uma análise do catolicismo brasileirono segundo império

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Revista Caminhando v. 13, n. 21, p. 61-78, jan-mai 2008 111 Uma análise do Catolicismo Brasileiro no Segundo Império Douglas Nassif Resumo Partindo de uma afirmação de Daniel Parish Kidder, de 1837, sobre o “caráter tolerante do catolicismo brasileiro”, o autor investiga as vertentes do catolicismo no segundo império (1840–1889) no Brasil. As tendências antagonistas galicanistas, jansenistas e ultramontanistas são comparadas com a abertura iluminista da reforma pombalina. Palavras-chave Catolicismo – reforma pombalina – galicanismo – jansenismo – ultramontanismo. Ministro do Evangelho e professor de Teologia e História. Pesquisador na área de História do Protestantismo, atuando principalmente nos seguintes temas: História, Biografia, Teologia e Música Sacra. Teólogo, Administrador, Mestre e Doutor em Ciências da Religião/Umesp. Endereço eletrônico: [email protected]

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Uma análise do Catolicismo Brasileirono Segundo Império

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  • R e v i s t a C a m i n h a n d o v . 1 3 , n . 2 1 , p . 6 1 - 7 8 , j a n - m a i 2 0 0 8 1 1 1

    Uma anlise do Catolicismo Brasileirono Segundo Imprio

    Douglas Nassif

    Resumo

    Partindo de uma afirmao de Daniel Parish Kidder,

    de 1837, sobre o carter tolerante do catolicismo

    brasileiro, o autor investiga as vertentes do

    catolicismo no segundo imprio (18401889) no

    Brasil. As tendncias antagonistas galicanistas,

    jansenistas e ultramontanistas so comparadas

    com a abertura iluminista da reforma pombalina.

    Palavras-chave

    Catolicismo reforma pombalina galicanismo

    jansenismo ultramontanismo.

    Ministro do Evangelho e professor de Teologia e Histria. Pesquisador na rea de Histria do Protestantismo, atuando principalmente nos seguintes temas: Histria, Biografia, Teologia e Msica Sacra. Telogo, Administrador, Mestre e Doutor em Cincias da Religio/Umesp. Endereo eletrnico: [email protected]

  • 1 1 2 D o u g l a s N A S S I F , U m a a n l i s e d o C a t o l i c i s m o B r a s i l e i r o n o S e g u n d o I m p r i o

    An analysis of the BrazilianCatholiscism in the Second Empire

    Douglas Nassif

    Abstract

    Based on a 1837statement of Daniel Parish Kidder

    about the tolerant character of the Brazilian

    Catholicism, the author researches on the groups

    of Catholicism in the Second Empire (1840-1889) in

    Brazil. Both main groups, conservative

    (Ultramontanism) and Liberal (Galicanism,

    Jansenism and Masonry), are analyzed, starting

    from the impact of Iluminism in Portugal, going

    through the arrival of the Portuguese court to

    Brazil, up to the formation, development and

    decline of the Brazilian Empire.

    Keywords

    Catholicism Galicanism Jansenism Ultramon-

    tanism.

    Presbyterian minister and professor of the Faculty of Theology, Umesp. Research in History of Protestantism (his-tory, biography, theology and sacred music). Theologian, administrator, master and Ph. D. in Religious Studies, Umesp.Electronic address: [email protected]

  • R e v i s t a C a m i n h a n d o v . 1 2 , n . 1 9 , p . 7 9 - 9 2 . j a n j u n 2 0 0 7 1 1 3

    Una anlisis del catolicismo brasileo en el segundo Imperio

    Douglas Nassif

    Resumen

    Partiendo de una afirmacin de Daniel Parish Kidder

    de 1937 sobre el carcter tolerante del

    catolicismo brasileo, el autor investiga las

    vertientes del catolicismo en el segundo imperio

    (1940-1989) en Brasil. Las dos corrientes

    principales, conservadora (ultramontismo) y liberal

    (galicanismo, jansenismo y masonera), son

    analizadas a partir del impacto del Iluminismo en

    Portugal, pasando por la venida de la corte

    portuguesa a Brasil hasta la formacin,

    desenvolvimiento y declino del imperio brasileo.

    Palabras Clave

    Catolicismo, galicanismo, jansenismo y masonera.

