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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS DA TERRA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA: A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA ASTRONOMIA DE GALILEU JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA NATAL RN 2020

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Page 1: UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE ......Silva, Jos é Ricardo Pereira da. Um olhar da filosofia da ciência no ensino de física: a perspectiva feyerabendiana da astronomia

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS DA TERRA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE CIÊNCIAS E

MATEMÁTICA

UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO

DE FÍSICA:

A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA

ASTRONOMIA DE GALILEU

JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA

NATAL – RN

2020

Page 2: UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE ......Silva, Jos é Ricardo Pereira da. Um olhar da filosofia da ciência no ensino de física: a perspectiva feyerabendiana da astronomia

JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA

UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA:

A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA ASTRONOMIA DE GALILEU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ensino de Ciências e Matemática

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito para obtenção do Título de Mestre

em Ensino de Ciências e Matemática.

Orientador: Prof. Dr. André Ferrer Pinto Martins.

NATAL – RN

2020

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JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA

UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA:

A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA ASTRONOMIA DE GALILEU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ensino de Ciências e Matemática

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito para obtenção do Título de Mestre

em Ensino de Ciências e Matemática.

Aprovada em 29 de Setembro de 2020.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________

Prof. Dr. André Ferrer Pinto Martins – Orientador

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

___________________________________________________________________

Prof. Dr. José Claudio Reis – Examinador Externo (Titular)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

___________________________________________________________________

Profa. Dra. Flávia Polati Ferreira – Examinadora Interna (Titular)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

___________________________________________________________________

Profa. Dra. Cibelle Celestino Silva – Examinadora Externa (Suplente)

Universidade de São Paulo - São Carlos

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Milton Thiago Schivani Alves – Examinador Interno (Suplente)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e de pesquisa, desde que citada a fonte.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Silva, José Ricardo Pereira da.

Um olhar da filosofia da ciência no ensino de física:

a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu /

José Ricardo Pereira da Silva. - 2020.

166f.: il.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Centro de Ciências Exatas da Terra,

Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e

Matemática , Natal, 2020.

Orientador: Dr. André Ferrer Pinto Martins.

1. Ensino de Física - Dissertação. 2. Filosofia da

Ciência - Dissertação. 3. Paul Feyerabend - Dissertação.

4. Astronomia - Dissertação. 5. Galileu Galilei -

Dissertação. I. Martins, André Ferrer Pinto. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU

51:37.016

Elaborado por Raimundo Muniz de Oliveira - CRB-15/429

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Ao meu pai Severino Ramos, a minha mãe Maria Silvana,

e a todos que caminharam comigo durante este tempo solitário.

Espero eu que, assim como disse certo filósofo da ciência, vocês também possam dizer:

Adeus à razão.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor André Ferrer Pinto Martins pela oportunidade e pela excelente orientação

fornecida durante a elaboração deste trabalho;

A minha amiga e companheira de graduação, encontros de discussão, caronas e festas

aleatórias Laura Dell Orto pelas sugestões, livros e desabafos;

Aos professores e colegas da pós-graduação pelos desafios, debates e conquistas;

A Escola Estadual Professor Pedro Alexandrino e ao Clube de Astronomia São Pedro

pelos céus limpos e estrelados;

E por fim, mas não menos importante, a minha namorada e amigos “maravilhosos” pelo

comprometimento.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend 30

Figura 2 – Foto da Torre Inclinada de Pisa, na Itália, presente no catálogo da Detroit

Publishing Company de 1905

65

Figura 3 – O Julgamento de Galileu, Roma, 1633 67

Figura 4 – Galileu e o telescópio 68

Figura 5 – As luas de Júpiter no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos,

Pádua, Itália, 1610

69

Figura 6 – Ilustração de Galileu Galilei publicada no livro Saggiatore (O Ensaísta),

dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623

70

Figura 7 – O modelo geocêntrico de Ptolomeu 71

Figura 8 – Equante, epiciclos e excêntrico adotados pela astronomia grega 72

Figura 9 – Representação dos epiciclos de Copérnico, publicada em sua obra De

Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543

73

Figura 10 – Representação do sistema heliocêntrico de Copérnico, publicada em sua obra

De Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543

75

Figura 11 – Rascunhos do movimento circular no manuscrito de Galileu sobre os Planetas

Medicianos, Pádua, Itália, 1610

82

Figura 12 – Representação contendo a explicação do movimento aparente dos planetas a

partir da perspectiva heliocêntrica, contida no manuscrito de Galileu sobre os Planetas

Medicianos, Pádua, Itália, 1610

84

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Figura 13 – Retrato de São Roberto Bellarmino, óleo sobre tela, feita em 1923 por G.

Francisi, Roma, Palácio do Santo Ofício, sala de recepção, lado norte

87

Figura 14 – Quadro de Galileu perante o Santo Ofício, pintado pelo francês Joseph Fleury

no século XIX

91

Figura 15 – Galileu mostra o telescópio para o Senado veneziano do Campanário de São

Marcos em 1609, quadro de Giuseppe Bertini, Varese, Itália, 1858

95

Figura 16 – Desenhos dos Planetas vistos por Galileu através do telescópio, publicado no

livro Saggiatore (O Ensaísta), dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623

97

Figura 17 – Representação das fases de Vênus nos dois sistemas de mundo 99

Figura 18 – Desenho da Lua vista por Galileu através do telescópio, publicado no livro

Sidereus Nuncius (O Mensageiro das Estrelas), Veneza, 1610

100

Figura 19 – Desenho da Lua feito por Thomas Harriot em 1609 100

Figura 20 – Galileu apresenta o telescópio ao público 102

Figura 21 – Galileo, pintura a óleo de Jean-Leon Huens 103

Figura 22 – Rascunhos das distâncias dos planetas durante a revolução anual no manuscrito

de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610

105

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RESUMO

Este trabalho relaciona a área da História e Filosofia da Ciência às suas implicações para

o ensino de ciências, evidenciando a importância e a potencialidade pedagógica dessa área.

Partimos da análise da epistemologia do filósofo da ciência Paul Feyerabend para propormos a

utilização da abordagem histórico-filosófica como estratégia didática para o ensino de física,

especificamente, nos conteúdos de astronomia que envolvem o personagem histórico Galileu

Galilei. Para isso, foram identificados três temas de astronomia que tradicionalmente são

ensinados pelos professores de física do primeiro ano do Ensino Médio e que, de forma

articulada, compõem um quadro dos trabalhos de Galileu e possuem grande relevância histórica

para as críticas epistemológicas de Feyerabend. Fazemos, em seguida, uma releitura

feyerabendiana da astronomia de Galileu com vistas à sua utilização no ensino de física. E, por

fim, propomos uma unidade didática composta por três momentos – um encontro de observação

astronômica, uma atividade de construção teórica e uma aula júri simulado – como subsídio

para se trabalhar os sistemas de mundo de Galileu Galilei nas aulas de física do Ensino Médio.

Palavras-chave: ensino de física; Filosofia da Ciência; Paul Feyerabend; astronomia;

Galileu Galilei.

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ABSTRACT

This paper connects the field of History and Philosophy of Science to its implications to the

teaching of sciences, pointing the importance and pedagogical potentiality of this field. We base

it on the analysis of the epistemology of the philosopher of science Paul Feyerabend to propose

the historical-philosophical approach as a didactic strategy for the teaching of physics,

specifically, astronomy topics involving the historic figure Galileo Galilei. In order to do that,

we identified some astronomy topics traditionally taught by physics teachers on the first year

of High School and, in an articulated fashion, compose a picture of Galileo’s works and hold

great historic relevance to Feyerabend epistemological criticism. Afterwards, we have a

feyerabendian reread of Galileo’s astronomy aiming for its use in the teaching of physics. At

last, we propose a didactic unit composed of three moments – a meeting for astronomic

observation, a theoretical construction activity and a mock trial class – as basis to the work with

Galileo Galilei’s world systems in high school physics classes.

Key-words: physics teaching; philosophy of science; Paul Feyerabend; astronomy; Galileo

Galilei.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 12

2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA 18

3. O ANARQUISMO EPISTEMOLÓGICO DE PAUL FEYERABEND 30

4. O ENSINO DA ASTRONOMIA DE GALILEU NUMA PERSPECTIVA

FEYERABENDIANA

57

5. GALILEU GALILEI: OS SISTEMAS DE MUNDO GEOCÊNTRICO E

HELIOCÊNTRICO

106

CONSIDERAÇÕES FINAIS 124

REFERÊNCIAS 126

APÊNDICE 130

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12

1. INTRODUÇÃO

A física, como área do conhecimento científico, é de crucial importância para os alunos

da Educação Básica. O entendimento dos fenômenos físicos, tanto terrestres, quanto celestes1,

o conhecimento por trás da utilização dos aparelhos eletroeletrônicos, a criticidade quanto ao

uso das tecnologias, em suma, a formação científica proporcionada pela escola, faz parte dos

conhecimentos necessários para o desenvolvimento integral do educando, incorporado à cultura

da vida em sociedade. A julgar tal importância, acreditamos que esforços precisam ser

realizados a fim de vencer os desafios da sua prática pedagógica. A partir dos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN e PCN+)2 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB) de 20 de dezembro de 1996,

espera-se que o ensino de Física, na escola média, contribua para a formação

de uma cultura científica efetiva, que permita ao indivíduo a interpretação dos

fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a interação

do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em

transformação. Para tanto, é essencial que o conhecimento físico seja

explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e

associado às outras formas de expressão e produção humanas. É necessário

também que essa cultura em Física inclua a compreensão do conjunto de

equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano

doméstico, social e profissional (BRASIL, 2000, p. 22).

Além disso, a astronomia, que comumente desperta fascínio e curiosidade em públicos

de todas as idades (MARQUES, 2014, p. 83), tem um valor cultural importante em nosso

cotidiano: o dia e a noite, os intervalos de tempo que duram as semanas, os meses e os anos, a

cor do céu, o brilho das estrelas, o calor do Sol, as fases da Lua, a maré alta, a passagem de um

cometa, o riscar de uma “estrela cadente”, a comunicação por satélite, as viagens espaciais, a

possibilidade de vida extraterrestre... Entretanto, é comum em uma noite de Lua cheia, nos

depararmos com pessoas encantadas com a beleza do luar. A maior parte delas não

1 Esses termos também são citados como uma analogia a dicotomia terrestre/celeste das físicas sublunar e

supralunar, que foram predominantes até o século XVII.

2 Esta é uma justificativa histórica importante para área de pesquisa em ensino de ciências. Apesar disso, a Base

Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) não dá destaque à importância dos processos históricos

para o ensino de ciências, como veremos no próximo capítulo.

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acompanharam as fases da Lua (e nem a celebraram3 como o espírito sagrado da Avó Lua

Cheia), mas foram pegas de surpresa ao saírem de casa e perceberem aquele acontecimento

magnífico. Da mesma forma, estamos tão acostumados com a regularidade dos dias e das noites

que, geralmente, não nos questionamos sobre como isso acontece e nem notamos como muda

a posição do nascer e do pôr do Sol durante o ano.

É nesse sentido que os PCNs, ao apresentarem o desenvolvimento das competências e

habilidades em física, apontando Universo, Terra e Vida como tema estruturador para o ensino

de física, afirmam:

Será indispensável uma compreensão de natureza cosmológica, permitindo ao

jovem refletir sobre sua presença e seu “lugar” na história do universo, tanto

no tempo como no espaço, do ponto de vista da ciência. Espera-se que ele, ao

final da educação básica, adquira uma compreensão atualizada das hipóteses,

modelos e formas de investigação sobre a origem e evolução do Universo em

que vive, com que sonha e que pretende transformar (BRASIL, 2002, p. 19).

Além do mais, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ao se referir à etapa do

Ensino Fundamental, aponta, dentre outras coisas, na unidade temática Terra e Universo, a

compreensão das características dos astros, suas dimensões, localizações e movimentos, além

de “salientar que a construção dos conhecimentos sobre a Terra e o céu se deu de diferentes

formas e em distintas culturas ao longo da história da humanidade”, de modo também a

“fundamentar a compreensão da controvérsia histórica entre as visões geocêntrica e

heliocêntrica”, de forma que os estudantes “possam refletir sobre a posição da Terra e da espécie

humana no Universo” (BRASIL, 2018, p. 328). No que diz respeito à etapa do Ensino Médio,

a segunda competência específica de Ciências da Natureza propõe

Analisar e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do

Cosmo para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e

a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar e defender decisões

éticas e responsáveis (ibidem, p. 553).

3 Em todas as noites de Lua Cheia as aldeias e as pequenas comunidades indígenas urbanas do Rio Grande do

Norte celebram o Ritual Sagrado da Avó Lua Cheia com cânticos, danças e orações à Lua.

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Afirma, ainda, que os estudantes devem ter a “oportunidade de elaborar reflexões que

situem a humanidade e o planeta Terra na história do Universo, bem como inteirar-se da

evolução histórica dos conceitos e das diferentes interpretações e controvérsias envolvidas

nessa construção” (BRASIL, 2018, p. 556). Para isso, a Base indica a “história e a filosofia da

ciência” como um dos conhecimentos conceituais que podem ser relacionados a essa

competência específica.

Dessa maneira, o ensino de física (e de astronomia) pode: promover o melhor

entendimento dos conceitos físicos envolvidos; apresentar o conteúdo de física de forma

integrada com seu desenvolvimento histórico-filosófico (VALADARES, 2012, p. 33); e

compreender a física como parte da cultura humana (ZANETIC, 1989).

Para isso, defendemos a utilização da abordagem da História e Filosofia da Ciência

(HFC)4 no ensino de física. Utilizando essa estratégia, os processos pedagógicos possibilitarão

que os estudantes não só aprendam algumas concepções científicas, mas, também, construam

uma ideia menos caricata e a-histórica acerca do desenvolvimento científico (VALADARES,

2012, p. 92).

Ao discutir sobre as tentativas de aproximação das áreas da história e da filosofia da

ciência com a área de Ensino de Ciências, Matthews (1995), ao se referir a outro trabalho de

sua autoria, de 1988, afirma que essas iniciativas são essenciais, uma vez que consideramos a,

já bem conhecida, crise na educação científica, acentuada pelo desinteresse de professores e

alunos nas matérias científicas, e pelos altíssimos índices de analfabetismo em ciências no

Brasil.

Nas últimas décadas, a pesquisa em ensino de ciências tem discutido sobre o papel

pedagógico da HFC e recomendado sua utilização no ensino e aprendizagem das ciências

(MARTINS, 2007, p. 114).

Há um número grande de artigos publicados em revistas especializadas da área

que, nos eventos e congressos, destina espaços específicos para essa temática.

(...) Do ponto de vista mais prático e aplicado, a HFC pode ser pensada tanto

como conteúdo (em si) das disciplinas científicas quanto como estratégia

didática facilitadora na compreensão de conceitos, modelos e teorias.

Diversos autores convergem nessa direção, defendendo e expondo razões para

a presença da HFC nas salas de aula dos diversos níveis de ensino (p. ex:

4 Por tradição na área, vamos utilizar o termo História e Filosofia da Ciência (HFC), entretanto, mais recentemente,

há um grande número de publicações que apresentam as discussões sociológicas da ciência. Assim, poderíamos

utilizar também o termo História, Filosofia e Sociologia da Ciência (HFSC).

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ZANETIC, 1989; GIL-PÉREZ, 1993; MATTHEWS, 1994; VANNUCCHI,

1996; PEDUZZI, 2001; EL-HANI, 2006; MARTINS, 2006) (MARTINS,

2007, p. 115, grifos do autor).

Entretanto, a importância do caráter histórico-filosófico da ciência na formação de

professores, nos livros didáticos e nos documentos oficiais, não garante que ele será utilizado

em sala de aula, e nem que as abordagens histórica e filosófica da ciência serão ensinadas com

qualidade (MARTINS, 2007, p. 115).

É nesse sentido que aponta esta pesquisa. Ao relacionar a área da Filosofia da Ciência

às implicações didáticas no ensino, o nosso objetivo é analisar a epistemologia do filósofo da

ciência Paul Feyerabend (1924-1994) para propor a utilização da abordagem histórico-

filosófica no ensino de física a partir desse referencial. Para isso, foram identificados três temas

de astronomia que, de forma articulada, compõem um quadro dos trabalhos de Galileu (que

denominamos de astronomia de Galileu) e possuem grande relevância histórica para as críticas

epistemológicas de Feyerabend. Assim, na busca por um recorte, propomos o seguinte

problema de investigação: Como a abordagem da Filosofia da Ciência, numa perspectiva

feyerabendiana, pode contribuir para o ensino de física, ao ser utilizada como estratégia

didática nas aulas de física do Ensino Médio, nos conteúdos que envolvem as discussões da

astronomia de Galileu?

Somos convidados, então, a mergulhar no ensino de física sob o olhar da história e da

filosofia. E, para irmos cada vez mais fundo, vamos refletir sobre a abordagem didática da HFC

no ensino de ciências, dialogando, no capítulo 2, com diversos educadores, historiadores e

filósofos da ciência. Vamos defender a utilização pedagógica da HFC, apontando suas

potencialidades e limitações, com objetivo de construir uma base teórica para intervenções

didáticas com seu uso nas aulas de física do Ensino Médio.

No capítulo 3, voltamos o nosso olhar à Filosofia da Ciência ao apresentarmos o filósofo

da ciência Paul Feyerabend e as suas principais contribuições no que chamamos de uma

concepção anarquista do desenvolvimento científico, ideia esta, que também pode ser traduzida

pelo pluralismo metodológico com que o cientista deve proceder, ou seja, uma oposição radical

a um princípio único, imutável e absolutamente obrigatório, capaz de envolver os eventos e

processos científicos numa estrutura comum. A escolha desse autor não foi por um acaso – me

identifiquei, particularmente, por sua defesa ao anarquismo científico e seu ataque à Razão e à

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Racionalidade, além de apreciar sua linguagem irônica e suas provocações, onde, por vezes,

tenho alguns ataques momentâneos de risos, o que me levou, inevitavelmente, a sorrir bastante

ao escrever minha pesquisa. Além disso, compartilho com Feyerabend o interesse no período

histórico, entre o final do século XVI e início do século XVII, que representa um recorte da

chamada Revolução Copernicana, onde o personagem Galileu Galilei aparece como um dos

protagonistas desse processo. Discutimos, neste capítulo, alguns bordões que envolvem este

autor: o anarquismo epistemológico, a afirmação de que tudo vale, a questão da

incomensurabilidade, a relação da ciência com a sociedade e com outras formas de

conhecimento e os títulos das suas principais obras5: Contra o Método (FEYERABEND, 1977;

2011b), Adeus à razão (FEYERABEND, 2010) e A Ciência em uma sociedade livre

(FEYERABEND, 2011a).

Já no capítulo 4, intitulado O ensino da astronomia de Galileu numa perspectiva

feyerabendiana, apresentamos as contribuições de Feyerabend para o ensino de ciências, e

utilizamos os seus escritos para inserir recortes da história da ciência que envolvem o

personagem histórico Galileu Galilei, propondo subsídio teórico para que professores de física

possam utilizar a Filosofia da Ciência como estratégia didática em situações reais de ensino.

Tratamos, especificamente, de três temas de astronomia que são normalmente adotados pelos

professores de física no primeiro ano do Ensino Médio e que, de forma articulada, compõem

um quadro do trabalho de Galileu e que possuem grande relevância histórica para as críticas de

Paul Feyerabend: i) Corpos em queda livre; ii) Geocentrismo x Heliocentrismo; e iii) O

telescópio como prova definitiva do céu. Juntos, esses temas formam a base para as discussões

feitas por Galileu Galilei, no início do século XVII, a respeito da relação entre sua física

terrestre e celeste. Esses temas, entretanto, não foram escolhidos arbitrariamente – minha

formação em Licenciatura em Física com foco em astronomia e minha prática como astrônomo

amador na criação de Clubes de Astronomia Escolares e na promoção de eventos de divulgação

científica em astronomia, me fizeram sustentar uma imagem caricata do desenvolvimento

científico, sobretudo em astronomia, que foi sendo criticada durante minha formação acadêmica

através das disciplinas específicas de HFC na graduação e no início da pós-graduação,

5 A primeira edição de Contra o Método foi publicada no ano de 1975 com o título original Against Method (com

versão traduzida para português em 1977). A Ciência em uma sociedade livre (Science in a Free Society) foi

publicada em 1978 e a obra Adeus à razão teve sua primeira edição no ano de 1987 com o título original Farewell

to Reason e reúne diversos ensaios que tratam da diversidade e da mudança na cultura, incluindo o famoso

capítulo de Galileu e a tirania da verdade. Estas obras de Feyerabend, em suas traduções para o português e em

suas versões mais recentes, serão as fontes primárias que utilizaremos em nossa pesquisa.

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principalmente pela apresentação de diversos filósofos da ciência, em especial, Paul

Feyerabend. Em suas obras, esse autor apresenta uma visão, baseada na História e na Filosofia

da Ciência, que permite a transmutação6 desses três temas já citados em: i) A interpretação

contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos; ii) A Palavra de Deus como

argumento contra a frágil teoria copernicana; e iii) O telescópio fornece um retrato verdadeiro

do céu?

No capítulo 5, fazemos uma releitura feyerabendiana da astronomia de Galileu, com

vistas a sua utilização no ensino de física. Após uma ampla pesquisa bibliográfica nos

periódicos da área de Ensino de Ciências, constatamos que, apesar de haver muitos trabalhos

referentes ao personagem histórico Galileu Galilei, outros com diversas contribuições

pedagógicas para a educação em astronomia, e outros, ainda, discutindo a possível contribuição

de Feyerabend para o ensino, poucos são os trabalhos da literatura que tratam, especificamente,

das discussões da astronomia de Galileu usadas como estratégia didática a partir de uma leitura

feyerabendiana. Assim, dentro dessa problemática, propomos uma unidade didática composta

por três momentos – um encontro de observação astronômica, uma atividade de construção

teórica e uma aula júri simulado – como subsídio para se trabalhar os sistemas de mundo de

Galileu Galilei nas aulas de física do Ensino Médio.

Após isso, chegamos às considerações finais de nossa dissertação, recomendando a

utilização da abordagem histórico-filosófica da ciência e, em especial, a epistemologia

feyerabendiana, como estratégia didática no ensino de física. Além disso, destacamos que essa

proposta deve ser refinada e ampliada, objetivando uma educação de qualidade e uma

construção crítica do saber científico por nossos estudantes. Finalmente, apresentamos o

Apêndice como uma das etapas da unidade didática proposta na pesquisa. Trata-se de um texto

didático a respeito das discussões feitas por Galileu sobre os sistemas de mundo, a partir da

análise das obras de Feyerabend, e que tem por objetivo contribuir para aprendizagem do

conteúdo curricular de mecânica, sendo dedicado, preferencialmente, aos alunos de física do 1°

ano do Ensino Médio.

6 O termo transmutação não foi empregado casualmente. Esses temas sofrem uma mudança tão radical, após

serem analisados numa perspectiva da HFC, que se pode até dizer que eles têm sentidos opostos.

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18

2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA

No que diz respeito ao ensino de ciências, defendemos que o conhecimento a ser

ensinado abranja não apenas os produtos científicos (como leis, teorias e aplicações), mas,

também, os processos que envolvem a Ciência (seus métodos, estruturas e mecanismos de

transformação), e a inclusão da HFC no ensino apresenta-se como um bom caminho a ser

percorrido (VANNUCCHI, 1996, p. 14).

Segundo Matthews (1995, p. 165), a aproximação entre os campos da História e

Filosofia da Ciência com o ensino de ciências se deve, principalmente, à inclusão dos elementos

históricos e filosóficos nos currículos nacionais de vários países, como, por exemplo, na

Inglaterra, no País de Gales e nos EUA, além de conferências europeias (Pávia – 1983; Murique

– 1986; Paris – 1988; Cambridge – 1990), britânicas (Oxford – 1987) e internacionais (Flórida

– 1989), sobre História, Filosofia, Sociologia e o Ensino de Ciências. O autor afirma que os

episódios da história da ciência e os aspectos da filosofia da ciência devem ser parte integrante

dos currículos escolares (MATTHEWS, 1995, p. 189).

Aqui no Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio,

desde o final da década de 90, indicam a inserção de elementos histórico-filosóficos no ensino

das matérias científicas, contemplados através da categoria contextualização sócio-cultural da

ciência e da tecnologia (BRASIL, 2000, p. 11), como uma dimensão das competências e

habilidades a serem desenvolvidas no ensino-aprendizagem de ciências. Seguem alguns trechos

deste documento oficial:

Reconhecer o sentido histórico da ciência e da tecnologia, percebendo seu

papel na vida humana em diferentes épocas; (...) compreender as ciências

como construções humanas, entendendo como elas se desenvolveram por

acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas (ibidem, p. 13).

Reconhecer a Biologia como um fazer humano e, portanto, histórico, fruto da

conjunção de fatores sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos e

tecnológicos (ibidem, p. 21).

A Física percebida enquanto construção histórica, como atividade social

humana, emerge da cultura e leva à compreensão de que modelos explicativos

não são únicos nem finais. (...) O surgimento de teorias físicas mantém uma

relação complexa com o contexto social em que ocorreram (ibidem, p. 27).

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19

Reconhecer as relações entre o desenvolvimento científico e tecnológico da

Química e aspectos sócio-político-culturais (ibidem, p. 39).

Nessa medida, a história das Ciências é um importante recurso (...) tem uma

relevância para o aprendizado que transcende a relação social, pois ilustra

também o desenvolvimento e a evolução dos conceitos a serem aprendidos

(ibidem, p. 54).

Os PCN+ também reforçam essa dimensão sócio-cultural e histórica ao destacar como

uma competência geral a compreensão do “conhecimento científico e o tecnológico como

resultados de uma construção humana, inseridos em um processo histórico e social” (BRASIL,

2002, p. 32).

Entretanto, mais recentemente, o Brasil enfrenta um cenário de disputas político-

econômicas que vem causando instabilidade institucional e influenciando diretamente alguns

aspectos da educação nacional (MARTINS, 2019, p. 254). A chamada Base Nacional Comum

Curricular7 (BNCC), ao organizar as matérias científicas de modo integrado (isto é, sem

discriminar as disciplinas de química, física e biologia), introduz na Área de Ciências da

Natureza e suas Tecnologias que

a contextualização histórica não [deve] se ocupa[r] apenas da menção a nomes

de cientistas e a datas da história da Ciência, mas de apresentar os

conhecimentos científicos como construções socialmente produzidas, com

seus impasses e contradições, influenciando e sendo influenciadas por

condições políticas, econômicas, tecnológicas, ambientais e sociais de cada

local, época e cultura. (...) Propõe-se, por exemplo, a comparação de distintas

explicações científicas propostas em diferentes épocas e culturas e o

reconhecimento dos limites explicativos das ciências, criando oportunidade

para que os estudantes compreendam a dinâmica da construção do

conhecimento científico (BRASIL, 2018, p. 550).

E aponta, na primeira habilidade da competência específica 2, que o ensino de ciências

deve

analisar e discutir modelos, teorias e leis propostos em diferentes épocas e

culturas para comparar distintas explicações sobre o surgimento e a evolução

7 Martins (2019, p. 256-261) constrói uma análise a respeito das mudanças nas versões da BNCC e desenvolve

uma crítica sobre esse processo.

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20

da Vida, da Terra e do Universo com as teorias científicas aceitas atualmente

(BRASIL, 2018, p. 557).

Apesar disso, a BNCC não apresenta a dimensão histórico-filosófica em suas

competências específicas para o ensino médio, o que caracteriza, segundo Martins (2019, p.

260), uma diminuição da relevância da perspectiva histórico-filosófica na versão final deste

documento.

Podemos, ainda, apontar diversos autores que defendem a utilização didática da HFC

com base nos seguintes argumentos: ela humaniza o conhecimento científico evidenciando os

interesses pessoais, além das questões éticas, culturais e políticas que o envolvem; motiva e

atrai os estudantes, podendo construir o pensamento crítico a partir de aulas científicas mais

desafiadoras e reflexivas; contribui para um melhor entendimento dos conceitos científicos,

visto que, nas salas de aula de ciências, fórmulas, conceitos e equações são memorizadas mas

geralmente não são compreendidas; auxilia na formação de professores8 ao construir um

conteúdo científico baseado no seu desenvolvimento histórico e filosófico, evidenciando que a

ciência é mutável e que, por isso, as teorias contemporâneas estão sujeitas a transformações;

permite uma melhor compreensão dos métodos científicos e demonstra como ocorrem as

mudanças na metodologia vigente (MATTHEWS, 1995, p. 165, 172); abraça não apenas as

concepções científicas do mundo físico, mas também como elas surgiram, evoluíram e até onde

são válidas, e como se relacionam com outras partes da cultura e da sociedade (VALADARES,

2012, p. 96); melhora a compreensão dos conteúdos científicos e favorece a apropriação de

atitudes e valores que estão presentes na ciência, por parte dos educandos (BASTOS FILHO,

2012, p. 65); pode oferecer exemplos de casos históricos de investigação e experimentação

científica, bem como de hipóteses inesperadas ou contra-indutivas, e como ocorreram a

consolidação e a substituição de teorias e modelos na ciência (VANNUCCHI, 1996, p. 14); e

8 Matthews (1995), ao citar o trabalho de Harre (1983), afirma que “Michael Polanyi defendeu o ponto de vista

óbvio de que HFS deveria ser parte da educação em ciências tanto quanto a crítica literária e musical fazem parte

da educação literária e musical. Seria, no mínimo, esquisito imaginar um bom professor de literatura que não

tivesse conhecimento dos elementos da crítica literária: a tradição que discute o que tem, ou não, valor literário,

como a literatura se relaciona com a sociedade, a história dos gêneros literários, etc. Da mesma forma, também

deve ser estranho imaginar um bom professor de ciências que não tenha um conhecimento razoavelmente sólido

da terminologia de sua própria disciplina (...) ou nenhum conhecimento dos objetivos muitas vezes conflitantes de

sua própria disciplina” (MATTHEWS, 1995, p. 188).

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21

promove uma compreensão da ciência como parte da cultura e da sociedade (ZANETIC, 1989,

p. 24).

Martins (2019, p. 249-250), ao dialogar com Zanetic (1989, p. 126-127) e com

Vannucchi (1996, p. 19-22), manifesta algumas razões para utilização da HFC no ensino:

proporciona a interação entre tópicos e disciplinas, permitindo a construção de uma abordagem

interdisciplinar; relaciona as dificuldades de aprendizagem dos estudantes a concepções

científicas controversas que historicamente estiveram em confronto; possui uma importância

em si mesmo, uma vez que a ciência é patrimônio cultural da humanidade; concede significado

às fórmulas e equações científicas; auxilia na compreensão da natureza da atividade científica,

evidenciando seu processo de construção; colabora com a formação integral do cidadão

contemporâneo; promove uma visão da ciência que também traz os insucessos históricos e que

desmistifica e humaniza a prática científica; dentre outras.

Delizoicov (1996, p. 182), ao discutir sobre o conhecimento científico e criticar o que

chama de uma produção de conhecimento linear e cumulativa, que é obtido através de um

método único e bem definido, afirma que, utilizando a Filosofia da Ciência, o “status do

conhecimento científico passa a ser percebido como uma verdade histórica e não mais como a

verdade extraída dos fatos”, desmitificando, assim, a visão consolidada e imutável que a ciência

recebeu recentemente. Afirma ainda que, “a apropriação de conhecimentos científicos pelos

alunos não ocorre por simples transmissão de conceitos, modelos e teorias”, mas a partir de

uma construção alicerçada nas “interações não neutras com [os] objetos de conhecimento”

(ibidem, p. 183, grifos do autor).

Segundo Fonseca (2015, p. 7, 11), o ensino de ciências deve ser apresentado como um

processo de construção histórica e não como o resultado acabado de anos de desenvolvimento,

ou ainda, reproduções matemáticas e resoluções algébricas de problemas que não se articulam

com a conjuntura do estudante. Ele deve, então, proporcionar uma formação que correlacione

o conhecimento às especificidades sociais, culturais, políticas, econômicas, etc., em que se

inserem, evidenciando os processos complexos do qual surge e se desenvolve a ciência.

Forato et al. (2012, p. 126) afirmam que

um olhar atento pode identificar discrepâncias entre uma concepção de ciência

como uma construção humana, social, influenciada por fatores culturais, e um

relato histórico que traz, implicitamente, uma ciência puramente empírica e

neutra, produtora de verdades absolutas que desconsidera debates,

controvérsias e rupturas em sua história. Desse modo, é importante confrontar

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os objetivos formativos e epistemológicos que se buscam, com as visões

transmitidas pelas narrativas históricas utilizadas (grifo do autor).

Bastos Filho (2012, p. 65) afirma, ainda, que a incorporação e o entrelaçamento da

história e da filosofia com o Ensino de Ciências há algumas décadas é recomendado, dado seu

rico potencial, pela maioria dos educadores e professores das disciplinas científicas. Fazemos,

então, o seguinte questionamento: se o emprego da HFC como estratégia didática /

metodológica é amplamente recomendado pelos especialistas da área, por que, geralmente, não

a vemos sendo utilizada em salas de aula? “A resposta é, certamente, simples: não é fácil fazer.

(...) Dados reforçam a ideia de que há um abismo entre o valor atribuído à História e Filosofia

da Ciência e a sua utilização com qualidade como conteúdo e estratégia didática nas salas de

aula do nível médio” (MARTINS, 2007, p. 127).

Segundo Valadares (2012, p. 18),

são vários os argumentos em favor do uso da HFC no ensino. (...) Por outro

lado, há poucos trabalhos que fornecem corroboração empírica para esses

argumentos. (...) Portanto, essa área de pesquisa deve estar alerta para a

necessidade de que sejam feitos maiores esforços para a realização de

intervenções didáticas com uso de HFC no Ensino de Ciências e que tais

intervenções sejam objetos de investigação, a fim de que se possa

compreender melhor em situações reais de sala de aula qual a real contribuição

que a HFC pode oferecer ao ensino e aprendizagem das ciências.

Entretanto, Teixeira et al. (2012, p. 9) realizam uma revisão das pesquisas publicadas

no Brasil desde a década de 1980 a meados de 2011 que fazem uso da HFC no ensino, e apontam

que ainda há poucos trabalhos que analisam o uso da HFC como estratégia didática. Fonseca

(2015), ao se referir a este mesmo trabalho, afirma que “apesar de haverem currículos que já

contemplam elementos de HFC e [um] aumento significativo de publicações sobre o uso dessa

abordagem, poucas são as revisões sobre a potencialidade de seu uso” (FONSECA, 2015, p.

2484). Assim, em meio às dificuldades no ensino-aprendizagem de ciências, e em especial o de

física, “é bastante relevante a preocupação voltada para as narrativas históricas, presentes no

ambiente escolar, e as visões que elas podem promover sobre os processos de construção da

ciência” (VALADARES, 2012, p. 47).

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23

Além disso, no ponto de vista didático, a HFC geralmente é apresentada como algo

periférico e ilustrativo, que é mostrado nos livros e citado no início das aulas como uma

introdução aos conteúdos que realmente importam, limitando-se ao aspecto motivacional, que

visa despertar o interesse dos alunos e contextualizar o conteúdo que será ensinado. Mas, dessa

forma, “sabemos que ela dificilmente cumpre o seu papel” (MARTINS, 2007, p. 128).

Vannucchi (1996, p.19) disserta a respeito das contribuições da HFC para a educação

científica. A autora afirma que essa aproximação apresenta contribuições significativas para o

ensino e aprendizado de ciências, apontando diversos autores da área que defendem essa

aproximação e outros, inclusive, que fazem oposição. A partir da década de 1970, muitos

debates foram travados na área a respeito dos problemas nas reconstruções históricas. É nesse

sentido que Rozentalski (2018, p. 38-39) nos questiona sobre qual perspectiva historiográfica

da ciência deve ser levada ao ensino. Ele cita a necessidade da formação histórica/filosófica dos

professores que desejam levar essas abordagens para a sala de aula e aponta razões contrárias à

utilização da história da ciência: de maneira anacrônica, da quasi-história9 (apresentação da

história em termos lógicos e ordenados) e da pseudo-história10 (uma reconstrução parcial

negligenciando aspectos importantes, romantizando o cientista e apresentando-o como um

herói, ao enfatizar suas virtudes e ocultar seus erros). Assim, ele defende o que chama de

interpretação do passado em termos diacrônicos, de forma que tais eventos sejam avaliados de

acordo com o contexto de sua própria época.

É isso que já defendia Lilian Martins (2005), ao discutir sobre os objetos, métodos e

problemas da área da historiografia da ciência, apontando alguns questionamentos ao se

trabalhar narrativas históricas. Segundo ela, “a história da ciência é feita por seres humanos e

se constitui em uma reconstrução de fatos e contribuições científicas que ocorreram, muitas

vezes, em épocas distantes da nossa, [por isso,] é comum encontrarmos alguns problemas nessas

reconstruções” (ibidem, p. 314). Um deles é uma história puramente descritiva, caracterizada

por datas e acontecimentos que não tem relevância e que, geralmente, apresenta a figura de um

grande cientista (homem, velho e, por vezes, louco), estereotipado como um gênio isolado, que

foi responsável por uma grande descoberta que mudou o mundo em sua época ao concluir algo

que ninguém havia tido capacidade de pensar – Galileu, Newton, Darwin, Lavoisier, Einstein,

são alguns desses exemplos. Outro problema é a interpretação whig da história – ou seja, uma

9 Rozentalski (2018, p. 39) faz referência aos trabalhos de Whitaker (1979a, 1979b).

10 Citando o trabalho de Allchin (2004).

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história da ciência anacrônica. O anacronismo consiste em “procurar no passado somente o que

se aceita atualmente, ignorando completamente o contexto da época” (ibidem, p. 314),

buscando precursores de uma determinada teoria ou conceito que só foram desenvolvidos

posteriormente. A autora defende a importância de familiarizar-se com o que chama de

atmosfera da época em que se está estudando, mantendo sempre a atenção ao que se produziu

posteriormente, tentando entender quais foram os motivos11 que levaram determinadas teorias

a ascensão e outras a serem descartadas. Um terceiro problema é a utilização da história da

ciência de forma ideológica, privilegiando um determinado grupo social (de forma nacionalista,

étnica, política, religiosa, etc.) em detrimento de outros, cujo conhecimento, valores ou ações

seriam inferiores. A autora ainda chama atenção para que os recortes da história sejam feitos

de forma fiel, sem omitir aspectos importantes ou ideias e fatos que entrem em conflito com o

ponto de vista do historiador, gerando assim uma narração falsa da história da ciência

(MARTINS, L., 2005, p. 314-315).

Roberto Martins (2006, p. xxxi) chama a atenção para alguns equívocos a respeito do

uso didático da história da ciência: a redução a nomes, datas e anedotas, baseado em concepções

falsas a respeito da história da ciência (a ciência é feita por grandes personagens, que de forma

isolada realizam “descobertas” numa determinada data); concepções errôneas sobre o método

científico (a crença de que os cientistas usaram o método indutivista de investigação para

“provar” as descobertas científicas); e o uso de argumentos de autoridade para justificar a

aceitação dos conhecimentos científicos (ao afirmar que a ciência provou a teoria e, por isso,

ela não pode ser questionada – o que, obviamente, não é verdade – gerando assim uma crença

na ciência, um tipo de superstição moderna).

Estas discussões a respeito das áreas da História e da Filosofia da Ciência são de crucial

importância para o ensino, mesmo que nem sempre (quase nunca!) os filósofos e historiadores

da ciência estejam diretamente preocupados com o ensino de ciências. Segundo Martins (2012,

p. 261), a relação entre concepção epistemológica e processo de ensino-aprendizagem não é

trivial e requer um olhar especial sobre como ensinar ciências, cabendo, então, aos professores

11 Nem sempre esses motivos são racionais ou objetivos. Há diversos exemplos na História da Ciência (como

veremos nos próximos capítulos) que teorias melhor formuladas e consensualmente comprovadas foram

abandonadas porque suas rivais (novas teorias) estavam melhor adaptadas ao contexto da época (influências

religiosas, sociais, políticas, econômicas, propaganda, etc.) ou porque estavam de acordo com novas observações

empíricas, mesmo baseando-se em suposições contra indutivas ou em afirmações refutadas.

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de ciências construírem essa ponte com a área da HFC, edificando, assim, novas metodologias

educacionais.

Isso se dá não apenas por uma questão de conteúdo (...) mas também,

principalmente, porque existem paralelos entre a evolução das ideias

científicas e o desenvolvimento cognitivo dos alunos. Dessa forma, o aprender

e ensinar ciência tem muito a ganhar com a epistemologia, que não precisa

fornecer o modelo ou paradigma a partir do qual o processo de ensino-

aprendizagem deva ser pensado, mas pode, sem dúvida, informar esse

processo, dialogar com ele (MARTINS, 2012, p. 261, grifo do autor).

Diante disso, a aproximação entre epistemologia12 e o ensino de ciências poderia

desenvolver nos professores e alunos uma reflexão mais profunda sobre os conteúdos

científicos que estão estudando. Dessa forma, o conteúdo da disciplina não seria mostrado,

exibido, mas, surgiria como uma resposta a uma determinada situação-problema, que fora

discutida em uma determinada época, evidenciando os métodos utilizados pelos cientistas, que

foram influenciados por fatores sociais, econômicos, políticos e até religiosos, dentre outros.

Assim, os estudantes se deparariam com uma ciência mais humana e mais real (no sentido de

uma visão menos distorcida dos procedimentos científicos), levando-os, inclusive, a se

perceberem como agentes participantes desse processo, com capacidade efetiva (e afetiva) de

ser tornarem grandes cientistas, construindo, assim, um novo sentido ao processo de ensino-

aprendizagem.

