um rio chamado tempo ymmj

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    Ao Fernando e Maria de Jesus, meus pais

    Patrcia, minha mulherAo Madyo Dawany, Luciana e Rita, meus flhos

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    No princpio,

    a casa oi sagradaisto , habitada

    no s por homens e vivos

    como tambm por mortos e deuses

    (Sophia de Mello Breyner)

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    Captulo um

    NA VSPERA DO TEMPO

    Encheram a terra de ronteiras,

    carregaram o cu de bandeiras.

    Mas s h duas naes a dos vivos e a dos mortos.

    (Juca Sabo)

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    A morte como o umbigo: o quanto nela existe a sua cicatriz,a lembrana de uma anterior existncia. A bordo do barco que meleva Ilha de Luar-do-Cho no seno a morte que me vai ditandosuas ordens. Por motivo de alecimento, abandono a cidade e ao aviagem: vou ao enterro de meu Av Dito Mariano.

    Cruzo o rio, j quase noite. Vejo esse poente como o desbotardo ltimo sol. A voz antiga do Av parece dizer-me: depois destepoente no haver mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o

    horizonte: ali onde se aunda o. astro o mpela djambo, o umbi-go celeste. A cicatriz to longe de uma erida to dentro: a ausentepermanncia de quem morreu. No Av Mariano confrmo: mortoamado nunca mais pra de morrer.

    Meu Tio Abstinncio est encostado na amurada, ato completo,escuro envergando escurido. A gravata cinza semelha uma corda aodespenduro num poo que o seu peito escavado. Rasando o con-vs do barco, as andorinhas parecem entregar-lhe secretos recados.

    Abstinncio o mais velho dos tios. Da a incumbncia: ele quetem que anunciar a morte de seu pai, Dito Mariano. Foi isso que ezao invadir o meu quarto de estudante na residncia universitria.Sua apario me alertou: h anos que nada azia Tio Abstinnciosair de casa. Que azia ali, aps anos de recluso? Suas palavras o-

    ram mais magras que ele, a estrita e no necessria notcia: o Avestava morrendo. Eu que viesse, era o pedido exarado pelo velhoMariano. Abstinncio me instruiu: rpido, fzesse a mala e embar-

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    cssemos no prximo barco para a nossa Ilha. E meu pai? perguntei enquanto escolhia roupas. Est na Ilha, esperando por ns.Depois, o Tio nada mais alou, afvelado em si. Nem se esboou

    para me ajudar a empacotar os midos haveres.Fomos, pela cidade, ele um pouco rente, com seu andar empi-nado mas tropeado de salamaleques. Sempre oi assim: ao mnimopretexto, Abstinncio se dobrava, azendo vnia no torto e no direi-to. No respeito, no, explicava ele. que em todo o lado, mesmono invisvel, h uma porta. Longe ou perto, no somos donos massimples convidados. A vida, por respeito, requer constante licena.

    Os outros amiliares eram muito dierentes. Meu pai, por exem-plo, tinha a alma or da pele. J ora guerrilheiro, revolucionrio,oposto injustia colonial. Mesmo internado na Ilha, nos meandrosdo rio Madzimi, meu velho Fulano Malta transpirava o corao emcada gesto. J meu Tio Ultmio, o mais novo dos trs, muito se davaa exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital. No requentaramais a sua ilha natal, ocupado entre os poderes e seus corredores.Nenhum dos irmos se dava, cada um em individual conormidade.

    O Tio Abstinncio, este que cruza o rio comigo, sempre assim seapresentou: magro e engomado, ocupado a tranar lembranas. Umcerto dia, se exilou dentro de casa. Acreditaram ser arremesso dehumores, coisa passatemporria. Mas era defnitivo. Com o tempoacabaram estranhando a ausncia. Visitaram-no. Sacudiram-no, ele

    nada. No quero sair nunca mais. Tem medo de qu? O mundo j no tem mais beleza.Como aqueles amantes que, depois de zanga, nunca mais se que-

    rem ver. Assim era o amuo do nosso tio. Que ele tinha tido casocom o mundo. E agora doa-lhe de mais a decadncia desse rosto dequem amara. Os outros riram. O parente soria de tardias poesias?

    Voc, Abstinncio, uma pessoa muito impessoal. Tem medo davida ou do viver?

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    Me deixem, irmos: esta a minha natureza. Ou, se calhar, o Mano Abstinncio no recebeu oi sufciente na-

    tureza.E deixaram-no, s e nico. Afnal, era escolha dele. Abstinncio

    Mariano despendera a vida inteira na sombra da repartio. A pe-numbra adentrou-se nele como um bolor e acabou fcando saudo-so de um tempo nunca havido, vivo mesmo sem ter nunca casado.Houve noiva, dizia-se. Mas ela alecera em vspera. Nessa anteviu-vez, Abstinncio passou a envergar uma tarjeta de pano preto, guar-nio de luto sobre a lapela. Todavia, do que se conta, sucedia oseguinte: a pequena tarja crescia durante as noites. Manh seguinte,

    o paninho estava acrescido de tamanho, a pontos de toalha. E, nosubsequente, um lenol j pendia do sombrio casaco. Parecia que atristeza adubava os pesarosos panos. Na amlia houve quem logoencontrasse a adequada convenincia: que ali estava uma manuac-tura txtil, motivo no de perda chorosa, mas de ganhos chorudos.Diz-se, sem mais que o dizer.

    No sou apenas eu e o Tio Abstinncio que atravessamos o riopara ir a Luar-do-Cho: toda a amlia se estava dirigindo para osunerais. A Ilha era a nossa origem, o lugar primeiro do nosso cl, osMalilanes. Ou, no aportuguesamento: os Marianos.

    Nenhum pas to pequeno como o nosso. Nele s existem doislugares: a cidade e a Ilha. A separ-los, apenas um rio. Aquelasguas, porm, aastam mais que a sua prpria distncia. Entre um e

    outro lado reside um infnito. So duas naes, mais longnquas queplanetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas.

    Tio? Sim? O Av est morrendo ou j morreu? a mesma coisa.A vontade de chorar. Mas no tenho idade nem ombro onde

    escoar tristezas. Entro na cabina do barco e sozinho-me num canto.No importa o rebulio nem os rudos coloridos das vendedeiras depeixe. Minha alma baloua, mais murcha que a gravata do Tio. Hou-

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    vesse agora uma tempestade e o rio se reviravirasse, em ondas to al-tas que o barco no pudesse nunca atracar, e eu seria dispensado dascerimnias. Nem a morte de meu Av aconteceria tanto. Quem sabemesmo o Av no chegasse nunca a ser enterrado? Ficaria sobrado

    em poeira, nuveado, sem aparncia. Sobraria a terra escavada comum vazio sempre vago, na intil espera do adiado cadver. Mas no,a morte, essa viagem sem viajante, ali estava a dar-nos destino. E eu,seguindo o rio, eu mais minha intransitiva lgrima.

    O calor me az retirar da cabina. Vou para o convs onde se mistu-ram gentes, cores e cheiros. Sento-me na r, numa escada j sem uso.O rio est sujo, peneirado pelos sedimentos. o tempo das chuvas,

    das guas vermelhas. Como um sangue, um ciclo mnstruo vai man-chando o esturio.

    Est livre, esse chozito?Uma velha gorda pede licena para se sentar. Leva um tempo a

    ajeitar-se no cho. Fica em silncio, alisando as pernas. As roupasso velhas, de antigo e encardido uso. Contrasta nela um leno novo,com as coloraes todas do mundo. At a idade do rosto lhe pareceminguar, to de cores o leno.

    Est-me a olhar o leno? Este leno ui dada na cidade. Agora meu.

    Ajeita uma vaidade na cabea, saracoteando os ombros. Depois,fca estudando o Tio Abstinncio.

    Esse a seu parente?

    meu tio.A velha me contempla, ento, com cuidado. Seus olhos se estrei-

    tam chinesamente. Em seguida, volta a olhar Abstinncio. Compara-nos, sem dvida. Depois ela me estende o brao, abrindo um sorriso.

    Me chamo Miserinha. nome que oi dado, mas no da nascen-a. Como esse leno que recebi.

    De novo, a sua ateno pousa no Tio. Seu olhar parece mais ummodo de escutar. Que seria que ela retirava de meu parente? Talvezsua defnhada postura. Sabe-se: a dor pede pudor. Na nossa terra, osorimento uma nudez no se mostra aos pblicos. Abstinncio

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    se comporta em sua melancolia. A velha coloca a mo sobre a testa,cortinando os olhos, atenta aos tintins dos gestos de Abstinncio.

    Esse homem vai carregado de sorimento. Como sabe?

    No v que s o p esquerdo que pisa com vontade? Aquilo peso do corao.Explica-me que sabe ler a vida de um homem pelo modo como ele

    pisa o cho. Tudo est escrito em seus passos, os caminhos por ondeele andou.

    A terra tem suas pginas: os caminhos.. Est me entendendo? Mais ou menos.

    Voc l o livro, eu leio o cho. Agora, mais junto, me diga: o atodele preto?

    Sim. No v? Eu no vejo cores. No vejo nenhuma cor.Doena que lhe pegou com a idade. Comeou por deixar de ver o

    azul. Espreitava o cu, olhava o rio. Tudo plido. Depois oi o verde,o mato, os capins tudo outonecido, desverdeado. Aos poucos lheoram escapando as demais cores.

    J no vejo brancos nem pretos, tudo para mim so mulatos.Se conormara. Afnal, no o cego quem mais espreita janela?

    Lhe azia Salta, sim, o azul. Porque tinha sido a sua primeira cor. Naaldeiazinha onde crescera, o rio tinha sido o cu da sua inncia. Noundo, porm, o azul nunca uma cor exacta. Apenas uma lembran-

    a, em ns, da gua que j omos. Agora, sabe o que ao? Venho perto do rio e escuto as ondas: e,

    de novo, nascem os azuis. Como, agora, estou escutar o azul.Miserinha se levanta. O balano do barco lhe az tontear o cora-

    o. E l se aasta, passo atordoado. A gorda mete os ps pelos vos.Entre a multido vai perdendo destaque.

    J se vislumbra o contorno escuro da Ilha. O barco vai abrandan-do os motores. Me deixo, brisa no rosto, a espreguiar o olhar naondeao. quando vejo o leno utuar nas ondas. , sem dvida,o pano de Miserinha. Um alvoroo no peito: a velha escorregara,

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    se aundara nas guas? Era urgente o alerta, parar o barco, salvar asenhora.

    Tio, a mulher caiu no rio!Abstinncio fca perturbado. Ele que nunca se alterava ergue os

    braos, alvoroado. Espreita as ondas, mos crispadas na borda daembarcao. Urge que seja dado o alarme. Vou empurrando parame chegar sala de comando. Mas, logo, algum me sossega:

    No caiu ningum, oi o vento que levantou um leno.Sinto, ento, um puxo no ombro. Miserinha. A prpria, cabea

    descoberta, cabelo branqueado s mostras. Se junta a mim, rosto norosto, num segredo:

    No se aija, o leno no tombou. Eu que lancei nas guas. Atirou o leno ora? E porqu? Por sua causa, meu flho. Para lhe dar sortes. Por minha causa? Mas esse leno era to lindo! E, agora, assim

    desperdiado no rio... E depois? H lugar melhor para deitar belezas?O rio estava tristonho que ela nunca vira. Lhe atirara aquela ale-

    gria. Para que as guas recordassem e ussem divinas graas. E voc, meu flho, vai precisar muito de boa proteco.Uma gaivota se conunde com o pano, as patas roando o also

    peixe. E logo se juntam outras, invejosas, em barulhao. Quandoreparo, j Miserinha se retira, dissolta no meio das gentes.

    A Ilha de Luar-do-Cho deve estar a um toque do olhar, tamanha

    a agitao. O Tio Abstinncio se aproxima, endireitando-se solenecontra o vento.

    Estava alando com essa velha? Sim, Tio. Falava. Pois no ale. No deixe que ela chegue perto. Mas, Tio... No h mas. Essa mulher que no se chegue. Nunca!As canoas e jangadas se aproximam para carregar os passageiros

    para a praia. Alguns homens sobem para o convs para ajudar notransbordo. Fico com Tio Abstinncio a ver a gente descer. Ele se

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    guarda sempre para ltimo. H-de morrer depois de todos, dizia oAv.

    A noite est mais espessa, a lancha que nos vem buscar pareceutuar no escuro. Antes de entrarmos na embarcao Abstinncio

    me az parar, mo posta sobre o meu peito: Agora que estamos a chegar, voc prometa ter cuidado. Cuidado? Porqu, Tio? No esquea: voc recebeu o nome do velho Mariano. No es-

    quea.O Tio se minguou no esclarecimento. J no era ele que alava.

    Uma voz infnita se esumava em meus ouvidos: no apenas eu con-

    tinuava a vida do alecido. Eu era a vida dele.

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    Captulo dois

    O DESPERTO NOME DOS

    VIVOS

    O mundo

    j no era um lugar de viver.

    Agora, j nem de morrer .

    (Av Mariano)

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    A lancha que nos vem buscar a bordo dierente das outras. Nelaest meu pai, Fulano Malta, sentado sobre uma caixa de madeira.Quando me v, deixa-se fcar imovente, osse demasiado o esoro desimplesmente estar ali. Inclino-me para o saudar.

    Est triste, pai? No. Estou sozinho. Estou aqui, pai. Fao-me alta, sem voc, meu flho.

    Se ergue, necessitado, quem sabe, de um amparo. Ainda julgueique buscasse o conorto de um abrao. Mas no. Finge que atentanuma qualquer gaivota. Tambm olho o pssaro: suas asas em o-rao rectifcam a nossa rgil condio. Mo no remo, gesto frme,meu velho suspira, em consolo:

    Ningum vive de ida e volta.A seu lado, reparo ento, est um indiano. Reconheo-o, o mdi-

    co da Ilha, o Doutor Amlcar Mascarenha. O mdico divide-se entreLuar-do-Cho e a cidade. Desta vez, ele viajara no mesmo barco e,sem notar, desembarcramos juntos. Ele me sada com um meneiodo chapu.

    O mdico porqu? pergunto a Abstinncio, que est a meulado.

    Para confrmar. Confrmar o qu? Olha, j estamos a chegar.

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    Na praia esperam-nos. a amlia, quase completa. Os homens rente, ps banhados pelo rio, acenam-nos. As mulheres atrs, bra-os de umas cruzando braos de outras como que segurando um scorpo. Nenhuma delas me olha no rosto.

    Quando me dispunha a avanar, o Tio me puxa para trs, quaseviolento. Ajoelha-se na areia e, com a mo esquerda, desenha umcrculo no cho. Junto margem, o rabisco divide os mundos deum lado, a amlia; do outro, ns, os chegados. Ficam todos assim,parados, espera. At que uma onda desaz o desenho na areia.Olhando a berma do rio, o Tio Abstinncio proere:

    O Homem trana, o rio destrana.

    Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-seo costume. S ento Abstinncio e meu pai avanam para os abra-os. Voltando-se para mim, meu tio autoriza:

    Agora, sim, receba os cumprimentos!Nada demora mais que as cortesias aricanas. Sadam-se os pre-

    sentes, os idos, os chegados. Para que nunca haja ausentes. Palavrasque apertam tanto quanto o entrecruzar de braos das mulheres quenos esperam.

    Depois das circunstncias, atravessamos o mercado do peixe. Asvendedeiras esto j arrumando os apetrechos, desmanchando astendas. Os ltimos peixes so vendidos ao desbarato. Daqui a umashoras estaro podres.

    Ajude-me, meu flho.

    Ainda pensei ser uma vendedeira, assediando-me. Mas Miseri-nha que me pede que a conduza, entre a multido.

    V olhando os cus, veja se est passar um pssaro.Meu tio az-me sinal para que me aaste da gorda. Mas no a pos-

    so deixar sem cumprir esse avor de atravessar o mercado. Olho parao cu. Passa a lenta gara, de regresso s grandes rvores.

    Veja, Miserinha, uma gara! Isso gara no . um mangondzwane. um pssaro-martelo, bicho coberto de lendas e maldies. Mise-

    rinha reconhecia-o sem deixar de olhar para o cho.

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    Fique atento a ver se ele canta.Passa sem cantar. Um rio me golpeia. Ainda me lembro do mau

    pressgio que o silncio do mangondzwane. Algo grave estariapara ocorrer na vila.

    Suba no ganda-ganda!Nem tempo tenho de me despedir. Me empoleiro no atrelado dotractor, vou circulando entre caminhos estreitos de areia. At hpouco a vila tinha apenas uma rua. Chamavam-lhe, por ironia, aRua do Meio. Agora, outros caminhos de areia solta se abriram,num emaranhado. Mas. a vila ainda demasiado rural, alta-lhe ageometria dos espaos arrumados. L esto os coqueiros, os corvos,

    as lentas ogueiras que comeam a despontar. As casas de cimentoesto em runa, exaustas de tanto abandono. No so apenas ca-sas destroadas: o prprio tempo desmoronado. Ainda vejo numaparede o letreiro j sujo pelo tempo: A nossa terra ser o tmulodo capitalismo. Na guerra, eu tivera vises que no queria repetir.Como se essas lembranas viessem de uma parte de mim j morta.

    Di-me a Ilha como est, a decadncia das casas, a misria der-ramada pelas ruas. Mesmo a natureza parece sorer de mau-olhado.Os capinzais se estendem secos, parece que empalharam o horizonte. primeira vista, tudo defnha. No entanto, mais alm, mo de umolhar, a vida reverbera, cheirosa como um ruto em vero: enxamesde crianas atravessam os caminhos, mulheres danam e cantam, ho-mens alam alto, donos do tempo.

    Cruzamo-nos com um luxuoso automvel enterrado no areal.Quem traria viatura da cidade para uma ilha sem estrada?

    Olha, o Tio Ultmio! e acenam.Meu Tio Ultmio, todos sabem, gente grande na capital, despen-

    de negcios e vai politicando consoante as convenincias. A poltica a arte de mentir to mal que s pode ser desmentida por outrospolticos. Ultmio sempre espalhou enganos e parece ter lucrado,acumulando alianas e inuncias. No entanto, ele ali se apresentargil, merc de uma pobre mo. No tractor comentam vastamenteo carro aocinhado, rodas enronhadas na areia. Mas no param.

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    Ainda h alguns que insistem nos deveres solidrios. Mas FulanoMalta terminante:

    Ele que se desenterre sua arreganhada sentena.Por fm, avisto a nossa casa grande, a maior de toda a Ilha. Cha-

    mamos-lhe Nyumba-Kaya, para satisazer amiliares do Norte e doSul. Nyumba a palavra para nomear casa nas lnguas norte-nhas. Nos idiomas do Sul, casa se diz kaya.

    Mesmo ao longe, j se nota que tinham mandado tirar o telha-do da sala. assim, em caso de morte. O luto ordena que o cu seadentre nos compartimentos, para limpeza das csmicas sujidades.A casa um corpo o tecto o que separa a cabea dos altaneiros

    cus. Sobre mim se abate uma viso que muito se ir repetir: a casalevantando voo, igual ao pssaro que Miserinha apontava na praia.E eu olhando a velha moradia, a nossa Nyumba-Kaya, extinguindo-se nas alturas at no ser mais que nuvem entre nuvens.

    Desembarcamos do tractor, aos molhos. A grande casa est de-ronte a mim, desafando-me como uma mulher. Uma vez mais, ma-trona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo.Seus antigos antasmas esto, agora, acrescentados pelo esprito doalecido Av. E se confrma a verdade das palavras do velho Maria-no: eu teria residncias, sim, mas casa seria aquela, nica, indispu-tvel.

    porta est Tia Admirana, irm de minha Av. Era muito maisnova que Dulcineusa, flha de um outro casamento. Dizamos, brin-

    cando, que ela era irm aastada. Em Luar-do-Cho no h palavrapara dizer meia-irm. Todos so irmos em totalidade.

    Admirana a primeira pessoa que me beija. Seus braos meapertam, demorados. Como corpo, Admirana ala tristezas que aspalavras desconhecem.

    Por que demoraste tanto? No ui eu, Tia. Foi o tempo.No quintal e no interior da casa tudo indicia o enterro. Vive-se, at

    ao detalhe, a vspera da cerimnia. Na casa grande se acotovelamos amiliares, vindos de todo o pas. Nos quartos, nos corredores,

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    nas traseiras se aglomeram rostos que, na maior parte, desconheo.Me olham, em silenciosa curiosidade. H anos que no visito a Ilha.Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais doque isso: irreconhecem-me. Pois eu, na circunstncia, sou um apa-

    rente parente. S o luto nos az da mesma amlia.Seja eu quem or, esperam de mim tristeza. Mas no este estado deausncia. No os tranquiliza ver-me to s, to despedido de mim.Em rica, os mortos no morrem nunca. Excepto aqueles que mor-rem mal. A esses chamamos de abortos. Sim, o mesmo nome quese d aos desnascidos. Afnal, a morte um outro nascimento.

    Venha, meu flho, que est relampejar.

    Tia Admirana me convida para dentro. Vamos rompendo entre aenchente, espremidos um contra o outro como duas pahamas, essasrvores que se estrangulam, num abrao de razes e troncos. De en-contro ao peito, sinto os seus seios provocantes. Provoquentes, diriameu Av Mariano.

    Cuidado com os relmpagos insiste ela.Olho a noite e no vislumbro aiscao. O cu est limpo de escu-

    ro. Admirana nota a minha incredulidade. No sabe? Aqui h desses relmpagos que no azem luz. Esses

    que matam muito.A Tia caminha agora rente. Aprecio o quanto o seu corpo ace-

    deu redondura, mas se conserva frme. Acontecendo como o cho:por baixo, subjaz a ardente lava, ogo acendendo ogo.

    V, vamos ver a Av, ela pediu para lhe ver assim que voc che-gasse...

    Paramos porta do quarto da Av Dulcineusa. Antes de entrar-mos, minha tia az de conta que me ajeita a camisa. E me avisa: aAv no estava muito bem, submersa ao peso da tristeza. Comearaa desvairao mesmo antes do alecimento. Mas, agora, ela se agra-vara. Se equivocava em nomes, trocava lugares.

    Entramos, nos respeitos. A Av est sentada no cadeiro alto, pa-rece estatuada em deusa. Ningum to vasto, negra em undo pre-to. O luto duplica sua escureza e lhe acrescenta volumes. Em redor,

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    como se ora um prespio, esto os flhos: meu pai, Abstinncio eUltmio, que acaba de entrar. A voz grave de Dulcineusa torna ocompartimento mais estreito:

    J algum deitou gua casa?

    Todos os dias a Av regava a casa como se az a uma planta. Tudorequer ser aguado, dizia ela. A casa, a estrada, a rvore. E at o riodeve ser regado.

    Tenho que ser eu a lembrar-me de tudo. Estou to sozinha. Ape-nas tenho este mido!

    Aponta para mim. O dedo permanece estendido, como que emacusao, enquanto as carnes lhe estremecem, pendentes do ante-

    brao. S ento reparo nas mos da Av. J quase no lembrava seusdedos cancromidos, queimados pelo trabalho de descascar ruto decaju. Dulcineusa me aponta aquele dedo desunhado e como se meespetasse uma vaga culpa.

    S este mido repete com voz sumida. Tia Admirana azmeno de sair. Deixava a Av na companhia estreita de seus direc-tos flhos.

    Voc fca, Mana Admirana! ordena Dulcineusa. E virando--se para mim: Me diga, meu neto, voc, l na cidade, oi iniciado?

    Tio Abstinncio tosse, em delicada intromisso. que eles l na cidade, mam... Ningum lhe pediu alas, Abstinncio.O inqurito tem exacta fnalidade. Querem saber se eu j atingi a

    idade do luto. De novo, a matriarca espeta seus inquisitivos olharesem mim:

    Me deixe que lhe pergunte, meu neto Mariano, voc oi circunci-dado?

    Abano a cabea, negando. Meu pai nota o meu embarao. Cala-do, ele me sugere pacincia, com um simples revirar de olhos. A Avprossegue:

    Me responda ainda mais: voc j engravidou alguma moa?Abstinncio interere, uma outra vez:

    Mam, o moo tem maneiras dele para...

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    Quais so seus namoros? insiste a velha. Um constrangimen-to nos encolhe a todos. Meu pai brinca, adiantando:

    Ora, mam, o melhor ele alar de suas doenas... Namoros so doenas corrige a Av.

    No chego a pronunciar palavra. A conversa rodopia no crculopequeno dos donos da ala, em obedincias e respeitos. Tudo lento,para se escutarem os silenciosos pressgios. Aps longa pausa, a Avprossegue:

    Falo tudo isso, no por causa de nada. para saber se voc podeou no ir ao uneral.

    Entendo, Av.

    No diga que entende porque voc no entende nada. Voc fcoumuito tempo ora.

    Est certo, Av. Seu Av queria que voc comandasse as cerimnias.Meu pai se levanta, incapaz de se conter. Abstinncio o puxa para

    que se volte a sentar, em calada submisso. No rosto de meus tiosdisputam zanga e incredulidade. O Av ter mesmo dito que eu iriaexercer as primazias amiliares? Que eu seria chee de cerimnia, sa-bendo que isso era grave oensa contra a tradio? Havia os mais-velhos, com mais competncia de idade.

    Bom, alta saber se ele est mesmo morto. Est morto sentencia Dulcineusa. Tem que ser voc, Ma-

    rianinho, a mestrar a cerimnia.

    Qual cerimnia? pergunta Abstinncio. Se ele no estiverrealmente morto, de que cerimnia estamos a alar?

    A Av agita o brao para echar o assunto. Ordena silncio, querque todos se voltem a sentar.

    Eu no confo em mais nenhum. S em voc, meu neto, s em voceu deito fanas.

    Faz chocalhar um saco que traz preso na cintura. E pergunta: Sabe o que este saco? No sei, Av.