uma anÁlise conceitual da relaÇÃo entre psique e...

96
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO: OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO Uberlândia, Minas Gerais 2015

Upload: others

Post on 15-Dec-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLAcircNDIA

INSTITUTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA

UMA ANAacuteLISE CONCEITUAL DA RELACcedilAtildeO ENTRE

PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO

OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO

Uberlacircndia Minas Gerais

2015

ii

RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA

UMA ANAacuteLISE CONCEITUAL DA RELACcedilAtildeO ENTRE

PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO

OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO

Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa

de Poacutes Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade

Federal de Uberlacircndia (POSFIL-UFU) como

parte dos requisitos necessaacuterios para a obtenccedilatildeo

do Grau de Mestre em Filosofia

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Filosofia

Linha de Pesquisa Loacutegica Conhecimento e

Ontologia

Orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira

Uberlacircndia Minas Gerais

2015

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

Sistema de Bibliotecas da UFU MG Brasil

L732a

2015

Lima Ricardo Pereira Santos

Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo em

Agostinho os rudimentos do problema mente-corpo Ricardo Pereira

Santos Lima - 2015

84 f

Orientador Anselmo Tadeu Ferreira

Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Uberlacircndia

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Inclui bibliografia

1 Filosofia - Teses 2 Agostinho Santo Bispo de Hipona 354-430

- Criacutetica e interpretaccedilatildeo - Teses 3 Corpo e mente - Teses 4 Metafiacutesica -

Teses I Ferreira Anselmo Tadeu II Universidade Federal de

Uberlacircndia Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia III Tiacutetulo

CDU 1

iii

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA

UMA ANAacuteLISE CONCEITUAL DA RELACcedilAtildeO ENTRE

PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO

OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO

Uberlacircndia 26 de agosto de 2015

________________________________________________________

(Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Roberto Hofmeister Pich ndash PPGFIL-PUCRS)

iv

Em primeiro lugar dedico esta dissertaccedilatildeo a uma pessoa

que apesar de natildeo compreender muito bem o que eu

estudo e por qual razatildeo eu estudo sempre me apoiou e

teve orgulho de mim Obrigado por sempre se importar

com a minha felicidade Ricardo Tiradentes de Lima

meu querido pai

Agrave minha matildee Carmeluacutecia Pereira dos Santos que me

nutriu com os alimentos do corpo e do espiacuterito Obrigado

por sempre estar ao meu lado mesmo sem concordar com

minhas escolhas

Agrave minha avoacute Carmen Luacutecia de Oliveira Lima minha

grande incentivadora minha mecenas Tenho plena

convicccedilatildeo de que sem vocecirc eu nunca seria a pessoa e o

estudante que sou Obrigado por sempre fazer o

impossiacutevel em prol da minha formaccedilatildeo acadecircmica e

pessoal

Agraves minhas irmatildes Thaynara Tiradentes de Lima e Sofia

Agostinho Santos as quais satildeo fontes de inspiraccedilatildeo e

causa motriz de bondade A singular existecircncia de vocecircs

evidencia como o mundo pode ser puro e cacircndido

Obrigado pelos momentos singulares de demonstraccedilatildeo

afetiva

E finalmente poreacutem natildeo menos importante agrave minha

esposa Maria Carolina Silva Ferreira um verdadeiro

sinocircnimo de amor compreensatildeo coragem e determinaccedilatildeo

Eacute simplesmente impossiacutevel natildeo admitir como vocecirc eacute

importante na minha vida Obrigado por estar ao meu lado

todos os dias por me ouvir por me confortar e por me

encorajar a seguir em frente naqueles momentos em que

eu me sentia impotente diante dos obstaacuteculos

v

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeccedilo ao meu orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira pela

presente orientaccedilatildeo por sempre ter me acompanhado desde os primeiros periacuteodos da

graduaccedilatildeo e sobretudo por me deixar apaixonar pela beleza da Idade Meacutedia

Agradeccedilo ao querido amigo Prof Dr Leonardo Ferreira Almada por sempre estar ao

meu lado como apoiador e estimulador Devo-lhe muitas coisas obrigado por estender

sempre seu apoio para aleacutem dos muros do Instituto de Filosofia muitas vezes me recebendo

na sua casa obrigado por me municiar com seus conhecimentos ateacute mesmo por me dar livros

cujo valor pessoal e filosoacutefico lhe satildeo inestimaacuteveis e obrigado por me ensinar a pensar a

filosofia em vista de problemas

Agradeccedilo tambeacutem aos excelentes docentes do Instituto de Letras da Universidade Federal de

Uberlacircndia (ILEEL-UFU) que me proporcionaram a abertura de novos horizontes e

conhecimentos Em especial agradeccedilo a meu padrinho Prof Dr Steacutefano Paschoal pelo

conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria alematilde Agradeccedilo-lhe sobretudo pela amizade e

pela chance de me fornecer conhecimento necessaacuterio para conseguir um intercacircmbio

acadecircmico na cidade de Freiburg Agradeccedilo tambeacutem ao Prof Dr Joatildeo Bortolanza pela

amizade e pelo conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria latina

Agradeccedilo ao Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider por sempre me encorajar no estudo da

Filosofia Medieval Sou profundamente grato pelas diversas orientaccedilotildees pelas excelentes

aulas de Pedro Abelardo Ockham e Filosofia Aacuterabe Ademais agradeccedilo-lhe pelo apoio

acadecircmico e pelo incentivo a estudar na Alemanha

Agradeccedilo ao Prof Dr Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS) por ter aceitado de bom grado

o convite para participar de minha banca de mestrado Agradeccedilo ainda pela profunda atenccedilatildeo

e pelo interesse em acompanhar minha pesquisa Espero poder corresponder agrave altura do

interesse a fim de podermos trabalhar juntos num frutiacutefero projeto futuro

Agradeccedilo ao Prof Dr Christof Muumlller diretor do Zentrum fuumlr Augustinus-Forschung (ZAF)

da Universidade de Wuumlrzburg ao Prof Dr Andreas Grote redator da Augustinus-Lexikon e

ao Prof Dr Cornelius Mayer iniciador do projeto do ZAF e editor da Augustinus-Lexikon

pela hospitalidade e abertura do espaccedilo do ZAF para fins de pesquisa

Agradeccedilo aos meus amigos Ciro Amaro Danielle Antpack Emanuel Stobbe Faacutebio Julio

Leonardo Trevisan Lorena Cunha Lucas Martini Lucas Nogueira Moiseacutes Stobbe

Marta Melo Nuacutebio Raules Pedro Benedetti Rebert Borges Ruan Coelho Suellen

Teixeira e William Chagas por tornarem mais prazerosa a minha passagem pelo mestrado

Agradeccedilo agrave minha avoacute materna Maria aos meus tios Beatriz Joseacute Carlos Mauro e

Roberto e aos meus primos Estevatildeo Germano e Matheus por sempre torcerem por mim

Agradeccedilo agrave Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) ao Instituto de Filosofia (IFILO) agrave

coordenaccedilatildeo de poacutes graduaccedilatildeo em Filosofia (POSFIL) aos docentes e teacutecnicos pela chance de

concretizar um dos meus sonhos

Finalmente agradeccedilo agrave CAPES pela fundamental contribuiccedilatildeo financeira agrave elaboraccedilatildeo da

pesquisa de mestrado cujo resultado se dispotildee materializado nesta pesquisa

vi

ldquosic itur ad astrardquo

ldquoassim se vai agraves estrelasrdquo

(Virgiacutelio Eneida IX 641)

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 2: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

ii

RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA

UMA ANAacuteLISE CONCEITUAL DA RELACcedilAtildeO ENTRE

PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO

OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO

Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa

de Poacutes Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade

Federal de Uberlacircndia (POSFIL-UFU) como

parte dos requisitos necessaacuterios para a obtenccedilatildeo

do Grau de Mestre em Filosofia

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Filosofia

Linha de Pesquisa Loacutegica Conhecimento e

Ontologia

Orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira

Uberlacircndia Minas Gerais

2015

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

Sistema de Bibliotecas da UFU MG Brasil

L732a

2015

Lima Ricardo Pereira Santos

Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo em

Agostinho os rudimentos do problema mente-corpo Ricardo Pereira

Santos Lima - 2015

84 f

Orientador Anselmo Tadeu Ferreira

Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Uberlacircndia

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Inclui bibliografia

1 Filosofia - Teses 2 Agostinho Santo Bispo de Hipona 354-430

- Criacutetica e interpretaccedilatildeo - Teses 3 Corpo e mente - Teses 4 Metafiacutesica -

Teses I Ferreira Anselmo Tadeu II Universidade Federal de

Uberlacircndia Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia III Tiacutetulo

CDU 1

iii

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA

UMA ANAacuteLISE CONCEITUAL DA RELACcedilAtildeO ENTRE

PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO

OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO

Uberlacircndia 26 de agosto de 2015

________________________________________________________

(Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Roberto Hofmeister Pich ndash PPGFIL-PUCRS)

iv

Em primeiro lugar dedico esta dissertaccedilatildeo a uma pessoa

que apesar de natildeo compreender muito bem o que eu

estudo e por qual razatildeo eu estudo sempre me apoiou e

teve orgulho de mim Obrigado por sempre se importar

com a minha felicidade Ricardo Tiradentes de Lima

meu querido pai

Agrave minha matildee Carmeluacutecia Pereira dos Santos que me

nutriu com os alimentos do corpo e do espiacuterito Obrigado

por sempre estar ao meu lado mesmo sem concordar com

minhas escolhas

Agrave minha avoacute Carmen Luacutecia de Oliveira Lima minha

grande incentivadora minha mecenas Tenho plena

convicccedilatildeo de que sem vocecirc eu nunca seria a pessoa e o

estudante que sou Obrigado por sempre fazer o

impossiacutevel em prol da minha formaccedilatildeo acadecircmica e

pessoal

Agraves minhas irmatildes Thaynara Tiradentes de Lima e Sofia

Agostinho Santos as quais satildeo fontes de inspiraccedilatildeo e

causa motriz de bondade A singular existecircncia de vocecircs

evidencia como o mundo pode ser puro e cacircndido

Obrigado pelos momentos singulares de demonstraccedilatildeo

afetiva

E finalmente poreacutem natildeo menos importante agrave minha

esposa Maria Carolina Silva Ferreira um verdadeiro

sinocircnimo de amor compreensatildeo coragem e determinaccedilatildeo

Eacute simplesmente impossiacutevel natildeo admitir como vocecirc eacute

importante na minha vida Obrigado por estar ao meu lado

todos os dias por me ouvir por me confortar e por me

encorajar a seguir em frente naqueles momentos em que

eu me sentia impotente diante dos obstaacuteculos

v

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeccedilo ao meu orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira pela

presente orientaccedilatildeo por sempre ter me acompanhado desde os primeiros periacuteodos da

graduaccedilatildeo e sobretudo por me deixar apaixonar pela beleza da Idade Meacutedia

Agradeccedilo ao querido amigo Prof Dr Leonardo Ferreira Almada por sempre estar ao

meu lado como apoiador e estimulador Devo-lhe muitas coisas obrigado por estender

sempre seu apoio para aleacutem dos muros do Instituto de Filosofia muitas vezes me recebendo

na sua casa obrigado por me municiar com seus conhecimentos ateacute mesmo por me dar livros

cujo valor pessoal e filosoacutefico lhe satildeo inestimaacuteveis e obrigado por me ensinar a pensar a

filosofia em vista de problemas

Agradeccedilo tambeacutem aos excelentes docentes do Instituto de Letras da Universidade Federal de

Uberlacircndia (ILEEL-UFU) que me proporcionaram a abertura de novos horizontes e

conhecimentos Em especial agradeccedilo a meu padrinho Prof Dr Steacutefano Paschoal pelo

conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria alematilde Agradeccedilo-lhe sobretudo pela amizade e

pela chance de me fornecer conhecimento necessaacuterio para conseguir um intercacircmbio

acadecircmico na cidade de Freiburg Agradeccedilo tambeacutem ao Prof Dr Joatildeo Bortolanza pela

amizade e pelo conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria latina

Agradeccedilo ao Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider por sempre me encorajar no estudo da

Filosofia Medieval Sou profundamente grato pelas diversas orientaccedilotildees pelas excelentes

aulas de Pedro Abelardo Ockham e Filosofia Aacuterabe Ademais agradeccedilo-lhe pelo apoio

acadecircmico e pelo incentivo a estudar na Alemanha

Agradeccedilo ao Prof Dr Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS) por ter aceitado de bom grado

o convite para participar de minha banca de mestrado Agradeccedilo ainda pela profunda atenccedilatildeo

e pelo interesse em acompanhar minha pesquisa Espero poder corresponder agrave altura do

interesse a fim de podermos trabalhar juntos num frutiacutefero projeto futuro

Agradeccedilo ao Prof Dr Christof Muumlller diretor do Zentrum fuumlr Augustinus-Forschung (ZAF)

da Universidade de Wuumlrzburg ao Prof Dr Andreas Grote redator da Augustinus-Lexikon e

ao Prof Dr Cornelius Mayer iniciador do projeto do ZAF e editor da Augustinus-Lexikon

pela hospitalidade e abertura do espaccedilo do ZAF para fins de pesquisa

Agradeccedilo aos meus amigos Ciro Amaro Danielle Antpack Emanuel Stobbe Faacutebio Julio

Leonardo Trevisan Lorena Cunha Lucas Martini Lucas Nogueira Moiseacutes Stobbe

Marta Melo Nuacutebio Raules Pedro Benedetti Rebert Borges Ruan Coelho Suellen

Teixeira e William Chagas por tornarem mais prazerosa a minha passagem pelo mestrado

Agradeccedilo agrave minha avoacute materna Maria aos meus tios Beatriz Joseacute Carlos Mauro e

Roberto e aos meus primos Estevatildeo Germano e Matheus por sempre torcerem por mim

Agradeccedilo agrave Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) ao Instituto de Filosofia (IFILO) agrave

coordenaccedilatildeo de poacutes graduaccedilatildeo em Filosofia (POSFIL) aos docentes e teacutecnicos pela chance de

concretizar um dos meus sonhos

Finalmente agradeccedilo agrave CAPES pela fundamental contribuiccedilatildeo financeira agrave elaboraccedilatildeo da

pesquisa de mestrado cujo resultado se dispotildee materializado nesta pesquisa

vi

ldquosic itur ad astrardquo

ldquoassim se vai agraves estrelasrdquo

(Virgiacutelio Eneida IX 641)

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 3: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

Sistema de Bibliotecas da UFU MG Brasil

L732a

2015

Lima Ricardo Pereira Santos

Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo em

Agostinho os rudimentos do problema mente-corpo Ricardo Pereira

Santos Lima - 2015

84 f

Orientador Anselmo Tadeu Ferreira

Dissertaccedilatildeo (mestrado) - Universidade Federal de Uberlacircndia

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

Inclui bibliografia

1 Filosofia - Teses 2 Agostinho Santo Bispo de Hipona 354-430

- Criacutetica e interpretaccedilatildeo - Teses 3 Corpo e mente - Teses 4 Metafiacutesica -

Teses I Ferreira Anselmo Tadeu II Universidade Federal de

Uberlacircndia Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia III Tiacutetulo

CDU 1

iii

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA

UMA ANAacuteLISE CONCEITUAL DA RELACcedilAtildeO ENTRE

PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO

OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO

Uberlacircndia 26 de agosto de 2015

________________________________________________________

(Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Roberto Hofmeister Pich ndash PPGFIL-PUCRS)

iv

Em primeiro lugar dedico esta dissertaccedilatildeo a uma pessoa

que apesar de natildeo compreender muito bem o que eu

estudo e por qual razatildeo eu estudo sempre me apoiou e

teve orgulho de mim Obrigado por sempre se importar

com a minha felicidade Ricardo Tiradentes de Lima

meu querido pai

Agrave minha matildee Carmeluacutecia Pereira dos Santos que me

nutriu com os alimentos do corpo e do espiacuterito Obrigado

por sempre estar ao meu lado mesmo sem concordar com

minhas escolhas

Agrave minha avoacute Carmen Luacutecia de Oliveira Lima minha

grande incentivadora minha mecenas Tenho plena

convicccedilatildeo de que sem vocecirc eu nunca seria a pessoa e o

estudante que sou Obrigado por sempre fazer o

impossiacutevel em prol da minha formaccedilatildeo acadecircmica e

pessoal

Agraves minhas irmatildes Thaynara Tiradentes de Lima e Sofia

Agostinho Santos as quais satildeo fontes de inspiraccedilatildeo e

causa motriz de bondade A singular existecircncia de vocecircs

evidencia como o mundo pode ser puro e cacircndido

Obrigado pelos momentos singulares de demonstraccedilatildeo

afetiva

E finalmente poreacutem natildeo menos importante agrave minha

esposa Maria Carolina Silva Ferreira um verdadeiro

sinocircnimo de amor compreensatildeo coragem e determinaccedilatildeo

Eacute simplesmente impossiacutevel natildeo admitir como vocecirc eacute

importante na minha vida Obrigado por estar ao meu lado

todos os dias por me ouvir por me confortar e por me

encorajar a seguir em frente naqueles momentos em que

eu me sentia impotente diante dos obstaacuteculos

v

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeccedilo ao meu orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira pela

presente orientaccedilatildeo por sempre ter me acompanhado desde os primeiros periacuteodos da

graduaccedilatildeo e sobretudo por me deixar apaixonar pela beleza da Idade Meacutedia

Agradeccedilo ao querido amigo Prof Dr Leonardo Ferreira Almada por sempre estar ao

meu lado como apoiador e estimulador Devo-lhe muitas coisas obrigado por estender

sempre seu apoio para aleacutem dos muros do Instituto de Filosofia muitas vezes me recebendo

na sua casa obrigado por me municiar com seus conhecimentos ateacute mesmo por me dar livros

cujo valor pessoal e filosoacutefico lhe satildeo inestimaacuteveis e obrigado por me ensinar a pensar a

filosofia em vista de problemas

Agradeccedilo tambeacutem aos excelentes docentes do Instituto de Letras da Universidade Federal de

Uberlacircndia (ILEEL-UFU) que me proporcionaram a abertura de novos horizontes e

conhecimentos Em especial agradeccedilo a meu padrinho Prof Dr Steacutefano Paschoal pelo

conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria alematilde Agradeccedilo-lhe sobretudo pela amizade e

pela chance de me fornecer conhecimento necessaacuterio para conseguir um intercacircmbio

acadecircmico na cidade de Freiburg Agradeccedilo tambeacutem ao Prof Dr Joatildeo Bortolanza pela

amizade e pelo conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria latina

Agradeccedilo ao Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider por sempre me encorajar no estudo da

Filosofia Medieval Sou profundamente grato pelas diversas orientaccedilotildees pelas excelentes

aulas de Pedro Abelardo Ockham e Filosofia Aacuterabe Ademais agradeccedilo-lhe pelo apoio

acadecircmico e pelo incentivo a estudar na Alemanha

Agradeccedilo ao Prof Dr Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS) por ter aceitado de bom grado

o convite para participar de minha banca de mestrado Agradeccedilo ainda pela profunda atenccedilatildeo

e pelo interesse em acompanhar minha pesquisa Espero poder corresponder agrave altura do

interesse a fim de podermos trabalhar juntos num frutiacutefero projeto futuro

Agradeccedilo ao Prof Dr Christof Muumlller diretor do Zentrum fuumlr Augustinus-Forschung (ZAF)

da Universidade de Wuumlrzburg ao Prof Dr Andreas Grote redator da Augustinus-Lexikon e

ao Prof Dr Cornelius Mayer iniciador do projeto do ZAF e editor da Augustinus-Lexikon

pela hospitalidade e abertura do espaccedilo do ZAF para fins de pesquisa

Agradeccedilo aos meus amigos Ciro Amaro Danielle Antpack Emanuel Stobbe Faacutebio Julio

Leonardo Trevisan Lorena Cunha Lucas Martini Lucas Nogueira Moiseacutes Stobbe

Marta Melo Nuacutebio Raules Pedro Benedetti Rebert Borges Ruan Coelho Suellen

Teixeira e William Chagas por tornarem mais prazerosa a minha passagem pelo mestrado

Agradeccedilo agrave minha avoacute materna Maria aos meus tios Beatriz Joseacute Carlos Mauro e

Roberto e aos meus primos Estevatildeo Germano e Matheus por sempre torcerem por mim

Agradeccedilo agrave Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) ao Instituto de Filosofia (IFILO) agrave

coordenaccedilatildeo de poacutes graduaccedilatildeo em Filosofia (POSFIL) aos docentes e teacutecnicos pela chance de

concretizar um dos meus sonhos

Finalmente agradeccedilo agrave CAPES pela fundamental contribuiccedilatildeo financeira agrave elaboraccedilatildeo da

pesquisa de mestrado cujo resultado se dispotildee materializado nesta pesquisa

vi

ldquosic itur ad astrardquo

ldquoassim se vai agraves estrelasrdquo

(Virgiacutelio Eneida IX 641)

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 4: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

iii

FOLHA DE APROVACcedilAtildeO

RICARDO PEREIRA SANTOS LIMA

UMA ANAacuteLISE CONCEITUAL DA RELACcedilAtildeO ENTRE

PSIQUE E CORPO EM AGOSTINHO

OS RUDIMENTOS DO PROBLEMA MENTE-CORPO

Uberlacircndia 26 de agosto de 2015

________________________________________________________

(Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider ndash POSFIL-UFU)

________________________________________________________

(Prof Dr Roberto Hofmeister Pich ndash PPGFIL-PUCRS)

iv

Em primeiro lugar dedico esta dissertaccedilatildeo a uma pessoa

que apesar de natildeo compreender muito bem o que eu

estudo e por qual razatildeo eu estudo sempre me apoiou e

teve orgulho de mim Obrigado por sempre se importar

com a minha felicidade Ricardo Tiradentes de Lima

meu querido pai

Agrave minha matildee Carmeluacutecia Pereira dos Santos que me

nutriu com os alimentos do corpo e do espiacuterito Obrigado

por sempre estar ao meu lado mesmo sem concordar com

minhas escolhas

Agrave minha avoacute Carmen Luacutecia de Oliveira Lima minha

grande incentivadora minha mecenas Tenho plena

convicccedilatildeo de que sem vocecirc eu nunca seria a pessoa e o

estudante que sou Obrigado por sempre fazer o

impossiacutevel em prol da minha formaccedilatildeo acadecircmica e

pessoal

Agraves minhas irmatildes Thaynara Tiradentes de Lima e Sofia

Agostinho Santos as quais satildeo fontes de inspiraccedilatildeo e

causa motriz de bondade A singular existecircncia de vocecircs

evidencia como o mundo pode ser puro e cacircndido

Obrigado pelos momentos singulares de demonstraccedilatildeo

afetiva

E finalmente poreacutem natildeo menos importante agrave minha

esposa Maria Carolina Silva Ferreira um verdadeiro

sinocircnimo de amor compreensatildeo coragem e determinaccedilatildeo

Eacute simplesmente impossiacutevel natildeo admitir como vocecirc eacute

importante na minha vida Obrigado por estar ao meu lado

todos os dias por me ouvir por me confortar e por me

encorajar a seguir em frente naqueles momentos em que

eu me sentia impotente diante dos obstaacuteculos

v

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeccedilo ao meu orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira pela

presente orientaccedilatildeo por sempre ter me acompanhado desde os primeiros periacuteodos da

graduaccedilatildeo e sobretudo por me deixar apaixonar pela beleza da Idade Meacutedia

Agradeccedilo ao querido amigo Prof Dr Leonardo Ferreira Almada por sempre estar ao

meu lado como apoiador e estimulador Devo-lhe muitas coisas obrigado por estender

sempre seu apoio para aleacutem dos muros do Instituto de Filosofia muitas vezes me recebendo

na sua casa obrigado por me municiar com seus conhecimentos ateacute mesmo por me dar livros

cujo valor pessoal e filosoacutefico lhe satildeo inestimaacuteveis e obrigado por me ensinar a pensar a

filosofia em vista de problemas

Agradeccedilo tambeacutem aos excelentes docentes do Instituto de Letras da Universidade Federal de

Uberlacircndia (ILEEL-UFU) que me proporcionaram a abertura de novos horizontes e

conhecimentos Em especial agradeccedilo a meu padrinho Prof Dr Steacutefano Paschoal pelo

conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria alematilde Agradeccedilo-lhe sobretudo pela amizade e

pela chance de me fornecer conhecimento necessaacuterio para conseguir um intercacircmbio

acadecircmico na cidade de Freiburg Agradeccedilo tambeacutem ao Prof Dr Joatildeo Bortolanza pela

amizade e pelo conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria latina

Agradeccedilo ao Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider por sempre me encorajar no estudo da

Filosofia Medieval Sou profundamente grato pelas diversas orientaccedilotildees pelas excelentes

aulas de Pedro Abelardo Ockham e Filosofia Aacuterabe Ademais agradeccedilo-lhe pelo apoio

acadecircmico e pelo incentivo a estudar na Alemanha

Agradeccedilo ao Prof Dr Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS) por ter aceitado de bom grado

o convite para participar de minha banca de mestrado Agradeccedilo ainda pela profunda atenccedilatildeo

e pelo interesse em acompanhar minha pesquisa Espero poder corresponder agrave altura do

interesse a fim de podermos trabalhar juntos num frutiacutefero projeto futuro

Agradeccedilo ao Prof Dr Christof Muumlller diretor do Zentrum fuumlr Augustinus-Forschung (ZAF)

da Universidade de Wuumlrzburg ao Prof Dr Andreas Grote redator da Augustinus-Lexikon e

ao Prof Dr Cornelius Mayer iniciador do projeto do ZAF e editor da Augustinus-Lexikon

pela hospitalidade e abertura do espaccedilo do ZAF para fins de pesquisa

Agradeccedilo aos meus amigos Ciro Amaro Danielle Antpack Emanuel Stobbe Faacutebio Julio

Leonardo Trevisan Lorena Cunha Lucas Martini Lucas Nogueira Moiseacutes Stobbe

Marta Melo Nuacutebio Raules Pedro Benedetti Rebert Borges Ruan Coelho Suellen

Teixeira e William Chagas por tornarem mais prazerosa a minha passagem pelo mestrado

Agradeccedilo agrave minha avoacute materna Maria aos meus tios Beatriz Joseacute Carlos Mauro e

Roberto e aos meus primos Estevatildeo Germano e Matheus por sempre torcerem por mim

Agradeccedilo agrave Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) ao Instituto de Filosofia (IFILO) agrave

coordenaccedilatildeo de poacutes graduaccedilatildeo em Filosofia (POSFIL) aos docentes e teacutecnicos pela chance de

concretizar um dos meus sonhos

Finalmente agradeccedilo agrave CAPES pela fundamental contribuiccedilatildeo financeira agrave elaboraccedilatildeo da

pesquisa de mestrado cujo resultado se dispotildee materializado nesta pesquisa

vi

ldquosic itur ad astrardquo

ldquoassim se vai agraves estrelasrdquo

(Virgiacutelio Eneida IX 641)

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 5: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

iv

Em primeiro lugar dedico esta dissertaccedilatildeo a uma pessoa

que apesar de natildeo compreender muito bem o que eu

estudo e por qual razatildeo eu estudo sempre me apoiou e

teve orgulho de mim Obrigado por sempre se importar

com a minha felicidade Ricardo Tiradentes de Lima

meu querido pai

Agrave minha matildee Carmeluacutecia Pereira dos Santos que me

nutriu com os alimentos do corpo e do espiacuterito Obrigado

por sempre estar ao meu lado mesmo sem concordar com

minhas escolhas

Agrave minha avoacute Carmen Luacutecia de Oliveira Lima minha

grande incentivadora minha mecenas Tenho plena

convicccedilatildeo de que sem vocecirc eu nunca seria a pessoa e o

estudante que sou Obrigado por sempre fazer o

impossiacutevel em prol da minha formaccedilatildeo acadecircmica e

pessoal

Agraves minhas irmatildes Thaynara Tiradentes de Lima e Sofia

Agostinho Santos as quais satildeo fontes de inspiraccedilatildeo e

causa motriz de bondade A singular existecircncia de vocecircs

evidencia como o mundo pode ser puro e cacircndido

Obrigado pelos momentos singulares de demonstraccedilatildeo

afetiva

E finalmente poreacutem natildeo menos importante agrave minha

esposa Maria Carolina Silva Ferreira um verdadeiro

sinocircnimo de amor compreensatildeo coragem e determinaccedilatildeo

Eacute simplesmente impossiacutevel natildeo admitir como vocecirc eacute

importante na minha vida Obrigado por estar ao meu lado

todos os dias por me ouvir por me confortar e por me

encorajar a seguir em frente naqueles momentos em que

eu me sentia impotente diante dos obstaacuteculos

v

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeccedilo ao meu orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira pela

presente orientaccedilatildeo por sempre ter me acompanhado desde os primeiros periacuteodos da

graduaccedilatildeo e sobretudo por me deixar apaixonar pela beleza da Idade Meacutedia

Agradeccedilo ao querido amigo Prof Dr Leonardo Ferreira Almada por sempre estar ao

meu lado como apoiador e estimulador Devo-lhe muitas coisas obrigado por estender

sempre seu apoio para aleacutem dos muros do Instituto de Filosofia muitas vezes me recebendo

na sua casa obrigado por me municiar com seus conhecimentos ateacute mesmo por me dar livros

cujo valor pessoal e filosoacutefico lhe satildeo inestimaacuteveis e obrigado por me ensinar a pensar a

filosofia em vista de problemas

Agradeccedilo tambeacutem aos excelentes docentes do Instituto de Letras da Universidade Federal de

Uberlacircndia (ILEEL-UFU) que me proporcionaram a abertura de novos horizontes e

conhecimentos Em especial agradeccedilo a meu padrinho Prof Dr Steacutefano Paschoal pelo

conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria alematilde Agradeccedilo-lhe sobretudo pela amizade e

pela chance de me fornecer conhecimento necessaacuterio para conseguir um intercacircmbio

acadecircmico na cidade de Freiburg Agradeccedilo tambeacutem ao Prof Dr Joatildeo Bortolanza pela

amizade e pelo conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria latina

Agradeccedilo ao Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider por sempre me encorajar no estudo da

Filosofia Medieval Sou profundamente grato pelas diversas orientaccedilotildees pelas excelentes

aulas de Pedro Abelardo Ockham e Filosofia Aacuterabe Ademais agradeccedilo-lhe pelo apoio

acadecircmico e pelo incentivo a estudar na Alemanha

Agradeccedilo ao Prof Dr Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS) por ter aceitado de bom grado

o convite para participar de minha banca de mestrado Agradeccedilo ainda pela profunda atenccedilatildeo

e pelo interesse em acompanhar minha pesquisa Espero poder corresponder agrave altura do

interesse a fim de podermos trabalhar juntos num frutiacutefero projeto futuro

Agradeccedilo ao Prof Dr Christof Muumlller diretor do Zentrum fuumlr Augustinus-Forschung (ZAF)

da Universidade de Wuumlrzburg ao Prof Dr Andreas Grote redator da Augustinus-Lexikon e

ao Prof Dr Cornelius Mayer iniciador do projeto do ZAF e editor da Augustinus-Lexikon

pela hospitalidade e abertura do espaccedilo do ZAF para fins de pesquisa

Agradeccedilo aos meus amigos Ciro Amaro Danielle Antpack Emanuel Stobbe Faacutebio Julio

Leonardo Trevisan Lorena Cunha Lucas Martini Lucas Nogueira Moiseacutes Stobbe

Marta Melo Nuacutebio Raules Pedro Benedetti Rebert Borges Ruan Coelho Suellen

Teixeira e William Chagas por tornarem mais prazerosa a minha passagem pelo mestrado

Agradeccedilo agrave minha avoacute materna Maria aos meus tios Beatriz Joseacute Carlos Mauro e

Roberto e aos meus primos Estevatildeo Germano e Matheus por sempre torcerem por mim

Agradeccedilo agrave Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) ao Instituto de Filosofia (IFILO) agrave

coordenaccedilatildeo de poacutes graduaccedilatildeo em Filosofia (POSFIL) aos docentes e teacutecnicos pela chance de

concretizar um dos meus sonhos

Finalmente agradeccedilo agrave CAPES pela fundamental contribuiccedilatildeo financeira agrave elaboraccedilatildeo da

pesquisa de mestrado cujo resultado se dispotildee materializado nesta pesquisa

vi

ldquosic itur ad astrardquo

ldquoassim se vai agraves estrelasrdquo

(Virgiacutelio Eneida IX 641)

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 6: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

v

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeccedilo ao meu orientador Prof Dr Anselmo Tadeu Ferreira pela

presente orientaccedilatildeo por sempre ter me acompanhado desde os primeiros periacuteodos da

graduaccedilatildeo e sobretudo por me deixar apaixonar pela beleza da Idade Meacutedia

Agradeccedilo ao querido amigo Prof Dr Leonardo Ferreira Almada por sempre estar ao

meu lado como apoiador e estimulador Devo-lhe muitas coisas obrigado por estender

sempre seu apoio para aleacutem dos muros do Instituto de Filosofia muitas vezes me recebendo

na sua casa obrigado por me municiar com seus conhecimentos ateacute mesmo por me dar livros

cujo valor pessoal e filosoacutefico lhe satildeo inestimaacuteveis e obrigado por me ensinar a pensar a

filosofia em vista de problemas

Agradeccedilo tambeacutem aos excelentes docentes do Instituto de Letras da Universidade Federal de

Uberlacircndia (ILEEL-UFU) que me proporcionaram a abertura de novos horizontes e

conhecimentos Em especial agradeccedilo a meu padrinho Prof Dr Steacutefano Paschoal pelo

conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria alematilde Agradeccedilo-lhe sobretudo pela amizade e

pela chance de me fornecer conhecimento necessaacuterio para conseguir um intercacircmbio

acadecircmico na cidade de Freiburg Agradeccedilo tambeacutem ao Prof Dr Joatildeo Bortolanza pela

amizade e pelo conhecimento da liacutengua cultura e histoacuteria latina

Agradeccedilo ao Prof Dr Jakob Hans Josef Schneider por sempre me encorajar no estudo da

Filosofia Medieval Sou profundamente grato pelas diversas orientaccedilotildees pelas excelentes

aulas de Pedro Abelardo Ockham e Filosofia Aacuterabe Ademais agradeccedilo-lhe pelo apoio

acadecircmico e pelo incentivo a estudar na Alemanha

Agradeccedilo ao Prof Dr Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS) por ter aceitado de bom grado

o convite para participar de minha banca de mestrado Agradeccedilo ainda pela profunda atenccedilatildeo

e pelo interesse em acompanhar minha pesquisa Espero poder corresponder agrave altura do

interesse a fim de podermos trabalhar juntos num frutiacutefero projeto futuro

Agradeccedilo ao Prof Dr Christof Muumlller diretor do Zentrum fuumlr Augustinus-Forschung (ZAF)

da Universidade de Wuumlrzburg ao Prof Dr Andreas Grote redator da Augustinus-Lexikon e

ao Prof Dr Cornelius Mayer iniciador do projeto do ZAF e editor da Augustinus-Lexikon

pela hospitalidade e abertura do espaccedilo do ZAF para fins de pesquisa

Agradeccedilo aos meus amigos Ciro Amaro Danielle Antpack Emanuel Stobbe Faacutebio Julio

Leonardo Trevisan Lorena Cunha Lucas Martini Lucas Nogueira Moiseacutes Stobbe

Marta Melo Nuacutebio Raules Pedro Benedetti Rebert Borges Ruan Coelho Suellen

Teixeira e William Chagas por tornarem mais prazerosa a minha passagem pelo mestrado

Agradeccedilo agrave minha avoacute materna Maria aos meus tios Beatriz Joseacute Carlos Mauro e

Roberto e aos meus primos Estevatildeo Germano e Matheus por sempre torcerem por mim

