uma bolinha vermelha marton

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130 ENSAIO GERAL, Belém, v1, n.2, jul/dez 2009 UMA BOLINHA VERMELHA Marton MAUÉS * [email protected] * Doutorando em Artes Cênicas (UFBA). Mestre em Artes Cênicas (UFBA). Ator e Diretor de Teatro. Professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA). Uma bolinha vermelha de látex, plástico ou esponja, atada nas pontas por um elástico fino através de dois pequenos furos: eis o nariz do palhaço. A maioria das pessoas tem o imaginário habitado por este estranho e extraordinário ser e a identificá-lo, para a maioria, está a dita bolinha vermelha. Poderíamos afirmar, então, que tal bolinha de látex, plástico ou esponja é identificadora do palhaço, traço marcante de sua identidade? Sim, sem dúvida, mas não somente ela. Instigado e inspirado pelo texto de Mourão (2005), que diz não fazer sentido “...falar de uma identidade ou da identidade como coisa dada”, nos entregaremos às mãos inseguras da digressão para traçar alguns apontamentos sobre traços identitários dos palhaços, ou clowns como querem alguns, guiando-nos pela afirmação do autor citado de que “o que se pode observar e experimentar são identidades em interação...”. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer essa dupla nomeação. A palavra clown, vem da língua inglesa, a partir de clod – homem do campo, camponês, caipira. O clown nasce no circo moderno, criado pelo sub-oficial da cavalaria inglesa, Philip Astley, na Londres do século XVIII. Montado sobre as habilidades de cavalos e cavaleiros, o circo cria um número em que o cômico da tropa era um recruta vindo do interior, um campônio que montava o cavalo ao contrário, caía e aprontava uma série de peripécias. Palhaço vem do italiano, pagliccio , personagem dos cortejos cômicos medievais e renascentistas, cuja roupa era feita do tecido grosso e listrado que envolvia os colchões, tendo partes do corpo afofadas com a palha (paglia) que recheava os mesmos colchões. Com o tempo, as duas palavras passaram a ser usadas em línguas distintas para designar o mesmo personagem. Nos explica Burnier (2001, p. 205): “Na verdade palhaço e clown são termos distintos para designar a mesma coisa. Existem, sim, diferenças quanto às linhas de trabalho.” Para ele, os palhaços ou clowns americanos valorizam mais a gag, a

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130 ENSAIO GERAL, Belém, v1, n.2, jul/dez 2009

UMA BOLINHA VERMELHA

Marton MAUÉS*

[email protected]

* Doutorando em Artes Cênicas (UFBA). Mestre em Artes Cênicas (UFBA). Ator e Diretor deTeatro. Professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA).

Uma bolinha vermelha de látex, plástico ou esponja, atada naspontas por um elástico fino através de dois pequenos furos: eis o narizdo palhaço. A maioria das pessoas tem o imaginário habitado por esteestranho e extraordinário ser e a identificá-lo, para a maioria, está adita bolinha vermelha. Poderíamos afirmar, então, que tal bolinha delátex, plástico ou esponja é identificadora do palhaço, traço marcantede sua identidade? Sim, sem dúvida, mas não somente ela.

Instigado e inspirado pelo texto de Mourão (2005), que diz nãofazer sentido “...falar de uma identidade ou da identidade como coisadada”, nos entregaremos às mãos inseguras da digressão para traçaralguns apontamentos sobre traços identitários dos palhaços, ouclowns como querem alguns, guiando-nos pela afirmação do autorcitado de que “o que se pode observar e experimentar são identidadesem interação...”.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer essa dupla nomeação.A palavra clown, vem da língua inglesa, a partir de clod – homem docampo, camponês, caipira. O clown nasce no circo moderno, criadopelo sub-oficial da cavalaria inglesa, Philip Astley, na Londres doséculo XVIII. Montado sobre as habilidades de cavalos e cavaleiros,o circo cria um número em que o cômico da tropa era um recrutavindo do interior, um campônio que montava o cavalo ao contrário,caía e aprontava uma série de peripécias. Palhaço vem do italiano,pagliccio, personagem dos cortejos cômicos medievais erenascentistas, cuja roupa era feita do tecido grosso e listrado queenvolvia os colchões, tendo partes do corpo afofadas com a palha(paglia) que recheava os mesmos colchões.