    Pastor presbiteriano y profesor de la Facultad de la Teologa, Umesp. nfasis de investigacin: historia del protestantismo (historia, biografa, teologa, msica sacra). Telogo, administrador, y Doctor en Ciencias de la Religin, Umesp. Correo electrnico: [email protected]

  • 1 1 4 D o u g l a s N A S S I F , U m a a n l i s e d o C a t o l i c i s m o B r a s i l e i r o n o S e g u n d o I m p r i o

    minha firme convico, que nenhum outro pas catlico do globo existe, onde

    prevalea maior grau de tolerncia e liberalidade de

    sentimento para com os protestantes. Posso afirmar que, durante toda a minha

    estada e viagem no Brasil na qualidade de missionrio protestante, nunca recebi

    a mais leve oposio ou afronta do povo.

    (Daniel Parish Kidder)1

    Introduo

    Este ensaio surgiu numa conversa

    com o professor Helmut Henders na sala

    de professores da Faculdade de Teologia

    da Igreja Metodista, na Umesp. Salvo

    engano, falvamos sobre situaes de

    curiosas alianas produzidas no perodo

    da insero do protestantismo no Brasil.

    No faltam exemplos a respeito nas bio-

    grafias dos missionrios pioneiros do

    protestantismo de misso. Comentva-

    mos o texto que havamos produzido

    sobre estas questes e as diversas foras

    presentes no catolicismo brasileiro no

    sculo XIX ultramontismo, galicanismo,

    jansenismo e maonaria quando fomos

    convidados a registrar as origens e carac-

    tersticas destas diferentes representa-

    es.

    Para melhor compreender nosso obje-

    to, retornamos um sculo antes do incio

    do imprio brasileiro. Dada a breve ex-

    tenso deste artigo e de seu objetivo

    principal de reconhecer as origens destes

    partidos ideolgicos, no analisamos

    participaes individuais de seus mem-

    1 KIDDER, D. P. & FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros. Companhia Editora Nacional: So Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre, 1941, p. 158.

    bros. Recomendamos para aprofunda-

    mento neste tema o texto de David Guei-

    ros Vieira, O protestantismo, a maona-

    ria e a questo religiosa no Brasil, nosso

    principal referencial terico.

    Dividimos nossa pesquisa em quatro

    partes. Na primeira, discorreremos sobre

    o impacto do Iluminismo sobre Portugal

    provocando a reforma pombalina. Na

    segunda parte apresentaremos os efeitos

    desta reforma at a chegada da corte

    portuguesa ao Brasil. A seguir rememora-

    remos o breve perodo de 1808 a 1824,

    da vinda de D. Joo elaborao da

    Constituio do Imprio do Brasil, um

    momento de reconstruo do pas. E,

    finalmente, na quarta parte analisaremos

    as quatro faces presentes no catolicis-

    mo brasileiro no segundo imprio.

    Primeira parte: do iluminismo reforma pombalina

    A maior parte das representaes que

    atuavam no campo religioso do Brasil

    imprio (18221889) foi constituda no

    sculo anterior, a partir do movimento

    denominado Iluminismo, que marcou

    profundamente a sociedade europia

    ocidental no tocante a poltica, filosofia,

    religio, cincia e demais campos do

    saber, mudando a forma de organizao

    das naes.

    A forte influncia do movimento ilu-

    minista atingiu o ambiente acadmico e

    segmentos da elite de Portugal em mea-

    dos do sculo XVIII. Vrias polmicas

    foram iniciadas. Duas correntes emergem

    neste momento histrico de Portugal, de

    um lado o conservadorismo liderado pe-

  • R e v i s t a C a m i n h a n d o v . 1 3 , n . 2 1 , p . 8 7 - 9 6 , j a n - m a i 2 0 0 8 1 1 5

    los jesutas que buscavam a manuteno

    do modelo de sociedade portuguesa do

    Antigo Regime2 e, de outro, clrigos e

    intelectuais provenientes das elites que

    apresentavam um novo projeto que con-

    templasse as diversas eivindicaes ad-

    vindas do Iluminismo.