Agradeccedilo agrave Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) ao Instituto de Filosofia (IFILO) agrave

coordenaccedilatildeo de poacutes graduaccedilatildeo em Filosofia (POSFIL) aos docentes e teacutecnicos pela chance de

concretizar um dos meus sonhos

Finalmente agradeccedilo agrave CAPES pela fundamental contribuiccedilatildeo financeira agrave elaboraccedilatildeo da

pesquisa de mestrado cujo resultado se dispotildee materializado nesta pesquisa

vi

ldquosic itur ad astrardquo

ldquoassim se vai agraves estrelasrdquo

(Virgiacutelio Eneida IX 641)

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 7: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

vi

ldquosic itur ad astrardquo

ldquoassim se vai agraves estrelasrdquo

(Virgiacutelio Eneida IX 641)

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 8: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual

vii

RESUMO

LIMA Ricardo Pereira dos Santos Uma anaacutelise conceitual da relaccedilatildeo entre psique e corpo

em Agostinho Os rudimentos do problema mente-corpo 2015 84 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

ndash Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

Pretendemos neste trabalho (i) demonstrar o modo como Agostinho compreende e emprega

os conceitos de corpo e vida mental para que em seguida possamos (ii) apresentar propostas

de interpretaccedilatildeo da filosofia agostiniana no que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre corpo e vida

mental (ou psique) Na primeira parte desta dissertaccedilatildeo trabalharemos com a anaacutelise

semacircntico-conceitual da terminologia agostiniana correspondente agrave vida mental humana Com

efeito examinaremos o emprego e significado dos termos anima animus spiritus mens

ratio intellectus e intelligentia Na segunda parte faremos uma anaacutelise do modo como

Agostinho compreende o corpo humano Abordaremos aspectos teoloacutegicos morais

ontoloacutegicos e antropoloacutegicos do conceito Na terceira e uacuteltima parte apresentaremos trecircs

propostas de interpretaccedilatildeo do pensamento agostiniano que concordam com o modo como

Agostinho compreende a psique o corpo e sua relaccedilatildeo As duas primeiras propostas

interpretativas satildeo reconhecidas e consideradas pelos comentadores (o dualismo de

substacircncias e o monismo idealista) ao passo que a terceira representa a nossa hipoacutetese de

interpretaccedilatildeo o psicossomatismo Concluimos que a partir do modo como Agostinho

compreende psique corpo e suas relaccedilotildees eacute possiacutevel pensar as relaccedilotildees mente-corpo no

interior do paradigma psicossomaacutetico

Palavras-chave corpo mente metafiacutesica psicossomatismo

viii

ABSTRACT

LIMA Ricardo Pereira dos Santos A conceptual analysis of the relation between psyche and

body in Augustine The rudiments of the mind-body problem 2015 84 p Thesis (Master) ndash

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlacircndia (IFILO - UFU) Instituto de

Filosofia Universidade Federal de Uberlacircndia Uberlacircndia 2015

The aim of this thesis is (i) to demonstrate how Augustine understands and employs the

concepts of body and mental life so that then we would like (ii) to present some interpretative

proposals concerning the relation between body and mental life (or psyche) in Augustinelsquos

tought In the first section of this thesis we will analyse the semantic-conceptual meanings of

the Augustinian terminology to the many aspects of the human mental life We will look over

how Augustine employs and signifies the terms anima animus spiritus mens ratio

intellectus and intelligentia In the second section we will analyse the way that Augustine

understands the human body approaching theological moral ontological and anthropological

aspects of this concept In the third and last section we will present three interpretative

proposals that agree on how Augustine understands the psyche the body and their

relationship The two first proposals are very known and reputable by commentators (the

substance dualism and the monistic idealism) whereas the third proposal represents our

hypothesis and interpretative view which is the psychosomatism We conclude that as from

the way psyche body and relationships are understood by Augustine it is plausible to think of

the mind-body relationships within the psychosomatic paradigm

Keywords body mind methaphysics psychosomatism

ix

LISTA DE ABREVIATURAS

Citamos as obras Agostinho segundo o padratildeo de referecircncia para tiacutetulos e abreviaturas do

Augustinus-Lexikoni

Acad De Academicis libri tres

an et or De anima et eius origine libri quattuor

an quant De animae quantitate liber unus

beata u De beata uita liber unus

c Fort Acta contra Fortunatum Manicheum liber unus

ciu De ciuitate dei libri uiginti duo

conf Confessionum libri tredecim

dial De dialectica

doctr chr De doctrina christiana libri quattuor

duab an De duabus animabus liber unus

ep Epistulae

f et symb De fide et symbolo liber unus

Gn litt De Genesi ad litteram libri duodecim

Gn adu Man De Genesi aduersus Manicheos

imm an De immortalitate animae liber unus

Io eu tr In Iohannis euangelium tractatus CXXIV

lib arb De libero arbitrio libri tres

mag De magistro liber unus

ord De ordine libri duo

retr Retractationum libri duo

s Sermones

sol Soliloquiorum libri duo

spir et litt De spiritu et littera ad Marcellinum liber unus

trin De trinitate libri quindecim

uera rel De uera religione liber unus

i MAYER Cornelius (Ed) Augustinus-Lexikon Basel Schwabe amp Co AG 1996

x

NOTA DE ESCLARECIMENTO AO LEITOR

Gostariacuteamos antes de iniciar o texto esclarecer o leitor sobre os seguintes pontos

1 Os originais de Agostinho foram retirados do domiacutenio virtual wwwaugustinusit na seccedilatildeo

S Aurelii Augustini Opera Omnia ndash Editio Latina Trata-se da versatildeo on-line dos volumes

organizados por Jacques-Paul Migne da Ediccedilatildeo da Patrologiae Latinae Elenchus

(respectivamente PL Volumes 32-45)

2 Todas as citaccedilotildees de Agostinho desta dissertaccedilatildeo foram traduzidas para a liacutengua

portuguesa Quando natildeo houver menccedilatildeo ao tradutor responsaacutevel tratar-se-aacute de uma traduccedilatildeo

de nossa autoria direto do original latino Para fins de consulta cotejo e desambiguaccedilatildeo

foram utilizadas tambeacutem algumas ediccedilotildees publicadas pela Biblioteca de Autores Cristianos

(BAC)

3 Optamos por natildeo traduzir os termos anima animus spiritus mens intellectus e

intelligentia Geralmente a traduccedilatildeo dos termos para a liacutengua portuguesa suscita alguns

problemas de ordem interpretativa na filosofia de Agostinho Somos categoacutericos em

concordar com a assistematicidade do pensamento agostiniano de modo que nunca foi nosso

objetivo tentar interpretar o autor de maneira uniacutevoca Poreacutem compreendemos que ao

preservar a grafia latina preservamos tambeacutem toda a riqueza semacircntica e conceitual que os

termos trazem em seu acircmago pois apesar de anima e animus poderem ser traduzidos por

―alma ambos os termos carregam particularidades conceituais distintas natildeo accedilambarcadas

pela simples traduccedilatildeo

xi

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 01

CAPIacuteTULO 1 AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO 04

11 APRESENTACcedilAtildeO 04

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO PARA

SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS 05

13 O CONCEITO DE ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL 09 131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA 14

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS 21

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO 24

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA 30

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA) 36

16 CONSIDERACcedilOtildeE FINAIS DO CAPIacuteTULO 41

CAPIacuteTULO 2 A DIMENSAtildeO CORPORAL EM AGOSTINHO 43

21 APRESENTACcedilAtildeO 43

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO 44

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO 46

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLOacuteGICA DO CORPO 53

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 59

CAPIacuteTULO 3 AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO 60

31 APRESENTACcedilAtildeO 60

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS 61

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO 63

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA 66

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO 68

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO EM SEU PENSAMENTO 71

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO 74

CONCLUSAtildeO 75

REFEREcircNCIAS 79

1

INTRODUCcedilAtildeO

O estudo das relaccedilotildees mente-corpo configura-se no cenaacuterio cientiacutefico atual

como um campo de interesse multidisciplinar Devido a sua grande aacuterea de abrangecircncia eacute

muito comum que neurocientistas cientistas cognitivistas psicoacutelogos linguistas e filoacutesofos

se interessem pela discussatildeo de como e por que ocorre e a interaccedilatildeo entre o que eacute fiacutesico e o

que eacute psiacutequico

Pensando de maneira filosoacutefica podemos afirmar que a Filosofia se dedicou ndash

e ainda se dedica ndash a responder tais perguntas desta atitude surgiram as demarcaccedilotildees entre o

que eacute fiacutesico e o que eacute metafiacutesico Ao longo da esteira da Histoacuteria da Filosofia natildeo foram

poucos os pensadores que se inclinaram a discutir a relaccedilatildeo mente x corpo dentre os mais

ceacutelebres sem duacutevida citamos Platatildeo Aristoacuteteles Descartes Bergson Husserl e Searle Cada

um deles representa um periacuteodo filosoacutefico diferente respectivamente a antiguidade a

modernidade e a contemporaneidade

Um aspecto interessante de se observar eacute que em sua grande maioria os

pensadores que se propuseram discutir o problema da relaccedilatildeo mente-corpo muitas vezes ou

ocultaram ou se esqueceram de citar que no periacuteodo medieval a temaacutetica foi largamente

discutida Podemos inclusive citar filoacutesofos medievais de duas tradiccedilotildees filosoacuteficas e

religiosas diferentes que contribuiram com observaccedilotildees significativas sobre o problema a

exemplo de Agostinho e de Ibn Sīnā1 o primeiro um filoacutesofo cristatildeo do seacuteculo V o segundo

um filoacutesofo do kalam do seacuteculo XI

Acreditamos que a falta de interesse e de valorizaccedilatildeo pelo periacuteodo medieval se

deve ao velho estigma de que este periacuteodo soacute se interessou por exegesses biacuteblicas e textos de

caraacuteter apologeacutetico o que eacute uma grande inverdade De posse do conhecimento de que o

periacuteodo medieval natildeo se restringe ao seu contexto histoacuterico e de que suas consideraccedilotildees

filosoacuteficas podem transcender alguns limites temporais contribuindo e influenciando ndash

consideravelmente ndash as discussotildees filosoacuteficas contemporacircneas resolvemos neste trabalho

analisar o modo como a mente e o corpo satildeo vistos e compreendidos em Agostinho

1 cf LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the MindBody

Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007 (Studies in the History of

Philosophy of Mind 5)

2

Procuramos ao longo desta dissertaccedilatildeo discutir dois conceitos norteadores a

saber vida mental (ou psique) e corpo Em seguida procuramos apresentar sob quais

perspectivas filosoacuteficas eacute possiacutevel compreender a filosofia agostiniana no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo entre o mental e o corporal Compreendemos que as consideraccedilotildees feitas por

Agostinho podem contribuir com o debate sobre o problema mente-corpo de vaacuterias maneiras

desde o equacionamento do problema no periacuteodo medieval ateacute o estabelecimento de

princiacutepios filosoacuteficos capazes de oferecer novas perspectivas de enfrentamento ao debate

culminando assim na revalorizaccedilatildeo da filosofia agostiniana

Natildeo nos limitamos ao estudo de apenas uma obra mas nos debruccedilamos sobre o

oceano que eacute a obra de Agostinho O trabalho foi fastidioso pois em muitos momentos

ficamos desamparados de comentadores e de textos traduzidos o que nos exigiu trabalho e

diligecircncia dobrados No entanto na medida em que avanccedilaacutevamos no interior do universo da

filosofia agostiniana mais nos surpreendemos com suas dimensotildees Natildeo restam duacutevidas de

que a filosofia agostiniana embora seja muito estudada ainda tenha muitos frutos a prover

Parte destes frutos estaacute condensada nesta dissertaccedilatildeo cuja divisatildeo apresentamos a seguir

No primeiro capiacutetulo analisamos os conceitos fulcrais que se interrelacionam

com o conceito de vida mental em Agostinho Ressalvamos que trabalhamos o miacutenimo

possiacutevel com o velho conceito filosoacutefico de alma visto que compreendemos que alma eacute um

conceito deveras limitado e que por conta disso incapaz de accedilambarcar toda a riqueza

contida numa dimensatildeo mental Com efeito neste primeiro capiacutetulo preferimos utilizar os

conceitos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia em sua forma latina

por duas razotildees (i) ao utilizar a traduccedilatildeo poderiacuteamos induzir o leitor a estratificar o conceito

o que natildeo eacute nosso objetivo e outrossim (ii) por se tratar de um capiacutetulo analiacutetico cujo

objetivo consiste em examinar o modo como Agostinho compreende e emprega os termos

optamos por manter o conceito o mais proacuteximo possiacutevel de sua significaccedilatildeo original Resta

ainda afirmar que o eixo condutor deste capiacutetulo eacute a categorizaccedilatildeo feita por Gilson em seu A

introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho2 Apesar de utilizarmos a categorizaccedilatildeo de Gilson

como guia natildeo nos limitamos agrave ela e inclusive procuramos observar e comprovar se sua

categorizaccedilatildeo eacute infaliacutevel

2 cf GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95

3

No segundo capiacutetulo analisamos a dimensatildeo corporal em Agostinho Partimos

do pressuposto de que o estudo sobre a vida mental humana soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio de

um corpo Em outras palavras afirmarmos que eacute impossiacutevel estudar a estrutura psiacutequica

huamana apartada do corpo humano Deste modo examinamos neste capiacutetulo como

Agostinho compreende o conceito de corpo e durante a anaacutelise percebemos que eacute possiacutevel

estudar o corpo em Agostinho sob duas grandes acepccedilotildees a saber (i) a acepccedilatildeo teoloacutegico-

moral que diz respeito agrave anaacutelise do papel do corpo humano no itineraacuterio do homem ateacute Deus

e (ii) a acepccedilatildeo ontoloacutegica e antropoloacutegica que diz respeito ao que eacute o homem

desconsiderando assim a sua funccedilatildeo moral Ressaltamos ainda que ao contraacuterio do primeiro

capiacutetulo natildeo fizemos ressalvas terminoloacutegicas visto que o conceito latino de corpus tem as

mesmas significaccedilotildees que seu correlato corpo

No terceiro e uacuteltimo capiacutetulo apresentamos algumas propostas interpretativas

que visam compreender como a filosofia agostiniana pode ser inserida no paradigma que

estuda as relaccedilotildees mente-corpo A partir da anaacutelise conceitual dos capiacutetulos anteriores

inserimos o pensamento agostinano em contraposiccedilatildeo a trecircs perspectivas ou doutrinas

filosoacuteficas que procuram entender o modo como ocorre a interaccedilatildeo mente-corpo a saber (i) o

dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e (iii) a hipoacutetese do psicossomatismo

Apresentamos as caracteriacutesticas principais os pontos de semelhanccedila com a filosofia de

Agostinho e as inconsistecircncias essenciais que destoavam do pensamento agostiniano

Destacamos ainda que as duas primeiras perspectivas filosoacuteficas satildeo leituras jaacute consagradas

da filosofia de Agostinho ao passo que a terceira e uacuteltima perspectiva representa a nossa

hipoacutetese em que apresentamos um ponto de vista interpretativo o qual ainda precisa ser

trabalhado

Nosso objetivo com este trabalho eacute o de valorizar a filosofia agostiniana Natildeo

compactuamos com o modelo seguido por muitos pesquisadores de Agostinho e do periacuteodo

medieval em geral que se restringem ao estudo e comentaacuterio filosoacutefico nos limites de seu

contexto histoacuterico Eacute claro que para noacutes o contexto histoacuterico deve ser estimado e

filosoficamente respeitado no entanto acreditamos que um problema filosoacutefico eacute marcado

pela universalidade razatildeo pela qual um problema filosoacutefico pode ser abordado eou

equacionado de diversas formas e por diversos autores independente de sua eacutepoca Para noacutes

Agostinho e outros filoacutesofos medievais deixaram um grande legado para a

contemporaneidade o qual mais que transcender seu contexto histoacuterico pode ser usado para

debater alguns dos mais diversos problemas filoacutesoficos contemporacircneos Para que isso seja

feito ressaltamos bastam sensatez e vontade

4

CAPIacuteTULO 1

AS VAacuteRIAS DIMENSOtildeES DA VIDA MENTAL EM AGOSTINHO

11 APRESENTACcedilAtildeO

Este capiacutetulo introduz um dos problemas fulcrais deste trabalho a saber como

Agostinho compreende a vida mental humana Por vida mental referimo-nos a toda estrutura

psiacutequica abarcada pelas seguintes dimensotildees anima animus spiritus mens ratio intellectus

e intelligentia

Partimos do pressuposto de que embora Agostinho tenha feito uma filosofia

assistemaacutetica e de pouco rigor terminoloacutegico suas intenccedilotildees de fundo satildeo bem definidas

Queremos dizer que esse caraacuteter assistemaacutetico e de suposto baixo rigor terminoloacutegico natildeo

impede que Agostinho tenha refletido e equacionado questotildees filosoacuteficas visando a objetivos

especiacuteficos e muito bem delineados Ainda que seja ceacutelebre a frase ―Deum et animam scire

cupio3 Agostinho natildeo deseja apenas conhecer mas tambeacutem fazer com que outros possam

conhecer Deus e o instrumento por meio do qual eacute possiacutevel tal conhecimento Por isso o

engenho de Agostinho de fazer uso de diversos termos relaccedilotildees e comparaccedilotildees a fim de que

seja possiacutevel descortinar para os outros aquilo que ele julga ser o bem mais importante que o

homem pode vir a alcanccedilar

Como dissemos no entanto o homem natildeo atinge o conhecimento de Deus

acidentalmente isto eacute de modo furtuito e aleatoacuterio eacute necessaacuterio empenhar-se e sobretudo

possuir a ferramenta capaz para tal intento eacute preciso a posse de uma alma ou ainda eacute preciso

ser uma alma constituiacuteda no corpo o que implica considerar o papel determinante da alma na

constituiccedilatildeo do que nos identifica do que somos Em funccedilatildeo de sua natureza e especificidade

a alma se assemelha a uma ferramenta complexa dotada de um vasto conglomerado de

funccedilotildees e atributos Tendo em vista a complexidade e extensatildeo dessas funccedilotildees e atributos

Agostinho mdash no que concordamos com ele mdash concebe que por si soacute o termo alma natildeo daacute

conta de toda abundacircncia caracteriacutestica de nossa vida interior razatildeo pela qual traduziremos a

expressatildeo geral alma pela noccedilatildeo de ―vida mental ―estrutura psiacutequica ou ―estrutura

aniacutemica a qual inclui mas natildeo se restringe agrave noccedilatildeo de alma

3 sol I ii 7

5

De posse desta concepccedilatildeo analisamos todos os termos que Agostinho se utiliza

para exprimir-se sobre qualquer aspecto da estrutura aniacutemica humana Assim ao desmantelar

analiticamente os termos anima animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia

compreedemos que tais termos podem ser considerados como ―dimensotildees da vida mental ou

―dimensotildees da estrutura aniacutemica do homem visto que Agostinho natildeo as concebe em

separado antes Agostinho entende que tais termos se referem a dimensotildees co-constituintes

de uma uacutenica e a mesma vida psiacutequica ainda que por razotildees filosoacuteficas e didaacuteticas refira-se a

algumas delas de modo especiacutefico

Deste modo utilizamos o termo ―dimensotildees de uma uacutenica e mesma vida

mental porque consideramos que sejam os vaacuterios aspectos de uma mesma estrutura que

comumente recebe o nome de alma Propomos enfatizar cada uma dessas dimensotildees Afinal

esta dissertaccedilatildeo eacute motivada por nossa compreensatildeo de que cada uma dessas dimensotildees eacute de

extrema significaccedilatildeo para a compreensatildeo antropoloacutegica de Agostinho e para as bases da

antropologia ocidental considerando o peso de sua influecircncia na histoacuteria da filosofia

12 UMA ABORDAGEM SEMAcircNTICO-CONCEITUAL DO VOCABULAacuteRIO AGOSTINIANO

PARA SIGNIFICAR A ALMA E SEUS CORRELATOS

Agora desejo indagar de noacutes mesmos e natildeo acho que seja coisa acima de noacutes Quero saber sobre a

alma4

O que eacute a alma afinal A pergunta aparentemente simples natildeo encontra ndash

ainda hoje ndash uma resposta satisfatoacuteria e definitiva O desdobramento contemporacircneo dessa

pergunta remete aos contemporacircneos conceitos de self consciecircncia e mente os quais satildeo

objetos de pesquisa de aacutereas como Filosofia Psicologia Linguiacutestica e Neurociecircncias Antes

mesmo de todo esse desdobramento contemporacircneo grande parte de Histoacuteria da Filosofia eacute

marcada por reflexotildees sobre esse problema A despeito da importacircncia precursora de

pensadores gregos no que concerne a esse tema a exemplo de Heraacuteclito Platatildeo e Aristoacuteteles5

eacute com Agostinho que a natureza e a estrutura da alma humana satildeo problematizadas

exaustivamente e em vista de seu esgotamento conceitual

4 an quant I 1 Nunc uero non puto nos ipsos supra nos esse Quamobrem cum de anima quaero Trad por

Aloysio Jansen de Faria 5 cf ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristoacuteteles Trad

por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii Satildeo Paulo Annablume 2010

6

O conceito de alma eacute notadamente uma constante na filosofia de Agostinho o

que eacute confirmado pelo fato de que Agostinho jamais deixou de escrever ou de fazer alguma

referecircncia agrave alma ou a algum outro conceito relacionado a ela6 Por essa razatildeo natildeo eacute exagero

afirmarmos que as consideraccedilotildees agostinianas acerca da vida mental humana foram aleacutem do

seu tempo tornando-se ulteriormente referecircncia e aparato de pesquisa para o

desenvolvimento da discussatildeo Por julgar que perspectiva agostiniana tem muito a contribuir

para o debate contemporacircneo da compreensatildeo da noccedilatildeo de ―eu ou mais precisamente da

noccedilatildeo de ―si mesmo (self) torna-se forccediloso que aprofundemos em seu pensamento a fim de

esmiuccedilar sua terminologia em busca de clarificaccedilotildees conceituais sobre o problema Antes

poreacutem cabe observarmos o modo como Agostinho se apropria destes termos a fim de ―criar

um conceito Dizemos ―criar pois julgamos que embora Agostinho nunca tenha

demonstrado rigidez no momento de criar um conceito tais quais fizeram Aristoacuteteles Tomaacutes

de Aquino ou Kant natildeo podemos negar o fato de que suas intenccedilotildees conceituais e

terminoloacutegicas satildeo bem adequadas ao rigor de pensamento requerido para uma soacutelida

discussatildeo filosoacutefica

Numa extensa nota de rodapeacute de sua Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho

Gilson ao falar sobre a alma afirma que ―a terminologia de Agostinho aqui como em outros

lugares eacute muito flutuante7 A afirmaccedilatildeo de Gilson deve ser analisada com cuidado jaacute que

natildeo queremos incorrer no perigo de considerar a terminologia agostiniana incerta ou duvidosa

ndash o que de fato natildeo eacute ndash mas antes inconstante ou variaacutevel

O comentaacuterio de Marrou certamente nos auxilia a compreender a razatildeo pela

qual a terminologia agostiniana seja considerada tatildeo flutuante

(Agostinho) natildeo soube forjar para si uma linguagem teacutecnica natildeo existe uma

terminologia agostiniana como haacute em Aristoacuteteles santo Tomaacutes ou Kant

Como todos os filoacutesofos verdadeiramente originais ele eacute em todos os

momentos conduzido a deformar o significado recebido das palavras para fazecirc-las servir agrave expressatildeo de um novo conceito

8

6 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho e em todas elas constatamos a ocorrecircncia dos termos anima eou

animus Eacute necessaacuterio esclarecer o que entendemos como obra Consideramos o conjunto das Epistolae

Enarrationes e Sermones como trecircs obras separadas as quais congregam os respectivos conjuntos de cartas

interpretaccedilotildees e sermotildees Consideramos tambeacutem como uma obra separada aquelas que contecircm mais de um livro

na sua composiccedilatildeo Assim compreendemos que os treze livros que compotildeem as Confissotildees representam em sua

totalidade uma uacutenica obra 7 GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Traduccedilatildeo por Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007 p 95 8 MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938 p 245-246

grifo nosso

7

Em acordo com Marrou podemos depreender que a terminologia agostiniana

flutua conforme a pretensatildeo ou intuito de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma

determinada ideia ou conceito Daiacute porque quando Agostinho precisa explicar ou definir

algum aspecto particular da alma ele eacute levado a utilizar um determinado termo em outros

momentos quando precisa apresentar ou fazer com que a noccedilatildeo seja compreendida sob outro

aspecto Agostinho utiliza outro termo Assim como procederaacute no que concerne agrave discussatildeo

acerca dos conceitos aos quais se refere para perscrutar o psiacutequico Agostinho de forma geral

recorre aos signos visando a obter duas finalidades centrais quais sejam (i) externar o seu

pensamento e (ii) fazer emergir algo no pensamento9

Recorrendo aos signos por meio dos quais se refere agraves vaacuterias dimensotildees da

vida mental ― buscando fazer vir de si ao pensamento algo outro ― e em vista de apresentar

ao seu leitor alguma coisa aleacutem ― buscando mostrar algo ao espiacuterito ― Agostinho se vale

de um extenso leque terminoloacutegico para atingir sua finalidade de accedilambarcar a natureza e a

estrutura da psique humana Conforme Gilson os termos que fazem parte deste leque

terminoloacutegico satildeo (i) animaanimus (ii) spiritus (iii) mens (iv) ratio e (v)

intellectusintelligentia10

Na contramatildeo do que afirmam alguns comentadores11

natildeo consideramos que

estes termos possam ser tomados apenas como sinocircnimos entre si Por um lado

compreendemos que em alguns momentos eles ateacute admitam sinoniacutemia por outro satildeo

empregados de modo proposital e com significado determinado pela ideia ou conceito que

Agostinho pretende transmitir eou definir

9 doc chr II i 1 O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento

algo outro Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho dial V O signo eacute aquilo que tanto se mostra

aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito Traduccedilatildeo e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho 10 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 11 Gerard OlsquoDaly equivale mens a ratio natildeo soacute os coloca como sinocircnimos como natildeo admite ndash ou omite o fato ndash

que eles possam admitir usos diferentes ―A mente (mens ratio) eacute a parte da almalsquo (pars animi) a saber sua

melhor partelsquo (c Acad 1 5) ou aquilo que eacute preeminente na almalsquo (quod excellit in anima trin 14 26)

Salientamos que OlsquoDaly comete um erro ao apontar o local da uacuteltima citaccedilatildeo a mesma se encontra em trin XV

vii 11 cf OlsquoDALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987 p 7

8

Deste modo admitimos trecircs pressupostos que sustentam a hipoacutetese de que a

terminologia agostiniana natildeo deve ser tomada como totalmente anaacuteloga no que se refere agrave

vida mental humana (i) Se os termos fossem totalmente equivalentes poder-se-ia dispensar o

emprego dos outros isto eacute natildeo haveria necessidade de se utilizar animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia caso todos eles se referissem ao mesmo aspecto ou

objeto tratado bastaria o uso de apenas um termo A preferecircncia de um soacute signo reduziria a

possibilidade de enganos por parte do interlocutor pois se considerarmos o fato de que

Agostinho utiliza um vocabulaacuterio jaacute existente e molda seu significado original provavelmente

o interlocutor poderia ser levado a cometer equiacutevocos ao tentar assimilar a diferenccedila entre a

significaccedilatildeo usual e a significaccedilatildeo agostiniana (ii) Se Agostinho compreende que ―o signo eacute

aquilo que tanto se mostra aos sentidos como aleacutem de si mostra algo ao espiacuterito12

eacute

necessaacuterio que em consequecircncia uma variedade de signos indique uma variedade conceitual

e ideoloacutegica que deve ser transmitida (iii) Se os termos admitissem total sinoniacutemia entre si

certamente natildeo fariam sentido as diversas passagens em que Agostinho os contrapotildee entre si

Ocasionalmente a contraposiccedilatildeo parece realccedilar as diferenccedilas ideoloacutegicas e conceituais que

cada signo exprime

Em suma quando a Escritura narra que fomos criados e para mostrar que natildeo somente fomos antepostos aos animais mas tambeacutem postos a frente

deles isto eacute que eles estivessem submetidos a noacutes ―Faccedilamos disse ―o

homem a nossa imagem e semelhanccedila e tenha poder sobre os peixes do mar sobre os alados dos ceacuteus sobre todos os animais de rebanho e sobre as

serpentes que rastejam sobre a terra De onde surge tal poder Porque

somos a imagem de Deus Daiacute que seja dito a alguns em censura ―Natildeo sejais como o cavalo e o burro os quais natildeo tecircm intelecto Mas uma coisa eacute o

intelecto outra coisa eacute a razatildeo Pois antes que entendamos algo temos razatildeo

dele mas natildeo somos capazes de entender a natildeo ser que tenhamos razatildeo13

12 qv paacutegina 9 13 s XLIII ii 3 Denique ubi Scriptura narrat quod facti sumus ibi subiungit ut nos pecoribus non solum

anteponat sed et praeponat id est ut ea nobis subiecta sint Faciamuslsquo inquit hominem ad imaginem et

similitudinem nostram et habeat potestatem piscum maris et uolatilium caeli et omnium pecorum et

serpentium quae repunt super terramlsquo Unde habeat potestatem Propter imaginem Dei Unde quibusdam dicitur

increpando Nolite esse sicut equus et mulus quibus non est intellectuslsquo Sed aliud est intellectus aliud ratio

Nam rationem habemus et antequam intellegamus sed intellegere non ualemus nisi rationem habemus

9

Amparados pelos pressupostos acima compreendemos que os vocaacutebulos

animaanimus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo fundamentais para a

concepccedilatildeo geral do conceito agostiniano de alma isto eacute de vida mental De posse do

conhecimento de que a elucidaccedilatildeo conceitual desses vocaacutebulos iraacute contribuir positivamente

para o contemporacircneo debate acerca das particularidades da psique humana eacute mister que

deles nos encarreguemos nos subcapiacutetulos seguintes

13 O CONCEITO ANIMA PATERNIDADE E DEFINICcedilAtildeO GERAL

Presentes em todas as obras de Agostinho o par anima e animus satildeo os termos

mais utilizados para se fazer referecircncia agrave vida mental Anima designa de modo geral o

princiacutepio animador essencial e vital de todos os seres vivos Reconhecida popularmente como

sopro-vital tal concepccedilatildeo de alma tem paternidade helecircnica

Nos versos do canto XXII da Iliacuteada jaacute podemos encontrar referecircncias de que a

psycheacute14

(notemos que a palavra ψυχή eacute derivada do verbo ψύχω que significa soprar

respirar) se assemelha a uma substacircncia sutil cuja funccedilatildeo eacute a de vivificar o corpo

A morrer quase o de elmo-flacircmeo disse-lhe ―Vendo-te e conhecendo-te

sei persuadir-te natildeo eacute possiacutevel tens um coraccedilatildeo de ferro um acircnimo

ferrenho Cuida que eu natildeo sirva agrave vindita dos deuses quando Apolo e Paacuteris te abaterem agraves Portas Ceacuteias embora bravo Ultimou-se-lhe a

morte Eclipsou-o A psique voou-lhe dos membros para o Hades chorando

o fado que lhe tirou vigor e juventude15

14 Conforme Reale ―o termo psycheacute assim como o termo physis exprime um dos conceitos cardeais do mundo

antigo Como physis natildeo se pode traduzir psycheacute por um termo moderno capaz de abarcar toda a aacuterea semacircntica do original Alma eacute o termo moderno menos adequado porquanto manteacutem as valecircncias fundamentais do original

mas perde uma seacuterie de ressonacircncias assumidas progressivamente pelo termo na cultura grega e ademais corre

o risco de trazer agrave mente do homem moderno uma problemaacutetica provavelmente religiosa cf REALE Giovanni

Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo

Loyola 2014 p 213 15 Iliacuteada XXII v 355-362 ηὸλ δὲ θαηαζλῄζθσλ πξνζέθε θνξπζαίνινο Ἕθησξἦ ζ᾽ εὖ γηγλώζθσλ

πξνηηόζζνκαη νὐδ᾽ ἄξ᾽ ἔκειινλπείζεηλ ἦ γὰξ ζνί γε ζηδήξενο ἐλ θξεζὶ ζπκόοθξάδεν λῦλ κή ηνί ηη ζεῶλ

κήληκα γέλσκαηἤκαηη ηῷ ὅηε θέλ ζε Πάξηο θαὶ Φνῖβνο Ἀπόιισλἐζζιὸλ ἐόλη᾽ ὀιέζσζηλ ἐλὶ Σθαηῆζη

πύιῃζηλlsquoὣο ἄξα κηλ εἰπόληα ηέινο ζαλάηνην θάιπςεςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη Trad por

Haroldo de Campos

10

Ainda no mesmo Canto lemos nos versos seguintes

E se lanccedilou paccedilo afora turbada no coraccedilatildeo igual maniacuteaca entre duas

flacircmulas Assim que alcanccedila a torre e a multidatildeo em torno arrima-se agrave muralha olha em redor e o vecirc arrastado perante a poacutelis corceacuteis raacutepidos

puxam-no incompassivos direto a naus cocircncavas A noite eacuterebo-negra os

olhos dela eclipsa Cai para traacutes e exala a psiquecirc16

Nos dois excertos anteriores natildeo eacute difiacutecil visualizar a concepccedilatildeo helecircnica de

que a alma humana eacute especialmente concebida como volaacutetil e vital ― traduzida por psiquecirc

Interessa notar que em ambas as citaccedilotildees a alma abandona o corpo de modo voante quer por

intermeacutedio de uma ferida mortal mdash como no primeiro excerto mdash quer por meio de um

desmaio como descrito no uacuteltimo caso Ao abandonar os corpos a psiquecirc retira-lhes o ―vigor

e a juventude Deste modo natildeo restam duacutevidas de que o grego entendia alma como sopro A

noccedilatildeo da alma como sopro eacute tatildeo viva no pensamento grego que seraacute consolidada como marca

essencial de importantes pensadores gregos a exemplo de Anaxiacutemenes17

Heraacuteclito18

e

Dioacutegenes de Apolocircnia19

16 Iliacuteada XXII v 460-467 ὣο θακέλε κεγάξνην δηέζζπην καηλάδη ἴζεπαιινκέλε θξαδίελ ἅκα δ᾽ ἀκθίπνινη

θίνλ αὐηῆαὐηὰξ ἐπεὶ πύξγόλ ηε θαὶ ἀλδξῶλ ἷμελ ὅκηινλἔζηε παπηήλαζ᾽ ἐπὶ ηείρετ ηὸλ δὲ λόεζελἑιθόκελνλ πξόζζελ πόιηνο ηαρέεο δέ κηλ ἵππνηἕιθνλ ἀθεδέζησο θνίιαο ἐπὶ λαο Ἀραηῶληὴλ δὲ θαη᾽ ὀθζαικῶλ ἐξεβελλὴ

λὺμ ἐθάιπςελἤξηπε δ᾽ ἐμνπίζσ ἀπὸ δὲ ςπρὴλ ἐθάππζζε Trad por Haroldo de Campos 17 AEacuteCIO I 3 4 ―Como nossa alma que eacute ar soberanamente nos manteacutem unidos assim tambeacutem todo o cosmo

sopro e ar o manteacutem (cf AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza

et al Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999 p 57) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann Die Fragmente der

Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung 1903 p 25) 18 Segundo Heraacuteclito no fragmento 36 ―para as almas eacute morte transformar-se em aacutegua e para a aacutegua eacute morte

transformar-se em terra Da terra se gera aacutegua e da aacutegua se gera alma (cf ROBINSON Thomas op cit p 27)

O fragmento de Heraacuteclito antevecirc o movimento ciacuteclico de geraccedilatildeo e manutenccedilatildeo do koacutesmos ao mesmo tempo evidencia que a concepccedilatildeo natural de geraccedilatildeo da alma estaacute na passagem do estado liacutequido da aacutegua para seu

estado gasoso e o que eacute o estado gasoso da aacutegua senatildeo ar Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a

certeza de que o correlato grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo

utilizados para se referirem agrave atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 72) 19 Conforme o fragmento 64 B 4 DK ―[] Os homens e os outros seres animados vivem da respiraccedilatildeo do ar E

isso eacute para eles alma e inteligecircncia [] porque se lhes for retirado morrem e sua inteligecircncia se apaga (cf