Com o tempo, as duas palavras passaram a ser usadas em línguasdistintas para designar o mesmo personagem. Nos explica Burnier (2001,p. 205): “Na verdade palhaço e clown são termos distintos para designara mesma coisa. Existem, sim, diferenças quanto às linhas de trabalho.”Para ele, os palhaços ou clowns americanos valorizam mais a gag, a

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ideia, preocupam-se com o que vão fazer. Por outro lado, outros palhaçosdão mais ênfase ao como fazer as coisas, trabalhando numa linha maispessoal, como os europeus. Esta linha de trabalho é observada hoje emalguns grupos brasileiros, como o Lume, criado por Luiz Otávio Burnier.

Há, no entanto, quem faça distinções entre os dois termos, afirmandoque palhaço é de circo e clown de teatro; ou ainda, que palhaço é oingênuo, o desajeitado, o bobo (augusto) e clown o sério, o astuto, oautoritário (branco). Concordamos com os estudiosos que defendem aequivalência dos dois termos, não estabelecendo diferenças semânticas,somente históricas entre eles, acreditando que mesmo com origensdistintas, os dois vocábulos convergiram, com o passar do tempo, paradefinir única e exclusivamente o personagem comumente marcado poruma bolinha vermelha de látex, plástico ou esponja em volta do nariz.

Nascido em meados do século XVIII, o clown ou palhaço, porém,descende de uma linhagem de cômicos cuja árvore genealógica possuiampla ramagem e raízes bem profundas. Como observa Burnier:

Os tipos característicos da baixa comédia grega e romana;os bufões e bobos da Idade Média; os personagens fixosda commedia dell´arte italiana; o palhaço circense e o clownpossuem uma mesma essência: colocar em exposição aestupidez do ser humano, relativizando normas e condutassociais“. (2001, p. 206)

Há quem diga que o riso se instaura já entre os trogloditas dascavernas, que festejavam a boa caçada contando vantagens. Um deles,porém, ao imitar o amigo falastrão, faz micagens zombando da pseudocoragem do outro, fazendo os demais caírem na gargalhada. Eis o primeiropalhaço, aquele que imita o fanfarrão ridicularizando-o. A imitação dooutro, em tom de zombaria, jocosidade é, portanto, uma dascaracterísticas do palhaço e, hoje, constatamos isso nas ruas dos grandescentros na figura dos chamados “sombras”, muitos dos quais fazemquestão de utilizar aquela pequena máscara em forma de bolinhavermelha.

Segundo Castro (2002, p.10) “para se compreender o fenômeno doclown ou bufão contemporâneo...” teremos que voltar na história, postoque “...em todas as épocas e culturas existem exemplos de seusantecedentes e seus antecessores”. Os palhaços são descendentes diretosdos cômicos oriundos da comédia ática, do drama satírico grego, comseu coro composto de sátiros, representantes da lascívia, dodesregramento, da ironia e da burla, que realizavam o que na tragédianão estava permitido.

De acordo com Fo (1998, p.305), os clowns “...já existiam antes nonascimento da Commedia dell’Arte. Podemos dizer que as máscaras àitaliana nasceram de um casamento obsceno entre jogralesas, fabuladorese clowns; e, posteriormente, depois de um incesto, a Commedia pariu

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dezenas de clowns.”

Surgida no século XVI, na Itália, e se espalhando depois pelaEuropa, a Commedia dell’Arte tem em seus personagens fixos forteslaços com os atuais palhaços. Profissionalíssimos, os comediantesdell’arte eram cômicos por excelência, com grande domínio do corpoe da palavra, da mímica, do canto, da dança e de muitas outrashabilidades, como acrobacia, pirofagia, funambulismo etc; e eram,sobretudo, exímios improvisadores, já que não trabalhavam com umtexto pré-estabelecido, mas com uma espécie de roteiro base a quechamavam canovaccio. Todas essas características e habilidades foramherdadas pelo clown.

Além disso, o trabalho em dupla realizado pelos zannis -personagens que representavam os criados no enredo da comédiaitaliana – também passou a ser realizado pelos palhaços modernos.

Na commedia dell´art apareceram, de certa forma,resquícios da dupla de cômicos, os zanni, servos dacommedia dell´arte, cuja relação se aperfeiçoará nosclowns. A eles cabia a tarefa de provocar o maior númerode cenas cômicas, por suas atitudes ambíguas e suastrapalhadas e trejeitos. Existiam dois tipos distintos dezanni: o primeiro fazia o público rir por sua astúcia,inteligência e engenhosidade. De respostas espirituosas,era arguto suficiente para fazer intrigas, blefar e enganaros patrões. Já o segundo tipo de criado era insensato,confuso e tolo. Na prática, porém, havia uma certa´´contaminação“ de um pelo outro. O primeiro zanni émais conhecido como Brighella e o segundo comoArlecchin.” (Burnier, 2001, p. 209)

No circo vemos esta herança personificada na dupla de clowns: oBranco, autoritário e arguto; e o Augusto, bobalhão e atrapalhado. Essadupla evoluiu chegando muitas vezes a se tornar um trio, composto peloBranco, pelo primeiro Augusto e pelo segundo Augusto (também chamadoToni, sobretudo no Brasil). Segundo Lecoq (1997), o jogo funciona assim:o Branco pede ao Augusto para se abaixar para apanhar algo. O Augustose abaixa e o Branco aproveita para lhe dar um bom pontapé no traseiro.O Branco cai na gargalhada – e o público o acompanha. O Augusto tentase sair bem, ri igualmente para disfarçar sua estupidez. Entra o segundoAugusto e o primeiro Augusto quer fazer o mesmo com ele, lhe pregara mesma peça. O primeiro pede ao segundo para se abaixar e pegar algono chão. O segundo Augusto conhece o golpe e não se deixa enganar.Com jeito abobalhado, finge não compreender o pedido do primeiro. Paralhe explicar, o primeiro Augusto faz uma demonstração, abaixa-se e...leva um segundo pontapé. É o duplo furo do palhaço.

Mas como são esses palhaços, o Augusto e o Branco, quais suascaracterísticas? O Branco, segundo Ruiz (1987), “...pinta o rosto comtinta branca, usa vestimenta de lantejoulas – que herdou do Arlechinno

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da Commedia dell´Arte – traz na cabeça um chapeuzinho cônico e estásempre pronto a ludibriar o seu parceiro em cena...”. Já o Augusto,também chamado Toni ou excêntrico, é extravagante, absurdo, pícaro,surpreendente e provocador. Representa a liberdade, a anarquia, omundo infantil. Veste-se de qualquer maneira, com roupas largasou muito justas, coloridas, desalinhadas. Usa grandes sapatos,desproporcionais, o que transforma seu jeito de andar. Pinta apenasalgumas partes do rosto, aumentando-as, e faz uso de um nariz, afamosa bolinha vermelha, de látex, plástico ou esponja.

Sobre a relação desses dois tipos de palhaços, pelo que lutam epor que lutam, bem o disse Dario Fo (1998):

Os clowns, assim como os jograis e os cômicosdell’arte, sempre tratam do mesmo problema, qual seja,da fome: a fome de comida, a fome de sexo, mas tambémfome de dignidade, de identidade, de poder. Realmentea questão que abordam constantemente é de saberquem manda, quem grita. No mundo dos clowns sóexistem duas alternativas: ser dominado, resultandono eterno submisso, a vítima, como acontece naCommedia dell’Arte; ou dominar, assim surge a figurado patrão, o clown branco (o Louis), que já conhecemos.É ele que conduz o jogo, que dá as ordens, insulta,manda e desmanda. E os Toni, os Pagliacci, os Augustelutam para sobreviver, rebelando-se algumas vezes...mas normalmente se viram (FO, 1998, p. 305).

Há um outro tipo de palhaço, o Tramp, “...uma figura rústica emarginalizada, um vagabundo errante, que trazia o rosto dominado pelacor preta...”, resultado da Guerra de Secessão dos Estados Unidos daAmérica, “...que deixou milhares de vítimas maltrapilhas vagando pelasestradas...” (BOLOGNESI, 2003, p.78). O Tramp passou a integrar oespetáculo junto com o Augusto e o clown Branco, mas tal qual suaorigem, permaneceu à margem do picadeiro. Um de seus maioresrepresentantes foi Emmett Kelly, que aparece no filme “O maior espetáculoda terra”, de Cécill B. De Mille, de 1952.

No cinema encontramos também grandes palhaços, com todas ascaracterísticas identificatórias que apontamos acima. O Carlito, deCharles Chaplin, era um maravilhoso Tramp. A dupla Oliver Hardy (ogordo) e Stan Laurel (o magro), é um excelente exemplo do jogo de forçasexistentes entre o clown Branco (Hardy) e o Augusto (Laurel). BusterKeaton e Harold Loyd são dois augustos e os irmãos Marx – Grouxo,Chico e Harpo - formam um trio em que podemos vislumbrar um Branco,um Augusto e um contra-Augusto.