    O rei de Portugal D. Jos I (1714

    1777), ao assumir o trono em 1750,

    percebendo a possibilidade de uma revo-

    luo, desenvolveu um sistema poltico

    intermedirio, o despotismo ilustrado,

    regime de governo que agregava ao Ab-

    solutismo monrquico os princpios filos-

    ficos iluministas. Para executar as trans-

    formaes polticas necessrias, D. Jos I

    nomeou Sebastio Jos de Carvalho e

    Melo (16991782), o futuro Marqus de

    Pombal (nomeado em 16 de outubro de

    1769)3.

    Inspirado na revoluo industrial in-

    glesa, imediatamente o Marqus de Pom-

    bal comeou a criar indstrias e compa-

    nhias de comrcio. Racionalizou a admi-

    nistrao e inovou ao permitir a partici-

    pao de elites econmicas em projetos

    governamentais. Promoveu reforma radi-

    cal no ensino, importando mtodos e

    incentivando a cincia, abrindo Portugal

    utilizao das novas tecnologias.

    O choque entre os jesutas e o Mar-

    qus de Pombal era inevitvel. A Compa-

    nhia de Jesus no aceitara o novo siste-

    ma de governo em que no se aceitava a

    influncia da Igreja sobre o Estado. Em

    2 Antigo Regime, ou seja, o conjunto de monarquias absolutas imperantes na Europa desde o incio do sculo XVI. In: FAUSTO, Boris. Histria do Brasil. Edusp: So Paulo, SP, 2007, p. 106.

    3 SIMONSEN, Roberto C. Histria Econmica do Brasil (15001820). Companhia Editora Nacional: So Paulo, SP, 8 edio, 1978.

    12 de janeiro de 1759 foi publicado o

    decreto de expulso dos jesutas de Por-

    tugal e do Brasil.

    Segunda parte: da reforma pombalina vinda da corte ao Brasil

    Os estudantes que afluram a Portugal

    no perodo da reforma pombalina foram

    impactados com o Iluminismo. S na

    Universidade de Coimbra passaram 1752

    estudantes brasileiros, unindo as idias

    iluministas aos ideais do liberalismo pol-

    tico, questionando o regime imposto

    sobre a colnia e iniciando vrios movi-

    mentos de luta pela independncia do

    Brasil. Estes estudantes, oriundos das

    elites brasileiras e padres, retornaram ao

    pas com um novo propsito: o sonho da

    independncia, tramando projetos revo-

    lucionrios.4

    Um dos princpios do processo revolu-

    cionrio era o da liberdade de conscin-

    cia, os clrigos e os demais intelectuais

    participantes abriram-se tolerncia

    religiosa; desta forma o carter obrigat-

    rio de uma nica interpretao da f

    catlica imposta pelos representantes de

    Roma, presente desde a chegada dos

    primeiros portugueses, comeou a se

    tornar desacreditado.5 Este entendimento

    ir auxiliar a aceitao de presena aca-

    tlica no Brasil do sculo XIX.

    O processo de formao de sacerdo-

    tes no Brasil, sem infra-estrutura ade-

    quada em seus seminrios devido a res-

    4 AZZI, R. A Crise da Cristandade e o Projeto Liberal. Paulinas: So Paulo, 1991, p. 61-63.

    5 AZZI, R. A Crise da Cristandade e o Projeto Liberal, p. 116-124.

  • 1 1 6 D o u g l a s N A S S I F , U m a a n l i s e d o C a t o l i c i s m o B r a s i l e i r o n o S e g u n d o I m p r i o

    tries impostas pelo padroado, provocou

    intensa secularizao, distanciando-os do

    contato nico com a igreja, permitindo

    que os mesmos abraassem ideais popu-

    lares e uma cosmoviso iluminista. Mes-

    mo dentro das diversas ordens religiosas

    comea o despertar de um sentimento ou

    conscincia nacionalista. O Vaticano teve

    de intervir entre franciscanos e carmelitas

    que reivindicavam igualdade de direito

    entre lusos e brasileiros.6

    A reforma pombalina influenciou as e-

    lites e o clero brasileiro. No foi possvel

    seguir o princpio de desigualdade entre

    metrpole e colnia. A revoluo ameri-

    cana e a revoluo francesa forneceram

    modelo e acenderam ideais nacionalistas

    manifestos nos diversos movimentos de

    libertao do final do sculo XVIII e incio

    do sculo XIX. O pensamento liberal,

    junto com as novas concepes crists

    manifesta nos movimentos revolucion-

    rios, rompeu o conceito de autoridade do

    monarca e do papado.

