-se ainda mais com os investimentos que as privilegiariam em diversos
aspectos.
O processo mais visível da implantação dos eixos estruturais foi a imediata valorização das suas terras e das que lhes eram adjacentes. Uma vez que o potencial de aproveitamento dos terrenos era ali o mais elevado - e ficou maior ainda em 1980 [...] tais áreas seriam mais cedo ou mais tarde beneficiadas com toda a infra-estrutura urbana, assistiu-se a um intenso processo de especulação imobiliária, com grandes construtores e incorporadores correndo para adquirí-las. Desta forma, estas terras foram retidas para especulação, à espera de um nível de valorização que justificasse o lançamento de empreendimentos imobiliários de alto nível. […] a despeito do déficit habitacional verificado em 1985, nada menos que metade das terras disponíveis para a construção de moradias de Curitiba estavam ociosas. O percentual de áreas ociosas que dispunham de infra-estrutura urbana adequada para projetos habitacionais aumentou ainda mais […] Estas terras com toda infra-estrutura instalada esperariam mais de dez anos para serem utilizadas e, quando o foram, acabaram destinadas à construção de edifícios de alto luxo (talvez os mais caros de Curitiba), num processo que se repetiu em diferentes escalas por todos os setores estruturais. (OLIVEIRA, 1995, p.165-166)
Especialmente a partir do planejamento instituído pelo Estado a partir de 1966, a
espacialização dos investimentos e a distribuição de equipamentos urbanos na cidade
passaram a ser implantados segundo um rigoroso tecnicismo, os quais "codificam os
fluxos, regulam as exclusões, ou inclusões parciais, dos diferentes habitantes urbanos
diante dos múltiplos espaços. Os lugares urbanos adquirem significados renovados pela
determinação prévia das suas formas e usos gerada na e pela intervenção técnica".
(SOUZA, 2001, p.109). Este planejamento iniciado no PPU que prosseguiu nas décadas
seguintes, mediado pelo IPPUC, definiu meticulosamente os espaços citadinos a serem
alvos de planejamento e investimentos. Dessa forma, o Estado atuou de modo a predefinir
e selecionar espaços urbanos a serem privilegiados e valorizados com as obras e maiores
atenções do poder público, sendo que as áreas primordialmente escolhidas para serem
desenvolvidas e valorizadas com as ações e investimentos públicos eram regiões
historicamente ocupadas pelas camadas economicamente privilegiadas da cidade. Da
mesma forma, áreas consideradas “problemáticas”, habitadas por migrantes recém
estabelecidos, acabaram sendo preteridas da área de interesse do planejamento. “O eixo,
opção prioritária para os investimentos públicos e privados, foi instalado sobre os espaços
economicamente mais valorizados da cidade, onde habitava a população considerada
organicamente integrada ao desenvolvimento urbano.” (SOUZA, 2001, p.120).
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
Souza (1999, 2001) ainda afirma que para definir e justificar o espaço a ser
planejado, foram utilizadas base de dados eleitorais e não os estatísticos populacionais do
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), órgão oficialmente responsável pelo
recenseamento nacional. “Segundo o PPU as informações do IBGE não seriam confiáveis”
(SOUZA, 2001, p.107), dessa forma, os analfabetos, não-eleitores e recém-imigrados não
existiriam, ou seja, os mais pobres estariam excluídos desde a análise inicial. O próprio
texto do PPU reconhece os limites da amostra, mas ameniza o problema, com argumentos
interessantes:
[...] o eleitor tende a ser das camadas sociais mais altas, e assim deixando de ser representada a população de camadas mais baixas. Isto em parte é contrabalançado pelo alto índice de alfabetização dos habitantes da Região Sul do país, e que constituem a maior parte dos imigrantes. (SOUZA, 2001, p.111)
A população não interessante à cidade que se desejava planificar, a pauperizada e
moradora de regiões insalubres e distantes, “foi representada como insignificante em
termos estatísticos e tornou-se invisível para o planejamento” (SOUZA, 2001, p.111). O
saber técnico - do grupo de “tecnocratas” que se apoderou do comando da cidade -
articulou-se às estratégias de divisão desigual do espaço e orientou as políticas urbanas. Tal
articulação pode ser constatada quando se analisa a argumentação técnica presente no
Plano de Urbanismo que justifica a localização dos eixos estruturais, “cujo efeito foi
atribuir um valor suplementar a espaços já valorizados e formar um estoque para expansão
seletiva do centro da cidade”. (SOUZA, 2001, p.107)
Uma vez determinada a área da cidade para se planejar, investir e valorizar e, sendo
esta justamente a habitada pela população da mais alta renda, facilitou-se e se
potencializou a segregação dos habitantes daquela região – afinal, justifica-se e se legitima
os privilégios e a demanda das atenções e investimentos. Consequentemente, tal prática
também proporciona a exclusão e a desatenção aos habitantes que vivem em regiões
diversas e distantes destas não priorizadas pelo poder público, contribuindo para o
acirramento da dualidade entre diferentes áreas da cidade, segmentando o espaço de acordo
com a diferenciação social de seus habitantes, segregando-os.