A vasta literatura da área apresenta uma grande discussão a respeito da Natureza da

Ciência13, que tem sobreposição com o que aqui discutimos. Entretanto, não temos por intenção

desenvolver essa discussão, visto que esta é uma subárea de pesquisa bastante ampla e

consolidada e, por razões de tempo e espaço, o nosso objetivo não é discutir esse tema com

12 “O termo epistemologia abrange discussões em torno de teorias do conhecimento [não necessariamente

científicas] e sua justificação, de modo que o conhecimento científico é um de seus objetos – o que muitas vezes

é especificado pelo termo epistemologia da ciência [ou Filosofia da Ciência, como, particularmente, preferimos].

(...) Assim, a epistemologia distingue-se da Filosofia da Ciência por sua amplitude. Contudo, na França, [por

exemplo,] o termo epistémologie tradicionalmente se referiu ao que compreendemos como Filosofia da Ciência.

Assim, dependendo de sua formação, um autor pode estar se referindo às discussões da Filosofia da Ciência quando

emprega o termo epistemologia” (DUTRA, 2010 apud ROZENTALSKI, 2018, p. 59, grifos do autor).

13 Não há consenso na tentativa de estabelecer (por definitivo) uma caracterização da ciência e do desenvolvimento

científico. Moura & Guerra (2016, p. 726) apresentam uma discussão sobre os que defendem e os que criticam

esse modelo. Rozentalski (2018, p. 129-152) tece críticas à abordagem consensual, contra-argumentos, e ainda

apresenta algumas abordagens alternativas.

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profundidade, mas apenas relacioná-lo com o Ensino de Ciências, a fim de propor uma mudança

na imagem empírico-indutivista, carregada de linguagem matemática e caracterizada por um

método bem estabelecido, ainda predominante no âmbito escolar.

Mas qual Filosofia da Ciência ensinar?

Uma ciência neutra, linear e progressiva, feita por grandes gênios isolados, através de

um método bem definido, é a visão de senso comum da ciência. Rozentalski (2018, p. 54), ao

citar Hodson (1985), afirma que a ausência de uma Filosofia da Ciência evidente e respaldada

nos currículos, na formação de professores e nas aulas de ciências do ensino médio, podem

resultar nas seguintes compreensões sobre a ciência: (i) a prática científica permite uma

compreensão da Verdade e da Realidade; (ii) o conhecimento científico é derivado de

observações imparciais dos fenômenos da natureza; (iii) os experimentos desenvolvidos pelos

cientistas são confiáveis e tem finalidade de testar racionalmente suas teorias; e (iv) a ciência é

um conhecimento objetivo, livre de valores e preconceitos, e não é (e nem deve ser)

influenciada por fatores subjetivos como questões sociais, históricas, religiosas ou econômicas.

Essas características da ciência, por vezes chamada de ideologia cientificista, estão,

geralmente14, presentes em diversas partes da sociedade: na mídia, no comércio, nas praças, nos

livros didáticos e nas aulas de ciências do Ensino Médio e até mesmo no Ensino Superior,

gerando uma visão distorcida dos processos que envolvem a ciência.

De maneira oposta, Silveira (1992), afirma que

a observação e a experimentação por si sós não produzem conhecimento. O

“método indutivo” é um mito; o conhecimento científico é uma construção

humana que tem como objetivo compreender, explicar e também agir sobre a

realidade. Não podendo ser dado como indubitavelmente verdadeiro, é

provisório e sujeito a reconstruções; na construção de novos conhecimentos

participam a imaginação, a intuição, a criação e a razão. A inspiração para

produzir um novo conhecimento pode vir inclusive da metafísica; a aquisição

de um novo conhecimento é sempre difícil e problemática. Os cientistas são

relutantes em abandonar as teorias de suas preferências mesmo quando

parecem conflitar com a realidade. O abandono de uma teoria implica em

reconhecer outra como melhor (SILVEIRA, 1992, p. 38).

Assim, analisando esses temas, notamos uma discrepância entre os elementos da ciência

do senso comum e a Ciência que é legitimada pela HFC.

14 Apesar de não ser habitual, hoje já é possível encontrar diversas sequências didáticas, artigos e até mesmo livros

didáticos, que fazem uso, com qualidade, da HFC no ensino.

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Segundo Roberto Martins (2006), estudar de maneira adequada os episódios históricos

pode contribuir para que os alunos percebam

o processo social (coletivo) e gradativo de construção do conhecimento,

permitindo formar uma visão mais concreta e correta da real natureza da

ciência, seus procedimentos e suas limitações – o que contribui para a

formação de um espírito crítico e desmitificação do conhecimento científico,

sem no entanto negar seu valor. A ciência não brota pronta, na cabeça de

“grandes gênios”. Muitas vezes, as teorias que aceitamos hoje foram propostas

de forma confusa, com muitas falhas, sem possuir uma base observacional e

experimental. Apenas gradualmente as ideias vão sendo aperfeiçoadas,

através de debates e críticas, que muitas vezes transformam totalmente os

conceitos iniciais (MARTINS, R., 2006, p. xxii).

Além disso, esse estudo evidencia que a ciência não surge de um método científico que

leva a um acesso à verdade por trás da natureza, mas que os cientistas trazem consigo ideias

pré-concebidas, que muitas vezes formulam hipóteses sem fundamento ou análise

experimental, explicações contraditórias ou consideradas irracionais, fazendo da ciência uma

construção extremamente complexa que não possui nenhuma fórmula infalível (MARTINS, R.,

2006, p. xxiii).

De forma que, considerando a epistemologia fundamental para a formação científica

dos estudantes, Forato et al. (2012, p. 123-124) chamam atenção para as dificuldades existentes

ao tentar produzir materiais didáticos e metodologias educacionais adequadas que fazem uso

da HFC, uma vez que os professores das ciências (química, física, biologia) já enfrentam os

desafios específicos de suas disciplinas científicas. Como estes poderiam fazer uso, com

qualidade, da HFC em sua prática pedagógica, sem comprometer os conteúdos científicos?

Eles, então, discutem sobre “o enfrentamento de dificuldades e obstáculos para a inserção de

conteúdos selecionados de HFC na escola básica” (ibidem, p. 124). Segundo os autores, não

basta inserir esses conteúdos, é necessário perceber que as concepções que os professores15 têm

a respeito da ciência refletem na sua prática educativa em sala de aula. Além do mais, a

15 “Gil Perez e colaboradores (2001) analisaram as visões sobre a natureza da ciência em um grande grupo de

professores e encontraram concepções dissonantes com essas recomendadas pela literatura. (...) Eles relatam

concepções empírico-indutivistas e ateóricas, a-históricas, dogmáticas, elitistas, exclusivamente analíticas,

acumulativas e lineares dos processos de construção do conhecimento científico, em geral protagonizadas por

insights individuais de grandes pensadores. Os autores discutem como o Ensino de Ciências vem reforçando e

propagando tais concepções indesejadas sobre a construção da ciência” (FORATO et al., 2012, p.125-126).

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transformação das narrativas históricas em conteúdos adequados à escola básica requer uma

mudança de nicho epistemológico (ibidem, p. 125, 127). Assim,

tais obras devem ser interpretadas à luz de seu tempo, (...) mediante um olhar

contextualizado para os conteúdos científicos. Desse modo, é importante

entender tais conceitos a partir de sua formulação original (fontes primárias),

confrontando-as com narrativas especializadas (fontes secundárias), e

considerando perspectivas sociais e culturais na construção da ciência. É

necessário, portanto, transitar em diferentes campos do saber. Mais do que

isso, é necessário construir conhecimentos que inscrevem em si próprios

aspectos de diversas especialidades (FORATO et al., 2012, p.127).

Os autores desenvolveram uma pesquisa empírica e analisaram dezessete obstáculos

(propostos), objetivando a construção dos saberes da HFC no ensino-aprendizagem de ciências.

Dentre eles, destacamos a seleção dos aspectos histórico-filosóficos a serem enfatizados em

cada episódio; o nível de detalhamento/aprofundamento; quando e como se utilizar trechos de

fontes primárias; a superação de concepções ingênuas sobre história e epistemologia da

ciência; a falta de preparo do professor, de textos especializados e pré-requisitos dos alunos

(em relação ao conhecimento matemático, físico, histórico, filosófico); e a quantidade de

informações na forma de textos que são apresentados.

Monteiro (2014), por sua vez, ao realizar uma pesquisa que analisa os obstáculos

enfrentados por professores de ciências na elaboração e aplicação de materiais didáticos que

fazem uso da HFC no ensino de física, a fim de propor uma mudança em sua forma já

consolidada, em que “prevalece o formalismo geométrico, a matematização, a ausência de

significado e, consequentemente, os índices de baixo desempenho” (ibidem, p. 46), apresenta

as estratégias didáticas que mais foram utilizadas a fim de evitar a mera transmissão oral de

conteúdos (ver gráfico 1). Além disso, o autor salienta a importância da utilização de fontes

primárias e secundárias na elaboração de textos e materiais didáticos com enfoques histórico-

filosóficos.

Gráfico 1 – Estratégias didáticas utilizadas para alcançar os objetivos propostos.

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Fonte: MONTEIRO, 2014, p. 46.

Para estendermos a discussão do que compete à Filosofia da Ciência em estabelecer um

olhar a respeito do empreendimento humano chamado ciência, procurando entender a natureza

desse conhecimento e sua contribuição para o ensino, vamos, no próximo capítulo, discutir

sobre o desenvolvimento científico na perspectiva do filósofo da ciência Paul Feyerabend e as

suas consequências na sociedade. Mais adiante, iremos apresentar o caso histórico da

astronomia de Galileu à luz da perspectiva feyerabendiana. Tal perspectiva pode servir como

subsídio teórico para que professores das matérias científicas possam fazer uso da HFC, a fim

de que reflitam sobre o desenvolvimento científico e as características que são próprias do fazer

ciência, promovendo, assim, a inserção de conteúdos do campo do saber da Filosofia e da

História da Ciência para o ensino.

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3. O ANARQUISMO EPISTEMOLÓGICO DE PAUL FEYERABEND

A área da Filosofia da Ciência é construída por diversos autores que discutem acerca

desse empreendimento humano chamado ciência, tentando estabelecer suas fronteiras,

metodologias, práticas cotidianas, limites e valores intrínsecos e fundamentais do

desenvolvimento científico. As ideias de um deles, em especial, nos chamam a atenção.

Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend.

Fonte: Medium Brasil. Disponível em: <medium.com/brasil/carta-a-paul-feyerabend-18f8da84eb76>.

Acesso em: 29 out. 2019.

O austríaco Paul Karl Feyerabend nasceu em Viena em 13 de janeiro de 1924 e faleceu

em sua casa em Zurique, em 11 de fevereiro de 1994, vítima de um tumor cerebral. Filósofo,

com doutorado em física pela Universidade de Viena, especialização em teatro e doutor honoris

causa em letras e humanidades pela Universidade de Chicago, Feyerabend desenvolveu uma

filosofia da ciência bastante peculiar. Em suas reflexões epistemológicas, sempre deixou

evidente sua postura radical a respeito da natureza da ciência e foi julgado como terrorista

epistemológico e, mais recentemente, chamado de o pior inimigo da ciência por aqueles que

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pareceram se ofender com suas críticas e provocações. Ele participou de diversos debates na

área, como o grupo da London School of Economics, liderado por Karl Popper nos anos 50; o

wittgensteineanos; o grupo de Herbert Feigl nos EUA; e de discussões com Imre Lakatos e

Thomas Kuhn, dentre outros, além de ter lecionado na Universidade da Califórnia e no Instituto

Federal de Tecnologia de Zurich (REGNER, 1996, p. 231-232).

Chalmers (1993, p. 173) cita que um dos relatos do desenvolvimento científico “mais

estimulantes e provocadores é aquele que foi pitorescamente apresentado e defendido por Paul

Feyerabend; nenhuma avaliação da natureza e do status da ciência estaria completa sem alguma

tentativa de entrar em acordo com ele” (grifo do autor).

Neste capítulo, fazemos uso de suas principais obras: a primeira e a segunda edição de

Contra o método (FEYERABEND, 1977; 2011b) – que se diferenciam nos prefácios,

introduções e em alguns de seus últimos capítulos – onde Feyerabend desenvolve suas

principais ideias a respeito do anarquismo científico e sua crítica à Razão e à Racionalidade;

sua obra Adeus à razão (FEYERABEND, 2010), onde focaremos nas discussões a respeito da

expansão do “progresso científico” e do desenvolvimento tecnológico no Ocidente, em que

Feyerabend critica a premissa de que existe uma maneira certa de se viver que requer

intervenção; e A Ciência em uma sociedade livre (FEYERABEND, 2011a), onde o status da

superioridade científica é questionado e a ciência é colocada lado a lado com outras formas de

conhecimento, inclusive os mitos, a feitiçaria e o vodu. Além disso, reunimos no próximo

capítulo as discussões feitas por Feyerabend nessas obras, para tratarmos de Galileu Galilei no

recorte histórico de um amplo período que ficou conhecido como Revolução Copernicana.

Feyerabend apresenta uma epistemologia anárquica, em contraste com os

procedimentos racionalistas: “a ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o

anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a estimular o progresso do que suas

alternativas que apregoam lei e ordem” (FEYERABEND, 2011b, p. 31). Ele critica o

empirismo16 e o racionalismo17 por serem inadequados para elucidar o desenvolvimento

16 Feyerabend (1977, p. 39) afirma que a essência do empirismo é a regra segundo a qual o êxito das teorias

científicas se deve aos fatos ou resultados experimentais estarem de acordo com o conhecimento teórico.

17 “Feyerabend (2010) identifica o racionalismo com uma tradição que nasceu na Grécia e inicialmente ‘substituiu

os conceitos ricos e dependentes da situação (...) por umas poucas ideias abstratas e independentes da situação’,

gerando, numa segunda etapa, ‘estórias especiais, logo chamadas de provas ou argumentos’. (...) Desenvolveu-se,

assim, igualmente, a ideia de que ‘são as próprias coisas que produzem a estória e a dizem objetivamente, isto é,

independentemente das opiniões e das compulsões históricas’” (REGNER, 1996, p. 234, grifo nosso). Surgindo,

assim, o critério de que o conhecimento científico é único, verdadeiro e objetivo.

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científico e, destaca ainda, que não há fatos experimentais neutros e que as observações dos

fenômenos naturais dependem de nossas pré-concepções.

De maneira geral, ele afirma que nenhuma das explicações propostas até agora pelos

epistemólogos são totalmente bem-sucedidas em fornecer regras adequadas para orientar as

atividades dos cientistas, e que todas as regras apresentadas até agora foram violadas em algum

momento da história:

A ideia de um método que contenha princípios firmes, imutáveis e

absolutamente obrigatórios para conduzir os negócios da ciência depara com

consideráveis dificuldades quando confrontada com os resultados da pesquisa

histórica. Descobrimos, então, que não há uma regra única, ainda que

plausível e solidamente fundada na epistemologia, que não seja violada em

algum momento. (...) A invenção do atomismo na Antiguidade, a Revolução

Copernicana, o surgimento do atomismo moderno [e] a emergência gradual

da teoria ondulatória da luz, ocorreram apenas porque alguns pensadores

decidiram não se deixar limitar por certas regras metodológicas “óbvias”, ou

porque as violaram inadvertidamente. (...) Dada qualquer regra, não importa

quão “fundamental” ou “racional”, sempre há circunstância em que é

aconselhável não apenas ignorá-la, mas adotar a regra oposta. Por exemplo,

há circunstâncias em que é aconselhável introduzir, elaborar e defender

hipóteses ad hoc, ou hipóteses que contradizem resultados experimentais bem

estabelecidos e em geral aceitos, ou hipóteses inconsistentes. (...) Há mesmos

circunstâncias em que a argumentação perde seu aspecto antecipador e torna-

se um obstáculo ao progresso (FEYERABEND, 2011b, p. 37-38, grifo do

autor).

Feyerabend construiu suas “ideias estranhas” dialogando com diversos filósofos da

ciência, dentre eles, seu amigo e companheiro anarquista, Imre Lakatos18. Este desenvolveu

uma epistemologia que situava a prática científica dentro de um programa de pesquisa, o que

foi chamado por Feyerabend de anarquismo disfarçado, pois serviria de “Cavalo de Tróia,

capaz de infiltrar o anarquismo real, direto, ‘honesto’ nos espíritos de nossos mais encarniçados

racionalistas” (FEYERABEND, 1977, p. 305). Eles concordam que a metodologia científica

deve permitir um espaço livre para que as ideias dos cientistas possam ser exploradas sem

impedimentos. E, também, que os padrões das metodologias não são permanentes, mas podem,

a partir de um exame de dados históricos, serem substituídos por padrões melhores (ibidem, p.

18 Cita Feyerabend (2011b, p. 7): “Em 1970, durante uma festa, Imre Lakatos, um dos melhores amigos que já

tive, colocou-me contra a parede. ‘Paul’, disse ele, ‘você tem umas ideias tão estranhas. Por que não as põe por

escrito? Eu escrevo uma réplica, publicamos a coisa toda, e eu prometo a você – vamos nos divertir muito’”.

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287). Dessa forma, “a metodologia dos programas de pesquisa fornecem padrões que ajudam o

cientista a avaliar a situação histórica em que ele toma suas decisões; não contém regras que

lhe digam o que fazer” diferindo radicalmente de outras filosofias, como o indutivismo e o

falseamentismo científico (ibidem, p. 289).

Ele ataca, sobretudo, a ideia de que a ciência possui um Método (com “M” maiúsculo)

único capaz de envolver os eventos e processos científicos numa estrutura comum; e que há

elementos intrínsecos às investigações científicas que estão ausentes em outros lugares:

o sucesso científico não pode ser explicado de maneira simples. Não podemos

dizer: “a estrutura do núcleo atômico foi descoberta porque as pessoas fizeram

A, B, C ...”, em que A, B e C são procedimentos que podem ser compreendidos

independentemente de seu uso na física nuclear. Tudo o que podemos fazer é

dar uma explicação histórica dos detalhes, incluindo circunstâncias sociais,

acidentes e idiossincrasias pessoais. (...) A pesquisa bem-sucedida não

obedece a padrões gerais; depende, em um momento, de certo truque e, em

outro, de outro; os procedimentos que a fazem progredir e os padrões que

definem o que conta como progresso nem sempre são conhecidos por aqueles

que aplicam tais procedimentos. Mudanças de perspectiva de longo alcance,

como assim chamadas “Revolução Copernicana” ou “Revolução

Darwiniana”, afetam diferentes áreas de pesquisa de maneiras distintas e

recebem delas impulsos diferentes. Uma teoria da ciência que delineia padrões

e elementos estruturais para todas as atividades científicas e os autoriza por

referência à “Razão” ou “Racionalidade” pode impressionar os observadores

externos – mas é um instrumento grosseiro demais para as pessoas envolvidas,

isto é, para os cientistas enfrentando algum problema de pesquisa concreto

(FEYERABEND, 2011b, p. 19-20, grifo do autor).

Para Feyerabend, a pesquisa científica não deve ser limitada por regras metodológicas.

Ele não nega que haja rigor científico, mas afirma que não há nenhuma regra que tenha sido

sempre seguida historicamente. Além disso, a atribuição das regras, por si só, para consolidar

o status científico se depara com problemas, quando comparada com o rico e complexo

conjunto de regras que os pajés utilizam para desenvolver seus rituais de cura e de orientação

e com os padrões rígidos e os juízos de valor empregados pela medicina astrológica – o que

seria rapidamente descartado por qualquer racionalista sério (FEYERABEND, 1977, p. 310).

De forma que, segundo o autor, a única regra que pode ser defendida é o princípio de que tudo

vale, uma vez que a ciência é muito complexa para ser explicada com base em um conjunto de

passos metódicos simples. Assim, o anarquismo epistemológico pode ser traduzido pelo

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pluralismo metodológico (ou talvez pela liberdade metodológica) em que o cientista pode

proceder.

Etimologicamente, anarquismo tem raiz na palavra grega anarkhia, (sem topo, sem

poder) e representa uma filosofia política que defende os elementos da inexistência de qualquer

forma de hierarquia e dominação, seja ela política de governo, econômica, social ou cultural,

tendo como princípios a liberdade individual e coletiva, a igualdade e a solidariedade. Para nós,

utilizada em seu termo epistemológico,

significa, antes, oposição a um princípio único, absoluto, imutável de ordem,

do que oposição a toda e qualquer organização. (...) Não significa, portanto,

ser contra todo e qualquer procedimento metodológico, mas contra a

instituição de um conjunto único, fixo, restrito de regras que se pretenda

universalmente válido, para toda e qualquer situação – ou seja, contra algo que

se pretenda erigir como “o” método, como “a” característica distintiva,

demarcadora do que seja ciência (REGNER, 1996, p. 233).

Na introdução de sua obra Contra o método, Feyerabend (2011b, p. 31) afirma estar

convicto “de que o anarquismo, ainda que talvez não seja a mais atraente filosofia política, é,

com certeza, um excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência” (grifos

do autor). Para ele, a história da ciência está cheia de interações complexas de eventos –

acidentes, interesses, etc. – e tentar explicar essas circunstâncias peculiares por meio de regras

metodológicas ingênuas e simplórias só seria conveniente para um oportunista impiedoso.

Assim, ainda segundo Feyerabend, a história da ciência não se fundamenta somente em fatos e

conclusões extraída de fatos, mas também está sujeita a “ideias, interpretações de fatos,

problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante” (ibidem, p 33).

Pode-se dizer então que, em nenhuma circunstância, a ciência conhece fatos nus ou fatos

objetivos, mas que todos os dados, percepções sensoriais e resultados, que são extraídos de uma

observação científica, são essencialmente ideacionais. Feyerabend (ibidem, p. 13-14) cita que

termos como “experimentação” e “observação” abrangem complexos

processos contendo muitos elementos. “Fatos” surgem de negociações entre

grupos diferentes, e o produto final – o relatório publicado – é influenciado

por eventos físicos, processadores de dados, soluções conciliatórias, exaustão,

falta de dinheiro, orgulho nacional e assim por diante. (...) Estamos bem longe

da velha ideia (platônica) de ciência como um sistema de enunciados

desenvolvendo-se por meio de experimentação e observação e mantido em

ordem por padrões racionais duradouros.

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Sendo assim, “a história da ciência será tão complexa, caótica, repleta de enganos e

interesses quanto às ideias que encerra, e essas ideias serão tão complexas, caóticas, repletas de

enganos e interesses quanto a mente daqueles que as inventaram” (FEYERABEND, 2011b, p.

33). Dessa forma, o anarquista epistemológico não sente receio em apoiar ou refutar o mais

banal ou o mais afrontoso enunciado, pois não tem lealdade perante qualquer instituição (como

os anarquistas religiosos), nem permanente aversão contra ele (como os anarquistas políticos).

Não há método algum visto como indispensável e nem concepções absurdas ou imorais que o

anarquista epistemológico se recuse a examinar. Comportam-se de maneira contrária aos que

defendem os “padrões universais, as leis universais, as ideias universais, como ‘Verdade’,

‘Razão’, ‘Justiça’, ‘Amor’, e o comportamento que essas ideias acarretam” (FEYERABEND,

1977, p. 292-293).

Feyerabend, paulatinamente, faz uso da história da ciência. Ele trata, dentre outras

coisas, da controvérsia acerca da Revolução Copernicana e da física de Galileu, evidenciando

uma ciência fruto de uma construção histórica, com pressão social, interesses, propagandas,

influência religiosa, ideológica, e até mesmo a busca por felicidade. Afirma que Galileu, no

início do século XVII, agiu de forma anarquista quando passou a conhecer a obra principal de

Copérnico (a respeito do Heliocentrismo) e estudou o potencial ideológico de sua doutrina, em

dissonância com o ideal de estabilidade que inspirava o ponto de vista aristotélico (aceito por

grandes grupos da população e defendido pela Igreja) e os experimentos de queda-livre (o

argumento da torre), usados pelos aristotélicos para refutar o suposto movimento da Terra. Parte

do que estava em jogo era a paz social do povo comum, coisa que Galileu pareceu não se

preocupar. O cardeal Bellarmino temia que as pessoas perdessem a fé, caso descobrissem que

a Terra não estava em repouso, mas se movia a uma velocidade de 29 quilômetros por segundo

ao redor do Sol. Galileu, com uma atitude que Feyerabend chama de esnobe e precipitada,

exigia que todos aceitassem um ponto de vista que poderia perturbar a fé dos simples, o que

deu direito ao cardeal a exigir alguma prova (científica) mais concreta, uma vez que as luas de

Júpiter, as fases de Vênus e as manchas do Sol ainda se acomodavam ao sistema de Tycho

Brahe, permitindo que a Terra continuasse imóvel no centro do Universo (FEYERABEND,

1977, p. 295-296).

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O chamando argumento da torre19 estava baseado na interpretação natural, afirmada

pelos nossos sentidos, de que quando corpos massivos são abandonados eles caem, de cima

para baixo, em direção ao chão. Esse movimento, caso o corpo não tenha sido empurrado para

uma direção privilegiada ou levado pelo vento, será, inevitavelmente, uma linha reta e

perpendicular à superfície da Terra. Feyerabend (2011b, p. 88) afirma que essa sugestão é tão

forte que baseou sistemas inteiros de crenças e rituais, além de moldar a base de nossa vivência

cotidiana desde as experiências de queda que começam na infância. E que Galileu desenvolveu

uma discussão crítica a respeito de quais interpretações naturais deveriam ser substituídas para

acomodar a ideia de Copérnico a respeito da mobilidade da Terra.

Assim, se a Terra estivesse em movimento e uma pedra fosse abandonada do alto de

uma torre, ela deveria afasta-se da torre ao cair, uma vez que a torre estaria junto à Terra em

movimento, mas a pedra não (GALILEI, 2011, p. 208). Esse argumento envolve interpretações

naturais de que a realidade sempre nos fornece informações confiáveis que nos levam a

interpretações diretas da natureza, logo, o movimento da pedra é sempre notado por nossos

sentidos. Galileu, entretanto, “identifica as interpretações naturais inconsistentes com a teoria

de Copérnico (...) – ideias tão estreitamente ligadas a observação que é necessário um esforço

especial para perceber sua existência e determinar seu conteúdo” (FEYERABEND, 2011b, p.

85) – e as substituem por outras interpretações contra-indutivas e altamente abstratas.

Assim, podemos notar que não estavam em jogo apenas as questões racionais e que os

métodos utilizados por Galileu muitas vezes envolveram propaganda20 e um forte apelo social

para sustentar uma teoria que, como veremos mais adiante, estava em contradição com aquilo

que era visto e evidenciado pelo conhecimento científico da época.

Para Feyerabend, ignorar os processos históricos donde surge e se desenvolve uma

teoria

reflete na natureza dos “fatos” científicos, experienciados como

independentes de opinião, crença e formação cultural. É possível assim, criar

uma tradição que é mantida coesa por regras estreitas e, até certo ponto, que

também é bem-sucedida. Mas será que é desejável dar apoio a tal tradição a

ponto de excluir tudo o mais? (...) Será que os cientistas invariavelmente

permanecem nos limites das tradições que definiram dessa maneira estreita?

19 Daremos ênfase a essa discussão no próximo capítulo.

20 O termo propaganda foi acentuado por Feyerabend – interpretação que, inclusive, concordamos e a

defenderemos mais adiante – entretanto, não é consensual, entre os filósofos e historiadores da ciência, que Galileu

tenha utilizado, propositalmente, uma tática propagandista.

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(...) [A] minha resposta a essas perguntas, [é] um firme e sonoro NÃO. (...) Os

anarquistas profissionais opõem-se a qualquer tipo de restrição e exigem que

ao indivíduo seja permitido desenvolver-se livremente, não estorvado por leis,

deveres ou obrigações (FEYERABEND, 2011b, p. 34-35, grifo do autor).

A ausência de restrições epistemológicas faz Feyerabend entoar que tudo vale quando

são analisados, de forma séria, os eventos que aconteceram na história da ciência, e essa é, com

toda certeza, uma de suas declarações mais polêmicas e conflitantes21. Na história da

humanidade, o conhecimento foi construído das mais diversas formas possíveis, e não há

nenhuma “categoria metodológica”, no qual, podemos caracterizar quais os elementos são,

necessariamente, intrínsecos à ciência. Além do mais, quando tentamos caracterizar o

desenvolvimento científico em regras metodológicas, nos é demonstrado, “tanto por um exame

de episódios históricos quanto por uma análise abstrata da relação entre ideia e ação, [que] o

único princípio que não inibe o progresso” é o mesmo princípio que sobrevive às limitações

epistemológicas da história da ciência: o princípio que tudo vale (FEYERABEND, 2011b, p.

37).

Se quiséssemos encontrar um método que fosse capaz de explicar todos os

conhecimentos construídos pela ciência, teríamos como resultado a afirmação de Feyerabend

de que tudo é válido, pois não seria possível extrair um múltiplo comum entre todos os métodos

que foram utilizados na história do conhecimento, “sendo a única saída determinar, então, que

tudo vale, que nada mais é do que a consideração de uma categoria virtual, digamos, a única

que daria conta da diversidade metodológica da ciência” (LOPES, 2016, p. 26, grifos do autor).

Está claro, então, que a ideia de um método fixo ou de uma teoria fixa da

racionalidade baseia-se em uma concepção demasiado ingênua do homem e

de suas circunstâncias sociais. Para os que examinam o rico material fornecido

pela história22 e não têm a intenção de empobrecê-lo a fim de agradar a seus

baixos instintos, a seu anseio por segurança intelectual na forma de clareza,

21 O termo tudo vale também aparece na literatura como vale tudo. A diferença semântica é que o primeiro termo

pode ser destrinchado como “tudo é válido”, o que significa dizer também que “tudo tem valor”. Já o segundo dá

a ideia de que “vale qualquer coisa” de forma que “qualquer coisa serve”. Logo, no sentido epistemológico,

proposto por Feyerabend, o termo correto é, de fato, tudo vale.

22 Para exemplificar, Feyerabend (2011b, p. 108) afirma que a física clássica adota uma filosofia que contém os

princípios pelos quais recorre a uma experiência fluida e mutável, que não insistem num “julgamento assimétrico

das teorias pela experiência. (...) pelo menos procedem dessa maneira seus grandes e independentes pensadores,

como Newton, Faraday e Boltzmann. Sua doutrina oficial, contudo, ainda agarra-se à ideia de uma base firme e

imutável. O conflito entre essa doutrina e o procedimento real é ocultado por uma apresentação tendenciosa dos

resultados da pesquisa que esconde sua origem” (grifos do autor).

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precisão, “objetividade” e “verdade”, ficará claro que há apenas um princípio

que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do

desenvolvimento humano. É o princípio de que tudo vale (FEYERABEND,

2011b, p. 42, grifo do autor)23.

Mas será que poderíamos encontrar algum caso da história da ciência que não seria

totalmente explicado por um Método que se apresente como racional, objetivo ou universal?

Se encontrássemos, provaríamos a falibilidade do Método? Então façamos algo melhor: existe

algum caso que seja absolutamente explicado por esse Método? Ou seja, na história da

humanidade, alguma vez, em algum lugar, o desenvolvimento científico pôde ser explicado

pelo que Feyerabend (2011b, p. 37) chamou de “um método que contenha princípios firmes,

imutáveis e absolutamente obrigatórios para conduzir os negócios da ciência”?

A resposta para essa última pergunta é: provavelmente não. Entretanto, podemos

proceder com a negação do método: a contrarregra, que corresponde a elaborar e introduzir

hipóteses contraditórias com as teorias aceitas e/ou fatos bem estabelecidos, mas que façam

avançar a ciência, o que nos levaria a proceder contraindutivamente. Feyerabend (ibidem, p.

44) afirma que, quando um cientista deseja sustentar uma concepção,

ele precisa comparar ideias antes com outras ideias do que com a

“experiência” e tem de tentar aperfeiçoar, em vez de descartar, as concepções

que fracassaram nessa competição. (...) Concebido dessa maneira, o

conhecimento não é uma série de teorias autoconsistentes que convergem para

uma concepção ideal; não é uma aproximação gradual à verdade. É, antes, um

sempre crescente oceano de alternativas mutuamente incompatíveis, no qual

cada teoria, cada conto de fadas e cada mito que faz parte da coleção força os

outros a uma articulação maior, todos contribuindo, mediante esse processo

de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência. [Assim,]

nenhuma concepção pode jamais ser omitida de uma explicação abrangente

(grifo do autor).

Ademais, segundo Feyerabend (ibidem, p. 67) não existe teoria alguma que concorde

com todos os fatos conhecidos que estão em seu domínio:

23 Ao citar a transição das teorias de Ptolomeu/Aristóteles para Copérnico/Galileu, Feyerabend (2011a, p. 58-62)

analisa as explicações epistemológicas, do empirismo ingênuo aos programas de pesquisa, e as criticam, a partir

de suas premissas, por não corresponderem à realidade histórica, deixando claro a sua posição de que tudo vale.

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De acordo com nossos resultados atuais, praticamente nenhuma teoria é

consistente com os fatos. A exigência de admitir apenas as teorias que sejam

consistentes com os fatos disponíveis e aceitos deixa-nos, mais uma vez, sem

teoria alguma. (Repito: sem teoria alguma, pois não há uma única teoria que

não se encontre em algum tipo de dificuldade.) (ibidem, p. 80, grifos do autor).

“A questão, portanto, não é se teorias contraindutivas deveriam ser admitidas na ciência;

a questão é, antes, se as discrepâncias existentes entre teoria e fato devem ser aumentadas ou

diminuídas” (FEYERABEND, 2011b, p. 45, grifos de do autor). Entretanto, ele chama atenção

que não está recomendando que uma nova metodologia (a contraindução) substitua a indução

e “utilize uma multiplicidade de teorias, concepções metafísicas e contos de fadas em vez do

costumeiro par teoria/observação, (...) [substituindo] um conjunto de regras gerais por outro

conjunto da mesma espécie” (ibidem, p. 46-47). Ao contrário, sua intenção é mostrar que todas

as metodologias têm os seus limites.

Outro ponto importante da análise de Paul Feyerabend é a questão da

incomensurabilidade. Ele defende a incomensurabilidade24 entre teorias rivais, sem negar,

contudo, que haja possibilidade de discutir ambas as visões, cada qual em seus próprios termos.

Para ele, as mecânicas de Aristóteles e Newton, bem como a Física Clássica e a Relatividade

são exemplos de teorias incomensuráveis. Como as teorias não compartilham dos mesmos

princípios universais, não se pode expressar os enunciados de uma nos termos da outra, sem

modificar, fundamentalmente, o que a teoria representa. Em suas palavras:

É certo que esquemas incomensuráveis e conceitos incomensuráveis podem

apresentar muitas similaridades estruturais – isso, porém, não afasta o fato de

que os princípios universais, próprios de um esquema, são sustados pelo outro.

É esse o fato que define a incomensurabilidade, a despeito de todas as

similaridades que seja possível descobrir (FEYERABEND, 1977, p. 404-405,

grifo do autor).

Chalmers (1993), ao dialogar com Feyerabend e relacionar o conceito de

incomensurabilidade à dependência que a observação tem da teoria, destaca que, na Física

Clássica, a forma, a massa e o volume são propriedades intrínsecas aos objetos físicos, que só

24 Etimologicamente, incomensurabilidade pode ser definida como a característica ou condição daquilo que não

se pode e nem se consegue medir; cuja medida não pode ser comparada.

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podem ser modificadas por interferências físicas. Mas, na Relatividade, essas propriedades

podem ser modificadas sem interação física nenhuma, mudando-se apenas o quadro de

referência. Assim essas teorias são incomensuráveis, uma vez que se referir “a objetos físicos

dentro da mecânica clássica terá um sentido diferente de uma referência semelhante na teoria

da relatividade” (ibidem, p. 177-178). E cita ainda que

em alguns casos, os princípios fundamentais de duas teorias rivais são tão

radicalmente diferentes que não é nem mesmo possível formular os conceitos

básicos de uma teoria nos termos da outra, com a consequência que as duas

rivais não compartilham das preposições de observação. [Assim,] não será

possível deduzir logicamente algumas das consequências de uma teoria dos

princípios de sua rival para propósito de comparação. [Logo,] as duas teorias

são incomensuráveis e não podem ser comparadas através de suas

consequências lógicas (CHALMERS, 1993, p. 176-178).

Feyerabend (1977, p. 351-354) destaca que a incomensurabilidade ocorre já no domínio

da percepção. Segundo ele, imagens que são usadas para explicar objetos materiais dependem

das imagens que surgem na mente dos que as veem, e estão ausentes na mente daqueles que

ainda não os reconhecem, assim, o campo de percepção jamais contém, ao mesmo tempo, um

mesmo tipo de base observacional.

Essa discussão feita por Feyerabend a respeito da incomensurabilidade dialoga, até certo

ponto, com o seu contemporâneo Thomas Kuhn. O filósofo da ciência estadunidense,

entretanto, ao construir sua análise científica a partir da estrutura das revoluções científicas,

caracteriza a incomensurabilidade como vinculada as “razões pelas quais os proponentes de

paradigmas competidores fracassam necessariamente na tentativa de estabelecer um contato

completo entre seus pontos de vista divergentes” (KUHN, 1998, p. 188). Segundo o autor, isso

acontece por três motivos: primeiro, os proponentes de paradigmas rivais discordam quanto à

lista de problemas que devem resolver; seus padrões ou definições de ciência podem ser

equivalentes, mas não são os mesmos; e os proponentes dos paradigmas rivais praticam seus

ofícios em mundos diferentes. Assim, os dois grupos de cientistas veem coisas diferentes

quando olham para um mesmo fenômeno (ibidem, p. 189-190).

Consideremos, por exemplo, aqueles que chamaram Copérnico de louco

porque este proclamou que a Terra se movia. Não estavam, nem pouco, nem

completamente errados. Parte do que entendiam pela expressão “Terra”

referia-se a uma posição fixa. Pelo menos, tal terra não podia mover-se. Do

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mesmo modo, a inovação de Copérnico não consistiu simplesmente em

movimentar a Terra. Era antes uma maneira completamente nova de encarar

os problemas da Física e da Astronomia, que necessariamente modificava o

sentido das expressões “Terra” e “movimento”. Sem tais modificações, o

conceito de Terra em movimento era, [de fato,] uma loucura (KUHN, 1998, p.

189-190, grifo nosso).

Regner (1996) nos chama a atenção sobre a (falsa) alegação que a tese da

incomensurabilidade poderia impedir a escolha entre teorias científicas por razões empíricas.

Ao dialogar com Feyerabend, ela cita que a comparação entre teorias incomensuráveis obedece

a leis e padrões específicos, e que “há comparação, mesmo comparação objetiva, mas que essa

comparação é um procedimento muito mais complexo e delicado do que os racionalistas

supõem” (REGNER, 1996, p. 244, grifo da autora). De forma que, se pretendemos escolher

entre duas (ou mais) teorias incomensuráveis, devemos analisá-las através de seus próprios

termos, em seus respectivos tipos de experiências e contradições internas. Não podemos,

entretanto, comparar os seus conteúdos e nem formular juízo de verossimilitude entra elas. O

que fica, então, após retirarmos os fatores internos, são “os juízos estéticos, os juízos de gosto,

os preconceitos metafísicos, as aspirações religiosas; em suma, o que resta são nossos desejos

subjetivos” (FEYERABEND, 1977, p. 411-412, grifo do autor).

Feyerabend também tece relações entre ciência, sociedade e outras formas de

conhecimento. Ele defende a separação ciência-Estado, assim como hoje é defendido a

separação religião-Estado; afirma que a ciência é apenas uma das muitas formas de

conhecimento, mas não é, necessariamente, a melhor; e que “a ciência aproxima-se do mito,

muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir” (FEYERABEND, 1977, p.

447). Ele afirma que devemos “reexaminar nossa atitude em face do mito, da religião, da magia,

da feitiçaria e em face de todas aquelas ideias que os racionalistas gostariam de ver para sempre

afastadas da superfície da Terra” (ibidem, p. 453). Assim, apesar de um cidadão poder escolher

a religião de seu agrado, “não lhe é permitido pedir que, na escola, seus filhos aprendam mágica

e não a ciência. Existe separação entre Estado e Igreja, [mas] não existe separação entre Estado

e ciência” (ibidem, p. 453).

Feyerabend (ibidem, p. 457) mostra que o tratamento especial recebido pela ciência se

deve ao nosso pequeno conto de fadas de crermos que a ciência é regida por um método

ideologicamente neutro que produz teorias verdadeiras e úteis, sendo a ciência uma medida

objetiva acima de todas as ideologias.

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Contudo, a ciência não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma

de vida. Seus objetivos não são, por certo, mais importantes que os propósitos

orientadores de uma comunidade religiosa ou de uma tribo que se mantém

unida graças a um mito. De qualquer modo, não há por que esses objetivos

possam restringir as vidas, os pensamentos, a educação dos integrantes de uma

sociedade livre, onde cada qual deve ter a possibilidade de decidir por si

próprio e de viver de acordo com as crenças sociais que tenha por mais

aceitáveis. A separação entre Estado e Igreja deve, portanto, ser

complementada pela separação entre Estado e ciência (ibidem, p. 454).

Além disso, ele afirma que o conto de fadas é falso, e cita dois argumentos principais.