    Terceira parte: da vinda da corte 1. constituio do Brasil

    D. Joo, ao chegar ao Brasil em 28 de

    janeiro de 1808, assinou decreto abrindo

    portos do Brasil s naes amigas. Seu

    segundo decreto revogava a proibio de

    se industrializar no pas; alm disto, isen-

    tava de tributao a importao de mat-

    rias primas e oferecia subsdios s inds-

    trias. O prncipe regente incentivou a

    6 AZZI, R. A Crise da Cristandade e o Projeto Liberal, p. 101.

    inveno e introduo de novas mqui-

    nas7.

    A proteo dada a Portugal contra as

    tropas napolenicas realizando opera-

    o de comboio da frota lusa de Lisboa

    at seu destino, a cidade do Rio de Janei-

    ro rendeu, aos ingleses, benefcios

    descritos no Tratado do Comrcio e no

    Tratado de Amizade, celebrado pelas

    duas naes em 1810.

    O campo religioso brasileiro, hermeti-

    camente fechado aos acatlicos de 1500

    a 1808, abriu-se por influncia inglesa.

    Por meio do Tratado do Comrcio, Portu-

    gal permitia a construo de igrejas e

    cemitrios protestantes, assegurando a

    liberdade de culto.8 A expectativa do fim

    do trfico de escravos levou D. Joo a

    tomar medidas em prol da entrada de

    imigrantes no pas. Esperava-se, junto

    dessas novas levas populacionais, a pre-

    sena inclusive de imigrantes protestan-

    tes.

    A proclamao da independncia no

    dia sete de setembro de 1822 e a coroa-

    o de D. Pedro I em 12 de outubro do

    mesmo ano atenderam em parte s aspi-

    raes nacionalistas brasileiras. Manti-

    nham-se quadros hierrquicos anteriores,

    entretanto dissolvia-se a relao de de-

    pendncia com Portugal. A presena do

    clero na Assemblia Constituinte, instala-

    da em trs de maio de 1823, era marcan-

    te. Dos noventa deputados, dezenove

    eram padres e a presidncia recaiu sobre

    7 FAUSTO, Boris. Histria do Brasil, 2007, p. 122. 8 RODRIGUES, J. C. Religies Acatholicas no Brazil.

    Jornal do Comrcio: Rio de Janeiro, 1904, p. 105.

  • R e v i s t a C a m i n h a n d o v . 1 3 , n . 2 1 , p . 8 7 - 9 6 , j a n - m a i 2 0 0 8 1 1 7

    D. Jos Caetano de Souza Coutinho,

    bispo do Rio de Janeiro.9

    A Carta Constitucional, outorgada em

    25 de maro de 1824, exibia marcas da

    diplomacia inglesa e do liberalismo catli-

    co dos constituintes, promovendo uma

    situao nova, nunca antes ocorrida na

    histria de Portugal ou do Brasil, a possi-

    bilidade de tolerar outra religio em seu

    territrio, com liberdade de culto.

    Quarta parte: definida as diferentesfaces catlicas

    As principais correntes ideolgicas ca-

    tlicas presentes no Brasil imprio foram,

    como j vimos, o galicanismo, o janse-

    nismo, a maonaria e o ultramontismo.

    Com exceo do ultramontanismo, os

    demais movimentos no eram excluden-

    tes, isto , poderiam ter representantes

    em dois ou mais grupos simultaneamen-

    te. Abaixo apresentamos breve descrio

    destes movimentos.

    GALICANISMO o termo enfeixava as

    vrias teorias de Estado desenvolvidas na

    Frana com relao Igreja Catlica,

    assim como com o papado. Nestas teori-

    as derrubavam-se antigas pretenses

    teocrticas papistas da Idade Mdia,

    tendo sido inseridas na "Declarao do

    Clero Francs", de autoria do Bispo Jac-

    ques Benigne Bousset, publicada em

    1682, que declarava o poder temporal

    dos reis independente do papado. Desta

    maneira ficaram conservadas as antigas

    liberdades do clero francs, cujo Conse-

    9 RODRIGUES, J. C. Religies Acatholicas no Brazil, p. 110.

    lho Geral estava acima do Papa, e que a

    autoridade infalvel da igreja residia nas

    decises conjuntas entre os bispos e o

    Papa. Dentro deste conceito estava o

    padroado, direito do rei de recolher os

    dzimos e nomear os bispos, diferente do

    padroado, concedido pelo Papa aos reis

    portugueses e espanhis na poca dos

    descobrimentos.10 O Galicanismo dividia-

    se em dois segmentos: poltico ou religio-

    so.