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad por Marcelo Perine

Satildeo Paulo Paulus 2002 p 130) Confrontamos a traduccedilatildeo com o original para ter a certeza de que o correlato

grego para alma era psycheacute e natildeo nous thymos ou phrenes os quais tambeacutem satildeo utilizados para se referirem agrave

atividade e vida mental (cf DIELS Hermann op cit p 348)

11

Em consonacircncia com os gregos Agostinho tambeacutem sustenta uma noccedilatildeo eteacuterea

e vital da anima No entanto Agostinho e os gregos natildeo compartilham mais semelhanccedilas

quanto agrave estrutura e agrave natureza da anima Com efeito um ponto conflitante entre Agostinho e

Homero reside no fato que Agostinho natildeo pode aceitar a concepccedilatildeo homeacuterica de que a alma

se dirige ao ―Hades20

imediatamente apoacutes o abandono do corpo

A despeito de sua discordacircncia em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo pagatilde homeacuterica

Agostinho soube sustentar a mesma tese de outros pagatildeos a exemplo de Marco Tuacutelio Ciacutecero

o qual tambeacutem reconhece como caracteriacutesticas da anima a volatilidade e princiacutepio de

vitalidade Em suas Tusculanae Disputationes Ciacutecero analisa vaacuterias opiniotildees sobre a natureza

da anima Em uma de suas anaacutelises Ciacutecero afirma que a anima deve ser constituiacuteda de um

material muito sutil e respiraacutevel como fogo ou ar pois somente assim seria capaz de se elevar

aos ceacuteus

Sendo assim deve ser evidente que os espiacuteritos quando abandonam o corpo quer sejam animados isto eacute respiraacuteveis quer sejam de fogo satildeo levados

para cima [] Se poreacutem o espiacuterito for certa categoria o que se diz de modo

mais sutil do que transparente ou aquela quinta natureza natildeo mais descrita do que natildeo compreendida satildeo tambeacutem muito mais completas e mais claras

de modo que se elevem muitiacutessimo acima da terra21

O excerto acima nos permite visualizar com clareza o jogo de palavras feito

por Ciacutecero Ao afirmar que os espiacuteritos (animos) podem ascender aos ceacuteus caso sejam

animados (animales) isto eacute respiraacuteveis (spirabiles) Ciacutecero atesta a caracteriacutestica indeleacutevel da

anima sua volatilidade Ademais a anima natildeo soacute eacute eteacuterea como tambeacutem respiraacutevel e o que eacute

o ato da respiraccedilatildeo senatildeo um processo sofisticado de retenccedilatildeo e exalaccedilatildeo de sopro que nos

permite permanecer vivos

20 No trecho ―ςπρὴ δ᾽ ἐθ ῥεζέσλ πηακέλε Ἄτδνο δὲ βεβήθεη (a psique voou-lhe dos membros para o Hades) a

palavra Ἄϊδος pode ser compreendida como ―o Hades ―submundo ou ―invisiacutevel Ἄϊδος eacute portanto o lugar

que as almas se dirigiam apoacutes a morte do corpo fiacutesico O Hades submundo ou invisiacutevel natildeo apresentam

nenhuma relaccedilatildeo de semelhanccedila com o ―paraiacuteso ―limbo ou ―inferno cristatildeos 21 Tusculanas Disputationes I i 40-41 Quae cum constent perpicuum debet esse animos cum e corpore

excensserint siue illi sint animales id est spirabiles siue ignei sublime ferri [] si uero aut numerus quidam sit

animus quod subtiliter magis quam dilucide dicitur aut quinta illa non nominata magis quam non intellecta

natura multo etiam integriora ac puriora sunt ut a terra longissime se ecferant Trad por Bruno Fregni Basseto

12

Parece que Agostinho assim como Ciacutecero22

rechaccedila a opiniatildeo mitoloacutegica de

que a anima despenca para o mundo inferior por ser uma criatura divina o movimento

natural da anima eacute ascendente Nas palavras de Agostinho

Deus fez o homem agrave sua imagem e deu-lhe alma dotada de razatildeo e de

inteligecircncia que o tornava superior a todos os restantes animais terrestres

nadadores e voadores destituiacutedos de mente E depois de haver do poacute da terra formado o homem e soprando haver-lhe insuflado alma quer a

houvesse feito antes quer ao soprar como dissemos e quisesse que o sopro

que soprando produziu (que eacute soprar senatildeo produzir sopro) fosse a alma

do homem23

Se contrapusermos os excertos de Agostinho e Ciacutecero seraacute possiacutevel perceber

que ambos se assemelham quando procuram exprimir sobre as qualidades da anima

especialmente quanto agrave sua qualidade eteacuterea Poreacutem as semelhanccedilas cessam quando

observamos a base teoacuterica sobre a qual os pensadores fundamentam seus argumentos Ciacutecero

parte de um alicerce estritamente filosoacutefico e pagatildeo ao passo que Agostinho assimila a

filosofia e a submete ao crivo da religiatildeo Para efeito de contraste comparemos as explicaccedilotildees

concernentes ao poder vital da anima

De acordo com Ciacutecero e Agostinho a anima eacute um princiacutepio vital responsaacutevel

por animar todos os seres viventes sejam eles racionais ou natildeo Estabelecida esta proposiccedilatildeo

eacute natural que se pergunte acerca da procedecircncia da forccedila deste princiacutepio animador Em outros

termos de onde surgiu essa forccedila Ciacutecero natildeo foi capaz de fornecer uma resposta agrave pergunta

e seus textos indicam rastros de que ele consentia com a noccedilatildeo grega de eternidade das

animas

22 Tusculanas Disputationes I i 37-38 p 53 Pois a reuniatildeo frequente do teatro no qual se encontram

mulherzinhas e meninos comove-se ao ouvir um poema tatildeo grande ―Aqui estou e chego do Aqueronte apenas por um longo e aacuterduo caminho atraveacutes de cavernas feitas de aacutesperos rochedos de imensa altura onde reina a

impenetraacutevel e densa escuridatildeo dos infernos [] Mas eacute proacuteprio dos grandes talentos separar a mente dos

sentidos e o pensamento das tradiccedilotildees Nesta citaccedilatildeo Ciacutecero afirma que os homens saacutebios natildeo acreditam naquilo

que eacute dito sobre a morte pelos poetas e rapsodos somente mulheres e crianccedilas se deixam levar por aquilo que eacute

professado pelos mitos 23 trin XII 23 Fecit ergo Deus hominem ad imaginem suam Talem quippe illi animam creauit qua per rationem

atque intellegentiam omnibus esset praestantior animalibus terrestribus et natatilibus et uolatilibus quae mentem

huiusmodi non haberent Et cum uirum terreno formasset ex puluere eique animam qualem dixi siue quam iam

fecerat sufflando indidisset siue potius sufflando fecisset eumque flatum quem sufflando fecit (nam quid est

aliud sufflare quam flatum facere) animam hominis esse uoluisset Trad por Agustinho Belmonte

13

Portanto o espiacuterito percebe que se move se pois percebe percebe ao

mesmo tempo o fato de que se move a si mesmo por sua forccedila natildeo alheia e

que natildeo pode suceder que ele proacuteprio desista de si mesmo Com isso se efetua a eternidade a natildeo ser que tenhas algo a acrescentar

24

Para Agostinho o princiacutepio vital natildeo pode receber sua forccedila de outro lugar

senatildeo de Deus a Vida por excelecircncia O argumento agostiniano se apoia em duas bases a

primeira eacute de ordem Escritural expressa no Evangelho segundo Satildeo Joatildeo em que Deus (na

pessoa de Jesus) afirma ―Eu sou o Caminho a Verdade e Vida25

O segundo ponto que

sustenta e valoriza o primeiro remonta agrave noccedilatildeo platocircnica de participaccedilatildeo ora um princiacutepio

que eacute responsaacutevel por vivificar seres finitos precisa necessariamente de receber sua forccedila

vital de outro princiacutepio mais poderoso Com efeito Deus que eacute consoante Agostinho a Vida

por excelecircncia eacute o uacutenico responsaacutevel pela forccedila vital da anima

Porventura isso tivesse se manifestado a mim que me ocupo com essas coisas natildeo existe qualquer tipo de vida que natildeo seja propriamente vida e

enquanto seja totalmente vida que natildeo se estenda a suma fonte e sumo

princiacutepio da vida o qual natildeo podemos confessar ser nenhum outro senatildeo o Deus supremo uacutenico e verdadeiro Portanto aquelas almas as quais os

maniqueiacutestas chamam de maacutes ou carecem de vida e natildeo satildeo almas e por

isso natildeo querem ou deixam de querer cobiccedilar ou evitar alguma coisa ou se

vivem para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam de nenhum modo podem viver senatildeo pela Vida

26

O excerto anterior ao mesmo tempo em que responde agrave pergunta a respeito da

procedecircncia do poder vital da anima nos leva a questionar a respeito da origem e natureza das

animas pois se eacute Deus o responsaacutevel por sua forccedila vital eacute necessaacuterio que ele seja tambeacutem a

paacutetria de origem da alma

24 Tusculanas Disputationes I i 55 Sentit igitur animus se moueri quod cum sentit illud uma sentit se ui sua

non aliena moueri nec accidere posse ut ipse umquam a se deseratur Ex quo efficitur aeternitas nisi quid habes

ad haec Trad por Bruno Fregni Basetto 25 JOAtildeO Evangelho Segundo Satildeo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin

Satildeo Paulo Paulus 1990 14 6 p 1313 26 duab an I fortasse mihi satagenti apparuisset nullam esse qualemlibet uitam quae non eo ipso quo uita est

et in quantum omnino uita est ad summum uitae fontem principiumque pertineat quod nihil aliud quam

summum et solum uerumque Deum possumus confiteri Quapropter illas animas quae a Manichaeis uocantur

malae aut carere uita et animas non esse neque quidquam uelle seu nolle appetere uel fugere aut si uiuerent ut

et animae esse possent et aliquid tale agere quale illi opinantur nullo modo eas nisi uita uiuere

14

131 ORIGEM E SUBSTANCIALIDADE DA ANIMA

O problema da origem das animas sempre foi uma incoacutegnita no pensamento de

Agostinho Mesmo sendo um misteacuterio de difiacutecil soluccedilatildeo o filoacutesofo se ocupou do tema em

vaacuterias obras de maneira pertinaz27

Agostinho parte da tese biacuteblica de que Deus criou a anima

de Adatildeo de modo direto sem intermediaacuterios Todavia o pensador cambaleia em seu

pensamento e se inquieta quando medita sobre a origem das animas de outros seres humanos

Em seu De libero arbitrio Agostinho reconhece e apresenta quatro hipoacuteteses que visam

explicar o modo como as animas se originam

Haacute pois quatro opiniotildees sobre a origem da alma

- ou todas elas provecircm de uma soacute transmitidas por geraccedilatildeo

- ou bem a cada nascimento humano uma nova alma eacute criada - ou entatildeo as almas jaacute existentes em qualquer outro lugar satildeo enviadas por

Deus aos corpos daqueles que nascem

- ou enfim elas descem por sua proacutepria vontade para os corpos dos que nascem

28

Apesar de apresentar essas hipoacuteteses Agostinho reconhece imprudecircncia no ato

de adotar qualquer uma delas de maneira inconteste e irrefletida Com efeito natildeo retiramos a

razatildeo de Agostinho Afinal compreendemos que cada uma destas hipoacuteteses apresenta algum

tipo de fragilidade em sua estrutura e aleacutem disso como no caso da terceira e quarta

hipoacuteteses haacute uma irremediaacutevel incompatibilidade com as soacutelidas bases teoacutericas sobre as quais

se assenta a perspectiva de Agostinho A primeira hipoacutetese de origem traducionista29

flerta

com o perigo de cair no materialismo originado pela dificuldade em defender ― a partir de

uma perspectiva traducionista ― a anima como uma substacircncia inteligiacutevel A fraqueza da

segunda hipoacutetese de ordem criacionista repousa no fato de que se Deus cria todas as animas

no momento de seu nascimento como se explicaria a partir dessa tese a transmissatildeo do

pecado original A terceira e quarta hipoacuteteses por sua vez satildeo rechaccediladas por Agostinho em

funccedilatildeo de serem inconciliaacuteveis com as teses cristatildesbiacuteblicas acerca da origem das animas e

27 Dentre as vaacuterias obras citamos em ordem cronoloacutegica De quantitate animae (388) De Genesi ad litteram

(401-414) Epistula 164 (414-415) De anima et eius origine (415) Epistula 166 ou De origine animae hominis

(415) Epistula 190 (418) 28 lib arb III xxi 59 Harum autem quatuor de anima sententiarum utrum de propagine ueniant an in singulis

quibusque nascentibus nouae fiant an in corpora nascentium iam alicubi existentes uel mittantur diuinitus uel

sua sponte labantur Trad por Nair de Assis Oliveira 29 O Traducianismo (do latim traducere significando transferir) apregoa que a alma de um indiviacuteduo natildeo eacute

criada diretamente por Deus no momento de seu nascimento tal como foi criada a de Adatildeo mas que a alma

humana eacute transferida atraveacutes da alma dos pais como se a alma dos pais transmitissem sementes agrave alma dos

filhos

15

mais precisamente porque a preacute-existecircncia de alguma coisa contrasta fortemente com o

dogma cristatildeo da creatio ex nihilo per Deum Por reconhecer tais vulnerabilidades e

incompatibilidades eacute que Agostinho se absteacutem de dar sua opiniatildeo final sobre o tema Todavia

nas Retractationum e mais especificamente ao comentar o seu De Academicis Agostinho

assentiraacute na possiacutevel validade tanto do criacionismo quanto do traducionismo mesmo sem se

decidir por uma das hipoacuteteses

Logo natildeo se discute que o proacuteprio Deus seja a regiatildeo original da beatitude

da alma Certamente a alma natildeo foi gerada a partir Dele mas antes produzida do nada assim como Ele produziu o corpo da terra Mas no que

concerne agrave sua origem tanto feita como existente no corpo (i) ou procede

daquele que primeiro foi criado quando foi feita dentro do homem a alma

viva (ii) ou foram feitas similarmente uma de cada vez Naquele tempo eu jaacute natildeo sabia como ainda natildeo sei

30

No De animae quantitate Agostinho afirma de modo breve ―Creio que a

paacutetria de origem da anima eacute Deus que a criou31

o que nos permite afirmar que mesmo sem

assentir com a hipoacutetese traducionista ou criacionista Agostinho jamais descartou a ideia de

que a anima tem sua origem uacuteltima em Deus A partir da afirmaccedilatildeo de Agostinho somos

levados a considerar outra questatildeo a saber Se a anima tem sua origem em Deus poderia ela

partilhar da natureza de seu princiacutepio original isto eacute de Deus

Insidiosa a pergunta mdash de nuance maniqueiacutesta mdash poderia facilmente conduzir

qualquer pessoa a incidir no erro32

da heresia De acordo com o que Maneacutes e seus disciacutepulos

apregoavam o homem eacute um ser composto de duas animas uma eacute derivada de Deus e se

manteacutem como substacircncia partiacutecipe Dele ao passo que a outra eacute derivada das trevas sendo

tambeacutem substacircncia partiacutecipe dela Com efeito a doutrina de Maneacutes levanta duas

possibilidades inconciliaacuteveis com o pensamento agostiniano pois ou se acredita que (i) a

anima eacute parte de Deus ou que (ii) a anima eacute Deus ― ainda que em menor escala Na Acta

contra Fortunatum Manicheum Agostinho afirma

30retr I i 3 Sine controuersia ergo quaedam originalis regio beatitudinis animi Deus ipse est qui eum non

quidem de se ipso genuit sed de nulla re alia condidit sicut condidit corpus e terra Nam quod attinet ad eius

originem qua fit ut sit in corpore utrum de illo uno sit qui primum creatus est quando factus est homo in

animam uiuam an similiter ita fiant singulis singuli nec tunc sciebam nec adhuc scio 31 an quant I 2 Propriam quamdam habitationem animae ac patriam Deum ipsum credo esse a quo creata est

Trad por Aloysio Jansen de Faria 32 Expressatildeo muito usada por Agostinho ―cair no erro ―despencar no erro ou ―incidir no erro significa

adotar como verdade os preceitos da doutrina maniqueiacutesta

16

Perguntas se a alma tenha descendido de Deus Certamente eacute uma grande

questatildeo mas quer tenha descendido de Deus quer natildeo a este respeito

respondo que a alma natildeo eacute Deus uma coisa eacute Deus outra eacute a alma Deus eacute inviolaacutevel incorruptiacutevel impenetraacutevel inalteraacutevel nada fora dele pode

corrompecirc-lo e nada cuja parte lhe eacute externa pode lhe ser nocivo Mas na

verdade vemos que a alma eacute pecadora que estaacute situada em anguacutestia que

procura investigar a verdade e que necessita de um libertador Esta inconstacircncia da alma indica para mim que a alma natildeo eacute Deus Portanto se a

alma eacute substacircncia de Deus a substacircncia de Deus erra a substacircncia de Deus eacute

corrompida a substacircncia de Deus pode ser violada a substacircncia de Deus pode ser iludida o que eacute nefasto afirmar

33

Portanto a anima natildeo eacute Deus e muito menos parte Dele Conforme

estabelecido anteriormente ―a paacutetria de origem da anima eacute Deus no entanto sua

procedecircncia natildeo pode e nem deve ser compreendida ou como algum fenocircmeno de divisatildeo ou

como geraccedilatildeo da substacircncia de Deus visto que ambas as hipoacuteteses comprometeriam a noccedilatildeo

de perfeiccedilatildeo divina Logo eacute necessaacuterio afirmar que a anima foi criada assim como todas as

coisas do nada natildeo a partir da substacircncia de Deus mas por seu poder nem de alguma

substacircncia que jaacute existia antes mesmo da criaccedilatildeo e tampouco a partir da substacircncia de outro

ser34

Fortunato ainda natildeo convencido de que Deus e anima natildeo partilham da mesma

substacircncia eacute naturalmente levado a questionar onde Deus teria encontrado a substacircncia para

criar a anima35

A pergunta de Fortunato ainda que sob outra roupagem jaacute tinha sido

elaborada outrora por Evoacutedio no De animae quantitate Vejamos o que responde Agostinho

33 c Fort XI Si quaeris utrum a Deo descenderit anima magna quidem quaestio est sed siue a Deo descendit

siue non illud de anima respondeo non esse Deum aliud esse Deum aliud animam Deum esse inuiolabilem incorruptibilem et impenetrabilem et incoinquinabilem et qui ex nulla parte corrumpi possit et cui nulla ex

parte noceri potest Nam si anima substantia Dei est substantia Dei errat substantia Dei corrumpitur substantia

Dei uiolatur substantia Dei decipitur quod nefas est dicere Haec mutatio animae ostendit mihi quod anima non

sit Deus Animam uero uidemus et peccatricem esse et in aerumna uersari et ueritatem quaerere et liberatore

indigere 34 conf XII xxxiii 48 Foram feitas por Voacutes do nada natildeo poreacutem da vossa substacircncia ou de certa mateacuteria

pertencente a outrem ou anterior a Voacutes mas da mateacuteria concriada isto eacute criada por Voacutes ao mesmo tempo que

elas e que sem nenhum intervalo de tempo fizestes passar da informidade agrave forma Trad por J Oliveira Santos

e A Ambroacutesio de Pina 35 c Fort XII quaero undenam Deus animae substantiam adinuenit

17

Sobre sua substacircncia proacutepria natildeo posso imediatamente responder pois natildeo eacute

possiacutevel comparaacute-la com as diversas naturezas que nossos sentidos

percebem Natildeo tem nenhum dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo nem composiccedilatildeo como o que eacute formado por eles por todos ou por alguns

somente Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu

posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a

composiccedilatildeo de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo O corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo

como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo

sei dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo36

A resposta de Agostinho nos permite tecer quatro consideraccedilotildees conceituais

sobre a anima (i) Ao rechaccedilar toda e qualquer possibilidade de que a anima seja composta

por algum elemento material Agostinho afirma de modo indireto que a substacircncia da anima

eacute imaterial (ii) O fato de Deus ter criado vaacuterias substacircncias materiais e seres extensos natildeo

exclui a possibilidade de que Deus tenha criado uma substacircncia imaterial (iii) Apesar de sua

existecircncia natildeo eacute possiacutevel especificar a substacircncia da anima porquanto ela careccedila de extensatildeo

e dimensatildeo material sendo assim invisiacutevel aos olhos do corpo (iv) Ao afirmar que ―entende

a alma como substacircncia proacutepria Agostinho prediz que a anima eacute inteligiacutevel Ora como natildeo eacute

possiacutevel entender alguma qualidade de um objeto incompreensiacutevel eacute necessaacuterio portanto que

a anima seja inteligiacutevel

A inteligibilidade da anima eacute um fato patente para Agostinho Por ser

semelhante agravequilo que eacute incorpoacutereo e inteligiacutevel a anima apreende aquilo que eacute incorpoacutereo e

inteligiacutevel A tiacutetulo de exemplo podemos citar os postulados da geometria espacial quando

se pensa em conceitos como ponto reta plano latitude longitude e profundidade37

bem

como em suas possibilidades de combinaccedilatildeo somos levados a concordar com fato de que as

representaccedilotildees destes conceitos natildeo tecircm materialidade e por isso satildeo compreendidos pela

anima

36 an quant I 2 Substantiam uero eius nominare non possum non enim eam puto esse ex iis usitatis notisque

naturis quas istis corporis sensibus tangimus Nam neque ex terra neque ex aqua neque ex aere neque ex igni

neque ex his omnibus neque ex aliquibus horum coniunctis constare animam puto Sed quemadmodum si ex me

quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa quatuor nominarem ex quibus omnia talia

constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam

quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et

corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor recurram de anima uero quaerenti tibi cum

simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit

terra Trad por Aloysio Jansen de Faria 37 cf an quant VIII-XIII

18

No De animae quantitate Agostinho afirmaraacute que anima natildeo somente eacute

imaterial e inteligiacutevel como eacute tambeacutem imortal38

Agostinho nunca hesitou em questionar ou

duvidar da imortalidade da anima Certamente devido ao fato de que a proacutepria Biacuteblia concede

agrave anima essa qualidade ― o que pode ser facilmente verificado em Eclesiastes 12 739

e no

Evangelho segundo Satildeo Mateus 10 2840

― e tambeacutem porque Ciacutecero e o platonismo

concebiam o atributo de imortalidade agrave anima Apesar de concordar com as teses de Ciacutecero e

dos platocircnicos no que diz respeito agrave imortalidade da anima Agostinho natildeo difundiu as teses

destes pensadores de modo irrefletido mas antes absorveu a argumentaccedilatildeo retirando-lhe os

traccedilos conflitantes com o cristianismo conferindo-lhe uma roupagem reformulada e concorde

com a religiatildeo cristatilde Deste modo a imortalidade da anima se mostra defensaacutevel sob vaacuterios

acircngulos um deles remete ao que dissemos anteriormente sobre a procedecircncia da forccedila do

princiacutepio vital da anima

A anima humana foi criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus Se Deus eacute

reconhecido como a Vida por excelecircncia eacute necessaacuterio que sua imagem reflita Seus atributos

Neste caso a anima participa substancialmente da concepccedilatildeo divina de Vida Deste modo e

em virtude de sua definiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel conceber que a Vida admita sua antiacutetese isto eacute a

morte O mesmo pode ser dito sobre o ser jaacute que aquilo que eacute ser natildeo pode admitir o natildeo-ser

Assim a anima que eacute vida natildeo pode morrer e se natildeo morre eacute imortal

Pois dizemos estar morto o que quer tenha sido abandonado pela vida e isto

eacute compreendido como ser abandonado pela alma Mas esta vida que abandona os seres que morrem por ser a proacutepria alma a si mesma natildeo

abandona Portanto a alma natildeo morre41

38 cf an quant II 3 39 Ecl 12 7 Entatildeo o poacute volta para a terra de onde veio e o sopro vital retorna para Deus que o concedeu (cf

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

p 824) 40 Mt 10 28 Natildeo tenham medo daqueles que matam o corpo mas natildeo podem matar a alma Pelo contraacuterio

tenham medo daquele que pode arruinar a alma e o corpo no inferno (cf MATEUS Evangelho segundo Satildeo

Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990 p 824

p 1193) 41 imm an IX 16 Quidquid enim uita desertum mortuum dicitur id ab anima desertum intellegitur haec autem

uita quae deserit ea quae moriuntur quia ipsa est animus et seipsam non deserit non moritur animus

19

Outro argumento que corrobora a tese da imortalidade da anima remete ao que

expusemos sobre sua substancialidade inteligiacutevel concordamos que a qualidade da anima

consiste em ser uma substacircncia inteligiacutevel por ser inteligiacutevel a anima eacute capaz de ser

compreendida intelectualmente atraveacutes de um ato reflexivo-introspectivo Tal ato reflexivo-

introspectivo revelaraacute por fim verdades indubitaacuteveis e impereciacuteveis acerca da anima como o

fato de que (i) ela existe de que (ii) pode ser objeto de reflexatildeo e de que por ser um objeto

apreensiacutevel somente atraveacutes da atividade reflexiva-introspectiva (iii) prescinde de

materialidade Ora se a anima eacute a morada de verdades indubitaacuteveis e imortais eacute necessaacuterio

que a anima deva ser necessariamente indubitaacutevel e imortal

Portanto a alma eacute imortal creia em seus raciociacutenios creia na verdade ela

chama que habita em vocecirc e que eacute imortal e que sua sede natildeo lhe pode ser tirada pela morte corporal Afasta de tua sombra volta-te para ti mesmo natildeo

sofreraacutes destruiccedilatildeo alguma a natildeo ser esquecendo-te de que eacute algo que natildeo

pode perecer42

Se a imortalidade da anima eacute demonstrada pelo fato de ser a morada da

verdade poder-se-ia dizer que ao cometer um erro a anima suprime a si proacutepria Muitos

podem cogitar que esta objeccedilatildeo eacute capaz de invalidar o argumento agostiniano mas ao

contraacuterio ela lhe empresta forccedila pois soacute pode cometer erro aquilo que vive e se a anima

erra eacute porque eacute um ser vivente Seres inanimados natildeo cometem falhas e nem praticam accedilotildees

que possam ser consideradas erros de modo que soacute eacute capaz de errar aquilo que vive

Conforme fora dito anteriormente a anima eacute uma substacircncia viva que recebe a forccedila de seu

princiacutepio vital isto eacute de Deus a Vida por excelecircncia

A substancialidade proacutepria da anima isto eacute seu caraacuteter imaterial e inteligiacutevel

natildeo admite que ela seja corruptiacutevel ou mortal Deste modo sob nenhum ponto de vista ou

argumento eacute defensaacutevel a morte substancial da anima tal como ocorre com os seres

corpoacutereos No entanto admite-se sua morte no acircmbito moral e religioso Conforme

Agostinho o distanciamento da anima para longe de Deus eacute uma espeacutecie de morte em niacutevel

moral eou religioso Certamente a morte da anima deve ser considerada sob um aspecto

simboacutelico e alegoacuterico pois como afirmamos eacute impossiacutevel que ela morra efetivamente Com

efeito quando a anima precipita no pecado e passa a amar as sensaccedilotildees corpoacutereas ela se

afasta de Deus e ao fazecirc-lo passa a carecer da vida

42 sol II xviii 32 Immortalis est igitur anima iamiam crede rationibus tuis crede ueritati clamat et in te sese

habitare et immortalem esse nec sibi suam sedem quacumque corporis morte posse subduci Auertere ab umbra

tua reuertere in te nullus est interitus tuus nisi oblitum te esse quod interire non possis Trad por Adaury

Fiorotti

20

Entatildeo como Vos hei de procurar Senhor Quando Vos procuro meu Deus busco a vida feliz Procurar-Vos-ei para que a minha alma viva O meu

corpo vive da minha alma e esta vive de Voacutes43

Mas a alma natildeo pode morrer e pode morrer natildeo pode morrer porque sua

consciecircncia nunca perece mas a alma pode morrer se perde a Deus Pois

assim como a proacutepria alma eacute a vida do seu corpo da mesma forma o proacuteprio Deus eacute a vida da alma

44

Conforme estabelecemos a partir da leitura e anaacutelise de alguns excertos de

Agostinho a anima eacute (i) um princiacutepio vital responsaacutevel por animar todos os seres viventes

sejam eles racionais ou natildeo (ii) uma criatura de Deus originada por seu poder e natildeo de sua

essecircncia divina (iii) uma substacircncia proacutepria dotada de incorporeidade e inteligibilidade (ou

espiritualidade) por fim e devido a suas caracteriacutesticas substanciais (iv) uma substacircncia

imortal Destarte afirmamos que nas muitas vezes em Agostinho se utiliza do termo anima o

pensador tem o intuito semacircntico de se referir ao objeto cujas caracteriacutesticas listamos acima

Em outros momentos Agostinho se utilizaraacute do vocaacutebulo anima para se referir

agrave ―alma de modo geneacuterico abrangente e com o propoacutesito de se referir agrave substacircncia espiritual

em sua totalidade abarcando todas as suas partes e faculdades de modo indistinto Para noacutes

esta eacute a ideia que motiva grande parte dos comentadores a julgar que animaanimus spiritus

mens ratio e intellectusintelligentia satildeo utilizados sem rigor45

e que ipso facto podem ser

tomados como sinocircnimos Ao contraacuterio compreendemos que a razatildeo de Agostinho utilizar o

termo anima46

de modo generalizante e indeterminado repousa no fato de que Agostinho

naquele momento natildeo tem a intenccedilatildeo de transmitir e precisar minuciosamente alguma ideia

ou conceito Ademais compreendemos que spiritus mens ratio e intellectusintelligentia satildeo

ou (i) partes ou (ii) faculdades da anima Ora quer sejam partes quer sejam faculdades eacute

necessaacuterio inferir que esses objetos compotildeem ou estatildeo circunscritos nos limites da anima

Com efeito ao se fazer referecircncia ao todo ― anima ― faz-se consequentemente agraves

dimensotildees que a constituem quais sejam spiritus mens ratio e intellectusintelligentia

43 conf X xx 29 Quomodo ergo te quaero Domine Cum enim te Deum meum quaero uitam beatam quaero

Quaeram te ut uiuat anima mea Viuit enim corpus meum de anima mea et uiuit anima mea de te Trad por J

Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina 44 s CCLXXIII i 1 Sed anima non potest mori et potest mori mori non potest quia sensus eius nunquam perit

mori autem potest si Deum perdit Sicut enim est ipsa anima sui corporis uita sic Deus est ipsius animae uita 45 Para Mader Agostinho ―verwendet eine Reihe von lateinischen Begriffen doch keineswegs streng Es sind

dies bdquospiritus― bdquomens― bdquointellectus― bdquoanimus― aber auch bdquoanima― (cf MADER Johann Aurelius

Augustinus Philosophie und Christentum Wien Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991 p 59) 46 Assim como anima o termo animus pode ser utilizado de modo generalizante apesar de ter valor semacircntico

proacuteprio Trataremos da conceituaccedilatildeo de animus no capiacutetulo seguinte

21

Aleacutem de anima o termo animus tambeacutem pode ser utilizado de modo geneacuterico e

abrangente Assim como o termo anima o termo animus abarca particularidades conceituais e

semacircnticas proacuteprias e bem definidas

132 ANIMA RATIONALIS OU ANIMUS

Preferencialmente o termo anima eacute empregado para falar ou da (i) alma de

maneira geral isto eacute sem especificar uma parte ou faculdade ou das (ii) almas dos animais

natildeo humanos47

Assim quando quer se referir especificamente agrave alma do homem Agostinho

emprega o termo animus

O animus assim como a anima tem a caracteriacutestica de ser uma substacircncia

dotada de princiacutepio vital para aleacutem do que caracteriza a anima no entanto o animus tambeacutem

eacute dotado de princiacutepio racional Considerando que os animais natildeo satildeo capazes de raciocinar

podemos afirmar que animus inere uacutenica e exclusivamente ao homem Em virtude da sua

distinta caracteriacutestica o animus eacute geralmente entendido (e traduzido) como alma racional o

que realccedila a fundamental diferenccedila entre anima e animus Embora Agostinho pareccedila preferir

utilizar o termo animus natildeo eacute raro encontrar tambeacutem a expressatildeo ―anima rationalis que

aleacutem de expressar o mesmo significado de animus destaca e coloca em evidecircncia o atributo

―racional

[] mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais iacutentimo recesso da

alma racional que se denomina homem interior quis Ele que fosse este o

seu templo Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo e que Cristo habita no homem

interiorlsquo48

47 Em De anima et eius origine Agostinho diraacute que os animais irracionais ― justamente pelo fato de serem

irracionais ― possuem apenas anima isto eacute vida (cf an et or IV xxiii 37) 48

mag I 2 Deus autem in ipsis rationalis animae secretis qui homo interior uocatur et quaerendus et

deprecandus est haec enim sua templa esse uoluit An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei

estis et spiritus Dei habitat in uobis et In interiore homine habitare Christum Trad por Angelo Ricci

22

Agostinho compreende que todos os seres vivos ndash justamente por serem vivos

ndash tecircm uma anima a diferenccedila fundamental entre a anima de um catildeo e anima de um homem eacute

que a anima do primeiro eacute apenas um princiacutepio vital ao passo que a anima do segundo eacute um

princiacutepio vital e racional Consoante o excerto anterior a alma racional pode ser denominada

homem interior Ora qualquer coisa que tenha em sua definiccedilatildeo o termo homem soacute pode

existir naquele ser que eacute homem jaacute que animais natildeo humanos natildeo satildeo homens Se assim o eacute

eacute necessaacuterio admitir que os animais natildeo possuem uma anima rationalis ou animus

Apesar de natildeo podermos conceder um precedente oacutebvio que explique a origem

do modo como Agostinho compreende e utiliza o termo animus sustentamos ― encorajados

pela forma como o conceito muitas vezes nos eacute apresentado pelo autor ― a hipoacutetese de que a

compreensatildeo filosoacutefica e semacircntica que Agostinho tem do animus reflete a influecircncia pagatilde de

Varratildeo

Conforme Gilson49

Agostinho toma o termo animus emprestado da obra De

diis selectis de Marco Terecircncio Varratildeo fato que segundo o comentador pode ser verificado

em De ciuitate Dei VII 23 Na passagem em questatildeo Agostinho argumenta contra aqueles

que assim como Varratildeo acreditavam ser a Terra uma deusa dotada de alma Para Varratildeo a

razatildeo de a Terra ser uma deusa se fundamenta no fato de que ela eacute transpassada pela forccedila

divina da alma do Mundo que segundo Varratildeo eacute deus Apesar de Agostinho discordar

veementemente da opiniatildeo varroniana que assegura a deidade da Terra Agostinho parece

salvaguardar o que Varratildeo afirma a respeito da anima e de seus trecircs graus

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses seletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda natureza e na natureza universal O

primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver Tal forccedila diz o referido autor infiltra-se em nosso corpo nos ossos nas unhas e nos cabelos do mesmo modo que

no mundo as aacutervores se alimentam e crescem sem sentido e de certa maneira

vivem No segundo grau a alma eacute sensitiva e comunica a sensibilidade aos olhos aos ouvidos ao nariz agrave boca e ao tato O terceiro grau ou seja o grau

supremo eacute o espiacuterito em que domina a inteligecircncia nobre privileacutegio de que

exceto o homem todos os animais carecem E como assemelha o homem a

Deus no mundo a referida parte da alma universal chama-se Deus e no homem Gecircnio

50

49 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 50 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum sed tantum ad

uiuendum ualetudinem hanc uim in nostro corpore permanare dicit in ossa ungues capillos sicut in mundo

arbores sine sensu aluntur et crescunt et modo quodam suo uiuunt secundum gradum animae in quo sensus est

hanc uim peruenire in oculos aures nares os tactum tertium gradum esse animae summum quod uocatur

animus in quo intellegentia praeminet hoc praeter hominem omnes carere mortales Hanc partem animae mundi

dicit Deum in nobis autem genium uocari Trad por Oscar Paes Leme

23

Do excerto podemos inferir que (i) no terceiro grau a anima passa a ser

chamada por animus (tertium gradum esse animae summum quod uocatur animus) (ii) a

inteligecircncia eacute parte integrante ou ainda uma faculdade ou produto resultante da atividade do

animus (iii) por ter uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a inteligecircncia o animus soacute pode se referir aos

seres humanos jaacute que soacute os homens possuem inteligecircncia Assim podemos concluir que a

inteligecircncia eacute o elemento que subsidia a distinccedilatildeo entre anima e animus