O primeiro deles se refere ao fato de não haver um método especial que garanta o êxito

do empreendimento científico. Os cientistas resolvem problemas porque os estudam com

profundidade, embora cometam diversos erros. Frequentemente, os cientistas (especialmente

os médicos) chegam a resultados (objetivos) diferentes a respeito da enfermidade de uma pessoa

(mas isso também pode ser aplicado à utilização de um agrotóxico25 ou de um supercondutor,

por exemplo). Como, então, decidir qual o procedimento que será adotado pelos médicos?

“Nenhum cientista admitirá que votar tenha sentido [nessa decisão]. Só os fatos, a lógica e a

metodologia decidem – é o que nos diz o conto de fadas” (FEYERABEND, 1977, p. 458, grifo

nosso). Na prática, o que seria chamado de erro médico, por exemplo, ao se referir a não

capacidade de se chegar a um resultado objetivo único – no que se refere a uma decisão entre

cientistas – abre as portas para as influências não-científicas: dogmatismo religioso, ideologia

política, influência metafísica, interesse econômico, etc. Esse é o ponto “em que o conto de

fadas do método especial assume sua função decisiva. [Ocultando] a liberdade de decisão que

os cientistas criadores e o público em geral têm (...) antepondo-lhes a repetição dos critérios

objetivos” (ibidem, p. 458-459, grifos do autor). Assim, os cidadãos sucumbem às pressões que

foram expostos (desde o processo de educação escolar) e agora estão

firmemente convencidos da verdade do conto de fadas. Dessa maneira os

cientistas se iludiram a si próprios e aos demais com respeito à tarefa a que se

dedicam, sem, contudo, [vir] a sofrer qualquer real desvantagem: dispõem de

mais dinheiro, mais autoridade e exercem maior atração do que merecem – e

os mais estúpidos processos e mais risíveis resultados que alcançam em sua

esfera de atuação vêm rodeados de uma aura de excelência. É tempo de reduzi-

25 Abreu et al. (2015) apresentam um estudo de caso no ensino de ciências sobre o uso ou não de agrotóxicos, que

ilustra essa afirmação.

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los às devidas proporções e de atribuir-lhes [a] mais modesta posição na

sociedade (ibidem, p. 459).

Um segundo argumento de Feyerabend (ibidem, p. 455) diz respeito à imagem que a

ciência do século XX adquiriu, em decorrência dos “milagres tecnológicos, tais como a

televisão em cores, as viagens à Lua, o forno a raios infravermelhos e, [ironiza Feyerabend,] de

informações vagas mas nem por isso de menor força – algo como histórias fantasiosas – a

propósito de como surgem tais milagres”.

Ao adquirimos uma enfermidade grave, é certo que logo iremos procurar um médico ao

invés de um leigo ou um feiticeiro. É certo também que a medicina moderna nos livrou de

diversas epidemias e pragas e que a física, a química, a computação e a engenharia nos serviram

de numerosos artefatos quase mágicos – a tecnologia – que praticamente não vivemos mais sem

eles. Sem contar, é claro, com o nosso entendimento cosmológico, nossas viagens a Lua e

demais viagens interplanetárias (com sondas espaciais) e até intergalácticas (através das

imagens dos telescópios espaciais). Nesse contexto, é de se esperar que determinadas pessoas

se perguntem: como não acreditar no poder da ciência moderna? Como não ter absoluta certeza

que ela é superior a (todas as) outras formas de conhecimento? Como se atrever a colocar a

ciência no mesmo patamar que a religião, a mágica, o vodu ou a feitiçaria? Segundo Feyerabend

(ibidem, p. 459), esses são alguns dos ataques feitos a quem ousa criticar a especial posição das

ciências no mundo moderno.

Feyerabend (1977, p. 460-461), entretanto, cita que nenhum dos grandes resultados

científicos surgiram sem interferência e recursos de elementos não-científicos.

Ainda hoje, a ciência pode tirar vantagem da consideração de elementos não-

científicos. Exemplo [disso] é a revivescência da medicina tradicional na

China comunista. Quando os comunistas, na década de 1950, forçaram os

hospitais e escolas de medicina a transmitir as ideias e métodos registrados no

Manual de Medicina interna do imperador Amarelo e a aplicá-las no

tratamento dos pacientes, muitos especialistas ocidentais (entre eles, Eccles,

um dos ‘Cavaleiros de Popper’) se horrorizaram e predisseram a derrocada da

medicina chinesa. Ocorreu exatamente o oposto. A acupuntura, a moxa, o

diagnóstico pelo pulso conduziram a novas percepções, novos métodos de

tratamento e colocaram novos problemas, tanto para o médico ocidental

quanto para o chinês (grifos do autor).

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Além disso, o conhecimento de ervas medicinais usadas por pajés, feiticeiros e

curandeiros; a psicologia, o conhecimento dos boticários; o estudo do movimento celeste pelos

astrólogos e o amor pelos círculos perfeitos da Platão; a necessidade econômico-social para a

construção de instrumentos de localização nas grandes navegações (e nas viagens espaciais); as

tentativas de Copérnico de adaptar as ideias antediluvianas de Filolau26 às necessidades de

predições astronômicas; a influência teológica para uma cosmologia de criação (Big Bang); e

até mesmo o desenvolvimento tecnológico das ciências e engenharias espaciais (a corrida

espacial) que se deve muito (se não tudo) à necessidade de poder político na segunda metade

do século XX (a Guerra Fria), são alguns dos exemplos citados por Feyerabend que enfatizam

essa afirmação. De forma que, métodos, resultados e processos essenciais que fazem parte da

construção e do fortalecimento da ciência por toda parte, foram silenciosamente suspensos ou

evitados como procedimentos não-científicos (FEYERABEND, 2011a, p. 131).

A asserção de que não há conhecimento fora da ciência – extra scientiam nulla

salus – nada mais é que outro e convenientíssimo conto de fadas. As tribos

primitivas faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas que as

da zoologia e da botânica de nosso tempo; conheciam remédios cuja eficácia

espanta os médicos (e a indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte

de lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros do grupo que a

ciência por longo tempo considerou inexistentes (vodu); resolviam difíceis

problemas por meios ainda não perfeitamente entendidos (construção de

pirâmides, viagem dos polinésios); [e] havia, [ainda] na Idade da Pedra, uma

astronomia altamente desenvolvida e internacionalmente conhecida,

astronomia que era factualmente adequada e emocionalmente satisfatória,

dando solução a problemas tanto sociais quanto físicos (o [que] não se pode

dizer a respeito da astronomia moderna) (FEYERABEND, 1977, p. 462,

grifos do autor).

Assim, segundo o autor, a ciência moderna muito se beneficiou com os métodos e

resultados não-científicos. Esses processos essenciais, entretanto, foram abandonados ou

26 “Filolau não era um cientista preocupado com a precisão; era um pitagórico desorientado e as consequências de

suas doutrinas foram consideradas ‘incrivelmente ridículas’ por um astrônomo profissional como Ptolomeu.

Mesmo Galileu, que se defrontou com a aperfeiçoada versão copernicana da doutrina de Filolau, diz: ‘Não tem

limites meu espanto quanto percebo que Aristarco e Copérnico foram capazes de fazer com que a razão dominasse

os sentidos, de sorte que, em detrimento destes, a razão se tornasse a orientadora de suas convicções’ (Dialogue,

328). ‘Sentidos’, aqui, refere-se às experiências a que recorreram Aristóteles e outros, para mostrar que a Terra se

encontrava em repouso. A ‘razão’, oposta por Copérnico a tais argumentos, é a mística razão de Filolau, associada

a uma fé igualmente mística (‘mística’ do ponto de vista dos racionalistas de hoje) no caráter fundamental do

movimento circular” (ibidem, p. 460).

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contornados a fim de extrair deles todos os elementos subjetivos e rodeá-los com uma aura de

excelência que emana um método correto, resultados objetivos e uma ideologia neutra, o que,

como diria Feyerabend, não passa de um lindo conto de fadas (FEYERABEND, 1977, p. 459,

461).

Combinando esses dois argumentos, Feyerabend (ibidem, p. 462) chega à conclusão que

“a separação entre ciência e não-ciência não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço

do saber”. Ele diz que se desejamos compreender verdadeiramente a natureza “devemos

recorrer a todas as ideias, todos os métodos e não apenas a reduzido número deles” (ibidem, p.

462, grifos do autor). Dessa forma livraremos “a sociedade do aperto estrangulador de uma

ciência ideologicamente petrificada, assim como nossos ancestrais nos livraram do aperto

estrangulador da Religião Verdadeira e Única” (ibidem, p. 464).

Feyerabend (ibidem, p. 464-465) afirma que, numa sociedade livre, um cidadão maduro

não é uma pessoa que foi profundamente instruída em uma ideologia especial, mas é um homem

ou uma mulher que entendeu como se toma uma decisão e decidiu em favor daquilo que

considerou ser melhor para si, que estudou a ciência como um fenômeno histórico (e não como

a única forma correta de resolver um problema) e que, com sorte, possui discernimento para se

chegar a uma decisão livre. Admitindo que a decisão seja em favor da ciência, esta será muito

mais racional do que as decisões que geralmente são tomadas.

Em uma sociedade democrática, instituições, programas de pesquisa e

sugestões têm, portanto, de estar sujeitos ao controle público; é preciso que

haja separação entre Estado e ciência da mesma forma que há uma separação

entre Estado e instituições religiosas, e a ciência deveria ser ensinada como

uma concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a

realidade (FEYERABEND, 2011b, p. 8, grifo nosso).

Ademais, parece-me injusto que a comparação entre a ciência e outras formas de

conhecimento (“não comensuráveis com ela”27) seja feita apenas sob o olhar da própria ciência.

Para exemplificar, podemos notar que, na Idade Média, um religioso exercia uma posição social

muito superior a de um filósofo natural e, consequentemente, o conhecimento que estava a sua

27 “À luz de sua tese sobre a incomensurabilidade, ele [Feyerabend] rejeita a ideia de que poderá existir um

argumento decisivo a favor da ciência sobre outras formas de conhecimento não comensuráveis com ela. Caso

queira comprar, será necessário investigar a natureza, objetivos e métodos da ciência e dessas outras formas de

conhecimento, cada qual a luz do respectivo conhecimento” (CHALMERS, 1993, p. 180-181).

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disposição (e sob sua conduta) era muito melhor ou mais importante. E ainda que, à época, a

explicação de Aristóteles (do Lugar Natural) sobre a queda dos corpos fazia muito mais sentido

que um movimento acelerado inversamente proporcional à distância ao quadrado do objeto ao

centro da Terra (como proposto por Newton). E, se ainda não estivermos convencidos, mesmo

levando em consideração o aspecto da incomensurabilidade, vamos citar dois últimos

exemplos. É sabido que a mecânica newtoniana é superior28 à mecânica aristotélica. Da mesma

forma, a mecânica relativística é igualmente superior à mecânica newtoniana. Se cada uma

dessas mecânicas representou, em sua época, a descrição fiel da Realidade, e se, ao passar do

tempo, essa descrição foi melhorada, podemos concluir duas coisas: a primeira é que a

Realidade mudou (algo que, a priori, não faz sentido); e a segunda é que a nossa descrição da

Realidade mudou, e logo, chegaremos à conclusão de que ela não descreve a Realidade, mas,

no máximo (e talvez) alguns aspectos dela. Além disso, quando pretendemos analisar a

velocidade média ou o consumo do combustível numa viagem para outra cidade, ou quando

desejamos calcular o tempo e a posição da queda de uma telha solta do telhado, ou, ainda,

quando almejamos determinar o movimento da Lua para prever um eclipse, somos levados a

crer que a descrição da mecânica relativística não nos é útil, e que a mecânica newtoniana,

apesar de ser dito inferior, nos serve com excelência. Em suma, não julgamos uma teoria

científica (e mesmo a ciência em si) por ser melhor ou superior, mas sim por ser mais útil29 para

determinada situação histórica, cultural, social, etc.

Feyerabend (2011b, p. 20) argumenta que procedimentos não científicos não podem ser

excluídos por argumentação. “Dizer ‘o procedimento que você usou não é científico, portanto

não podemos confiar em seus resultados nem lhe dar dinheiro para pesquisa’ pressupõe que a

‘ciência’ seja bem-sucedida e é bem-sucedida por que usa procedimentos uniformes” (grifo

nosso). Segundo ele,

a primeira parte da asserção (“a ciência é sempre bem-sucedida”) não é

verdadeira, caso por “ciência” queiramos nos referir a coisas feitas pelos

cientistas – há também muitos fracassos. A segunda parte – que os sucessos

devem-se a procedimentos uniformes – não é verdadeira, porque não há tais

procedimentos. (...) [Assim,] as realizações científicas podem ser avaliadas

apenas depois de o evento ter ocorrido, e se não há uma forma abstrata de

garantir de antemão o êxito, então também não existe nenhuma maneira

28 Os termos superior/inferior estão ironicamente sendo utilizados no sentido racionalista.

29 Sendo esse – a utilidade das teorias científicas – apenas um critério de julgamento, dentre muitos outros

possíveis.

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especial de sopesar promessas científicas – os cientistas não são melhores que

ninguém nesses assuntos, eles apenas conhecem mais detalhes. Isso significa

que o público pode participar das discussões [científicas]. (...) Nos casos em

que o trabalho dos cientistas afeta o público, este até teria obrigação de

participar: primeiro, porque é parte interessada (muitas decisões científicas

afetam a vida pública); segundo, porque tal participação é a melhor educação

científica que o público pode obter – uma democratização completa da ciência

não está em conflito com a ciência. Está em conflito com uma filosofia, com

frequência denominada “racionalismo”, que usa uma imagem congelada da

ciência para aterrorizar as pessoas não familiarizadas com sua prática

(FEYERABEND, 2011b, p. 20-21, grifo do autor).

Chalmers (1993, p. 182-184) afirma que Feyerabend defende uma atitude humanitária,

segundo a qual, os seres humanos devem ser livres, num sentido de promover a remoção de

todas as restrições metodológicas, de forma a encorajar que os indivíduos possam escolher entre

a ciência ou outras formas do conhecimento. Assim, a institucionalização da ciência em nossa

sociedade é contraditória com essa atitude humanitária. De forma que, para Feyerabend, em

uma sociedade verdadeiramente livre, a ciência não terá prioridade sobre outros conhecimentos

ou tradições, mas será estudada igualmente como uma tradição histórica.

Feyerabend trilha um caminho na contramão dos pesados vagões filosóficos. Tem como

norte a qualidade de vida das pessoas. Ele deixa claro que sua “preocupação não é nem a

racionalidade, nem a ciência, nem a liberdade – [pois] abstrações como essas causam mais mal

do que bem – e sim a qualidade das vidas dos indivíduos” (FEYERABEND, 2010, p. 25, grifo

nosso). Ele discute sobre a fragmentação em que se encontra a cultura contemporânea (já no

final do século XX) – as crises, as doenças, as contradições profundas, os conflitos entre as

ciências e as humanidades – e sobre a expansão constante do progresso e do desenvolvimento

no Ocidente, que, em suas palavras, “corresponde à disseminação do comércio, da ciência e da

tecnologia ocidentais” (ibidem, p. 8). Cita ainda que “esse é um fenômeno internacional: ele

caracteriza tanto sociedades capitalistas quanto as socialistas; ele é independente das diferenças

ideológicas, raciais e políticas e influencia um número cada vez maior de povos e culturas”

(ibidem, p. 8). Mas será mesmo que o “progresso” e o desenvolvimento tornam melhor a vida

das pessoas? Agora que sabemos mais, aprendemos mais e conhecemos mais, nos tornamos

pessoas melhores, que cuidam melhor dos nossos semelhantes, de nossa sociedade e de nosso

planeta? Não acredito que haja repostas simples a essas perguntas. Mas esse incômodo que nos

dá ao tentarmos respondê-las já coloca em xeque as nossas certezas.

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Hoje, formas de vida ocidentais já são encontradas nos cantos mais remotos

do mundo, mudando os hábitos de pessoas que há umas poucas décadas não

estavam sequer cientes de sua existência. As diferenças culturais desaparecem

e artesanatos, costumes e instituições nativas vão sendo substituídos por

objetos, costumes e formas organizacionais ocidentais (FEYERABEND,

2010, p. 9).

Os problemas ecológicos, chamados por Feyerabend (ibidem, p. 10) de problemas do

Terceiro Mundo, são, segundo ele, uma marca do progresso e do desenvolvimento: a poluição30

dos rios e oceanos, dos reservatórios de água potável, do ar; o desmatamento das reservas

naturais, da Floresta Amazônica (mas também de diversas outras áreas de reservas indígenas);

a extinção de espécies animais e vegetais; a redução da camada de ozônio; a fome (mas também

a “solução” para resolvê-la: os agrotóxicos); as doenças físicas e psicológicas (obesidade,

depressão, ansiedade, diabetes, câncer, etc.); parecem ter sido causados pelo avanço constante

da Civilização Ocidental31. Sem contar com o menos óbvio, mas não menos doloroso, impacto

espiritual suportado por muitas sociedades que sofreram imposição de conhecimentos objetivos

desconectados com a vida em sociedade, com os problemas locais, e características ambientais,

místicas, etc., aqui, ainda segundo Feyerabend (ibidem, p. 11), o Ocidente abriu o seu caminho.

Feyerabend é um pensador controverso. Como ele mesmo assume em seus

escritos, ele busca ser algo como um provocador, de forma que suas

colocações possibilitem tomadas de decisões. (...) É nesse sentido que [ele]

problematiza acerca de dar adeus à razão, por considerar que concepções de

natureza extremamente objetiva têm se mostrado como edificadoras de

monstros (LOPES, 2016, p. 59-60, grifo nosso).

Sua crítica atinge as duas ideias que desempenham um papel importante na expansão

intelectual ocidental: as ideias da Objetividade e da Razão:

Dizer que um procedimento ou um ponto de vista é objetivo (ou objetivamente

verdadeiro) é afirmar que ele é válido independentemente das expectativas,

30 Destacamos a utilização de metais pesados (como o mercúrio) na prática do garimpo nos rios da América do Sul

e da África; os casos recentes de baleias encontradas mortas nas praias do Brasil, com dezenas de quilos de

plásticos no estômago; e a redução drástica e a mudança de coloração dos corais (por todo o mundo) devido ao

aumento das temperaturas globais.

31 Não julgamos, entretanto, que estes problemas sejam inerentes à existência material ou conceitual dos artefatos

científicos/tecnológicos, mas sim à forma pelo qual estes são impostos/utilizados em nossa sociedade.

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ideias, atitudes e desejos humanos. Essa é uma das reivindicações básicas que

os cientistas e intelectuais de hoje fazem a respeito de seu trabalho

(FEYERABEND, 2010, p. 12). À medida que a ciência progrediu e produziu

um depósito de informações que ia aumentando constantemente, as noções

formais de objetividade foram usadas não só para criar conhecimento, mas

também para legitimá-lo, isto é, para mostrar a validade objetiva dos corpos

de informação já existentes (ibidem, p. 16, grifos do autor).

Entretanto, como não existe um conjunto finito de regras bem definidas que delimite o

trabalho dos cientistas e “seja compatível com todos os eventos que levaram à ascensão e ao

progresso da ciência moderna, descobriu-se que exigências formais defendidas por cientistas e

filósofos estavam em conflito” com seu próprio desenvolvimento. Assim, “para solucionar o

conflito, as exigências foram gradativamente enfraquecidas, até que evaporaram totalmente”

(FEYERABEND, 2010, p. 16). A história da ciência está repleta de casos32 onde cientistas

ignoraram completamente os princípios universais da pesquisa (a Objetividade), mostrando

que

a ideia de uma ciência que caminha graças à argumentação logicamente

rigorosa nada mais é que um sonho. É claro que há rigor em todos esses

procedimentos, (...) mas é um rigor que se encaixa na situação, que é

complexo, que muda e difere muito do rigor “objetivo” de nossos lógicos

epistemólogos menos talentosos (ibidem, p. 17).

Feyerabend (ibidem, p. 17) também critica a ideia da Razão (com “R” maiúsculo), que

há certo tempo empreende a defesa da cultura contemporânea ocidental. Segundo ele,

essa ideia tem uma variante material e uma formal. Ser racional no sentido

material significa evitar certas ideias e aceitar outras. (...) Ser racional no

sentido formal significa seguir certo procedimento. Empiristas renitentes

acham que manter ideias plenamente em conflito com o experimento é

irracional, enquanto que teóricos empedernidos sorriem com a irracionalidade

daqueles que reveem princípios básicos a cada tremor momentâneo da

evidência. Esses exemplos já demonstraram que não seria lá muito produtivo

deixar que afirmações tais como “isso é racional” ou “isso é irracional”

influenciassem a pesquisa. As noções são ambíguas e nunca explicadas

32 Os estudos fisiológicos de Maturana e Varela; a noção estranha e teológica de Eddington e Hoyle de um começo

do Universo (Big Bang), mais tarde descoberto pelos cálculos de Friedmann e pelas observações de Hubble; a

verificação de poucos efeitos (a Teoria da Relatividade Geral) de Einstein, observada alguns anos depois por

Eddington e Dyson; a teoria quântica antiga; ou o estudo que precedeu a descoberta da estrutura de dupla hélice

do DNA, dentre muitos outros (ibidem, p. 17).

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claramente, e tentar segui-las ao pé da letra seria contraproducente:

procedimentos “irracionais” muitas vezes levam ao sucesso (no sentido

daqueles que os chamam de “irracional”) enquanto [que] procedimentos

“racionais” podem causar problemas terríveis. Rigorosamente falando, temos

aqui duas palavras, “Razão” e “Racionalidade”, que podem ser conectadas

com quase qualquer ideia de procedimento e depois rodeá-las com uma aura

de excelência (ibidem, p. 18, grifo do autor).

A premissa, segundo Feyerabend (ibidem, p. 18), de que há valores, conhecimentos e

ações universalmente válidas vai além do debate epistemológico, mas está associada à crença

de que existe uma maneira certa de viver: valores morais, princípios religiosos, organização

social, política, etc. Essa crença, segundo ele, edificou o Império Romano; as conquistas

muçulmanas; acompanhou os cruzados em suas batalhas sangrentas; orientou os descobridores

de novos continentes; lubrificou a guilhotina e agora promove debates sem fim dos defensores

da liberdade – a ideia de que há um conteúdo que justifique a intervenção, sempre fundamentou

o motivo pelo qual coisas absurdas podem ser feitas. Além disso, podemos admitir que a Razão

esteja rodeada

pela mesma aura que rodeava deuses, reis, [faraós, conquistadores,] tiranos e

suas leis impiedosas. O conteúdo evaporou-se; a aura permanece e faz com

que os poderes sobrevivam. A ausência de conteúdo é uma tremenda

vantagem; ela permite que grupos especiais se denominem “racionalistas”,

afirmem que sucessos amplamente conhecidos foram obra da Razão e usem a

força assim obtida para suprimir desenvolvimentos contrários a seus interesses

(ibidem, p. 18-19).

Feyerabend (ibidem, p. 19) ironiza afirmando que “há, e sempre houve, razão (com “r”

minúsculo) para termos esperança. Sempre existem pessoas que lutam contra a uniformidade e

defendem o direito que indivíduos têm de viver, pensar e agir como lhes pareça conveniente”.

Cita que “sociedades inteiras, dentre elas tribos ‘primitivas’, ensinaram-nos que o progresso da

Razão não é inevitável, que ele pode ser atrasado e que as coisas podem melhorar como

resultado disso” (FEYERABEND, 2010, p. 19-20). E ainda que

os insights obtidos pelos cientistas que estudam as conquistas materiais e

espirituais dos povos nativos, [apontam] que não há nada na natureza da

ciência que exclua a variedade cultural. A variedade cultural não está em

conflito com a ciência vista como uma investigação livre e irrestrita; ela está

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em conflito com filosofias como o “racionalismo” ou o “humanismo

científico” e com uma força, às vezes chamada de Razão, que usa uma imagem

congelada e distorcida da ciência para obter aceitação para suas próprias

crenças antediluvianas (ibidem, p. 20, grifo do autor).

“É hora de desprender a Razão desse impulso e, como ela já ficou totalmente

comprometida pela associação, dar-lhes adeus” (ibidem, p. 21). Feyerabend afirma que tudo

isso é apenas parte da história, que muitas coisas foram feitas apesar da Razão e não por causa

dela. Segundo ele, o outro lado da história é que a Razão realmente deixou sua marca – as

mesmas que estabelecem o senso comum (a respeito da ciência); que respaldam os discursos

(políticos) de poder; e que legitimam as ideias inventadas pelos autores33 cientistas – “ela

deformou as conquistas, esticou-as além de seus limites e é, portanto, pelo menos em parte,

responsável pelos excessos que estão sendo propagados sob seu nome”. Por fim, Feyerabend

destaca que a Razão (com “R” maiúsculo) “foi um grade sucesso entre filósofos que não gostam

de complexidade e entre políticos (tecnólogos, banqueiros, etc.) que não se importaram em

acrescentar um pouco de classe a sua luta pela dominação do mundo”, entretanto ela – a Razão

– “é um desastre para o resto, isto é, para praticamente todos nós. É hora de lhe dizer adeus”!

(ibidem, p. 25-26, grifo nosso).

Apesar disso, ser Contra o método ou dar Adeus à razão pode ser uma “faca de dois

gumes” quando sonhamos com A Ciência em uma sociedade livre. O trocadilho foi proposital,

mas ficar conhecido como “o pior inimigo da ciência”34 provavelmente não.

As críticas a Feyerabend são extensas. Muitas delas foram consideradas frutos de más

interpretações de sua epistemologia, o que Feyerabend chamou de incompetência

profissionalizada. Por isso, alguns autores

buscam desconstruir alguns mitos que são repetidos. Entre estas

desconstruções estão a de que o anarquismo epistemológico leva ao caos na

ciência, que a tese central da epistemologia de Feyerabend é o vale tudo, que

a defesa da irracionalidade na ciência descaracteriza o empreendimento

científico e de que o relativismo não explica o progresso na ciência

(DAMASIO & PEDUZZI, 2017, p. 330).

33 Autor aqui, tem o sentido medieval de autoridade utilizado por Stengers (2002, p. 112).

34 Expressão usada pelos autores Theocharis e Psimopoulos no artigo Where science was gone wrong, publicado

na revista Nature em 1987 (DAMASIO & PEDUZZI, 2017, p. 330).

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Para Roberto Martins (1999), por exemplo, Feyerabend é um relativista extremo ao

negar uma demarcação entre ciência e não-ciência, e não fazer uma distinção entre astronomia

e astrologia ou entre medicina e curandeirismo. Ele afirma que “é possível dispor de uma

concepção de ciência que não estabeleça um critério de demarcação, mas que permita orientar

e avaliar a pesquisa” (ibidem, p. 15).

Lopes (2016), entretanto, ao analisar as críticas de Roberto Martins afirma que ele está

equivocado ao considerar que Feyerabend trata esses conhecimentos da mesma forma:

O que ele defende é que essas produções humanas, conhecimentos validados

por comunidades para quem esses entendimentos fazem sentido e funcionam,

comportam sempre uma certa ambiguidade e inter-relações. Isso é muito

diferente de dizer que todos os conhecimentos são iguais. E, além disso, se a

ciência também está repleta de saberes de cunho simbólico e de base não

racional desde a sua estruturação até às teorias e posições mais recentes, por

que não oportunizar outras formas de conhecimento? Ou, ainda, se a ciência

se constrói mediante saberes de outros conhecimentos que não são ciência,

como se pode separar ciência do que não é ciência, como pretende Martins?

(LOPES, 2016, p. 80).

Nós concordamos com Lopes (2016) e consideramos que os contrapontos à filosofia

feyerabendiana reúne o que muitas vezes é interpretado erroneamente como um ataque à

ciência, como citado por Stengers (2002, p. 48):

Em sua obra Contra o método, Feyerabend feriu os sentimentos estabelecidos

ao comparar a atividade científica à astrologia, ao vudu, ou mesmo à máfia, e

ele pagou o preço por essa estratégia: aqueles a quem feriu reduziram o

problema que ele punha a esta comparação escandalosa. Ora, o alvo da posição

“relativista” de Feyerabend não era assemelhar Einstein a um astrólogo, ou

Galileu a um mafioso. Ele procurava demonstrar que (...) um cientista não

pode se ater àquilo que os filósofos consideram “objetivo”, [que] a construção

da objetividade não tem nada de objetivo: ela envolve uma maneira singular,

mas não exemplar de se relacionar com as coisas e com outros, como a

atividade mafiosa. O que não quer dizer que ela se origine do mesmo tipo de

envolvimento que a atividade mafiosa. A tese de Feyerabend não é, portanto,

dirigida contra a prática científica, mas contra a identificação da objetividade

com o produto de uma conduta objetiva.

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Apesar disso, Stengers (2002) disserta uma crítica a respeito do relativismo de

Feyerabend, comparando-o a um racionalista, quando ele afirma que a ciência é somente uma

tradição histórica entre muitas tradições, e que as únicas diferenças dizem respeito a fatos

externos a ciência:

Nada se deve às próprias ciências? Não seria o relativista Feyerabend ainda

demasiado racionalista quando apresenta “uma competição imparcial e

controlada” como a única arena onde as ciências poderiam fazer valer o papel

apropriado que desempenharam no triunfo sobre outras tradições? Em outras

palavras, a tese segundo a qual a ciência constitui uma tradição histórica entre

outras tradições é vulnerável com relação à sua expressão reducionista: a

ciência é somente uma tradição histórica entre outras, as únicas “verdadeiras”

diferenças dizem respeito a fatores externos, políticos, militares, econômicos

(STENGERS, 2002, p. 50).

Terra (2002, p. 209) também desenvolve uma análise a respeito das críticas à

Feyerabend. Segundo ele, as ideias do filósofo austríaco causam “sensível desconforto aos

admiradores e defensores da ciência, [havendo] a tendência de considerar suas ideias como

desprovidas de relação com a realidade, e até mesmo, como perigosas”.

Um dos receios dos adversários do anarquismo epistemológico é o de que ele

favoreça os movimentos anti-racionalistas. Tal temor, no entanto, é totalmente

injustificável. Se os anarquistas epistemológicos amam, acima de tudo, a

liberdade e trabalham pela autonomia do indivíduo, não irão se agregar aos

inimigos da liberdade. Ora, onde impera o irracionalismo desaparecem as

condições para o desenvolvimento do pensamento, e por isso, o anarquista

epistemológico, na sua luta pela liberdade intelectual, acabará sempre se

aliando aos racionalistas (TERRA, 2002, p. 215).

Todavia, quando analisamos o contexto atual do Brasil e nos defrontamos com o Novo

Ensino Médio, com o movimento denominado de “Escola Sem Partido”, com a expansão das

ideias do terraplanismo, antievolucionismo, antivacinas, etc., além da crescente incorporação

das ideias cristãs nos meios sócio-políticos (sim, em 2020!), concordamos com Martins (2019,

p. 268) a respeito de defendermos a ciências como cultura, mais do que nunca! E é, exatamente

aí, que o anarquista epistemológico pode se encontrar em maus lençóis ao utilizar a filosofia

feyerabendiana. Essas ideias, vistas de maneira isolada e sem a devida discussão

epistemológica, provavelmente serão utilizadas para respaldar ideias consideradas

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anticientíficas, como a não-validade da ciência [“a asserção a ciência é sempre bem-sucedida

não é verdadeira” (FEYERABEND, 2011b, p. 20)]; a negação de sua autoridade [“a ciência

não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma de vida. Seus objetivos não são, por

certo, mais importantes que os propósitos orientadores de uma comunidade religiosa ou de uma

tribo que se mantém unida graças a um mito” (FEYERABEND, 1977, p. 454)]; a equivalência

entre a ciência e a mágica [“não lhe é permitido pedir que, na escola, seus filhos aprendam

mágica e não a ciência (FEYERABEND, 1977, p. 453)]; e o terraplanismo, por exemplo [“não

dizemos: algumas pessoas acreditam que a Terra gira ao redor do Sol, enquanto outros acham

que a Terra é uma esfera oca que contém o Sol, os planetas e as estrelas fixas. Dizemos: a Terra

gira ao redor do Sol – [e] dizer qualquer outra coisa é absurdo” (FEYERABEND, 2011a, p.

93)].

Defendemos as ideias de Feyerabend aqui apresentadas, inclusive sua alegação de que

um cidadão não pode escolher que seus filhos aprendam mágica (e não a ciência) na escola35.

Entretanto, destacamos: será que estamos preparados para esse grau de liberdade? Será que essa

posição anarco-epistemológica não pode reforçar o anticientificismo radical? Até que ponto as

ideias feyerabendianas estão num terreno abstrato e até onde elas podem ser aplicadas,

sobretudo numa realidade do Brasil contemporâneo?

Por falar em realidade, a partir de janeiro de 2020, o mundo vem enfrentando um

inimigo em comum – a doença causada pelo novo coronavírus – a COVID 19. Até agosto, já

haviam sido confirmados mais de 23,5 milhões de infectados e mais de 810 mil mortes em todo

o mundo36. Apesar de, nem de longe, se comparar com a Peste Bubônica ou com a Gripe

Espanhola, a COVID 19 já mostra uma realidade assustadora e dolorosa, e isso em um mundo

apenas sem uma vacina.

O que fazer, por exemplo, se os apoiadores dos movimentos antivacinas37, por motivos

religiosos, ideológicos ou qualquer outro, utilizarem-se das ideias de Feyerabend para respaldar

35 Silva (2016, p. 88) destaca que “a concepção epistemológica de Feyerabend não propõe a desvalorização da

ciência, mas, ao contrário, que a possibilidade de julgar e escolher entre as tradições nativas de um povo (ou uma

metafísica particular) e o conhecimento científico seja concedida aos sujeitos em questão e não impostas

dogmaticamente através da educação básica, pelo Estado”.

36 Informação referente ao dia 25 de agosto de 2020, extraída do site oficial da Organização Pan-Americana da

Saúde – OPAS, em 26 de agosto de 2020.

37 Destacamos as alegações religiosas como motivo para não se vacinar, o que pode ocasionar a volta de doenças

praticamente erradicadas, como o sarampo, por exemplo (Como o fundamentalismo religioso contra vacinas trouxe

o sarampo de volta aos EUA, 2020; Nova York proíbe uso de religião como motivo para não se vacinar, 2020).

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epistemologicamente as suas decisões de não se vacinarem, colocando em risco, inclusive, a

saúde de outras pessoas? E se, por qualquer razão que seja, um cidadão escolher levar seu filho

recém-nascido apenas a uma benzedeira para lhe trazer sorte e livrar de todas as doenças futuras,

ao invés de receber as vacinas determinadas pelo Ministério da Saúde? Ou, ainda, se uma mãe

ou um filho manifestar uma leucemia, a família optará por qual tratamento médico: pelo rito de

cura da Medicina Sagrada de um pajé ou pela sessão de quimioterapia oferecida pela medicina

científica?

Engana-se quem acredita que Feyerabend afirma que todas as formas de conhecimento

são essencialmente iguais. O que ele faz, todavia, é propor uma equivalência política entre elas:

a ciência não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma de vida; (...)

não há por que esses objetivos possam restringir as vidas, os pensamentos, a

educação dos integrantes de uma sociedade livre; (...) cada qual deve ter a

possibilidade de decidir por si próprio e de viver de acordo com as crenças

sociais que tenha por mais aceitáveis (FEYERABEND, 1977, p. 454).

Assim, segundo Feyerabend, em uma sociedade livre, o cidadão deve conhecer a

linguagem da ciência como um fenômeno histórico (oferecida pela escola por questões

socioculturais, e mesmo democráticas); esta linguagem deve ser ensinada como “uma

concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a realidade”

(FEYERABEND, 2011b, p. 8); e este deve ter a liberdade de escolher entre a ciência e outras

formas de conhecimento. De forma que, se a decisão tomada for em favor da ciência, esta “será

muito mais ‘racional’ do que é, hoje, qualquer decisão em favor da ciência” (FEYERABEND,

1977, p. 465).

Entretanto, voltando à pergunta que nos levou a essa esteira argumentativa – será que

estamos preparados para esse grau de liberdade? – afirmamos que mesmo o anarquismo

epistemológico tem seus limites. Existem diversas condições de contorno (ou seja, “alertas”,

sobretudo para um leitor que não tenha formação na área) que Feyerabend não destaca em seus

escritos e que, ao nosso ver, são fundamentais para que suas ideias sejam realmente aplicáveis

e que não reforcem o anticientificismo radical.

A primeira delas consiste em entender as consequências de nossas escolhas. Ora, se

alguém decidir-se por não se vacinar (ou não vacinar seus filhos, ou ainda quaisquer outras

questões equivalentes) mesmo conhecendo as consequências de suas escolhas, o estado deve

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permitir se, e somente se, isso não gerar riscos a outras pessoas. Ou seja, caso a família queira

viver (até literalmente) “isolada em uma ilha” ela pode fazê-lo, tendo, inclusive, uma penalidade

por descumprimento ao gerar riscos a terceiros, cuja escolha foi diferente da sua, uma vez que

a individualidade não pode estar acima do coletivo. E isso nos leva à segunda condição: a nossa

vida em sociedade é decidida por regras socialmente escolhidas que visam o bem-estar da

própria sociedade. Logo, as minhas escolhas religiosas, ideológicas, anticientíficas, etc., podem

ser exploradas contanto que elas não interfiram em questões gerais da sociedade

democraticamente acordadas (como uma ideia religiosa ou ideológica que pode levar a cometer

um crime: racismo ou extorsão, por exemplo). Por fim, destacamos que, sobretudo no campo

da ciência médica, o Estado toma algumas decisões que, em forma de regras ou até mesmo leis,

balizam algumas ações de nossa sociedade – como a adequação de fuso-horários, exploração

de energias renováveis, controle de qualidade da água potável, etc. e, em especial, as vacinas.

Faz-se necessário, então, certo cuidado ao utilizar as ideias feyerabendianas. Apesar de

defendermos sua epistemologia anarquista e concordarmos que sua análise é fundamental para

a construção de uma ciência como parte da cultura humana, suas ideias devem ser bem

explicadas e trazer consigo o rico material que a História da Ciência nos concede. Para isso,

dedicamos os próximos capítulos a um recorte histórico que envolve o personagem Galileu

Galilei e sua astronomia, a fim de propormos questões que podem ser levadas para a Educação

Básica a partir de uma leitura feyerabendiana.

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4. O ENSINO DA ASTRONOMIA DE GALILEU NUMA PERSPECTIVA

FEYERABENDIANA

Não foi intenção de Feyerabend fazer um exame completo sobre as consequências de

sua filosofia científica para o ensino de ciências. Entretanto, cabe a nós, professores instruídos

de sua análise, buscar tais elementos e encontrar as pistas que ele deixou para que os educadores

científicos possam percorrer esse caminho.

Lopes (2016) afirma que a visão social da ciência, enfatizada por Feyerabend, precisa

ser difundida aos educadores e estudantes, pois

a crença de que a ciência possui um método único e de que as teorias (...) são

algo desconectado do contexto do qual emergem, serve à estruturação da

ciência enquanto forma hegemônica, contribuindo, inclusive, para subjugar as

demais formas de conhecimento. Embora algo nesse sentido venha sendo feito

já há um tempo por estudiosos em educação e educação científica, muito

pouco tem chegado aos manuais, aos livros textos e à sala de aula

propriamente dita (ibidem, p. 24).

A visão de Feyerabend – de que no processo educacional de uma sociedade livre a

ciência não deve ter preferência em relação à astrologia, a magia, as lendas ou o vodu – parece-

nos dizer, em um primeiro momento, que a ciência, a astrologia, a magia, as lendas e o vodu

são (ou deveriam ser) igualmente importantes em nossa sociedade e que deveriam ter espaços

iguais nos processos educacionais. Entretanto, quando analisamos com cuidado o rico material

por ele deixado, sem termos a pretensão de nos armarmos para defender uma ciência

racionalista, vemos que sua intenção é mostrar que a ciência moderna exerce o mesmo papel

opressor que a religião exerceu outrora (suas teorias podendo, inclusive, serem tratadas

igualmente como dogmas). De forma que, qualquer ensinamento que fuja da racionalidade

científica e de seus métodos (ou seja, sua doutrina) é considerado um absurdo pagão.

Em uma sociedade livre [deveria existir] espaço para muitas crenças,

doutrinas e instituições estranhas. Mas a premissa da superioridade inerente a

Ciência foi além da própria Ciência e passou a ser um artigo de fé para quase

todo mundo. Além disso, a Ciência já não é uma instituição particular; ela

agora é parte do tecido básico da sociedade. É claro, a Igreja e o Estado agora

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estão cuidadosamente separados38. O Estado e a Ciência, no entanto,

trabalham rigorosamente juntos (FEYERABEND, 2011a, p. 92).

Feyerabend (ibidem, p. 92) cita ainda que enquanto os pais podem escolher qual a

educação religiosa que os seus filhos devam ter na escola; ou escolher que os filhos não tenham

educação religiosa; ou ainda optar por colocá-los numa escola religiosa que siga estritamente

uma religião; eles não têm a liberdade de exigir que seus filhos aprendam astrologia ao invés

de astronomia ou pelo menos que a astronomia seja apresentada como um fato histórico.

A preocupação de Feyerabend por uma educação científica livre está associada à livre

escolha feita pela educação científica. Essa escolha só poderá ser concretizada se a ciência não

for, desde os primeiros anos do processo educacional, caracterizada como absolutamente

verdadeira, livre de erros e detentora da única forma de acessar a Realidade (com “R”

maiúsculo).

Separar estado e ciência significa regular a exagerada ênfase dada ao

conhecimento científico e abandonar o mito da racionalidade científica como

medida de todas as coisas e, portanto, possibilitar que o ser humano se

desenvolva plenamente, sem a imposição de uma única forma de se apreciar

o real. Assim, o indivíduo, em sua plenitude, poderá adotar uma única

ideologia para interpretar o real manifesto (seja ela a metafísica, a religião, a

ciência, etc.) ou poderá adotar várias ideologias como possíveis formas de

apreciar as manifestações do real, mesmo que incomensuráveis entre si ou

contraditórias segundo a lógica e a razão habituais (SILVA, 2016, p. 89).

Assim, os professores de ciências devem apresentá-la como uma construção histórica

de fatos e princípios (FEYERABEND, 2011a, p. 93), como uma tradição entre muitas possíveis

tradições, e não deve colocá-la a cima de outras formas de conhecimento, mas sim, dialogar

com elas, reconhecendo a importância e os limites de cada uma (FEYERABEND, 2011a, p.

14), sobretudo porque a ciência as deve muito39.

38 A afirmação de Feyerabend de que a Igreja e o Estado agora estão cuidadosamente separados, dita no contexto

europeu da década de 1970, é uma realidade que começa a ser mudada no cenário sócio-político brasileiro. Há um

número cada vez maior de políticos que se elegem em nome de Deus e intensificam as influências cristãs, sobretudo

pentecostais evangélicas, no cenário político do Brasil, apesar da Constituição de 1988 enfatizar a laicidade do

Estado.

39 A construção das teorias científicas deve-se muito a outras formas de conhecimento, como já discutido no

capítulo anterior.

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Entretanto, os nossos educadores,

ano após ano, são jogados sobre a geração mais jovem para enchê-la de

“conhecimento” sem consideração pelo passado e pelo contexto dos alunos.

Culturas inteiras foram mortas, seus sistemas imunológicos destruídos, seu

conhecimento passou a ser uma raridade – e tudo isso em nome do progresso

(e do dinheiro, é claro) (FEYERABEND, 2010, p. 369).

Um bom exemplo disso são as comunidades indígenas que desenvolveram (e ainda

desenvolvem) sua própria forma40 de entender a natureza, de buscar alimentos e remédios, de

estudar o movimento dos céus, o significado da vida e de construir sua espiritualidade ancestral

sem a necessidade da fórmula mágica da científica.

Alguns tipos de medicina tribal, por exemplo, podem ter melhores meios de

diagnosticar e tratar doenças (mentais e físicas) que a medicina científica

atual, e algumas cosmologias primitivas podem nos ajudar a ver, em

perspectiva, as ideias predominantes. Portanto, dar igualdade às tradições não

é apenas correto, mas também extremamente útil (FEYERABEND, 2011a, p.

14, grifos do autor).

Não que estejamos defendendo que o conhecimento dos povos tradicionais é superior

(ou inferior) à ciência, mas que este conhecimento é muito mais importante para eles do que a

ciência moderna ocidental, e que esta última deve ser apresentada como uma possível visão, e

não como a única (e verdadeira). Dessa forma, os professores de ciências devem apresentá-la

“em pé de igualdade” com outras formas de conhecimento, buscando dialogar com elas e citar

a importância que elas tiveram (e ainda têm) em outros contextos históricos, étnicos, culturais,

etc., deixando claro os motivos pelos quais a Ciência (com “C” maiúsculo) desenvolveu (e

como desenvolveu41) o papel que hoje tem em nossa sociedade.

40 “Pesquisas mais recentes na Antropologia (...) demonstram que nossos ancestrais e contemporâneos ‘primitivos’

tinham cosmologias, teorias médicas e doutrinas biológicas altamente desenvolvidas, que muitas vezes são mais

adequadas e têm resultados melhores que os de seus rivais ocidentais” (FEYERABEND, 2011a, p. 128-129).

41 “Há o antigo argumento de que as tradições não-científicas já tiveram sua chance, que elas não sobreviveram à

confrontação com a ciência e com o racionalismo e que tentativas de revivê-las são, por tanto, irracionais e

desnecessárias. Aqui a pergunta óbvia é: elas foram eliminadas por justificativas racionais, deixando que

competissem com a ciência de uma maneira imparcial e controlada, ou seu desaparecimento foi resultado de

pressões militares (políticas, econômicas, etc.)? E a resposta é quase sempre: a última. Nunca pediram aos índios

americanos que apresentassem suas ideias, eles foram primeiro cristianizados, depois forçados a sair de suas terras,

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No que diz respeito às apropriações da epistemologia feyerabendiana pela área de

Ensino de Ciências no Brasil, Silva (2016, p. 66) afirma que apenas “alguns poucos

pesquisadores brasileiros (...) propuseram relações entre o anarquismo epistemológico e o

ensino de ciências, a saber: Regner (1996)42, Laburú & Carvalho (2001), Terra (2002), Laburú

et al. (2003) e Siqueira-Batista et al. (2005)”, e que, apesar de numericamente escassas,

sublinham o potencial de suas reflexões para o ensino de ciências.

De forma que, reconhecendo a complexidade das situações reais de ensino-

aprendizagem, o que esses autores têm em comum é recomendar uma estratégia pluralista para

o ensino de ciências, inspirada no pensamento feyerabendiano. Assim,

nessa perspectiva, um mestre pluralista não se limitaria em escolher

dogmaticamente uma única proposta pedagógica, ao contrário, estaria

disposto a experimentar diversas metodologias, pois sua meta e seu

comprometimento é com a aprendizagem dos alunos e não com uma

fidelidade pedagógica (SILVA, 2016, p. 68).

Laburú et al. (2003) afirmam que os sentimentos, motivações e preferências ao modo

de aprender variam de estudante para estudante. Além disso, fatores como: habilidades mentais,

ritmos de aprendizagem, níveis de motivação e interesse, experiências vividas, etc., certamente

influenciam a aprendizagem e, consequentemente, a estratégia metodológica. “Portanto”,

destaca o autor, “é questionável uma ação educacional baseada num único estilo didático, que

só daria conta das necessidades de um tipo particular de aluno ou alunos e não de outros”

(LABURÚ et al., 2003, p. 251). De modo que, o professor, a partir das situações reais que o

contexto exige, “poderá valer-se de qualquer outra metodologia ou de uma inter-relação de

muitas, poderá adaptá-las, distorcê-las desde que se satisfaça as complexas exigências da

situação real de trabalho” (SILVA, 2016, p. 70).

Logo, tendo vista a educação sob a lógica de Feyerabend,

e finalmente arrebanhados em reservas no meio de uma cultura científico-tecnológica em crescimento. Os

remédios dos índios (que eram usados normalmente pelos praticantes da medicina do século XIX) não foram

testados para compará-los com os novos produtos farmacêuticos que invadiram o mercado, foram simplesmente

proibidos, como se pertencessem a uma era antediluviana em termos de cura. E assim por diante”

(FEYERABEND, 2010, p. 360).

42 “O primeiro artigo publicado em revistas brasileiras especializadas da área de educação em/ensino de ciências,

que carregam em seu bojo a representação feyerabendiana, data de 1996 e foi escrito pela filósofa Anna Regner.

O artigo em questão discute os elementos fundamentais da crítica empreendida por Feyerabend ao racionalismo,

tendo como referência para a reflexão o livro Contra o Método” (SILVA, 2016, p. 66).

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apenas um pluralismo de concepções poderia oferecer a possibilidade de

formar cidadãos bem desenvolvidos, capazes de escolher, dentre uma gama

de representações a que acreditar a maneira de ver o mundo e de nele atuar.

(...) Assim, a imposição ideológica da ciência seria substituída pelo

encorajamento dos alunos a aprenderem “o jogo” da ciência sem, porém,

perderem de vista a possibilidade de jogar outros jogos. Após essa etapa, a da

educação básica, o jovem poderá escolher a profissão de seu gosto e, assim,

assumir os compromissos dessa comunidade particular, submetendo-se

voluntaria e conscientemente às respectivas imposições institucionais e

ideológicas da mesma (SILVA, 2016, p. 91-92).

Segundo Terra (2002, p. 208),

todas as filosofias da ciência têm implicações pedagógicas com reflexos

importantes nos procedimentos de ensino de ciências. O professor de ciências

adepto ao anarquismo epistemológico43, proposto por Paul Karl Feyerabend,

também adotará estratégias próprias. Guiar-se-á, primeiramente, pelo preceito

de que as decisões dos alunos devem ser autônomas; abdicará, pois, de impor

a visão científica aos alunos. Apresentará a ciência como sendo formada por

uma comunidade na qual se discutem ideias antagônicas e a adesão a uma

delas se faz por convencimento, após livre exame das argumentações

apresentadas.

Dessa forma, o professor anarquista epistemológico deve oferecer as circunstâncias

necessárias para que os seus alunos consigam chegar a uma decisão livre, sem excluir, inclusive,

as visões não científicas e até mesmo as anticientíficas (TERRA, 2002).

Mas, o que temer de um professor anarquista-epistemológico? “Certamente”, responde

Terra (2002),

que ele não adote alguns enfoques habituais, como, por exemplo, o de

apresentar Galileu Galilei como o mocinho da ciência contra os bandidos da

Inquisição. Se o professor resolver falar aos seus alunos sobre o insigne

matemático, físico e filósofo toscano, nos termos propostos por Feyerabend,

não o apresentará como herói puro da racionalidade, mas como hábil

polemista, mestre na arte de tergiversar, que usou, com rara e exemplar

competência, técnicas de persuasão e propaganda, recursos que muitos

43 “As ideias anarquistas sobre educação têm em comum o fato de postularem a total desvinculação entre o ensino

e as formas de poder, sobretudo a separação entre escola e estado, e escola e religião. A educação orientada pelos

princípios anarquistas visa, também, conduzir o estudante à plena autonomia, incentivando-o a torna-se o principal

responsável por sua própria formação” (TERRA, 2002, p. 210).

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defensores da ciência consideram inadmissíveis na prática científica. (...) Tal

imagem de Galileu é difícil de se apresentar, pois requer, pelo menos, muito

tempo, e pode antipatizar muito com o grande cientista e filósofo – narrativa

(...) mais fácil de ser contada e entendida (ibidem, p. 216).

Entretanto, como cita Martins (2019, p. 266), ainda nos dias atuais, os conteúdos

científicos são ensinados de forma objetiva: leis, regras, informações, dados comprovados,

datas dos acontecimentos e nomes dos grandes cientistas, o que ele chama de “uma visão de

ciência neutra, objetiva, metódica, enfim, uma visão de senso comum da ciência e de seu

desenvolvimento (...) uma ideologia conhecida como cientificismo” (ibidem, p. 267, grifo do

autor), o que diverge, claramente, de uma epistemologia anarquista.

E isso nos leva ao ensino sobre ciências e seu valor epistemológico, uma vez que a

abordagem racionalista da História da Ciência, com seu método universal, não

irá promover um cidadão consciente e atuante (...). É exatamente neste sentido

que uma abordagem do ensino sobre ciência, à luz da epistemologia

feyerabendiana, pode trazer contribuições significativas para a sala de aula.

Ao reconhecer a limitação de toda e qualquer regra, método, ao valorizar as

circunstâncias e principalmente todas as formas de conhecimento44, pode-se

criar um ambiente mais propício para a formação de pessoas críticas, ativas,

flexíveis, [inovadoras, tolerantes] e sujeitas a mudanças (DAMASIO &

PEDUZZI, 2015, p. 123-124).

Assim, dentre muitas possibilidades de recortes, das diversas áreas da ciência ao longo

do tempo e dos numerosos referenciais teóricos, nosso interesse reside nas discussões que giram

em torno da figura de Galileu Galilei e das concepções astronômicas presentes no século XVII,

a partir da perspectiva do filósofo da ciência Paul Feyerabend. Entretanto, este é só um exemplo

de muitos outros recortes que podem e devem ser feitos por professores das matérias científicas

que pesquisam na área da História, Filosofia e Sociologia da Ciência e que têm a intenção de

propor subsídio teórico para que essa estratégia didática seja utilizada nas salas de aula do

Ensino Médio.

44 “Em nome da ‘racionalidade’ científica, o educando é obrigado a despojar-se do senso comum, da intuição, de

suas crenças mais profundas, de sua visão de mundo, das múltiplas possibilidades de apreciar o real em troca de

uma visão unilateral do mundo, a científica” (SILVA, 2016, p. 89).

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Diante disso, vamos utilizar três temas envolvendo o que chamamos de astronomia de

Galileu e que, geralmente, fazem parte dos conteúdos que são tradicionalmente45 ensinados na

disciplina de física no Ensino Médio e que, ao mesmo tempo, tem relevância histórica nos

trabalhos de Galileu e nas análises epistemológicas de Paul Feyerabend. Apesar de aparecerem

com diferentes níveis de aprofundamento nos materiais didáticos, esses três temas juntos

promovem as discussões a respeito da física terrestre e celeste de Galileu46, sendo parte

essencial do período, do final do século XVI e início do século XVII, que representa um recorte

de um período mais amplo de mudança de pensamento cosmológico, que ficou conhecido como

Revolução Copernicana.

Inicialmente vamos apresentá-los em suas versões47 de caráter ahistórico, onde Galileu

é tradicionalmente mostrado de forma caricata, e, em seguida, vamos utilizar a Filosofia da

Ciência, a partir de uma perspectiva feyerabendiana, e a obra de Galileu Galilei – Diálogo sobre

os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano48, para mostrar uma visão menos

distorcida do desenvolvimento científico que pode e deve ser suscitada na sala de aula, na

comunidade escolar e, por consequência, na sociedade como um todo.

Ademais, uma pesquisa publicada recentemente por Schivani et al. (2020), a respeito da

escolha dos livros didáticos nas escolas do Brasil (e em especial os de física), chama a atenção

que a coleção mais adotada (Bonjorno, Casemiro, Clinton e Prado – Editora FTD) em vinte e

um estados brasileiros para o triênio 2018-2020, com mais de 1,5 milhões de exemplares, possui

um enfoque tradicional com ênfase no formalismo matemático e é, inclusive, pobre em

45 O ensino de astronomia aos poucos vem sendo inserido nos conteúdos de física do ensino básico. Entretanto,

ainda predomina nas salas de aula uma ciência apresentada de forma linear e objetiva, com ênfase na reprodução

sistemática de resoluções algébricas, no protagonismo de nomes tradicionalmente difundidos na comunidade

científica, na ausência dos conflitos históricos e nos métodos científicos universais (FONSECA, 2015, p. 1).

46 Vale destacar que essa diferenciação entre as físicas “terrestre” e “celeste” de Galileu (se referindo as tentativas

de descrever e explicar os fenômenos físicos) é feita a posteriori. Na época, não seria possível fazer tal separação.

47 Como exemplo, iremos utilizar fontes do cotidiano dos professores e alunos da rede pública estadual: o livro

“Conexões com a Física” (MARTINI et al., 2016) disponível para escolha no Programa Nacional do Livro Didático

(PNLD) entre 2018 a 2020, e as páginas da internet “Brasil Escola” (SANTOS, 2018; FERNANDES, 2018) e

“Mundo Educação” (HELERBROCK, 2018; CERQUEIRA, 2018), que disponibilizam informação educacional e

que foram comumente visitadas nos sites de busca entre 2018 e 2019. Vale ressaltar que essas fontes foram

escolhidas como exemplos e que elas não correspondem à totalidade dos materiais didáticos disponível no PNLD

e na internet. O livro citado foi o material fornecido para mim e para os outros professores das matérias científicas

da escola em que leciono durante o período em que essa dissertação foi escrita, e as páginas de internet

correspondem às fontes mais buscadas pelos nossos alunos quando foram solicitados trabalhos de pesquisas,

durante este mesmo período.

48 Em sua obra mais famosa, publicada na Itália em 1632, Galileu utiliza três personagens – Salviati, Simplício e

Sagredo – que debatem a respeito dos sistemas de mundo, em defesa do Heliocentrismo. Nesta pesquisa, utilizamos

a tradução para o português de 2011.

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discussões de HFC. Os autores citam que, no próprio Guia do Livro Didático de 2018, a coleção

de Bonjorno e colaboradores apresenta que,

dentre todo o rol de atividades propostas, a principal ênfase está atribuída aos

exercícios quantitativos (...) [e que] questões socioambientais e de

sustentabilidade não ocupam lugar de destaque na coleção, já que são escassas

as propostas voltadas a discussões sociocientíficas. Essa característica limita

a exploração das relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio

Ambiente, principalmente quanto ao desenvolvimento do posicionamento

crítico dos estudantes e suas ações socioambientais (BRASIL, 2017, p. 76, 79

apud SCHIVANI et al., 2020, p. 8).

Assim, sendo o livro didático um dos principais recursos utilizados na Educação Básica,

fica-nos evidente o déficit provocado pela ausência das discussões da HFC na sala de aula.

Corpos em queda livre

O tema da queda livre é usualmente discutido no primeiro ano do Ensino Médio como

parte do conteúdo de mecânica. Apesar de se referir à física terrestre, ele está intimamente

ligado às discussões astronômicas, uma vez que, para o Heliocentrismo, era necessário construir

uma física terrestre compatível com uma Terra em movimento. Assim, é geralmente

apresentado nos livros didáticos, que a análise do movimento de corpos abandonados é uma

evidência da força gravitacional da Terra:

Todos os corpos próximos à superfície da Terra são atraídos por ela e, se nada

os impedir, cairão em sua direção. Dizemos que é a atração gravitacional da

Terra que “puxa” toda a matéria em direção ao centro do planeta (MARTINI

et al., 2016, p. 53).

Muitas vezes, também, o professor é instruído a fazer o seguinte experimento:

abandonar, ao mesmo tempo, uma borracha e uma folha de papel de uma mesma altura, e

questionar os alunos sobre quem chegou primeiro ao chão. Posteriormente, amassar bem a folha

de papel e repetir o experimento, questionando novamente os alunos sobre a diferença no tempo

entre as quedas dos dois objetos.

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A partir disso, é apresentado o filósofo grego Aristóteles e o seu estudo pioneiro a

respeito da queda dos corpos:

Por volta de 300 anos antes de Cristo, existiu um filósofo grego chamado

Aristóteles que acreditava que se abandonássemos dois corpos de massas

diferentes, de uma mesma altura, o corpo mais pesado tocaria o solo primeiro,

ou seja, o tempo de queda desses corpos seriam diferentes. Essa crença

perdurou por muitos anos sem que ninguém procurasse verificar se realmente

o que o filósofo dizia era mesmo verdade (SANTOS, 2018).

Figura 2 – Foto da Torre Inclinada de Pisa, na Itália, presente no catálogo da Detroit

Publishing Company de 1905.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4240/>. Acesso em: 29 out. 19.

Entretanto, no

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século XVII, o físico Galileu Galilei, ao introduzir o método experimental,

chegou à conclusão de que quando dois corpos de massas diferentes,

desprezando a resistência do ar, são abandonados da mesma altura, ambos

alcançam o solo no mesmo instante. Conta a história que Galileu foi até o topo

da Torre de Pisa, na Itália, e de lá realizou experimentos para comprovar sua

afirmativa sobre o movimento de queda dos corpos. Ele abandonou várias

esferas de massas diferentes e percebeu que elas atingiam o solo no mesmo

instante. Mesmo após as evidências de suas experiências, muitos dos

seguidores de Aristóteles não se convenceram, e Galileu foi alvo de

perseguições em razão de suas ideias revolucionárias (SANTOS, 2018).

A conclusão que fica evidente é que Galileu lançou a hipótese de que o ar exerce grande

influência sobre a queda de corpos, e, não havendo essa resistência, todos os corpos levariam o

mesmo tempo para atingir o solo, uma vez que o tempo de queda não dependeria da massa ou

do volume, mas, unicamente, da altura de onde foram abandonados os objetos

(HELERBROCK, 2018).

Além disso, também é apresentada uma prova empírica:

Séculos mais tarde, em 1971, quando a missão norte-americana Apollo 15

chegou à Lua, um dos astronautas foi filmado soltando um martelo de uma

das mãos e uma pena da outra, para que todos, pela televisão, pudessem

acompanhar a verificação da teoria de Galileu sobre a queda dos corpos

(MARTINI et al., 2016, p. 54).

Alguns materiais didáticos, entretanto, destacam que os experimentos de queda-livre

não foram, de fato, realizados por Galileu no alto da Torre de Pisa, e que se tratava apenas de

um “argumento”, uma vez que ele sabia que os corpos em queda sofriam influência da

resistência do ar (SILVEIRA, 2015).

Geocentrismo x Heliocentrismo

Outro tema, ligeiramente menos trabalhado que o primeiro, discute a controvérsia

histórica entre as visões geocêntrica e heliocêntrica do Universo.

O Geocentrismo é apresentado como sendo o modelo base para a maioria das

concepções de Universo criadas na Antiguidade, representando a Terra imóvel no centro do

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Universo e esferas celestes que delimitavam as órbitas dos astros que giravam em torno dela

(MARTINI et al., 2016, p. 147).

A discussão principal reside na defesa desse modelo pela Igreja Católica, por mais de

1.400 anos, por se basear em aspectos de passagens bíblicas, quando, no século XVI, um

diácono chamado Nicolau Copérnico sistematiza uma nova teoria que se contrapunha ao

modelo geocêntrico:

Nicolau Copérnico (1473 - 1543), considerado o fundador da astronomia

moderna, (...) afirmava que a Terra e os demais planetas se moviam ao redor

de um ponto vizinho ao Sol, sendo, este, o verdadeiro centro do Sistema Solar.

A alternância entre dias e noites é uma consequência do movimento que a

Terra realiza sobre seu próprio eixo, denominado movimento de rotação.

Rapidamente, a Igreja Católica se opôs à teoria heliocêntrica, e Copérnico só

autorizou a divulgação de seus dados matemáticos que comprovavam a teoria

após sua morte, pois temia ser condenado por heresia pela Igreja Católica

(CERQUEIRA, 2018).

Figura 3 – O Julgamento de Galileu, Roma, 1633.

Fonte: Blog Pensar Refletir e Sentir. Disponível em:

<pensarreflectiresentir.blogspot.com/2016/06/efemerides.html>. Acesso em: 29 out. 19.

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A Igreja, então, é tomada (equivocadamente, como veremos) como vilã, como símbolo

da autoridade da época que exerce opressão contra os cientistas que trazem a Verdade. E, assim,

outro personagem surge para contrariá-la:

Posteriormente, Galileu Galilei, durante o século XVII, reforçou a teoria

heliocêntrica através de observações com lunetas holandesas. Como

consequência de seu “atrevimento”, Galileu foi julgado pelo tribunal da

Inquisição, tendo como opção negar sua teoria ou ser queimado na fogueira

da Inquisição. Sem muitas alternativas, sua teoria foi negada (CERQUEIRA,

2018).

O telescópio como prova definitiva do céu

O terceiro e último tema de nossa análise não é um conteúdo disposto no currículo de

física, mas uma afirmação implícita neles que supostamente levou Galileu à vitória.

É bastante comum encontramos nos livros didáticos que, ao fazer uma viagem a Veneza,

Galileu conheceu um instrumento óptico que possuía o poder de aproximar objetos que estavam

distantes e o utilizou para observar o céu, o que levou a uma verdadeira revolução científica e

cosmológica:

Figura 4 – Galileu e o telescópio

Fonte: Made for minds. Disponível em: <dw.com/pt-br/nascido-h%C3%A1-450-anos-galileu-galilei-

transformou-o-conceito-de-mundo/a-17438676>. Acesso em: 29 out. 19.

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Ele pôde observar características dos planetas que nunca haviam sido vistas.

Galileu percebeu que havia satélites girando em torno de Júpiter, tal qual a

Lua em torno da Terra. Verificou também que Vênus apresentava fases em

razão dos seus movimentos, supondo que esse planeta girava ao redor do Sol.

Observou que a superfície da Lua era cheia de buracos, planícies, vales e

montanhas, mostrando que os corpos celestes não eram esferas perfeitas, como

supunha Aristóteles; enfim, trouxe grandes contribuições aos conhecimentos

astronômicos da época, apesar da oposição da Igreja Católica, que passou a

persegui-lo (MARTINI et al., 2016, p. 148-149).

Figura 5 – As luas de Júpiter no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos,

Pádua, Itália, 1610.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.

E, ainda, há nessas discussões uma premissa supostamente verdadeira – a veracidade

das imagens produzidas pelo telescópio:

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Essas e outras constatações só foram possíveis em virtude do uso que Galileu

fez do telescópio (...). [Estes objetos] revolucionaram a ciência porque

possibilitaram potencializar a observação do olho humano. Os primeiros

resultados das pesquisas de Galileu com o uso do telescópio foram publicados

já em 1610 com o título de “O mensageiro estelar”. Em 1613, ele publicou a

“Carta sobre manchas solares”, onde deixou explícitas as primeiras

considerações propriamente científicas a favor da teoria heliocêntrica de

Copérnico. Além disso, um ponto importante a ser notado é que, com o uso

do telescópio por Galileu, a ciência também passou a existir intimamente

conectada com a “técnica”, isto é, com a capacidade do ser humano de ampliar

os seus sentidos por meio de inventos, de instrumentos e, com eles, descrever

e intervir na natureza (FERNANDES, 2018).

Figura 6 – Ilustração de Galileu Galilei publicada no livro Saggiatore (O Ensaísta), dedicado

ao papa Urbano VIII, Roma, 1623.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4184/>. Acesso em: 29 out. 19.

O italiano Galileu Galilei é provavelmente o astrônomo mais famoso de todos os

tempos. Suas “descobertas” são associadas principalmente à defesa de um sistema cosmológico

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heliocêntrico, à liberdade de pensamento em contraposição ao domínio social (e científico) da

Igreja e à utilização do telescópio como ferramenta de “comprovação” científico-astronômica.

Como vimos anteriormente, os embates entre Galileu e seus adversários geralmente

representaram a luta de um “pensamento revolucionário de um gênio” contra o “pensamento

conservador dos ignorantes membros da Igreja”. Mas será que a chamada Revolução

Copernicana pode ser resumida de forma tão simplória? E será que a concepção milenar da

Terra como centro do Universo (o Geocentrismo) não tinha bons argumentos em seu favor?

(SILVA, 2006, p. 20).

Para Paul Feyerabend (2011a, p. 52-53), a Revolução Copernicana é uma sequência de

eventos complexos que não envolvem apenas Galileu, mas a situação na Cosmologia, na Física,

na Astronomia, nas leis, na Óptica e na Teologia. Em suas palavras:

(...) Muitas diferentes personalidades, profissões e grupos guiados por crenças

diferentes e sujeitos a restrições diferentes contribuíram para o processo que

está agora sendo descrito, um tanto sumariamente, como a “Revolução

Copernicana” (FEYERABEND, 2011b, p. 182).

Figura 7 – O modelo geocêntrico de Ptolomeu.

Fonte: Essas e Outras. Disponível em: <essaseoutras.com.br/geocentrismo-heliocentrismo-e-big-bang-teorias-

sobre-o-universo/>. Acesso em: 25 mai. 2020.

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Segundo o Geocentrismo, uma visão de mundo predominante na Antiguidade que foi

defendida pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), o Universo era dividido em duas

partes: o mundo sublunar (do centro da Terra até antes da órbita da Lua) e o mundo supralunar

(que envolvia a Lua e tudo que havia após ela). A Terra estava no centro de tudo, imóvel, e

rodeada pelas esferas celestes, incluindo as estrelas fixas. Essas duas partes do Universo eram

regidas por leis diferentes: a primeira era composta pelos elementos terra, água, ar e fogo (nessa

ordem), local de mudança, pecado, destruição e morte; e a segunda parte era uma região perfeita

e eterna, delimitada pelas estrelas fixas, donde giravam os planetas (incluindo a Lua e o Sol),

além da qual não havia nada, nem lugar, nem vazio, movida pelo motor primário que criou tudo

que existe e gerou o movimento circular e uniforme de todos os astros49. Esse movimento

aproxima-se do deslocamento aparente dos astros. As estrelas parecem

transitar uniformemente em círculos ao redor da Terra. O Sol também possui

uma trajetória circular, embora sua translação não seja uniforme. O trânsito

dos planetas é cíclico, porém mais complexo. Para contornar essas

“anomalias”, os astrônomos antigos conceberam uma solução engenhosa:

decompor os movimentos complexos, observados no céu, em movimentos

mais simples, de natureza circular e uniforme. Nasceram assim os sistemas de

ciclos e epiciclos [de Hiparco de Nicéia (190-120 a.C.) e de Ptolomeu (90-168

d.C.)] (SILVA, 2006, p. 22-23).

Figura 8 – Equante, epiciclos e excêntrico adotados pela astronomia grega

Fonte: DAMASIO, 2011, p. 3602-3.

49 “A origem dessa concepção é atribuída a Platão. Para ele os corpos celestes e seus movimentos eram perfeitos.

E só o movimento circular uniforme teria o atributo da perfeição, uma vez que é sempre igual a si mesmo, fechado

sobre si mesmo, sem início nem fim” (SILVA, 2006, p. 22).

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No século XVI, o presbítero polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) propôs um modelo que

retirava a Terra do centro do Universo e a substituía pelo Sol. Em seu livro De Revolutionibus

Orbium Coelestium (Sobre as Revoluções das Esferas Celestes), publicado no ano de sua morte,

Copérnico elaborou uma teoria matemática que tentava resolver as anomalias da cosmovisão

aristotélica, afirmando que apesar dos movimentos dos astros serem circulares, uniformes e

eternos, eles não giram em torno da Terra, mas em relação a um ponto próximo ao Sol; que a

Terra possuía um movimento de rotação diária (responsável por causar os dias e as noites) e um

movimento de translação anual.

Copérnico fazia uma distinção entre movimento aparente e movimento real e, para ele,

a função da astronomia era explicar o movimento real a partir do movimento aparente. Ele

acreditava que o movimento celestial real era um movimento circular uniforme ao redor de um

centro. Inicialmente, ele tentou explicar essas desigualdades (entre os movimentos aparente e

real) eliminando excêntricos e equantes, e os substituindo por dois epiciclos para cada planeta

(Figura 8). Faltava a ele, então, explicar a anomalia sinódica (das estações do ano e do

movimento retrógrado planetário). Ao tentar fazer isso, Copérnico percebeu que essa anomalia

sempre concordava com a posição do Sol e poderia ser eliminada caso fosse o Sol, e não a

Terra, o centro do Universo (FEYERABEND, 2011a, p. 62-64).

Figura 9 – Representação dos epiciclos de Copérnico, publicada em sua obra De

Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/3164/>. Acesso em: 29 out. 19.

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“Copérnico era um cristão fiel e um bom aristotélico; tentou restaurar o movimento

circular centrado à proeminência que certa vez tinha tido, postulou uma Terra em movimento,

rearranjou as órbitas planetárias e deu valores absolutos para seus diâmetros” (FEYERABEND,

2011b, p. 181). Ele caracterizou o movimento retrógrado dos planetas (que se moviam para

frente e então invertiam a sua direção) como um movimento aparente, e “auxiliado pelo fato

de que [isso estava] em concordância com a posição do Sol”, interpretou que esse movimento

aparente era “criado por um movimento real (e, é claro, circular) por parte da Terra” (ibidem,

p. 187).

Assim, ele afirma o movimento da Terra mesmo

em conflito com a Cosmologia, com a Física e com a Teologia. (...) Eliminava

o conflito com a Teologia por meio de um artifício familiar: a palavra da

Escritura nem sempre é entendida literalmente. [E] com a Física, ele

solucionava o conflito, propondo sua própria teoria do movimento. (...) [Seu]

argumento é rodeado de referências a crenças antigas, tais como o Hermetismo

e a ideia do papel excepcional do Sol, (...) ele é convincente apenas para

aqueles que preferem a harmonia matemática a um acordo com os aspectos

qualitativos da natureza, ou [seja, para] aqueles que tendem mais para uma

interpretação platônica do que para uma interpretação aristotélica da natureza.

(...) E como essas expectativas variam de um grupo para o outro, o argumento

inteiro estava engastado de um contexto que só pode ser chamado de

“subjetivo” (FEYERABEND, 2011a, p. 64-65).

Apesar de belo, pela simplicidade50, o modelo heliocêntrico era contraditório com a

teoria aristotélica dos movimentos naturais do universo, pois não explicava o movimento dos

corpos aqui na Terra, contrariando, inclusive, os experimentos de queda-livre (o argumento da

torre), o que era satisfatoriamente51 explicado pela teoria do lugar natural (SILVA, 2006, p.

50 Feyerabend (2011a, p. 60-61), ao discutir sobre as teorias do conhecimento que dialogam sobre a transição de

Ptolomeu/Aristóteles para Copérnico/Galileu, afirma que o argumento da simplicidade nem foi importante na

época e nem é, na prática, também hoje em dia: “(...) apenas poucas pessoas aceitariam uma teoria em conflito

com a conservação de energia apenas por sua simplicidade. Por que os astrônomos do século XVI aceitariam uma

teoria física e teologicamente impossível apenas em virtude de sua simplicidade?”.

51 Oliveira (2011, p. 45), baseado no que disse Feyerabend (2011b, p. 108-109), enfatiza que: “Tradicionalmente,

o comportamento da pedra em relação à torre, tal como é observado, era para [os] geostáticos uma prova da

imobilidade da Terra. A explicação geostática estava baseada na ideia de que a pedra se comportava do modo dito

por dois princípios básicos: o pressuposto epistemológico do movimento absoluto, no qual o movimento é sempre

percebido; e o princípio dinâmico aristotélico de que objetos que não sofrem interferência assumem seu

movimento natural e, assim, buscam seu lugar de origem (...) [como] uma pedra que após ter sido laçada para

cima, busca retornar para o centro da Terra. Desta maneira, (...) é correto afirmar que [a pedra], ao iniciar seu

movimento de descida (após o lançamento), tem uma propensão natural a ir para baixo, mas não tem a mesma

propensão para mover-se circularmente em volta da Terra” (grifos do autor).

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23); e ainda assemelhava a Terra aos outros planetas (causando tanto um problema físico quanto

antropocêntrico).

Figura 10 – Representação do sistema heliocêntrico de Copérnico, publicada em sua obra De

Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/3164/>. Acesso em: 29 out. 19.

Feyerabend (2011a, p. 58) discute sobre os três principais argumentos contrários ao

movimento da Terra: i) o argumento da torre, baseado na teoria do movimento aristotélico, foi

confirmado pela experiência de queda livre; ii) a paralaxe, proposta por Aristóteles, afirmava

que se a Terra girasse ao redor do Sol haveria vestígios desse movimento pelas estrelas,

entretanto nunca foi encontrado nada; e iii) o movimento da Terra estava em conflito com o que

era interpretado pela Sagrada Escritura.

Entretanto, a partir do final do século XVI, as certezas acerca do universo supralunar

começaram a ser questionadas pelas observações astronômicas. Nesse período, vários

cometas52 puderam ser vistos no céu. Os aristotélicos acreditavam que se tratava de um

52 Silva (2006) apresenta uma discussão completa a respeito da importância da observação dos cometas nesse

período. Ela explica, com uma grande riqueza de detalhes históricos, como Galileu, sem realizar qualquer

observação astronômica, se opôs as “provas científicas” que afirmavam a natureza supralunar dos cometas, se

mantendo fiel a ideia aristotélica da perfeição do movimento circular.

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fenômeno atmosférico (sublunar), uma vez que os cometas apareciam, aumentavam, diminuíam

de tamanho e depois desapareciam do céu. Vários astrônomos tentaram entender a natureza

desses astros, buscando determinar a distância entre eles e a Terra, dentre eles o dinamarquês

Tycho Brahe (1546-1601), que projetou vários instrumentos para calcular com precisão as

órbitas planetárias e concluiu (utilizando as medidas da paralaxe dos cometas e comparando-as

com as da Lua) que os cometas provavelmente se movimentavam pelo universo supralunar

(SILVA, 2006, p. 25).

Além disso, o século XVI envolveu a todos (da Europa) com a magnífica recente

descoberta das Américas. Essa descoberta colocou em xeque as fronteiras da cosmologia e da

teologia, e “fez suspeitar da existência também de uma América do conhecimento e eles

interpretaram cada dificuldade como evidência para esse novo continente” (FEYERABEND,

2011a, p. 66, grifo nosso), sobretudo com a descoberta de Tycho Brahe de uma nova estrela em

1572, e do movimento dos cometas “através das esferas celestiais, [que] ganhou uma

importância que não teria tido se isso não tivesse ocorrido” (ibidem, p. 67).

Assim, como fruto dessa grande revolução (no sentido literal da palavra), surge o

personagem histórico Galileu Galilei...

A interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos

Os sentidos nos mostram que

corpos pesados caem do alto para baixo por uma linha reta e perpendicular à

superfície da Terra; argumento considerado incontestável de que a Terra esteja

imóvel: porque, quando ela tivesse a rotação diurna [como proposto por

Copérnico no século XVI], uma torre, de cujo cimo se deixasse cair uma

pedra, sendo transportada pela rotação da Terra, no tempo em que a pedra

gasta para a sua descida, afastar-se-ia muitas centenas de braças para o oriente,

e por tanto espaço deveria a pedra percutir na Terra afastada da base da torre

(GALILEI, 2011, p. 208).

Segundo Feyerabend (2011b, p. 86, 90), Galileu desarmou este argumento afirmando

que os sentidos isolados, sem o auxílio da razão, podem não nos dar uma descrição verdadeira

da natureza:

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Salviati – (...) acerca daquilo que nos é primeiramente representado pelos

[nossos] sentidos, que nos podem facilmente enganar; (...) esse movimento

dos graves descendentes é simplesmente reto e não de outro tipo, (...) porque,

desse modo, dá sinal de acreditar que aqueles que dizem que tal movimento

não é de outro modo reto mas, ao contrário, circular, parecem ver

sensivelmente aquela pedra mover-se em arco, já que ele convida mais seus

sentidos que sua razão para elucidar esse efeito; o que não é verdade, Sr.

Simplício, porque, assim como eu, (...) jamais vi, nem me aconteceu de ver,

cair aquela pedra de outro modo que perpendicularmente, assim também

acredito que, aos olhos de todos os outros, se represente o mesmo. Será

melhor, portanto, que, deixada de lado a aparência, com a qual todos estamos

de acordo, esforcemo-nos com o raciocínio, ou para confirmar a realidade

daquela, ou para descobrir a sua falácia (GALILEI, 2011, p. 335).

A ideia de Galileu consiste em substituir a verdade apreciada pelos sentidos53 por uma

nova linguagem observacional, altamente abstrata e contra-indutiva54, e, até então,

parcialmente não natural:

É [também] verdadeiro que estando em movimento a Terra, o movimento da

pedra, ao cair, terá sido realmente um traço comprido com muitas centenas e

até mesmo com muitos milhares de braças, e se tivesse podido traçar numa

área estável ou outra superfície o traço do seu curso, teria deixado uma linha

transversal compridíssima; mas aquela parte de todo esse movimento, que é

comum à pedra, à torre e a nós, fica para nós insensível e como se não fosse,

e somente é observável aquela parte da qual nem a torre nem nós somos

partícipes, que é afinal aquele movimento com o qual a pedra, caindo, mede

a torre (GALILEI, 2011, p. 253, grifo nosso).

53 “(...) de acordo com o pensamento da época, a imobilidade terrestre conseguia corroboração e força por meio

de: o argumento da torre e o deslocamento da pedra; ou então do visível deslocamento do Sol; ou até mesmo

porque as pessoas não saíam voando da superfície terrestre em direção ao espaço como consequência de qualquer

movimento rotatório que, no caso de que existisse, acarretaria” (OLIVEIRA, 2011, p. 47-48).

54 Apesar de aparentar num primeiro momento, “Feyerabend não critica Galileu por este usar a contra-indução.

Critica-o, no entanto, por este, segundo ele, ter escolhido tal procedimento contra indutivo e ainda considerar suas

concepções como verdade absoluta” (LOPES, 2016, p. 32); Feyerabend “está preocupado (...) em expor as falhas

do racionalismo e suas consequências para a ciência; está preocupado em mostrar o papel da história no processo

concreto da atividade científica e, portanto, [evidenciar] uma metodologia que não desconsidere a importância da

contra-indução enquanto uma necessidade ao progresso da ciência e do conhecimento” (OLIVEIRA, 2011, p. 52).

Nas palavras do próprio Feyerabend (2010, p. 339): “Deixe-me repetir que não critico os procedimentos de Galileu

(...), mas sim aquelas teorias filosóficas que, se aplicadas com um melhor conhecimento da história, teriam que

rejeitar esses procedimentos como ‘irracionais’. Galileu era irracional em termos dessas teorias – mas foi também

um dos maiores cientistas-filósofos que já existiu” (grifo nosso).

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Feyerabend cita que a concepção copernicana não estava

de acordo com “os fatos”. Do ponto de vista desses “fatos”, a ideia do

movimento da Terra é bizarra, absurda e obviamente falsa, para mencionar

apenas algumas das expressões que foram frequentemente usadas na época e

as quais ainda são ouvidas sempre que profissionais retrógrados se defrontam

com uma teoria nova e contrária aos fatos (FEYERABEND, 2011b, p. 93).

Uma vez que os argumentos de Galileu podem não ser suficientes, ele faz uso da

propaganda e de truques psicológicos (com sucesso!) para convencer a todos do movimento

da Terra55. “A experiência na qual Galileu deseja fundamentar a concepção copernicana não

passa do resultado de sua própria imaginação fértil: ela foi inventada” (FEYERABEND, 2011b,

p. 99, grifo do autor). Galileu, entretanto, anseia que essas ideias sejam “admitid[a]s por todos

e que precisam apenas ser trazid[a]s à nossa atenção para que apareçam como a mais óbvia

expressão da verdade” (ibidem, p. 99).

Notemos como Galileu argumenta a respeito das ilusões fornecidas pelos nossos

sentidos:

Salviati – Imaginai agora estar num navio e ter fixado o olho na ponta do

mastro: acreditais que, porque o navio se movesse também velocissimamente,

ser-vos-ia necessário mover o olho para manter a vista sempre na ponta do

mastro e seguir o seu movimento?

Simplício – Tenho certeza de que não seria preciso fazer nenhuma mudança,

e que não somente a vista, mas, quando eu tivesse ajustado a mira de um

arcabuz, qualquer que fosse o movimento do navio, jamais seria preciso movê-

la um só fio de cabelo para mantê-la ajustada.

Salviati – E isso acontece porque o movimento que o navio confere ao mastro

confere-o também a vós e a vosso olho, de modo que não vos convém movê-

lo para olhar a ponta do mastro; e, consequentemente, ela aparece-vos

imóvel56 (GALILEI, 2011, p. 328-329).

(...) outros podem facilmente enganar-se com a simples aparência, ou

queremos dizer, representação dos sentidos. E o fenômeno é o de dar a

55 “Segundo a epistemologia feyerabendiana, a cosmologia e razão aristotélicas estavam intactas, conseguiam

explicar perfeitamente o mundo. A defesa da cosmologia copernicana era desarrazoada, pois se defrontava

diretamente com uma gama de fatos bem estabelecidos, provenientes da razão vigente. A revolução copernicana

só ocorreu devido à persistência e paixão de Galileu pelo copernicanismo e devido aos incansáveis esforços

empreendidos por ele, através da propaganda, em defendê-lo” (SILVA, 2016, p. 42-43).

56 A inspiração de Galileu para o que hoje chamamos de argumento da torre provavelmente surgiu da observação

do mastro dos navios. Entretanto, não se sabe se esses experimentos foram realmente feitos por Galileu ou seus

contemporâneos, tanto o do mastro quanto o da torre (GALILEI, 2011, p. 643, nota 77).

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impressão àqueles que de noite caminham por uma estrada de estarem sendo

seguidos pela Lua com idêntico passo, enquanto a veem rasar as ponteiras dos

telhados sobre os quais ela lhes aparece, exatamente daquela maneira que faria

uma gata que, realmente caminhando sobre as telhas, se mantivesse atrás

deles: aparência de que, quando não interviesse o raciocínio, muito

manifestamente enganar-se-ia a visão (ibidem, p. 336).

Como diria Feyerabend (2011b, p. 102): “Isso é, de fato, uma forte persuasão”.

Galileu argumentava que, tanto do ponto de vista aristotélico quanto do copernicano, a

pedra poderia ser vista cair ao pé da torre, de forma que a experiência observacional, confirmada

pelos nossos sentidos, por si só, não demonstrava nada (OLIVEIRA, 2011, p. 44). Logo, fica

claro que “o problema não se presta facilmente a uma solução experimental. Experimentos

foram realizados, mas ficaram longe de ser concludentes” (FEYERABEND, 1977, p. 137).

Essa explicação, a respeito da percepção do movimento, baseia-se na afirmação de que

os “nossos sentidos só notam o movimento relativo57 e são insensíveis a um movimento que os

objetos tenham em comum” (FEYERABEND, 2011b, p. 108, grifo do autor). Assim,

argumenta Salviati:

Fechai-vos com algum amigo no maior compartimento existente sob a coberta

de algum grande navio, e fazei que aí existam moscas, borboletas e

semelhantes animaizinhos voadores; seja também colocado aí um grande

recipiente com água, contendo pequenos peixes; suspenda-se ainda um balde,

que gota a gota verse água em outro recipiente de boca estreita, que esteja

colocado por baixo: e, estando em repouso o navio, observai diligentemente

como aqueles animaizinhos voadores com igual velocidade vão para todas as

partes do ambiente; ver-se-ão os peixes nadar indiferentemente para todos os

lados; as gotas cadentes entrarem todas no vaso posto embaixo; e vós,

lançando alguma coisa para o amigo, não a deveis lançar com mais força para

esta que para aquela parte, quando as distâncias sejam iguais. [Então,] fazei

mover o navio com quanta velocidade (uniforme) desejardes: não

reconhecereis uma mínima mudança em todos os mencionados efeitos, nem

de nenhum deles podereis compreender se o navio caminha ou está parado:

(...) jogando alguma coisa ao companheiro, não será necessário atirá-la com

mais força para alcançá-lo, se ele estiver para a proa e vós para a popa, que se

estivésseis colocados ao contrário; e as gotas continuarão a cair como antes

no recipiente inferior, sem que nenhuma caia em direção à popa, ainda que,

enquanto a gota está no ar, o navio navegue muitos palmos; os peixes na sua

água nadarão sem maior esforço tanto para a parte precedente quanto para a

parte subsequente do vaso, e com a mesma facilidade chegarão ao alimento

colocado em qualquer lugar da borda do recipiente; e finalmente as borboletas

e as moscas continuarão seus voos indiferentemente para todas as partes, e

57 Para Feyerabend (2011b, p. 103), o princípio da relatividade do movimento é a essência do artifício de Galileu.

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nunca acontecerá que se concentrem na parte endereçada para a popa, como

se estivessem cansadas de acompanhar o curso veloz do navio, do qual seriam

separadas, por manterem-se no ar por longo tempo; e se queimando alguma

lágrima de incenso produzísseis um pouco de fumaça, veríeis que ela se eleva

para o alto e como uma pequena nuvem aí se mantém, movendo-se

indiferentemente não mais para esta que para aquela parte (GALILEI, 2011,

p. 267-268).

Resta a ele, então, explicar por que a pedra acompanha a torre e não é deixada para

trás.

Desde a época de Aristóteles, acreditava-se que os corpos que não sofriam interação

física permaneceriam em repouso, isto é, manteriam sua posição. Assim, seria necessário

empurrar um objeto para que ele pudesse se mover. Dessa forma, o fato da pedra tocar o solo

na base da torre (sem ter sofrido interferência durante a queda) significava/provava que a Terra

não estava em movimento (FEYERABEND, 2011b, p. 109).

Então, era necessário supor algo contra-indutivo que não se baseasse exclusivamente

em nossos sentidos, mas também, e principalmente, na razão,

de maneira tal que o movimento da Terra possa continuar a ser afirmado. (...)

O princípio na inércia circular fornece a solução requerida: um objeto que se

move ao redor do centro da Terra com certa velocidade angular em uma esfera

livre de atrito continuará a mover-se para sempre com essa mesma velocidade

angular (FEYERABEND, 2011b, p. 109, grifo do autor).

Logo, tanto a pedra quanto a torre estão se movendo junto com a Terra, e ela, a pedra,

chegará ao solo sem se deslocar da torre.

Simplício – Por meio dos sentidos, que nos asseguram que aquela torre é reta

e perpendicular e mostram que aquela pedra, ao cair, vem rasando a torre, sem

inclinar-se um só cabelo para esta ou para aquela parte, e bater exatamente ao

pé do lugar de onde foi largada.

Salviati – Mas se por acaso o globo terrestre se movesse circularmente, e,

consequentemente, levasse consigo também a torre, e que, de qualquer modo,

se visse a pedra ao cair vir rasando o fio da torre, qual deveria ser o seu

movimento?

Simplício – Seria preciso dizer nesse caso antes “os seus movimentos”; porque

um seria aquele com o qual viria do alto para baixo, e deveria possuir um outro

para acompanhar o curso da torre.

Salviati – Seu movimento seria, portanto, composto de dois, ou seja, daquele

com o qual ela mede a torre, e do outro com o qual ela a segue: (movimento)

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composto do qual resultaria que a pedra não mais descreveria aquela simples

linha reta e perpendicular, mas uma transversal, e talvez não reta (GALILEI,

2011, p. 221).

Feyerabend (FEYERABEND, 2011b, p. 106, 109) afirma que o movimento aparente da

pedra em queda-livre, combinado com o princípio da relatividade e com o princípio da inércia

circular transforma o argumento que contradiz Copérnico em argumento que o confirma:

A explicação de Galileu do movimento transforma o argumento da torre de

uma refutação de Copérnico em um exemplo confirmador. (...) A teoria do

movimento de Aristóteles é coerente e foi confirmada em alto grau. [E] o que

foi que Galileu fez? Ele substituiu essa teoria complexa e sofisticada, que já

continha a distinção entre as leis da inércia (elas descrevem o que ocorre

quando nenhuma força está atuando) e as leis das forças (elas descrevem como

as forças influenciam o movimento) por sua própria lei da inércia, à qual

faltava [apenas] corroboração (FEYERABEND, 2010, p. 339-341).

Nas palavras do próprio Galileu:

O mesmo experimento que, à primeira vista, parecia mostrar uma coisa, ao ser

examinado mais cuidadosamente, assegura-nos do contrário (GALILEI, 1958,

p. 164 apud FEYERABEND, 2011b, p. 103, nota 2).

Sua principal alegação consiste na defesa de Salviati do argumento pelo qual uma pedra

abandonada do alto do mastro de um navio, que se move com velocidade constante, não ficaria

para trás (como acreditara Simplício), mas tocaria o chão do barco junto ao pé do mastro, da

mesma forma que o faria caso o navio estivesse parado:

Salviati – (…) Afirma, portanto, Aristóteles, que um argumento certíssimo da

imobilidade da Terra é vermos os projécteis subirem perpendicularmente e

retornarem, pela mesma linha, ao mesmo lugar de onde foram atirados, e isso,

ainda que o movimento fosse altíssimo; o que não poderia acontecer quando

a Terra se movesse, porque no tempo em que o projéctil se movesse para cima

e para baixo, separado da Terra, o lugar onde teve início o movimento do

projéctil afastar-se-ia, devido à rotação da Terra (GALILEI, 2011, p. 220).

Simplício – [Assim,] existe a experiência tão apropriada da pedra que se deixa

cair do alto do mastro do navio, a qual, quando o navio está parado, cai ao pé

do mastro, mas, quando o navio se move, cai tão longe desse mesmo término,

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quanto é o espaço que o navio percorreu durante o tempo da queda da pedra;

o que não são poucas braças, se o movimento do navio é veloz (ibidem, p.

223).

Salviati – Pois é evidentíssimo que o movimento do navio, assim como não é

o seu movimento natural, assim também é acidental para todas as coisas que

estão nele, pelo que não causa espanto que aquela pedra, que era mantida no

cimo do mastro, deixada em liberdade, caia para baixo [junto ao pé do mastro.

Além do mais,] a rotação diurna é posta como movimento próprio e natural

do globo terrestre e, consequentemente, de todas as suas partes; (...) e, por

isso, aquela pedra que está no alto da torre tem, como um instinto primário,

de girar em torno do centro de seu todo em vinte e quatro horas, e este talento

natural ela o exercita eternamente, em qualquer estado em que esteja posta

(ibidem, p. 223-224).

Figura 11 – Rascunhos do movimento circular no manuscrito de Galileu sobre os Planetas

Medicianos, Pádua, Itália, 1610.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.

Galileu generaliza suas ideias contra-indutivas, a respeito da queda dos corpos, tanto

para assuntos terrestres quanto para os celestes, a fim de confirmar o movimento da Terra.

Apesar disso, a sua dinâmica não se ajustava aos epiciclos, que ainda ocorriam na teoria de

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Copérnico, e nem às elipses propostas por Kepler58. Mas, segundo Feyerabend (2011b, p. 113,

nota 1), é refutada pelas duas teorias. Ademais, “Galileu considera essa lei um ingrediente

essencial do ponto de vista copernicano e tenta remover do espaço interplanetário corpos como

cometas, cujo movimento, obviamente, não é circular”.

Simplício – Então, não fizestes cem provas e nem mesmo uma, e afirmais tão

francamente que ela é certa? Retorno à minha incredulidade e à mesma certeza

de que a experiência tenha sido feita pelos principais autores que dela se

servem, e que ela mostre o que eles afirmam.

Salviati – Eu, sem experiência, estou certo de que o efeito seguir-se-á como

vos digo, porque assim é necessário que siga; e acrescento que vós mesmos

sabeis muito bem que não pode acontecer diferentemente, ainda que finjais,

ou simuleis fingir não o saber (GALILEI, 2011, p. 226, grifo nosso).

Assim, Galileu introduz o princípio da inércia circular não por referência a um

experimento ou uma observação, mas por uma afirmação muito mais especulativa, e é por meio

disso que é alcançada a transição de uma cosmologia geostática para o ponto de vista

copernicano (FEYERABEND, 2011b, p. 110-111).

A Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria copernicana

Segundo Galileu,

todos os fenômenos terrenos, pelos quais se mantêm comumente a

estabilidade da Terra e a mobilidade do Sol e do firmamento, devem aparecer-

nos feitos sob as mesmas aparências, quando se supõe a mobilidade da Terra

e a estabilidade daqueles (GALILEI, 2011, p. 493).

58 Kepler tentava justificar as incompreensões sob o plano científico de Galileu, no tocante à astronomia, as razões

defensivas e polêmicas a respeito de seu livro, o Saggiarore, pelo fato de que Galileu precisava se defender a

qualquer custo de seus adversários. Para Kepler, independente das fraquezas e dos argumentos, a importância de

sua obra estava em novos raciocínios e experiências, a respeito do movimento dos corpos, inclusive dos cometas.

Galileu se envolve na polêmica sobre a natureza e o movimento dos cometas por uma boa razão: o movimento

não-circular dos cometas desacreditaria Copérnico. “Um corpo celeste dotado de movimento não circular era uma

ameaça para o sistema copernicano, uma hipótese não prevista e por demais perigosa. Assim, sem observações e

sem cálculos” – Galileu não vira os cometas – ele sustenta uma teoria alternativa (a de que os cometas eram

fenômenos atmosféricos, negando sua realidade física e comparando-os aos arco-íris ou reflexos de um pôr-do-sol

sobre a superfície do mar) daquela teoria mais moderna e sofisticada de Tycho Brahe e do padre Grassi (jesuíta e

matemático do Colégio Romano) (REDONDI, 1991, p. 38-39).

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Desde a época de Platão (aproximadamente 400 anos a.C.) já havia expectativa que as

estrelas seriam divinas e, assim, deveriam se comportar de maneira ordenada59 no céu

(FEYERABEND, 2011b, p. 200). No entanto, no final do século XVI, embasados com o

Heliocentrismo, astrônomos descobriram “que os cometas se movimentavam livremente

através do espaço anteriormente reservado às estrelas e planetas imutáveis” (KUHN, 1998, p.

151-152). A teoria copernicana não era a única e nem a mais geral visão cosmológica de sua

época, seu sucesso e coerência não significavam, por si só, uma correspondência à realidade

(FEYERABEND, 2010, p. 299).

Figura 12 – Representação contendo a explicação do movimento aparente dos planetas a partir

da perspectiva heliocêntrica, contida no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos,

Pádua, Itália, 1610.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.

59 “Por outro [lado], não se encontra nenhuma regularidade facilmente discernível. Os planetas, para todos os

efeitos, movem-se de maneira bastante caótica” (FEYERABEND, 2011b, p. 200-201).

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Isso fica claro quando analisamos os escritos de Galileu, e ele mesmo afirma que os

argumentos a respeito da imobilidade da Terra são muito coerentes e eficazes, enquanto que,

os argumentos contrários, e com poucos adeptos, não estão de acordo com os sentidos:

Salviati – (...) Mas o meu espanto, Sr. Sagredo, é muito diferente do vosso:

vós vos espantais que tão poucos sejam seguidores da opinião dos pitagóricos

[a respeito do movimento da Terra]; e eu fico estupefato de que se tenha até

aqui encontrado quem a tenha abraçado e seguido, nem posso admirar

suficientemente a eminência do engenho daqueles que a receberam e a

consideraram verdadeira, e com a vivacidade de seu intelecto fizeram tal força

aos próprios sentidos, que tenham podido antepor o que lhes ditava o discurso

ao que lhes mostravam as experiências sensíveis abertamente contrárias. Que

as razões contra a revolução diurna da Terra, já examinadas por vós, tenham

grandíssima aparência, já o vimos, e terem sido consideradas como

concludentíssimas pelos ptolomaicos, aristotélicos e todos os seus seguidores,

é um argumento muito forte de sua eficácia (GALILEI, 2011, p. 410).

Apesar disso, Galileu

exigia que as ideias dos astrônomos fizessem parte do conhecimento público.

(...) Galileu não pedia simplesmente a liberdade para publicar seus resultados;

ele queria impô-los aos demais60. (...) [pois] presumia que os métodos

especiais e muito restritos dos astrônomos (...) eram a maneira correta de

acessar a Verdade e a Realidade (FEYERABEND, 2010, p. 297).

Feyerabend argumenta que, nesse período e até o século XIX, os cientistas utilizavam a

bíblia para respaldar as ideias científicas:

No século XVI, a concordância com a palavra de Deus como estava contida

na Escritura Sagrada era uma condição-limite importante e aceita

universalmente da pesquisa física. Era um padrão comparável com o padrão

“moderno” da precisão experimental (FEYERABEND, 2011a, p. 57).

Esse pressuposto, defendido por grandes cientistas como Copérnico, Kepler e Newton,

é baseado no fato das Escrituras serem “uma importante condição delimitadora da existência

60 O argumento de Feyerabend (2010, p. 297) segue afirmando que nesse aspecto Galileu “era tão atrevido e

totalitário quanto muitos dos profetas modernos da ciência – e tão desinformado quanto eles”.

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humana e, por tanto, da pesquisa” (FEYERABEND, 2011b, p. 174). Segundo Isaac Newton,

por exemplo, a pesquisa científica deve se basear em duas fontes: as Obras de Deus (o

magnífico Universo) e a Palavra de Deus (a Bíblia). Como acontece até os dias de hoje, a Igreja

tem a Palavra de Deus como fonte para as discussões dos interesses humanos, e faz dela uma

condição-limite da Realidade e da Verdade (FEYERABEND, 2010, p. 302-303).

Em resposta ao monge carmelita Paolo Foscarini, o Cardeal Roberto Bellarmino, do

Colégio Romano, discute sobre a ideia hipotética de Galileu:

Parece-me que Vossa Reverendíssima e o Senhor Galileu agem com prudência

quando se satisfazem em falar hipotética e não absolutamente... Dizer que, na

suposição do movimento da Terra e da quiescência do Sol, todas as aparências

celestiais são mais bem explicadas que pela teoria dos excêntricos e epiciclos

é falar com um excelente bom-senso e não correr qualquer risco. Essa maneira

de falar é suficiente para um matemático. Mas querer afirmar que o Sol,

verdadeiramente, está no centro do universo e só gira em torno de seu próprio

eixo sem ir do leste para o oeste é uma atitude muito perigosa e calculada não

só para provocar todos os filósofos e teólogos escolásticos como também para

ferir nossa fé sagrada ao contradizer as Escrituras (FEYERABEND, 2010, p.

298).

A posição da Igreja era de que o conhecimento astronômico servia apenas para explicar

e prever, mas não poderia ser relacionado com a realidade, ou seja, o fato de um modelo

funcionar dentro de um campo estrito não mostrava, necessariamente, que ele tinha acesso à

verdade61 (ibidem, p. 298). Além disso, a Igreja também usava a Bíblia para impor medidas

administrativas: em sua carta enviada a Galileu, o cardeal Bellarmino enfatiza esta condição:

“Como vocês estão cientes, o Concílio de Trento proíbe a interpretação das Escrituras de uma

maneira contrária à opinião comum dos papas” (ibidem, p. 303, grifo nosso).

A Igreja Católica Romana (...) afirmava ter os direitos exclusivos de

exploração, interpretação e aplicação das Sagradas Escrituras. Os leigos, de

61 “Para usar os termos modernos: os astrônomos [e demais cientistas] estão totalmente seguros quando dizem que

um modelo tem vantagens preditivas sobre outro modelo, mas se complicam quando afirmam que essa é, portanto,

uma imagem fiel da realidade. (...) Essa ideia sensata é um ingrediente elementar da prática científica. (...)

Tomemos as melhores teorias da física moderna: a relatividade geral em sua forma mais recente e a mecânica

quântica geral. Até aqui ficou provado que seria impossível fundi-las em um todo coerente – uma das teorias faz

afirmações que são terminantemente contraditas pela outra. Podemos ainda assim afirmar que obteremos uma

descrição correta da realidade de alguma delas? É claro que não. Podemos [apenas] dizer que ambas as teorias são

aproximações úteis, mas que não temos a menor ideia de como é a realidade da qual elas se aproximam”

(FEYERABEND, 2010, p. 298-299).

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acordo com os ensinamentos da Igreja, não tinham nem o conhecimento nem

a autoridade para mexer com as Escrituras e eram proibidos de fazê-lo. [Isso]

não deveria causar surpresa a ninguém familiarizado com os hábitos de

instituições poderosas. A atitude da Associação Médica Americana [por

exemplo,] com relação a praticantes leigos é tão rígida como o era a atitude

da Igreja para com intérpretes leigos – e tem as bênçãos da lei. Especialistas,

ou ignorantes que tenham adquirido as insígnias formais de uma

especialidade, sempre tentaram – e com frequência tiveram êxito nisso –

assegurar para si mesmos direitos exclusivos em domínios especiais. Qualquer

crítica da rigidez da Igreja Católica Romana também aplica-se a seus

sucessores modernos, tanto científico quanto ligados à ciência

(FEYERABEND, 2011b, p. 175).

Figura 13 – Retrato de São Roberto Bellarmino, óleo sobre tela, feito em 1923 por G.

Francisi, Roma, Palácio do Santo Ofício, sala de recepção, lado norte.

Fonte: REDONDI, 1991, p. 152.

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Ciente das consequências, Galileu foi instruído a ensinar a teoria copernicana como uma

hipótese, sendo proibido62, portanto, de ensiná-la como uma verdade. Além disso, Segundo

Feyerabend (2011b, p. 177), a Igreja, “era muito mais modesta que isso”,

não dizia: aquilo que contradiga a Bíblia tal como por nós interpretada deve

desaparecer, não importa quão fortes sejam as razões científicas a seu favor.

Uma verdade apoiada por argumentação científica não era posta de lado. Era

usada para revisar a interpretação de passagens da Bíblia aparentemente

inconsistentes com ela. Há muitas passagens na Bíblia que parecem sugerir

uma Terra plana. Ainda assim, a doutrina da Igreja aceitava a Terra esférica,

[flutuando no espaço,] como coisa evidente. No entanto, a Igreja não estava

disposta a mudar somente porque alguém havia produzido algumas

conjecturas vagas. Queria prova – uma prova científica em assuntos

científicos63. (...) Mas não havia ainda nenhuma prova convincente da doutrina

copernicana (grifo do autor).

Os especialistas da Igreja concluíram que a teoria de Galileu, a respeito da mobilidade

da Terra, era “insensata e absurda em sua filosofia”, o que, segundo Feyerabend, equivaleria

dizer nos dias de hoje, que a teoria não era científica. Essa análise “foi feita sem referência à fé

ou à doutrina da Igreja, sendo baseada exclusivamente na situação científica da época” (ibidem,

p. 173). Tycho Brahe64 e outros cientistas concordavam com a opinião da Igreja, uma vez que

ela estava baseada com os fatos e padrões da época. Além disso, os especialistas da Igreja

pronunciaram que a doutrina copernicana era “formalmente herética”, no que diz respeito às

implicações éticas/sociais. Assim, ao ser associada à Realidade, ela contradizia a Palavra de

Deus, e não era feita de maneira inadvertida, mas com plena consciência da situação (ibidem,

p. 174).

62 Redondi (1991, p. 39) afirma que Galileu tinha “muitas observações e ideias novas a favor do copernicanismo

e do movimento da Terra, mas disso não poderia falar porque em 1616 o cardeal Bellarmino o prevenira de que

deveria abster-se para o futuro. A única coisa que podia fazer, então, era defender o copernicanismo de seus

possíveis adversários: destruir a astronomia e a cosmologia não copernicanas. Em outras palavras, não podendo

demonstrar o sistema copernicano [como uma correspondência da verdade], Galileu tinha como única escolha

eliminar as possíveis desvirtuações”.

63 “Aqui, ela não atuava de maneira diferente de muitas instituições científicas modernas: universidades, escolas e

mesmo institutos de pesquisa em vários países usualmente esperam por um longo tempo antes de incorporar novas

ideias em seus currículos” (FEYERABEND, 2011b, p. 177).

64 Tycho Brahe, segundo Feyerabend (ibidem, p. 181), “foi um astrônomo notável; suas observações contribuíram

para a queda de concepções geralmente aceitas. Ele notou a importância da cosmologia de Copérnico – contudo,

manteve a Terra imóvel, por razões tanto físicas quanto teológicas”.

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As descobertas de Galileu Galilei sobre as manchas solares, as fases de Vênus,

as luas de Júpiter e a modificação do tamanho de Marte ao longo de seu

movimento anual, que começaram a ser divulgadas no início do século XVII,

principalmente por meio de trocas de cartas, confirmavam a doutrina

copernicana, que afirmava que o Sol ocupava o centro do universo. Tais ideias

não eram bem aceitas, principalmente pelos teólogos da época, que tinham a

justificativa (...) de ser uma concepção contrária aos escritos bíblicos (LINO,

2020, p. 220).

O suposto movimento da Terra defendido por Galileu, sem sombra de dúvidas,

contradizia a Palavra de Deus, uma vez que no capítulo 10, versículo 12, do livro de Josué

(Antigo Testamento) ele ordena “Sol, pare sobre Gibeom!” e “o Sol parou no meio do céu e por

quase um dia inteiro não se pôs”. Ora, se o Sol parou, então é ele quem se movimenta e,

consequentemente, a Terra se encontra em repouso (tal qual podemos perceber com nossos

sentidos).

Há, ainda, outras passagens com referências astronômicas na Bíblia, como, por

exemplo, o salmo 93, 1 “O mundo jamais será movido”; e o salmo 19, 1-6, “Os céus declaram

a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos. (...) Nos céus ele armou uma

tenda para o sol, que é como um noivo que sai de seu aposento e se lança em sua carreira com

a alegria de um herói. Sai de uma extremidade dos céus e faz o seu trajeto até a outra”.

Essas linhas são enunciados claros das crenças astronômicas dos antigos. Mas

seriam elas suficientes para fazer Copérnico hesitar e para criar toda espécie

de problemas para Galileu? Não em nossa época, mas, nos séculos XV e XVI,

com toda a certeza (HELLMAN, 1991, p. 27).

Galileu, entretanto, reivindicava a liberdade e autonomia da pesquisa no domínio da

natureza. Sua crítica não era contra a Bíblia, mas contra a interpretação literal dela. Ele defende

“a justificativa de que não existe contradição entre o texto sagrado e as leis da natureza”, mas

que as pessoas erram em fazer interpretações literais. Suas ideias, logo começam “a ganhar

repercussão e, aos olhos da maioria dos teólogos, se torna[m] uma ameaça às suas doutrinas”

(LINO, 2020, p. 223).

Segundo Redondi (1991, p. 46), o Santo Ofício se ocupava em questões de ortodoxia

católica e não de astronomia. Entretanto, a tentativa de um manifesto político-intelectual de

Galileu fez a Igreja examinar as expressões geocêntricas da Bíblia. A reinterpretação de Galileu

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da Escritura com novas interpretações naturais obrigou o Santo Ofício a intervir65. Não havia

provas do Heliocentrismo – apesar dos pedidos irônicos do cardeal Bellarmino por elas. Os

especialistas da Igreja demonstraram que a imobilidade da Terra estava de acordo com as leis

do movimento de Aristóteles e se, por uma hipótese absurda, a Terra estivesse em movimento,

isso seria contraditório com a experiência.

Feyerabend (2011b, p. 178) afirma que a igreja exigiu de Galileu, tanto por razões

científicas quanto éticas, que ele aceitasse a interpretação da hipótese. Isso não aconteceu e ele

foi julgado por reinterpretar a Bíblia sem a autorização da Igreja.

Além do mais, levando em conta as dificuldades com que o modelo copernicano “se

defrontava quando considerado uma descrição da realidade, temos de admitir que ‘a lógica

estava do lado de... Bellarmino e não do lado de Galileu’, como o historiador da ciência e físico-

químico Pierre Duhem escreveu (ibidem, p. 178-179).

O primeiro julgamento de Galileu ocorreu em 1616, após a doutrina copernicana ser

analisada e criticada. Galileu não foi preso e nem condenado, porém recebeu ordens proibindo-

o de ensinar Copérnico como uma verdade. Entre 1632 e 1633 ele foi julgado novamente66,

mas, dessa vez, foi considerada a não obediência de Galileu a respeito da ordem dada no

primeiro julgamento, pelo fato dele ter “enganado os inquisidores, fazendo-os acreditar que a

ordem nunca tinha sido dada” (ibidem, p. 172).

Lino (2020), ao apresentar a famosa carta que Galileu envio a seu discípulo Benedetto

Castelli em 1613, e as discussões a respeito da recentemente descoberta da versão modificada

desta carta pelo historiador Salvatore Ricciardo, aponta que foi o próprio Galileu quem alterou,

65 “No início de dezembro de 1615 Galileu vai à Roma com a esperança de se autodefender melhor das acusações

que lhe vinham sendo impostas, no entanto, sem muito sucesso. Esse insucesso certamente foi ocasionado pela

repercussão que o conflito adquiriu, os teólogos não poderiam simplesmente retirar as acusações contra Galileu;

aos olhos dos fiéis isso seria um ponto negativo em relação à força que os processos de inquisição tinham naquela

época” (LINO, 2020, p. 227).

66 A segunda condenação de Galileu parece ter tido outros motivos, além de sua defesa pelo Heliocentrismo. Citam

Damasio & Peduzzi (2018, p. 11) que a abordagem de seu segundo julgamento “inicia com os conflitos entre ele

e os jesuítas, que oferecem denúncias ao estudioso italiano que foram aceitas e culminaram no julgamento de 1633.

No entanto, o teor das denúncias não se tornou público, e apenas uma comissão nomeada pelo papa (aliado e

defensor de Galileu) soube de seu conteúdo. Da comissão, surgiram instruções rígidas, no sentido de que o tribunal

deveria julgar Galileu por desobediência, além de determinar que o corpo de delito fosse o Diálogo. No entanto,

Pietro Redondi encontrou documentos que permitem interpretar de maneira diferente este episódio. Segundo o

entendimento deste renomado historiador, as acusações feitas pelos jesuítas eram muito mais graves e foram

abafadas pelo papa para proteger Galileu. Os documentos, que sustentam a tese de Redondi, referem-se à denúncia

como tendo corpo de delito II Saggiatore, e a acusação era a defesa do atomismo – filosofia incompatível com o

dogma da transubstanciação da Eucaristia. Neste último caso, tratava-se de heresia doutrinal, muito mais grave na

época que a inquisitorial, que foi a acusação oferecida a Galileu pelo comitê instituído pelo papa”.

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deliberadamente, o texto da carta, na tentativa de amenizar as suas duras críticas aos teólogos

da época que eram contra o Heliocentrismo. Até essa recente descoberta, os historiadores

acreditavam que haviam sido alguns clérigos rivais a Galileu quem teriam adulterado a carta, a

fim de que ele fosse mais facilmente acusado pelo Tribunal da Inquisição. Entretanto, a

descoberta sugere que, após ter sido acusado, “Galileu tentou espalhar uma nova versão

atenuada de suas afirmações”, na tentativa de desmentir a versão que foi entregue ao Santo

Ofício, carta que, de fato, Galileu escrevera (LINO, 2020, p. 229).

Figura 14 – Quadro de Galileu perante o Santo Ofício, pintado pelo francês Joseph Fleury no

século XIX.

Fonte: Josse / Leemage Getty Images. Disponível em: <quo.es/ser-humano/a26301943/juicios-importantes-

proces/>. Acesso em: 29 out. 19.

Em 1623, um cardeal florentino de 55 anos chamado Maffeo Barberini foi eleito Papa

Urbano VIII. Assim como Galileu, ele havia nascido e se criado em Florença e frequentado a

Universidade de Pisa, onde Galileu estudara medicina e Urbano, direito. Urbano havia,

inclusive, intercedido em favor de Galileu durante seu primeiro julgamento, e advertido Galileu

que sua defesa do Universo heliocêntrico poderia lhe trazer problemas – e que não deveria

apresentá-la como uma realidade, nem mesmo em pensamento. O Papa se considerava amigo e

admirador de Galileu, que teve o privilégio de ser recebido em seis audiências papais, cada uma

durando mais de uma hora. Essa relação, quase íntima, com o Papa, fez Galileu pensar que

poderia escrever o Diálogo com segurança – e assim o fez. Em sua obra de 1632, Galileu

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apresenta um diálogo entre três participantes: Salviati, Sagredo e Simplício. Os dois primeiros

homenageiam amigos falecidos de Galileu, sendo Salviati seu porta-voz e Sagredo um

moderador inteligente e imparcial, uma pessoa de alta classe e homem do mundo. Já Simplício

representa uma mistura dos argumentos de todos os oponentes que Galileu havia enfrentado na

construção de suas ideias (HELLMAN, 1991, p. 23, 32-33).

Para tornar seus argumentos sólidos e eficientes, Galileu usa os argumentos “tolos” de

Simplício como contraste. E isso funciona bem, mas, ao final de sua obra, “ele faz Simplício

resumir a posição da Igreja Católica acerca da impossibilidade de se obter genuíno

conhecimento do mundo físico”, ao passo de que seria “uma ousadia extravagante para qualquer

um limitar e confinar o poder e sabedoria divinos a uma particular conjetura pessoal” (ibidem,

p. 36), se referindo ao sistema copernicano. Este argumento de Simplício fora originalmente

entoado pelo próprio Papa, e os inimigos de Galileu conseguiram convencer Urbano que o seu

objetivo era de ridicularizar a Igreja, e pior, ridicularizar e humilhar o Papa em pessoa. Urbano

ficou furioso quando viu o resultado. Tanto é que, mesmo após a morte de Galileu em 1642, ele

recusou-se a permitir que o grão-duque de Toscana realizasse um funeral adequado para Galileu

e construísse um monumento sobre sua tumba na Igreja da Santa Cruz, em Florença (ibidem,

p. 36).

Foi, então, que,

No dia 22 de junho de 1633, Galileu Galilei foi levado a julgamento no quartel

general da Inquisição em Roma. Todo o magnificente poderio da Igreja

Católica Romana tinha sido aparentemente perfilado contra ele (...). Sob

ameaça de tortura, encarceramento e mesmo morte na fogueira, ele foi

forçado, de joelhos, a "abjurar, amaldiçoar e detestar" toda uma vida de

brilhante e devotado labor intelectual. Confrontado com uma "veemente

suspeita de heresia", ele teve de renunciar, "com um coração sincero e fé

genuína" à sua crença de que o Sol, e não a Terra, é o centro do universo, e

que a Terra move-se em torno do Sol, e não vice-versa67. Como Galileu

concordou com tudo isso - pelo menos verbalmente -, as ameaças mais sérias

de Urbano não precisaram ir adiante. Como uma de suas punições, por

exemplo, ele deveria recitar os sete salmos penitenciais uma vez por semana

durante três anos. Mas foi também posto em prisão domiciliar pelo resto de

sua vida. E, finalmente, seu livro Diálogo sobre os dois máximos sistemas do

mundo ptolomaico e copernicano (1632), que tinha estado no centro do

julgamento, foi proibido. Isto é, foi acrescentado à lista de livros banidos, o

67 BAIARDI et al. (2012, p. 202) afirmam que Galileu foi humilhado, ameaçado de ser torturado e terminou por

ceder, representando, teatralmente, o papel que o Santo Ofício lhe propôs. E, em seguida, os autores apresentam

as traduções dos textos da sua Sentença e Abjuração.

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Index librorum prohibitorum, mantido pela Inquisição da Igreja Católica

(HELLMAN, 1999, p. 21, grifos do autor).

Suponha, agora, que um Galileu moderno usasse alguns argumentos contra-indutivos,

sem provas, e sem conformidade com o pensamento científico atual: o que aconteceria se ele

quisesse testar medicamentos alternativos usando um grupo de voluntários sem autorização

legal? É bastante provável que ele receberia a visita da polícia, da mídia e do Ministério Público,

exatamente como aconteceu (FEYERABEND, 2010, p. 303).

É bem verdade que o controle não é tão rígido quando era à época de Galileu

e [nem] tão universal, mas isso é resultado de uma atitude mais tolerante com

relação a certos crimes (os ladrões, por exemplo, já não são mais enforcados

ou mutilados), e não de uma mudança de atitude quanto à natureza dos

próprios crimes (ibidem, p. 304).

Esse procedimento68 “mais direto, mais honesto e certamente mais racional” da Igreja

não era imutável. Foi isso que disse o cardeal Bellarmino:

Se houvesse alguma prova real que o Sol está no centro do Universo e de que

a Terra está no terceiro céu girando ao redor do Sol, então teríamos de agir

com grande prudência ao explicar as passagens da Escritura que parecem

ensinar o contrário e de preferência admitir que não as tínhamos entendido em

vez de declarar como falsa uma opinião comprovadamente verdadeira. (...)

quanto a mim, não acreditarei que essas provas existem até que elas me sejam

mostradas. Tampouco é uma prova dizer que, se supusermos que o Sol está no

centro do Universo e a Terra no terceiro céu, tudo funciona da mesma maneira

como se tudo fosse o inverso. No caso de dúvida não devemos abandonar a

interpretação do texto sagrado como dada pelos Papas (FEYERABEND,

2010, p. 305, grifo nosso).

“A doutrina da Igreja, diz Bellarmino aqui, é uma condição-limite para a interpretação

de resultados científicos. Mas não é uma condição-limite absoluta. A pesquisa pode

movimentá-la” (ibidem, p. 305, grifo nosso).

68 As restrições administrativas feitas a um cientista moderno são certamente comparáveis àquelas em vigor na

época de Galileu. Mas, enquanto aquelas restrições antigas que eram emitidas pela Igreja estavam disponíveis na

forma de regras explícitas, tais como as regras do Concílio Tridentino, as restrições modernas muitas vezes são

implícitas, e não explicadas detalhadamente (ibidem, p. 304).

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É provável que muitos de nós tivéssemos apoiado a decisão69 da Igreja e concordado

com o cardeal Bellarmino a respeito da fragilidade do ponto de vista copernicano. Seu

argumento mais poderoso era a harmonia criada pelo ponto de vista heliocêntrico, ou seja,

“pela primeira vez havia um sistema astronômico, e não apenas um conjunto de instrumentos

de cálculo” (ibidem, p. 306-307).

O telescópio fornece um retrato verdadeiro do céu?

A harmonia copernicana é refutada por meio da observação. O argumento da torre é

invertido e as interpretações naturais são substituídas por interpretações contra-indutivas.

Propagandas e truques psicológicos substituem argumentos empíricos70. Hipóteses ad hoc são

inseridas para afirmar o movimento da Terra e hipóteses auxiliares adversárias são excluídas

por não concordarem com a nova teoria. Até então, nenhuma evidência independente surge em

defesa da nova cosmologia. Os argumentos contrários a ela são cientificamente e

teologicamente corretos. Há uma tentativa de substituir uma teoria muito abrangente por outra

restrita que possui, inclusive, elementos especulativos. Não é apontada nenhuma prova do

movimento da Terra e não há nada que refutaria o ponto de vista geocêntrico, mas que seria

explicado pelo ponto de vista copernicano (FEYERABEND, 2011b, p. 113-117, 163). Galileu

tenta construir uma visão de mundo inteiramente nova, mas não consegue fazê-lo só, ele precisa

do auxílio de um sentido superior e mais eficaz.

Além das interpretações naturais, Galileu altera também as sensações que

parecem ameaçar a teoria de Copérnico. Ele admite que haja tais sensações,

louva Copérnico por tê-las ignorado e afirma tê-las eliminado com o auxílio

do telescópio. Contudo, não oferece razões teóricas pelas quais se deveria

esperar que o telescópio fornecesse um retrato verdadeiro do céu (ibidem, p.

113).

69 “A avaliação dos peritos da Igreja estava cientificamente correta e tinha a intenção social certa, a saber, proteger

as pessoas das maquinações dos especialistas (...) [e] preservar importantes valores humanos e sobre-humanos.

(...) Desejava proteger as pessoas de serem corrompidas por uma ideologia estreita que podia funcionar em

domínios restritos, mas [que] era incapaz de sustentar uma vida harmoniosa” (FEYERABEND, 2011b, p. 179).

70 Redondi (1991, p. 40) afirma que Galileu não apresenta nem observações e nem teses originais para a

astronomia, mas “somente argumentos polêmicos geniais, tão geniais quanto eram paradoxais, destinados mais a

desacreditar, com uma lógica irreprochável e provocatória, a segurança dos raciocínios de seus adversários”.

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Feyerabend (ibidem, p. 118) argumenta que Galileu faz uso do telescópio (refrator) para

transformar seu argumento contra-indutivo em uma indução baseada em uma experiência

melhor. Entretanto, afirma que o conhecimento de Galileu sobre a teoria da refração não é

correto e nem é suficiente: “(...) há sérias dúvidas quanto ao conhecimento de Galileu daquelas

partes da óptica física de sua época que eram relevantes para o entendimento de fenômenos

telescópicos”.

Figura 15 – Galileu mostra o telescópio para o Senado veneziano do Campanário de São

Marcos em 1609, quadro de Giuseppe Bertini, Varese, Itália, 1858.

Fonte: Gabriele Vanin. Disponível em: <gabrielevanin.it/S.%20Marco%201609.htm>. Acesso em: 29 out. 19.

Há vários relatos da época71, inclusive do próprio Galileu, evidenciando a importância

e os benefícios desse novo instrumento quando usado em terra ou mar. “Sua aplicação às

71 Galileu reconstrói uma versão melhor da luneta holandesa e afirma em seus escritos que isso se deu por meio de

cálculos matemáticos. Entretanto, não há cálculos em seus relatórios, mas um esboço que mais se assemelha à

tentativa e erro. “(...) foi a experiência e não a matemática que levou Galileu a uma fé serena na confiabilidade de

seu aparelho” (GEYMONAT, 1965, p. 39 apud FEYERABEND, 2011b, p. 120).

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estrelas, contudo, era uma questão inteiramente distinta” (FEYERABEND, 2011b, p. 121, grifo

do autor).

“As primeiras observações telescópicas do céu são indistintas, indeterminadas,

contraditórias e entram em conflito com o que qualquer pessoa pode ver a olho nu” (ibidem, p.

123). É sabido que as observações telescópicas terrestres indicavam, até certo ponto,

propriedades estáveis e objetivas das coisas vistas. Como os nossos sentidos estão

familiarizados com a aparência dos objetos terrestres, fica fácil distinguir o que é verdadeiro e

o que é distorcido ou desfigurado por franjas coloridas, e até mesmo outros elementos como

plano de fundo, superposição, tamanho relativo, etc. Entretanto, não conhecemos de perto as

estrelas e os planetas. Até mesmo a aparência da Lua nos dá uma ideia falsa de sua distância e

seu tamanho. Logo, não podemos usar a nossa memória para separar o que provêm do próprio

objeto (celeste) das contribuições do telescópio (ibidem, p. 123-124).

O telescópio produz fenômenos estranhos e novos, alguns dos quais podem

ser revelados como ilusórios por meio da observação a olho nu, alguns

contraditórios, alguns tento até a aparência de ilusórios ao passo que a única

teoria que poderia ter posto ordem nesse caos, a teoria da visão devida a

Kepler, é refutada por evidência da mais clara espécie possível (ibidem, p.

141).

O conhecimento óptico de Galileu é descrito por Feyerabend como superficial. É bem

verdade que o telescópio produzia resultados fantásticos na Terra, entretanto, ele se deparava

com dificuldades quando utilizado para observações celestes. “O telescópio produziu

fenômenos espúrios e contraditórios, e alguns de seus resultados podiam ser refutados por um

simples olhar a olho desarmado. Apenas uma nova teoria da visão telescópica podia trazer

ordem ao caos (...) e separar aparência de realidade” (FEYERABEND, 2011b, p. 138).

Segundo a teoria de Kepler, a imagem de um objeto é recebida pelos nossos olhos

através das leis de reflexão e refração (tal como ainda hoje é ensinado na escola), pela

intersecção retrógrada da trajetória dos raios que emergem/refletem do objeto até nossos olhos,

cabendo à mente do observador utilizar somente a parte final dessa luz. Essa ideia, que até certo

ponto está correta, não é válida para lentes (como as do telescópio) e nem leva em consideração

os efeitos atmosféricos. Assim, a teoria kepleriana da visão, que é refutada pelo telescópio (ou

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que o refuta), obviamente, não pode ser utilizada como argumento por Galileu, e a visão

telescópica do céu permanece um mistério72 (ibidem, p.138-139).

Figura 16 – Desenhos dos Planetas vistos por Galileu através do telescópio, publicado no

livro II Saggiatore (O Ensaísta), dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623.

Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4184/>. Acesso em: 29 out. 19.

A ausência de observações satisfatórias mostravam dois objetos acompanhantes de

Saturno (foi assim que os anéis foram vistos na época); duplicação de imagens dos astros;

mudança da posição lateral da imagem de acordo com a posição do olho; franjas coloridas;

presença ou ausência das estrelas que acompanham Júpiter (suas quatro luas, hoje chamadas de

“luas galileanas”); uma Lua repleta “de montanhas na parte interna, mas perfeitamente lisa na

periferia, e isso a despeito do fato de que a periferia” da Lua mudava com a sua rotação; além

de algumas crateras que não existem e a observação de uma atmosfera lunar; o que revela a

72 Apenas um século depois, em 1704, a teoria óptica do telescópio pôde ser explicada pelo inglês Isaac Newton

(1642-1727).

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pobreza73 do que poderia ser visualizado pelo telescópio, agravado ainda pela velocidade com

que novos fenômenos foram descobertos e divulgados (FEYERABEND, 2011b, p. 125-130).

“As observações telescópicas de Galileu (...) se contradiziam, nem todas as pessoas

podiam repeti-las, aqueles que as repetiam (Kepler) conseguiram resultados confusos e não

existia qualquer teoria para separar ‘fantasmas’ de fenômenos verídicos” (FEYERABEND,

2010, p. 341).

Sagredo – Portanto, devemos ainda esperar outras objeções vigorosas contra

este movimento anual [da Terra]?

Salviati – Sim; e tão evidentes e sensíveis que, se um sentido superior e mais

excelente que os comuns e naturais não estivesse acompanhado da razão,

duvido grandemente de que eu mesmo não tivesse sido ainda mais reticente

acerca do sistema copernicano, do que o sou, depois de ter sido iluminado por

uma luz mais clara que a habitual.

Sagredo – Agora, portanto, Sr. Salviati, vamos, como se diz, direto ao ponto,

porque cada palavra que se gasta em outro argumento parece-me

desperdiçada.

Salviati – Aqui estou para servir-vos (GALILEI, 2011, p. 410-411, grifos

nosso).

Apesar das objeções, Galileu utiliza seu instrumento como “prova” de seus argumentos:

em resposta aos escolásticos que afirmavam que um corpo não poderia ter dois movimentos ao

mesmo tempo, ele exibiu os satélites de Júpiter (que orbitavam o planeta enquanto ele fazia sua

revolução anual); quanto à tradicional alegação de que os corpos celestes seriam perfeitos, ele

utiliza o telescópio para afirmar que o Sol tem manchas e que a Lua não e perfeitamente lisa.

Quanto à objeção de que a teoria copernicana requereria que Vênus exibisse fases (o que não

poderia ser detectada a olho nu), Galileu as confirmou com as observações telescópicas das

fases de Vênus (HELLMAN, 1999, p. 29).

Figura 17 – Representação das fases de Vênus nos dois sistemas de mundo

73 Apesar disso, o dispositivo aperfeiçoado por Galileu era considerado moderno, e provavelmente o melhor de

sua época (1609). Inicialmente, seu interesse estava voltado para as questões militares e não astronômicas. Quando

Galileu ouviu falar nas lunetas holandesas, apressou-se para estudá-las e melhorá-las, a fim de obter vantagem

para Veneza sobre os turcos, podendo observar os navios inimigos cerca de duas horas antes de serem vistos a

olho nu (VANNUCCHI, 1996, p. 48).

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Fonte: Instituto de Física - UFRGS. Disponível em: <if.ufrgs.br/fis02001/aulas/aula_tykega.htm>. Acesso em:

30 mai. 20.

Além disso, ao olhar Júpiter pelo telescópio, podia-se ver uma espécie de sistema solar

em miniatura. Suas luas recém-descobertas inspiram um certo desconforto, uma vez que elas

contrariavam o argumento geocêntrico de que a Terra não poderia orbitar o Sol sem perder a

Lua. Segundo Vannucchi (1996, p. 56-57), isso tornava a concepção copernicana do sistema

solar cada vez mais plausível, e que, talvez por isso, muitos preferiram não rever tal argumento,

mas, simplesmente, desconsiderar a possibilidade da existência dos satélites de Júpiter.

Figura 18 – Desenho da Lua vista por Galileu através do telescópio, publicado no livro

Sidereus Nuncius (O Mensageiro das Estrelas), Veneza, 1610.

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Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em:

<wdl.org/pt/item/4170/#q=Sidereus+nuncius+Veneza+1610>. Acesso em: 29 out. 19.

Figura 19 – Desenho da Lua feito por Thomas Harriot em 160974.

Fonte: The Galileo Project. Disponível em: <galileo.rice.edu/sci/harriot_moon1610_717.gif>. Acesso em: 02

jan. 20.

74 O desenho da Lua feito pelo contemporâneo de Galileu, Thomas Harriot, evidencia que a ferramenta astronômica

que Galileu possuía era, de fato, considerada mais moderna e mais eficaz para a época. Ao melhorar seu telescópio

(refrator), Galileu conseguia uma ampliação de quase dez vezes (o que é bem abaixo se comparado aos telescópios

comuns de hoje – cuja ampliação é de 90 a 120 vezes para os refratores e de 200 a 250 vezes para os refletores).

Apesar disso, ao olhar pelo telescópio, as pessoas viam coisas diferentes e tiravam conclusões diferentes a respeito

do que era visto, ainda que utilizassem o mesmo instrumento.

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Assim, certo que pode convencer seus adversários a desfrutarem do sentido superior e

mais eficaz do telescópio, Galileu se reúne com eles para mostrar seu aparelho:

Por meio desse instrumento, vimos tão distintamente o palácio do ilustríssimo

duque Altemps, nas Colinas Toscanas, que facilmente contamos todas as suas

janelas, mesmo as menores; e a distância é de 16 milhas italianas (apud

FEYERABEND, 2011b, p. 120-121)75.

Na quinta-feira à noite, na propriedade de monsignor Malvasia, do lado de

fora do portão de São Pancrácio, lugar alto e aberto, foi-lhe oferecido um

banquete por Frederico Cesi, o marquês de Monticelli. (...) Na reunião76

estiveram Galileu, [cardeais, professores da universidade, matemáticos, e

outras pessoas cultas]. Alguns deles foram até lá expressamente para realizar

essa observação (de “quatro outras estrelas, ou planetas, que são satélites de

Júpiter ... bem como dois acompanhantes de Saturno”); porém, mesmo tendo

permanecido até uma hora da manhã, não chegaram a um acordo em suas

opiniões (ROSEN, 1947, p. 31 apud FEYERABEND, 2011b, p. 121 (nota 12),

125).

Não dormi nada nos dias 24 e 25 de abril, nem de dia nem de noite, mas testei

de mil maneiras o instrumento de Galileu, tanto em coisas aqui de baixo

quanto naquelas lá em cima. Aqui embaixo, ele funciona maravilhosamente;

nos céus, ele nos engana, pois algumas estrelas fixas são vistas

duplicadamente. Tenho como testemunhas homens eminentes e nobres

doutores ... e todos admitiram que o instrumento engana. Isso silenciou

Galileu e, no dia 26, ele partiu tristemente, de manhã cedo ... nem mesmo

tendo agradecido a Magini por seu esplêndido banquete (GALILEI, Opere, X,

p. 342 apud FEYERABEND, 2011b, p. 125, grifo nosso)77.

Os relatos acima, citados por Feyerabend, dispostos em diferentes épocas e com

diferentes pessoas, evidenciam que a tarefa de Galileu não foi fácil e estava longe de ser

cumprida. A doutrina copernicana precisaria de “certo tempo para reunir fatos em favor de uma

nova cosmologia. Com efeito, o que se faz necessária é uma nova dinâmica que explique tanto

os movimentos terrestres quanto os celestes (...) mas todas essas ciências estão ainda ocultas no

futuro” (ibidem, p. 113).

75 Rosen (1947, p. 54) cita a descrição de Julius Caesar Lagalla (1612, p. 8), professor de filosofia em Roma, da

reunião realizada na cidade de Espirito Santo, em 16 de abril de 1611.

76 “É preciso levar em conta que a ocasião estava formada por membros da Igreja Católica e por cientistas

adversários e que, ademais, muitos desses homens se recusaram inclusive a olhar no telescópio. Porém, a confiança

de Galileu em seu telescópio acerca de assuntos celestes era muito alta, tanto que aceitou o convite para expor o

funcionamento de seu instrumento em situações não-familiares (assuntos celestes) para pessoas que muito

possivelmente seriam contra” (OLIVEIRA, 2011, p. 56, nota 130).

77 Escrito por Horky, discípulo de Kepler, em 1610, na cidade romana de Bolonha.

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Figura 20 – Galileu apresenta o telescópio ao público.

Fonte: GETTY IMAGES / PHOTOS.COM / THINKSTOCK. Disponível em:

<vix.com/es/btg/curiosidades/2011/09/26/vida-de-galileo-galilei-un-genio-reprimido>. Acesso em: 29 out. 19.

E, como disse Henrique et al. (2010, p. 26), as críticas contra Galileu não se deram

porque seus rivais eram teimosos e relutavam em aceitar os dados experimentais, mas do

contrário, eram bem embasadas na sua visão de mundo. Restava, então, convencê-los de que as

observações telescópicas eram confiáveis e que poderiam comprovar aquilo que a observação

olho nu era incapaz.

Ele não alcançou nada, pois mais de vinte homens cultos estavam presentes e,

contudo, ninguém viu distintamente os novos planetas (...); ele dificilmente

será capaz de continuar afirmando sua existência (GALILEI, Opere, III apud

FEYERABEND, 2011b, p. 125)78.

78 Magini escreve carta a Kepler em 26 de maio de 1610.

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Figura 21 – Galileo, pintura a óleo de Jean-Leon Huens.

Fonte: Christie's. Disponível em: <christies.com/lotfinder/Lot/jean-leon-huens-1981-1984-galileo-5636151-

details.aspx>. Acesso em: 29 out. 19.

Galileu, entretanto, não desistiu.

[Ele] acreditara por anos na verdade do copernicanismo, mas nunca tinha sido

capaz de demonstrá-lo a despeito de suas declarações excessivamente

otimistas a amigos e colegas. Deveria a prova direta ser, afinal, buscada aí?

Quanto mais essa convicção afirmou raízes em sua mente, mais clara tornou-

se para ele a importância do novo instrumento. Na mente do próprio Galileu,

a confiança na fidedignidade do telescópio e o reconhecimento de sua

importância não eram dois atos separados; ao contrário, eram dois aspectos do

mesmo processo (GEYMONAT, 1965, p. 38 apud FEYERABEND, 2011b, p.

142).

As medidas da variação do brilho aparente de Vênus e Marte, vistos à olho nu,

contradizem a teoria copernicana no que diz respeito ao suposto movimento de translação da

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Terra. De fato, no caso da Terra estar no centro do sistema planetário, pouca deveria ser a

mudança, vista no brilho desses planetas, ao realizarem suas órbitas ao redor da Terra, bem

como era visto e comprovado por muitos astrônomos da época, inclusive o próprio Galileu.

“Em contrapartida”, afirma Feyerabend (FEYERABEND, 2011b, p. 141),

há alguns fenômenos telescópicos que são claramente copernicanos: (...) a

variação telescópica no brilho dos planetas [está] mais estreitamente de acordo

com Copérnico do que com os resultados da observação a olho nu. Visto

através do telescópio, Marte [e Vênus] de fato muda[m] como deveria[m]

mudar segundo a perspectiva copernicana (grifo nosso).

Ou seja, visto através do telescópio, os brilhos de Vênus e Marte mudavam bastante,

como de fato deveriam mudar, de acordo com o modelo heliocêntrico. Note que, durante a

revolução anual da Terra (e dos demais planetas), há um determinado momento em que ela

estará mais próxima de Vênus e/ou de Marte79; e há, no outro extremo, um momento

caracterizado pela maior distância possível desses planetas. De forma que, numa perspectiva

heliocêntrica, quando os planetas estivessem mais próximos à Terra o brilho deles seria maior,

e quando estivessem mais distantes da Terra (ou seja, do outro lado do Sol), o brilho seria

menor. E isso era, de fato, o visto pelo telescópio.

Sagredo – Oh! Nicolau Copérnico, que prazer terias sentido ao ver confirmada

com experiências tão evidentes esta parte do teu sistema!

Salviati – Sim; (...) [o vemos ter] continuado a afirmar, guiado pelas razões,

aquilo que as experiências sensíveis mostravam o contrário: porque eu não

posso deixar de surpreender-me que ele tenha constantemente persistido em

dizer que Vênus gira em torno do Sol e está afastado de nós mais de seis vezes

num caso que noutro, embora se mostre igual a si mesmo, quando deveria

mostrar-se quarenta vezes maior.

Sagredo – Acredito que em Júpiter, Saturno e Mercúrio devem ver-se também

as diferenças de seus tamanhos aparentes corresponderem exatamente às

variações de suas distâncias (GALILEI, 2011, p. 421).

Figura 22 – Rascunhos das distâncias dos planetas durante a revolução anual no manuscrito

de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610.

79 Como pode ser notado no tradicional alinhamento dos planetas.

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Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.

Assim, o distanciamento desses planetas à Terra, devido à translação dos mesmos ao

redor do Sol, causariam, como de fato causam, uma grande mudança em seus brilhos, vistos

através do telescópio.

Galileu introduz esses fenômenos como evidência independente80 para

Copérnico, embora a situação seja antes a de uma concepção refutada (...) – a

ideia de que fenômenos telescópicos são retratos fiéis do céu. (...) Mas essa

mudança está em harmonia com as predições de Copérnico. É essa harmonia

e não um profundo conhecimento de cosmologia e óptica que, para Galileu,

comprova Copérnico e a veracidade do telescópio em assuntos terrestres tanto

quanto em assuntos celestes. E é sobre essa harmonia que ele constrói uma

concepção inteiramente nova do universo (FEYERABEND, 2011b, p. 141-

142, grifos do autor).

80 “A tática usada por Galileu, aponta Feyerabend, foi a de apresentar essas observações telescópicas como

evidência independente em favor da teoria copernicana, ao mesmo tempo em que (...) sustentava a confiabilidade

do telescópio para as observações celestes. Assim, ao utilizar, de forma conjunta, uma teoria refutada

empiricamente e um instrumento sem confiabilidade, Galileu conseguiu aumentar a credibilidade tanto da teoria

quanto do instrumento” (ZYLBERSZTAJN, 1988, p. 45).

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5. GALILEU GALILEI: OS SISTEMAS DE MUNDO GEOCÊNTRICO E

HELIOCÊNTRICO

Após dissertarmos sobre a importância da HFC para o ensino de ciências e construirmos

a base epistemológica da leitura feyerabendiana dos conteúdos que chamamos de astronomia

de Galileu, vamos, neste capítulo, produzir uma unidade didática que pode ser levada para a

Educação Básica, contendo material didático para o aluno e orientação para o professor a partir

de uma leitura feyerabendiana da astronomia de Galileu.

Converter estratégias pedagógicas, ferramentas educacionais e projetos de currículos em

realidade nas salas de aula do Ensino Médio “requer novas orientações para a prática e a

avaliação, novos materiais didáticos e, acima de tudo, a inclusão de cursos adequados” sobre

História, Filosofia e Sociologia da Ciência no ensino (MATTHEWS, 1995, p. 168).

E a perspectiva feyerabendiana tem um papel central em nossa construção. As ideias do

filósofo austríaco hora aparecem de forma explícita, hora nos concede uma ferramenta de

análise, ou ainda influenciam a nossa visão a respeito dos processos de construção da ciência

moderna, sobretudo quando analisamos o caso de Galileu Galilei.

Assim, com vistas às possíveis implicações didáticas, esse material é composto por três

momentos: um encontro de observação astronômica, uma atividade de construção teórica e uma

aula júri simulado, trazendo como título “Galileu Galilei: os sistemas de mundo geocêntrico e

heliocêntrico”.

Apesar disso, essa construção é apenas um olhar, dentre muitos possíveis olhares. O

professor deve ter clareza que esta unidade didática é uma proposta que pode (e deve!) ser

adaptada ao seu contexto escolar, ou seja, a ordem dos momentos pode ser trocada, pode-se

adicionar ou excluir elementos, ferramentas computacionais ou dinâmicas de grupo podem ser

inseridas, e assim por diante.

Encontro de observação astronômica

Na primeira seção, apresentamos a proposta (ao professor) de uma aula de campo onde

os alunos farão uma observação sistemática dos céus (o exercício que os astrônomos costumam

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chamar de redescoberta); discutirão as concepções acerca dos sistemas de mundo de forma

prática; serão apresentadas a eles algumas indagações histórico-filosóficas (propostas por

Feyerabend) da Revolução Copernicana; e, provavelmente, terão o primeiro contato com o

telescópio. Assim, nosso objetivo é levantar questões e oferecer ferramentas práticas para

reconstruir algumas das discussões da física terrestre e celeste em que Galileu esteve envolvido

no início do século XVII.

A fim de que seja alcançado esse objetivo, propomos uma aula (dupla) de campo noturna

em um espaço aberto, alto e seguro (o mais distante possível da poluição luminosa)81, sob um

céu estrelado (sem nuvens) com planetas visíveis e, preferencialmente, uma Lua Crescente.

Existe uma noção clara entre os astrônomos amadores de que nós não controlamos a natureza

quando se refere a questões ambientais para uma observação astronômica. Quase sempre se faz

necessária uma consulta meteorológica para tentar prever fenômenos atmosféricos,

especialmente a chuva. Às vezes, é necessário, ainda, um plano alternativo, como o

cancelamento repentino da aula de campo e a mudança da data. Destacamos, também, que o

conhecimento do céu noturno pode ser um grande aliado do professor. Nem sempre a Lua e os

planetas estão visíveis no início da noite. No que diz respeito ao nosso satélite, o brilho intenso

da Lua Cheia pode ofuscar os outros astros, em outra circunstância, a Lua Minguante só será

visível no final da noite e a Lua Nova não será visível. Por este motivo, aconselhamos que a

aula de campo seja feita em uma noite de Lua Crescente (informação que pode ser facilmente

encontrada ao analisar um calendário ou através de uma consulta à internet). A observação dos

planetas requer um olhar mais treinado. Para os menos familiarizados com a astronomia

amadora, nem sempre é possível identificar os planetas e saber se esses estarão visíveis no

horário que a aula de campo será marcada. Por esse motivo, aconselhamos a consulta às

81 Em meio aos problemas de violência enfrentados em nossas cidades, sobretudo nos centros urbanos, se faz

necessário certo cuidado ao desenvolver uma aula de campo como esta. A proposta deve ser levada à equipe

gestora da escola e precisa do seu apoio para evitar complicações. Como citado, um local aberto, alto e distante da

poluição luminosa quase sempre será um local perigoso para ir com dezenas de alunos. A carência do controle no

fluxo de alunos; os convites (por parte dos alunos) sem autorização a terceiros; o deslocamento (da ida, mas

também – e principalmente – o da volta) até o local da aula de campo; as condições ambientais adversas, como

chuva, frio, animais, etc.; e as poucas ferramentas de organização da turma, são alguns exemplos dos problemas

que uma aula de campo, como tal, pode acarretar. Isso, entretanto, não deve ser empecilho para não a fazer.

Propomos algumas dicas ao professor: solicitar a equipe gestora ao menos um coordenador para acompanhar;

enviar ofício pedindo policiamento ou apoio dos bombeiros, selecionar monitores (dentre os alunos) para delegar

funções de apoio, solicitar autorização dos pais/responsáveis, etc.

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ferramentas digitais de astronomia, como, por exemplo, o Stellarium ou Carta Celeste (Star

Chart)82.

Outro fator primordial será o uso do telescópio. Apesar dessa ferramenta astronômica

ter diversas formas e características, nos deteremos a apresentar as mais importantes. Existem

três tipos de telescópio: os refratores, também conhecidos como lunetas (possuem duas lentes

– a objetiva por onde a luz entra e a ocular por onde se olha – como o de Galileu); os refletores

ou newtonianos (cujo principal elemento óptico é um espelho côncavo); e os catadióptricos

(que possuem uma combinação de lentes e espelhos e concilia as melhores características dos

dois primeiros). A abertura de um telescópio (geralmente apresentada em milímetros) é o fator

que mais influencia na quantidade de luz captada e na nitidez da imagem. Os telescópios

refratores são ideais para observação da Lua e dos planetas visíveis, praticamente não precisam

de manutenção e tem um custo relativamente baixo. Entretanto, normalmente apresentam

aberrações cromáticas e, caso tenham uma grande objetiva (ou seja, uma maior abertura para

alcançar maior nitidez), serão muito compridos, pesados e bem mais caros. Os refletores, por

outro lado, ideais para observação do céu profundo, de galáxias, nebulosas e aglomerados

estelares, possuem maior nitidez e são bem mais leves, porém, necessitam de mais cuidado e

algumas manutenções, possuindo um preço intermediário. Por fim, os catadióptricos são

menores, mais leves, possuem maior abertura e nitidez. Eles têm baixa manutenção e servem

para qualquer tipo de observação astronômica, sendo, com toda certeza, a melhor opção entre

os telescópios modernos. Entretanto, o seu preço é bem mais elevado, chegando a custar de

cinco a dez vezes o valor dos primeiros.

Levando em consideração a realidade de nossas escolas, sabemos que poucas têm

laboratórios de ciências e menos ainda telescópios. Aquelas que possuem, ou cujos professores

de ciências tenham acesso, geralmente serão do tipo refratores. Entretanto, para os nossos fins,

isso não será problema, pois esse é, exatamente, o tipo de instrumento utilizado por Galileu há

quatro séculos atrás83.

82 Esse recurso (que pode ser acessado pelo Play Store dos smartphones) aumenta o repertório didático do

professor, uma vez que cada aluno pode baixar os programas com antecedência e fazer uso deles até mesmo durante

a aula.

83 Apesar disso, as lunetas modernas são bem mais eficientes que as produzidas por Galileu. Vannucchi (1996, p.

93) afirma que “embora os telescópios de Galileu fossem os melhores existentes na época, tratavam-se ainda de

instrumentos rudimentares, sem montagem fixa, e com campo visual [extremamente] pequeno”.

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Mas, se as condições forem oportunas, sugerimos um processo bastante didático e que

trará, na prática, a perspectiva histórica vivenciada por Galileu Galilei: o desenvolvimento de

uma prática de construção de lunetas de baixo custo pelos próprios estudantes – instrumento

que eles utilizarão para observar o céu durante a aula de campo84. Neste caso, propomos que

seja realizada uma aula extra, anteriormente ao encontro de observação astronômica, e que o

professor utilize o procedimento “Simplificando a luneta com lente de óculos”, desenvolvido

por Nogueira (2009, p. 193-202)85.

O professor, então, tomando as medidas de precauções necessárias, poderá utilizar o

quadro abaixo (Tabela 1) para desenvolver o encontro de observação astronômica. Cabe

ressaltar que esta sequência é sugestiva, e o professor deve ficar à vontade para alterá-la ou

mesmo retirar ou incluir elementos86.

84 Apesar disso, a visualização através das lunetas fabricadas pelos estudantes terá melhor eficiência para

observação lunar. Assim, caso o professor tenha acesso a um telescópio profissional, sugerimos que ele o utilize

posteriormente às lunetas, o que pode, inclusive, enriquecer as discussões sobre a qualidade das imagens

telescópicas visualizadas por Galileu.

85 Sugerimos, ainda, uma pequena alteração da proposta de Nogueira (2009): substituir as lentes de óculos por

lupas (importadas) e o monóculo de fotografia pela lente (removível) das pequenas lanternas táticas Led Cree,

ambas dispostas no mercado com preços acessíveis, o que trará uma melhora significativa na nitidez das imagens.

86 Reiteramos que, caso o professor não tenha oportunidade de aplicar toda a unidade didática, ele pode fazer uso

de suas partes isoladas ao decorrer das aulas; pode desenvolver mais de um encontro de observação astronômica,

por exemplo; ou ainda, caso haja impossibilidade para tal, pode incluir uma prática com realidade virtual através

de vídeos em 360° (utilizando a plataforma do YouTube e digitando "astronomia 360° view”) ou do simulador de

gravidade interativo Universe Sandbox (cuja primeira versão pode ser baixada gratuitamente pelo site

<pt.freedownloadmanager.org/Windows-PC/Universe-Sandbox.html> ou, a segunda versão, comprada no site

oficial <universesandbox.com/>).

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Tabela 1 – Etapas do encontro de observação astronômica.

Objetivo Procedimento Elementos histórico-filosóficos

• Desenvolver o processo de

redescoberta do céu;

• Perceber, a partir de uma

perspectiva geocêntrica, que os

astros completam uma volta ao

redor da Terra em 24 horas

(movimento diurno);

• E situar a Terra em uma

posição privilegiada – o centro

do Universo – caracterizando-a

como estática.

• Convidar os alunos a observarem o céu por alguns

minutos em silêncio; e pedir que eles comentem sobre

os sentimentos que brotam dessa contemplação;

• Solicitar que identifiquem (apontem no céu) a Lua,

planetas e constelações;

• Perguntar se alguém sabe o que são os pontos

cardeais e como localizá-los;

• Questioná-los sobre o movimento dos astros (onde

nascem, onde se põem, quanto tempo dura esse

movimento, etc.);

• Perguntar onde está o Sol e relacionar sua posição à

fase da Lua;

• Solicitar que alguém explique, a partir do que foi

aprendido até o momento, como é a posição da Terra

no Universo observável e quais as características dela

comparadas com “o todo” (tamanho, posição,

movimento, etc.).

Essas ideias estavam fixas nos sistemas mentais das pessoas do

passado. Historicamente, a ideia de uma Terra em movimento era

(e ainda é) contrária à percepção dos sentidos (Feyerabend87 cita

que a ideia do movimento da Terra é “bizarra, absurda e

obviamente falsa”, mencionando algumas expressões que foram

frequentemente usadas nos séculos passados e que ainda são

ouvidas sempre que cientistas retrógrados se defrontam com uma

teoria nova e contrária aos fatos). De forma que, é possível notar

como culturas inteiras da antiguidade se organizaram em torno de

modelos geocêntricos do Universo. Um desses modelos foi

defendido pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), e nele o

Universo era dividido em duas partes: o mundo sublunar (do

centro da Terra até antes da órbita da Lua) e o mundo supralunar

(que envolvia a Lua e tudo que havia após ela). A Terra estava no

centro de tudo, imóvel, e rodeada pelas esferas celestes, incluindo

a esfera das estrelas fixas. Essas duas partes do Universo eram

regidas por leis diferentes: a primeira era composta pelos

elementos terra, água, ar e fogo (nessa ordem), local de mudança,

pecado, destruição e morte; e a segunda parte era uma região

perfeita e eterna, delimitada pelas estrelas fixas, donde giravam

os planetas (incluindo a Lua e o Sol), além da qual não havia nada,

nem lugar, nem vazio, movida pelo motor primário que criou tudo

que existe e gerou o movimento circular e uniforme de todos os

astros.

87 FEYERABEND, 2011b, p. 93.

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• Reconhecer diferentes mitos

cosmogônicos (modelos que

explicam a origem do Universo

em determinada cultura),

sobretudo os indígenas e

africanos;

• Relacioná-los uns com os

outros, buscando elementos

semelhantes e distintos;

• E refletir sobre suas possíveis

influências nas explicações

tradicionais.

• Solicitar aos alunos que contem (resumidamente)

diferentes mitos que explicam a criação das coisas do

céu ou a origem do Universo;

• Colaborar, ao término de suas falas, contando-lhes

outros mitos cosmogônicos88;

• E, por fim, instigá-los a discutir sobre a relação entre

esses mitos e a refletir sobre as suas possíveis

influências nas explicações tradicionais (sobretudo a

cristã).

Podemos estender as críticas que Paul Feyerabend faz à ciência

(que é geralmente vista como uma ideologia neutra, objetiva,

racional, acima de outras formas de conhecimento, etc.) às

explicações míticas unilaterais da criação das coisas do céu e da

origem do Universo. Ele deixa claro que defende a separação

religião-Estado; que um cidadão deve poder escolher a religião

que é de seu agrado; e que, em uma sociedade livre, um cidadão

maduro não é uma pessoa que foi profundamente instruída em

uma ideologia especial, mas aquele que conheceu as

possibilidades e decidiu em favor daquilo que considerou ser

melhor para si89. Além disso, compreendendo a ciência como

fruto de uma construção histórica, que se aproxima dos mitos,

muito mais do que se pode admitir90, e reconhecendo a

importância que os métodos e elementos não-científicos tiveram

nos grandes resultados da ciência moderna91, Feyerabend afirma

que devemos reexaminar nossa atitude em face do mito, da

religião, da magia e da feitiçaria92; e que, para termos esperança,

sempre existem pessoas que lutam contra a uniformidade e

defendem o direito que indivíduos têm de viver, pensar e agir

como lhes pareça conveniente93.

88 Indicamos alguns materiais que podem aumentar o repertório cosmogônico do professor: o trabalho de Roberto Martins O Universo – Teorias sobre sua origem e

evolução, de 1994, disponível no site <ghtc.usp.br/Universo/>; o vídeo “3 mitos de criação Cristão, Tupi Guarani e Yorubá”, disponível no YouTube pelo site

<youtube.com/watch?v=ctACniyQKjU>; o conto indígena da lenda do dia e da noite <youtube.com/watch?v=v4LERka3bOY>; “a criação do Mundo Iorubá” (mitologia

africana) <youtube.com/watch?v=xqrxAA_OKFk> e outros vídeos que podem ser acessados buscando por “mitos cosmogônicos” na plataforma online.

89 FEYERABEND, 1977, p. 464.

90 Ibidem, p. 447.

91 Ibidem, p. 460.

92 Ibidem, p. 453.

93 FEYERABEND, 2010, p. 19.

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112

• Desenvolver as discussões

referentes à queda dos corpos e o

suposto movimento de rotação

da Terra;

• Compreender o chamado

“argumento da torre”;

• E relacionar o argumento da

torre a um helicóptero.

• Discutir com os alunos a respeito de uma teoria do

século XVI (o Heliocentrismo), que afirmava que a

Terra supostamente se movia em torno de seu próprio

eixo e realizava uma translação ao redor do Sol;

• Questioná-los se é possível notar tais movimentos;

• Apresentar o argumento da torre como “prova” da

imobilidade da Terra (evidência do modelo

geocêntrico);

• E questioná-los sobre o que deveria acontecer a um

helicóptero, ao levantar voo e ficar parado a alguns

centímetros do chão, caso a Terra estivesse realizando

um movimento de rotação.

O modelo heliocêntrico de Nicolau Copérnico (1473-1543)

apresentava uma solução para o movimento retrógrado dos

planetas, entretanto, ele era contraditório com a teoria aristotélica

dos movimentos naturais do universo; não explicava o movimento

dos corpos aqui na Terra; era contrário àquilo que mostravam os

nossos sentidos (o visível deslocamento do Sol); não se via nada

saindo da Terra como consequência de seu rodopio; retirava a

Terra de uma posição privilegiada do Universo; e poderia ser

facilmente refutado pelos experimentos de queda-livre (o

argumento da torre). Apesar disso, Copérnico postula uma Terra

em movimento e caracteriza os epiciclos planetários (que se

moviam para frente e então invertiam a sua direção) como um

movimento aparente e, auxiliado pelo fato de que isso estava em

concordância com a posição do Sol, interpreta esse movimento

aparente como sendo criado por um movimento real e circular por

parte da Terra94.

• Perceber, a partir de uma

perspectiva geocêntrica, como o

brilho dos planetas deve

permanecer constante pelo

período em que eles orbitam a

Terra;

• E discutir sobre como, de fato,

podemos notar a uniformidade

do brilho planetário, ao observá-

los a olho nu, como fizeram os

estudiosos do céu até o final do

século XVI.

• Convidar os alunos a olhar mais atentamente para os

planetas visíveis e perguntar se costumam contemplá-

los durante o ano;

• Questionar se é possível notar uma grande mudança

no brilho desses planetas (ou seja, se ao decorrer do

ano eles passam a brilhar mais ou menos em

determinados meses);

• Concluir que, estando a Terra no centro do sistema

planetário, pouca deveria ser a mudança vista no

brilho anual desses planetas;

• Afirmar que, de fato, olhando os planetas ao decorrer

do ano, praticamente não se pode notar mudança em

seus brilhos (evidência do modelo geocêntrico).

Outro argumento em defesa da Terra estacionária é a

uniformidade do brilho planetário. De fato, estando a Terra no

centro do Universo e os planetas girando-a em círculos

concêntricos, pouca deveria ser a mudança vista no brilho desses

planetas ao realizarem suas órbitas ao redor da Terra, bem como

pode ser comprovado através da observação a olho nu.

94 FEYERABEND, 2011b, p. 181, 187.

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113

• Ter contato com o telescópio;

• Utilizá-lo para observar objetos

(terrestres) distantes;

• Perceber como a imagem

obtida pelo instrumento óptico

“aproxima” os objetos distantes

e revela características antes

invisíveis;

• Notar algumas distorções

produzidas pelo telescópio ao se

observar objetos conhecidos;

• E refletir sobre a confiabilidade

das observações telescópicas,

sobretudo quando se trata de

objetos desconhecidos.

• Apresentar o instrumento óptico aos alunos: origem,

tipos/modelos, as partes que o compõe, o

funcionamento e os cuidados com o manuseio;

• Apontar o telescópio para uma árvore, prédio ou torre

distante e solicitar aos alunos que possam, um a um,

olhar através do instrumento;

• Perguntar aos alunos sobre como parecem ser os

objetos visualizados, questionando-os sobre as

diferenças entre o objeto real e a imagem obtida pelo

telescópio;

• Perguntá-los se há algum tipo de distorção na

imagem: manchas coloridas, borrões, ausência de

foco, duplicação do objeto, etc., ou até se a imagem

não pode ser vista;

• Construir uma conclusão a respeito da confiabilidade

das imagens produzidas pelo instrumento óptico.

Na época de Galileu, não existia nenhuma teoria que explicasse a

formação das imagens produzidas pelo telescópio95. Na maioria

das vezes, essas imagens possuíam aberrações e distorções que

podiam ser identificadas ao observar objetos (terrestres)

conhecidos. Feyerabend afirma que o conhecimento de Galileu

sobre a teoria óptica da refração não é correto e nem é suficiente

para o entendimento de fenômenos telescópicos96, e que ele

reconstrói uma versão melhor da luneta holandesa e afirma em

seus escritos que isso se deu por meio de cálculos matemáticos.

Entretanto, não há cálculos em seus relatórios, mas um esboço que

mais se assemelha à tentativa e erro (ou seja, à experiência)97.

Apesar disso, o dispositivo aperfeiçoado por Galileu era

considerado moderno, e provavelmente o melhor de sua época.

Inicialmente, seu interesse estava voltado para as questões

militares e não astronômicas. Quando Galileu ouviu falar nas

lunetas holandesas, apressou-se para estudá-las e melhorá-las, a

fim de obter vantagem para Veneza sobre os turcos, podendo

observar os navios inimigos cerca de duas horas antes de serem

vistos a olho nu98. Há vários relatos da época, inclusive do próprio

Galileu, evidenciando a importância e os benefícios desse novo

instrumento quando usado em terra ou mar. Sua aplicação às

estrelas, contudo, era uma questão inteiramente distinta99.

95 HENRIQUE, 2010, p. 26.

96 FEYERABEND, 2011b, p. 118.

97 FEYERABEND, 2011b, p. 120.

98 VANNUCCHI, 1996, p. 48.

99 FEYERABEND, 2011b, p. 121.

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114

• Utilizar o telescópio para

visualizar a Lua, as fases de

Vênus, os satélites de Júpiter e os

anéis de Saturno;

• Notar o poder de ampliação do

telescópio;

• Perceber a discordância sobre o

que é visualizado (pelos alunos);

• Buscar elementos que refutem

o Geocentrismo e,

consequentemente, apoiem o

Heliocentrismo.

• Convidar os alunos a observarem os astros pelo

telescópio: as crateras e montanhas da Lua; a fase em

que Vênus se encontra, as quatro outras estrelas que

são satélites de Júpiter; e os dois acompanhantes de

Saturno (evidências do modelo heliocêntrico);

• Perguntá-los sobre o que pode ser visualizado com o

auxílio do instrumento óptico;

• Destacar a percepção das irregularidades geográficas

da Lua: montanhas, vales, crateras, manchas, etc.;

• Destacar a percepção da fase de Vênus e ampliar a

discussão para as outras fases ao longo de seu período

de translação;

• Destacar a percepção dos satélites de Júpiter (e

refletir sobre como objetos podem orbitar outros astros

que não a Terra);

• Destacar a percepção dos anéis de Saturno (como

objetos estranhos – “orelhas” – que parecem

acompanhar o planeta);

• Questionar os alunos se essas características

contribuem para refutar o Geocentrismo e,

consequentemente, apoiar o modelo heliocêntrico de

Nicolau Copérnico;

• Discutir sobre como Galileu utilizou esses

argumentos para defender o Heliocentrismo, mesmo

partindo da falsa premissa de que o telescópio

produzia um retrato verdadeiro do céu.

Além das interpretações naturais, Galileu altera as sensações que

ameaçam a teoria de Copérnico. Ele admite que haja tais

sensações, louva Copérnico por tê-las ignorado e afirma tê-las

eliminado com o auxílio do telescópio. Contudo, não oferece

razões teóricas pelas quais se deveria esperar que o telescópio

fornecesse um retrato verdadeiro do céu100. É bem verdade que o

telescópio produzia resultados fantásticos na Terra, entretanto, ele

se deparava com dificuldades quando utilizado para observações

celestes, onde as imagens eram indistintas, indeterminadas,

contraditórias e entravam em conflito com o que qualquer pessoa

pudesse ver a olho nu. Assim, cita Feyerabend, apenas uma nova

teoria da visão telescópica podia trazer ordem ao caos e separar

aparência de realidade101. É sabido que as observações

telescópicas terrestres indicavam, até certo ponto, propriedades

estáveis e objetivas das coisas vistas. Como os nossos sentidos

estão familiarizados com a aparência dos objetos, fica fácil

distinguir o que é verdadeiro e o que é distorcido pelo

instrumento. Entretanto, não conhecemos de perto as estrelas e os

planetas. Até mesmo a aparência da Lua nos dá uma ideia falsa de

sua distância e seu tamanho. Logo, não podemos usar a nossa

memória para separar o que provêm do próprio objeto (celeste)

das contribuições do telescópio102. A ausência de observações

satisfatórias mostravam dois objetos acompanhantes de Saturno;

duplicação de imagens dos astros; mudança da posição lateral da

imagem de acordo com a posição do olho; franjas coloridas;

presença ou ausência das estrelas que acompanham Júpiter; uma

Lua repleta de montanhas na parte interna, mas perfeitamente

lisa na periferia, e isso a despeito do fato de que a periferia da

Lua mudava com a sua rotação; além de algumas crateras que não

existem e a observação de uma atmosfera lunar; o que revela a

100 FEYERABEND, 2011b, p. 113.

101 Ibidem, p. 123, 138.

102 Ibidem, p. 124.

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115

pobreza do que poderia ser visualizado pelo telescópio. Mas

Galileu confiava em seu instrumento. Por diversas vezes

apresentou seu telescópio em público, inclusive a membros da

Igreja e cientistas adversários, que, ademais, muitos desses

homens se recusaram inclusive a olhar no telescópio103. Após um

desses encontros, um de seus contemporâneos relata: Galileu não

alcançou nada, pois mais de vinte homens cultos estavam

presentes e, contudo, ninguém viu distintamente os novos

planetas; ele dificilmente será capaz de continuar afirmando sua

existência104. Mesmo assim, apesar das objeções, Galileu utiliza

seu instrumento como “prova” de seus argumentos: em resposta

aos escolásticos que afirmavam que um corpo não poderia ter dois

movimentos ao mesmo tempo, ele exibiu os satélites de Júpiter

(que orbitavam o planeta enquanto ele fazia sua revolução anual);

quanto à tradicional alegação de que os corpos celestes seriam

perfeitos, ele utiliza o telescópio para afirmar que o Sol tem

manchas e que a Lua não é perfeitamente lisa. Quanto à objeção

de que a teoria copernicana requereria que Vênus exibisse fases

(o que não poderia ser detectada a olho nu), Galileu as confirmou

com as observações telescópicas das fases de Vênus105.

• Perceber, a partir de uma

perspectiva heliocêntrica, como o

brilho dos planetas varia pelo

período em que eles orbitam o

Sol, estando hora mais próximos

• Convidar os alunos a olhar mais atentamente para os

planetas Vênus e Marte pelo telescópio;

• Discutir com eles que, estando o Sol no centro do

Universo, hora esses planetas estariam mais próximos

da Terra (perigeu) – como pode ser visualizado no

tradicional alinhamento dos planetas – e hora estariam

mais distantes (apogeu), o que configuraria uma

Galileu, entretanto, não desistiu. As medidas da variação do brilho

aparente de Vênus e Marte, vistos à olho nu, contradizem a teoria

copernicana no que diz respeito ao suposto movimento de

translação da Terra. De fato, no caso da Terra estar no centro do

sistema planetário, pouca deveria ser a mudança vista no brilho

desses planetas ao realizarem suas órbitas ao redor da Terra, bem

como era visto e comprovado por muitos astrônomos da época,

inclusive o próprio Galileu. Em contrapartida, afirma Feyerabend,

103 OLIVEIRA, 2011, p. 56, nota 130.

104 GALILEI, Opere, III apud FEYERABEND, 2011b, p. 125.

105 HELLMAN, 1999, p. 29.

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116

da Terra (perigeu) e hora mais

distantes (apogeu);

• Discutir sobre como, de fato,

podemos notar a variação do

brilho planetário, ao observar

Vênus e Marte pelo telescópio,

como fizera Galileu no início do

século XVII.

grande mudança no brilho desses planetas

(diferentemente do que poderia ser percebido a olho

nu);

• Afirmar que, de fato, olhando os planetas ao decorrer

do ano pelo telescópio, pode-se notar uma mudança

significativa em seus brilhos (evidência do modelo

heliocêntrico).

há alguns fenômenos telescópicos que são claramente

copernicanos: a variação telescópica no brilho dos planetas está

mais estreitamente de acordo com Copérnico do que com os

resultados da observação a olho nu. Visto através do telescópio,

Marte e Vênus de fato mudam como deveriam mudar segundo a

perspectiva copernicana106. Assim, os distanciamentos desses

planetas à Terra, devido à translação dos mesmos ao redor do Sol,

causariam, como de fato causam, uma grande mudança em seus

brilhos, vistos através do telescópio. Galileu introduz esses

fenômenos como evidência independente para Copérnico,

embora a situação seja antes a de uma concepção refutada (...) –

a ideia de que fenômenos telescópicos são retratos fiéis do céu.

(...) Mas essa mudança está em harmonia com as predições de

Copérnico. É essa harmonia e não um profundo conhecimento de

cosmologia e óptica que, para Galileu, comprova Copérnico e a

veracidade do telescópio em assuntos terrestres tanto quanto em

assuntos celestes. E é sobre essa harmonia que ele constrói uma

concepção inteiramente nova do universo107.

106 FEYERABEND, 2011b, p. 141.

107 Ibidem, p. 141-142.

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117

O professor deve seguir a coluna de procedimentos tendo em vista os objetivos

propostos. Destacamos que, nesse momento, não será necessário tratar das questões histórico-

filosóficas de maneira independente (elas estão dispostas, sobretudo, para colaborar com o

professor); mas que tais elementos aparecerão, naturalmente, nas etapas do encontro e,

posteriormente, nos momentos que se seguem.

Por fim, esperamos que questões da astronomia de Galileu venham à tona e sejam

discutidas pelos alunos – sem, necessariamente, serem respondidas pelo professor – e

sugerimos que a avaliação deste primeiro momento se dê pela participação dos alunos no

encontro.

Atividade de construção teórica

Posteriormente ao encontro de observação astronômica, sugerimos uma roda de

conversa entre os alunos, para que seja feita uma discussão em sala de aula a respeito das

observações realizadas anteriormente; o professor poderá, ainda, apresentar imagens e

simuladores computacionais de astronomia; passando, por fim, como tarefa para casa, uma

atividade de construção teórica.

Após a aula de campo, as cadeiras da sala de aula podem estar dispostas em círculo para

facilitar a dinâmica de grupo, em que os alunos discutirão a respeito das observações feitas

anteriormente. O professor deve deixá-los à vontade para fazer comentários pessoais, juízos de

valor, declarações sobre aquilo que foi visualizado no céu a olho nu e pelo telescópio, externar

sentimentos que surgiram com as observações astronômicas e fazer críticas construtivas a

respeito do encontro de observação.

Quando o professor achar conveniente, poderá enriquecer a discussão com vídeos e

imagens108, a respeito das observações que foram feitas e dos comentários que surgiram a partir

delas. Além disso, os alunos poderão fazer uso do simulador computacional Stellarium109 para

observar e “controlar” o movimento dos planetas, inclusive movendo o tempo para simular o

céu que estava visível durante a aula de campo.

108 Como exemplo, pode-se utilizar as imagens disponíveis nesta pesquisa, que podem ser impressas ou

apresentadas em slides.

109 O Stellarium é um software livre de astronomia para visualização do céu, que pode ser acessado e baixado pelo

site www.stellarium.org.

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118

Após isso, o professor passará como tarefa para casa um material textual, a ser lido,

respondido, e entregue ao término da aula júri simulado. Apresentada no Apêndice desta

dissertação, a atividade de construção teórica terá por título: “Galileu Galilei: os sistemas de

mundo geocêntrico e heliocêntrico”, e pode ser impressa e entregue aos alunos ou

disponibilizada em uma plataforma digital a que eles tenham acesso. Trata-se de uma

construção que terá por base a leitura feyerabendiana da astronomia de Galileu e que buscará

as características do desenvolvimento científico evidenciadas por Paul Feyerabend. A leitura

contará com questionamentos e perguntas que orientarão os estudantes a construírem os

respectivos argumentos e contra-argumentos que irão utilizar na última etapa desta unidade

didática – a aula júri simulado. A avaliação pedagógica, por parte do professor, será feita ao

acessar o material respondido pelos alunos e contará com a participação dos mesmos na roda

de conversa.

Por fim, o professor apresentará aos alunos a proposta do júri simulado (que será descrita

na próxima seção), marcará o dia da aula e discutirá com eles as “regras do jogo”, podendo,

inclusive, pedir sugestões sobre a dinâmica.

Aula júri simulado

Após a construção teórica dos argumentos e contra-argumentos dos sistemas de mundo

de Galileu, a partir de uma leitura feyerabendiana, a unidade didática tem desfecho com a

estratégia de ensino-aprendizagem do júri simulado.

O júri simulado é uma ferramenta didática que possibilita a interpretação de papéis ao

simular um tribunal judiciário, onde os estudantes exercem funções de argumentação, contra-

argumentação e julgamento de uma determinada questão. Segundo Anastasiou & Alves (2005,

p. 92):

A estratégia de um júri simulado leva em consideração a possibilidade da

realização de inúmeras operações de pensamento, como: defesa de ideias,

argumentação, julgamento, tomada de decisão, etc. Sua preparação é de

intensa mobilização, pois, além de ativar a busca do conteúdo em si, (...)

oportunizam um envolvimento de todos para além da sala de aula. A estratégia

pode ainda ser regrada de espírito de dramaturgia, o que deixa a atividade

interessante para todos, independentes da função que irão desenvolver na

apresentação final. Essa estratégia envolve todos os momentos de construção

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do conhecimento, da mobilização à síntese, pela sua característica de

possibilitar o envolvimento de um número elevado de estudantes.

Ainda segundo os autores, as operações de pensamento predominantes na estratégia do

júri simulado, são: imaginação, interpretação, crítica, comparação, análise, levantamento de

hipóteses, busca de suposições e decisão; quanto a avaliação da atividade pedagógica – por

parte do professor – este deve considerar a apresentação concisa e lógica das ideias, a

profundidade dos conhecimentos e a argumentação desenvolvida pelos estudantes a respeito da

questão proposta (ANASTASIOU & ALVES, 2005, p. 92).

Silva & Martins (2009), ao discutirem sobre a estrutura e a prática do júri simulado nas

aulas de física do ensino médio, afirmam que a dinâmica necessita de um tema problematizador

que envolva polêmicas e divergência de opiniões entre o grupo. Segundo os autores, esta é uma

“ótima estratégia didática para investigar a pertinência e as contribuições de uma abordagem

que priorize as dimensões históricas e filosóficas da ciência”, bem como a construção dos

conceitos científicos envolvidos (ibidem, p. 18).

Caberá ao professor – e em especial o de física – preparar essa ferramenta didática desde

seu plano de ensino. Entretanto, esta não será uma tarefa difícil. Segue uma descrição detalhada

de uma proposta (que, naturalmente, pode – e deve – conter mudanças de acordo com a

realidade local) sobre como o professor pode proceder.

Inicialmente, orientamos que o professor possa fazer a leitura do capítulo 4 desta

pesquisa: o ensino da astronomia de Galileu numa perspectiva feyerabendiana; pois sabemos

que nem sempre a nossa formação acadêmica propicia a inclusão de elementos da HFC em

nossas práticas pedagógicas, além do mais, se faz necessário que o professor tenha domínio do

conteúdo tratado.

A temática do júri simulado será: Galileu Galilei: os sistemas de mundo geocêntrico e

heliocêntrico. O objetivo do professor será promover uma grande discussão (assumindo o papel

de mediador e se isentando da interpretação de papéis) a respeito dos temas110 da astronomia

de Galileu, a partir de uma perspectiva feyerabendiana. Ele dividirá a turma em três grupos: os

defensores do sistema de mundo geocêntrico, os defensores do sistema de mundo heliocêntrico

110 Temas supracitados no capítulo anterior: a interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos

corpos; a Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria copernicana; o telescópio fornece um retrato

verdadeiro do céu?

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e os juízes. A divisão dos alunos pode ser feita de livre escolha pelos mesmos, deixando quatro

vagas para os juízes e o restante sendo divididas igualmente entre os defensores, que formarão

os dois grupos maiores e que vão, cada qual, defender o seu sistema de mundo. É interessante

destacar que o que os alunos acreditam “ser verdade” pouco importa nesse processo. O

professor deve instigá-los a assumir o papel no qual escolheram e construir uma argumentação

a respeito dele.

A aula em questão deverá ser composta por uma aula dupla (ou seja, duas aulas de 50

minutos). O professor poderá, ainda, dividir o espaço físico da sala111 da seguinte maneira: os

juízes ficarão em um dos cantos da sala e os dois grupos maiores serão divididos um de cada

lado do espaço dedicado aos juízes, ficando um grupo de frente para o outro.

Tabela 2 – Quadro com a divisão dos alunos.

Função Quantidade de alunos

presentes

Simulação com 30

alunos (por exemplo)

Juízes 4 4

Defensores do sistema de

mundo geocêntrico

A metade dos alunos (sem

incluir os juízes)

13

Defensores do sistema de

mundo heliocêntrico

A outra metade dos alunos

(sem incluir o juízes)

13

No início da aula, o professor irá explicar como acontecerá o júri simulado, enfatizando

que os alunos devem interpretar os papéis ao qual estão divididos e que devem se envolver no

espírito da dramaturgia. Após isso, ele irá tirar as dúvidas sobre a dinâmica e informará o seu

papel de mediador, não se envolvendo, por tanto, no debate (nem mesmo para tirar dúvidas

sobre os conteúdos). O professor, então, fará a divisão da sala e dará um tempo de 15 minutos

para que cada grupo possa se reunir e discutir sobre os respectivos argumentos e contra-

111 Caso a escola possua estrutura, o professor pode usar a criatividade para enriquecer o ambiente com roupas,

mobília, etc., ou até se deslocando para outro espaço físico que julgue mais apropriado. Entretanto, se não for

possível, as próprias cadeiras dos estudantes serão suficientes para promover uma divisão na sala de aula. Deve-

se, também, delimitar o espaço onde haverá a arguição (um para cada grupo, numa posição à frente dos seus

companheiros, e de frente para o júri).

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argumentos (material que fora produzido pelos alunos na atividade de construção teórica) que

eles irão utilizar para convencer os juízes acerca do sistema de mundo que defendem.

Enquanto isso, o professor se reunirá com os juízes para explicar como estes devem

conduzir a dinâmica do júri simulado: os juízes serão as autoridades e coordenarão a discussão,

dando direito a fala (intercalada) dos grupos, sendo responsáveis, inclusive, pela organização

da sala de aula. Eles anotarão as falas que acharem interessante e, individualmente, poderão

fazer algumas perguntas aos defensores dos argumentos e dos contra-argumentos dos dois

grupos (vale lembrar que estas perguntas não devem ser para confrontar os defensores, mas

apenas para conduzi-los a argumentação). Espera-se que todos os defensores possam atuar ao

menos uma vez, indo a frente e defendendo seu ponto de vista aos juízes e demais colegas. O

outro grupo deve argumentar sobre o ponto de vista contrário e, inclusive contra-argumentar

o ponto de vista adversário (neste último caso, o defensor poderá construir um contra-

argumento que confronte um ou mais de seus adversários). Quando todas as arguições forem

feitas, cada juiz decidirá sobre qual sistema de mundo foi melhor explicado e qual deles deve

corresponder a realidade (de acordo com a argumentação dos grupos). Entretanto, antes do

veredito, os juízes coordenarão uma votação para que todos os defensores possam decidir por

um sistema de mundo (vale ressaltar que esta decisão não deve, necessariamente, se prender ao

grupo do qual o estudante faz parte, a ideia é, realmente, que eles possam mudar livremente de

opinião, assumindo ter sido convencido pelos seus adversários). Neste momento, cada grupo

deve escolher um representante para fazer uma última arguição, mas aqui haverá uma surpresa:

de última hora o professor informará que eles devem trocar de papéis, ou seja, eles terão que

argumentar contra o sistema de mundo que estavam defendendo e tentar convencer os demais

a respeito do sistema de mundo que, outrora, estavam atacando. Isso, provavelmente, causará

um pouco de confusão, mas, afinal, é necessário conhecer os argumentos de seus adversários

para se fazer uma boa defesa.

Tabela 3 – Quadro com a organização do tempo da aula júri simulado.

Cronograma

Tempo total 100 minutos

Tempo para explicação do

professor, dúvidas e divisão física

da sala

10 minutos

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Tempo para os alunos se reunirem

para discutir os argumentos e

contra-argumentos do seu sistema

de mundo

15 minutos

Tempo para as arguições

(intercalada) dos defensores

30 minutos

Tempo para as últimas arguições e

votação dos defensores

10 minutos

Tempo total de fala para os juízes 15 minutos

Tempo para os questionamentos,

discussões e conclusões do professor

20 minutos

O professor, então, entregará um pequeno pedaço de papel a todos os defensores. Estes

votarão (em segredo) por um sistema de mundo e depositarão a resposta em uma urna (uma

caixa de papelão pequena, por exemplo). Após isso, cada um dos quatro juízes terá um momento

de fala e tomará uma decisão. Entretanto, antes que eles revelem a decisão final do júri, farão a

contagem da votação dos defensores na urna e dirão o resultado (este resultado irá mostrar que

algumas pessoas mudaram de concepção durante o processo argumentativo e servirá para

desempatar a decisão do júri, caso aconteça). Por fim, os juízes darão o veredito final em favor

de um dos sistemas de mundo, encerrando o júri simulado.

“Na sua essência,” cita Silva & Martins (2009, p. 19),

a prática apresentada objetiva a realização de reflexões em torno do fazer

científico, ao colocar em confronto [teses] distintas (...). Espera-se, assim, que

os alunos possam perceber a pluralidade de ideias existentes na formação dos

conceitos, descaracterizando a visão de uma ciência “linear” e ideia do

“gênio”, muito difundidas nas práticas mais tradicionais. Ainda nessa direção,

o júri simulado poderá dar um maior significado ao estudo da física, (...) pois

os alunos terão a possibilidade de vivenciar as dificuldades encontradas pelos

cientistas na formulação e defesa dos modelos, diante de colegas defensores

de outro ponto de vista. Neste cenário, a capacidade de argumentação por parte

dos alunos torna-se fundamental, devido à própria natureza da atividade, em

que o trabalho com hipóteses e a explicação são habilidades importantes na

defesa de cada uma das teses.

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123

Assim, esperamos que este júri simulado favoreça, por parte dos alunos, as operações

de pensamento citadas por Anastasiou & Alves (2005), principalmente a argumentação e a

tomada de decisão, e dê ao professor uma ferramenta e um aporte teórico para que este possa

desenvolver uma aula de física estimulante, diferenciada, interdisciplinar, e que, sobretudo,

contribua para vencer os desafios de sua prática pedagógica.

Finalmente, tendo desenvolvido as três etapas da unidade didática, o professor deverá

dedicar a aula seguinte para questionamentos, discussões e conclusões a respeito do que foi

realizado: questionará os alunos a respeito da dinâmica do júri (como foi a interpretação do

papel, como foi a defesa de um modelo que não acreditava, se houve mudança de concepção

durante ou após a dinâmica, etc.); construirá as conclusões a respeito dos temas da astronomia

de Galileu; formulará algumas questões que servirão de síntese para os conteúdos disciplinares;

e discutirá sobre os aspectos sócio-histórico-filosóficos do desenvolvimento científico que

chamaram a atenção dos alunos. O objetivo desse último momento será desenvolver questões

sobre o saber científico. Para dinamizar, o professor pode recortar as perguntas que seguem

(Tabela 4) em pedaços de papel e sortear os alunos que irão respondê-las, antes de abrir a

discussão para os demais.

Tabela 4 – Quadro com exemplos de questões aos alunos sobre o saber científico.

O que você aprendeu nessas aulas está de acordo com o que já tinha ouvido falar do personagem

Galileu Galilei?

É correto dizer que Galileu comprovou a teoria copernicana?

Como você julga a posição da Igreja, à época, em exigir de Galileu evidências mais concretas

do Heliocentrismo?

O que você aprendeu sobre o funcionamento da ciência com toda essa discussão?

O telescópio de Galileu foi, realmente, um argumento decisivo para refutar o Geocentrismo?

Argumentos contra-indutivos, propagandas e truques psicológicos foram alguns dos artifícios

utilizados por Galileu para convencer a todos a respeito do copernicanismo. Você acha que esses

elementos fazem parte da ciência?

Existem elementos da cultura e da sociedade que podem influenciar na construção das teorias

científicas? Se sim, quais?

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124

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou relacionar a área da História e Filosofia da Ciência às suas

contribuições pedagógicas, sobretudo no ensino de física. Dada a importância da educação

científica em nossa sociedade, evidenciamos os aspectos sobre ciência, embasados nas

discussões de diversos historiadores e filósofos da ciência, apresentando suas potencialidades

e limitações.

É nesse sentido que foi destacada a análise do filósofo da ciência Paul Feyerabend –

suas ideias anarquistas que vão de encontro às concepções racionalistas do desenvolvimento

científico. De modo que a ciência é caracterizada como uma forma de produção de

conhecimento humano equivalente a outras formas de conhecimento. Além disso, concordamos

com o autor que a premissa da superioridade científica foi além do debate epistemológico e

passou a ser artigo de fé, fazendo parte do tecido básico da própria sociedade, sendo associada

à crença de que existe uma maneira certa de se viver, o que é prejudicial para a qualidade de

vidas das pessoas em uma sociedade livre.

A partir disso, recomendamos a utilização da epistemologia feyerabendiana no ensino

de física, nos conteúdos temáticos que envolvem um famoso personagem da história da ciência:

Galileu Galilei. O homem que agiu de forma anarquista (e pagou o preço por sua rebeldia e

subversão) ao romper com os padrões do pensamento filosófico, científico e teológico de sua

época, utilizando procedimentos contra-indutivos e irracionais, argumentos contraditórios com

a experiência, propagandas e truques psicológicos, para propor uma nova interpretação do

Universo, se tornando, assim, um dos maiores cientistas que já existiu e deixando seu legado

para a história da humanidade.

Ao relacionar o contexto histórico-filosófico em que surgem as teorias científicas ao

processo de ensino-aprendizagem dos estudantes, buscamos contribuir para uma compreensão

mais elaborada dos modelos científicos e evidenciamos as circunstâncias em que eles surgem e

se desenvolvem. Para isso, defendemos uma releitura feyerabendiana do caso histórico de

Galileu, com vistas à sua utilização no ensino de física, por professores e estudantes do nível

médio, fazendo um contraponto à forma pela qual tais conteúdos são tradicionalmente

ensinados.

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125

A unidade didática desenvolvida pela pesquisa buscou propor um subsídio didático para

se discutir os conteúdos de mecânica e de astronomia, a partir do olhar da filosofia da ciência

evidenciado por Feyerabend. As orientações ao professor incluem o trabalho de diversos

autores da área e a nossa prática cotidiana como uma proposta para as aulas de física do primeiro

ano do Ensino Médio. Finalmente, o Apêndice representa uma transposição didática das obras

de Paul Feyerabend e do Diálogo de Galileu Galilei, trazendo, inclusive, imagens e citações

diretas contidas nas fontes primárias. Entretanto, este é apenas um olhar, dentre muitos, para

buscarmos uma educação de qualidade e uma construção do saber científico por nossos

estudantes. Mas ainda há muito a ser feito. Outras perspectivas e metodologias podem (e

devem!) refinar e integrar essa abordagem, de forma, ainda, a aplicar e avaliar tais propostas

pedagógicas.

Sonhando em dar adeus à razão, nossa compreensão caminha numa estrada sem fim em

busca de uma ciência que também é cultura. E como bem disse, certa vez, Galileu Galilei: “a

verdade é filha do tempo, (...) mas a dúvida é o começo da sabedoria”.

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APÊNDICE

GALILEU GALILEI:

OS SISTEMAS DE

MUNDO

GEOCÊNTRICO E

HELIOCÊNTRICO

Por: JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA

NATAL – RN

2020

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APRESENTAÇÃO

Este material compõe uma das etapas da Unidade Didática proposta pela

pesquisa de dissertação de mestrado do professor José Ricardo Pereira da

Silva, intitulada: Um olhar da Filosofia da Ciência no ensino de física:

a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu.

Tal atividade é dedicada aos alunos da disciplina de física do 1° ano do

Ensino Médio, e tem por objetivo contribuir para aprendizagem do

conteúdo curricular de mecânica.

Com o título: Galileu Galilei: os sistemas de mundo geocêntrico e

heliocêntrico, este material didático contém um estudo histórico e

filosófico de um conhecido personagem do mundo da ciência – Galileu

Galilei – o filósofo natural, comumente chamado de “astrônomo” ou

“físico”, que contribuiu, de forma significativa, para a mudança na

percepção de nossa posição no Universo entre os séculos XVI e XVII.

Para essa construção histórica utilizamos os escritos do austríaco Paul Karl

Feyerabend (1924-1994). Filósofo, com doutorado em física pela

Universidade de Viena, especialização em teatro e doutor honoris causa

em letras e humanidades pela Universidade de Chicago, Feyerabend foi

um grande crítico da ciência e um profundo admirador de Galileu. Em suas

obras, ele apresenta uma visão anarquista do desenvolvimento científico

e promove uma ampla discussão a respeito da física terrestre e celeste de

Galileu, sendo parte essencial do período de mudança de pensamento

cosmológico que ficou conhecido como Revolução Copernicana.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática – CCET

Dissertação de Mestrado – Um olhar da Filosofia da Ciência no ensino de física:

a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu.

Unidade Didática (apêndice), sob orientação do Prof. Dr. André F. P. Martins.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 04

UNIDADE I – A interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da

queda dos corpos

09

UNIDADE II – A Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria

copernicana

16

UNIDADE III – O telescópio fornece um retrato verdadeiro do céu? 24

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4

INTRODUÇÃO

Esse material textual a ser lido, respondido e entregue ao professor, como parte

fundamental dessa Unidade Didática, possui as reflexões sobre o desenvolvimento

científico, a partir da perspectiva do filósofo da Ciência Paul Feyerabend.

Feyerabend volta o seu olhar para o período

histórico entre o final do século XVI e início do século

XVII, que representa um recorte de um período mais

amplo de mudança de pensamento cosmológico,

conhecido como Revolução Copernicana, onde o

personagem Galileu Galilei aparece como um dos

protagonistas desse processo.

Em vista disso, foram identificados três temas de

astronomia que, de forma articulada, compõem um

quadro dos trabalhos de Galileu, da relação entre sua

física terrestre e celeste e que, ao mesmo tempo,

possuem grande relevância histórica para as críticas

epistemológicas112 de Paul Feyerabend:

A interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos

A Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria copernicana

O telescópio fornece um retrato verdadeiro do céu?

Esses temas juntos formam o que chamamos de astronomia de Galileu.

Então, serão utilizadas as principais obras de Feyerabend e o famoso livro de Galileu

Galilei – Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano113 –

na construção que se segue.

112 Do grego episteme (conhecimento, ciência) + logos (discurso, estudo), a epistemologia é o ramo da

filosofia que se dedica ao estudo do conhecimento humano. Ela abrange discussões em torno de teorias do

conhecimento e sua justificação, de modo que o conhecimento científico é um de seus objetos, o que muitas

vezes é chamado de Epistemologia da Ciência ou Filosofia da Ciência [2].

113 Em sua obra mais famosa, publicada na Itália em 1632, Galileu utiliza três personagens – Salviati,

Simplício e Sagredo – que debatem a respeito dos sistemas de mundo, em defesa do Heliocentrismo [3].

Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend [1].

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5

Figura 2 – Ilustração de Galileu Galilei, 1623 [4]. O italiano Galileu Galilei é

provavelmente o astrônomo mais famoso de

todos os tempos. Suas “descobertas” são

associadas principalmente à defesa de um

sistema cosmológico heliocêntrico, à

liberdade de pensamento em contraposição

ao domínio social e científico da Igreja e à

utilização do telescópio como ferramenta de

“comprovação” científica e astronômica. Os

embates entre ele e seus adversários

geralmente representaram a luta de um

“pensamento revolucionário de um gênio”

contra o “pensamento conservador dos

ignorantes membros da Igreja”. Mas será

que a Revolução Copernicana pode ser

resumida de forma tão simplória? E será que a concepção milenar da Terra como centro do

Universo (o Geocentrismo) não tinha bons argumentos em seu favor? [5]

Agora uma pequena pausa na leitura!

1 – Antes dessas aulas, você já tinha ouvido falar em Galileu Galilei? Comente um pouco...

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2 – Quais foram as principais “descobertas” desse importante personagem histórico? Quais foram as

suas maiores dificuldades?

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6

A chamada Revolução Copernicana é uma sequência de eventos complexos que não

envolvem apenas Galileu, mas a situação na Cosmologia, na Física, na Astronomia, nas leis,

na Óptica e na Teologia.

Segundo o Geocentrismo, a

visão de mundo predominante na

Antiguidade que foi defendida pelo

filósofo grego Aristóteles (384-322

a.C.) e pelo matemático grego

Ptolomeu (90-168 d.C.), o Universo era

dividido em duas partes: o mundo

sublunar (do centro da Terra até antes

da órbita da Lua) e o mundo

supralunar (que envolvia a Lua e tudo

que havia após ela).

A Terra estava no centro de

tudo, imóvel, e rodeada pelas esferas celestes, incluindo a esfera das estrelas fixas. Essas

duas partes do Universo eram regidas por leis diferentes: a primeira era composta pelos

elementos terra, água, ar e fogo, local de mudança, pecado, destruição e morte; e a segunda

parte era uma região perfeita e eterna, delimitada pelas estrelas fixas, donde giravam os

planetas (incluindo a Lua e o Sol), além da qual não havia nada, nem lugar, nem vazio,

movida pelo motor primário que criou tudo que existe e gerou o movimento circular e

uniforme de todos os astros.

Esse é o movimento que os astros aparentam fazer no céu. As estrelas, o Sol e a Lua

parecem orbitar em círculos ao redor da Terra, mas os planetas (“estrelas errantes”)

executam um movimento um pouco mais complexo: fazem laçadas no céu, movem-se para

frente e então invertem sua direção. Para explicar essas anomalias, os astrônomos Hiparco

de Nicéia (190-120 a.C.) e Ptolomeu conceberam uma solução engenhosa: decompor os

movimentos complexos, observados no céu, por um movimento onde os planetas giravam

ao redor de um círculo – o epiciclo – e o centro desse círculo girava ao redor de um ponto

próximo a Terra – o equante [8].

Figura 3 – O modelo geocêntrico de Ptolomeu [7].

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7

Entretanto, no século

XVI, um diácono polonês

chamado Nicolau Copérnico

(1473-1543) propôs um

modelo que retirava a Terra do

centro do Universo e a

substituía pelo Sol. Em seu

livro De Revolutionibus

Orbium Coelestium114,

publicado no ano de sua morte,

ele elaborou uma teoria

matemática que tentava

resolver as anomalias da cosmovisão aristotélica, afirmando que, apesar dos movimentos

dos astros serem circulares, uniformes e eternos, eles não giram em torno da Terra, mas sim

em torno do Sol; e afirmava também que a Terra possuía um movimento de rotação diária

(responsável por causar os dias e as noites) e um movimento de translação anual (que gera

as estações do ano).

Copérnico era um cristão fiel e

chegou a defender as ideias

aristotélicas. Apesar disso, ele

postulou uma Terra em movimento e

caracterizou os epiciclos planetários

como um movimento aparente e,

auxiliado pelo fato de que isso estava

em concordância com a posição do

Sol, interpretou esse movimento

aparente como sendo criado por um

movimento real, e circular, por parte

da Terra [10].

114 Do latim: Sobre as Revoluções das Esferas Celestes.

Figura 4 – Epiciclos adotados pela astronomia grega [9].

Figura 5 – Sistema heliocêntrico de Copérnico, De

Revolutionibus Orbium Coelestium, 1543 [11].

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Apesar de belo pela simplicidade, o modelo heliocêntrico era incompatível com a

teoria aristotélica dos movimentos naturais, pois não explicava o movimento dos corpos aqui

na Terra; contrariava àquilo que mostravam os nossos sentidos (o visível deslocamento do

Sol); não explicava o porquê não víamos as consequências do suposto movimento da Terra;

e, além disso, estava em conflito com a Teologia, pois era contraditório com o que era

interpretado pelas Sagradas Escrituras.

Contudo, as certezas sobre o universo supralunar começaram a ser questionadas

pelas observações astronômicas a partir do final do século XVI. Nesse período vários

cometas puderam ser vistos no céu e diversos astrônomos, dentre eles, o dinamarquês Tycho

Brahe (1546-1601), concluíram que os cometas provavelmente se movimentavam pelo

universo supralunar [12].

Além disso, o século XVI envolveu a todos (da Europa) com a magnífica descoberta

das Américas. Essa descoberta colocou em xeque as fronteiras da cosmologia e da teologia

e, fez suspeitar da existência também de uma “américa do conhecimento” e eles

interpretaram cada dificuldade como evidência para esse novo continente, o que ganhou uma

importância que não teria tido se isso não tivesse ocorrido [13].

Assim, como fruto dessa grande revolução (no sentido literal da palavra), surge o

personagem histórico Galileu Galilei...

Antes de continuar, reflita e anote.

3 – Quais as principais características do modelo geocêntrico do Universo apresentado por Aristóteles

e Ptolomeu?

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4 – Explique quais são os movimentos que os astros aparentam realizar pelo céu.

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UNIDADE I

A interpretação contra-indutiva de Galileu a

respeito da queda dos corpos

Segundo Galileu,

os sentidos nos mostram que corpos pesados caem do alto para baixo por uma linha

reta e perpendicular à superfície da Terra. Argumento considerado incontestável de

que a Terra esteja imóvel: porque, se ela tivesse a rotação diurna, como proposto por

Nicolau Copérnico, uma torre, sendo transportada pela rotação da Terra, que de

cima deixasse cair uma pedra, afastar-se-ia muitas centenas de braças para o oriente

no tempo em que a pedra gastaria para a sua descida, e por tanto espaço deveria a

pedra afastar-se da base da torre [14].

De acordo com o pensamento da época, a

imobilidade da Terra era provada principalmente

por esta ideia, chamada de “argumento da torre”.

Mas ela também conseguia corroboração pelo

visível deslocamento do Sol, ou porque as pessoas

não saíam por aí, voando em direção ao espaço,

como consequência de um rodopio da Terra [16].

Galileu desarma esse argumento,

afirmando que os nossos sentidos isolados, sem o

auxílio da razão, podem nos dar uma descrição

falsa da natureza:

Figura 6 – Torre Inclinada de Pisa, Itália [15].

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Salviati – Aquilo que é primeiramente representado pelos nossos sentidos pode

facilmente nos enganar; esse movimento dos graves descendentes é reto e não de

outro tipo. Porque, desse modo, dá sinal de acreditar que aqueles que dizem que tal

movimento é circular, parecem ver sensivelmente aquela pedra mover-se em arco, já que

ele convida mais seus sentidos que sua razão para elucidar esse efeito; o que não é

verdade, Sr. Simplício, porque, assim como eu, jamais vi, nem espero ver, cair àquela

pedra de outro modo que não reta. Será melhor, portanto, que, deixada de lado a

aparência, com a qual todos estamos de acordo, esforcemo-nos com o raciocínio para

confirmar a realidade [18].

Ou seja, a ideia de Galileu consiste em substituir a verdade apreciada pelos sentidos

por uma nova linguagem observacional, altamente abstrata e contra-indutiva:

É também verdadeiro que estando em movimento a Terra, o movimento da pedra, ao

cair, terá sido realmente um traço transversal compridíssimo com muitas centenas de

braças; mas aquela parte de todo esse movimento, que é comum à pedra, à torre e a

nós, fica para nós insensível e como se não existisse, e somente é observável aquela

parte da qual nem a torre nem nós somos participantes, que é, afinal, aquele movimento

com o qual a pedra, caindo, mede a torre [19].

Entretanto, a concepção copernicana defendida por Galileu não estava de acordo com

os fatos:

Do ponto de vista desses “fatos”, a ideia do movimento da Terra é bizarra, absurda

e obviamente falsa, para mencionar algumas das expressões que foram

frequentemente usadas na época e as quais ainda são ouvidas sempre que cientistas

retrógrados se defrontam com uma teoria nova e contrária aos fatos. A experiência na

qual Galileu deseja fundamentar a concepção copernicana não passa do resultado de sua

própria imaginação fértil: ela foi inventada! [20].

Uma vez que os argumentos de Galileu não são suficientes, ele faz uso da propaganda

e de truques psicológicos (com sucesso!) para convencer a todos do movimento da Terra.

Note como Galileu especula a respeito das ilusões fornecidas pelos nossos sentidos:

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Outros podem facilmente enganar-se com a simples aparência ou representação dos

sentidos. E o fenômeno é o de dar a impressão àqueles que de noite caminham por

uma estrada de estarem sendo seguidos pela Lua com idêntico passo, enquanto a

veem rasar as ponteiras dos telhados sobre os quais ela lhes aparece, exatamente da

mesma maneira que faria uma gata que, realmente caminhando sobre as telhas, se

mantivesse atrás deles: aparência de que, quando não interviesse o raciocínio,

enganar-se-ia a visão.

Salviati – Imaginai agora estar num navio e ter fixado o olho na ponta do mastro:

acreditais que, porque o navio se movesse velocissimamente, ser-vos-ia necessário

mover o olho para manter a vista sempre na ponta do mastro e seguir o seu movimento?

Simplício – Tenho certeza de que não seria preciso fazer nenhuma mudança, e que

não somente a vista, mas, quando eu tivesse ajustado a mira de um arcabuz, qualquer

que fosse o movimento do navio, jamais seria preciso movê-la um só fio de cabelo para

mantê-la ajustada.

Salviati – E isso acontece porque o movimento que o navio confere ao mastro

confere-o também a vós e a vosso olho, de modo que não vos convém movê-lo para

olhar a ponta do mastro; e, consequentemente, ela aparece-vos imóvel [21].

Fica claro que isso é, de fato, uma forte persuasão.

Galileu argumentava que, tanto do ponto de vista aristotélico quanto do copernicano,

a pedra poderia ser vista cair ao pé da torre, de forma que a experiência observacional,

confirmada pelos nossos sentidos por si só não demonstrava nada [22].

A essência do artifício de Galileu é o chamado princípio da relatividade do

movimento. Essa explicação, a respeito da percepção do movimento, baseia-se na afirmação

de que os nossos sentidos só notam o movimento relativo e são insensíveis a um movimento

que os objetos tenham em comum [23]. Ou seja, nós não notamos o movimento circular da

pedra, enquanto ela cai do alto da torre, porque tanto nós, quanto a torre e a pedra estamos

girando juntamente com a Terra. Como todos esses movimentos são comuns, eles não são

percebidos por nossos sentidos. O único movimento que percebemos é aquele movimento

que não é comum a Terra, a torre e a nós mesmos – que é o movimento que a pedra mede a

torre – caindo do alto até sua base.

Explicado o porquê de não percebemos o movimento circular da pedra, resta a Galileu

explicar por que a pedra acompanha a torre e não é deixada para trás.

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Desde a época de Aristóteles, acreditava-se que os corpos que não sofriam interação

física permaneceriam em repouso, isto é, manteriam sua posição. Assim, seria necessário

empurrar um objeto para que ele pudesse se mover. Dessa forma, o fato da pedra tocar o

solo na base da torre significava/provava que a Terra não estava em movimento [24].

Então era necessário supor algo contra-indutivo que não se baseasse exclusivamente

em nossos sentidos, mas também, e principalmente, na razão, de maneira tal que o

movimento da Terra possa continuar a ser afirmado.

Para explicar o motivo da pedra acompanhar a torre, Galileu cria (inventa!) o

chamado princípio na inércia circular:

Um objeto que se move ao redor do centro da Terra com certa velocidade angular,

em uma esfera livre de atrito, continuará a mover-se para sempre com essa mesma

velocidade angular [24].

Argumente...

5 – Pelo que estudamos até aqui, quais são os principais argumentos em favor do modelo geocêntrico

e da imobilidade da Terra? Você concorda com eles? Comente.

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Logo, tanto a pedra quanto a torre estão se

movendo junto com a Terra, e ela, a pedra, chegará

ao solo sem se deslocar da torre. Ou seja, o

movimento aparente da pedra em queda-livre,

combinado com o princípio da relatividade e com o

princípio da inércia circular transforma o

argumento que contradiz Copérnico em argumento

que o confirma!

Assim, Galileu substitui a complexa e

sofisticada teoria do movimento de Aristóteles por

sua própria lei da inércia, à qual faltava apenas

corroboração [26]. Sua principal alegação consiste

na defesa de Salviati do argumento pelo qual uma

pedra abandonada do alto do mastro de um navio,

que move-se com velocidade constante, não ficaria

para trás (como acreditara Simplício), mas tocaria o

chão do barco junto ao pé do mastro, da mesma

forma que o faria, caso o navio estivesse parado:

Salviati – Afirma, portanto,

Aristóteles, que um argumento

certíssimo da imobilidade da Terra é

vermos os projéteis subirem e

retornarem, pela mesma linha, ao mesmo

lugar de onde foram atirados, e isso,

ainda que o movimento fosse altíssimo; o

que não poderia acontecer quando a

Terra se movesse, porque no tempo em

que o projétil se movesse para cima e

para baixo, separado da Terra, o lugar

onde teve início o movimento do projétil

afastar-se-ia, devido à rotação da

Terra.

Indução & Contra-Indução

Para a filosofia, indução é o

raciocínio lógico que, após

considerar um número suficiente

de casos particulares da

experiência percebida por nossos

sentidos, conclui-se uma verdade

geral. A contra-indução é,

portanto, o oposto: considerar

poucas ou nenhuma experiência

sensível, e contradizer hipóteses

ou experimentos bem

estabelecidas.

Apesar de aparentar, não

criticamos Galileu por usar a

contra-indução. Criticamos por

considerar suas concepções como

verdade absoluta, mesmo tendo

escolhido tal procedimento

contra-indutivo [27].

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Simplício – Assim, existe a experiência tão apropriada da pedra que se deixa cair do

alto do mastro do navio, a qual, quando o navio está parado, cai ao pé do mastro, mas,

quando o navio se move, cai tão longe quanto o espaço que o navio percorreu durante

o tempo da queda da pedra; o que não são poucas braças, se o movimento do navio é

veloz.

Salviati – Pois é evidentíssimo que o movimento do navio é acidental, bem como para

todas as coisas que estão nele, pelo que não causa espanto que aquela pedra, que

era mantida no cimo do mastro, deixada em liberdade, caia para baixo junto ao pé do

mastro115. Além do mais, a rotação diurna é posta como movimento próprio e natural

do globo terrestre e, consequentemente, de todas as suas partes; e, por isso, aquela

pedra que está no alto da torre tem, como um instinto primário, de girar em torno do

centro da Terra em vinte e quatro horas, e este talento natural ela o exercita

eternamente, em qualquer estado em que esteja posta [30].

Galileu generaliza suas ideias contra-

indutivas, a respeito da queda dos corpos,

tanto para assuntos terrestres quanto para os

celestes, a fim de confirmar o movimento da

Terra.

Simplício – Então, não fizestes cem

provas e nem mesmo uma, e afirmais tão

francamente que ela é certa?

Salviati – Eu, sem experiência, estou certo de que o efeito seguir-se-á como vos digo, porque assim é necessário que siga; e acrescento que vós mesmos sabeis

muito bem que não pode acontecer

diferentemente, ainda que finjais, ou

simuleis fingir não o saber [32].

115 A inspiração de Galileu para o que hoje chamamos de argumento da torre provavelmente surgiu da

observação do mastro dos navios. Entretanto, acredita-se que esses experimentos (tanto o do navio, quanto o

da Torre de Pisa) não foram, de fato, realizados por Galileu ou seus contemporâneos, uma vez que se tratava

apenas de um “argumento” teórico [33].

Figura 7 – Rascunhos do movimento circular no

manuscrito de Galileu, Itália, 1610 [31].

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15

Assim, Galileu introduz o princípio da inércia circular não por referência a um

experimento ou uma observação, mas por uma afirmação muito mais especulativa, e é por

meio disso que é alcançada a transição de uma cosmologia geostática para o ponto de vista

copernicano [34].

Questione e conclua...

6 – Quais foram os procedimentos contra-indutivos que Galileu utilizou na defesa do sistema

copernicano?

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7 – Olhando para o passado e analisando os argumentos a favor e contra o Heliocentrismo, quem você

julga que estava com a razão: Galileu ou os que utilizavam dos sentidos para negar que a Terra se movia?

Comente.

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UNIDADE II

A Palavra de Deus como argumento contra

a frágil teoria copernicana

Segundo Galileu,

todos os fenômenos terrestres, pelos quais se mantêm a estabilidade da Terra e a

mobilidade do Sol e do firmamento, devem aparecer-nos sob as mesmas aparências,

quando se supõe a mobilidade da Terra e a estabilidade do Sol [35].

Desde alguns séculos antes de Cristo, já havia a expectativa que as estrelas seriam

divinas e, assim, deveriam se comportar de maneira ordenada no céu [36]. No entanto, a

teoria copernicana não era a única e nem a mais geral visão cosmológica de sua época, seu

sucesso e coerência não significavam, por si só, uma correspondência à realidade [37]. Isso

fica claro quando analisamos os escritos de Galileu, e ele mesmo afirma que os argumentos

a respeito da imobilidade da Terra são muito coerentes e eficazes, enquanto que os

argumentos contrários, e com poucos adeptos, não estão de acordo com os sentidos:

Salviati – Mas o meu espanto, Sr. Sagredo, é muito diferente do vosso: vós vos

espantais que tão poucos sejam seguidores da opinião a respeito do movimento da

Terra; e eu fico estupefato de que se tenha até aqui encontrado quem a tenha

abraçado e seguido, nem posso admirar suficientemente a eminência do engenho

daqueles que a receberam e a consideraram verdadeira, e com a vivacidade de seu

intelecto fizeram tal força aos próprios sentidos, que tenham podido antepor o que

lhes mostravam as experiências sensíveis abertamente contrárias. Que as razões

contra a revolução diurna da Terra, já examinadas por vós, tenham grandíssima

aparência, já o vimos, e terem sido consideradas como concludentíssimas pelos

ptolomaicos, aristotélicos e todos os seus seguidores, é um argumento muito forte de

sua eficácia [38].

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Apesar disso, Galileu exigia

que as ideias dos astrônomos

fizessem parte do conhecimento

público. Ele não pedia

simplesmente a liberdade para

publicar seus resultados; ele queria

impô-los aos demais, pois presumia

que os métodos restritos dos

astrônomos eram a maneira correta

de acessar a Realidade [39].

Nesse período, e até o século

XIX, os cientistas utilizavam a

bíblia para respaldar as ideias

científicas. A concordância com a

palavra de Deus, como estava

contida na Escritura Sagrada, era

uma condição-limite importante e aceita universalmente da pesquisa física. Era um padrão

comparável com o padrão “moderno” da precisão experimental [41].

Tal pressuposto, defendido por grandes cientistas como Copérnico, Kepler e Newton,

é baseado no fato das Escrituras serem uma importante condição delimitadora da existência

humana e, por tanto, da pesquisa [42]. Segundo Isaac Newton, por exemplo, a pesquisa

científica deve se basear em duas fontes: as Obras de Deus (o magnífico Universo) e a

Palavra de Deus (a Bíblia). Como acontece até os dias de hoje, a Igreja tem a Palavra de

Deus como fonte para as discussões dos interesses humanos, e faz dela uma condição-limite

da Realidade e da Verdade [43].

Em resposta ao monge carmelita Paolo Foscarini, o Cardeal Roberto Bellarmino, do

Colégio Romano, discute sobre a ideia hipotética de Galileu:

Figura 8 – Explicação do movimento aparente dos planetas a

partir da perspectiva heliocêntrica, contida no manuscrito de

Galileu, Itália, 1610 [40].

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Parece-me que Vossa Reverendíssima e o

Senhor Galileu agem com prudência quando se

satisfazem em falar hipotética e não

absolutamente... Dizer que, na suposição do

movimento da Terra e da quiescência do Sol,

todas as aparências celestiais são mais bem

explicadas que pela teoria dos excêntricos e

epiciclos é falar com um excelente bom-senso e

não correr qualquer risco. Essa maneira de falar

é suficiente para um matemático. Mas querer

afirmar que o Sol, verdadeiramente, está no

centro do universo e só gira em torno de seu

próprio eixo sem ir do leste para o oeste é uma

atitude muito perigosa e calculada não só para

provocar todos os filósofos e teólogos

escolásticos como também para ferir nossa fé

sagrada ao contradizer as Escrituras [45].

A posição da Igreja era de que o conhecimento astronômico servia apenas para

explicar e prever, mas não poderia ser relacionado com a realidade, ou seja, o fato de um

modelo funcionar dentro de um campo estrito não mostrava, necessariamente, que ele tinha

acesso à verdade [46]. Além disso, a Igreja também usava a Bíblia para impor medidas

administrativas: em sua carta enviada a Galileu, o cardeal Bellarmino enfatiza esta condição:

“Como vocês estão cientes, o Concílio de Trento proíbe a interpretação das Escrituras de

uma maneira contrária à opinião comum dos papas” [47].

A Igreja Católica Romana afirmava ter os direitos exclusivos de exploração,

interpretação e aplicação das Sagradas Escrituras. Os leigos, de acordo com os

ensinamentos da Igreja, não tinham nem o conhecimento nem a autoridade para mexer

com as Escrituras e eram proibidos de fazê-lo. Isso não deveria causar surpresa a

ninguém familiarizado com os hábitos de instituições poderosas. A atitude da

Associação Médica Americana, por exemplo, com relação a praticantes leigos é tão

rígida como o era a atitude da Igreja para com intérpretes leigos – e tem as bênçãos

da lei. Especialistas, ou ignorantes que tenham adquirido as insígnias formais de uma

especialidade, sempre tentaram – e com frequência tiveram êxito nisso – assegurar

para si mesmos direitos exclusivos em domínios especiais. Qualquer crítica da rigidez

da Igreja Católica Romana também aplica-se a seus sucessores modernos, tanto

científico quanto ligados à ciência [48].

Figura 9 – Retrato de São Roberto Bellarmino,

óleo sobre tela, 1923, Roma, Palácio do Santo

Ofício, sala de recepção, lado norte [44].

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Galileu, ciente das consequências, foi instruído a ensinar a teoria copernicana como

uma hipótese, sendo proibido, portanto, de ensiná-la como uma verdade. Pois a Igreja não

estava disposta a mudar somente porque alguém havia produzido alguns argumentos vagos.

Queria prova – uma prova científica em assuntos científicos. Mas ainda não havia nenhuma

prova da doutrina copernicana [49].

Os especialistas da Igreja concluíram que a teoria de Galileu, a respeito da mobilidade

da Terra, era “insensata e absurda em sua filosofia”, o que nos dias de hoje equivaleria dizer

que a teoria não era científica. Essa análise foi feita sem referência à fé ou à doutrina da

Igreja, sendo baseada exclusivamente na situação científica da época. Tycho Brahe e outros

cientistas concordavam com a opinião da Igreja, uma vez que ela estava baseada com os

fatos e padrões da época. Além disso, os especialistas da Igreja pronunciaram que a doutrina

copernicana era “formalmente herética”, no que diz respeito às implicações éticas/sociais.

Assim, ao ser associada à Realidade, ela contradizia a Palavra de Deus, e não era feita de

maneira inadvertida, mas com plena consciência da situação [50].

O suposto movimento da Terra defendido por Galileu, sem sombra de dúvidas,

contradizia a Palavra de Deus, uma vez que no capítulo 10 versículo 12 do livro de Josué

(Antigo Testamento) este ordena “Sol, pare sobre Gibeom!” e “o Sol parou no meio do céu

Questione e comente...

8 – Nessa época, vários cientistas utilizavam a bíblia e os ensinamentos da Igreja para estruturarem suas

ideias. Galileu, apesar de ser um cristão devoto, contraria tudo isso, e mais: inventa uma nova mecânica

terrestre e celeste contraditória com os “fatos”. Para você, o que representa um fato científico? Tais fatos

são fixos / absolutos ou podem mudar em determinada época ou em diferentes contextos sociais?

Comente.

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e por quase um dia inteiro não se pôs”. Ora, se o Sol parou, então é ele quem se movimenta

e, consequentemente, a Terra se encontra em repouso (tal qual podemos perceber com

nossos sentidos).

Entretanto, Galileu reivindicava a liberdade e autonomia da pesquisa no domínio da

natureza. Sua crítica não era contra a bíblia, mas contra a interpretação literal dela. Ele

defende a justificativa de que não existe contradição entre o texto sagrado e as leis da

natureza, mas que as pessoas erram em fazer interpretações literais. Suas ideias, logo

começam a ganhar repercussão e, aos olhos da maioria dos teólogos, se tornam uma ameaça

às suas doutrinas [51].

A igreja exigiu de Galileu, tanto por razões científicas quanto éticas, que ele aceitasse

a interpretação da hipótese. Isso não aconteceu e ele foi julgado por reinterpretar a Bíblia

sem a autorização da Igreja. Considerando as dificuldades com que o modelo copernicano

se defrontava quando considerado uma descrição da realidade, temos de admitir que a lógica

estava do lado de... Bellarmino e não do lado de Galileu [52].

O primeiro julgamento de Galileu ocorreu em 1616, após a doutrina copernicana ser

analisada e criticada. Galileu não foi preso e nem condenado, porém recebeu ordens

proibindo-o de ensinar a doutrina de Copérnico como uma verdade. Entre 1632 e 1633 ele

foi julgado novamente, mas, dessa vez, foi considerada a não obediência de Galileu a

respeito da ordem dada no primeiro julgamento, pelo fato dele ter enganado os inquisidores,

fazendo-os acreditar que a ordem nunca tinha sido dada [53].

Figura 10 – Galileu perante o Santo Ofício [54].

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Sete anos após o primeiro julgamento (em 1623), o cardeal italiano de 55 anos

chamado Maffeo Barberini foi eleito o Papa Urbano VIII. Assim como Galileu, ele havia

nascido e se criado em Florença e frequentado a Universidade de Pisa, onde Galileu estudara

medicina e Urbano, direito. Urbano havia, inclusive, intercedido em favor de Galileu durante

seu primeiro julgamento, e advertido Galileu que sua defesa ao Universo heliocêntrico

poderia lhe trazer problemas – e que não deveria apresentá-la como uma realidade, nem

mesmo em pensamento. O papa se considerava amigo e admirador de Galileu. Este teve o

privilégio de ser recebido em seis audiências papais, cada uma durando mais de uma hora.

Essa relação quase íntima com o papa fez Galileu pensar que poderia escrever o Diálogo

com segurança – e assim o fez. Em sua obra de 1632, Galileu apresenta um diálogo entre

três participantes: Salviati, Sagredo e Simplício. Os dois primeiros homenageiam amigos

falecidos de Galileu, sendo Salviati seu porta-voz e Sagredo um moderador inteligente e

imparcial, uma pessoa de alta classe e homem do mundo. Já Simplício representa uma

mistura dos argumentos de todos os oponentes que Galileu havia enfrentado na construção

de suas ideias [55].

Para tornar seus argumentos sólidos e eficientes, Galileu usa os argumentos “tolos”

de Simplício como contraste. E isso funciona bem, mas ao final de sua obra ele faz Simplício

resumir a posição da Igreja Católica acerca da impossibilidade de se obter genuíno

conhecimento do mundo físico, ao passo de que seria uma ousadia extravagante para

qualquer um limitar e confinar o poder e sabedoria divinos a uma particular conjetura

pessoal (se referindo ao sistema copernicano) [56].

Esse argumento de Simplício fora originalmente entoado pelo próprio papa, e os

inimigos de Galileu conseguiram convencer Urbano que o seu objetivo era de ridicularizar

a Igreja, e pior, ridicularizar e humilhar o próprio papa. Urbano ficou furioso quando viu o

resultado. Tanto é que, mesmo após a morte de Galileu em 1642, ele recusou-se a permitir

que o grão-duque de Toscana realizasse um funeral adequado para Galileu e construísse um

monumento sobre sua tumba na Igreja da Santa Cruz em Florença. Foi, então, que

No dia 22 de junho de 1633, Galileu Galilei foi levado a julgamento no quartel

general da Inquisição em Roma. Todo o magnificente poderio da Igreja Católica

Romana tinha sido aparentemente perfilado contra ele. Sob ameaça de tortura,

encarceramento e mesmo morte na fogueira, ele foi forçado, de joelhos, a "abjurar,

amaldiçoar e detestar" toda uma vida de brilhante e devotado labor intelectual.

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Confrontado com uma "veemente suspeita de heresia", ele teve de renunciar, "com um

coração sincero e fé genuína" à sua crença de que o Sol, e não a Terra, é o centro

do universo, e que a Terra move-se em torno do Sol, e não vice-versa. Como Galileu

concordou com tudo isso - pelo menos verbalmente - as ameaças de Urbano não

precisaram ir adiante. Como uma de suas punições, por exemplo, ele deveria recitar

os sete salmos penitenciais uma vez por semana durante três anos. Mas foi também

posto em prisão domiciliar pelo resto de sua vida. E, finalmente, seu livro Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano (1632), que tinha

estado no centro do julgamento, foi proibido. Isto é, foi acrescentado à lista de livros

banidos, o Index librorum prohibitorum, mantido pela Inquisição da Igreja Católica

[56].

Esse procedimento mais direto e racional da Igreja não era imutável. Foi isso que

disse o cardeal Bellarmino:

Se houvesse alguma prova real que o Sol está no centro do Universo e de que a

Terra está no terceiro céu girando ao redor do Sol, então teríamos de agir com

grande prudência ao explicar as passagens da Escritura que parecem ensinar o

contrário e de preferência admitir que não as tínhamos entendido em vez de declarar

Figura 11 – O Julgamento de Galileu, Roma, 1633 [57].

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como falsa uma opinião comprovadamente verdadeira. Quanto a mim, não acreditarei

que essas provas existem até que elas me sejam mostradas. Tampouco é uma prova

dizer que, se supusermos que o Sol está no centro do Universo e a Terra no terceiro

céu, tudo funciona da mesma maneira como se tudo fosse o inverso. No caso de

dúvida não devemos abandonar a interpretação do texto sagrado como dada pelos

Papas.

A doutrina da Igreja, diz Bellarmino aqui, é uma condição-limite para a interpretação

de resultados científicos. Mas não é uma condição-limite absoluta. A pesquisa pode

movimentá-la [58].

É provável que muitos de nós tivéssemos apoiado a decisão da Igreja e concordado

com o cardeal Bellarmino a respeito da fragilidade do ponto de vista copernicano, cujo

argumento mais poderoso era a harmonia criada pelo ponto de vista heliocêntrico, ou seja,

pela primeira vez havia um sistema astronômico, e não apenas um conjunto de instrumentos

de cálculo [59].

Argumente...

9 – Como você julga a posição da Igreja, à época, envolvendo a discussão sobre os sistemas de mundo?

Comente.

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UNIDADE III

O telescópio fornece um retrato verdadeiro

do céu?

A harmonia copernicana é refutada por meio da observação. O argumento da torre é

invertido e as interpretações naturais são substituídas por interpretações contra-indutivas.

Propagandas e truques psicológicos substituem argumentos frutos da experiência. Hipóteses

auxiliares são inseridas para afirmar o movimento da Terra. Até então, nenhuma evidência

independente surge em defesa da nova cosmologia. Os argumentos contrários a ela são

cientificamente e teologicamente corretos. Há uma tentativa de substituir uma teoria muito

abrangente por outra restrita que possui, inclusive, elementos especulativos. Não é apontada

nenhuma prova do movimento da Terra e não há nada que refutaria o ponto de vista

geocêntrico, mas que seria explicado pelo ponto de vista copernicano [60]. Galileu tenta

construir uma visão de mundo inteiramente nova, mas não consegue fazê-lo só, ele precisa

do auxílio de um “sentido superior e mais eficaz”.

Além das interpretações naturais, Galileu altera também as sensações que parecem

ameaçar a teoria de Copérnico. Ele admite que haja tais sensações, louva Copérnico

por tê-las ignorado e afirma tê-las eliminado com o auxílio do telescópio. Contudo,

não oferece razões teóricas pelas quais se deveria esperar que o telescópio

fornecesse um retrato verdadeiro do céu [61].

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Há vários relatos da época, inclusive do próprio Galileu, evidenciando a importância

e os benefícios desse instrumento quando usado em terra ou mar. Sua aplicação às estrelas,

contudo, era uma questão inteiramente distinta [62]

As primeiras observações telescópicas do céu são indistintas, indeterminadas,

contraditórias e entram em conflito com o que qualquer pessoa pode ver a olho nu. É sabido

que as observações telescópicas terrestres indicavam, até certo ponto, propriedades estáveis

e objetivas das coisas vistas. Como os nossos sentidos estão familiarizados com a aparência

dos objetos terrestres, fica fácil distinguir o que é verdadeiro e o que é distorcido ou

desfigurado por franjas coloridas, e até mesmo outros elementos como plano de fundo,

superposição, tamanho relativo, etc. Entretanto, não conhecemos de perto as estrelas e os

planetas. Até mesmo a aparência da Lua nos dá uma ideia falsa de sua distância e seu

tamanho. Logo, não podemos usar a nossa memória para separar o que provêm do próprio

objeto (celeste) das contribuições do telescópio [64].

É bem verdade que o telescópio produzia resultados fantásticos na Terra, entretanto,

ele se deparava com dificuldades quando utilizado para observações celestes. Ele exibia

fenômenos hipotéticos e contraditórios, e alguns de seus resultados podiam ser refutados por

um simples olhar a olho nu. Apenas uma nova teoria da visão telescópica podia trazer ordem

ao caos e separar aparência de realidade [65].

Figura 12 – Galileu e o telescópio [63].

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26

De acordo com a teoria óptica predominante na época, proposta pelo alemão Johannes

Kepler (1571-1630), a imagem de um objeto é recebida pelos nossos olhos através das leis

de reflexão e refração, pela intersecção retrógrada da trajetória dos raios que

emergem/refletem do objeto até nossos olhos, cabendo à mente do observador utilizar

somente a parte final dessa luz. Essa ideia, que até certo ponto está correta, não é válida para

lentes (como as do telescópio) e nem leva em consideração os efeitos atmosféricos. Assim,

a teoria kepleriana da visão, que é refutada pelo telescópio (ou que o refuta), não pode ser

utilizada como argumento por Galileu, e a visão telescópica do céu permanece um mistério

[66].

Agora uma pequena pausa na leitura!

10 – Quais características das imagens telescópicas você conseguiu perceber quando olhou para os

objetos aqui na Terra? Existiam defeitos, manchas ou aberrações nessas imagens? E para os objetos no

céu?

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11 – Ao apontar o telescópio para o céu, Galileu percebeu imagens contraditórias com o que era visto a

olho nu e que não correspondiam as explicações teóricas de sua época. Você acha que ele agiu

corretamente ao confiar nesse instrumento confuso? Você acha que isso acontece ainda hoje com os

cientistas? Comente.

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A ausência de

observações satisfatórias

mostravam dois objetos

acompanhantes de

Saturno (foi assim que os

anéis foram vistos na

época); duplicação de

imagens dos astros;

mudança da posição

lateral da imagem de

acordo com a posição do

olho; franjas coloridas;

presença ou ausência das

estrelas que acompanham Júpiter (suas quatro luas, hoje chamadas de “luas galileanas”);

uma Lua repleta de montanhas na parte interna, mas perfeitamente lisa na periferia, e isso a

despeito do fato de que a periferia da Lua mudava com a sua rotação; além de algumas

crateras que não existem e a observação de uma atmosfera lunar; o que revela a pobreza do

que poderia ser visualizado pelo telescópio, agravado ainda pela velocidade com que novos

fenômenos foram descobertos e divulgados [68].

Entretanto, o dispositivo aperfeiçoado

por Galileu era considerado moderno, e

provavelmente o melhor de sua época

(1610)116. Inicialmente, seu interesse estava

voltado para as questões militares e não

astronômicas. Quando Galileu ouviu falar

nas lunetas holandesas, apressou-se para

estudá-las e melhorá-las, a fim de obter

vantagem para Veneza sobre os turcos,

podendo observar os navios inimigos cerca

116 Vale destacar que o instrumento óptico de Galileu e as imagens telescópicas celestes não surgiram após

as construções teóricas do Heliocentrismo feitas por ele, mas tiveram uma construção simultânea.

Figura 13 – Desenhos dos Planetas vistos por Galileu através do

telescópio, Roma, 1623 [67].

Figura 14 – Desenho da Lua vista por Galileu

através do telescópio, 1610 [69].

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de duas horas antes de serem vistos a olho nu [70]. Ao melhorar seu telescópio (refrator),

Galileu conseguia uma ampliação de quase dez vezes117. Apesar disso, ao olhar pelo

instrumento óptico, as pessoas viam coisas diferentes e tiravam conclusões diferentes a

respeito do que era visto, ainda que utilizassem o mesmo telescópio.

As observações telescópicas de Galileu se contradiziam, nem todas as pessoas

podiam repeti-las, aqueles que as repetiam (como Kepler, por exemplo) conseguiram

resultados confusos e não existia qualquer teoria para separar “fantasmas” de fenômenos

verdadeiros [71].

Sagredo – Portanto, devemos

ainda esperar outras objeções

vigorosas contra o movimento

anual da Terra?

Salviati – Sim; e tão evidentes e

sensíveis que, se um sentido superior e mais excelente que os

comuns e naturais não estivesse

acompanhado da razão, duvido

grandemente de que eu mesmo não

tivesse sido ainda mais reticente

acerca do sistema copernicano, do

que o sou, depois de ter sido

iluminado por uma luz mais clara que a habitual.

Sagredo – Agora, portanto, Sr.

Salviati, vamos, como se diz, direto

ao ponto, porque cada palavra que

se gasta em outro argumento

parece-me desperdiçada.

Salviati – Aqui estou para servir-

vos [73].

117 O que é bem abaixo se comparado aos telescópios comuns de hoje – cuja ampliação é de 90 a 120 vezes

para os refratores e de 200 a 250 vezes para os refletores.

Figura 15 – Galileu mostra o telescópio para o Senado veneziano

em 1609 [72].

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Apesar das objeções, Galileu utiliza seu instrumento como “prova” de seus

argumentos: em resposta aos escolásticos que afirmavam que um corpo não poderia ter dois

movimentos ao mesmo tempo, ele exibiu os satélites de Júpiter (que orbitavam o planeta

enquanto ele fazia sua revolução anual); quanto à tradicional alegação de que os corpos

celestes seriam perfeitos, ele utiliza o telescópio para afirmar que o Sol tem manchas e que

a Lua não é perfeitamente lisa. Quanto à objeção de que a teoria copernicana requereria que

Vênus exibisse fases (o que não poderia ser detectada a olho nu), Galileu as confirmou com

as observações telescópicas das fases de Vênus [74].

Além disso, ao olhar

Júpiter pelo telescópio, podia-se

ver uma espécie de sistema solar

em miniatura. Suas luas recém-

descobertas inspiram um certo

desconforto aos aristotélicos,

uma vez que elas contrariavam

um argumento geocêntrico de

que a Terra não poderia orbitar

o Sol sem perder a Lua.

Assim, essa descoberta tornava a

concepção copernicana cada vez mais

plausível, e, talvez por isso, muitos preferiram

não rever tal argumento, mas, simplesmente,

desconsideraram a possibilidade da existência

dos satélites de Júpiter [76].

Figura 16 – Esquema das fases de Vênus nos sistemas de mundo [75].

Figura 17 – As luas de Júpiter no manuscrito de

Galileu, Itália, 1610 [77].

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Galileu, então, certo de poder convencer seus adversários a desfrutarem do sentido

superior e mais eficaz do telescópio, se reúne com eles para mostrar seu aparelho:

Por meio desse instrumento, vimos tão distintamente o palácio do ilustríssimo duque

Altemps, nas Colinas Toscanas, que facilmente contamos todas as suas janelas,

mesmo as menores; e a distância é de 16 milhas118.

Na quinta-feira à noite, na propriedade do monsenhor Malvasia, do lado de fora do

portão, lugar alto e aberto, foi-lhe oferecido um banquete por Frederico Cesi, o

marquês de Monticelli. Na reunião estiveram Galileu, cardeais da igreja, professores

da universidade, matemáticos, e outras pessoas cultas. Alguns deles foram até lá

expressamente para realizar essa observação de “quatro outras estrelas, ou planetas,

que são satélites de Júpiter”, bem como “dois acompanhantes de Saturno”; porém,

mesmo tendo permanecido até uma hora da manhã, não chegaram a um acordo em suas

opiniões [79].

Não dormi nada nos dias 24 e 25 de abril, nem de dia nem de noite, mas testei de mil

maneiras o instrumento de Galileu, tanto em coisas aqui de baixo quanto naquelas lá

118 Descrição de Julius Caesar Lagalla, professor de filosofia em Roma, da reunião realizada na cidade de Espirito Santo,

em 16 de abril de 1611 [78].

Reflita e anote.

12 – Galileu confiava em seu instrumento e utilizou-o para investigar assuntos desconhecidos: as coisas

do céu. Quais foram as características dos astros, percebidas pelas imagens telescópicas, que Galileu

utilizou para refutar o Geocentrismo e, consequentemente, apoiar o modelo heliocêntrico de Nicolau

Copérnico?

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em cima. Aqui embaixo, ele funciona maravilhosamente; nos céus, ele nos engana, pois

algumas estrelas fixas são vistas duplicadamente. Tenho como testemunhas homens

eminentes e nobres doutores, e todos admitiram que o instrumento engana. Isso

silenciou Galileu e, no dia 26, ele partiu tristemente, de manhã cedo, nem mesmo tendo

agradecido a Magini por seu esplêndido banquete119.

Dispostos em diferentes épocas e com diferentes pessoas, os relatos acima

evidenciam que a tarefa de Galileu não foi fácil e estava longe de ser cumprida. A doutrina

copernicana precisaria de certo tempo para reunir fatos em favor de uma nova cosmologia,

o que se fazia necessária era uma nova dinâmica que explicasse tanto os movimentos

terrestres quanto os celestes... mas todas essas ciências ainda estavam ocultas no futuro [80].

Ele não alcançou nada, pois mais de vinte homens cultos estavam presentes e,

contudo, ninguém viu distintamente os novos planetas; ele dificilmente será capaz de

continuar afirmando sua existência120.

119 Escrito por Horky, discípulo de Kepler, em 1610, na cidade romana de Bolonha [82].

120 Magini escreve carta a Kepler em 26 de maio de 1610 [83].

Figura 18 – Galileu apresenta o telescópio ao público [81].

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Galileu, entretanto, não desistiu.

As medidas da variação do

brilho aparente de Vênus e Marte,

vistos à olho nu, contradizem a

teoria copernicana no que diz

respeito ao suposto movimento de

translação da Terra. De fato, no

caso da Terra estar no centro do

sistema planetário, pouca deveria

ser a mudança vista no brilho

desses planetas ao realizarem suas

órbitas ao redor da Terra. Bem

como era visto e comprovado por

muitos astrônomos da época,

inclusive o próprio Galileu.

Figura 19 – Galileo, pintura a óleo, Jean Huens, 1984 [84].

Reflita e argumente.

13 – Se o telescópio poderia não produzir um retrato verdadeiro do céu, e se as pessoas discordavam

daquilo que era visualizado por ele, por que será que Galileu insistia em utilizá-lo em favor do

Heliocentrismo? Você considera que essa atitude de Galileu é própria de um cientista?

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Em contrapartida, há alguns fenômenos telescópicos que são claramente

copernicanos: a variação telescópica no brilho dos planetas está mais estreitamente de

acordo com Copérnico do que com os resultados da observação a olho nu. Visto através do

telescópio, Marte e Vênus de fato mudam como deveriam mudar segundo a perspectiva

copernicana [85].

Ou seja, visto através do

telescópio, os brilhos de Vênus e Marte

mudavam bastante, como de fato

deveriam mudar, de acordo com o modelo

heliocêntrico. Note que, durante a

revolução anual da Terra, há um

determinado momento em que ela estará

mais próxima de Vênus e/ou de Marte

(como pode ser notado no tradicional

alinhamento dos planetas); e há, no outro

extremo, um momento caracterizado pela

maior distância possível desses planetas.

De forma que, numa perspectiva

heliocêntrica, quando o planeta estivesse

mais próximo à Terra, o seu brilho seria maior, e quando estivesse mais distante (ou seja, do

outro lado do Sol), seu brilho seria menor. E isso era, de fato, o visto pelo telescópio.

Sagredo – Oh! Nicolau Copérnico, que prazer terias sentido ao ver confirmada com

experiências tão evidentes esta parte do teu sistema!

Salviati – Sim, o vemos ter continuado a afirmar, guiado pela razão, aquilo que as

experiências sensíveis mostravam o contrário: porque eu não posso deixar de

surpreender-me que ele tenha constantemente persistido em dizer que Vênus gira em

torno do Sol e está afastado de nós mais de seis vezes num caso que noutro, embora

se mostre igual a si mesmo, quando deveria mostrar-se quarenta vezes maior.

Sagredo – Acredito que em Júpiter, Saturno e Mercúrio devemos ver também as

diferenças de seus tamanhos aparentes corresponderem exatamente às variações de

suas distâncias [87].

Figura 20 – Rascunhos das distâncias dos planetas

durante a revolução anual no manuscrito de Galileu,

Itália, 1610 [86].

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Assim, os distanciamentos desses planetas à Terra, devido à translação dos mesmos

ao redor do Sol, causariam, como de fato causam, uma grande mudança em seus brilhos

vistos através do telescópio.

Deste modo, a tática de Galileu é apresentar as observações telescópicas em favor da

teoria copernicana para sustentar a confiabilidade de seu instrumento. Ao utilizar, de forma

conjunta, uma teoria refutada pela experiência e um instrumento sem confiabilidade, Galileu

consegue aumentar a credibilidade tanto da teoria quanto do instrumento [88].

Galileu introduz esses fenômenos como evidência independente para Copérnico,

embora a situação seja antes a de uma concepção refutada – a ideia de que

fenômenos telescópicos são retratos fiéis do céu. Mas essa mudança está em

harmonia com as predições de Copérnico. É essa harmonia e não um profundo

conhecimento de cosmologia e óptica que, para Galileu, comprova Copérnico e a veracidade do telescópio em assuntos terrestres tanto quanto em assuntos celestes.

E é sobre essa harmonia que ele constrói uma concepção inteiramente nova do

Universo [89].

Conclua e desenhe...

14 – Com base num esquema, explique como a variação do brilho planetário pode ser relacionada com

as distâncias dos planetas à Terra, a partir dos dois sistemas de mundo.

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Sistema geocêntrico Sistema heliocêntrico

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O estudo do personagem histórico Galileu Galilei buscou analisar as características

do desenvolvimento científico evidenciadas pelo filósofo da ciência Paul Feyerabend.

Notamos como Galileu, em sua busca por uma nova interpretação do Universo, age de forma

anarquista ao romper com os padrões do pensamento filosófico, científico e teológico de sua

época.

Utilizando a contra-indução, procedimentos irracionais, argumentos contraditórios

com a experiência, propagandas e truques psicológicos, Galileu cria uma nova cosmologia

e se torna um dos maiores cientistas que já existiu. Ele também paga o preço por sua rebeldia

e subversão, mas deixa o seu legado para a história da humanidade.

Assim, nossa compreensão caminha numa estrada sem fim, buscando uma ciência

que também é cultura. E como bem disse Galileu: “A verdade é filha do tempo, mas a dúvida

é o começo da sabedoria”.

15 – A partir do estudo do caso histórico de Galileu, construa uma reflexão pessoal sobre o papel da

ciência diante da natureza e as suas consequências para a sociedade.

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REFERÊNCIAS

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[2] DUTRA, 2010 apud ROZENTALSKI,

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todos os tempos. SP, Editora UNESP,

1999 (p. 32).

[4] Fonte: Biblioteca Digital Mundial

<wdl.org/pt/item/4184/>.

[5] SILVA, Cibelle Celestino. A natureza

dos cometas e o escorregão de Galíleu.

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Duetto, n. 6, p. 20-25, 2006 (p. 20).

[6] FEYERABEND, Paul K. A Ciência em

uma sociedade livre. São Paulo: UNESP,

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[7] Fonte: Essas e Outras – O modelo

geocêntrico de Ptolomeu

<essaseoutras.com.br/geocentrismo-

heliocentrismo-e-big-bang-teorias-sobre-o-

universo/>.

[8] SILVA, 2006, p. 22-23.

[9] DAMASIO, Felipe. O início da

revolução científica. Revista Brasileira de

Ensino de Física, v. 33, n. 3, p. 3602-3,

2011 (p. 3602-3).

[10] FEYERABEND, Paul K. Contra o

método. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2011b

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[11] Fonte: Biblioteca Digital Mundial.

Disponível em: <wdl.org/pt/item/3164/>.

[12] SILVA, 2006, p. 25.

[13] FEYERABEND, 2011a, p. 66-67.

[14] GALILEI, Galileu. Diálogo sobre os

dois máximos sistemas do mundo

ptolomaico e copernicano. SP: Editora 34,

2011 (p. 208).

[15] Fonte: Biblioteca Digital Mundial

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[16] OLIVEIRA, D. G. S. A filosofia de

Feyerabend: nem relativista, nem

anarquista. Dissertação. Salvador, 2011 (p.

47-48).

[17] FEYERABEND, 2011b, p. 86, 90.

[18] GALILEI, 2011, p. 335.

[19] GALILEI, 2011, p. 253.

[20] FEYERABEND, 2011b, p. 93, 99

[21] GALILEI, 2011, p. 328-329, 336.

[22] OLIVEIRA, 2011, p. 44.

[23] FEYERABEND, 2011b, p. 103, 108.

[24] FEYERABEND, 2011b, p. 109.

[25] FEYERABEND, 2011b, p. 106, 109.

[26] FEYERABEND, Paul K. Adeus à

razão. São Paulo: UNESP, 2010 (p. 339-

341).

[27] LOPES, Francisco Adaécio.

Figuramento e Ensino de Artes &

Ciências. Tese (Doutorado), UFRN, 2016

(p. 32).

[28] OLIVEIRA, 2011, p. 52.

[29] FEYERABEND, 2010, p. 339.

[30] GALILEI, 2011, p. 220, 223-224.

[31] Fonte: Biblioteca Digital Mundial

<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.

[32] GALILEI, 2011, p. 226.

[33] GALILEI, 2011, p. 643, nota 77.

[34] FEYERABEND, 2011b, p. 110-111.

[35] GALILEI, 2011, p. 493.

[36] FEYERABEND, 2011b, p. 200.

[37] FEYERABEND, 2010, p. 299.

[38] GALILEI, 2011, p. 410.

[39] FEYERABEND, 2010, p. 297.

[40] Fonte: Digital Mundial

<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.

[41] FEYERABEND, 2011a, p. 57.

[42] FEYERABEND, 2011b, p. 174.

[43] FEYERABEND, 2010, p. 302-303.

[44] REDONDI, Pietro. Galileu Herético.

Tradução: Júlia Mainardi. São Paulo:

Companhia Das Letras, 1991 (p. 152).

[45] FEYERABEND, 2010, p. 298.

[46] FEYERABEND, 2010, p. 298.

[47] FEYERABEND, 2010, p. 303.

[48] FEYERABEND, 2011b, p. 175.

[49] FEYERABEND, 2011b, p. 177.

[50] FEYERABEND, 2011b, p. 173-174.

[51] LINO, Alex. As modificações na

carta de Galileu destinada a Benedetto

Castelli de dezembro 1613. Cad. Bras. de

Ens. de Física, v. 37, n. 1, p. 219-241,

2020 (p. 223).

[52] FEYERABEND, 2011b, p. 178-179.

[53] FEYERABEND, 2011b, p. 172.

[54] Fonte: Josse / Leemage Getty Images

<quo.es/ser-humano/a26301943/juicios-

importantes-proces/>.

[55] HELLMAN, 1991, p. 23, 32-33.

[56] HELLMAN, 1991, p. 35-36, 21.

[57] Fonte: Blog Pensar Refletir e Sentir

<pensarreflectiresentir.blogspot.com/2016/

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[58] FEYERABEND, 2010, p. 305.

[59] FEYERABEND, 2010, p. 306-307.

[60] FEYERABEND, 2011b, p. 113-117,

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[61] FEYERABEND, 2011b, p. 113.

[62] FEYERABEND, 2011b, p. 121.

[63] Fonte: Made for minds <dw.com/pt-

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mundo/a-17438676>.

[64] FEYERABEND, 2011b, p. 123-124.

[65] FEYERABEND, 2011b, p. 138.

[66] FEYERABEND, 2011b, p. 138-139.

[67] Fonte: Biblioteca Digital Mundial

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[68] FEYERABEND, 2011b, p. 125-130.

[69] Fonte: Biblioteca Digital Mundial

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[70] VANNUCCHI, A. I. História e

Filosofia da Ciência: da teoria para a sala

de aula. Dissertação (Mestrado em Ensino

de Ciências - modalidade Física) - Instituto

de Física e Faculdade de Educação,

Universidade de São Paulo, 1996 (p. 48).

[71] FEYERABEND, 2010, p. 341.

[72] Fonte: Gabriele Vanin

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[73] GALILEI, 2011, p. 410-411.

[74] HELLMAN, 1999, p. 29.

[75] Fonte: Instituto de Física – UFRGS

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[76] VANNUCCHI, 1996, p. 56-57.

[77] Fonte: Biblioteca Digital Mundial

<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.

[78] Rosen, 1947, p. 54 apud

FEYERABEND, 2011b, p. 120-121.

[79] ROSEN, 1947, p. 31 apud

FEYERABEND, 2011b, p. 121 (nota 12),

125.

[80] FEYERABEND, 2011b, p. 113.

[81] Fonte: GETTY IMAGES

<vix.com/es/btg/curiosidades/2011/09/26/

vida-de-galileo-galilei-un-genio-

reprimido>.

[82] GALILEI, Opere, X, p. 342 apud

FEYERABEND, 2011b, p. 125.

[83] GALILEI, Opere, III apud

FEYERABEND, 2011b, p. 125.

[84] Fonte: Christie's. Disponível em:

<christies.com/lotfinder/Lot/jean-leon-

huens-1981-1984-galileo-5636151-

details.aspx>.

[85] FEYERABEND, 2011b, p. 141.

[86] Fonte: Biblioteca Digital Mundial

<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.

[87] GALILEI, 2011, p. 421.

[88] ZYLBERSZTAJN, Arden. Galileu –

um cientista e várias versões. Caderno

Catarinense de Ensino de Física,

Florianópolis, v. 5, n. Especial: p. 36-48,

1988 (p. 45).

[89] FEYERABEND, 2011b, p. 141-142.

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