    O Galicanismo poltico a tentativa

    de subordinar o clero e os bens da Igreja

    ao Estado. Sua origem pode ser encon-

    trada no reinado de Felipe IV, o Belo, que

    se colocou frontalmente contra o Papa

    Bonifcio VIII, em 1296, proibindo a

    sada de ouro do reino. Em 1301 impede

    bispos franceses de obedecerem convo-

    cao papal em Roma. A situao atingiu

    seu ponto mximo com o Grande Cisma,

    com o chamado papado de Avinho. Nos

    sculos seguintes diversos monarcas

    franceses continuaram este conflito pelo

    poder com o Vaticano, destacando-se

    Lus XIV e Napoleo11. Esta concepo do

    predomnio do Estado sobre a Igreja

    tambm foi denominado Regalismo.

    O Galicanismo religioso desenvolveu-

    se nos Conclios de Constana (1414

    1418) e de Basilia (14311442), que

    restringiu o poder papal, modificando a

    forma de governo de curialismo para o

    concilianismo. Este movimento tornou-se

    caracterstico na igreja francesa, cujos

    telogos e canonistas afirmavam a supe-

    10 VIEIRA, D. G. O Protestantismo, a Maonaria e a Questo Religiosa no Brasil. Editora Universidade de Braslia: Braslia, DF, 1980, p. 28.

  • 1 1 8 D o u g l a s N A S S I F , U m a a n l i s e d o C a t o l i c i s m o B r a s i l e i r o n o S e g u n d o I m p r i o

    rioridade do Conclio Geral e tambm

    rejeitavam a infalibilidade papal. O Gali-

    canismo religioso resistiu at o Conclio

    Vaticano I, realizado em 1870, que imps

    o curialismo e a doutrina da infalibilidade

    papal12.

    JANSENISMO Denomina-se Janse-

    nismo a corrente doutrinria inspirada na

    obra Augustinus de Fleming Cornelius

    Otto Jansen (15631638), bispo de Y-

    pres. Nesta obra, Jansen trata a questo

    da graa divina e vontade humana na

    salvao. A base da reforma era a mu-

    dana de sua teologia, do tomismo para o

    augustianismo, que produziu ensinamen-

    tos religiosos muito parecidos com os

    calvinistas. Jansen declarou que a con-

    verso dependia da vontade de Deus e

    que a justificao se dava no relaciona-

    mento do homem com Deus, indepen-

    dente das boas obras. Enfatizava a leitura

    diria da Bblia e a prtica de vida piedo-

    sa, opondo-se com veemncia aos jesu-

    tas e a seus mtodos conversionistas.13

    Durante o sculo XVI formaram-se as

    posies de protestantes que afirma-

    vam que a salvao era decorrente da f

    to somente (sola fide) e a resposta

    catlica produzida no Conclio de Trento,

    que associava a f e as obras salvao.

    As teses de Jansen foram imediatamente

    combatidas por jesutas e pelo Vaticano.