Dizemos que Agostinho parece ter salvaguardado a concepccedilatildeo varroniana de

um gradus animae devido ao fato de que uma descriccedilatildeo similar dos trecircs graus da anima pode

ser encontrada no De animae quantitate Ao final da obra citada Agostinho descreve os trecircs

graus varronianos ― vegetativo sensitivo e racional ― e a eles soma outros quatro novos

graus que diferentemente dos trecircs primeiros se remetem diretamente a Deus51

Vejamos a

descriccedilatildeo do terceiro grau por Agostinho

Suba mais um grau e chegue ao terceiro este proacuteprio do homem Pense na lembranccedila de coisas inumeraacuteveis natildeo decorrentes apenas do costume ou

dos haacutebitos repetidos mas da intenccedilatildeo aplicada nas coisas intencionalmente

pretendidas e na conservaccedilatildeo de tantas coisas obtidas Satildeo muitas variedades de artes e teacutecnicas no cultivo dos campos na construccedilatildeo de

cidades e realizaccedilotildees de todos os tipos de grandezas produzidas Invenccedilatildeo

de tantos signos representativos na escrita nos gestos e na palavra proferida Em todos os sons criativos como na pintura e na escultura na variedade de

idiomas nas instituiccedilotildees sociais em tanta coisa nova surgida sempre como

na recuperaccedilatildeo de outras Na variedade de livros e em todos os monumentos

erguidos e entregues ao cuidado das geraccedilotildees futuras Na variedade de ocupaccedilotildees nos poderes constituiacutedos nas honras e dignidades seja na famiacutelia

como na sociedade Nas cerimocircnias profanas e sagradas na paz e na guerra

e tudo produzido pela humana potecircncia de raciociacutenio e imaginaccedilatildeo Pense na caudalosa produccedilatildeo oratoacuteria na arte na poeacutetica e em muitas criaccedilotildees

destinadas agrave diversatildeo aos esportes agrave praacutetica musical a precisatildeo da arte de

calcular e as conjeturas do futuro a parti das realizaccedilotildees do presente Grandes satildeo estas coisas e proacuteprias somente do ser humano Ainda assim

seratildeo comuns aos estudiosos e aos ignorantes aos bons e aos maus52

51 As descriccedilotildees completas dos sete graus se encontram em an quant XXXIII 70-76 52

an quant XXXIII 72 Ergo attollere in tertium gradum qui iam est homini proprius et cogita memoriam non

consuetudine inolitarum sed animaduersione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium

tot artes opificum agrorum cultus exstructiones urbium uariorum aedificiorum ac moliminum multimoda

miracula inuentiones tot signorum in litteris in uerbis in gestu in cuiuscemodi sono in picturis atque

figmentis tot gentium linguas tot instituta tot noua tot instaurata tantum librorum numerum et cuiuscemodi

monumentorum ad custodiendam memoriam tantamque curam posteritatis officiorum potestatum honorum

dignitatumque ordines siue in familiis siue domi militiaeque in republica siue in profanis siue in sacris

apparatibus uim ratiocinandi et excogitandi fluuios eloquentiae carminum uarietates ludendi ac iocandi causa

milleformes simulationes modulandi peritiam dimetiendi subtilitatem numerandi disciplinam praeteritorum ac

futurorum ex praesentibus coniecturam Magna haec et omnino humana Sed est adhuc ista partim doctis atque

indoctis partim bonis ac malis animis copia communis Trad por Aloysio Jansen de Faria

24

A descriccedilatildeo que Agostinho empreende quanto ao terceiro grau da anima eacute

completa compreendendo todas aquelas atividades possiacuteveis de realizaccedilatildeo pelo homem e

que portanto o difere dos animais a saber arte poliacutetica moral educaccedilatildeo cultura ciecircncia e

tecnologia Todas essas atividades soacute existem devido ao fato de sermos seres racionais

inteligentes e criativos Como vimos a anima eacute somente uma substacircncia vital (isto eacute dotada

de princiacutepio de vida) ― vegetativa ou sensitiva ― incapaz de ir para aleacutem de seu proacuteprio

princiacutepio Portanto eacute preciso que exista um princiacutepio que seja vital e racional o qual

propiciaraacute ao homem a capacidade de criaccedilatildeo Eacute somente por ser dotado de animus que o

homem consegue realizar aquilo que eacute proacuteprio do seu gecircnero Para Agostinho natildeo importa se

os homens satildeo bons maus doutos ignorantes cristatildeos ou pagatildeos todos eles satildeo dotados de

animus isto eacute de uma anima racional

Cumpre tambeacutem ressaltar que em Agostinho o conceito de anima racional

pode ser expresso por animus mas tambeacutem pode aparecer na forma do termo spiritus do qual

nos incumbiremos no subcapiacutetulo seguinte

14 SPIRITUS E SUA DUPLA CONCEITUACcedilAtildeO

Conforme estabelecemos o termo animus em Agostinho tem origem na

gradaccedilatildeo da anima feita por Varratildeo Animus se remete agrave anima racional presente uacutenica e

exclusivamente nos seres humanos No entanto animus natildeo eacute o uacutenico termo do qual

Agostinho se valeraacute para conceituar aquilo que ele entende por anima racional em vaacuterios

momentos Agostinho utiliza tambeacutem o termo spiritus cuja traduccedilatildeo para o portuguecircs eacute

espiacuterito

E porque as trecircs coisas satildeo estabelecidas pelo homem espiacuterito alma e corpo

Duas satildeo ditas inversamente pois a alma muitas vezes eacute nomeada

juntamente com o espiacuterito com efeito certa parte racional da mesma que falta agraves bestas eacute chamada de espiacuterito entre noacutes o espiacuterito eacute o principal

depois somos unidos ao corpo pela vida a isto se chama alma Enfim o

uacuteltimo eacute o corpo pois o proacuteprio eacute visiacutevel a noacutes 53

53f et symb X 23 Et quoniam tria sunt quibus homo constat spiritus anima et corpus quae rursus duo dicuntur

quia saepe anima simul cum spiritu nominatur pars enim quaedam ejusdem rationalis qua carent bestiae

spiritus decitur principale nostrum spiritus est deinde uita qua conjungimur corpori anima dicitur postremo

ipsum corpus quoniam uisibile est ultimum nostrum est

25

Assim como anima eacute derivada do grego ψυχή spiritus tem sua origem na

filosofia grega a saber πνεῦμα (pneucircma) A polissemia de pneucircma eacute grande abarcando

significaccedilotildees teacutecnicas em vaacuterios acircmbitos da filosofia grega54

De maneira geral55

o termo

significa sopro vital respiraccedilatildeo e espiacuterito56

Em Agostinho spiritus eacute empregado em menor escala do que animus Apesar

disso o termo spiritus exige bastante atenccedilatildeo ao ser analisado pois de acordo com Gilson57

―o termo tem dois sentidos inteiramente diferentes segundo Agostinho derivado de Porfiacuterio

ou das Escrituras Com efeito o termo compreende duas acepccedilotildees distintas A acepccedilatildeo

escritural se identifica com o conceito de animus isto eacute de anima racional A acepccedilatildeo

porfiriana por sua vez natildeo eacute equivalente ao conceito de anima racional embora se relacione

intimamente com ele

Conforme Gilson spiritus mdash na acepccedilatildeo porfiriana mdash remete ao que se

denomina de imaginaccedilatildeo reprodutiva ou memoacuteria sensiacutevel Em outras palavras o spiritus eacute

responsaacutevel por captar e reter as impressotildees causadas pelos sentidos corporais tais

impressotildees tornam-se imagens spiritales e satildeo depositadas na memoacuteria Quando poreacutem

precisamos nos lembrar de algo natildeo resgatamos esse algo em sua totalidade em sua

corporeidade mas sim sua imagem criada pelo spiritus Ao condenar a doutrina da teurgia

da qual Porfiacuterio eacute defensor Agostinho diz o seguinte acerca do spiritus

54 SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques em Gregravece des

origines agrave llsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003 passim 55 Natildeo seraacute feita nesta dissertaccedilatildeo uma historiografia do termo apesar de reconhecermos a importacircncia

conceitual do termo pneucircma na filosofia estoacuteica e na filosofia de Filo de Alexandria este uacuteltimo capital para a

compreensatildeo do conceito de Espiacuterito Santo tal como se conhece Nosso objetivo eacute versar sobre o modo como

Agostinho compreende e significa os termos relacionados agrave vida mental 56 Nas palavras de Mader ―das fuumlr bdquoGeist― gelaumlufigste Wort im Alten Testament ist hebraumlisch bdquoruah― Uumlbersetzt

wird es meistens griechisch mit bdquopneuma― und lateinisch mit bdquospiritus― [] Es besagt in seiner urspruumlnglichsten

Bedeutung bdquoHauch― bdquoWind― auch den bdquoHauch des Mundes― den bdquoAtem― Es nennt den bdquoLebensodem― Durch

die bdquoruah― durch das bdquopneuma― lebt der Mensch In ihm erwirkt es verschiedene Lebensvorgaumlnge Hier herrscht

die mythische Vorstellung von lebensstiftenden Kraumlften vor (cf MADER Johann op cit loc cit) 57 GILSON Eacutetienne op cit loc cit

26

Porfiacuterio promete como que vacilante em discurso de certo modo

vergonhoso uma espeacutecie de purificaccedilatildeo da alma por meio da teurgia Mas

nega de maneira formal que tal arte apresente caminho de retorno a Deus Vemo-lo assim flutuar ao sabor de seus proacuteprios pensamentos entre os

princiacutepios da filosofia e os escolhos de curiosidade sacriacutelega Ora afasta-nos

de tal arte dizendo-a peacuterfida perigosa na praacutetica proibida pelas leis ora

parece ceder agrave opiniatildeo contraacuteria e logo a teurgia se torna uacutetil para purificar a alma senatildeo na parte intelectual em que percebe as verdades inteligiacuteveis

puras de todas as formas corporais pelo menos na parte espiritual em que

capta as imagens dos corpos58

No excerto anterior eacute possiacutevel notar uma clara distinccedilatildeo entre duas partes da

anima quais sejam a pars intellectualis e a pars spiritalis Conforme Agostinho a pars

intellectualis eacute responsaacutevel pela apreensatildeo da realidade das verdades inteligiacuteveis sem mistura

com os corpos sensiacuteveis ao passo que a pars spiritalis (ou mundana) eacute responsaacutevel por captar

as imagens dos corpos Ora somos levados a considerar que Agostinho compreende existir

uma diferenccedila entre aquilo que eacute uma lembranccedila e o objeto que eacute o causador da lembranccedila Eacute

de conhecimento geral que Agostinho natildeo formulou uma teoria da abstraccedilatildeo assim como fez

Tomaacutes de Aquino59

poreacutem Agostinho compreende que quando nos lembramos de algum

objeto natildeo se resgata o objeto em sua totalidade mas sim uma imagem dele A imagem do

objeto natildeo eacute uma verdade inteligiacutevel pois foi retirada do mundo sensiacutevel e natildeo eacute corpoacuterea

pois natildeo eacute o objeto em si Deste modo eacute impreteriacutevel que deva existir em noacutes alguma

faculdade que avessa e contraacuteria agrave mateacuteria seja capaz de criar uma imagem imaterial ― mas

natildeo intelectual ― do mundo sensiacutevel

58 ciu X ix 2 Nam et Porphyrius quamdam quasi purgationem animae per theurgian cunctanter tamen et

pudibunda quodam modo disputatione promittit reuersionem uero ad Deum hanc artem praestare cuiquam

negat ut uideas eum inter uitium sacrilegae curiositatis et philosophiae professionem sententiis alternantibus

fluctuare Nunc enim hanc artem tamquam fallacem et in ipsa actione periculosam et legibus prohibitam

cauendam monet nunc autem uelut eius laudatoribus cedens utilem dicit esse mundandae parti animae non

quidem intellectuali qua rerum intellegibilium percipitur ueritas nullas habentium similitudines corporum sed

spiritali qua corporalium rerum capiuntur imagines Trad por Oscar Paes Leme 59 cf Suma de Teologia I 84-85

27

No entanto agora considero adequado insinuar que certamente existe em noacutes

alguma natureza espiritual onde satildeo formadas as semelhanccedilas das coisas

corporais quer quando tocamos algum objeto pelo sentido do corpo e entatildeo imediatamente sua semelhanccedila eacute formada no espiacuterito e armazenada na

memoacuteria60

E assim todavia na mesma alma satildeo formadas visotildees (i) ou

daquelas coisas que satildeo sentidas pelo corpo como este ceacuteu corpoacutereo a terra

e quaisquer coisas que possam ser notadas neles assim como eles podem ser notados (ii) ou daquelas visotildees semelhantes dos corpos que satildeo vistas pelo

espiacuterito ndash sobre as quais jaacute falamos muito (iii) ou daquelas coisas que nem

satildeo corpoacutereas e nem semelhantes dos corpos e que satildeo inteligidas pela mente todas estas visotildees certamente sustentam a sua ordem e uma eacute mais

excelente que a outra Pois a visatildeo do espiacuterito eacute mais excelente que visatildeo do

corpo e por sua vez a visatildeo do intelecto eacute mais excelente que a do espiacuterito61

O spiritus portanto eacute compreendido como uma faculdade que pertencente agrave

anima humana eacute capaz de criar imagens imateriais ― espirituais ― do mundo sensiacutevel as

quais satildeo utilizadas pela mente no ato da reflexatildeo Com efeito Gilson diraacute que o spiritus ―eacute

superior agrave vida (anima) e inferior ao pensamento (mens)62

As palavras de Gilson evidenciam

a necessidade da existecircncia de uma inescusaacutevel relaccedilatildeo entre spiritus anima e mens natildeo

podem existir spiritus e mens sem que exista uma anima Assim mesmo que spiritus e

animus (anima racional) natildeo tenham o mesmo sentido e expressem conceitos diferentes natildeo

se pode dizer que inexista alguma relaccedilatildeo entre eles Solegravere evidencia essa relaccedilatildeo ao afirmar

Em resumo na medida em que Agostinho se inspira na pneumatologia

porfiriana ele chama especificamente spiritus por niacutevel imaginativo da

alma mas a natureza que eacute assim assinalada eacute aquela da alma nela mesma a

qual Agostinho nomeia tambeacutem spiritus sobre a base de outras influecircncias terminoloacutegicas Consequentemente eacute correto em um sentido que o spiritus

imaginativo apareccedila como uma ―parte da alma inferior agrave mente ou pars

intellectualis Assim ela desempenha de um lado um papel tradicional de intermediaacuteria entre os corpos e a sensibilidade e por outro lado de

intelecccedilatildeo 63

60

Gn litt XII xxiii 49 Quod autem nunc insinuare satis arbitror certum est esse spiritalem quamdam naturam

in nobis ubi corporalium rerum formantur similitudines siue cum aliquod corpus sensu corporis tangimus et

continuo formatur eius similitudo in spiritu memoriaque reconditur 61 Gn litt XII xxiv 51 Quamquam itaque in eadem anima fiant uisiones siue quae sentiuntur per corpus sicut

hoc corporeum coelum terra et quaecumque in eis nota esse possunt quemadmodum possunt siue quae spiritu

uidentur similia corporum de quibus multa iam diximus siue cum mente intelleguntur quae nec corpora sunt

nec similitudines corporum habent utique ordinem suum et est aliud alio praecellentius Praestantior est enim

uisio spiritalis quam corporalis et rursus praestantior intellectualis quam spiritalis 62 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 63 Na passagem ―e correto em um sentido que o spiritus imaginativo salientamos que a palavra ―imaginativo

natildeo expressa corretamente o sentido da palavra ―imageant do texto original A palavra ―imageant reforccedila uma

caracteriacutestica passiva do spiritus porquanto o spiritus recebe as imagens do mundo Deixamos o excerto original

para fins de cotejo ―Bref dans la mesure ougrave Augustin sinspire de la pneumatologie porphyrienne il appelle

speacutecifiquement spiritus le niveau imaginatif de llsquoacircme mais la nature qui est ainsi assigneacutee est celle de llsquoacircme em

elle-mecircme qulsquoAgustin nomme aussi spiritus sur la base dlsquoautres influences terminologiques Par conseacutequent il

est exact en un sens que le spiritus imageant apparaisse comme une ―partie de llsquoacircme infeacuterieure agrave la mens ou

pars intellectualis Il joue ainsi le role traditionnel dlsquointermeacutediaire entre le corps et la sensibiliteacute dlsquoune part

llsquointellection dlsquoautre part (cf SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s

28

Justamente por se encontrar em contato constante com o mundo material o

spiritus se aventura na possibilidade de ser iludido e maculado pelas mesmas impressotildees que

copia Visto que o mundo material eacute belo e prazeroso o homem corre risco de pecar ao amar

o sensiacutevel e com isso falsear e desviar-se do seu curso em direccedilatildeo a Deus Assim Agostinho

evidencia a funccedilatildeo do espiacuterito de natildeo se deixar corromper pelo carnal o que pode ser

conferido em diversas passagens

Poderemos entatildeo concluir que nem todos querem ser felizes porque haacute

alguns que natildeo querem alegrar-se em Voacutes que sois a uacutenica vida feliz Natildeo

todos querem uma vida feliz Mas como ―a carne combate contra o espiacuterito e o espiacuterito contra a carne muitos natildeo fazem o que querem mas entregam-se

aquilo que podem fazer64

Isso natildeo surpreende pois somos constituiacutedos atualmente de forma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal e em direccedilatildeo agrave virtude pelo

espiacuterito65

E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspiraccedilatildeo ―Cria

em mim oacute Deus um coraccedilatildeo puro e renova em minhas entranhas o espiacuterito

de retidatildeo Entendo que espiacuterito de retidatildeo eacute o que impede a alma de se desviar e falsear na procurar da verdade E ele natildeo se renova se antes natildeo

tiver a pureza ou seja se o pensamento natildeo se afasta antes de toda paixatildeo

purificando-se no ranccedilo das coisas mortais66

Augustin) In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la Societeacute

Internationale pour llsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2 Turnhout BREPOLS 2006 p

711) 64 conf X xxiii 33 Non ergo certum est quod omnes esse beati uolunt quoniam qui non de te gaudere uolunt quae sola uita beata est non utique beatam uitam uolunt An omnes hoc uolunt sed quoniam caro concupiscit

aduersus spiritum et spiritus aduersus carnem ut non faciant quod uolunt cadunt in id quod ualent J Oliveira

Santos e A Ambroacutesio de Pina 65 duab an XIX Nec mirum ita enim nunc constituti sumus ut et per carnem uoluptate affici et per spiritum

honestate possimus 66 an quant XXXIII 75Unde divino afflatu et prorsus ordinatissime illud a Propheta dicitur ―Cor mundum

crea in me Deus et spiritum rectum innoua in uisceribus meis Spiritus enim rectus est credo quo fit ut anima

in ueritate quaerenda deuiare atque errare non possit Qui profecto in ea non instauratur nisi prius cor mundum

fuerit hoc est nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et

eliquauerit Trad por Aloysio Jansen de Faria

29

Ainda que conforme Gilson a conceituaccedilatildeo porfiriana de spiritus seja distinta

da conceituaccedilatildeo escritural regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que ou se

referem agrave Biacuteblia ou citam-na diretamente o que eacute possiacutevel de ser verificado por exemplo em

beata u II 1267

mag I 268

spir et litt IV 669

e lib arb III xiii 5170

Por fim a detida consulta dos textos de Agostinho nos levou a concluir que na

maioria das vezes o pensador se refere e utiliza o spiritus em seu contexto confessional isto

eacute ligado agrave exegese biacuteblica O contexto de matiz neoplatocircnico da acepccedilatildeo porfiriana eacute

utilizado numa escala consideravelmente menor e quando eacute utilizada sua conceituaccedilatildeo eacute

exposta de maneira diferente como uma ―natureza espiritual onde satildeo formadas as

semelhanccedilas corporais71

o que natildeo ocorre com a acepccedilatildeo escritural

Assim spiritus se exprime como um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo o que reforccedila

a tese de uma imprecisatildeo ou ondulacircncia terminoloacutegica no pensamento de Agostinho De fato

o pensamento de Agostinho natildeo eacute sistemaacutetico e como tal natildeo deve ser objeto de

sistematizaccedilatildeo por comentadores e estudiosos Poreacutem as pistas de que na maioria dos casos

o termo spiritus se encontra ligado a um contexto escrituriacutestico e de exegese biacuteblica nos

permite pressupor que Agostinho tivesse alguma inclinaccedilatildeo ou propensatildeo na utilizaccedilatildeo do

termo Podemos conjecturar que a predileccedilatildeo do uso do termo em seu contexto escritural se

deva ao fato de que a proacutepria Biacuteblia apresenta ocorrecircncias de utilizaccedilatildeo do termo spiritus72

(em suas vaacuterias flexotildees gramaticais) que se ligam ao conceito de princiacutepio vital e racional

exclusivo do homem fato que eacute atestado por Agostinho

67 ―Adeodato o mais jovem de todos sugeriu entatildeo Possui a Deus quem natildeo tem em si o espiacuterito imundo

Trad por Nair de Assis (Puer autem ille minimus omnium Is habet Deum ait qui spiritum immundum non

habet) A citaccedilatildeo se refere agrave Mt 5 8 68 ―Natildeo leste no Apoacutestolo Natildeo sabeis que sois o templo de Deus e que o espiacuterito de Deus habita em voacuteslsquo

Trad por Angelo Ricci (An apud Apostolum non legisti Nescitis quia templum Dei estis et spiritus Dei habitat

in uobis) A citaccedilatildeo se refere agrave 1 Cor 3 16 69 ―Uma vez que aquela doutrina da qual tomamos a ordem de viver reta e contidamente eacute letra que mata a natildeo ser que esteja vivendo no espiacuterito Pois natildeo deve ser entendido somente de uma maneira o que lemos A letra

mata mas o espiacuterito vivifica (Doctrina quippe illa qua mandatum accipimus continenter recteque uiuendi

littera est occidens nisi adsit uiuificans spiritus Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus

Littera occidit spiritus autem uiuificat) A citaccedilatildeo se refere agrave 2 Cor 3 6 70 E ainda ―A carne tem aspiraccedilotildees contraacuterias ao espiacuterito e o espiacuterito contraacuterias agraves da carne Opotildeem-se

reciprocamente de sorte que natildeo fazeis o que quereis Trad por Nair de Assis Oliveira (et illud ―Caro

concupiscit aduersus spiritum spiritus autem aduersus carnem haec enim inuicem aduersantur ut non ea quae

uultis faciatis) A citaccedilatildeo se refere agrave Gl 5 17 71 cf De Genesi ad litteram XII xxiii 49 72 cf Rm 8 9-16 1Cor 2 10-15 Lc 23 46 Jo 4 23-24 6 63-64

30

Eis o que eu quero te explicar agora o que potildee o homem acima dos animais

seja qual for o nome com que designemos tal faculdade seja mente ou

espiacuterito ou com mais propriedade um e outro indistintamente porque encontramos esses dois vocaacutebulos tambeacutem nos Livros Sagrados ndash quando

pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros

elementos que o constituem ele encontra-se em perfeitamente ordenado73

Com efeito o excerto acima confirma dois fatos (i) o spiritus eacute considerado

um princiacutepio racional proacuteprio do ser humano e (ii) esta conceituaccedilatildeo de spiritus eacute retirada da

Biacuteblia Aleacutem disso o excerto tambeacutem introduz sua relaccedilatildeo com o conceito de mens do qual

trataremos no subcapiacutetulo seguinte

15 MENS COMO A PARTE MAIS EXCELENTE DA ANIMA HUMANA

Conforme vimos no capiacutetulo anterior spiritus e mens (termo que eacute geralmente

traduzido por mente ou pensamento) mantecircm intriacutensecas relaccedilotildees no pensamento de

Agostinho e por vezes podem ser tratados como anaacutelogos Com efeito a razatildeo para

Agostinho se referir a spiritus e mens de modo siacutemile reside no fato de que a mens eacute a parte

constituinte mais importante do spiritus Por englobar a mens pode-se dizer que quando se

fala de spiritus pode-se tambeacutem se falar da mens uma vez que a mens se inclui no conceito

de spiritus Consoante Agostinho

Quanto agraves palavras no espiacuterito de vossa mente o Apoacutestolo natildeo quis significar duas coisas como se uma fosse o espiacuterito e outra a mente Mas

assim fala porque toda mente eacute espiacuterito ainda que nem todo espiacuterito seja

mente Deus mesmo eacute espiacuterito (Jo 4 24) que natildeo se pode renovar pois natildeo pode envelhecer No homem chama-se tambeacutem espiacuterito o que natildeo eacute a mente

mas essa parte da mente que diz respeito agraves imagens dos objetos corporais A

propoacutesito desse espiacuterito fala o Apoacutestolo na carta aos Coriacutentios Se oro em

liacutenguas meu espiacuterito estaacute em oraccedilatildeo mas minha mente nenhum fruto colhe (1Cor 14 14) Ele faz alusatildeo aiacute ao caso de se falar sem entender o que eacute dito

porque nada se poderia dizer se a imagem das palavras materiais por uma

representaccedilatildeo do espiacuterito natildeo precedesse ao som da voz A alma humana tambeacutem eacute denominada espiacuterito Lecirc-se por exemplo no Evangelho E

inclinando a cabeccedila entregou o espiacuterito (Jo 19 30) significando a morte do

corpo ao ausentar-se a alma [] Nessa variedade de significados da palavra

―espiacuterito o Apoacutestolo quis dizer que ―espiacuterito da mente eacute o espiacuterito denominado mente

74

73 lib arb I viii 18 Illud est quod uolo dicere hoc quidquid est quo pecoribus homo praeponitur siue mens

siue spiritus siue utrumque rectius appellatur (nam utrumque in diuinis Libris inuenimus) si dominetur atque

imperet caeteris quibuscumque homo constat tunc esse hominem ordinatissimum Trad por Nair de Assis

Oliveira 74 trin XIV xvi 22 Quod autem ait ―spiritu mentis uestrae non ibi duas res intellegi voluit quasi aliud sit

mens aliud spiritus mentis sed quia omnis mens spiritus est non autem omnis spiritus mens est Est enim

31

A passagem acima julgamos eacute riquiacutessima em informaccedilotildees e conceitos (i)

Agostinho evidencia que mens eacute spiritus razatildeo pela qual eacute possiacutevel afirmar que a mens eacute parte

constituinte do spiritus (ii) nem todo spiritus pode ser dito mens pois existe no homem uma

natura spiritalis que eacute responsaacutevel por formar as imagens do mundo corpoacutereo e que natildeo eacute

mente mas eacute inferior agrave ela75

e por fim (iii) a funccedilatildeo da mens eacute compreender as imagens

fornecidas por essa natura spiritalis Dito isso concordamos com a afirmaccedilatildeo de Gilson

consoante a qual ―o pensamento mens eacute a parte superior da alma racional eacute ele que adere aos

inteligiacuteveis e a Deus76

Compreendemos que a forte noccedilatildeo de que a mens seja o elemento que

faz a conexatildeo entre Deus e o homem eacute o que daacute a ela o status de ser compreendida como a

parte mais excelente da anima humana ― tomando o conceito de anima em seu sentido

generalizante Por associaccedilatildeo compreendemos que se existe algo que se apresenta como a

imagem da perfeiccedilatildeo isto eacute de Deus eacute necessaacuterio pois que tal objeto goze de uma posiccedilatildeo

destacada em relaccedilatildeo a outras coisas que diferentemente desta primeira natildeo espelham a

imagem da perfeiccedilatildeo Nos dizeres de Agostinho

Abstraindo-nos do corpo e pensando apenas na alma a mente eacute uma parte da

alma como o eacute a sua cabeccedila o olho ou a face mas natildeo devemos pensar nisso de modo corpoacutereo A mente natildeo eacute a alma mas o que haacute de mais nobre na

alma Acaso podemos dizer que a Trindade estaacute em Deus como parte de

Deus e que natildeo seja Deus ela mesma Em consequecircncia cada homem eacute

denominado imagem de Deus natildeo devido a toda a sua natureza mas apenas quanto agrave mente E ele natildeo eacute senatildeo uma pessoa sendo a imagem da Trindade

pela mente77

Spiritus et Deus qui renovari non potest quia nec ueterascere potest Dicitur etiam spiritus in homine qui mens

non sit ad quem pertinent imaginationes similes corporum de quo dicit ad Corinthios ubi dicit ―Si autem

orauero lingua spiritus meus orat mens autem mea infructuosa est Hoc enim ait quando id quod dicitur non

intellegitur quia nec dici potest nisi corporalium uocum imagines sonum oris spiritus cogitatione praeueniant

Dicitur et hominis anima spiritus unde est in Evangelio ―Et inclinato capite tradidit spiritum quo significata

est mors corporis anima exeunte [] Quia ergo tot modis dicitur spiritus spiritum mentis dicere uoluit eum

spiritum quae mens uocatur Trad por Agustinho Belmonte 75 Gn litt XII ix 20 Que de modo proacuteprio eacute chamado espiacuterito certa forccedila da alma inferior agrave mente onde satildeo

formadas as semelhanccedilas das coisas corporais (qui modo quodam proprio uocatur spiritus uis animae quaedam

mente inferior ubi corporalium rerum similitudines exprimuntur) 76 GILSON Etieacutenne op cit p 96 77 trin XV vii 11 Detracto etiam corpore si sola anima cogitetur aliquid eius est mens tamquam caput eius uel

oculus uel facies sed non haec ut corpora cogitanda sunt Non igitur anima sed quod excellit in anima mens

uocatur Numquid autem possumus dicere Trinitatem sic esse in Deo ut aliquid Dei sit nec ipsa sit Deus

Quapropter singulus quisque homo qui non secundum omnia quae ad naturam pertinent eius sed secundum

solam mentem imago Dei dicitur una persona est et imago est Trinitatis in mente Trad por Agustinho

Belmonte

32

Da passagem acima podemos destacar os seguintes pontos (i) a reafirmaccedilatildeo

de que a mens eacute uma dimensatildeo constituinte da anima mas natildeo eacute a anima ― tomando o

conceito de modo generalizado natildeo especiacutefico Para a compreensatildeo desta ideia Agostinho

insere a relaccedilatildeo entre mens e anima e a compara com a relaccedilatildeo Deus e Trindade a mens estaacute

para a anima como uma dimensatildeo constituinte assim como Deus estaacute para a Trindade como

pessoa integrante (ii) a inserccedilatildeo da informaccedilatildeo de que a mens enquanto uma parte da anima

natildeo deve ser considerada em sentido fiacutesico ou material mas sim metafoacuterico Conforme jaacute

exposto Agostinho acredita fortemente na concepccedilatildeo de que a anima eacute imaterial e como tal

natildeo pode ter partes de modo que o termo ―pars (parte) deve ser considerado alegoricamente

Ainda no que concerne ao excerto anterior eacute possiacutevel notar a utilizaccedilatildeo de

representaccedilotildees alegoacutericas da mens como um recurso comparativo e explicativo

Representando-a como cabeccedila olho ou face natildeo satildeo raros os momentos em que Agostinho se

serve deste tipo de representaccedilatildeo quando se dispotildee a falar sobre a mens

A fim de que eu descobrisse e imaginasse para mim ndash em virtude da fraqueza do meu olho interior enfraquecido em mim justamente pelos meus

pecados ndash algum tipo de grau com o objetivo de contemplar as coisas

invisiacuteveis nas coisas propriamente visiacuteveis78

Mas qualquer um que seja um bom estimador das coisas vecirc que estas coisas

satildeo obscuras e que em vatildeo satildeo investigadas pela alma cujos olhos estatildeo

turvos79

Por isso a alma precisa de trecircs coisas ter olhos dos quais possa usar bem

olhar e ver O olho da alma eacute a mente isenta de toda a mancha do corpo isto

eacute jaacute afastada e limpa dos desejos das coisas mortais o que somente a feacute em primeiro lugar lhe pode proporcionar

80

Assim a nossa mente que eacute o olho da alma natildeo poderaacute atingir nem a sabedoria e nem a justiccedila a natildeo ser que irradie a luz da verdade e

miraculosamente alumie aquele que a partir da luz ilumina e natildeo eacute

iluminado Portanto a nossa proacutepria via eacute viver de maneira justa81

78 duab an VI 6 Quod ut reperirem propter imbecillitatem interioris oculi mei quae mihi peccatis meis iure

accidisset aliquem mihi ad inuisibilia contuenda in ipsis uisibilibus machinarer gradum Trad por Aloysio

Jansen 79 duab an XIII 21 Sed haec obscura esse et incassum ab animis lippientibus quaeri quisquis bonus rerum

existimator est uidet Trad por Aloysio Jansen 80 sol I vi 12 Ergo animae tribus quibusdam rebus opus est ut oculos habeat quibus iam bene uti possit ut

aspiciat ut videat Oculus animae mens est ab omni labe corporis pura id est a cupiditatibus rerum mortalium

iam remota atque purgata quod ei nihil aliud praestat quam fides primo Trad por Adaury Fiorotti 81 Io ev tr XXXV 3 sic mens nostra qui est oculus animae nisi ueritatis lumine radietur et ab illo qui

illuminat nec illuminatur mirabiliter illustretur nec ad sapientiam nec ad iustitiam poterit peruenire

33

Os excertos anteriores expotildeem um traccedilo caracteriacutestico do pensamento

agostiniano qual seja o de estabelecer relaccedilotildees metafoacutericas entre os conceitos de mens luz e

iluminaccedilatildeo Isso ocorre porque em Agostinho a mens natildeo eacute uma fonte emanadora de luz de

modo que na ausecircncia da luz a mens acaba por se mostrar impotente e sem capacidade de

enxergar Com efeito eacute necessaacuterio que a mens receba seu brilho de outra fonte de modo que

possa refleti-la tornando-se assim capaz de enxergar as coisas

A utilizaccedilatildeo deste recurso metafoacuterico em Agostinho natildeo eacute original jaacute

aparecendo outrora em Platatildeo Plotino e tambeacutem no texto biacuteblico Em Platatildeo tal alegoria se

encontra ao longo do livro sexto da Repuacuteblica82

em que o filoacutesofo grego introduz a relaccedilatildeo

entre os conceitos de Bem Verdade e mente (noucircs) comparando-os representativamente agraves

respectivas ideias de sol luz e oacutergatildeo da visatildeo83

Plotino recapitula a conceituaccedilatildeo platocircnica

aplicando-a a serviccedilo de sua miacutestica84

Agostinho emprega tais termos praticamente com a

mesma equivalecircncia conceitual pois a ideia de Bem platocircnica transforma-se na ideia de Deus

cristatilde Assim Agostinho acata a doutrina platocircnica sob a justificativa de que ela eacute coerente

com a verdade biacuteblica

82 cf Repuacuteblica VI 507c-511e 83 cf PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by James Adam

Cambridge Cambridge University Press 1965 84 Conforme Bezerra a experiecircncia miacutestica em Plotino pode ser comparada agrave visatildeo ―Uma visatildeo na qual o objeto

se converte no proacuteprio ato de ver A contemplaccedilatildeo eacute descrita como um entrar paulatino num palaacutecio adornado

com belas estaacutetuas semelhante ao filoacutesofo que passo a passo sai da caverna contemplando primeiro as sombras

para por fim ver a luz do sol (cf BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis

Vozes 2006 pp 88-89)

34

A causa de sua felicidade eacute a intuiccedilatildeo de certa luz inteligiacutevel que para eles eacute