Bairros como o Boqueirão, pela intensidade da sua dispersão, pelo perfil dos seus
habitantes, pela ocupação recente e pelas características “naturais” do seu terreno, não
aparecem como áreas prioritárias para os investimentos da administração, sendo
construídos como o lado de fora. [...] o PPU reafirma a divisão do espaço em duas cidades,
ou melhor, entre o que está dentro e fora da fronteira urbana. (SOUZA, 2001, p.113).
Dessa forma, apesar de já apresentar áreas urbanas segregadas desde o início do
sec. XX, assim como ocorreu com as principais cidades brasileiras, foi, sobretudo a partir
da década de 1960, que Curitiba passou por um processo de planejamento urbano e
positivação de sua imagem o qual separou a cidade “desejável” daquela que deveria ser
ocultada e “ilegalizada”6. Concomitantemente a uma renovação urbana, limitada e restrita,
a cidade começou ser divulgada intensamente na mídia nacional e internacional.
A criação do IPPUC e seu destaque como órgão definidor das políticas de
planejamento urbano da cidade foi bastante significativo para a promoção e até mesmo
“comercialização” da “cidade modelo” na área do planejamento urbano, a qual, segundo os
tecnocratas da “Sorbonne do Juvevê”7, teria passado por uma “revolução”. Implantando
incialmente para acompanhar, detalhar e executar o Plano Diretor, o IPPUC, a partir da
década de 1970, progressivamente vai se tornando o grande responsável pela execução,
prática e orientação do planejamento urbano curitibano e pela promoção da imagem da
cidade. Para OLIVEIRA (2000), o IPPUC estaria no ápice da pirâmide do planejamento
urbano de Curitiba, por ter tornado um eficiente articulador entre as demais agências
relacionadas ao planejamento urbano, uma vez que sua composição era formada por
representantes de diversos setores do poder executivo e legislativo municipal e de órgãos
como COHAB (Companhia de Habitação Popular de Curitiba) e URBS (Urbanização de
Curitiba S/A). Com o tempo, o IPPUC ocupa boa parte do espaço e das funções das
demais instituições de urbanismo da cidade, destacando-se como um organismo
privilegiado na administração local, formador de futuros pensadores, planejadores,
estudiosos, marketeiros e prefeitos da cidade de Curitiba.
"Desenvolvendo e supervisionando a aplicação de alguns projetos setoriais do Plano Diretor, o IPPUC tornou-se o centro das atenções da administração municipal. Seus técnicos eram convidados a opinar sobre a quase totalidade das ações que os departamentos da prefeitura deveriam realizar. Ao mesmo tempo, buscava-se respaldo na cientificidade das soluções propostas pelo corpo de engenheiros, arquitetos, sociólogos e outros profissionais que compunham aquele Instituto, de resto afastado das injunções políticas que a Câmara Municipal e o prefeito deveriam satisfazer.” (OLIVEIRA, 2000, p.97)
O IPPUC, como órgão máximo do planejamento urbano de uma cidade que se via
totalmente envolvida em questões e transformações urbanas advindas de um planejamento
que prosseguiu nas gestões municipais consecutivas, utilizou-se de sua influência e poderio
6 Segundo conceito de Maricato (1996, 2001) sobre a cidade “ilegal”
7 Modo pelo qual muitos técnicos do IPPUC denominava o órgão localizado neste bairro nobre de Curitiba.
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
para atrelar suas ações e realizações à imagem da cidade. Fato que auxiliou a propagação
da ideia que Curitiba seria uma cidade diferenciada e modelar porque fora continuamente
planejada.
Indubitavelmente, este discurso hegemônico e oficializado revelando uma “nova
cidade” e suas positividades como fruto de uma “revolução urbana”, foi sendo constituído
na relação entre o IPPUC e os poderes dominantes da cidade. Por isso é frequentemente
crível e aceitável que a “Curitiba planejada” surgiu a partir do planejamento iniciado na
década de 1970.