    Dois anos aps a publicao do Augusti-

    nus, em 1642, ele foi condenado pelo

    Papa Urbano VIII. Caindo na clandestini-

    11 CHRISTOPHE, Paul. Pequeno Dicionrio da Histria da Igreja. Apelao (Sacavm): Edies So Paulo, Portugal, p. 59-60.

    12 CHRISTOPHE, Paul. Pequeno Dicionrio da Histria da Igreja, p. 60-61.

    13 VIEIRA, D. G. O Protestantismo, a Maonaria e a Questo Religiosa no Brasil, p. 29.

    dade, o Jansenismo sobreviveu por meio

    de Duvergier de Hauranne, amigo de

    Jansen, abade de Saint-Cyran, a abadia

    cisterciense de Port-Royal. Homens ilus-

    tres mudam sua residncia para prximo

    da abadia, forma-se uma comunidade

    que seguia a proposta asctica do Bispo

    de Ypres. A questo de fundo no era a

    soteriologia, mas o tipo de pastoral, de

    moral e de comportamento do clero. O

    Jansenismo refutava as prticas pastorais

    jesutas e do Vaticano. A resposta papal

    no tardou; em 1653 o Papa Inocncio X

    condenou cinco proposies jansenistas,

    condenao reafirmada, em 1656, pelo

    Papa Alexandre XIV. Em 1709, Lus XIV

    manda destruir a abadia de Port-Royal e

    dispersar as religiosas. Em 1713, trono e

    altar unem-se contra o Jansenismo. Lus

    XIV obtm do Papa Clemente XI a Bula

    Unigenitus, que condena 101 proposies

    do Livro Reflexes Morais, obra do jan-

    senista Quesnel. Em 1717, quatro bispos

    jansenistas so excomungados14.

    O Jansenismo simbolizava oposio

    ao modelo de prticas pastorais e religio-

    sas dos jesutas e do Vaticano. Expressa-

    va uma nova proposta de devoo, com

    vida austera e nfase na busca da salva-

    o individualmente.

    MAONARIA No incio do sculo XIX

    foram fundadas as primeiras lojas ma-

    nicas no Brasil, em 1801 no Rio de Janei-

    ro e em 1802 na Bahia, tendo sido liga-

    das Grande Loja Francesa. No Brasil

    Imprio formaram-se duas lojas: O

    Grande Oriente, em 28 de maio de 1822,

    dominada por republicanos; e a Aposto-

    14 CHRISTOPHE, Paul. Pequeno Dicionrio da Histria da Igreja, p. 83-85.

  • R e v i s t a C a m i n h a n d o v . 1 3 , n . 2 1 , p . 8 7 - 9 6 , j a n - m a i 2 0 0 8 1 1 9

    lado da Nobre Ordem dos Cavaleiros da

    Santa Cruz, em 2 de junho de 1822,

    conservadora. Sua influncia era tama-

    nha que D. Pedro I filiou-se em ambas,

    distanciando-se do clero conservador. Os

    dois principais lderes do imprio, Joa-

    quim Gonalves Ledo e Jos Bonifcio de

    Andrada e Silva, pertenciam s duas lojas

    manicas. O programa de ao da loja

    alterava-se de conformidade com a ideo-

    logia de seus participantes, fosse ela

    monrquica ou republicana. O liberalis-

    mo, com a busca do progresso atravs da

    educao e da cincia, era comum em

    todas as lojas, sendo fator formativo do

    pensamento das lideranas brasileiras a

    este respeito.15

    No segundo imprio, D. Pedro II deu

    continuidade ao pensamento liberal dos

    regentes que o precederam, aliando um

    extremo cuidado das prerrogativas na-

    cionais ao ceticismo em matria religiosa.

    Durante seu longo governo criou apenas

    trs novos bispados, sendo todos eles em

    seus quinze anos iniciais. Sua vida moral

    foi irrepreensvel; no se envolveu com a

    maonaria apesar de toler-la.

    A influncia da maonaria pode ser

    avaliada ao considerarmos que, em 1867,

    73 lojas faziam parte do Grande Oriente

    do Lavradio. Muitos liberais catlicos

    maons, clrigos e leigos, pertenciam a

    correntes galicanistas e jansenistas. O

    conflito entre Igreja e Estado na dcada

    de 1870 foi iniciado com um discurso

    manico do Padre Almeida Martins, a

    quem seu bispo, D. Pedro de Lacerda

    intimou, em obedincia ao Syllabus, a

    15 VIEIRA, D. G. O Protestantismo, a Maonaria e a Questo Religiosa no Brasil, p. 40.

    abjurar a maonaria. Com a desobedin-

    cia do padre, o bispo de Olinda, D. Vital,

    tomou sobre si a continuidade da ques-

    to.

    Vrios relatos do segundo imprio

    demonstram que a maonaria protegeu o

    protestantismo nascente e em suas filei-

    ras possua missionrios, pastores e

    membros de igrejas protestantes.

    ULTRAMONTANISMO Etimologica-

    mente significa alm dos montes em

    aluso submisso s ordens do Papa e

    do Vaticano. O movimento surgiu no

    sculo XIX, em oposio queles que

    desejavam restringir o poder papal, isto

    , os catlicos liberais, representados

    principalmente por galicanistas, jansenis-

    tas e maons.