Deus eacute distinta deles e os ilumina para que brilhem e por sua participaccedilatildeo

sejam perfeitos e felizes Fartas e repetidas vezes afirma Plotino explanando o pensamento de Platatildeo que nem mesmo aquela que julgam alma do

universo tem outro princiacutepio de felicidade diferente da nossa Tal princiacutepio eacute

luz que natildeo eacute aquela a que deve ser seu ser e que iluminando-a

inteligivelmente inteligivelmente brilha [] O grande platocircnico pretende que a alma racional ou antes alma intelectual (porque sob tal nome

compreende tambeacutem as almas dos bem aventurados imortais que natildeo vacila

em afirmar residentes no ceacuteu) natildeo reconhece como natureza superior agrave sua senatildeo a de Deus autor do mundo e seu autor e que os espiacuteritos celestes natildeo

recebem a vida feliz e a luz de inteligecircncia e verdade senatildeo da mesma fonte

de que nos vecircm Semelhante doutrina estaacute conforme com as seguintes

palavras do Evangelho ―Houve certo homem enviado de Deus chamava-se Joatildeo Veio como testemunha para dar testemunho da Luz a fim de que

todos por meio dele cressem Ele mesmo natildeo era a Luz mas vinha dar

testemunha da Luz Era a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo

85 Tal distinccedilatildeo mostra claramente que a alma racional ou

intelectual como era a de Joatildeo natildeo podia ser a Luz para si mesma mas

luzia pela participaccedilatildeo de outra Luz verdadeira86

Por sua plena capacidade cognitiva e ultrapassando o que eacute inferior agrave proacutepria

anima a mente eacute capaz de atividades menos nobres como apreender as coisas corpoacutereas Por

outro lado e sobretudo a mente tambeacutem eacute capaz de atividades mais excelentes como a

contemplaccedilatildeo das coisas invisiacuteveis e imutaacuteveis e do Eterno87

85 cf Jo 1 6-9 86 ciu X ii obiecto quodam lumine intellegibili quod Deus est illis et aliud est quam illi a quo illustrantur ut

clareant atque eius participatione perfecti beatique subsistant Saepe multumque Plotinus asserit sensum Platonis explanans ne illam quidem quam credunt esse universitatis animam aliunde beatam esse quam nostram idque

esse lumen quod ipsa non est sed a quo creata est et quo intellegibiliter illuminante intellegibiliter lucet Dat

etiam similitudinem ad illa incorporea de his caelestibus conspicuis amplisque corporibus tamquam ille sit sol et

ipsa sit luna Lunam quippe solis obiectu illuminari putant Dicit ergo ille magnus Platonicus animam

rationalem siue potius intellectualis dicenda sit ex quo genere etiam immortalium beatorumque animas esse

intellegit quos in caelestibus sedibus habitare non dubitat non habere supra se naturam nisi Dei qui fabricatus

est mundum a quo et ipsa facta est nec aliunde illis supernis praeberi uitam beatam et lumen intellegentiae

ueritatis quam unde praebetur et nobis consonans Euangelio ubi legitur ―Fuit homo missus a Deo cui nomen

erat Ioannes hic uenit in testimonium ut testimonium perhiberet de lumine ut omnes crederent per eum Non

erat ille lumen sed ut testimonium perhiberet de lumine Erat lumen uerum quod illuminat omnem hominem

uenientem in hunc mundum In qua differentia satis ostenditur animam rationalem uel intellectualem qualis erat in Ioanne sibi lumen esse non posse sed alterius ueri luminis participatione lucere 87 Assinalamos ainda que a compreensatildeo do conceito de mens natildeo deve se limitar agrave sua concepccedilatildeo como uma

parte puramente intelectual da alma ao seu papel transcendente no interior da filosofia agostiniana Conforme

observa Cunha ―Traduzindo mens por mentelsquo poder-se-ia equivocar e expressar uma partelsquo da alma puramente

intelectuallsquo ndash que eacute o que se entende hoje por mente ndash com a exclusatildeo da vontade e o que se pretende eacute

justamente o contraacuterio isto eacute ressaltar que para Agostinho a mens inclui a vontade o amor (que eacute uma vontade

mais intensiva) A intelectualidade agostiniana abrande o amor toda atividade cognitiva depende da vontade

diversamente por exemplo da intelectualidade tomasiana ou cartesiana (cf CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo

da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

p 7)

35

Deste modo a mens eacute aquilo que eacute comum a Deus e ao homem pois eacute o meio

(medium) que os une88

Em De Genesi aduersus Manicheos89

Agostinho exprime a ideia de

que a anima (tomada de modo geral e natildeo especiacutefico) estaacute numa posiccedilatildeo intermediaacuteria entre

as coisas corpoacutereas e Deus para tanto Agostinho concebe que as coisas corpoacutereas lhe satildeo

inferiores e que Deus lhe eacute superior Assim eacute dever da anima natildeo se desviar para um lado ou

para outro mas permanecer no meio como uma aacutervore plantada no meio do paraiacuteso Poreacutem

para que isso aconteccedila e para que a anima natildeo se desvie eacute necessaacuterio que a anima entenda

(intellegat) que Deus estaacute acima ela No entanto soacute pode inteligir alguma coisa aquele que eacute

dotado de mens Portanto eacute a mens que faz refulgir a luz de Deus sendo responsaacutevel pela

capacidade que temos de apreender as coisas e de reconhecer nosso lugar na ordem do

mundo

Quando pois se trata das coisas que percebemos pela mente isto eacute atraveacutes

do intelecto e da razatildeo estamos falando ainda em coisas que vemos como

presentes naquela luz interior de verdade pela qual eacute iluminado e de que frui o homem interior

90

A partir do excerto anterior eacute possiacutevel visualizar que Agostinho natildeo se refere agrave

mens de forma velada ou metaforicamente Ao contraacuterio Agostinho deixa transparecer uma

maneira sob a qual se pode entender a mens a saber como a uniatildeo entre a ratio e o

intellectus Com efeito pode-se dizer que a mens eacute aquilo que compreende em seu acircmago a

ratio e o intellectus de modo que aquilo que prescinda de uma ou de outra natildeo possa ser

chamado de mens

Por causa de sua constituiccedilatildeo a mens eacute capaz de aprender o inteligiacutevel A

apreensatildeo do inteligiacutevel natildeo ocorre nos animais irracionais por serem claramente destituiacutedos

de ratio e intelligentia natildeo satildeo em consequecircncia dotados de uma mens o que insere o

homem em posiccedilatildeo destacada em relaccedilatildeo a esses seres Dito isto somos impelidos a explanar

melhor a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectus

88 Conforme Brachtendorf ―Gott steht der mens vor indem er sie im Inneren lehrt und ihr die intellegibilia zeigt Die mens erblickt diese im inneren Licht der Wahrheit (cf BRACHTENDORF Johannes Mens In

Augustinus-Lexikon Vol 3 Basel Schwabe AG 2004-2010 p 1274) 89 Gn adu Man II ix 12 Lignum autem uitae plantatum in medio paradisi sapientiam illam significat qua

oportet ut intellegat anima in meditullio quodam rerum se esse ordinatam ut quamuis subiectam sibi habeat

omnem naturam corpoream supra se tamen esse intellegat naturam Dei et neque in dexteram declinet sibi

arrogando quod non est neque ad sinistram per neglegentiam contemnendo quod est et hoc est lignum uitae

plantatum in medio paradisi 90

mag XII 40 Cum uero de iis agitur quae mente conspicimus id est intellectu atque ratione ea quidem

loquimur quae praesentia contuemur in illa interiore luce ueritatis qua ipse qui dicitur homo interior illustratur

et fruitur Trad por Angelo Ricci

36

151 A COMPOSICcedilAtildeO DA MENS COMO RATIO E INTELLECTUS (OU INTELLIGENTIA)

Conforme a uacuteltima citaccedilatildeo do subcapiacutetulo anterior notamos que mens ratio e

intellectus satildeo conceitos que estabelecem relaccedilotildees entre si Antes poreacutem de investigar tais

relaccedilotildees vejamos como se definem este novo par de conceitos iniciando pelo conceito de

ratio

Segundo Gilson91

―a razatildeo (ratio) eacute o movimento pelo qual o pensamento

(mens) passa de um dos seus conhecimentos a outro associando-os ou dissociando-os

Assim compreendemos a ratio como uma potecircncia discursiva que desempenha a funccedilatildeo de

comandar e coordenar dados e conhecimentos obtidos atraveacutes do mundo sensiacutevel Nas

palavras de Agostinho

A razatildeo eacute o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexatildeo entre as coisas que se conhecem Utilizar-se dela como guia para entender a

Deus ou a proacutepria alma que estaacute em noacutes ou em toda parte eacute proacuteprio de

pouquiacutessimos no gecircnero humano natildeo por outro motivo senatildeo porque para

aquele que estaacute disperso nos assuntos dos sentidos eacute difiacutecil voltar-se a si mesmo

92

O conhecimento cientiacutefico93

eacute o resultado deste movimento da mens Ademais

aleacutem da compreensatildeo da ratio como funccedilatildeo e atividade isto eacute como um movimento da mens

a citaccedilatildeo anterior deixa entrever um sengundo sentido a saber da ascenccedilatildeo a Deus Trata-se

da ideia de que a ratio eacute capaz em funccedilatildeo do seu proacuteprio movimento de apreender e

compreender as coisas mundanas e mutaacuteveis Ao entender que o mundo corpoacutereo pode

induzir a ratio a cometer juiacutezos equivocados a ratio executa outro movimento e atraveacutes

deste exerciacutecio busca elevar-se agrave sua proacutepria inteligecircncia (intelligentia) e de laacute ao

conhecimento de Deus Conforme Agostinho

91 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 92 ord II xi 30 Ratio est mentis motio ea quae discuntur distinguendi et connectendi potens qua duce uti ad

Deum intellegendum uel ipsam quae aut in nobis aut usquequaque est animam rarissimum omnino genus

hominum potest non ob aliud nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in semetipsum cuique

difficile estTrad por Agustinho Belmonte 93

Por conhecimento cientiacutefico se compreende o conhecimento proacuteprio da scientia isto eacute do conhecimento certo

das realidades sensiacuteveis (cf FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de

Agustiacuten In Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998 p 45)

37

Buscando pois o motivo porque eacute que aprovara a beleza dos corpos quer

celestes quer terrenos e que coisa me tornava capaz de julgar e dizer

corretamente dos seres mutaacuteveis ―Isto deve ser assim aquilo natildeo deve ser assim procurando qual fosse a razatildeo deste meu raciociacutenio ao exprimir-me

naqueles termos descobri a imutaacutevel e verdadeira Eternidade por cima da

minha inteligecircncia sujeita agrave mudanccedila Deste modo dos corpos subia pouco a

pouco agrave alma que sente por meio do corpo e de laacute agrave sua forccedila interior agrave qual os sentidos comunicam o que eacute exterior ndash eacute este o limite ateacute onde chega o

conhecimento dos animais ndash e de novo dali agrave potecircncia raciocinante A esta

pertence ajuizar acerca das impressotildees recebidas pelos sentidos corporais Mas essa potecircncia descobrindo-se tambeacutem mutaacutevel em mim levantou-se ateacute

agrave sua proacutepria inteligecircncia afastou o pensamento das cogitaccedilotildees habituais

desembaraccedilando-se das turbas contraditoacuterias dos fantasmas para descortinar

qual fosse a luz que a esclareca quando proclamava sem a menor sombra de duacutevida que o imutaacutevel devia preferir-se ao mutaacutevel Daqui provinha o seu

conhecimento a respeito do proacuteprio Imutaacutevel pois se de nenhuma maneira o

conhecesse natildeo o anteporia com toda a seguranccedila ao variaacutevel Foi assim que ela atingiu aquele Ser em um abrir e fechar de olhos

94

O excerto anterior evidencia as duas funccedilotildees da ratio (i) em relaccedilatildeo ao mundo

sensiacutevel enquanto potecircncia discursiva realiza um trabalho de controle e de organizaccedilatildeo a

respeito dos dados sensoriais (ii) em relaccedilatildeo agrave proacutepria intelligentia exerce uma funccedilatildeo

proacutepria no processo ascencional em direccedilatildeo a Deus95

Deste modo eacute possiacutevel pressupor que

Agostinho compreende de modo conexo e intriacutenseco a relaccedilatildeo entre ratio e intelligentia (ou

intellectus)96

o que corrobora a compreensatildeo da constituiccedilatildeo da mens como a junccedilatildeo da ratio

e intellectusintelligentia97

94 conf VII xvii 23 Quaerens enim unde approbarem pulchritudinem corporum siue caelestium siue terrestrium

et quid mihi praesto esset integre de mutabilibus iudicanti et dicenti Hoc ita esse debet illud non ita hoc ergo

quaerens unde iudicarem cum ita iudicarem inueneram incommutabilem et ueram ueritatis aeternitatem supra

mentem meam commutabilem Atque ita gradatim a corporibus ad sentientem per corpus animam atque inde ad

eius interiorem uim cui sensus corporis exteriora nuntiaret et quousque possunt bestiae atque inde rursus ad

ratiocinantem potentiam ad quam refertur iudicandum quod sumitur a sensibus corporis quae se quoque in me

comperiens mutabilem erexit se ad intellegentiam suam et abduxit ―cogitationem a consuetudine subtrahens se

contradicentibus turbis phantasmatum ut inueniret quo lumine aspergeretur cum sine ulla dubitatione clamaret

incommutabile praeferendum esse mutabili unde nosset ipsum incommutabile (quod nisi aliquo modo nosset

nullo modo illud mutabili certa praeponeret) et peruenit ad id quod est in ictu trepidantis aspectus 95 Conforme Giovanni di Napoli ―a razatildeo se interpotildee na dialeacutetica da ascensatildeo a Deus por sua mesma funccedilatildeo

mediadora na estrutura psicoloacutegica do homem entre o mundo sensiacutevel e inteligiacutevel Parece entatildeo que se poderia

dizer que em santo Agostinho a razatildeo inclui em si a dianoeticidade e a noeticidade aquela de acento

aristoteacutelico na visatildeo cognoscitiva e esta de acento platocircnico na visatildeo parecem geminar-se na doutrina

agostiniana da razatildeo ao menos segundo o que insinua o fragmento das Confissotildees (cf DI NAPOLI Giovanni

Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por Victorino Capaacutenaga Madrid 1957 p 308) 96 Compreendemos que intellectus e intelligentia podem ser considerados como anaacutelogos Dessa maneira

amparados pelo comentaacuterio de Ferri que afirma ―o intellectus denominado tambeacutem intelligentia []

passaremos a utilizar a expressatildeo intellectusintelligentia (cf FERRI Ricardo op cit loc cit) 97 cf mag XII 40

38

Assim sendo se a mens eacute constituiacuteda pela ratio e pelo intellectusintelligentia

eacute possiacutevel pensar que ou ratio e intellectusintelligentia satildeo distintas ou desempenham

operaccedilotildees diferentes Caso contraacuterio natildeo faria sentido por exemplo que a ratio se elevasse a

seu proacuteprio intellectusintelligentia e que fosse somente desta forma que se poderia conceber

Deus em seu interior98

Deste modo podemos pensar que ambas sejam faculdades ou funccedilotildees

que embora integrem e formem um mesmo composto (a mens) parecem ser responsaacuteveis por

realizar atividades distintas

A ratio pode ser entendida como (i) faculdade discursiva a qual atraveacutes de seu

movimento permite ao homem apreender cognitivamente a realidade e como (ii) faculdade

que permite o processo ascensional do homem em direccedilatildeo a Deus No entanto para realizar

este fim a ratio precisa se elevar ao niacutevel do intellectusintelligentia Com efeito passamos agrave

definiccedilatildeo do conceito de terminologia dupla Segundo Gilson

Os dois termos intellectus e intelligentia foram impostos a Agostinho pelas Escrituras ambos significam uma atividade superior agrave razatildeo (ratio)

Intelligentia eacute aquilo que haacute no homem portanto na mens de mais eminente

pela mesma razatildeo confunde-se com intellectus99

Segundo o comentaacuterio de Gilson o intellectusintelligentia eacute superior agrave ratio

sendo o que a mens tem de mais excelente De imediato somos levados a nos questionar sobre

qual eacute a natureza desta atividade Em outras palavras nos perguntamos sobre o que garante ao

intellectusintelligentia o status de se sobressair em relaccedilatildeo agrave ratio

Conforme estabelecemos anteriormente a segunda funccedilatildeo da ratio consiste em

promover a ascensatildeo do homem em direccedilatildeo a Deus para que isso seja feito eacute necessaacuterio que

a ratio se eleve ao seu proacuteprio intellectusintelligentia Ora se isso de fato ocorre eacute

necessaacuterio afirmar que por meio do intellectusintelligentia o homem contempla Deus100

98 Tal processo ascensional tambeacutem aparece em De uera religione XXI 57 quando Agostinho afirma que ―a

alma (especificamente a respeito da parte que compete agrave razatildeo) toma consciecircncia de que natildeo eacute por si mesma que

pode julgar sobre a forma e o movimento dos corpos Ao mesmo tempo ela reconhece que sua proacutepria natureza eacute superior agrave natureza daquelas coisas sobre as quais julga Contudo reconhece tambeacutem ser ela mesma de

natureza inferior agravequela de quem recebe o poder de julgar E que natildeo eacute capaz de julgar sobre essa natureza que

lhe eacute superior (Itaque cum se anima sentiat nec corporum speciem motumque iudicare secundum seipsam

simul oportet agnoscat praestare suam naturam ei naturae de qua iudicat praestare autem sibi eam naturam

secundum quam iudicat et de qua iudicare nullo modo potest Traduccedilatildeo por Nair de Assis Oliveira) 99 GILSON Eacutetienne op cit loc cit 100 Como bem observa Brachtendorf ―a reflexatildeo leva agraves condiccedilotildees de possibilidade do juiacutezo e passando pelo

intelecto humano ao grau ainda superior o imutaacutevel Com este grau se alcanccedila a esfera do divino (cf

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota Satildeo Paulo

Loyola 2012 p 145)

39

Certamente natildeo existe uma atividade mais eminente do que esta jaacute que tender a Deus eacute o fim

uacuteltimo do homem101

Para compreender esta noccedilatildeo vejamos o que diz Agostinho

O olhar da alma eacute a razatildeo Mas como natildeo se segue que todo aquele que olha

vecirc o olhar correto e perfeito isto eacute ao qual segue o ato de ver se chama

virtude a virtude eacute entatildeo a razatildeo correta e perfeita Entretanto o mesmo olhar natildeo pode voltar os olhos mesmo jaacute satildeos para a luz se natildeo houver

essas trecircs coisas a feacute pela qual voltando o olhar ao objeto e vendo-o se

torne feliz a esperanccedila pela qual se olhar bem pressupotildee que o veraacute e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso Jaacute ao olhar segue a proacutepria

visatildeo de Deus que eacute o fim do olhar natildeo porque jaacute deixe de existir mas

porque natildeo haacute nada a aspirar Esta eacute verdadeiramente a perfeita virtude a razatildeo atingindo o seu fim seguindo-se a vida feliz A proacutepria visatildeo eacute o

entendimento (intellectus) existente na alma que consiste do sujeito

inteligente e do objeto que se conhece como ocorre com a visatildeo dos olhos

que consiste do mesmo sentido e do objeto que se vecirc Faltando um dos dois natildeo se pode ver

102

Segundo o excerto anterior Agostinho identifica a ratio com a atividade de

―olhar da anima (aspectus animae) tal relaccedilatildeo estabelecida primeiramente nos Soliloquia

tornaraacute a aparecer em textos seguintes do pensador como em De immortalitate animae103

e

De quantitate animae104

Em seguinda Agostinho firma a relaccedilatildeo entre

intellectusintelligentia e o conceito de ―visatildeo (visio) Ora natildeo se duvida de que a visatildeo eacute

mais excelente que o simples ato de olhar jaacute que a visatildeo corresponde ao ato de assimilaccedilatildeo da

coisa percebida pelo olhar portanto ―ver eacute ―olhar atentamente

101 Para Giorgini ―segundo Agostinho o fim da existecircncia e da filosofia eacute a busca da felicidade Toda a Filosofia

e a existecircncia do homem tendem a esse fim Com efeito Deus se identifica com o conceito de beatitude e

felicidade (cf GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000 p 58) 102 sol I vi 13 Aspectus animae ratio est sed quia non sequitur ut omnis qui aspicit uideat aspectus rectus atque

perfectus id est quem uisio sequitur uirtus uocatur est enim uirtus uel recta uel perfecta ratio Sed et ipse

aspectus quamuis iam sanos oculos conuertere in lucem non potest nisi tria illa permaneant fides qua credat ita

se rem habere ad quam conuertendus aspectus est ut uisa faciat beatum spes qua cum bene aspexerit se

uisurum esse praesumat caritas qua uidere perfruique desideret Iam aspectum sequitur ipsa uisio Dei qui est

finis aspectus non quod iam non sit sed quod nihil amplius habeat quo se intendat et haec est uere perfecta uirtus ratio perueniens ad finem suum quam beata uita consequitur Ipsa autem uisio intellectus est ille qui in

anima est qui conficitur ex intellegente et eo quod intellegitur ut in oculis uidere quod dicitur ex ipso sensu

constat atque sensibili quorum detracto quolibet uideri nihil potest 103 imm an VI 10 A razatildeo eacute o olhar da alma onde por si mesma e natildeo pelos corpos intui a verdade (Ratio est

aspectus animi quo per seipsum non per corpus uerum intuetur) 104 an quant XXVII 53 Razatildeo eacute o olhar da mente e raciociacutenio eacute o raciociacutenio da inteligecircncia ou seja o

movimento do olhar da mente sobre aquilo que deve examinar Essa indagaccedilatildeo ou raciociacutenio eacute necessaacuteria para a

procura O olhar da mente ou racionalidade eacute necessaacuterio para ver intelectualmente (ut ratio sit quidam mentis

aspectus ratiocinatio autem rationis inquisitio id est aspectus illius per ea quae aspicienda sunt motio Quare

ista opus est ad quaerendum illa ad uidendum Trad por Aloysio Jansen)

40

Assim a relaccedilatildeo entre mens ratio e intellectusintelligentia pode ser expressa

da seguinte maneira a mens eacute o olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por

fim o intellectusintelligentia eacute verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Conforme

dissera Agostinho a visatildeo uacuteltima isto eacute o fim do ato de olhar eacute a contemplaccedilatildeo de Deus105

Desse modo a mens contendo em si a ratio e o intellectusintelligentia torna-se o

instrumento que permite o acesso do homem agrave bem-aventuranccedila

Compreende muito bem o homem ou se natildeo chega a compreendecirc-lo pelo

menos crecirc que foi feito agrave semelhanccedila de Deus Certamente que estaacute mais perto de Deus seu superior pela parte superior de si mesmo feita para

dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais Mas como a

proacutepria parte mental sede natural da razatildeo e da inteligecircncia estaacute muito

debilitada pelos viacutecios inveterados que a obscurecem necessitava antes de tudo de ser purificada pela feacute para aderir agrave luz imutaacutevel e dela gozar ou

mesmo para lhe suportar o esplendor ateacute que renovada e curada dia a dia se

torne capaz de uma tatildeo grande felicidade106

Compreendemos entatildeo que no homem a constituiccedilatildeo mens ratio e

intellectusintelligentia eacute justamente aquilo que lhe eacute mais excelente e que ao se

interrelacionarem ambos os elementos trabalham conjuntamente corroborando com a ascese

do ser humano Com efeito passagens que evidenciam o uso dos termos de modo anaacutelogo e

como sinocircnimos perdem seu aspecto ambiacuteguo como em De Genesi ad litteram

Aqui tambeacutem isto natildeo eacute preterido pois como havia dito ―agrave nossa imagem

imediatamente se acrescenta ―e tenha poder sobre os peixes do mar e aves do

ceacuteu e de outros animais destituiacutedos de razatildeo Estaacute claro ndash a fim de que noacutes entendamos que o homem foi feito agrave imagem de Deus ndash o que nos ultrapassa

em relaccedilatildeo aos animais irracionais Isto eacute a proacutepria razatildeo ou mente ou

inteligecircncia ou qualquer outro vocaacutebulo chamado de modo mais apropriado

107

105 Consoante a Enders ―Sind ratio und intellectus bei Augustinus noch weitgehend synonyme Bezeichnungen

des menschlichen Erkenntnisvermoumlgens wobei der Bedeutungschwerpunkt von ratio auf dem Urteilsvermoumlgen

der von intellectus auf dem Vermoumlgen zur Gotterkenntnis liegt― (cf ENDERS Markus ―Ratio und

―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer Begriffsgeschichte In Rationality from Saint

Augustine to Saint Anselm Proceedings of the International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd

2005 p59) 106 ciu XI 2 Cum enim homo rectissime intellegatur uel si hoc non potest saltem credatur factus ad imaginem

Dei profecto ea sui parte est propinquior superiori Deo qua superat inferiores suas quas etiam cum pecoribus

communes habet Sed quia ipsa mens cui ratio et intellegentia naturaliter inest uitiis quibusdam tenebrosis et

ueteribus invalida est non solum ad inhaerendum fruendo uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen

donec de die in diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax fide primum fuerat imbuenda atque

purgandaTrad por Oscar Paes Leme 107 Gn litt XIII xx 30 hic etiam illud non est praetereundum quia cum dixisset―ad imaginem nostram statim

subiunxit ―et habeat potestatem piscium maris et uolatilium coeli et caeterorum animalium rationis expertium

ut uidelicet intellegamus in eo factum hominem ad imaginem Dei in quo irrationalibus animantibus antecellit Id

autem est ipsa ratio uel mens uel intellegentia uel si quo alio uocabulo commodius appellatur

41

Passagens como a anterior evidenciam a assistematicidade da filosofia de

Agostinho Haacute assistemacidade quanto ao rigor terminoloacutegico mas natildeo quanto agrave objetividade

da mensagem Dito de outro modo natildeo importa quais sejam os vocaacutebulos utilizados para

explorar o modo como o homem chega ao divino o que importa eacute que existem uma seacuterie de

mecanismos faculdades ou funccedilotildees (natildeo importando como sejam chamadas) no ser humano

que ao se interrelacionarem datildeo agrave luz o conhecimento e possibilitam agrave ascensatildeo espiritual do

homem ao divino

16 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Ao longo deste capiacutetulo expusemos e analisamos a terminologia agostiniana

concernente ao conceito de vida mental Perpassamos os seguintes termos anima animus

spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais em resumo foram definidos da

seguinte maneira (i) anima eacute uma substacircncia dotada de princiacutepio vital responsaacutevel por

vivificar os corpos Tanto os animais irracionais quanto os homens satildeo dotados de uma

anima (ii) o animus tambeacutem compreendido como anima rationalis eacute uma sustacircncia dotada

de princiacutepio vital e racional Em virtude desta caracteriacutestica o animus eacute proacuteprio do homem

(iii) o spiritus em Agostinho tem duas acepccedilotildees uma acepccedilatildeo advinda de Porfiacuterio e outra da

Biacuteblia Na acepccedilatildeo porfiriana spiritus eacute uma parte do animus responsaacutevel por criar em si as

coacutepias das coisas com as quais interagimos no mundo sensiacutevel ao passo que na acepccedilatildeo

biacuteblica spiritus tem a mesma definiccedilatildeo de animus (iv) mens eacute a parte mais excelente da

estrutura psiacutequica humana responsaacutevel por desempenhar as funccedilotildees mais eminentes do

homem A mens por sua vez eacute formada a partir da junccedilatildeo da (v) ratio com o (vi)

intellectusintelligentia A ratio eacute a faculdade discursiva responsaacutevel pela ascese do homem

em direccedilatildeo a Deus com efeito quando a ratio se eleva ao intellectusintelligentia permite

que esta tenha a visatildeo de Deus

42

Conforme os conceitos eram definidos revelando em alguns momentos

acepccedilotildees distintas umas das outras fomos levados a considerar que nem sempre o leque

terminoloacutegico de Agostinho deve ser considerado de modo anaacutelogo Pudemos considerar

tambeacutem que este amplo leque terminoloacutegico revela que em Agostinho tais conceitos podem

ser entendidos como dimensotildees de uma mesma estrutura ou ainda como vaacuterias dimensotildees de

uma mesma vida mental ou de uma mesma alma Referimo-nos a noccedilatildeo de dimensotildees por

natildeo considerarmos que anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia sejam

somente faculdades ou partes da estrutura psiacutesquica em si mas aspectos emergentes de uma

soacute estrutura visto que em Agostinho como queremos defender a estrutura mental eacute uma soacute e

indivisiacutevel

43

CAPIacuteTULO 2

A DIMENSAtildeO CORPORAL E A VIDA MENTAL

21 APRESENTACcedilAtildeO

O intuito deste breve capiacutetulo eacute apresentar como Agostinho compreende o

conceito de corpo e como este conceito se relaciona com a estrutura aniacutemica responsaacutevel por

animaacute-lo Para noacutes eacute imprescindiacutevel a presenccedila de uma exposiccedilatildeo conceitual acerca do corpo

visto que a investigaccedilatildeo acerca da vida mental soacute eacute possiacutevel por intermeacutedio do corpo Em

outras palavras eacute impossiacutevel estudar nossa estrutura psiacutequica fora do corpo

Este capiacutetulo se divide em trecircs partes Na primeira parte mostraremos que o

conceito de corpus em Agostinho pode ser estudado sob vaacuterios acircngulos a saber (i) teoloacutegico

(ii) moral (iii) ontoloacutegico e (iv) antropoloacutegico Devido agrave proximidade de suas

fundamentaccedilotildees as quatro perspectivas de corpo em Agostinho podem ainda se reduzir a

duas (i) teoloacutegico-moral e (ii) ontoloacutegica e antropoloacutegica

Na segunda parte trataremos da acepccedilatildeo teoloacutegico moral do conceito de corpo

Ao longo da exposiccedilatildeo evidenciaremos a diferenccedila de pensamento existente entre Platatildeo e

Agostinho aleacutem de expor o valor positivo que o corpo adquire na doutrina cristatilde

Na terceira parte teceremos consideraccedilotildees acerca da acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Mostraremos atraveacutes dos excertos de Agostinho que o corpo (assim

como a psique) eacute uma substacircncia indeleacutevel formadora de um composto unitaacuterio chamado por

―homem ou ―ser humano

44

22 O CONCEITO DE CORPUS EM AGOSTINHO

A compreensatildeo do conceito de corpo como estrutura indeleacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano foi possiacutevel a Agostinho somente na medida em que conseguiu entender vaacuterios

aspectos centrais da doutrina cristatilde como (i) a criaccedilatildeo (ii) a encarnaccedilatildeo de Jesus Cristo (iii)

a ressurreiccedilatildeo dos corpos (iv) a Igreja como corpo de cristo e (v) os sacramentos108

todos

dependentes de uma acepccedilatildeo de corpo Talvez por conta de sua incursatildeo nesses aspectos da

doutrina cristatilde e da importacircncia que apresentam no pensamento de Agostinho alguns

comentadores e pesquisadores tenham a propensatildeo de compreender o conceito de corpo

humano mais exclusivamente a partir de uma perspectiva teoloacutegico-moral109

por vezes

preterindo ou deixando de lado a consideraccedilatildeo do conceito de corpo em Agostinho a partir de

uma perspectiva antropoloacutegica e ontoloacutegica110

O conceito de corpus cuja traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa eacute corpo111

eacute sem

duacutevida bastante recorrente na filosofia de Agostinho Conforme estabelecemos no capiacutetulo

anterior para Agostinho o animus (ou tambeacutem spiritus tomado em sua acepccedilatildeo escritural) eacute

uma substacircncia vital e racional que em sua uniatildeo com o corpo vivifica-o dando origem ao

que conhecemos por ser humano ou homem Em De ciuitate Dei Agostinho claramente

afirma que o homem nem eacute apenas alma e tampouco corpo mas que consta (constat) de

ambos112

108 cf MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p 6 109 Referecircncia no assunto Margaret Ruth Miles em sua obra Augustine on the body tece consideraccedilotildees valorosas

sobre o papel do corpo (i) na teoria agostiniana das sensaccedilotildees (ii) no processo asceacutetico do homem em direccedilatildeo a

Deus (iii) na compreensatildeo do ponto de vista cristatildeo da encarnaccedilatildeo e da ressurreiccedilatildeo (MILES Margaret

Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979) 110 Aspecto notado por Gerard OlsquoDaly em seu Augustinersquos Philosophy of Mind (cf OlsquoDALY Gerard op cit

pp 40-59) 111 Ao contraacuterio dos conceitos de anima animus spiritus mens ratio e intellectusintelligentia os quais

persistimos em manter a grafia latina (com a exceccedilatildeo das traduccedilotildees com fins de padronizaccedilatildeo das mesmas)

compreendemos que a traduccedilatildeo portuguesa para corpus resgata completamente o significado do termo o que natildeo

confere problemas para o entendimento da filosofia de Agostinho no que diz respeito suas consideraccedilotildees sobre o

corpo e sua relaccedilatildeo com a estrutura psiacutequica humana Deste modo natildeo insistiremos no uso do vocaacutebulo latino

neste capiacutetulo 112 cf ciu XIII xxiv 2 Homo non est corpus solum uel anima sola sed qui ex anima constat et corpore Trad

por Oscar Paes Leme

45

Se a constituiccedilatildeo do ser humano se daacute por intermeacutedio de uma estrutura aniacutemica

racional unida a um corpo mortal e material eacute necessaacuterio admitir que natildeo haacute homem que natildeo

seja o resultado dessas duas substacircncias quais sejam um corpo material e uma estrutura

aniacutemica ou alma Eacute deveras soacutelida em Agostinho a concepccedilatildeo de que o homem se constitui a

partir de uma e de outra coisa de modo que nem uma e nem outra possam ser consideradas de

modo equivalente Em outros termos o corpo eacute uma substacircncia e a alma eacute outra substacircncia A

partir da uniatildeo de corpo e alma estas duas substacircncias perfazem (tornam-se como que) uma

unidade Nas palavras de Agostinho

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma113

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo114

Malgrado a excelecircncia e superioridade da estrutura aniacutemica ante o corpo a

estrutura aniacutemica natildeo eacute suficiente por si soacute para formar o ser humano Assim parece-nos

que para Agostinho o homem jamais pode ser considerado homem somente em virtude de

um uacutenico aspecto isto eacute ou de sua estrutura aniacutemica ou de seu corpo

Alguns comentadores no entanto levantam duacutevidas a respeito dessa

categorizaccedilatildeo feita por Agostinho Gilson por exemplo compreende que Agostinho parece

vacilar na sua definiccedilatildeo de homem e ao fazecirc-lo por vezes mostra uma definiccedilatildeo bastante

parecida com a definiccedilatildeo de alma de modo que ―o homem portanto nada mais eacute finalmente

que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem115

A contestaccedilatildeo de Gilson

eacute completamente razoaacutevel quando se analisa por exemplo o segundo excerto da citaccedilatildeo

acima em que Agostinho afirma que o homem eacute uma ―anima rationalis habens corpus O

verbo habens indica plenamente que a anima possui e deteacutem o domiacutenio sobre o corpo Ora se

um objeto estaacute subordinado a outro eacute necessaacuterio que o possuidor exerccedila poder sobre o

possuiacutedo estabelecendo assim uma relaccedilatildeo hieraacuterquica em que o possuiacutedo seja inferior ao

possuidor Destarte pode-se dizer em uacuteltima instacircncia que a anima detentora do corpo como

seu subordinado eacute o homem 113 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est

anima Trad por Agustinho Belmonte 114 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 115cf GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

46

Apesar da objeccedilatildeo Gilson acredita que Agostinho ainda iria defender sua

posiccedilatildeo de que o homem eacute um composto inextricaacutevel de psique e corpo Ainda no excerto da

anaacutelise anterior podemos observar que Agostinho diz ―sed unum hominem em que o

adjetivo unum (uacutenico) reforccedila a ideia de singularidade imbuiacuteda no conceito de homem Para

noacutes isso indica que Agostinho pretendeu salvaguardar-se de possiacuteveis objeccedilotildees similares agraves

de Gilson No entanto Agostinho natildeo se expressa de forma categoacuterica de modo que sua

afirmaccedilatildeo se mostra aberta a possibilidades interpretativas

Para noacutes o conceito de corpo em Agostinho eacute de certo modo plural Ou seja eacute

um conceito que abrange vaacuterias acepccedilotildees (i) teoloacutegica pois o corpo assim como todas as

coisas eacute uma criaccedilatildeo de Deus (ii) moral pois o corpo tem sua funccedilatildeo na ordem do mundo

enquanto uma criatura (iii) antropoloacutegica pois o corpo eacute peccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo

do ser humano e (iv) ontoloacutegica pois o corpo eacute uma substacircncia Conforme dissemos

anteriormente as acepccedilotildees (i) e (ii) satildeo geralmente as mais estudadas pelos comentadores