Revelando uma cidade ideal e modelar, justificada pontualmente em imagens e
obras espetaculares, o discurso dos planejadores conseguiu camuflar incoerências e
paradoxos, destacando quase sempre uma imagem restrita e ideologicamente formatada de
Curitiba. A mídia, por sua vez, sem maiores críticas ou reflexões e muitas vezes em conluio
com o “poder”, aceitou e divulgou esta imagem idealizada, a qual é identificada por alguns
curitibanos, orgulhosos de viverem em uma cidade reconhecida como europeia,
organizada, desenvolvida e com qualidade de vida (SANCHEZ, 1997).
O discurso e a publicidade decorrentes do “sucesso” do planejamento urbano da
“Curitiba espetacular” definiram uma imagem dominante sobre Curitiba: uma cidade que
deu certo pelo planejamento e que passou a servir de modelo para as demais. Instituiu-se
um discurso deveras homogêneo e restritivo e uma imagem ilusória e consensual de uma
cidade que, para se destacar e diferenciar das demais metrópoles brasileiras, apartou,
escondeu ou “maquiou” problemas, relegando, na maioria das vezes, a população e os
aspectos indesejáveis da “cidade modelo” às suas bordas, não tratando ou proporcionando
atenção aos mesmos.
A cidade segregada
Conforme apresentado, o planejamento urbano, especialmente o instituído em
Curitiba a partir do Plano Diretor de Urbanismo de 1966 favoreceu a consolidação de
espaços diferenciados na maior metrópole do Paraná, com regiões privilegiadas junto ao
centro da cidade e áreas precárias e esquecidas localizadas perifericamente. De forma que
as adversidades e contradições do espaço urbano curitibano começam ser despontadas e
reconhecidas: "Curitiba, tomada como cidade modelo de planejamento urbano, está
cercada por uma coroa formada de numerosos núcleos de terras invadidas, muitos dos
quais estão em áreas de proteção ambiental. (MARICATO, 2003, p. 159)
Curitiba apresenta hoje um espaço urbano extremamente desigual e até mesmo
adverso, com regiões que centralizam uma população mais rica e uma periferia relegada
aos menos favorecidos, onde o sistema de transporte é menos presente e eficiente, assim
como os equipamentos urbanos e as atenções e investimentos públicos.
Villaça (2001, p.139) aponta que a disputa pelo espaço urbano ocorreu e ocorre de
forma desequilibrada em nosso país, sendo que os detentores do poder econômico - os
quais, muitas vezes também são do poder político - possuem vantagens na disputa pelos
espaços citadinos mais favoráveis, restando aos demais as piores áreas, as mais distantes,
as menos atendidas pelo poder público, afinal, consiste na “região dos ‘derrotados’ na
competição espacial”. Resultando, assim, uma cidade bipartida: De um lado a cidade dos
vencedores, atendida pelo Estado e beneficiada pelos investimentos advindos deste. E do
outro, a cidade dos vencidos, onde a informalidade e o esquecimento predominam,
distantes fisicamente e socialmente das partes privilegiadas da cidade, habitada por uma
população pauperizada que “consegue localizar-se junto ao local de empregos, mas tem de
ficar longe do centro principal da cidade. Sem acesso - inclusive social e econômico - ao
centro principal.” (idem)
A intervenção estatal, ao privilegiar determinadas áreas em detrimento de outras,
demarca ainda mais os diferenciais da localização, promovendo o aumento do valor do
solo urbano que recebeu investimentos. Favorecendo a ação de um mercado imobiliário
formal que restringe o acesso da maior parte dos habitantes às áreas mais valorizadas da
cidade. Aos excluídos deste mercado não há muitas outras opções além da informalidade,
ocupando áreas periféricas, quase esquecidas dos investimentos públicos e, portanto, de
baixo valor.
Para MARICATO (1996) e VILLAÇA (2001), a informalidade e ilegalidade
atingem boa parte da área urbana das grandes cidades brasileiras, configurando territórios
“sem lei, sem segurança ambiental, sem saneamento, constituído pelas áreas de moradias
pobres”. (MARICATO, 1996, p.9). Frequentemente esta cidade ilegal, constituída na
informalidade e habitadas por pessoas carentes e com baixo rendimento não é considerada
para o planejamento urbano oficial.
Esta dualidade entre cidade “oficial”, representada e divulgada na midia como
modelo de planejamento e a a cidade “ilegal” esquecida e relegada distante e escondida dos
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
holofotes que projetaram Curitiba internacionalmente propiciou a consolidação de uma
cidade extremamente contrastante e com consideráveis abismos espaciais e sociais.
Os contrastes curitibanos
Freqüentemente referenciada, especialmente a partir da década de 1990, pelo seu
planejamento urbano continuado, qualidade de vida superior aos padrões brasileiros e
inovações no ambiente citadino, Curitiba chega ao século XXI como a cidade mais
populosa do Sul do Brasil, destacando-se também na economia da região, onde apresenta o
maior PIB e expressiva concentração industrial e de serviços. Porém, sua elevada
concentração de renda e bons índices de desenvolvimento contrastam, atualmente, com o
crescimento de sua pouco integrada e violenta região metropolitana que apresenta altas
taxas de crescimento demográfico, grande déficit e informalidade habitacional.
Vencedora de prêmios, inclusive internacionais, referentes à gestão e qualidade
urbana, a cidade também evidencia contrastes internos: Regiões dotadas de considerável
estrutura urbana, bem servida de transporte público, vias rápidas e altos índices de
desenvolvimento humano, coexistem apartadas de muitos bairros e assentamentos
humanos precários, os quais descortinam o adverso da imagem que consagrou Curitiba
revelando sua pobreza ‘oculta’. A disparidade socioeconômica segrega grande parte dos
seus quase de 1,8 milhões de habitantes e separa das áreas uma grande conjunto de bairros
periféricos predominantemente habitados por população de baixa renda, onde concentra a
maior parte das ocupações irregulares, alijados das benesses urbanas e regiões planejadas
da urbe.
De acordo com o Censo de 2010, Curitiba possuia 1.751.907 habitantes, abrigando
pouco mais de 50% da população de sua região metropolitana. Dividida em 75 bairros,
dois deles com população superior a 100 mil habitantes: Cidade Industrial (CIC) com
172.699 e Sítio Cercado com 115.525 moradores. Por sinal, estes, estes dois bairros não se
destacam apenas pela concentração populacional, mas especialmente pelos problemas
urbanos, informalidade habitacional e violência. Localizados a dezenas de quilômetros ao
Sul do centro da cidade CIC e Sítio Cercado concentram os maiores índices de homícidio
de Curitiba e boa parte da população com rendimento inferior a 3 salários mínimos (SM),
também estão entre os bairros com maior número de habitantes vivendo em aglomerados
subnormais (favelas). Por outro lado, contíguos ao centro estão os bairros Batel, Água
Verde, Alto da XV, Alto da Glória e Bigorrilho que apresentam os rendimentos mensais
domiciliares mais elevados da cidade (mais de 75% das famílias com rendimento superior
a 5 SM). No requintado bairro do Batel, 33,5% dos domicílios ostenta renda superior a 20
SM, enquanto que no extremo Sul da cidade, no Tatuquara – com uma população quase 5
vezes superior ao Batel - esta cifra reduz-se a 0,2%.
Figura 1 – Mapa do rendimento mediano mensal de pessoas acima de 10 anos segundo bairros de Curitiba
Embora Curitiba possua uma situação privilegiada às demais capitais do Brasil no
tocante à renda, apresentando 25,5% da população com um rendimento nominal mensal
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
domiciliar per capita superior a 5 SM (sendo a média nacional de 5,1%), observa-se que
esta renda é extremamente mal distribuída e que os bairros de menor renda são os mais
populosos e apresentam maior índice de crescimento, como é o caso do Campo de Santana,
com incremento populacional de 263% entre 2000 e 2010 e possui 84,4% de sua população
com rendimento inferior a 5 SM. O Augusta, que cresceu 82,42%, apresenta mais de 3/4
dos seus habitantes recebendo menos de cinco salários. Nos populosos CIC e Sítio
Cercado, tem-se respectivamente 72,8% e 75,4% da população com rendimentos inferiores
a 5 SM.
Dessa forma, apesar de Curitiba ser consensualmente considerada uma cidade
“rica”, a maior parte de sua população não é contemplada com índices que denotem
“riqueza”. Segundo o Censo de 2010, o rendimento mediano mensal das pessoas de 10
anos ou mais de idade em Curitiba era de 1,4 salários mínimos. Os bairros que
apresentaram o maior rendimento mediano, de 3 a 4 SM, abrigam somente cerca de 5% da
população e se situam bem próximos ao centro, são servidos pelo BRT e quando não
limítrofes ao centro, estão contíguos a outros bairros de mesma característica rentária.
Entre as faixas de 2 e 2,9 SM estão o centro e mais 22 bairros da cidade, todos eles
situados na próximos ao centro e contíguos entre si num anel contíguo à região central ou
aos bairros mais privilegiados. Nas faixas mais baixas, estão pouco mais de 60% dos
bairros e maioria dos habitantes de Curitiba, afinal, dos 12 bairros mais populosos e que
abrigam mais da metade da população, apenas o Água Verde não enquadra nesta faixa. Os
50,7% dos bairros que apresentam rendimento mediano entre 1,1 e 1,9 SM, abrigam a
maior parte da população total da cidade, sendo que nenhum destes situa-se próximo ao
centro. Dos 8 bairros mais pobres, que apresentam rendimento mediano mensal abaixo de
R$510,00, todos eles, excetuando o Prado Velho, estão situados nas extremidades Sul ou
Oeste da cidade e apresentam grande distância do centro, dos eixos de transporte e das
regiões com melhor infraestrutura de Curitiba.
Analisando a localização dos aglomerados subnormais (figura 2), observa-se que
estão distribuídos por 37 bairros, apenas dois deles (Parolin e Prado Velho) possuem
proximidade ao centro, sendo que nenhum bairro curitibano considerado nobre ou que
concentra população de alta renda há ocorrência de aglomerado subnormal. Em
compensação, em todos os bairros cuja renda apresenta valor mediano mensal inferior a 1
SM há considerável concentração de população “favelada”: Tatuquara, Ganchinho, São
Miguel e Campo de Santana estão entre os 10 bairros com maior número de habitantes
vivendo precariamente.
Figura 2: Localização dos bairros de alta e concentração de aglomerados subnormais em Curitiba.
Fonte: IPPUC, IBGE 2010. Elaborado pelo autor.
Também é digno de apreensão a concentração das vilas ou favelas na região sul de
Curitiba. Todos os bairros que possuem mais de 5 mil habitantes vivendo em aglomerados
subnormais estão ao sul do centro da cidade (também a SE ou SO), sendo que dos 37
bairros com favelas, apenas 9 deles se localizam ao norte da região central, porém quase
todos limítrofes com outros municípios da Região Metropolitana de Curitiba (RMC), onde
a informalidade é evidente. Aliás, a quase totalidade dos bairros curitibanos que fazem
limites com outras cidades da RMC apresentam aglomerados subnormais, sendo que a
concentração destes é maior nas divisas localizadas ao sul.
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
Verifica-se, portanto, que a informalidade em Curitiba é localizada principalmente
em regiões distantes das habitadas pela população de alta renda, em geral em áreas
desfavorecidas pelo transporte e infraestrutura, afastadas do centro e áreas nobres e
bastante próximas aos limites com os demais municípios vizinhos, para onde também
foram e continuam sendo localizadas as habitações de interesse social da cidade, em uma
clara intenção de não democratizar o acesso aos espaços valorizados da cidade
(CARVALHO, 2014).
Conforme foi observado e constatado nos mapas e dados elencados anteriormente,
notavelmente Curitiba possui um espaço urbano extremamente desigual e até mesmo
adverso, com regiões que centralizam uma população mais rica e uma periferia relegada
aos menos favorecidos, onde o sistema de transporte é menos presente e eficiente, assim
como os equipamentos urbanos e as atenções e investimentos públicos.
A restrita mobilidade urbana e social desta população menos favorecida, habitante
de uma cidade “ilegal” e distante – tanto fisicamente quanto economicamente dos
destacados “cenários urbanos” de Curitiba, revela uma cidade segregada e excludente,
onde os espaços planejados, bem localizados e bem servidos por infraestrutura e serviços
quase que se restringem-se às regiões onde habitam a população de mais alta renda,
enquanto que as distantes periferias, mal equipadas e marcadas por informalidade urbana e
vulnerabilidade social são habitadas por populações, na maioria das vezes, com os piores
rendimentos.
Concorda-se que “a segregação social contribui para a perpetuação de situações de
pobreza por meio de diferentes mecanismos” (TORRES, 2005, p. 95), afinal a pouca
atenção dispensada à população carente da cidade e até mesmo a desconsideração das
mesmas acirrou ainda mais a segregação dos favorecidos e a exclusão e afastamento dos
apartados. Contribuiu também para a precariedade e ilegalidade habitacional de grande
parte da população da metrópole.
Conclusão
Apesar de apresentar uma política de planejamento contínuo e atuante desde a
década de 1960, a ação do Plano Diretor curitibano não atingiu e muito menos favoreceu
de forma equilibrada todo o território urbano. Ao contrário, o planejamento restringiu-se a
áreas já valorizadas ou que se intencionava valorizar. A periferia e bordas da cidade não foi
atendida e muito menos privilegiada com as melhorias urbanas o que proporcionou uma
disparidade ainda maior entre as regiões nobres e pobres de Curitiba.
Compreende-se que a restrita mobilidade urbana e social da população menos
favorecida, habitante de uma cidade “ilegal” e distante – tanto fisicamente quanto
economicamente dos destacados “cenários urbanos” de Curitiba -, aponta para uma cidade
segregada e excludente, onde os espaços planejados, de localização privilegiada e bem
servidos por infraestrutura e serviços quase sempre restringem-se às regiões habitadas pela
população de mais alta renda. Enquanto que as distantes periferias, mal equipadas e
marcadas por informalidade urbana e vulnerabilidade social são habitadas por populações
com os piores rendimentos.
Apesar de ainda conseguir ostentar boa imagem e representatividade quanto à uma
suposta qualidade urbana, Curitiba revela-se também extremamente dual e segregada. Duas
cidades convivem num mesmo território, a cidade legitimada e ideologicamente “vendida”
pela mídia como modelo urbano a ser seguido e um grande anel de pobreza, excluído e
isolado socialmente da Curitiba “oficializada” nos discursos de seus urbanistas e exaltada
por soluções urbanas pretensamente criativas e originais.
Evidentemente, a Curitiba dos parques, dos memoriais e marcos urbanos, das
avenidas bem cuidadas e do famoso sistema de transporte é aquela onde a camada de mais
alta renda se autosegregou e demandou as devidas atenções do poder público e os maiores
investimentos urbanos. A Curitiba “ilegal”, informal, não prevista e desconsiderada dos
Planos Diretores que surgiu ao entorno da cidade “idealizada” foi a que restou aos
habitantes menos favorecidos economicamente e àqueles que acabaram sendo “expulsos”
pelas transformações urbanas ocorridas a partir da década de 1970.
Embora as desigualdades espaciais e sociais sejam marcantes e comuns à realidade
das grandes cidades brasileiras, em Curitiba, a intenção da divulgação de uma cidade
inovadora e “diferente” contribuiu ainda mais para excluir e desconsiderar os espaços e
populações “indesejáveis” à imagem que a cidade queria destacar ao mercado
internacional. De forma que o planejamento urbano atuou na configuração de uma cidade
excludente, onde as camadas de mais baixa renda possuem pouca possibilidades de
usufruir as benesses da cidade e se beneficiar com seus espaços transformados e inovados
por um planejamento - supostamente - exemplar, porém – evidentemente - restrito e
parcial.
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
BIBLIOGRAFIA CITADA
CARVALHO, A. S. Vivendo às margens: Habitação de Interesse Social e o processo da segregação socioespacial em Curitiba. Florianópolis: PGAU-UFSC. (Dissertação (Mestrado PGAU), 2014. IPPUC. Memória da Curitiba urbana. Curitiba, dezembro de 1990. (Depoimentos 5). MARICATO, E. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996. MARICATO, E. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 2. ed. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. MARICATO, E. Metrópole, legislação e desigualdade. Estudos Avançados. v. 17, n. 48, São Paulo, agosto 2003. Disponivel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: fev. 20122003 OLIVEIRA, D. A política do planejamento urbano: o caso de Curitiba. Campinas: UNICAMP (Tese Doutorado em Ciências Sociais). 1995 OLIVEIRA, D. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000. SANCHEZ, F. E. G. Cidade espetáculo: política, planejamento e city marketing, Curitiba: Palavra, 1997 SEGA, R. A. A capital belle epoque. A reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916). Curitiba, Paraná, Brasil: Aos Quatro Ventos, 2001 SOUZA, N. R. Planejamento urbano, saber e poder. O governo do espaço e a população de Curitiba. São Paulo: Tese de doutorado – USP – FFLCH, 1999.
SOUZA, N R. Planejamento ubano em Curitiba: saber técnico, classificação dos citadinos e partilha da cidade, Rev. Sociol. Polit, Curitiba, n.16, 2001 TORRES, H. Medindo a segregação. In: MARQUES, E. (Org.). São Paulo: segregação, pobreza urbana e desigualdade social. São Paulo: Editor Senac, 2005. VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Studio Nobel : FAPESP : Lincon Institute, 2001.