    No Brasil Imprio, a presena do ul-

    tramontanismo no incio foi diminuta,

    aumentando com o passar do tempo,

    principalmente com a vinda dos nncios e

    internncios, assim como de Ordens

    religiosas estrangeiras, que aos poucos

    comearam a retornar ao Imprio: os

    lazaristas em 1827; os capuchinos em

    1862; e os jesutas em 1866, alm dos

    clrigos brasileiros formados nos semin-

    rios da Frana e da Itlia.16

    O poder sacerdotal do ultramonta-

    nismo fora quebrado desde a indepen-

    dncia, sendo que por pouco no ocorreu

    o desligamento da igreja brasileira com o

    Vaticano numa ocasio em que no fo-

    ram aceitas as indicaes de dois bispos

    brasileiros, entre eles o Padre Antnio

    Diogo Feij17.

    16 VIEIRA, D. G. O Protestantismo, a Maonaria e a Questo Religiosa no Brasil, p. 32.

    17 KIDDER, D. P. & FLETCHER, J. C. O Brasil e os Brasileiros, p. 157.

  • 1 2 0 D o u g l a s N A S S I F , U m a a n l i s e d o C a t o l i c i s m o B r a s i l e i r o n o S e g u n d o I m p r i o

    O auge do ultramontanismo ocorreu

    durante o pontificado de Pio IX (1846

    1878), perodo em que ocorre o Conclio

    Vaticano I, que centralizou o poder da

    Igreja na cria papal e definiu a doutrina

    da infalibilidade papal. Esta posio privi-

    legiava o absolutismo, tanto na Igreja

    quanto na sociedade, tornando o catoli-

    cismo romano em adversrio das corren-

    tes progressistas. O Papa Pio IX consoli-

    dou estas decises com a publicao da

    Encclica Quanta Cura e do Syllabus, em

    que lista oitenta erros modernos, entre

    eles o liberalismo, a separao entre

    Igreja e Estado, a liberdade de conscin-

    cia e de religio18.

    O zelo de D. Pedro II na escolha dos

    bispos do Brasil, assim como no prover

    verbas para envio de seminaristas s

    melhores escolas de Frana e Portugal,

    permitiu, sem o saber, o fortalecimento

    da ala conservadora da igreja, ultramon-

    tista, havendo, em 1872, poca da cha-

    mada Questo Religiosa, pelo menos

    cinco bispos desta orientao no Brasil19.

    Concluso

    A diversidade de ideologias presentes

    no sculo XIX no campo religioso e polti-

    co brasileiro foi fruto do impacto do Ilu-

    minismo na Europa do sculo XVIII. A

    reforma pombalina permitiu que Portugal

    e suas colnias recebessem os benefcios

    das propostas iluministas.

    Numa poca de surtos revolucionrios

    era inevitvel a influncia destes movi-

    18 CHRISTOPHE, Paul. Pequeno Dicionrio da Histria da Igreja, p. 139-140.

    19 ALVES, Mrcio Moreira. A Igreja e a Poltica no Brasil. Brasiliense: So Paulo, SP, 1979, p. 28-30.

    mentos sobre os brasileiros. O projeto

    colonizador portugus pretendia que as

    colnias no possussem identidade pr-

    pria, comportando-se como simples ex-

    tenso territorial da matriz. A reforma na

    Universidade de Coimbra exportou uma

    nova cosmoviso e ideais revolucionrios

    ao Brasil.

    A vinda da corte portuguesa ao Brasil

    inaugurou um perodo de modernizao

    nunca experimentado no pas. A dupla

    influncia, cultural francesa e poltico-

    econmica inglesa impulsionou o pas a

    um desenvolvimento acelerado e a alcan-

    ar a independncia de Portugal, sonho

    que motivava conspiraes em vrias

    provncias da colnia.

    Os movimentos de reforma poltica e

    religiosa o galicanismo, o jansenismo e

    a maonaria ganharam adeptos entre a

    aristocracia e o clero brasileiro e foram

    decisivos para a formao da nova ptria.

    A insero e a legitimao do protestan-

    tismo no Brasil imprio deu-se com a

    cooperao das diversas foras liberais

    catlicas, atravs da ocupao de espa-

    os na mdia impressa, no campo do

    Direito e no cenrio poltico.