Ademais costumam ser apresentadas de modo coadunado jaacute que eacute indissociaacutevel em

Agostinho a relaccedilatildeo entre teologia e moralidade Por diferentes razotildees as acepccedilotildees (iii) e (iv)

tambeacutem podem ser apresentadas de modo conjunto visto que natildeo existe nenhuma ligaccedilatildeo

necessaacuteria entre antropologia e ontologia ndash embora seja possiacutevel fazecirc-la Em nossa

dissertaccedilatildeo apresentaremos as quatro acepccedilotildees em dois pares pois compreendemos que o

conteuacutedo de nossa exposiccedilatildeo natildeo seraacute prejudicado pela coadunaccedilatildeo das acepccedilotildees das quais

nos encarregaremos nos subcapiacutetulos seguintes

221 A ACEPCcedilAtildeO TEOLOacuteGICO-MORAL DO CORPO

A compreensatildeo da acepccedilatildeo teoacutelogico-moral do corpo natildeo eacute imprescindiacutevel para

cumprir o intuito de nossa exposiccedilatildeo visto que a parte moral desta acepccedilatildeo natildeo corrobora

diretamente a concepccedilatildeo do corpo como suporte da vida mental humana Se por um lado a

acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo natildeo guarda relaccedilotildees significativas com a noccedilatildeo de corpo

como suporte da vida mental eacute verdade por outro lado que eacute justamente a acepccedilatildeo teoacutelogico-

moral que revela com firmeza a posiccedilatildeo de Agostinho ante o dualismo platocircnico em sua

divisatildeo entre a substacircncia corpoacuterea e a substacircncia psiacutequica Por intermeacutedio do distanciamento

da doutrina platocircnica Agostinho passa a considerar o par corpoalma como uma substacircncia

coesa numa soacute unidade

47

Natildeo contestamos o fato de que a filosofia de Platatildeo tenha influenciado

fortemente o pensamento de Agostinho Embora seja evidente a presenccedila de traccedilos platocircnicos

na filosofia agostiniana no que diz respeito agrave psique humana ― tomemos como exemplo as

consideraccedilotildees agostinianas a respeito da imortalidade e imaterialidade ― eacute importante

observar que Agostinho rejeita completamente o dualismo demarcado por Platatildeo Para o

pensador grego o corpo natildeo eacute mais do que um mero incocircmodo para a psique visto que ele

desempenha a funccedilatildeo de um obstaacuteculo e mais do que isso de caacutercere Vejamos o que fala

Platatildeo

E quanto agrave efetiva aquisiccedilatildeo de conhecimento Constitui o corpo um obstaacuteculo ou natildeo se houver com ele uma comunhatildeo visando agrave busca do

conhecimento116

Os amantes do conhecimento percebem que quando a filosofia apodera-se

de suas almas estas estatildeo encarceradas e ligadas ao corpo sendo compelidas

a considerar as realidades como se atraveacutes de barras da prisatildeo e natildeo por si mesmas com sua visatildeo livre estando chafurdadas na completa ignoracircncia E

a filosofia percebe que o que haacute de mais terriacutevel nesse encarceramento eacute ser

ele causado pelos apetites de modo que o encarcerado contribui para seu

proacuteprio encarceramento117

Os excertos platocircnicos evidenciam um forte antagonismo entre o corpo e a

psique o qual pode ser visto nos momentos em que o filoacutesofo grego se refere ao corpo como

prisatildeo caacutercere ou obstaacuteculo Ora ao dizer que o corpo eacute qualquer uma destas coisas Platatildeo

reforccedila os aspectos negativos desempenhados pelo corpo humano na ordem do mundo ora eacute

impossiacutevel defender que o corpo seja bom e fonte de enclausuramento ao mesmo tempo

Ademais ao asseverar que a psique constitui-se como um elemento divino imutaacutevel e

permanente mdash asseverando em simultacircneo que o corpo seria transitoacuterio corruptiacutevel e

mutaacutevelmdash a doutrina platocircnica apresenta-se como divergente da concepccedilatildeo cristatilde de

ressurreiccedilatildeo plena dos corpos118

116 Feacutedon 65a ηί δὲ δὴ πεξὶ αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ πόηεξνλ ἐκπόδηνλ ηὸ ζῶκα ἢ νὔ ἐάλ ηηοαὐηὸ ἐλ

ηῆ δεηήζεη Trad por Edson Bini 117 Feacutedon 82d ndash 83a γηγλώζθνπζη γάξ ἦ δ᾽ ὅο νἱ θηινκαζεῖο ὅηη παξαιαβνῦζα αὐηῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἡ θηινζνθία ἀηερλῶο δηαδεδεκέλελ ἐλ ηῷζώκαηη θαὶ πξνζθεθνιιεκέλελ ἀλαγθαδνκέλελ δὲ ὥζπεξ δηὰ εἱξγκνῦ δηὰ

ηνύηνπζθνπεῖζζαη ηὰ ὄληα ἀιιὰ κὴ αὐηὴλ δη᾽ αὑηο θαὶ ἐλ πάζῃ ἀκαζίᾳ θπιηλδνπκέλελ θαὶηνῦ εἱξγκνῦ ηὴλ

δεηλόηεηα θαηηδνῦζα ὅηη δη᾽ ἐπηζπκίαο ἐζηίλ ὡο ἂλ κάιηζηα αὐηὸο ὁδεδεκέλνο ζπιιήπησξ εἴε ηνῦ δεδέζζαη

Trad por Edson Bini 118 Gilson cita um fragmento do De resurrectione obra perdida de Satildeo Justino em que podemos ler ―Porque

Deus chamou a proacutepria carne para a ressurreiccedilatildeo e lhe promete a vida eterna Anunciar ao homem a boa nova da

salvaccedilatildeo eacute de fato anunciaacute-lo igualmente para a sua carne Porque eacute o homem senatildeo um ser racional composto

de uma alma e de um corpo A alma tomada em si natildeo eacute entatildeo o homem Natildeo mas ela eacute a alma do homem

Entatildeo eacute o corpo que eacute o homem Natildeo mas deve-se dizer que ele eacute o corpo do homem Visto que portanto nem

a alma e nem o corpo tomado agrave parte satildeo o homem mas que o que se chama por esse nome eacute o que nasce da

48

Diferentemente de Platatildeo o conceito de corpo em Agostinho natildeo eacute considerado

de modo integralmente negativo Eacute claro no entanto que natildeo restam duacutevidas de que

Agostinho sustentou que o corpo e as paixotildees podem levar o homem a se desviar do caminho

da verdadeira Felicidade (beatitude) especialmente por meio da incidecircncia no erro e na

praacutetica do mal119

Com efeito Agostinho afirma

Devemos evitar inteiramente as coisas sensiacuteveis e precaver-nos muito

enquanto vivemos neste corpo para que nossas asas natildeo sejam retidas pelo visgo dessas mesmas coisas Eacute necessaacuterio que nossas asas estejam iacutentegras e

perfeitas para voarmos destas trevas agravequela luz que certamente natildeo se digna

mostrar-se aos que estatildeo fechados nesta gaiola a natildeo ser que se portem de modo que uma vez rompida e quebrada esta gaiola possam escapar para as

suas regiotildees Por isso quando estiveres em tal condiccedilatildeo que absolutamente

nada do que eacute terreno te cause deleite acredita-me naquele momento naquele instante veraacutes o que desejas

120

Para Agostinho viver sob as reacutedeas do corpoacutereo impede o vislumbre e o

conhecimento de Deus A citaccedilatildeo anterior afirma que viver conforme as paixotildees do corpo eacute

viver encarcerado nas trevas e longe da luz Neste ponto com efeito o antagosnismo

estabelecido por Agostinho entre trevas e luz eacute evidente as trevas correspondem ao mal ao

passo que a luz corresponde ao bem isto eacute a Deus No entanto o mal natildeo subsiste aqui como

uma entidade ontoloacutegica dotada de existecircncia mas sim como um aspecto da moralidade

humana a partir do seu proacuteprio modus uiuendi

uniatildeo de ambos quando Deus chamou o homem agrave ressurreiccedilatildeo e agrave vida natildeo foi uma das suas partes mas o

homem total isto eacute a alma e o corpo que ele chamou (cf GILSON Eacutetienne op cit pp 232-233) 119 conf IV xv 26 Imaginava formas corpoacutereas Eu carne acusava a carne eu ―espiacuterito errante ainda natildeo me voltava para Voacutes Vagueando caminhava por quimeras que natildeo existem nem em Voacutes nem em mim nem nos

corpos Natildeo satildeo criaccedilotildees da vossa verdade mas puras ficccedilotildees que meu orgulho formava segundo os corpos (et

imaginabar formas corporeas et caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum reuertebar ad te et

ambulando ambulabam in ea quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore neque mihi creabantur a

ueritate tua sed a mea uanitate fingebantur ex corpore Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina) 120 sol I xiv 24 Penitus esse ista sensibilia fugienda cauendumque magnopere dum hoc corpus agimus ne quo

eorum uisco pennae nostrae impediantur quibus integris perfectisque opus est ut ad illam lucem ab his tenebris

euolemus quae se ne ostendere quidem dignatur in hac cauea inclusis nisi tales fuerint ut ista uel effracta uel

dissoluta possint in auras suas euadere Itaque quando fueris talis ut nihil te prorsus terrenorum delectet mihi

crede eodem momento eodem puncto temporis uidebis quod cupis Trad por Adaury Fiorotti

49

De fato natildeo eacute concebiacutevel para Agostinho a existecircncia do mal per se ndash como

uma entidade ontoloacutegica Por este motivo Agostinho rejeita toda e qualquer relaccedilatildeo que

venha a postular que o corpo e o corpoacutereo sejam substacircncias maacutes por natureza121

Para

Agostinho natildeo eacute concebiacutevel a existecircncia de qualquer substacircncia que seja maacute por natureza e

que provenha da criaccedilatildeo de Deus ao mesmo tempo visto que toda a criaccedilatildeo de Deus eacute boa

Ora esses dois princiacutepios a saber o corpo e a vida satildeo evidentemente

tomados aqui como pertencentes agraves criaturas (porque o Criador tambeacutem possui a vida e essa ao supremo grau) Ora aquelas duas criaturas o corpo e

a vida sendo perfectiacuteveis como dissemos acima e podendo recair no nada

pela perda total de suas perfeiccedilotildees mostram-nos bastante que elas tiram sua existecircncia daquela Perfeiccedilatildeo que eacute sempre idecircntica a si mesma Eacute porque

todos so bens sejam eles quais forem do maior ao menor natildeo podem

proceder senatildeo de Deus122

Com efeito podemos afirmar que em Agostinho o corpo pode ser considerado

uma fonte de tentaccedilotildees que impulsionam o homem a praticar o pecado e incidir no erro

Poreacutem natildeo se pode dizer que o corpo seja per se a origem do mal entendido como substacircncia

ontologicamente existente visto que o corpo eacute uma criaccedilatildeo de Deus e como tal perfectiacutevel

Destarte Agostinho afasta de sua filosofia qualquer possibilidade de uma associaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre corporalidade e maldade Embora natildeo exista uma relaccedilatildeo

ontoloacutegica e necessaacuteria entre o corpo e o mal na filosofia agostiniana admitimos poreacutem a

existecircncia de uma relaccedilatildeo moral ndash mas tambeacutem natildeo necessaacuteria ndash entre o corpo e o mal a qual

se torna evidente por intermeacutedio das accedilotildees do ser humano Em outras palavras dizemos que a

relaccedilatildeo entre o corpo e o mal soacute existe quando psique humana se deleita e se deixa entorpecer

pelo corpo

121 A opiniatildeo de que todos os corpos satildeo ruins por natureza adveacutem de Porfiacuterio De acordo com Porfiacuterio tudo

aquilo que remete ao corpo deveria ser evitado por ser ruim Agostinho poreacutem discorda da opiniatildeo de Porfiacuterio

pois nem acredita que os corpos sejam ruins por natureza nem que todas as coisas que advenham do corpo devam ser evitadas Em retr I iv 3 Agostinho faz uma ressalva do que afirmou em sol I xiv 24 afimando que

―eu deveria ter sido cuidadoso a fim de que eu natildeo seja considerado um defensor da sentenccedila daquele falso

filoacutesofo Porfiacuterio que disse que todos os corpos devem ser evitados Eu poreacutem natildeo disse todos os sensiacuteveis

mas esses sensiacuteveis (cauendum fuit ne putaremur illam Porphyrii falsi philosophi tenere sententiam qua dixit

omne corpus esse fugiendum Non autem dixi ego ―omnia sensibilia sed ―ista) 122 lib arb II xvii 46 Haec autem duo id est corpus et uita quae quidem creaturae deputantur (nam et Creatoris

ipsius uita dicitur et ea summa uita est) istae igitur duae creaturae corpus et uita quoniam formabilia sunt sicuti

superius dicta docuerunt amissaque omnino forma in nihilum recidunt satis ostendunt ex illa forma subsistere

quae semper eiusmodi est Quamobrem quantacumque bona quamuis magna quamuis minima nisi ex Deo esse

non possunt Trad por Nair de Assis Oliveira

50

Para Agostinho conforme jaacute estabelecemos o homem eacute formado pela uniatildeo

substancial entre um corpo e uma estrutura psiacutequica ou aniacutemica cujo nome comum eacute alma

Ademais demonstramos que a doutrina agostiniana assevera que a estrutura psiacutequica eacute

responsaacutevel por vivificar o corpo de modo que ao dar vida agravequilo que natildeo eacute animado por si

soacute a estrutura aniacutemica recebe o status de superior em relaccedilatildeo ao corpo Natildeo devemos

entender que conforme Agostinho a superioridade da psique ante o corpo implique um

dualismo radical que separe o corpo da psique Para noacutes a opiniatildeo de Agostinho nem se

aproxima da platocircnica mdash pois natildeo desconsidera o corpo completamente mdash nem antevecirc um

dualismo nos moldes cartesianos segundo os quais o homem eacute essencialmente a sua estrutura

psiacutequica123

O pensamento de Agostinho se difere da doutrina de Platatildeo e de Descartes

justamente no que diz respeito agrave valorizaccedilatildeo do corpo na constituiccedilatildeo do ser humano Logo

ainda que exista um dualismo no pensamento agostiniano natildeo eacute possiacutevel dizer que esta

doutrina dualista seja radical

Agostinho portanto compreende a psique como uma substacircncia que governa o

que natildeo eacute capaz de se autogovernar Com efeito mais do que animar o corpo a estrutura

aniacutemica deve conduzi-lo pois a psique eacute uma ―substantia quaedam rationis particeps

regendo corpori accommodata124

Ora se a psique tem o papel de reger125

o corpo ela deve

ser diretamente responsaacutevel pelo uso que eacute feito dele

Eis como no proacuteprio prazer corporal noacutes encontramos como aprender a

desprezaacute-lo Natildeo que o corpo seja mal por natureza mas porque eacute vergonhoso resolver-se no apego aos uacuteltimos bens quando nos eacute permitido

apegar-nos a bens mais altos e deles fruir126

123 Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira II 7 Sou portanto precisamente soacute coisa pensante isto eacute mente ou

acircnimo ou intelecto ou razatildeo vocaacutebulos cuja significaccedilatildeo eu antes ignorava Sou poreacutem uma coisa verdadeira e

verdadeiramente existente Mas qual coisa Jaacute disse coisa pensante (sum igitur praecise tantum res cogitans id

est mens siue animus siue intellectus siue ratio uoces mihi prius significationis ignotae Sum autem res uera

et uere existens sed qualis res Dixi cogitans Trad por Fausto Castilho) 124 an quant XIII 22 Eacute substacircncia dotada de razatildeo apata a reger um corpo Trad por Aloysio Jansen 125 Em Agostinho eacute muito forte a ideia de que o corpo eacute regido (do verbo latino rego-ere) pela psique ideia que

permaneceraacute inalterada ainda em seus textos de maturidade Em trin III iv 9 Agostinho diz ―Sed

quemadmodum corpora crassiora et inferiora per subtiliora et potentiora quodam ordine reguntur ita omnia

corpora per spiritum vitae et spiritus vitae irrationalis per spiritum vitae rationalem (Mas assim como os seres

mais simples e inferiores satildeo governados ordenadamente pelos mais subtis e fortes Assom todos os corpos o satildeo

por um espiacuterito vital Por sua vez o espiacuterito da vida irracional eacute governado pelo espiacuterito racional de vida Trad

por Agustinho Belmonte Grifo nosso) 126

uera rel XLV 83 Quapropter etiam in ista corporis uoluptate inuenimus unde commemoremur eam

contemnere non quia malum est natura corporis sed quia in extremi boni dilectione turpiter uolutatur cui primis

inhaerere fruique concessum est Trad por Nair de Assis Oliveira

51

Quando a psique conduz o corpo em direccedilatildeo agraves paixotildees127

isto eacute em direccedilatildeo

ao que eacute semelhante ao corpo ela incorre no risco de se apegar ao sensiacutevel quando isso

acontece a psique comeccedila a amar e adorar aquilo que eacute material em detrimento daquilo que eacute

espiritual fugindo de sua proacutepria natureza e se abrigando na falsidade e no erro culminando

na origem do mal moral

A psique deve portanto estar acima do corpo e das coisas materiais nunca

devendo se submeter ao corpo e tampouco aos desejos de cobiccedila e perversatildeo que se originam

no interior de si mesma128

Com efeito a acepccedilatildeo moral quanto ao papel do corpo na filosofia

de Agostinho situa-se justamente na maneira pela qual a psique vai se utilizar (do verbo latino

utor uti) do corpo a fim de regozijar-se (do verbo latino fruor frui) no bem maacuteximo isto eacute

em Deus129

Agrave psique cabe o domiacutenio do corpo justamente porque eacute superior a ele De modo

siacutemile a Deus cabe o domiacutenio da psique por lhe ser superior por natureza

Eacute comum no entanto que o homem frua nas coisas corpoacutereas ao inveacutes de fruir

em Deus Eacute exatamente em funccedilatildeo da fruiccedilatildeo dos homens sobre as coisas temporais que o

Verbo se fez carne e habitou no meio de noacutes130

com o objetivo de purificar os homens de seus

pecados131

Se por um lado a Encarnaccedilatildeo do Verbo sustenta Agostinho consistiu no

faacutermaco capaz de curar a enfermidade dos homens132

eacute verdade por outro lado que

Agostinho rejeitou completamente as asserccedilotildees platocircnicas sobre o corpo em vista da defesa de

uma concepccedilatildeo cristatilde que devido agrave ideia de Encarnaccedilatildeo professa a importacircncia do corpo na

ordem do mundo133

Podemos citar por exemplo trechos da primeira carta de Paulo de Tarso

aos Coriacutentios em que o Apoacutestolo diz

127 Adotamos o termo paixatildeo em vista de seu sentido claacutessico derivado do grego πάζνο e do latim passio O

termo designa a atuaccedilatildeo ou o poder que um objeto pode operar sobre um indiviacuteduo de modo que este indiviacuteduo

sofra isto eacute seja afetado esteticamente pela influecircncia do objeto ou coisa (cf PACCIONI Jean Paul Passion

In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National

de la Recherche Scientifique (CNRS) 2003 p774) 128 cf lib arb I iii 8 129 Sobre o valor moral do conceito de uti e sua relaccedilatildeo com o conceito de frui cf COSTA Marcos Roberto

Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho In Perspectiva Filosoacutefica Recife v4 n9 p

117-128 juldez 1996 130 Jo 1 14 131 Para os pensadores da Patriacutestica a Encarnaccedilatildeo de Cristo como uma forma de redenccedilatildeo da humanidade era

uma verdade indiscutiacutevel Tertuliano eacute um caloroso defensor desta verdade Miles ao comentar Tertuliano diz

―Tertulian pictured a mixture of God and human which grounded redemption in Christlsquos body a body he shared

with all humanity (cf MILES Margaret In Augustinus-Lexikon Vol 2 Basel Schwabe AG 1996-2002 p

10) 132 cf TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico sobre o De

Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013 p 73 133 Conforme Brachtendorf ―O cristianismo estaacute na consequecircncia do platonismo pois soacute ele alcanccedila os objetidos

que o platonismo reconheceu como dignos de esforccedilo No entanto Agostinho tambeacutem salienta o conteuacutedo extra

52

Ora se noacutes pregamos que Cristo ressucitou dos mortos como eacute que alguns

de vocecircs dizem que natildeo haacute ressureiccedilatildeo dos mortos Se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo

dos mortos entatildeo Cristo tambeacutem natildeo ressucitou134

Todavia algueacutem diraacute ―Como eacute que os mortos ressucitam Com que corpo

voltaratildeo Insensato Aquilo que vocecirc semeia natildeo volta agrave vida a natildeo ser que

morra [] A seguir Deus lhe daacute o corpo como quer ele daacute a cada uma das sementes do corpo o que lhe eacute proacuteprio

135

O mesmo acontece com a ressureiccedilatildeo dos mortos o corpo eacute semeado corruptiacutevel mas ressuscita incorruptiacutevel eacute semeado despreziacutevel mas

ressuscita glorioso eacute semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de forccedila eacute

semeado corpo animal mas ressuscita corpo espiritual136

Agostinho compreende e absorve as palavras de Paulo de Tarso Desse

entendimento Agostinho passa a assentir que Cristo ao ressuscitar restaura-se espiritual e

corporalmente ou seja de modo integral Com efeito se a Biacuteblia professa a inclusatildeo do corpo

no momento da ressureiccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender que o corpo desempenha um

importante papel na constituiccedilatildeo marcada pela uniatildeo entre material e espiritual137

De posse

desse conhecimento somos levados a crer que Agostinho assentiraacute na concepccedilatildeo de que o

corpo eacute um elemento crucial na constituiccedilatildeo do homem138

razatildeo pela qual denotaraacute ao corpo

valor e significado positivos139

Assim estabelecemos que em Agostinho a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral do corpo

se consolida como uma refutaccedilatildeo ao dualismo platocircnico o qual preza pelo antagonismo entre

corpo e psique e assinala que o corpo eacute ruim A partir de pressupostos biacuteblicos tais como (i)

Deus natildeo criou nenhuma criatura ruim e (ii) Cristo fez-se humano isto eacute em corpo e

psique140

Agostinho pocircde demonstrar que (i) o corpo eacute bom que (ii) o corpo natildeo eacute origem do

mal e (iii) que o mal existe apenas como uma maacute conduccedilatildeo do corpo

do cristianismo provavelmente a ideia da encarnaccedilatildeo quando diz que os platocircnicos deveriam modificar algumas

de suas palavras e visotildees (cf BRACHTENDORF Johannes op cit loc cit p 152) 134 1Cor 15 12 -13 135 ibid 35-36 38 136 ibid 42-44 137 Conforme Duffy ―o cristianismo primitivo daacute ao corpo um significado radicalmente novo constituindo um

modelo de integraccedilatildeo e de unidade do homem (cf DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San

Agustiacuten San Agustiacuten a traves del tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001 p 86) 138 cf an quant I 1 Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e

corpo (sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore Trad por

Aloysion Jansen) 139 Conforme Miles ―by the end of the third century discussions of the Incarnation attempted to define the

manner in which human and divine existed in unity in the embodied Christ Both of these questions require a

more positive view of the human body and its role and status than contemporary philosophical accounts or

ethical teachings could provide (cf MILES Margaret op cit loc cit) 140

Em conf VII xix 25 Agostinho afirma que ―e que aquela carne natildeo se tinha unido ao vosso Verbo senatildeo pela

alma e inteligecircncia humana (non haesisse carnem illam Verbo tuo nisi cum anima et mente humana Trad por

J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina)

53

Para noacutes poreacutem o ponto mais importante se encontra no momento em que

Agostinho compreende a partir do dogma da ressurreiccedilatildeo de Cristo que o ser o humano eacute

uma constituiccedilatildeo unitaacuteria uma unidade plena fruto da uniatildeo entre duas substacircncias no caso

entre (i) psique e (ii) corpo

Antes poreacutem de prosseguir com nossa exposiccedilatildeo vejamos um comentaacuterio de

Gilson que enlaccedila de maneira sinteacutetica grande parte daquilo que foi essencialmente discutido

neste toacutepico

Para ele (Platatildeo) a uniatildeo da alma e do corpo eacute o resultado do acidental de

uma queda eacute por uma violecircncia agrave sua natureza que a alma eacute encerrada no corpo como numa prisatildeo ou tuacutemulo e eacute por isso que todo o esforccedilo da

filosofia deve tender a libertaacute-la desse corpo Para um cristatildeo ao contraacuterio eacute

impossiacutevel em primeiro lugar que um estado natural seja o resultado de

uma queda porque a uniatildeo da alma ao corpo eacute natural e desejada por esse Deus que disse das suas obras que elas satildeo boas et vidit quod erant valde

bona Aleacutem disso visto que eacute da salvaccedilatildeo do homem por inteiro que eacute da

salvaccedilatildeo do homem por inteiro que se trata a filosofia cristatilde natildeo poderia propor-se salvar a alma do corpo mas em vez disso salvar o corpo pela alma

e para que seja assim o homem tem necessariamente de ser um composto

substancial muito diferente da justaposiccedilatildeo acidental imaginada por Platatildeo

Eacute por sinal o que explica que tatildeo firme na afirmaccedilatildeo da unidade do homem santo Agostinho se reconheccedila incapaz de justificaacute-la

141

222 A ACEPCcedilAtildeO ONTOLOacuteGICA E ANTROPOLIacuteGICA DO CORPO

A acepccedilatildeo ontoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho eacute sustentada pela

afirmaccedilatildeo agostiniana de que o corpo eacute uma substacircncia o que pode ser conferido em algumas

passagens como

Assim tambeacutem natildeo haacute cabeccedila sem corpo que a sustente o que eacute evidente Ora a cabeccedila e o corpo satildeo termos relativos entre si se bem que sejam

tambeacutem substacircncias sendo ambos realidadades fiacutesicas Se natildeo houver

cabeccedila natildeo haveraacute tambeacutem corpo que sustente essa cabeccedila Pode-se poreacutem separar a cabeccedila do corpo por um corte Entretanto com as coisas da alma

isso eacute impossiacutevel Haacute corpos que absolutamente sotildea indivisiacuteveis e nem

podem ser seccionados Contudo natildeo seriam corpos se natildeo constassem de

partes A parte estaacute pois em relaccedilatildeo com o todo porque uma parte eacute parte de algum todo e o todo eacute o todo por todas as suas partes Mas a parte e o

todo se satildeo corpos natildeo o satildeo somente de modo relativo mas tambeacutem de

modo substancial142

141 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 142 trin IX iv 6-7 Sicut caput capitati alicuius utique caput est et relatiue ad se dicuntur quamuis etiam

substantiae sint nam et caput corpus est et capitatum et si non sit corpus nec capitatum erit Sed haec

praecisione ab inuicem separari possunt illa non possunt Quod si sunt aliqua corpora quae secari omnino et

diuidi nequeunt tamen nisi partibus suis constarent corpora non essent Pars ergo ad totum relatiue dicitur quia

54

Sobre a citaccedilatildeo anterior podemos destacar os seguintes pontos (i) Agostinho

parece natildeo deixar duacutevida alguma a respeito da compreensatildeo do corpo como uma substacircncia

(ii) Agostinho evidencia que natildeo compreende o corpo como uma substacircncia somente mas sim

como uma substacircncia dotada de realidade fiacutesica o que demarca de modo preciso um

antagonismo com a substacircncia psiacutequica que eacute espiritual por excelecircncia (iii) por ser uma

substacircncia de realidade fiacutesica o corpo consta de partes e pode ser seccionado o que nos

permite inferir novas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave psique cuja substacircncia eacute simples e

completamente indivisiacutevel143

A partir das observaccedilotildees anteriores podemos afirmar que considerado em si

mesmo o corpo eacute uma substacircncia material (pois eacute uma realidade fiacutesica) complexa (pois eacute

composta de partes) e divisiacutevel (pois eacute possiacutevel seccionar suas partes)

Ao estabelecer que todo corpo eacute material complexo e divisiacutevel Agostinho

universaliza o conceito tornando-o abrangente e natildeo especiacutefico de modo que tudo aquilo que

eacute corpoacutereo ou ainda que tenha as mesmas caracteriacutesticas substanciais eacute um corpo Em outras

palavras o corpo de uma aacutervore o corpo de um cachorro e o corpo de um homem satildeo

substancialmente os mesmos em comum possuem corpos materiais complexos e divisiacuteveis

e os elementos de suas composiccedilotildees satildeo os mesmos como mostra Agostinho

Se me perguntarem de que eacute feita esta aacutervore que ali vemos eu posso dizer que se constitui dos quatro elementos Mas natildeo saberia dizer a composiccedilatildeo

de tais elementos em si ou o que satildeo exatamente Se a pergunta eacute sobre a

composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute constituiacutedo de alma e corpo O

corpo eacute feito dos quatro elementos Quanto agrave alma que entendo como substacircncia proacutepria natildeo saberia dizer como eacute tal substacircncia como natildeo sei

dizer como eacute a substacircncia dos elementos do corpo144

omnis pars alicuius totius pars est et totum omnibus partibus totum est Sed quoniam et pars corpus est et

totum non tantum ista relatiue dicuntur sed etiam substantialiter sunt Trad por Agustinho Belmonte 143 Ao comparar os atributos do corpo aos da pisque Agostinho em an quant III 4 diz ―Natildeo posso dizer o que eacute

a alma com expressotildees materiais e posso afirmar que natildeo tem qualquer tipo de dimensatildeo natildeo eacute longa ou larga ou dotada de forccedila fiacutesica e natildeo tem coisa alguma que entre na composiccedilatildeo dos corpos como medida e tamanho

(Quamobrem quanta sit anima secundum inquisitionem hanc tibi respondere non possum sed possum affirmare

neque illam longam esse nec latam nec robustam neque aliquid horum quae in mensuris corporum quaeri

solent Et hoc cur existimem rationem tibi reddam si placet Trad por Aloysio Jansen) 144 an quant I 2 Sed quemadmodum si ex me quaereres arbor ista ex quibus constet notissima ista elementa

quatuor nominarem ex quibus omnia talia constare credendum est porro si pergeres quaerere unde ipsa terra

uel aqua uel aer uel ignis constent nihil iam quod dicerem reperirem sic cum quaeritur ex quibus sit homo

compositus respondere possum ex anima et corpore rursum de corpore si quaeras ad illa elementa quatuor

recurram de anima uero quaerenti tibi cum simplex quiddam et propriae substantiae uideatur esse non aliter

haeream ac si quaeras ut dictum est unde sit terra Trad por Aloysio Jansen

55

Nesta citaccedilatildeo Agostinho afirma que tanto a aacutervore quanto o corpo humano satildeo

constituiacutedos dos quatro elementos (terra aacutegua ar e fogo) Apesar de reconhecer a sua proacutepria

incapacidade no que se refere ao conhecimento da constituiccedilatildeo dos proacuteprios elementos

Agostinho afirma que a composiccedilatildeo dos corpos se daacute a partir destes elementos Ainda que

Agostinho seja impreciso linguiacutestica e cientificamente visto que os corpos natildeo satildeo

constituiacutedos pelos quatro elementos mas sim por aacutetomos moleacuteculas e iacuteons eacute possiacutevel notar

que seu raciociacuteonio eacute verdadeiro Em outras palavras natildeo importa se satildeo os ―quatro

elementos ou os ―aacutetomos moleacuteculas e iacuteons aquilo que constitui os corpos mas sim que os

corpos satildeo formados por unidades de maacuteteria Com efeito os corpos de uma aacutervore e de um

homem satildeo substancialmente os mesmos a diferenccedila entre eles eacute de ordem formal ou seja no

modo como tais elementos foram estruturalmente organizados

Quando organizada estruturalmente a mateacuteria torna-se um corpo No entanto

em Agostinho a mateacuteria por si soacute isto eacute de modo autocircnomo natildeo eacute capaz de organizar e

constituir os corpos Com efeito eacute necessaacuterio que exista uma inteligecircncia detraacutes deste

processo de organizaccedilatildeo material Para Agostinho esta inteligecircncia natildeo poderia ser outra

senatildeo Deus que criou ex nihilo a mateacuteria informe e em seguida deu-lhe forma145

Nas

palavras de Agostinho

Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma mateacuteria informe essa mateacuteria foi tirada totalmente do nada Pois mesmo o que ainda natildeo estaacute

formado sem duacutevida alguma de algum modo jaacute tem iniciada a sua

formaccedilatildeo Ser susceptiacutevel de forma eacute benefiacutecio de seu Autor e possuiacute-la eacute

bem A simples capacidade de forma eacute pois certo bem Por conseguinte o autor de todas as formas ndash que eacute o doador de toda forma ndash tambeacutem eacute o

fundamento da possibilidade de algo ser formado E assim tudo o que eacute

enquanto eacute e tudo o que natildeo eacute enquanto pode vir a ser tem de Deus sua forma ou possibilidade de ser formado Dito de outro modo todo o ser

formado enquanto formado e todo o que ainda natildeo estaacute formado enquanto

formaacutevel encontra seu fundamento em Deus146

145 Sobre a criaccedilatildeo a partir do nada cf conf XII iv-viii 146 uera rel XVIII 36 Quapropter etiam si de aliqua informi materia factus est mundus haec ipsa facta est

omnino de nihilo Nam et quod nondum formatum est tamen aliquo modo ut formari possit inchoatum est Dei

beneficio formabile est bonum est enim esse formatum Nonnullum ergo bonum est et capacitas formae et ideo

bonorum omnium auctor qui praestitit formam ipse fecit etiam posse formari Ita omne quod est in quantum

est et omne quod nondum est in quantum esse potest ex Deo habet Quod alio modo sic dicitur omne

formatum in quantum formatum est et omne quod nondum formatum est in quantum formari potest ex Deo

habet Trad por Nair de Assis Oliveira

56

O princiacutepio formal dos corpos eacute Deus que como um artesatildeo molda a mateacuteria

e cria o mundo A respeito da criaccedilatildeo do primeiro ser humano a biacuteblia narra que Deus

moldou seu corpo a partir do barro e em seguida assoprou-lhe a vida nas narinas e o chamou

de Adatildeo147

Ora o barro eacute a representaccedilatildeo alegoacuterica da mateacuteria A psique natildeo eacute mateacuteria mas

sim uma substacircncia vital cuja funccedilatildeo primeira eacute animar a mateacuteria inerte Deus por sua vez eacute

o artesatildeo que realizou toda a tarefa que culminou na criaccedilatildeo do primeiro homem Com efeito

Deus eacute a causa formal do primeiro homem Interessa notar que a posiccedilatildeo de Agostinho se

difere completamente da posiccedilatildeo defendida por Aristoacuteteles que em seu De anima afirma que

a psique eacute ―a causa e princiacutepio do corpo que vive148

A psique ao ser definida como uma

forma do corpo por Aristoacuteteles eacute concebida a partir da exclusatildeo de toda e qualquer

determinaccedilatildeo que seja exterior agrave proacutepria psique Em Aristoacuteteles com efeito a uniatildeo entre

corpo e psique soa como uma uniatildeo acidental ao passo que em Agostinho o sentido eacute mais

profundo visto que existe uma inteligecircncia por detraacutes da uniatildeo Trata-se de uma inteligecircncia

que atraveacutes de um ato de livre vontade criou o homem isto eacute uma substacircncia complexa

composta de psique e corpo o que nos leva agrave acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo

A acepccedilatildeo antropoloacutegica do corpo no pensamento de Agostinho se fundamenta

na definiccedilatildeo de ser humano segundo a qual o homem eacute uma unidade de psique e corpo