Eternamente apaixonados pela vida, os palhaços não pensam nofuturo e vivem o presente com intensidade plena. O palhaço e pedagogoespanhol Jesús Jara diz que o clown “age segundo sente e sente segundovive”, acrescentando algumas características deste fascinante

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personagem: ser sempre autêntico, sincero e espontâneo; olhar clarocomo um espelho, no qual nos vemos refletidos; mostrar suas intençõesabertamente, mesmo quando tenta enganar; possuir riqueza expressivae pessoal. O palhaço quer se comunicar e para isso rompe todas abarreiras que o impedem de chegar ao outro – no teatro, pulveriza achamada “quarta parede”. Ele é terno e, se exagera, o faz devido à paixãocom que se relaciona com as coisas e as pessoas. Não se prende a nada,passa de um estado emocional a outro: chora e logo em seguida, por ummotivo fútil qualquer, cai na gargalhada.

O palhaço quer realizar grandes feitos, mas se encanta com aspequenas coisas que encontra no meio do caminho, como a criança queganha um brinquedo e o põe de lado para brincar com a caixa, o invólucro.

O palhaço possui uma lógica própria, que parece revirar o mundode cabeça pra baixo. Para ele, uma imagem vale mais que mil palavrase se alguém diz: “Cai a noite”, imediatamente começa a procurá-la pelachão. Curioso, atento a tudo, nada lhe escapa. Esteja onde estiver, nomeio de uma ação importante, se passa um avião, ele pára tudo para sedeliciar com aquela passagem súbita. Ele quer se divertir, mas não buscaprovocar o riso, este nasce “...como consequência do choque entre seuespírito e sua lógica, por um lado, e os da sociedade e dos demais, poroutro” (JARA, s/ data, p.74).

Criatura de mil faces, o palhaço nasceu para nos fazer rir e nosemocionar. Lírico e engraçado, ele reúne em si uma gama decaracterísticas. É singular e plural, e na sua pluralidade nos revela suasidentificações: quer esteja no picadeiro, no palco, na feira ou na rua;pintado ou de cara limpa; parlapatão ou mímico; exagerado ou contido;astuto ou bobalhão... portando ou não uma bolinha vermelha de látex,plástico ou esponja.

É preciso agora frear a compulsão digressiva, mas antes, e parafechar com chave de ouro, ouçamos o que diz a pesquisadora MariaAlice Viveiros de Castro, a respeito da necessidade do riso e da funçãosocial do palhaço:

...Rimos porque é bom e isso basta. O prazer tem sentidoem si mesmo, não precisa de explicação. E aí talvez estejaum dos pontos mais importantes da figura do palhaço:sua gratuidade. Sua função social é fazer rir e dar prazer.Ele não descobre as leis que regem o universo, mas nosfaz viver com mais felicidade. E esta é sua incomparávelfunção na sociedade. Enquanto milhões se dedicam àsnobres tarefas de matar, se apossar de territóriosvizinhos e acumular riquezas, o palhaço empenha-seem provocar o riso de seus semelhantes. Ele não sededica às grandes questões do espírito nem às “altasprosopopéias” filosóficas; gasta seu tempo e o nossocom... bobagens (CASTRO, 2005, p.12).

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Como bem definiu Maria Alice, “o palhaço é o sacerdote dabesteira, das inutilidades, da bobeira...”. Essencial e santa bobeira!

REFERÊNCIAS

BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp,2003.BURNIER, Luiz Otávio. A arte de Ator: da Técnica à Representação.Campinas: Editora da Unicamp, 2001.CASTRO, Alice Viveiros. O Elogio da Bobagem – Palhaços no Brasil eno Mundo. Rio de Janeiro: Família Bastos Editora, 2005.CASTRO, Ana Vázquez. El Clown, ese ser único. Revista do Lume.UNICAMP – LUME – COCEN. Campinas: UNICAMP. Nº 4, março 2002.FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. São Paulo: Senac, 1998.JARA, Jesús. El clown, um navegante de las emociones. Colección“Temas de Educación, Artística”, 4ª edição. Sevilha, Espanha:PROEXDRA (Associación de Profesores por la Expresión Dramática emEspaña), s/ data.LECOQ, Jacques. Lê Corps Poétique. Paris: ACTES SUD, 1997.MOURÃO, Milton. Identidades. In: RUBIM, A. A. C (Org). Cultura eAtualidade. Salvador: Edufba, 2005.RUIZ, Roberto. Hoje Tem Espetáculo? – As origens do circo no Brasil.Rio de Janeiro: Inacen, 1987.

Palhaço Xuxo no camarim do Teatro Waldemar Henrique(Lucélia Bassalo).

Mix17 (acervo).