Agostinho se arraiga fortemente a essa definiccedilatildeo incorporando-a em seu pensamento Tal

concepccedilatildeo parece permanecer inalteraacutevel ao longo de seu percurso intelectual e religioso na

medida em que as menccedilotildees a respeito da unidade substancial entre corpo e psique podem ser

encontradas tanto nos textos de juventude quanto nos de maturidade

Peccedilo agora jaacute que todos estamos de acordo em reconhecer que natildeo pode existir homem algum sem corpo e alma []

149

Se a pergunta eacute sobre a composiccedilatildeo do ser humano respondo que eacute

constituiacutedo de alma e corpo150

147 cf Gn 2 7 148 De an II iv 415b8 ἔζηη δὲ ἡ ςπρὴ ηνῦ δῶληνο ζώκαηνο αἰηία θαὶ ἀξρή Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos

Reis 149 beata u II 7 Nunc illud iam ex omnibus quaero cum fateamur cuncti neque sine corpore neque sine anima

esse posse hominem Trad por Nair de Assis Oliveira 150 an quant I 2 Sic cum quaeritur ex quibus sit homo compositus respondere possum ex anima et corpore

Trad por Aloysio Jansen

57

Se definirmos de outro modo o homem e dissermos ―O homem eacute uma

substacircncia racional que consta de alma e corpo fica esclarecido que ele tem

uma alma que natildeo eacute corpo e tem um corpo que natildeo eacute a alma151

Assim a alma que tem o corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem

[] O que eacute o homem Uma alma racional que tem um corpo152

Porquanto o homem natildeo eacute apenas alma e nem apenas corpo mas composto

de alma e de corpo153

O ponto comum de todos os excertos eacute a afirmaccedilatildeo de que o homem eacute um

composto unitaacuterio formado por duas substacircncias diferentes corpo e psique Conforme

afirmamos a definiccedilatildeo agostiniana de homem parece se manter inabalaacutevel no decurso de seu

pensamento ainda que seja apresentada contra essa definiccedilatildeo agravequela de matiz aristoteacutelico

presente no De ordine que afirma ser o homem ―um animal racional e mortal154

Na verdade a definiccedilatildeo dada no De ordine natildeo eacute totalmente adversa agrave

definiccedilatildeo agostiniana visto que soacute eacute possiacutevel ser um animal racional por meio de uma psique

ou estrutura aniacutemica e soacute eacute mortal tudo aquilo que eacute corpoacutereo porquanto somente o corpo eacute

pereciacutevel Com efeito ateacute mesmo a definiccedilatildeo de cunho aristoteacutelico pode ser utilizada para

justificar a compreensatildeo do homem como um composto psiacutequico e corporal A diferenccedila entre

a definiccedilatildeo aristoteacutelica e agostiniana se instancia apenas no plano conceitual daquilo que eacute o

corpo e daquilo que eacute a psique para cada um dos pensadores155

Ainda no que se refere ao conjunto de excertos anteriores eacute possiacutevel pressupor

que em Agostinho existe um geacutermen precursor do contemporacircneo conceito de ―mente-

corpo a qual supostamente o aproximaria de uma teoria materialista do organismo A

foacutermula ―a alma que tem um corpo natildeo faz duas pessoas mas um uacutenico homem deixa

entrever uma visiacutevel unidade entre aquilo que eacute psiacutequico e aquilo que eacute corpoacutereo

151 trin XV vii 11 Quod si etiam sic definiamus hominem ut dicamus Homo est substantia rationalis constans

ex anima et corpore non est dubium hominem habere animam quae non est corpus habere corpus quod non est anima Trad por Agustinho Belmonte 152 Io eu tr XIX 15 Sicut anima habens corpus non facit duas personas sed unum hominem [] Quid est

homo Anima rationalis habens corpus 153 ciu XIII xxiv 2 Quoniam homo non est corpus solum uel anima sola sed qui et anima constat et corpore

Trad por Oscar Paes Leme 154 ord II xi 31 quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est Homo est animal rationale mortale (O

homem foi definido pelos saacutebios antigos da seguinte maneira O homem eacute um animal racional mortal Trad por

Agustinho Belmonte) 155 Conforme vimos anteriormente Aristoacuteteles postulava ser a psique a forma do corpo Agostinho por sua vez

compreende que a psique eacute uma substacircncia e que o corpo recebe sua forma de Deus

58

Se o psiacutequico e o corpoacutereo compotildeem uma mesma unidade entatildeo natildeo seria um

absurdo trataacute-los a partir de um uacutenico conceito Considerando o que fora dito o conceito de

―corpo-psique (ou ―corpo-alma) poderia ser aplicado no pensamento de Agostinho para

expressar a unidade do homem Ressaltamos poreacutem que natildeo eacute nosso intuito inserir no

pensamento do autor um conceito que ele nunca utilizou Nosso objetivo portanto eacute o de

interpretar o pensamento agostiniano natildeo apenas no interior de seu contexto histoacuterico mas

para aleacutem dele na tentiva de introduzir o pensamento de Agostinho na discussatildeo de uma

problemaacutetica filosoacutefica contemporacircnea Com efeito destacamos o valor do pensamento

agostiniano no equacionamento dos problemas filoacutesoficos no que diz respeito agrave reflexatildeo sobre

a psique humana

Por um lado eacute possiacutevel pensar em Agostinho como um pensador pioneiro cuja

contribuiccedilatildeo conteacutem os geacutermens para se pensar nas contemporacircneas teorias materialistas do

problema ―mente-corpo Poderiacuteamos ir ateacute um pouco mais longe e antever em Agostinho

os geacutermens de influentes perspectivas contemporacircneas a exemplo de Gerald Edelman e de

outros para os quais a psique e as operaccedilotildees mentais satildeo fenocircmenos que emergem156

do

corpo em funcionamento157

Eacute fato que Agostinho estaacute um pouco longe dessa concepccedilatildeo

visto que o emergentismo eacute uma explicaccedilatildeo materialista para as origens e a estruturaccedilatildeo da

mente Salvaguardadas as devidas precauccedilotildees e assumindo uma posiccedilatildeo ousada afirmamos

que um ponto em comum entre Edelman e Agostinho eacute o de afirmar de maneira mais ou

menos expliacutecita que no homem corpo e estrutura mental natildeo se dissociam Dito isso eacute

possiacutevel pensar em uma aproximaccedilatildeo ainda que heterodoxa entre Agostinho e os pensadores

contemporacircneos da Filosofia da Mente

Se por um lado compreendemos que Agostinho pode ser compreendido como

um pensador importante no debate contemporacircneo acerca da estrutura mental humana por

outro lado compreendemos que seja temeraacuterio o desdobramento que decorre da ideia de

associar o pensamento de Agostinho a uma espeacutecie de doutrina integralista ou epifenomecircnica

Para noacutes a periculosidade desta proposta encontra-se na sua proximidade com teorias

monistas e ateacute mesmo dualistas

156 Pelo complexo conceito de emergecircncia entendo que ―se refere a um estado de coisas no qual as propriedades

de um certo domiacutenio natildeo se reduzem completamente agraves propriedades de outro domiacutenio (seriam ―autocircnomos)

apesar de serem em algum sentido produzidos por este outro domiacutenio (ou serem ―dependentes deste) No

atual momento desta pesquisa considero mais plausiacutevel defender um sentido fraco de emergecircncia isto eacute postulo

a imprevisibilidade a novidade e as qualidades fenomecircnicas subjetivas (qualia) dos estados mentais como

caracteriacutesticas evidentes na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro-corpo Cf PESSOA JUNIOR Oswaldo Emergecircncia e

Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013 p 22 157 cf EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven Yale

University Press 2004

59

23 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Tecemos ao longo deste capiacutetulo consideraccedilotildees a respeito do valor da

dimensatildeo corporal na filosofia de Agostinho Para noacutes uma exposiccedilatildeo acerca do corpo eacute

imprescindiacutevel visto que natildeo eacute possiacutevel compreender qualquer tipo de estrutura psiacutequica sem

que ela esteja relacioanda ao corpo Prova disso satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees que professam a

imaterialidade e espiritualidade da psique visto que a maioria dos argumentos que postulam a

imaterialidade e espiritualidade da psique satildeo formulados a partir de relaccedilotildees de

contraposiccedilatildeo com o corporal

Mesmo que o traccedilo caracteriacutestico do ser humano seja o conjunto de seus

processos e funccedilotildees mentais ndash fato que pode ser visto de modo indireto ateacute mesmo na claacutessica

definiccedilatildeo aristoteacutelica que afirma ser o homem um animal dotado de razatildeo ndash eacute impossiacutevel

negar o fato de que o homem tal como conhecemos seja composto de corpo isto eacute de uma

estrutura bioquiacutemica dotada de moleacuteculas e que ocupa lugar no espaccedilo

A valorizaccedilatildeo agostiniana do corpo mesmo que enviesada por pressupostos

bibliacutecos descortina a possibilidade de encontrarmos no pensador uma fresta que nos permite

compreender o homem como um composto indissoluacutevel de psique e corpo Eacute com base nessa

aposta que fomos motivados a estabelecer que o capiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo seraacute dedicado

ao problema que apenas contemporaneamente recebeu a alcunha de ―problema mente-corpo

Por acreditarmos no entanto que o problema mente-corpo tem ocupado parte importante de

grande parte da histoacuteria do pensamento desde antes do chamado ―milagre grego mdash

remontando agraves milenares tradiccedilotildees religiosas e de pensamento orientais dedicadas agrave

elaboraccedilatildeo de discussotildees cosmoloacutegicas e antropoloacutegicas mdash acreditamos tambeacutem em

consequecircncia que eacute possiacutevel delinear a importante influecircncia de Agostinho para o atual

estado de arte da questatildeo

60

CAPIacuteTULO 3

AGOSTINHO E O DEBATE ―MENTE-CORPO

31 APRESENTACcedilAtildeO

Pretendemos neste uacuteltimo capiacutetulo apresentar o modo como interpretamos e

inserimos o pensamento agostiniano no contemporacircneo debate sobre o chamado problema das

relaccedilotildees mente e corpo

Compreendemos que a filosofia agostiniana pode contribuir para o debate por

intermeacutedio de trecircs perspectivas interpretativas Em outras palavras o pensamento de

Agostinho no que concerne agraves relaccedilotildees ―mente-corpo pode ser enquadrado em trecircs

doutrinas filosoacuteficas a saber (i) o dualismo de substacircncias (ii) o monismo idealista e o (iii)

psicossomatismo Apresentaremos neste capiacutetulo as trecircs possibilidades interpretativas cada

qual acompanhada de suas respectivas fragilidades e problemas

Importa acrescentar que as duas primeiras interpretaccedilotildees (o dualismo e o

monismo) satildeo leituras consagradas ao passo que a uacuteltima interpretaccedilatildeo (o psicossomatismo) eacute

apresentada em formato de hipoacutetese Desta forma gostariacuteamos de salientar que o subcapiacutetulo

que levanta a possibilidade de uma interpretaccedilatildeo psicossomaacutetica eacute deveras introdutoacuterio

Consideramos que a hipoacutetese eacute bastante embrionaacuteria tendo surgido durante o processo de

confecccedilatildeo deste trabalho Partilhamos da opiniatildeo de que a hipoacutetese constitui-se como um

horizonte para uma nova pesquisa que busca inserir Agostinho na contemporaneidade em

busca de renovar a sua filosofia e de lhe devotar a devida importacircncia que o fez tornar-se sem

duacutevida um dos pensadores mais influentes do mundo ocidental

61

321 AGOSTINHO E O DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS

A primeira contribuiccedilatildeo de Agostinho para o problema ―mente-corpo pode ser

retirada de uma interpretaccedilatildeo dualista de seu pensamento

De maneira geral uma doutrina dualista eacute aquela que adota para explicar um

determinado fenocircmeno particular duas categorias de substacircncias (dualismo de substacircncias) ou

propriedades (dualismo de propriedades) independentes entre si Em uma doutrina que

procura investigar o funcionamento da psique e de sua relaccedilatildeo com o corpo mdash podendo

tambeacutem se dar entre a mente e o enceacutefalo (ceacuterebro cerebelo e tronco encefaacutelico) mdash o

dualismo surge como uma hipoacutetese que procura explicar a origem dos processos mentais

Atualmente existem vaacuterias concepccedilotildees que explanam sobre o dualismo as mais importantes

poreacutem satildeo duas a saber o dualismo de substacircncias e o dualismo de propriedades Em nosso

texto trataremos somente da concepccedilatildeo que postula um dualismo de substacircncias

Conforme Toledo o dualismo de substacircncias sustenta que ―o mundo eacute dividido

em duas substacircncias a substacircncia extensa que poderia ser chamada de substacircncia fiacutesica e a

substacircncia pensante que natildeo seria fiacutesica correspondendo agrave mente ou agrave alma158

Com efeito

o traccedilo caracteriacutestico que define o dualismo de substacircncia eacute justamente a presenccedila de duas

substacircncias mdash uma fiacutesica e outra psiacutequica mdash que natildeo indentificam-se entre si

Estabelecida portanto a principal carateriacutestica do dualismo de substacircncia

vejamos o seguinte excerto de Agostinho

Natildeo percebem todos eles que a alma se conhece no momento mesmo em que

se procura Assim o demonstramos acima Natildeo se pode dizer com loacutegica

que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substacircncia Se ela se conhece eacute proque ela conhece a sua substacircncia Se ela

se conhece com certeza eacute porque ela conhece com certeza a sua substacircncia

Ora ela se conhece com certeza como o prova tudo o que acima foi dito

Pelo contraacuterio ela natildeo tem certeza alguma de ser ar fogo corpo ou algo de corporal Natildeo eacute portanto nenhuma dessas coisas Toda forccedila do preceito de

conhecer-se reside na certeza de que natildeo eacute nada daquilo de que natildeo estaacute

certa e que ela unicamente estaacute certa de ser aquilo de que tem certeza159

158 TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos possiacuteveis Rio de

Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015 159 trin X x 16 Qui omnes non aduertunt mentem nosse se etiam cum quaerit se sicut iam ostendimus Nullo

modo autem recte dicitur sciri aliqua res dum eius ignoratur substantia Quapropter dum se mens nouit

substantiam suam nouit et cum de se certa est de substantia sua certa est Certa est autem de se sicut

conuincunt ea quae supra dicta sunt Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit an aliquod corpus uel aliquid

corporis Non est igitur aliquid eorum Totumque illud quod se iubetur ut nouerit ad hoc pertinet ut certa sit non

se esse aliquid eorum de quibus incerta est idque solum esse se certa sit quod solum esse se certa est Trad por

Agustinho Belmonte

62

Neste excerto destacamos dois pontos (i) A afirmaccedilatildeo de que a psique (mens

no texto original e alma na traduccedilatildeo de Agustinho Belmonte) eacute uma substacircncia o que pode

ser visto em ―dum se mens novit substantiam suam novit e (ii) A afirmaccedilatildeo de que a psique

natildeo eacute material o que pode ser constatado em ―Nec omnino certa est utrum aer an ignis sit

an aliquod corpus vel aliquid corporis Non est igitur aliquid eorum Com efeito eacute possiacutevel

pensar em Agostinho como um defensor do dualismo visto que substacircncia psiacutequica natildeo tem

identificaccedilatildeo alguma com a substacircncia fiacutesica

A justificativa de Agostinho para indicar uma separaccedilatildeo categoacuterica entre aquilo

que eacute de natureza psiacutequica e aquilo que eacute de natureza fiacutesica reside na natureza das operaccedilotildees

desempenhadas pela psique Em outras palavras o que Agostinho quer dizer eacute que se a psique

tivesse em sua constituiccedilatildeo alguma coisa fiacutesica entatildeo a psique por ter a capacidade de pensar

a si proacutepria e de conhecer a si proacutepria deveria ser capaz de reconhecer e pensar a substacircncia

fiacutesica da qual seria feita Conforme Agostinho na continuaccedilatildeo da citaccedilatildeo anterior

Com efeito a alma apenas pensa no fogo no ar e em qualquer outra

realidade corporal Ora seria impossiacutevel ela pensar no que ela mesma eacute

como pensa no que natildeo eacute Pode representar-se atraveacutes da imaginaccedilatildeo todas essas coisas seja o fogo ou o ar ou este ou aquele corpo a estrutura ou

constituiccedilatildeo do corpo Mas ela natildeo se diz ser essas coisas ou uma delas

Ora se fosse alguma delas pensaria nela de modo diferente em relaccedilatildeo agraves outras coisas ou seja natildeo por meio de uma representaccedilatildeo imaginaacuteria tal

como se pensa em coisas ausentes que influem nos sentidos corporais ndash quer

se trate desses mesmos objetos ou de coisas semelhantes Pensaria poreacutem

por meio de uma presenccedila interior real e natildeo imaginaacuteria ndash pois nada lhe eacute mais presente do que ela mesma ndash assim como pensa que estaacute viva que

recorda que entende ou quer Pois ela tem ciecircncia de todos esses atos em si

mesma Portanto natildeo eacute algo que imagina como se tivesse sido influenciada exteriormente mediante os sentidos como acontece com as realidades

corporais Se ela natildeo se apegar arbitrariamente a esses pensamentos de

modo a natildeo pensar que ela mesma seja algum desses elementos tudo o que mais lhe restar em si mesma eacute isso e isso soacute que eacute ela mesma

160

160 trin X x 16 Sic enim cogitat ignem aut aerem et quidquid aliud corporis cogitat Neque ullo modo fieri

posset ut ita cogitaret id quod ipsa est quemadmodum cogitat id quod ipsa non est Per phantasiam quippe

imaginariam cogitat haec omnia siue ignem siue aerem siue illud uel illud corpus partemue illam seu

compaginem temperationemque corporis nec utique ista omnia sed aliquid horum esse dicitur Si quid autem

horum esset aliter id quam cetera cogitaret non scilicet per imaginale figmentum sicut cogitantur absentia quae

sensu corporis tacta sunt siue omnino ipsa siue eiusdem generis aliqua sed quadam interiore non simulata sed

uera praesentia (non enim quidquam illi est se ipsa praesentius) sicut cogitat uiuere se et meminisse et

intellegere et uelle se Novit enim haec in se nec imaginatur quasi extra se illa sensu tetigerit sicut corporalia

quaeque tanguntur Ex quorum cogitationibus si nihil sibi affingat ut tale aliquid esse se putet quidquid ei de se

remanet hoc solum ipsa est Trad por Agustinho Belmonte

63

Assim a psique eacute uma estrutra diferente do corpo exatamente por desempenhar

funccedilotildees que aparentemente natildeo se remetem ao mundo fiacutesico tais como pensar viver

recordar entender e querer (―sicut cogitat uiuere se et meminisse et intellegere et uelle se)

Todas essas operaccedilotildees satildeo psiacutequicas e como tais distintas de materialidade Logo eacute

necessaacuterio supor que exista alguma substacircncia psiacutequica distinta da mateacuteria que seja capaz de

realizar operaccedilotildees psiacutequicas

Considerando o que foi exposto ateacute o momento eacute bem plausiacutevel que Agostinho

possa ser interpretado como um pensador dualista Inclusive esta eacute uma leitura relativamente

aceita por alguns comentadores161

Se por um lado Agostinho daacute evidecircncias que deixam

abertas as possibilidades de entendecirc-lo como um dualista por outro lado a adoccedilatildeo desta

leitura levanta problemas de ordem filosoacutefica

322 O PROBLEMA DO DUALISMO DE SUBSTAcircNCIAS EM AGOSTINHO

O primeiro problema levantado pela adoccedilatildeo desta interpretaccedilatildeo repousa na

dificuldade de se encontrar o elemento que faccedila a mediaccedilatildeo entre a psique e o corpo Em

outras palavras se o psiacutequico natildeo tem nada de corpoacutereo em sua substacircncia e se por outro

lado o corpoacutereo natildeo tem nada de psiacutequico qual o elemento que permite a comunicaccedilatildeo entre

ambas as partes

A pergunta anterior natildeo encontra uma resposta satisfatoacuteria no interior da

filosofia agostiniana visto que Agostinho ao contraacuterio de Descartes natildeo pareceu ter aventado

a possibilidade da pergunta Descartes por sua vez postula na obra As paixotildees da alma que o

elemento mediador entre a psique e o corpo (em especiacutefico o ceacuterebro) eacute uma pequena

glacircndula alojada no ceacuterebro chamada de glacircndula pineal

161 cf MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu tempo Trad

por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

64

Eacute necessaacuterio tambeacutem saber que embora a alma esteja unida a todo o corpo natildeo obstante haacute nele alguma parte em que ela exerce as suas funccedilotildees mais

particularmente do que em todas as outras e crecirc-se comumente que esta

parte eacute o ceacuterebro ou talvez o coraccedilatildeo porque eacute nele que parece sentirem-se as paixotildees Mas examimando o caso com cuidado parece-me ter

reconhecido com evidecircncia que a parte do corpo em que a alma exerce

imediatamente suas funccedilotildees natildeo eacute de modo algum o coraccedilatildeo nem o ceacuterebro

todo mas somente a mais interior de suas partes que eacute certa glacircndula muito pequena situada no meio de sua substacircncia []

162 A razatildeo que me persuade

de que a alma natildeo pode ter em todo o corpo nenhum outro lugar exceto

essa glacircndula onde exerce imediatamente suas funccedilotildees []163

Ainda que bastante perspicaz a soluccedilatildeo proposta por Descartes natildeo eacute definitiva

e infaliacutevel Com efeito o problema ainda persiste mas com nova roupagem Se a glacircndula

pineal eacute um pequeno oacutergatildeo cerebral entatildeo essa pequena estrutura por ser um oacutergatildeo eacute dotada

de caracteriacutesticas fiacutesicas Logo o problema ainda natildeo desaparece como uma substacircncia fiacutesica

eacute capaz de exercer influecircncia sobre uma substacircncia psiacutequica O desembaraccedilo por sua vez soacute

poderia ser resolvido caso a glacircndula pineal fosse ao mesmo tempo uma estrutura dual isto

eacute fiacutesica e psiacutequica

Em Descartes eacute possiacutevel pressupor um local especiacutefico para a origem da

psique ao passo que em Agostinho a psique natildeo pode ser localizada de modo algum no

corpo

Vejamos agora o motivo de sua duacutevida Se a alma tem quantidade ou se

para usar a expressatildeo localiza-se de algum modo no espaccedilo do corpo

Certamente ela natildeo eacute corpoacuterea ou natildeo podia ver e entender o incorpoacutereo como jaacute demonstrado Nem se limita no espaccedilo como os corpos Por isso

natildeo podemos admitir de modo correto nem imaginar ou supor uma alma

quantitativa seja na localizaccedilatildeo seja na corporeidade164

162 Paixotildees da alma a 31 Il est besoin aussi de savoir que bien que lacircme soit jointe agrave tout le corps il y a

neacuteanmoins en lui quelque partie en laquelle elle exerce ses fonctions plus particuliegraverement quen toutes les

autres Et on croit communeacutement que cette partie est le cerveau ou peut-ecirctre le cur Le cerveau agrave cause que

cest agrave lui que se rapportent les organes des sens et le cur agrave cause que cest comme en lui quon sent les

passions Mais en examinant la chose avec soin il me semble avoir eacutevidemment reconnu que la partie du corps en laquelle lacircme exerce immeacutediatement ses fonctions nest nullement le cur ni aussi tout le cerveau mais

seulement la plus inteacuterieure de ses parties qui est une certaine glande fort petite situeacutee dans le milieu de sa

substance [] Trad por J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior 163 Paixotildees da alma a 32 La raison qui me persuade que lacircme ne peut avoir en tout le corps aucun autre lieu

que cette glande ougrave elle exerce immeacutediatement ses fonctions [] Notas de J Guinsburg e Trad Bento Prado

Juacutenior 164 an quant XIV 23 Itaque illud potius attende unde ambigitur nunc utrum quantitas et quasi ut ita dicam

locale spatium animo ullum sit Nam profecto quia corpus non est neque enim aliter incorporea ulla cernere

ualeret ut superior ratio demonstrabat procul dubio caret spatio quo corpora metiuntur et ob hoc recte credi aut

cogitari aut intellegi talis eius quantitas non potest Trad por Aloysio Jansen

65

Mas se Agostinho nega a localizaccedilatildeo fiacutesica da psique como responder agrave

pergunta onde estaacute a psique e como ela se comunica com o corpo A resposta de Agostinho eacute

deveras apelativa e pouco cientiacutefica visto que o pensador acredita que a psique eacute capaz de

fazer tais coisas devido ao seu poder isto eacute devido uma capacidade ou potecircncia que eacute proacutepria

da psique

Se ainda quer saber como a alma pode conter na memoacuteria os espaccedilos dos

ceacuteus da terra e dos mares direi que isso eacute potecircncia admiraacutevel a ser entendida com a inteligecircncia como jaacute foi dito [] Nem deve parecer

estrando que a alma natildeo sendo corpo nem extensa por uma longitude ou

dilatada na latitude ou sustentada pela altitude tenha tanto poder sobre o corpo E o tenha a ponto de mover todos os membros e oacutergatildeos do corpo

como um eixo-motor determinando todas as accedilotildees corporais165

A resposta para a possibilidade da comunicaccedilatildeo entre a psique e o corpo estaacute

na proacutepria capacidade da psique Supomos que Agostinho compreende que a psique seja uma

substacircncia extremamente potente e que devido a sua potecircncia eacute capaz de realizar atividades

corporais e extra-corporais (mentais) Logo todas as accedilotildees humanas se resumem na psique

Ateacute mesmo o ato de sentir e seu produto a sensaccedilatildeo satildeo atividades que ulteriormente se

remetem agrave psique Para Agostinho natildeo eacute o corpo que ―sente mas sim a psique atraveacutes do

corpo166

Em outras palavras o corpo e os sentidos atuam apenas como ferramentas da psique

Isso natildeo parece absurdo se levarmos a seacuterio a tese de Agostinho de que o inferior (aquilo que

eacute mateacuteria) natildeo pode exercer influecircncia sobre o superior (aquilo que eacute espiritual) Com efeito

os sentidos do corpo apenas transmitem agrave psique os dados sensiacuteveis e a psique ―sente e

interpreta esses dados167

165 an quant XIV 23 Si autem te mouet cur tanta coeli terrae marisque spatia memoria contineat cum sit ipse

nullius quantitatis mira quaedam uis est quam tamen ex iis quae a nobis comperta sunt quantum inest ingenio

tuo luminis animaduertere potes [] quid mirum si anima neque corporea sit neque ulla aut longitudine porrecta aut latitudine diffusa aut altitudine solidata et tamen tantum ualeat in corpore ut penes eam sit

regimen omnium membrorum et quasi cardo quidam in agendo cunctarum corporalium motionum Trad por

Aloysio Jansen 166 cf sol II iii 3 167 Agostinho reinterpreta a doutrina da sensaccedilatildeo de Plotino Em Eneada IV iv 19 Plotino afirma ―The

affection then is there in the body but the knowledge belongs to the perceptive soul which perceives in the

neighbourhood of the affection and reports to that in which the sense-perceptions terminate (θεῖ κὲλ νὖλ ηὸ

πάζνο ἡ δὲ γλῶζηο ηο αἰζζεηηθο ςπρο ἐλ ηῆ γεηηνλίᾳ αἰζζαλνκέλεο θαὶ ἀπαγγεηιάζεο ηῷ εἰο ὃ ιήγνπζηλ αἱ

αἰζζήζεηο Trans by A H Armstrong) cf PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H

Armstrong Cambridge Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984 p 185

66

Se a psique eacute quem ―sente e interpreta as sensaccedilotildees poderiacuteamos ainda nos

perguntar Se eacute a psique quem em uacuteltima instacircncia sente e interpreta por que precisamos de

um corpo O corpo natildeo seria inuacutetil visto que a psique natildeo necessita do corpo para ―pensar

viver recordar entender e querer168

As perguntas anteriores de matiz dualista poderiam nos incitar a interpretar

Agostinho como um pensador que defende um dualismo radical isto eacute como um pensador

cuja doutrina caminha em direccedilatildeo a uma supremacia da psique o que nos leva a confrontar a

leitura dualista

323 AGOSTINHO E O MONISMO IDEALISTA

A primeira forma de negaccedilatildeo do dualismo em Agostinho consiste na afirmaccedilatildeo

de que sua doutrina preza pela supremacia da psique Para exemplificar melhor tal proposta

vejamos o que afirma Gilson sobre o ser humano em Agostinho

O homem diz ele pelo menos tal como se apresenta a si mesmo eacute ―uma

alma racional que se serve de um corpo terrestre e mortal ou como o

mesmo Agostinho escreve em outro passo eacute ―uma alma racional que tem um

corpo No entanto vecirc-se bem que o filoacutesofo cristatildeo sente que dificuldade se esconde sob essas foacutermulas porque acrescenta logo em seguida que a alma

racional e o corpo que ela tem natildeo fazem duas pessoas distintas mas um soacute

homem Sua intenccedilatildeo de salvaguardar a unidade do homem natildeo eacute duvidosa portanto mas pode ele fazecirc-lo com seus princiacutepios Vecirc-se bem que natildeo

pode pelo fato de que a definiccedilatildeo agostiniana da alma eacute idecircntica agrave definiccedilatildeo

agostiniana do homem Santo Agostinho nos diz que o homem natildeo eacute nem uma alma agrave parte nem um corpo agrave parte mas uma alma que se serve de um

corpo Quando por outro lado lhe pedimos para definir a alma em si

mesma ele responde que ela eacute uma ―substacircncia racional apta a governar o

corpo O homem portanto nada mais eacute finalmente que sua alma ou se preferirem a alma mesma eacute que eacute o homem

169

168

Cf trin X x 16 em qv p 58 e p 59 169 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 p 236

67

Ao identificar a psique e o homem como sendo um mesmo objeto Gilson

aponta para a fragilidade de uma possiacutevel leitura dualista no pensamento de Agostinho

Ademais atraveacutes de seu comentaacuterio podemos entrever que se por um lado o pensamento

Agostinho eacute distante do dualismo por outro eacute bastante proacuteximo de uma doutrina monista e

em especiacutefico de um monismo idealista De um modo sinteacutetico uma teoria monista sustenta

que existe apenas uma categoria de princiacutepios responsaacutevel por causar algum determinado

efeito Neste caso um monismo idealista eacute aquele que pressupotildee que o ser humano em uacuteltima

instacircncia eacute a sua psique A hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho retira sua forccedila do

fato de que em Agostinho a psique eacute responsaacutevel por toda e qualquer atividade que venha a

ser desempenhada pelo ser humano

A primeira e quiccedilaacute a mais evidente atividade desempenhada pela psique eacute a de

vivificar o corpo ao qual ela estaacute ligada conforme Agostinho

Eacute certo que no livro citado sobre os deuses deletos o proacuteprio Varratildeo declara

haver trecircs graus de alma em toda a natureza e na natureza universal O primeiro que circula por todas as partes do corpo que vive e natildeo tem

sentido mas apenas forccedila para viver []170

A segunda atividade da psique estaacute em perceber o mundo sensiacutevel atraveacutes dos

sentidos do corpo Esta operaccedilatildeo apesar de natildeo tatildeo evidente eacute executada somente pela

psique de modo que o corpo por si soacute natildeo eacute capaz de compreender aquilo que sofre

Se o corpo sofre mudanccedila ningueacutem ignora que eacute um fato corporal

Entretanto natildeo o sentimos diretamente a cada instante nem a alma o ignora Noacutes o sabemos O corpo se modifica e a alma sabe disso

171

A terceira atividade em conexatildeo com a segunda eacute a da compreensatildeo

intelectual e racional do mundo Eacute a psique que nos permite compreender o mundo criar

juiacutezos desenvolver raciociacutenios e oferecer a possibilidade de aplicaacute-los criando assim um

conhecimento perene ao qual Agostinho natildeo hesita chamar de ciecircncia

170 ciu VII xxiii 1 Et certe idem Varro in eodem de diis selectis libro tres esse affirmat animae gradus in omni

uniuersaque natura unum quod omnes partes corporis quae uiuunt transit et non habet sensum Trad por Oscar

Paes Leme 171 an quant XIV 46 Quod si mutatio ista passio corporis est quod nemo negat nec nunc sentitur a nobis nec

tamen animam latet quia nos non latet patitur ut dixi corpus quod non latet animam Trad Por Aloysio Jansen

68

Admito a existecircncia dessa faculdade seja ela qual for e sem hesitaccedilatildeo denomino-a sentido interior Pois a natildeo ser ultrapassando esse mesmo

sentido interior o objeto transmitido pelos sentidos corporais poderaacute chegar

a ser objeto de ciecircncia Porque tudo o que noacutes sabemos soacute entendemos pela razatildeo

172

A uacuteltima atividade desempenhada pela psique eacute teleoloacutegica consistindo no

conhecimento de Deus o bem uacuteltimo ao qual o homem deve aspirar Conforme afirma

Agostinho no De Trinitate

Essa trindade da alma natildeo eacute a imagem de Deus simplesmente pelo fato de

lembra-se de si entender-se e amar-se a si mesma mas sim porque pode tambeacutem recordar entender e amar a seu Criador Quando assim age torna-se

saacutebia E se assim natildeo age ainda mesmo que se recorde se conheccedila e se ame

eacute uma ignorante Portanto que ela se lembre de seu Deus agrave cuja imagem foi criada compreenda-o e ame-o

173

Com efeito (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo

atraveacutes dos sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o

que existe nele e por fim (iv) o conhecimento de Deus se descortinam como indiacutecios que

nos permitem pensar na hipoacutetese de uma leitura monista de Agostinho Ora se a psique eacute

responsaacutevel por desempenhar as atividades fundamentais que caracterizam todo e qualquer ser

humano por que natildeo considerar que o homem possa ser resumido somente agrave sua psique na

concepccedilatildeo agostiniana Para noacutes uma resposta positiva para tal pergunta eacute deveras

problemaacutetica e a seguir diremos a razatildeo

324 O PROBLEMA DO MONISMO IDEALISTA EM AGOSTINHO

O problema da aceitaccedilatildeo de uma doutrina monista no pensamento de

Agostinho apresentou-se ao proacuteprio Gilson que ao interpretar a filosofia de Agostinho

pressupocircs a negativa do filoacutesofo em aceitar que suas ideias fossem intrepretadas sob a

perspectiva de uma supremacia da psique

172 lib arb II iii IX Agnosco istuc quidquid est et eum interiorem sensum appellare non dubito Sed nisi et

istum transeat quod ad nos refertur a sensibus corporis peruenire ad scientiam non potest Quidquid enim

scimus id ratione comprehensum tenemus Trad por Nair Assis de Oliveira 173 trin XIV xii 15 Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago quia sui meminit mens et intellegit

ac diligit se sed quia potest etiam meminisse et intellegere et amare a quo facta est Quod cum facit sapiens

ipsa fit Si autem non facit etiam cum sui meminit seque intellegit ac diligit stulta est Meminerit itaque Dei

sui ad cuius imaginem facta est eumque intellegat atque diligat Trad por Agustinho Belmonte

69

Sem duacutevida santo Agostinho natildeo estaria inteiramente desarmado contra esse

reparo Ele responderia talvez que uma alma soacute eacute alma se tem um corpo que

possa usar e que um corpo soacute eacute corpo se estaacute a serviccedilo de uma alma caso em que de fato a definiccedilatildeo da alma sozinha eacute equivalente a do homem por

inteiro174

Ainda que o comentaacuterio de Gilson procure reforccedilar ainda mais a perspectiva

monista o comentador aventa uma possiacutevel resposta de Agostinho e deixa em evidencia o

grande entrave para uma interpretaccedilatildeo monista de seu pensamento a saber a existecircncia do

corpo Ao imaginar a resposta agostiniana Gilson coloca em evicecircncia o corpo de modo que

uma psique soacute eacute uma psique a partir do momento em que ela estaacute ligada ao corpo

Ora com efeito eacute impossiacutevel negar a presenccedila do corpo na filosofia de

Agostinho visto que ele eacute parte constituinte de nosso ser Deste modo aquele que nega ou ateacute

mesmo ignora o papel do corpo na relaccedilatildeo ―psique-corpo comete o grande equiacutevoco de

interpretar o pensamento de Agostinho erroneamente O homem natildeo deve portanto ser

resumido somente agrave sua psique ou vida mental

Poder-se-ia ateacute tentar objetar contra o fato de que o homem natildeo se restringe a

sua psique e para justificar o argumento poder-se-ia citar os quatro pontos outrora

destacados a saber (i) a vivificaccedilatildeo do corpo (ii) a percepccedilatildeo sensiacutevel do mundo atraveacutes dos

sentidos do corpo (iii) a compreensatildeo intelectual e racional do mundo e de tudo o que existe

nele e o (iv) o conhecimento de Deus Todos estes quatro pontos satildeo entendidos como

atividades ou operaccedilotildees capitais as quais somente a psique pode realizar Sem duacutevida a

premissa de que somente a psique pode realizar tais operaccedilotildees eacute correta No entanto o

argumento torna-se fraacutegil quando se compreende que a psique soacute pode desempenhar tais

funccedilotildees quando ligada ao corpo Ou seja sem o corpo ela estaria inapta a desempenhar

qualquer uma das quatro atividades supracitadas

A fim de justificar nosso argumento dizemos que (i) a anima para Agostinho

eacute uma substacircncia com uma potecircncia vivificadora no que concerne ao objeto em que ela exerce

seu poder a saber o corpo Com efeito a psique eacute uma substacircncia que vivifica o corpo de

modo que sem um corpo para dar vida esta operaccedilatildeo natildeo poderia existir (ii) natildeo se pode

ignorar o fato de que eacute o corpo quem sofre as mudanccedilas e de que ele eacute o responsaacutevel por

transmitir toda e qualquer informaccedilatildeo sensiacutevel agrave anima Assim o corpo e consequentemente

seus sentidos executam a funccedilatildeo de intermediaacuterios no processo de apreensatildeo e assimilaccedilatildeo de

uma informaccedilatildeo sensorial A atividade (iii) apresenta uma relaccedilatildeo intriacutenseca com a atividade

174 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins

Fontes 2006 pp 236-237

70

(ii) de modo que podem ser compreendidas sob um mesmo argumento visto que a produccedilatildeo

de conhecimentociecircncia eacute um efeito da atividade de colher organizar e dar sentido aos dados

sensiacuteveis de modo que a ausecircncia do corpo e consequentemente dos sentidos inviabilizaria

a aquisiccedilatildeo de dados para a criaccedilatildeo de conhecimento A atividade de nuacutemero (iv) eacute deveras

peculiar jaacute que eacute bem verdade que o corpo e os seus sentidos natildeo exercem influecircncia direta

no conhecimento de Deus pois natildeo eacute possiacutevel conhecer Deus por intermeacutedio de qualquer

sensaccedilatildeo Poreacutem este aspecto sui generis permite-nos inferir que Deus natildeo eacute corpo e por

natildeo ser corpo em nada se assemelha a ele Com efeito o conhecimento de nossa dimensatildeo

corporal eacute fundamental para compreender Deus como um ser distinto de tal caracteriacutestica No

que diz respeito ao assunto Agostinho afirma

Parecia-me muito vergonhoso acreditar que tiacutenheis uma figura de carne humana e que eacutereis contornado pelos traccedilos corporais de nossos membros

Poreacutem o principal e quase uacutenico motivo do meu erro inevitaacutevel era quando

desejava pensar no meu Deus natildeo poder formar uma ideia dele se natildeo lhe atribuiacutesse um corpo visto parecer-me impossiacutevel que houvesse alguma coisa

que natildeo fosse material175

Feitas estas consideraccedilotildees podemos considerar bastante temeraacuteria a ideia de

atribuir a Agostinho um monismo idealista De forma similar consideramos tambeacutem

temeraacuteria a ideia de pensar em sua filosofia sob um molde dualista ndash em especial ndash de

substacircncias Ao negarmos o dualismo e em seguida o monismo pudemos notar que existe

apenas uma constante nas duas argumentaccedilotildees a interaccedilatildeo entre o corpo e a psique A

possibilidade do dualismo inexiste pois corpo e psique satildeo compreendidos de modo anaacutelogo

e uniacutevoco ao mesmo tempo a possibilidade do monismo idealista tambeacutem inexiste pois o

corpo e a psique satildeo compreendidos de modo sineacutergico Portanto natildeo devemos compreender

as relaccedilotildees entre psique e corpo de modo extremado em Agostinho mas sim de modo coeso

De posse deste conhecimento iniciaremos o subcapiacutetulo final desta dissertaccedilatildeo

175 conf V x XIX multumque mihi turpe uidebatur credere figuram te habere humanae carnis et membrorum

nostrorum lineamentis corporalibus terminari Et quoniam cum de Deo meo cogitare uellem cogitare nisi moles

corporum non noueram (neque enim uidebatur mihi esse quidquam quod tale non esset) ea maxima et prope sola

causa erat ineuitabilis erroris mei Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina

71

325 AGOSTINHO E A HIPOacuteTESE DO PSICOSSOMATISMO

A hipoacutetese de uma leitura que interpreta Agostinho a partir de uma unidade

hilemoacuterfica entre a psique e o corpo surge a partir da concepccedilatildeo de que o ser humano consta

da unidade psicossomaacutetica176

Tal concepccedilatildeo fundamentada no pensamento do autor e a

partir conceito cristatildeo de ressurreiccedilatildeo dos corpos eacute a chave para a refutaccedilatildeo de uma

interpretaccedilatildeo que defende tanto o dualismo de substacircncias quanto o monismo idealista Da

ideia da ressurreiccedilatildeo dos corpos tem-se a ideia de que o corpo e o psiacutequico natildeo podem ser

considerados dois itens distintos e dissociados mas sim dois itens que quando unidos

formam um composto uacutenico o homem Sobre a uniatildeo entre a psique e o corpo diz

Caporalini

O corpo faz parte da vida espiritual da alma como a sensaccedilatildeo eacute a atividade espiritual da alma Portanto tambeacutem aqui o sentido de concretude da uniatildeo

e do sintesismo A este ponto eacute faacutecil ver que em Santo Agostinho natildeo haacute

apenas o conceito de sintesismo do homem (alma e corpo) mas outro

fundamental o integralismo humano ou seja o homem eacute considerado na sua plenitude e integralidade o homem integral

177

A compreensatildeo de que o homem em Agostinho eacute um ser integral eacute

incompatiacutevel com o dualismo e tambeacutem com o monismo Embora assuma uma perspectiva

dual mdash pois Agostinho compreende que o homem eacute o composto formado pela psique e pelo

corpo mdash natildeo podemos dizer que a integralidade psicossomaacutetica seja um dualismo de

substacircncias Afinal tal doutrina demarca uma forte diferenccedila entre dois elementos

descartando a capacidade sineacutergica de ambos Ainda que a psique seja mais excelente que o

corpo de modo qualitativo natildeo notamos em Agostinho o desprezo pelo corpoacutereo tal como se

vecirc em Platatildeo ou ateacute mesmo em Descartes Ainda que tenha um vieacutes teoloacutegico e natildeo filosoacutefico

a defesa de uma ressurreiccedilatildeo corporal afirma o compromisso da valorizaccedilatildeo da constituiccedilatildeo

psicossomaacutetica humana

176

cf beata u II 7 an quant I 2 trin XV vii 11 Io eu tr XIX 15 ciu XIII xxiv 2 e ord II xi 31 177 CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute Clichetec 2007 p

56

72

Tudo quanto perderam os corpos vivos ou os cadaacuteveres depois da morte lhes seraacute restituiacutedo juntamente com o que deixaram no sepulcro [] A carne

espiritual estaraacute submetida ao espiacuterito mas seraacute carne natildeo espiacuterito assim

como o espiacuterito carnal esteve submetido agrave carne sendo espiacuterito natildeo carne178

A citaccedilatildeo anterior de Agostinho levanta um problema que jaacute fora observado

anteriormente por Etieacutenne Gilson179

que eacute o fato da submissatildeo do corpo ante a psique (sicut

carni subditus fuit spiritus) A condiccedilatildeo de subordinaccedilatildeo do corpo natildeo eacute condizente com uma

concepccedilatildeo que defende a homogeneidade de uma uniatildeo psicossomaacutetica Talvez seja por isso

que a conclusatildeo final de Gilson eacute a de que Agostinho supervaloriza a psique em detrimento do

corpo

Noacutes em contrapartida compreendemos que o problema da submissatildeo do corpo

possa ser explicado ainda dentro da perspectiva de uma uniatildeo psicossomaacutetica Antes poreacutem

devemos considerar que Agostinho eacute herdeiro de uma grande tradiccedilatildeo filosoacutefica que preza

pela excelecircncia da psique em relaccedilatildeo a tudo aquilo que eacute corpoacutereo

Deste modo natildeo eacute sensato pensar que a filosofia de Agostinho possa ser

apartada de todas as influecircncias que a precederam Com efeito afirmamos que em Agostinho

certamente existe uma diferenccedila qualitativa entre o corpo e a psique mas isso natildeo quer dizer

que a condiccedilatildeo de resignaccedilatildeo do corpo natildeo possa expressar uma relaccedilatildeo harmocircnica mdash ainda

que hierarquizada mdash entre o corpo e a psique

A leitura que aventa a possibilidade de uma unidade psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem eacute fraacutegil quando precisa lidar com pontos de ordem praacutetica a saber a

conciliaccedilatildeo com o poacutes morte

Ao longo desta dissertaccedilatildeo postulamos que segundo Agostinho o ser humano

soacute pode ser considerado como tal a partir da uniatildeo de tais elementos uma vez que ele natildeo eacute

nem somente corpo nem somente psique180

Ademais verificamos no primeiro capiacutetulo desta

dissertaccedilatildeo que Agostinho considera que a psique eacute imortal e impereciacutevel No entanto os

homens falecem e quando isto ocorre sua psique deixa de vivificar o corpo embora ela

mesma natildeo pereccedila Logo quando um homem morre existe a separaccedilatildeo entre psique imortal e

o corpo mortal Dito isso perguntamo-nos o que eacute aquilo que remanesce no poacutes morte Natildeo

podemos dizer que eacute o homem porquanto ele jaacute natildeo consta mais de corpo Ao mesmo tempo

178 ciu XXII 21 Restituetur ergo quidquid de corporibus uiuis uel post mortem de cadaueribus periit et simul

cum eo quod in sepulcris remansit [] Erit ergo spiritui subdita caro spiritalis sed tamen caro non spiritus

sicut carni subditus fuit spiritus ipse carnalis sed tamen spiritus non caro 179 A citaccedilatildeo pode ser conferida neste mesmo capiacutetulo na paacutegina 66 180 cf ciu XIII xxiv 2

73

natildeo podemos dizer que o que remanesce nada eacute pois algo ainda remanesce O que remanesce

eacute inegavelmente a psique humana poreacutem ela sozinha natildeo passa de um resquiacutecio daquilo que

foi o homem e natildeo o homem por completo

Uma possiacutevel resposta para este embaraccedilo repousa na concepccedilatildeo de tempo A

concepccedilatildeo de tempo soacute existe porque estamos encarnados No momento de nossa morte natildeo eacute

mais possiacutevel mensurar o tempo e tampouco categorizaacute-lo em momentos que se deram no

passado ou no futuro Em resumo podemos dizer que no momento de nosso desencarne

nossa psique fica fora da dimensatildeo temporal Ora se a psique sai do tempo no momento do

juiacutezo final e da ressureiccedilatildeo dos corpos natildeo se poderaacute dizer que houve um intervalo de tempo

entre a morte de um homem e sua ressurreiccedilatildeo Se assim fosse tudo aconteceria de modo

instantacircneo de modo que natildeo haveria a concepccedilatildeo de desencarne Com efeito no ―momento

de sua ressurreiccedilatildeo em que o homem se torna novamente composto de corpo e psique o

homem poderia ser considerado enquanto tal No entanto esta eacute apenas uma possibilidade de

resposta visto que natildeo se sabe o que acontece apoacutes a morte do corpo terreno

Um terceiro problema suscitado pela hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica ndash

e talvez o mais grave deles ndash reside na possibilidade do materialismo Se se considera que o

homem eacute uma unidade psicossomaacutetica podemos ser induzidos a pensar que os estados

mentais nada mais satildeo do que produtos do organismo em funcionamento Deste modo a

consciecircncia e a mente de modo geral natildeo passariam de estados cerebrais Tendo em vista que

o ceacuterebro eacute mateacuteria a psique humana se reduziria a um efeito material o que Agostinho

certamente negaria

Apesar de seus problemas a hipoacutetese de uma leitura psicossomaacutetica em

Agostinho tambeacutem possui seus meacuteritos uma vez que ela poderia jogar luz sobre vaacuterios temas

em Agostinho a exemplo (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos

e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e as emoccedilotildees (iii) as

relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e por fim (iv) a relaccedilatildeo

existente entre introspecccedilatildeo e self Natildeo haacute como negar a atualidade destes temas Se

Agostinho um pensador do seacuteculo V tem como contribuir para o debate nada mais justo do

que fazecirc-lo respeitando suas limitaccedilotildees conceituais e histoacutericas Mas para que isso seja feito

eacute necessaacuterio que estejamos dispostos a pesquisar e a tentar buscar fundamentar modelos

filosoacuteficos

74

33 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DO CAPIacuteTULO

Apoacutes apresentarmos nos capiacutetulos 1 e 2 o modo como podem ser

compreendidas respectivamente a dimensatildeo mental e a dimensatildeo corporal procuramos

neste pequeno capiacutetulo apresentar sob quais pontos de vista podemos interpretar a relaccedilatildeo

existente entre o corpo e a psique Assim apresentamos trecircs perspectivas distintas cada qual

com suas principais caracteriacutesticas e fragilidades o dualismo de substacircncias o monismo

idealista e por fim o psicossomatismo em forma de hipoacutetese

Em especial destacamos a introduccedilatildeo da hipoacutetese de uma interpretaccedilatildeo que

avente o psicossomatismo em Agostinho Utilizamos como pedra fundamental da hipoacutetese as

diversas passagens em que Agostinho afirma de modo categoacuterico que o homem eacute um ser que

consta de uma substacircncia espiritual (anima) e de uma substacircncia material (corpus) Embora a

hipoacutetese tenha suscitado alguns problemas num primeiro momento ndash e provavelmente possa

suscitar outros problemas caso continue a ser trabalhada ndash natildeo se pode dizer que a hipoacutetese

natildeo se mostre coerente com o pensamento do autor Ademais acreditamos que se

investigada a hipoacutetese venha a jogar luz sobre a contemporacircnea discussatildeo do problema

mente-corpo E caso natildeo jogue podemos pelo menos extrair do pensamento de Agostinho

princiacutepios filosoacuteficos que podem contribuir com o desenvolvimento da discussatildeo com o

passar dos anos

75

CONCLUSAtildeO

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com a anaacutelise dos conceitos de vida

mental (representado por todos os conceitos vinculados ao conceito de alma) e corpo Em

seguida comparamos o pensamento de Agostinho com algumas propostas e doutrinas

filosoacuteficas que se posicionam em relaccedilatildeo ao problema mente-corpo Assim a pesquisa

precedente nos proporcionou diversos resultados significativos os quais elencaremos nas

linhas procedentes

A partir da anaacutelise semacircntica dos conceitos relacionados ao conceito de vida

mental podemos concluir que Agostinho se vale de um vasto leque terminoloacutegico para se

exprimir sobre as capacidades e funcionalidades de nossa estrutura psiacutequica Pudemos por

intermeacutedio de um exame minucioso determinar o que Agostinho compreende por anima

animus spiritus mens ratio intellectus e intelligentia Embora alguns comentadores faccedilam

coro com Gilson em asseverar que a terminologia agostiniana eacute ―flutuante noacutes pudemos

constatar que seu caraacuteter flutuante natildeo eacute sinocircnimo de incerteza ou duacutevida mas antes de uma

variabilidade com intensatildeo definida Sua terminologia podemos dizer flutua conforme a

pretensatildeo ou intuito do filoacutesofo de apresentar eou tornar compreensiacutevel uma determinada

ideia ou conceito181

Por esta razatildeo Agostinho se utiliza de um leque terminoloacutegico tatildeo

extenso

Notamos tambeacutem que em Agostinho inexiste algum escrito no qual ele sequer

tenha deixado de fazer alguma citaccedilatildeo referente agrave vida mental Nossa afirmaccedilatildeo se baseia na

conferecircncia de todas as 111 obras do autor em que constatamos a ocorrecircncia e o uso dos

vocaacutebulos anima eou animus conceitos baacutesicos no que se refere agrave estrutura psiacutequica animal

ou humana Para noacutes a presenccedila destes conceitos em todos os textos de Agostinho eacute o reflexo

de um desejo iacutentimo do filoacutesofo de compreender o que eacute e como funciona nossa psique182

181 Conforme afirma Agostinho em doc chr II i 1 ao dizer que ―O signo eacute uma coisa que aleacutem da imagem que

propotildee aos sentidos faz vir de si ao pensamento algo outro (Trad por Moacyr Novaes) Cf NOVAES

Moacyr A razatildeo em exerciacutecio estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus

2009 p 44 182 Desejo jaacute manifestado em sol I ii 7 quando o filoacutesofo diz ―Deum et animam scire cupio

76

A fim de procurar nos textos de Agostinho aquilo que ele compreende ser a

psique e como ela funciona constatamos que cada conceito de seu leque terminoloacutegico tem

uma particularidade especiacutefica Destacamos em especial nesta conclusatildeo o conceito de mens

visto que Agostinho compreende ser a mens aquilo que eacute composta pela ratio e pelo

intellectusintelligentia Desta composiccedilatildeo pudemos retirar a seguinte relaccedilatildeo a mens eacute o

olho (oacutergatildeo) a ratio eacute a atividade olhar (movimento) e por fim o intellectusintelligentia eacute

verter a visatildeo (entendimento compreensatildeo) Disto pressupomos que mens ratio e

intelligentia natildeo devem ser tomados como sinocircnimos como termos que significam a mesma

coisa mas sim como conceitos que desempenham funccedilotildees diferentes e que se articulam em

vista de um fim especiacutefico De posse destes conhecimentos pudemos afirmar que nem sempre

os conceitos que se relacionam agrave vida mental devam ser considerados de modo anaacutelogo

Devemos portanto observar o contexto e principalmente sobre o que Agostinho estaacute tentando

explicar

No capiacutetulo seguinte examinamos a conceituaccedilatildeo de corpo em Agostinho

Trabalhamos em dois grandes eixos a acepccedilatildeo teoloacutegico-moral e a acepccedilatildeo ontoloacutegica e

antropoloacutegica do corpo Destacamos neste capiacutetulo a valorizaccedilatildeo do conceito de corpo em

Agostinho Muito se afirma de modo equivocado que o cristianismo rejeita e desconsidera o

corpo humano Conforme constatamos em Agostinho tal concepccedilatildeo eacute completamente

falaciosa Para Agostinho o corpo eacute uma criatura de Deus e como tal boa por natureza Por

ser boa natildeo pode ser comparada como uma prisatildeo ou caacutercere da psique Ademais o corpo

natildeo eacute o pecado ou o mal per se o mal nada mais seria do que a valorizaccedilatildeo do corpoacutereo em

detrimento do espiritual e do divino

Agrave medida que desenvolviacuteamos este capiacutetulo pudemos concluir que as

pesquisas sobre o corpo em Agostinho concentram-se em sua maoria no caraacuteter teoloacutegico e

moral daquilo que o filoacutesofo entende por corpo Pouco se fala na investigaccedilatildeo sobre o caraacuteter

ontoloacutegico e antropoloacutegico da conceituaccedilatildeo do corpo Compreendemos que a investigaccedilatildeo

sobre esses aspectos podem valorizar o pensamento de Agostinho No pouco que dissemos

pudemos concluir que o aspecto ontoloacutegico do conceito de corpo pode levantar

questionamentos importantes sobre como por exemplo Agostinho compreende a substacircncia

corporal Em outras palavras se o corpo eacute uma substacircncia qual a qualidade da substacircncia

corporal Qual eacute a funccedilatildeo desta substacircncia E principalmente por que o corpo eacute uma

substacircncia O que Agostinho compreende por substantia e essentia Se substantia e essentia

satildeo sinocircnimos porque o corpo natildeo eacute a essecircncia do ser humano

77

A partir das consideraccedilotildees feitas sobre a psique e o corpo humano passamos

ao terceiro capiacutetulo Neste capiacutetulo procuramos interpretar o pensamento de Agostinho sob as

oacuteticas dualista de substacircncias monista idealista e psicossomaacutetica Este capiacutetulo em especial

eacute aquele que mais apresenta resultados e pespectivas para o futuro

Concluiacutemos que eacute um pouco temeraacuterio encaixar o pensamento agostiniano no

dualismo de substacircncias visto que o pensamento agostiniano apesar de postular que o corpo

e a psique satildeo substacircncias natildeo se compromete com a separaccedilatildeo destas duas substacircncias

Concluiacutemos que Agostinho tambeacutem natildeo pode ser compreendido como um monista idealista

Com efeito o monismo idealista assevera que o homem se resume a sua psique ao passo que

Agostinho eacute categoacuterico em dizer que o homem natildeo eacute ―apenas alma e tampouco corpo mas

que consta de ambos183

Chegamos agrave conclusatildeo de que o dualismo e o monismo satildeo leituras possiacuteveis

mas apresentam um mesmo elemento em comum que fragiliza a tentativa de atribui-las a

Agostinho o que nos levou a pensar em uma terceira hipoacutetese Trata-se aqui de nossa

tentativa de levar agraves uacuteltimas consequecircncias a compreensatildeo de que o homem eacute corpo-psique

Fomos induzidos nessa esteira a levantar a hipoacutetese de que existe em Agostinho um

psicossomatismo Concluiacutemos a possibilidade de observar em Agostinho premissas ou

princiacutepios que apontem para a defesa de uma doutrina que defende o psicossomatismo

Devido ao fato deste insight ser ainda muito recente natildeo pudemos nos debruccedilar atentamente

sobre o tema a ponto de constituir uma hipoacutetese mais refinada No entanto no pouco que

escrevemos pudemos notar que ela tem a possibilidade de explicar muito bem alguns

aspectos da filosofia agostiniana tais como (i) as relaccedilotildees existentes entre a manifestaccedilatildeo de

fenocircmenos fiacutesicos e a sua apreensatildeo na geraccedilatildeo de conhecimento (ii) a relaccedilatildeo entre corpo e

as emoccedilotildees (iii) as relaccedilotildees entre a apreensatildeo do tempo e de sua concepccedilatildeo psicoloacutegica e (iv)

a relaccedilatildeo existente entre introspecccedilatildeo e self Asseguramos aqui o interesse de continuar

trabalhando nesta proposta

183 cf ciu XIII xxiv 2

78

Finalmente esta dissertaccedilatildeo de mestrado se propocircs demonstrar o quatildeo atual

pode ser considerado o pensamento agostiniano Muitas de suas consideraccedilotildees embora

estejam ligadas ao seu contexto histoacuterico podem exercer influecircncia ainda nos dias de hoje As

observaccedilotildees sobre as particularidades da psique humana e suas reflexotildees sobre o papel do

corpo humano satildeo realmente relevantes e podem ser utilizadas em qualquer debate filosoacutefico

que vise ao esclarecimento de nossas funccedilotildees mentais e corporais Para que isso ocorra no

entanto eacute necessaacuterio que o pensamento agostiniano seja renovado e que os pesquisadores

queiram fazer filosofia ao inveacutes de fazer exegeses Essa eacute asseguramos a proposta acadecircmica

do autor dessa Dissertaccedilatildeo de Mestrado e esse texto foi o primeiro exerciacutecio desse mestrando

de tentar extrapolar a noccedilatildeo de filosofia como mera atividade exegeacutetica

79

REFEREcircNCIAS

AEacuteCIO I 3 4 (DK B2) In Os Preacute-socraacuteticos Trad por Joseacute Cavalcante de Souza et al

Col Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO A Cidade de Deus Trad por Oscar Paes Leme Satildeo Paulo Vozes 2013

AGOSTINHO A ordem Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 24 Satildeo Paulo

Paulus 2008

AGOSTINHO A Trindade Trad por Agustinho Belmonte Col Patriacutestica 7 Satildeo Paulo

Paulus 1995

AGOSTINHO A verdadeira religiatildeo Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 19

Satildeo Paulo Paulus 2002

AGOSTINHO Confissotildees Trad por J Oliveira Santos e A Ambroacutesio de Pina Col Os

Pensadores Satildeo Paulo Abril 1999

AGOSTINHO De Magistro (Do Mestre) Trad por Angelo Ricci Col Os Pensadores Satildeo

Paulo Abril 1978

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Trad por Nair de Assis Oliveira Col Patriacutestica 8 Satildeo

Paulo Paulus 1995

AGOSTINHO Sobre a potencialidade da alma Trad por Aloysio Jansen de Faria Satildeo

Paulo Vozes 1997

AGOSTINHO Soliloacutequios Trad por Adaury Fiorotti Col Patriacutestica 11 Satildeo Paulo Paulus

1998

AGUSTIacuteN Actas del debate con Fortunato Edicioacuten traduccioacuten notas e iacutendices de Pio de

Luiacutes In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo II texto

biliacutengue Madrid BAC 2005

AGUSTIacuteN Comentario literal al Geacutenesis Traduccioacuten por Lope Cilleruelo In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN El espiacuteritu y la letra Traduccioacuten de Emiliano Loacutepez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VI texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN El libre albedriacuteo Traduccioacuten de P Evaristo Seijas In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

80

AGUSTIacuteN El maestro Traduccioacuten de Manuel Martiacutenez In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN El orden Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (I-XII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y Miguel

Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVI texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La Ciudad de Dios (XIII-XXII) Traduccioacuten por Santos Santamarta del Rio y

Miguel Fuertes Lanero introduccioacuten y notas por Victorino Capaacutenaga In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXVII texto biliacutengue Madrid BAC 2004

AGUSTIacuteN La dimensioacuten del alma Traduccioacuten de Eusebio Cuevas In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La doctrina cristiana Traduccioacuten por Balbino Martiacuten Peacuterez In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XV texto biliacutengue Madrid BAC 1947

AGUSTIacuteN La fe y el Siacutembolo de los apostoles Traduccioacuten de Claudio Basevi In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid

BAC 1966

AGUSTIacuteN La inmortalidad del alma Traduccioacuten de Lope Cilleruelo In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXXIX texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La Trinidad Traduccioacuten de Luis Arias In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La verdadera religioacuten Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas

de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo IV texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN La vida feliz Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1994

AGUSTIacuteN Las Confessiones Edicioacuten criacutetica y anotada por el padre Angel Custodio Vega

In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue

Madrid BAC 1986

AGUSTIacuteN Las dos almas Traduccioacuten introduccioacuten y notas de Pio de Luis In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XXX texto biliacutengue Madrid

BAC 1986

AGUSTIacuteN Las retractaciones Traduccioacuten de Teodoro C Madrid In Obras completas de

San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo XL texto biliacutengue Madrid BAC 1966

81

AGUSTIacuteN Naturaleza y origen del alma Traduccioacuten de Mateo Lanseros In Obras

completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo III texto biliacutengue Madrid

BAC 1947

AGUSTIacuteN Sermones Traduccioacuten de Piacuteo de Luis In Obras completas de San Agustiacuten

Victorino Capaacutenaga (org) Tomo VII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Soliloquios Traduccioacuten de Victorino Capaacutenaga In Obras completas de San

Agustiacuten Victorino Capaacutenaga (org) Tomo I texto biliacutengue Madrid BAC 1966

AGUSTIacuteN Tratados sobre el Evangelio de San Juan 1-35 Traduccioacuten de Miguel Fuertes

Lanero y Joseacute Anoz Gutieacuterrez In Obras completas de San Agustiacuten Victorino Capaacutenaga

(org) Tomo XIII texto biliacutengue Madrid BAC 1966

ARISTOacuteTELES De anima Trad por Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis Satildeo Paulo Editora 34

2006

BEZERRA Ciacutecero Cunha Compreender Plotino e Proclo Petroacutepolis Vozes 2006

BRACHTENDORF Johannes ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho Trad por Milton Camargo Mota

Satildeo Paulo Loyola 2012

BRACHTENDORF Johannes Mens In Augustinus-Lexikon Vol 3 Cornelius Mayer (org)

Basel Schwabe AG 2004-2010

CAPORALINI Joseacute Beluci Reflexotildees sobre o Essencial de Santo Agostinho Maringaacute

Clichetec 2007

CIacuteCERO Marco Tuacutelio Discussotildees Tusculanas Trad por Bruno Fregni Basseto Uberlacircndia

EDUFU 2014

COSTA Marcos Roberto Nunes O Amor princiacutepio da moral interior em Santo Agostinho

In Perspectiva Filosoacutefica Recife v 4 n 9 juldez 1996

CUNHA Mariana Palozzi Seacutervulo da O movimento da alma a invenccedilatildeo por Agostinho do

conceito de vontade Porto Alegre EDIPUCRS 2001

DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees sobre Filosofia Primeira Trad por Fausto Castilho

Campinas Editora da Unicamp 2004

DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma Trad por J Guinsburg e Bentro Prado Juacutenior Col

Os Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973

DI NAPOLI Giovanni Razoacuten y racionalidad em San Agustiacuten In Augustinus 5 Trad por

Victorino Capaacutenaga Madrid 1957

DIELS Hermann Die Fragmente der Vorsokratiker Berlin Wiedmannsche Buchhandlung

1903

82

DUFFY Stephen Antropologiacutea In Diccionario de San Agustiacuten San Agustiacuten a traves del

tiempo Alan Fitzgerald (org) Burgos Monte Castelo 2001

EDELMAN Gerald Wider than Sky The Phenomenal Gift of Consciousness New Haven

Yale University Press 2004

ENDERS Markus ―Ratio und ―intellectus von Augustinus bis Anselm Stationen einer

Begriffsgeschichte In Rationality from Saint Augustine to Saint Anselm Proceedings of the

International Anselm Conference Budapest Mondat Ltd 2005

ECLESIASTES In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

FERRI Ricardo ―Mens ―ratio ―intellectus en los diaacutelogos primeiros de Agustiacuten In

Augustinus 168-171 Trad por Joseacute Anoz Madrid 1998

GEcircNESIS In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balachin Satildeo

Paulo Paulus 1990

GILSON Eacutetienne Introduccedilatildeo ao estudo de Santo Agostinho Trad por Cristiane Negreiros

Abbud Ayoub Satildeo Paulo Paulus 2007

GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad por Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006

GIORGINI Claudio I grandi temi della filosofia cristiana nel ldquoDe Libero Arbitiriordquo di

Agostino Roma Urbaniana University Press 2000

HOMERO Iliacuteada Vol II Trad Por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Arx 2002

JOAtildeO Evangelho Segundo Joatildeo In Biacuteblia Sagrada Trad Ivo Storniolo e Euclides Martins

Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

LAGERLUND Henrik (Ed) Forming the Mind Essays on the Internal Senses and the

MindBody Problem from Avicenna to the Medical Enlightenment Dordrecht Springer 2007

(Studies in the History of Philosophy of Mind 5)

MADER Johann Aurelius Augustinus Philosophie und Christentum Wien

Niederoumlsterreichisches Pressehaus 1991

MARROU Henry Saint Augustin et la fin de la culture antique Paris E de Boccard 1938

MATEUS Evangelho segundo Satildeo Mateus In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e

Euclides Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

MATTHEWS Gareth Santo Agostinho A vida e as ideias de um filoacutesofo adiante de seu

tempo Trad por Aacutelvaro Cabral Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2007

83

MILES Margaret Augustine on the body Missoula Scholars Press 1979

MILES Margaret Corpus In Augustinus-Lexikon Vol 2 Cornelius Mayer (org) Basel

Schwabe AG amp Co 1996-2002

NOVAES Moacyr A razatildeo em exerciacutecio Estudos sobre a filosofia de Agostinho Satildeo Paulo

Paulus 2009

Olsquo DALY Gerard Augustinersquos Philosophy of Mind London Duckworth 1987

PACCIONI Jean Paul Passion In BLAY Michael (Org) Grand Dictionnaire de la

Philosophie Paris Eacuteditions Larousse et Centre National de la Recherche Scientifique

(CNRS) 2003

PAULO Primeira carta aos Coriacutentios In Biacuteblia Sagrada Trad por Ivo Storniolo e Euclides

Martins Balachin Satildeo Paulo Paulus 1990

PESSOA JUNIOR Osvaldo Emergecircncia e Reduccedilatildeo Uma Introduccedilatildeo Histoacuterica e Filosoacutefica

Ciecircncia e Cultura v 65 n 4 p 22-26 2013

PLATAtildeO A Repuacuteblica (Da justiccedila) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2006

PLATAtildeO Feacutedon (ou Da alma) Trad por Edson Bini Bauru EDIPRO 2008

PLATO The Republic of Plato Edited with critical notes commentary and appendices by

James Adam Cambridge Cambridge University Press 1965

PLOTINUS Ennead IV With an English translation by A H Armstrong Cambridge

Massachusetts Havard University Press London Heinemann 1984

REALE Giovanni Corpo alma e sauacutede o conceito de homem de Homero a Platatildeo Trad

por Marcelo Perine Satildeo Paulo Paulus 2002

REALE Giovanni Leacutexico da Filosofia Grega e Romana Trad por Henrique Claacuteudio de

Lima Vaz e Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 2014

ROBINSON Thomas As origens da alma os gregos e o conceito de alma de Homero a

Aristoacuteteles Trad por Alaya Dullius Jonatas R Alvares Sandra Rocha Diogo Saraiva et alii

Satildeo Paulo Annablume 2010

SAFTY Essam La psycheacute humaine conceptions populaires religieuses et philosophiques

em Gregravece des origines agrave lrsquoancien stoiumlcisme Paris LlsquoHarmattan 2003

SMART John Sensations and brain processes In BORST (Org) The mind brainidentity

theory London The Macmillan Press 1970

84

SOLEgraveRE Jean-Luc Des images sans imagination (Le lexique de llsquoimage chez s Augustin)

In PACHECO Maria Cacircndida MEIRINHOS Joseacute F (Ed) Intellect et imagination dans la

Philosophie Meacutedieacutevale Actes du XIᵉ Congregraves International de Philosophie Meacutedieacutevale de la

Societeacute Internationale pour lrsquoEacutetude de la Philosophie Meacutedieacutevale (SIEPM) Vol 2

Turnhout BREPOLS 2006

TEIXEIRA Evilaacutezio Borges Imago trinitatis Deus sabedoria e verdade estudo teoloacutegico

sobre o De Trinitate de Santo Agostinho Porto Alegre EDIPUCRS 2013

TOLEDO Gustavo O argumento dos zumbis na filosofia da mente satildeo zumbis fiacutesicos

possiacuteveis Rio de Janeiro 2005 p 60 Disponiacutevel em lthttpwwwmaxwelllambdaelepuc-

riobrBusca_etdsphpstrSecao=resultadoampnrSeq=65032gt Acesso em 17 Mar 2015

Page 9: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 10: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 11: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 12: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 13: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 14: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 15: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 16: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 17: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 18: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 19: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 20: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 21: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 22: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 23: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 24: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 25: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 26: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 27: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 28: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 29: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 30: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 31: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 32: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 33: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 34: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 35: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 36: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 37: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 38: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 39: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 40: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 41: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 42: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 43: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 44: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 45: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 46: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 47: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 48: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 49: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 50: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 51: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 52: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 53: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 54: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 55: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 56: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 57: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 58: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 59: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 60: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 61: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 62: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 63: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 64: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 65: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 66: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 67: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 68: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 69: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 70: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 71: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 72: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 73: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 74: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 75: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 76: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 77: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 78: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 79: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 80: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 81: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 82: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 83: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 84: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 85: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 86: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 87: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 88: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 89: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 90: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 91: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 92: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 93: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 94: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 95: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual
Page 96: UMA ANÁLISE CONCEITUAL DA RELAÇÃO ENTRE PSIQUE E …repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/15598/1/Analise... · 2017. 6. 27. · Lima, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual