um jurista em tempos de guerras: a atuação intelectual de haroldo valladão nos anos 1930 e 1940,...
TRANSCRIPT
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
1/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 278
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo1
Mariana de Moraes Silveira
Mestranda em Histria pela [email protected]
RESUMO: Este trabalho se prope a discutir alguns aspectos concernentes atuao intelectualdos juristas no Brasil dos anos 1930 e 1940, em especial sua abertura ao dilogo com os pases daHispano-Amrica. Para tanto, tomamos como ponto de partida a obra O ensino e o estudo do Direitoespecialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo, de Haroldo Vallado, publicadaoriginalmente de maneira seriada no Jornal do Comrcio entre dezembro de 1937 e junho de 1940.
Tecemos algumas consideraes sobre o papel intelectual e poltico desempenhado pelos juristasna Amrica Latina. Em seguida, discutimos aspectos da trajetria intelectual de Vallado, para, aofim, analisar as representaes que ele constri acerca de nossos vizinhos hispanfonos.
PALAVRAS-CHAVE:Juristas, Amrica Latina, Haroldo Vallado
ABSTRACT: In this paper, we seek to discuss some questions regarding intellectual activities ofthe jurists in 1930's and 1940's Brazil, focusing on the dialogues they established with theHispanic-American countries. Our starting point is O ensino e o estudo do direito especialmente doDireito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo [The teaching and the study of law especially PrivateInternational Law in the Old and in the New World], by Haroldo Vallado, originally published between
December 1937 and June 1940 as a series of articles in Jornal do Comrcio. We analyze theintellectual and political role played by jurists in Latin America. We then discuss some aspects ofVallado's intellectual trajectory. Finally, we analyze some of the representations he developsabout our Spanish-speaking neighbors.
KEYWORDS:Jurists, Latin America, Haroldo Vallado
Embora menes s faculdades de direito como celeiros da intelectualidade brasileira
e centros formadores de nossas elites ao longo de todo o sculo XIX e nas primeiras dcadas do
XX sejam recorrentes, a historiografia voltada aos intelectuais raramente se debrua sobre aatuao propriamente jurdica desses homens. Em geral, a viso que os estudiosos das
humanidades tm a respeito do direito profundamente negativa: ele percebido frequentemente
como mero instrumento de dominao ou, ao menos, como uma esfera da vida social inexorvel
1 Gostaria de agradecer aos pareceristas annimos que avaliaram este trabalho, cujos comentrios auxiliaramimensamente no aprimoramento do texto final. Quaisquer erros remanescentes so de minha inteiraresponsabilidade.
Tambm agradeo professora Eliana Dutra, pela orientao atenta, e aos colegas do Projeto Brasiliana, pelo dilogoconstante e sempre muito frutfero.
mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected] -
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
2/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 279
e maleficamente ligada ao conservadorismo2. Isso faz com que o pensamento jurdico pouco seja
tomado como questo a elucidar e impede que ele seja apreendido em sua especificidade e em sua
complexidade, deixando de lado toda uma srie de questionamentos que, acreditamos, poderiam
levar a resultados muito reveladores.
No caso do Brasil dos anos 1930 e 1940, essa recusa do direito como objeto da histria
intelectual especialmente grave, uma vez que estiveram em debate, nesses anos, aquelas que,
muito provavelmente, foram as mais amplas reformas legislativas da histria brasileira,
contemplando, ao menos em projeto, todos os textos centrais do sistema normativo do pas 3. Ao
longo da concretizao de tais reformas e mesmo aps o golpe de novembro de 1937, com o
consequente fechamento do Congresso, havia um interesse em garantir a realizao de debates
pblicos, mobilizando os detentores do saber jurdico, acerca das novas leis que eram escritas. O
reparo crtico dos entendidos e tcnicos, magistrados e advogados foi erigido pelo prprio
Getlio Vargas, no discurso comemorativo do primeiro aniversrio do Estado Novo 4, em
condio necessria para que os novos cdigos fossem postos em vigor. Embora tenham tido em
publicaes especializadas, como as revistas Forense e dos Tribunais, seus loci privilegiados, esses
debates no ficaram a elas restritos, alcanando tambm as pginas de peridicos de grande
circulao, comoA noiteeJornal do Comrcio.
Essa foi tambm uma conjuntura em que o direito muito se aproximou daquilo a que seconvencionou chamar pensamento social brasileiro, tendo os juristas se preocupado, em
especial, com a questo da adequao das leis realidade nacional5.Alm disso, muitos homens
conhecidos como idelogos do Estado Novo foram tambm e talvez principalmente juristas. Para
2 Nesse sentido, merece ateno a ressalva feita por Koselleck, de que, dada a relao peculiar que o direitoestabelece com a temporalidade, aspirando durao e repetibilidade, certo grau de conservadorismo seria no algonegativo, mas inerente atuao dos juristas: A durao necessita precisamente de tempo. , talvez, porque osjuristas so to mais conservadores que seus outros colegas: conservadores no por motivos polticos, mas porque seu legtimo direito. KOSELLECK, Reinhart. Histoire, droit et justice. In: L'exprience de l'histoire. Paris: Seuil,Gallimard, 1997, p. 180, traduo nossa.3 Sem mencionar as leis trabalhistas, j muito discutidas pela historiografia, e alm de uma vastssima legislaoesparsa, regulando temas que vo das falncias ao jri, da represso poltica aos incentivos a agricultores,consideramos importante destacar os cdigos, diplomas legislativos marcados pela pretenso completude e centraisna moderna concepo do direito. Trs deles foram elaborados durante o Estado Novo: de processo civil (1939),penal (1940) e de processo penal (1941). Ressalte-se, tambm, que foi elaborado sob a gide do governo varguista umprojeto de cdigo das obrigaes (1941), pensado como uma reforma, no concretizada, de parte da legislao civil.O objeto da pesquisa que estamos desenvolvendo no mestrado, a partir da qual surgiu este estudo pontual, odebate que se desenvolveu nas revistas jurdicas a respeito de tais reformas legislativas, entre os anos de 1936 e 1943.4 VARGAS, Getlio. A nova poltica do Brasil. v. VI Realizaes do Estado Novo 1 de agosto de 1938 a 7 desetembro de 1939. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, s/d. p. 105.5 Segundo Maria Stella Martins Bresciani, a expresso realidade nacional viveu larga voga entre os crticosbrasileiros do liberalismo nas primeiras dcadas do sculo XX, sendo Alberto Torres o autor considerado pioneiro e
definidor dessa noo. Ver: BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da cincia e a seduo da objetividade: OliveiraVianna entre intrpretes do Brasil. So Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 166-169.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
3/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 280
citar apenas dois exemplos bastante conhecidos, mencionemos que Oliveira Vianna e Francisco
Campos, alm de bacharis com grande atuao na reforma das leis que acima mencionamos (o
primeiro foi consultor jurdico do Ministrio do Trabalho na dcada de 1930; o segundo, Ministro
da Justia durante boa parte do Estado Novo), eram autores de esforos de interpretao do
Brasil em que o direito ocupava lugar de destaque e presenas constantes nas pginas dos
peridicos especializados da rea. Essas mesmas publicaes apresentavam, nos anos 1930 e
1940, outra instigante caracterstica: uma grande abertura ao dilogo com intelectuais de outros
pases, notadamente os provenientes da Hispano-Amrica6, ainda que os modelos de civilizao
e cultura no deixassem de ser europeus ou, em alguns casos, norte-americanos.
A partir de todas essas questes, pretendemos refletir de maneira mais detida sobre uma
obra que consideramos muito significativa e reveladora acerca da complexidade da atuao
intelectual dos juristas nessa conjuntura: O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito
Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo, de Haroldo Vallado, ento professor da
Universidade do Brasil. Escrito como um misto de relato de viagem, guia bibliogrfico e
manifesto em defesa da disciplina mencionada no ttulo, o trabalho foi publicado originalmente
de maneira seriada no Jornal do Comrcio, influente rgo de imprensa fundado no Rio de Janeiro
em 1827, entre dezembro de 1937 e junho de 1940. A partir de setembro de 1938, foi retomado
na Revista dos Tribunais, peridico jurdico paulistano lanado em 1912 e ainda hoje editado, naseo Pginas Destacadas7, que ocupou de maneira descontnua at maro de 1940. Em
setembro do mesmo ano, apareceu em forma de livro, editado pelo parque grfico do peridico
jurdico que o acolhera em suas pginas, ento um dos mais modernos do pas 8. digno de nota
6 Em levantamento ainda bastante incompleto, conseguimos identificar 80 ttulos estrangeiros citados nas resenhasbibliogrficas das revistas jurdicas brasileiras editadas entre 1936 e 1943. Destes, 66 eram publicados na hispano-amrica, nos seguintes pases: Argentina, Chile, Colmbia, Cuba, Equador, Mxico, Peru, Uruguai e Venezuela.Consideramos importante ressaltar que essas resenhas listavam no todo e qualquer peridico, mas apenas aquelescom que a publicao mantinha permuta, o que aponta para o carter institucionalizado e slido dessas trocasintelectuais.7 Trata-se de uma seo irregular, situada na poro final do fascculo, comumente utilizada para a publicao seriadade trabalhos longos. Pginas Destacadas tambm trazia, muitas vezes, material como discursos e conferncias,textos menos tcnicos, se comparados aos que compunham a seo Doutrina. Rubrica clssica dos peridicos dedireito, voltada para os trabalhos tericos da rea, esta ltima seo ocupava, em quase todos os ttulos ( o caso daRevista dos Tribunais), as primeiras pginas de cada nmero. Em diversos momentos, contudo, a diferena entre asfunes desses dois espaos da revista paulistana no muito clara, levando-nos a suspeitar que a opo por umdeles se ligava mais a escolhas editoriais, buscando dar maior destaque a alguns textos, que a critrios rigidamentetraados.8 Salvo meno em contrrio, utilizamos, para a redao deste trabalho, o texto do livro: VALLADO, Haroldo. Oensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo . So Paulo: Revista dosTribunais, 1940.Sobre o parque grfico da Revista dos Tribunais, fundado em 1927, ver comentrios a respeito de seu emprego na
impresso de volumes da Coleo Brasiliana, amplo projeto editorial lanado em 1931 com o intuito de reunirconhecimentos sobre o Brasil, em: DUTRA, Eliana de Freitas. A nao nos livros: a biblioteca ideal na coleo
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
4/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 281
que o ttulo tenha sido levemente alterado entre a publicao na Revista dos Tribunais, onde
apareceu como O ensino e o estudo do direito internacional privado no Velho e Novo Mundo, e aquela feita
em livro, como uma provvel estratgia editorial, buscando dar ao trabalho a aparncia de estudo
com escopo geral e, assim, fazer com que interessasse a um pblico mais amplo. Esse fato e a
multiplicidade de publicaes do texto, se no nos permitem afirmar categoricamente a grande
circulao ou mesmo o impacto do estudo, apontam, ao menos, para uma inteno explcita em
difundi-lo por uma variedade de meios, algo que de forma alguma deve ser desprezado em
anlises voltadas para a produo e o trnsito de ideias.
Em um primeiro momento e buscando situar o tema em um cenrio mais amplo,
tecemos breves consideraes sobre a atuao intelectual e poltica dos juristas na Amrica
Latina. Em seguida, discutimos alguns aspectos da trajetria intelectual de Haroldo Vallado,
dando destaque a seus protestos contra a supresso da cadeira de direito internacional privado
nos bacharelados em direito, operada em 1931. Analisamos, por fim, O ensino e o estudo do Direito...,
com foco no olhar (nem sempre generoso) que Vallado dirige aos nossos vizinhos
hispanfonos. Com isso, esperamos contribuir, por um lado, para que reflexes historiogrficas
se voltem para essa figura ainda to desconhecida do intelectual-jurista e, por outro, para
elucidar, nessa rea especfica do conhecimento, alguns pontos das relaes com essa outra
Amrica9
, da qual nos sentimos, a um s tempo, to prximos e to distantes.Juristas e poltica na Amrica Latina: algumas reflexes preliminares
Ainda hoje, as funes que o titular de um diploma jurdico pode vir a desempenhar so
muito amplas e no necessariamente relacionadas ao direito. No Brasil, durante o Imprio e ao
menos at o incio da Repblica, quando eram poucas as formaes superiores disponveis, o
bacharelado em direito serviu, para muitos jovens, como um trampolim para a poltica ou para
a vida literria, muito mais que como porta de entrada para uma carreira jurdica propriamente
dita10. Interessa-nos menos, aqui, discutir essa dimenso da trajetria dos diplomados em direito
Brasiliana. In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves. (Orgs.). Poltica, Nao e Edio: O lugar dosimpressos na construo da vida poltica. So Paulo: Annablume, 2006, p. 303 .9 A expresso empregada, para pensar a complexa e ambgua insero do Brasil na identidade latino-americana,tanto por Jos Murilo de Carvalho quanto por Ktia Gerab Baggio. Ver: CARVALHO, Jos Murilo de. Brasil: outraAmrica?. In: Pontos e Bordados: Escritos de histria e poltica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 269-274;BAGGIO, Ktia Gerab. A outra Amrica: a Amrica Latina na viso dos intelectuais brasileiros das primeirasdcadas republicanas. 1998. Tese (Doutorado em Histria Social)Universidade de So Paulo, Programa de Ps-Graduao em Histria, So Paulo.10 Nesse sentido, ver as concluses apresentadas por Srgio Adorno, em que dado grande destaque atuaoliterria e poltica dos bacharis formados no Largo do So Francisco durante o Imprio, em especial no que tange
aos peridicos publicados pelas organizaes acadmicas: ADORNO, Srgio. Os aprendizes do poder. O bacharelismoliberal na poltica brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 235-246.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
5/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 282
que buscar enfatizar uma possvel atuao intelectual desses homens no desempenho de funes
jurdicas ou, ao menos, que guardem alguma relao com essa rea do conhecimento.
impossvel, contudo, separar completamente as duas dimenses: no se pode negligenciar, por
um lado, o carter de polgrafos por excelncia de inmeros dos bacharis latino-americanos e,
por outro, sua forte e recorrente atuao poltica.
Nesse sentido, eles foram, sem dvida, alguns dos membros centrais da cidade letrada
de que fala Angel Rama11, atuando desde muito cedo na instaurao de uma estrutura
administrativa, mas tambm de uma ordenao simblica da realidade. No contexto das
independncias, segundo Carlos Altamirano, os juristas desempenharam papel decisivo na
conformao institucional dos novos Estados, na medida em que a elaborao de cdigos legais
foi um mecanismo importante empregado no processo de construo de identidades nacionais,
bem como na formalizao da emancipao da metrpole12. No por acaso, Andrs Bello, o
homem que Julio Ramos toma como grande exemplo da defesa da prevalncia do saber dizer e
das belasletras, em oposio a uma viso mais moderna da literatura, que lhe buscava conferir
um estatuto de autonomia (sustentada por Sarmiento), dedicou boa parte dos anos 1840 e 1850
redao do Cdigo Civil Chileno, que foi pensado e recebido no apenas como obra jurdica, mas
tambm literria13.
De maneira semelhante, sustenta Rogelio Prez Perdomo:
A independncia no apenas significou a separao da Espanha mas tambm abusca de um novo tipo de legitimidade, jurdico-democrtica. Da a enormeimportncia da instrumentao jurdica da independncia, dos congressos, dasconstituies e das leis que acompanharam o processo. Isso o que confereimportncia aos juristas no processo da independncia. Foram os grandes idelogosdo novo regime e tambm os organizadores dos novos estados.14
Atentar para esse fato especialmente relevante para pensar o caso latino-americano,
tendo em vista que os intelectuais mantiveram estreitos e complexos laos com o poder estatal,
ainda que isso cause estranheza a certos olhares europeus preocupados com a independncia e opapel crtico desses pensadores (mas, poder-se-ia argumentar, nem mesmo na Europa a
11 RAMA, Angel.A cidade das letras. So Paulo: Brasiliense, 1985.12 ALTAMIRANO, Carlos. Introduccin general. In: ALTAMIRANO, Carlos. (Org.). Historia de los intelectuales enAmrica Latina:La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008. p. 9.13 Ver RAMOS, Julio. Saber dizer: lngua e poltica em Andrs Bello. In: Desencontros da modernidade na Amrica Latina.Literatura e poltica no sculo 19. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 46-61, em especial o comentrio, feito nap. 61, a respeito da busca pela imposio simultnea da lngua e da lei como forma de conter a barbrie.14 PERDOMO, Rogelio Prez. Los juristas como intelectuales y el nacimiento de los estados naciones en Amrica
Latina. In: ALTAMIRANO, Carlos (Org.). Historia de los intelectuales en Amrica Latina, p. 173. Traduo e grifosnossos.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
6/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 283
autonomia alcanou a plenitude, muito embora tenham sido fortes as reivindicaes por ela) 15.
No Brasil, essa intensa atuao intelectual dos bacharis em direito tambm se observa, em
estreita ligao com o protagonismo da educao jurdica na formao das elites polticas.
Alm disso, no se pode esquecer que, durante um longo perodo, a formao jurdica
era a nica disponvel para os sujeitos interessados em humanidades, de forma que, outra vez no
dizer de Perdomo, os estudantes e os graduados em direito faziam tambm periodismo,
literatura, histria e participavam em reunies polticas e sociedades secretas16. No final do
sculo XIX e nas primeiras dcadas do XX, observa-se claramente um esforo de autonomizao
do direito, buscando fund-lo em bases tidas como mais tcnicas e menos retricas. O domnio
da cultura letrada, contudo, no abandona completamente o mundo jurdico, ocasionando certas
ambiguidades nas formas de pensar e de atuar no espao pblico desses homens.
Feitas essas breves consideraes, um esclarecimento se faz necessrio em relao ao
sentido que daremos ao termo jurista ao longo deste trabalho. A expresso ser empregada
para nos referirmos no a todo e qualquer bacharel em direito, mas aos homens que se dedicaram
a uma dimenso especulativa e, no raro, crtica do labor jurdico. Nesse sentido, eles buscaram
apontar possveis falhas na legislao ou nas prticas forenses e, com isso, engajaram-se em
debates os mais diversos, muitas vezes recorrendo imprensa de grande circulao o que
permite uma aproximao frutfera com o domnio da histria intelectual, se aceitas as definiesque enfatizam o papel pblico desses pensadores17. No estamos completamente de acordo com
a acepo de jurista expressa na introduo de obra coletiva coordenada por Carlos Guilherme
Mota, inserindo na categoria todos aqueles profissionais dotados de formao jurdica
universitria, os letrados, que desempenham papis importantes no desenho das instituies
estatais, assim como na prpria atuao destas18. Consideramos essa definio, a um s tempo,
excessivamente ampla, por parecer abarcar todo e qualquer graduado em direito, e muito estreita,
por vincular de maneira inevitvel a atuao do jurista ao Estado. Tampouco aceitamos semressalvas a perspectiva de Gizlene Neder, para quem, em oposio ao simples bacharel, o jurista
seria aquele que adquiriu notoriedade e respeitabilidade, quer pela via pol tica, quer pelo
15 Embora trate de um tema mais restrito, a literatura, as reflexes de Julio Ramos so, nesse aspecto, muitopertinentes. Ver: RAMOS, Julio. Desencontros da modernidade na Amrica Latina, em especial o captulo Limites daautonomiaJornalismo e literatura (p. 96-129).16 PERDOMO, Rogelio Prez. Los juristas como intelectuales y el nacimiento de los estados naciones en AmricaLatina, p. 179.17 Nesse sentido, ver, entre outros: SAID, Edward. Representaes do intelectual. Trad. Milton Hatoum. So Paulo:Companhia das Letras, 2005, p. 25-26.
18 MOTA, Carlos Guilherme. (Coord.). Os juristas na Formao do Estado-Nao Brasileiro. v. I Sculo XVI a 1850.So Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 15.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
7/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 284
brilhantismo e pela erudio com que pautam sua carreira, geralmente marcando suas atividades
com a formulao de argumentos notveis sobre a organizao social e poltica do pas 19.
Consideramos que no a notoriedade alcanada, mas a forma de expresso e de atuao que
distingue o jurista de outros profissionais do direito.
Um ltimo conjunto de consideraes preliminares se liga insero dos juristas no
domnio das culturas polticas. Esse conceito, entendido como complexos sistemas de
representaes, que congregam valores, vises do passado, prticas sociais e fornecem chaves de
leitura do mundo, bem como elementos para articulao de projetos de futuro 20, vem sendo
frutiferamente empregado nos estudos renovados da histria poltica. Acreditamos que, dada a
natureza das funes que os intelectuais desempenham, pautadas pela produo, difuso,
apropriao, reapropriao de ideias, tal conceito muito pode auxiliar nas reflexes acerca desse
grupo social. Quanto aos juristas, entretanto, o problema especialmente complexo, tendo em
vista a associao comumente feita entre essa esfera e o conservadorismo, a que j nos referimos
no incio deste texto.
Reforam esse ponto de vista a defesa da ordem, inerente busca pela estabilidade das
relaes sociais de que se reveste o direito, e a cooperao direta na construo de aparatos
estatais autoritrios algo observvel, no caso brasileiro, tanto no Estado Novo quanto na
ditadura militar instaurada em 1964. Os juristas foram tambm, entretanto, vozes que clamarampela consagrao de garantias fundamentais, militaram a favor dos direitos humanos,
denunciaram alguns excessos do poder estatal. Percebe-se, assim, o carter ambguo da atuao
dos profissionais ligados ao direito, ao menos em relao aos aspectos que produzem efeitos para
alm de seu ofcio propriamente dito. Pode-se dizer, de uma maneira genrica, que eles transitam
entre as culturas polticas tradicionalista, pelo relevo dado autoridade, e liberal, ao defenderam a
necessidade do respeito lei21.
A primeira dessas facetas aponta no sentido de um afastamento da figura do intelectual,ao menos nas definies que enfatizam seu papel de crtico e sua autonomia face ao Estado. A
segunda sinaliza, contudo, na direo exatamente contrria, podendo at mesmo ser identificada
19 NEDER, Gizlene. Discurso Jurdico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Fabris Editor, 1995, p. 99.20Cf., entre outros : BERSTEIN, Serge. IntroductionNature et fonction des cultures politiques. In: BERSTEIN,Serge (Dir.). Les cultures politiques en France. Paris: ditions du Seuil, 1999, p. 7-31; MOTTA, Rodrigo Patto S.Desafios e possibilidades na apropriao de cultura poltica pela historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto S (Org.).Culturas polticas na histria: novos estudos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p. 13-37.21 Apropriamo-nos das reflexes de Jacques Prvotat e Nicolas Roussellier sobre a Frana, que, claro, mereceriamcorrees para serem aplicadas realidade brasileira, por isso destacamos apenas dois elementos, mais genricos. Ver
PRVOTAT, Jacques. La culture politique traditionaliste, p. 33-67; e ROUSSELLIER, Nicolas. La culture politiquelibrale, p. 69-112, ambos em BERSTEIN, Serge (Dir.). Les cultures politiques en France. Paris: ditions du Seuil, 1999.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
8/21
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
9/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 286
arca santa do justo e, a jurando como jurastes e como jurei, afirmamos aeternidade da ordem jurdica, assumimos o compromisso sagrado de defender ajustia, o direito de viver com liberdade, dignidade e independncia, para todosos homens, pequenos ou grandes, pobres ou ricos, fortes ou fracos, e de lutarpara tal fim contra a prepotncia, contra a arrogncia, contra a violncia.24
Descontados alguns exageros retricos prprios tanto disciplina quanto ao tipo de
ocasio em que foi proferido, esse trecho uma instigante porta de entrada para pensar a
trajetria intelectual de seu autor, bem como para formular indagaes acerca de suas conce pes
no apenas jurdicas, mas tambm polticas e sociais. Filho do tambm jurista e professor de
direito Alfredo Vallado, ele se graduou em direito em 1921 na ento Universidade do Rio de
Janeiro, instituio em que se tornou livre-docente de direito internacional privado25em 192926.
Por uma srie de questes de ordem burocrtica e administrativa, somente em 1940 Haroldo
Vallado ascenderia condio de professor catedrtico27. Antes disso, porm, ele se engajara em
um embate pblico fundamental para a compreenso da obra que analisaremos em maior detalhe
na seo final deste texto.
Trata-se da supresso do ensino obrigatrio da disciplina que lecionava pela reforma dos
cursos jurdicos de 1931, a partir da distino entre o bacharelado e o doutorado, sendo o direito
internacional privado deslocado para esta ltima modalidade de formao. No dizer irnico do
professor, os reformadores consideraram que o direito internacional privado no tinha utilidade
profissional, era matria de luxo, de simples aperfeioamento28. No argumento de Vallado,
tratava-se de algo inadmissvel, dado o carter de pas de imigrao do Brasil, fazendo com que
fossem encontradas diariamente no foro situaes em que a disciplina se tornava necessria.
O internacionalista resolveu, ento, combater por duas frentes. A primeira delas, o
contato direto com os ento ministros Francisco Campos e Oswaldo Aranha, no rendeu os
frutos esperados. Embora Haroldo Vallado tenha enviado diversas mensagens a ambos e tenha
24 VALLADO, Haroldo. Aos novos juristas. In: Direito, Solidariedade, Justia. Rio de Janeiro: Livraria Jos OlympioEditora, 1943, p. 27-28.25Apenas para esclarecimento do leitor pouco familiarizado com as letras jurdicas, o direito internacional privadopode ser definido, em termos bastante genricos, como o ramo jurdico que se ocupa de questes com conexointernacional relacionadas a indivduos, buscando solucionar conflitos de lei no espao em relao a temas comopropriedade, situao familiar, sucesso. Ope-se, assim, ao direito internacional pblico, ligado a questes maisamplas, como a relao entre os Estados, os tratados e organismos internacionais, o direito de guerra, o direitohumanitrio etc.26 As informaes biogrficas seguem, fundamentalmente, salvo meno em contrrio, o verbete em: ABREU,Alzira Alves de et al. (Coords.). Dicionrio histrico-biogrfico brasileiro: ps-1930. Rio de Janeiro: Ed. FGV : CPDOC,2001, 5v. Disponvel em: . Acesso em: 09 mai. 2012.27 No pretendemos nos deter sobre a questo, que foi exposta minuciosamente e com tons de glorificao de suaprpria trajetria no discurso de posse na ctedra, reproduzido em: VALLADO, Haroldo. Realizao de um idealjurdico. In: Direito, Solidariedade, Justia, p. 7-15.
28VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 254.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
10/21
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
11/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 288
urgente a reconstitucionalizao do Brasil, devastado h mais de sete anos,desde 10 de novembro de 1937, por um regime de arbtrio pessoal e feio totalitriaque violentou a conscincia jurdica nacional do Brasil, ansiosa de retomar o rumosecular de suas tradies de democracia e de liberdade.33
J em 1940, porm, o professor da Universidade do Brasil se valera de sua tribuna deparaninfo para tecer crticas bastante sutis e sofisticadas ao regime ento vigente. As primeiras
palavras de seu discurso foram uma saudao ao Presidente da Repblica, que presidia igualmente
a cerimnia. A insistncia no fato de Vargas ser um bacharel e ter prestado o mesmo juramento,
de defender o Direito e de aclamar a Justia faz suspeitar de uma censura aos aspectos ditatoriais
do regime estabelecido em 1937, bem antes do contexto de franca crise em que o governo se
encontrava quando o mesmo jurista ascendeu ao cargo mximo do IAB.
Essa impresso se refora por uma longa digresso de Vallado sobre o discurso queproferira como orador de sua turma, em 1921, no mbito do qual se batera pe la socializao do
direito, criticando o sistema jurdico individualista. Aps reconhecer que muitas das
reivindicaes de ento se haviam transformado em realidade, sobretudo quanto s leis
trabalhistas, o professor homenageado pela turma de 1940 passa a criticar os excessos a que
movimento semelhante levara em certos pases da Europa (significativamente, no nomeados),
chegando a chamar de totalitarismo (qualificativo que, como visto acima, ele retomaria quase
meia dcada depois como acusao a Vargas) as experincias ali vividas. A afirmao feita logo
depois, conclamando os formandos a repensar e a reconstruir o direito, refora nossa leitura de
que, criticando a Europa, Vallado tinha como intuito atingir algum bastante prximo, presente
no mesmo salo:
De um tradicionalismo enquistado passou-se a um reformismo sem orientaoe sem limites, e dos abusos do individualismo caminhou a cincia jurdica paraos exageros do estatismo. Pediu-se e se obteve que o interesse de cada um sesubmetesse ao da sociedade, mas depois ultrapassou-se a meta e chegou-se absorocompleta do indivduo pelo Estado.
Por tudo isto os juristas de 1940 se encontram numa atitude paradoxalmenteaproximada daquela de 1921, na necessidade de pregar outra reforma jurdica, de apararagora os excessos de um estatismo absorvente.34
Mesmo que o elogio feito mais frente ao Estado Novo portugus35 mas no,
33 Apud LIRA, Ricardo Csar Pereira. (Org.). Instituto dos Advogados Brasileiros. 150 anos de histria: 1843-1993.Disponvel em: . Acesso em: 23 jul. 2012. p. 200.(Grifos nossos).34 VALLADO, Haroldo. Aos novos juristas. In: Direito, Solidariedade, Justia, p. 31.35 Vallado cita o caso portugus como um exemplo de que o Estado pode ser forte sem extinguir o indivduo
como unidade moral e afirmou que, embora fosse um dos menores pases da Europa, Portugal era o mais acatadoe respeitado de todos. Qualifica, ainda, de sntese admirvel o seguinte trecho da Constituio portuguesa: A
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
12/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 289
ressaltemos, ao brasileiro complique ainda mais a tarefa de promover o enquadramento
poltico de Vallado, a censura feita aos excessos do estatismo deve ser tomada como uma
provocao para pensar o carter complexo das crticas ao liberalismo que se difundiram no
Brasil a partir das primeiras dcadas do sculo XX. Maria Stella Martins Bresciani demonstrou,
com muita propriedade, como os ataques ordem liberal e Constituio de 1891 se
constituram, notadamente a partir dos anos 1920, em uma espcie de lugar-comum, onde se
encontravam muitos dos representantes do pensamento social brasileiro, inclusive nomes to
dspares quanto Srgio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna. Em alguns momentos, contudo, a
associao feita pela mesma autora entre essas crticas e propostas de estabelecimento de
governos autoritrios parece-nos demasiadamente estreita36.
Embora seja inegvel que ideias desse tipo tenham desempenhado papel crucial na
formulao da doutrina do Estado Novo, fato ampla e facilmente comprovvel pela leitura das
obras e pela atuao pblica de, por exemplo, Francisco Campos, o que temos observado, no
mbito do pensamento jurdico (e que nos parece bastante claro no trecho do discurso de
paraninfo ora comentado), um panorama bem mais complexo. Havia uma srie de nuances, de
graus de aproximao e de afastamento em relao a propostas autoritrias entre aqueles que se
puseram a atacar as instituies liberais. A ttulo meramente exemplificativo, mencionemos uma
passagem encontrada em artigo de Cunha Barreto, ento desembargador do Tribunal deApelao de Pernambuco, publicado na Revista dos Tribunais em fevereiro de 1939. Discutindo a
interferncia estatal na formao dos contratos, instrumentos por excelncia do individualismo
dentro do direito, afirma ele: O dirigismo deixa de ser um bem e passa a ser um mal de grande
extenso, se deixar de ser um fim, para transformar-se em um instrumento de opresso,
ultrapassando os limites da ordem jurdica. Dirigismo fora da lei ou da interpretao
jurisprudencial, ilegalidade37.
Essa preocupao com os limites da ordem jurdica pode ser lida como um indcioque d respaldo proposta terica de E. P. Thompson a respeito do direito, exposta ao fim da
Nao Portuguesa constitui um Estado independente, cuja soberania s reconhece como limites, na ordem interna, amoral e o direito. Ver:VALLADO, Haroldo. Aos novos juristas. In: Direito, Solidariedade, Justia, p. 34.36 Um exemplo de tal postura pode ser encontrado no seguinte trecho: Esses crticos das instituies liberaisdefendiam a implantao de uma democracia autoritria, mais condizente com a populao brasileira, consideradadestituda dos rudimentos da educao poltica; portanto, incapaz de pautar sua vida pelos princpios ticos do self-governmentanglo-saxo.BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da cincia e a seduo da objetividade..., p. 167.37 BARRETO, Cunha. O dirigismo na vida dos contratos. Revista dos Tribunais. So Paulo, Ano XXVIII, Vol.CXVII, fascculo n 465, fevereiro de 1939, p. 462. Inmeros textos de teor semelhante, preocupados com a
socializao do direito, mas tambm com o estabelecimento de limites ao poder do Estado, podem ser encontradosnos peridicos jurdicos das dcadas de 1930 e 1940.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
13/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 290
obra Senhores e caadores: A origem da lei negra.Recusando-se a enxergar o universo jurdico como
mero instrumento de dominao, como era a regra na tradio marxista, o historiador ingls
atenta para o possvel papel de limitador dessa mesma dominao que o direito pode
desempenhar. Afirma ele: Devemos expor as imposturas e injustias que podem se ocultar sob
essa lei. Mas o domnio da lei em si, a imposio de restries efetivas ao poder e a defesa do
cidado frente s pretenses de total intromisso do poder parecem-me um bem humano
incondicional38.
Voltando complicada, mltipla e varivel relao com a recusa do liberalismo (ou, ao
menos, de seus excessos) entre os juristas na conjuntura aqui estudada, podemos dizer que ela
nos remete, por um lado, postura oscilante de inmeros desses homens face ao Estado Novo e,
por outro, a seu trnsito por diversas culturas polticas, valorizando simultaneamente a legalidade
e a ordem, a justia e a autoridade (o que tambm pode ser associado dupla natureza do direito
na supracitada proposta de Thompson). As duas questes, j sugeridas em diversos momentos
deste texto, constituem, a nosso ver, chaves preciosas para, a partir da aproximao com a histria
dos intelectuais, elucidar a atuao dos juristas no Brasil dos anos 1930 e 1940. Quanto a esse
tema, resta indagar sobre outro aspecto tambm j brevemente sugerido: a abertura ao dilogo
com os pases da Hispano-Amrica. Tentaremos faz-lo a partir de questionamentos sobre o
olhar que Haroldo Vallado direcionou, em um de seus escritos, aos mais diversos pases e, emespecial, s vizinhas ex-colnias espanholas.
O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado
no Velho e no Novo Mundoe o olhar de Vallado para a Amrica Espanhola
Como mencionamos no incio deste trabalho, O ensino e o estudo do Direito especialmente do
Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo foi originalmente publicado no Jornal do
Comrcio, em trechos seriados. Devemos ressaltar que esse dirio, cujo primeiro nmero circulou
em 1827, era, no momento aqui estudado, um dos mais tradicionais rgos de imprensa do Riode Janeiro39, alm de contar com bom trnsito entre juristas. Indcios deste ltimo fato so o
lanamento por seus proprietrios, em 1927, de uma publicao quinzenal voltada para o direito,
38 THOMPSON, E. P.. Senhores e caadores. A origem da Lei Negra. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1987, p. 357.
39 O ttulo publicado ainda hoje, embora nem de longe conte com o prestgio que alcanara em outros tempos.Em nota a respeito de sua trajetria disponvel na pgina da internet do jornal, a publicao se vangloria de ser omais antigo ttulo de publicao ininterrupta da Amrica Latina. Ver: Jornal do Commercio: quase dois sculos de
histria. Disponvel em: . Acesso em: 23 jul. 2012.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
14/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 291
o Arquivo Judicirio, e a frequncia com que se republicavam textos do Jornal do Comrcio em
peridicos jurdicos, como ocorreu com a obra aqui discutida na paulistana Revista dos Tribunais.
Conforme tambm sugerimos brevemente, o texto de Haroldo Vallado tem estrutura hbrida,
pouco se parecendo com um tratado de direito em moldes tradicionais e mesclando elementos
dos relatos de viagem, de resenhas bibliogrficas e da militncia em favor de uma disciplina, para
a qual o recurso biografia dos grandes mestres frequente.
Nesse sentido, interessante perceber que, na nota introdutria aposta publicao em
forma de livro, feita em setembro de 1940, ao explicar como fora construdo o trabalho, Vallado
no estabelece grandes distines entre os textos elaborados pela observao direta e aqueles
baseados em outros autores. Isso nos remete valorizao da palavra escrita entre os juristas,
como se o recurso s bibliotecas fosse tambm uma forma de viajar: Vo ser lidas impresses de
visitas s grandes Universidades e Bibliotecas do Mundo e de passeio em nossa prpria livraria,
modesta, mas produto de mais de um decnio de dedicao ao ensino e ao estudo do direito 40.
Essa constatao se torna ainda mais significativa se aliada percepo de que trecho
praticamente idntico j se encontrava nas publicaes anteriores noJornal do Comrcioe na Revista
dos Tribunais, dentro da introdutria seo Preliminares, que acompanhou a primeira das partes
em que fora dividido o longo trabalho em ambas as ocasies. Mais que isso, a passagem serviu,
no jornal carioca, como uma espcie de epgrafe, nas edies que trouxeram a continuao dotexto do professor da Faculdade Nacional de Direito, sendo transcrita com recuo logo abaixo do
ttulo e seguida de breve explicao (Do artigo inicial) 41.
Deixamos intencionalmente de lado, no incio deste trabalho, uma informao relevante:
a obra no apareceu em um s fluxo de publicaes no Jornal do Comrcio, mas em dois blocos
separados por um perodo bastante extenso. O primeiro deles, construdo em torno das viagens
de Haroldo Vallado Europa, realizadas em 1935 e 1936, mas contemplando tambm pases
asiticos, africanos e regies europeias que o autor no visitara diretamente, apareceu entre 25 dedezembro de 1937 e 23 de abril de 1939. Tendo a srie de artigos sido inaugurada em nmero
40 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. VII. (Grifos nossos).41 Conseguimos consultar apenas parte das edies originais do Jornal do Comrcio em que apareceu a obra aquidiscutida, mas tudo leva a crer que idntica epgrafe acompanhou todos os trechos que se seguiram ao primeiro. Ver,exemplificativamente: VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito Internacional Privado no Velho e no
Novo Mundo.Jornal do Comrcio. Rio de Janeiro, 23 de abril de 1939, p. 6.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
15/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 292
comemorativo de Natal42e sado em seguida sempre aos domingos, em edio tradicionalmente
nobre da imprensa diria, pode-se concluir que o jornal carioca conferiu ao empreendimento
de Vallado prestgio considervel. O segundo conjunto de textos, iniciado apenas em 11 de
fevereiro de 1940 e estendendo-se at 16 de junho do mesmo ano, inteiramente dedicado s
Amricas, com destaque para a viagem feita aos Estados Unidos em 1937. Acreditamos que essa
pausa, justamente na conjuntura da ecloso da guerra que Vallado chamara de total no
discurso de paraninfo acima discutido brevemente, no casual. Face ao severo lamento do
conflito feito pelo autor na supracitada nota aos leitores da verso em livro43, possvel supor que
a escrita do segundo bloco, lanando um olhar atento ao Novo Mundo, tenha sido
impulsionada pela inteno de apresentar uma alternativa barbrie em que se vira mergulhado
o Velho Mundo.
Essa impresso se refora pela narrativa profundamente elogiosa feita de sua estadia nos
Estados Unidos e encontra uma eloquente sntese no trecho com que encerra a nota sobre a
nova-iorquina Universidade de Columbia. Haroldo Vallado a considerou mais cosmopolita do
que suas rivais, Harvard ou Yale e mesmo, mais moderna nos seus docentes e mtodos de
ensino, e arrematou, de maneira muito significativa: um mundo novo44. Na representao do
professor da Universidade do Brasil, esse mundo novo estaria repleto de bibliotecas
esplendorosas, juristas eruditssimos, alunos e professores exemplares, alm de ser marcado porlouvveis impessoalidade e respeito s leis:
Ali se respeita o verdadeiro valor pessoal e se tem em grande conta o exatocumprimento do dever. O incompetente, o malandro, o mal educado no gozam deconsiderao. A lei e o regulamento tm uma existncia concreta, real, que todos sentem,indistintamente, e so aplicados por funcionrios e guardas agindo com muitaurbanidade, no se furtando, mesmo a uma certa camaradagem com o pblico.45
42 Um quadro na primeira pgina de tal edio explicava: Publicamos hoje, dia de Natal, como de costume, umnmero especial do Jornal do Comrcio com variada e interessante cpia de artigos de colaborao, conforme osleitores vero pelo sumrio que damos abaixo. [...] o nmero especial de hoje, comemorativo do Natal, contmtambm a colaborao habitual dos domingos, devendo vender-se pelo preo de 400 ris.
Seguia-se uma longa enumerao dos textos presentes no jornal, em que o trabalho de Vallado ocupava a p. 12.Embora a explicao do jornal no seja explcita a esse respeito, parece-nos que o texto do jurista de que nosestamos ocupando foi considerado colaborao habitual dos domingos, e no parte propriamente dita do especialde Natal. De toda forma, no deixa de ser significativo que ele tenha sido publicado em uma edio de destaque. Ver:Jornal do Comrcio. Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 1937, p. 1.
43 Ver VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. VIII-IX.44 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo
Mundo, p. 174, grifos nossos.45 ______.______, p. 171. (Grifos nossos).
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
16/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 293
No difcil perceber nesse trecho uma crtica s prticas brasileiras, algo que tambm
se pode entrever, de maneira um pouco mais sutil, quando o jurista discute a questo da regulao
profissional nos Estados Unidos. Trata-se de um tema que, em relao ao direito, suscita
controvrsias no Brasil desde, ao menos, a fundao do Instituto dos Advogados Brasileiros, em
184346. Essa agremiao de juristas que, como mencionamos brevemente, Haroldo Vallado
presidiria em meados dos anos 1940 tinha como um de seus objetivos expressos, desde seus
primrdios, a formao da respectiva Ordem, encarregada de estabelecer os critrios para
exerccio das profisses jurdicas. A OAB somente seria organizada quase um sculo depois, no
incio dos anos 1930, mas a batalha pelo monoplio dos bacharis em direito, a despeito das
fortes mobilizaes a seu favor, seria vencida em definitivo apenas algumas dcadas mais tarde,
com a extino da figura dos solicitadores, indivduos sem educao jurdica formal autorizados aadvogar em determinadas circunstncias, e a instituio da obrigatoriedade do exame de ordem.
Vallado se coloca claramente ao lado dos defensores desses procedimentos que acabariam por
prevalecer, quando v com bons olhos a insuficincia do diploma para o exerccio da advocacia e
a consequente seleo social dos alunos das grandes Universidades operada pelo grande rigor
do Bar exam, espcie de equivalente norte-americano da avaliao hoje aplicada pela OAB 47.
Ironicamente, o jurista brasileiro no parece perceber a contradio entre essa postura
nitidamente elitista e a busca pela socializao do direito de que se dissera partidrio ao
discursar para os formandos da Faculdade Nacional de Direito em 1940.
Quanto aos comentrios sobre os Estados Unidos, mencionemos, por fim, um
interessante elogio s prticas acadmicas yankees, que deixa entrever uma crtica Amrica do
Sul, vista como uma regio atrasada do ponto de vista intelectual:
O meio universitrio norte-americano detesta, et pour cause, as massudasconferncias e calhamaos, com longas citaes, muitas palavras e poucas ideias,lidas com nfase, profundamente montonas, esse gnero, sculo XIX, que aindaconsegue produzir efeitos em alguns pases sul-americanos. A Europa de hoje tambmno as suporta.48
justamente o olhar para esses pases facilmente impressionveis pelos exageros
verborrgicos acusao relacionada ao debate sobre o bacharelismo, recorrente nos combates
intelectuais brasileiros desde, ao menos, o incio da Repblica que nos interessa analisar em
46 Para uma leitura profundamente crtica da luta pela regulamentao profissional no Brasil e um relato de seuspercalos desde a Independncia, ver: COELHO, Edmundo Campos. As profisses imperiais. Medicina, Engenharia eAdvocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.47 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 204.
48 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 204. (Grifos do autor na expresso francesa e nossos no trecho destacado).
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
17/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 294
maior detalhe.
As impresses de Haroldo Vallado sobre a Amrica Espanhola, ttulo com o qual
designa o artigo/captulo dedicado aos pases das pores central e sul do continente em O ensino
e o estudo do direito internacional privado no Velho e no Novo Mundo, publicado originalmente em 31 de
maro de 1940, no foram, em regra, colhidas in loco. As excees so Cuba, Haiti e Repblica
Dominicana, visitados brevemente em trnsito rumo Amrica do Norte. Tambm os
comentrios sobre a Argentina, desenvolvidos ao longo de quase dez das 23 pginas da seo,
baseiam-se em vivncias diretas, mas a partir de uma viagem anterior quelas que compem o
corpo principal do trabalho, realizada em 1927. Isso pode ser visto como uma evidncia, por um
lado, de descaso (ao menos relativo) com a regio e, por outro, do peso desigual concedido aos
diferentes pases.
O fato de Vallado dividir o estudo do continente americano em trs captulos,
Amricas Estados UnidosCanad, Amrica Espanhola e Brasil, carregando somente o
primeiro deles a designao que deveria encobrir todos esses espaos, pode ser lido, luz da sua
descriocomo vimos, bastante simpticada realidade norte-americana, como um sinal, ainda
que bastante sutil, de que o autor tomava esses pases, notadamente os Estados Unidos, como um
modelo a ser seguido pelo restante do Novo Mundo. A separao entre Brasil e Amrica
Espanhola pode ser lida, primeira vista, como uma recusa de insero na identidade (bastanteproblemtica, diga-se de passagem) latino-americana, em relao qual os pensadores brasileiros
apresentaram, ao longo do tempo, posturas mltiplas, cambiantes e, no raro, contraditrias.
Embora seja inegvel que se trata da afirmao de uma diferena, igualmente razovel, contudo,
supor que tal diviso se deu em atendimento a critrios histrico-culturais, lingusticos ou mesmo
por mera convenincia da organizao do texto.
Uma leitura mais atenta da obra aponta, justamente, para matizes e aproximaes com
os pases vizinhos. Ao descrever sua visita Universidade de Columbia, por exemplo, Valladoelogia o professor Philip C. Jessup, ilustre internacionalista, por falar um ingls facilm ente
acessvel aos latinos49. Em outra passagem, relatando um luncheon, misto de almoo e de reunio
de congregao a que assistira, afirma que a rpida deciso a respeito do posicionamento dos
professores sobre a reforma da Suprema Corte que Roosevelt tentava aprovar fora um
espetculo indito para os latinos50. Em ambas as ocasies, est claro que Vallado se considera
49 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo
Mundo, p. 173.50 ______. ______, p. 196.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
18/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 295
inserido na categoria de latino, embora, especialmente na segunda, haja um tom de crtica em
seu emprego.
A prpria inspirao do trabalho que ora analisamos, enunciada na seo Preliminares,
teria sido colhida no ilustre internacionalista argentino Estanislau S. Zeballos, autor de uma
srie de artigos publicada a partir de 1903 sobre o ensino do direito internacional privado na
Europa e na Amrica51. O curioso notar que esse jurista fundou e dirigiu o Bulletin Argentin de
Droit International Priv, publicado em francs com o objetivo expresso de atender necessidade
patritica e cientfica de incorporar a Repblica Argentina ao movimento progressivo do Direito
Internacional Privado52. Ainda que a autora trate da literatura e no do direito, difcil no
estabelecer um paralelo entre essa proclamao do patriotismo feita em lngua estrangeira e os
paradoxos do nacionalismo latino-americano identificados por Leyla Perrone-Moiss, em
especial quanto idealizao da Frana, que no colonizara esses pases e podia aparecer, no
sculo XIX da conquista da independncia poltica na regio, como a ptria da Revoluo e da
Liberdade53.
Quanto desigualdade no tratamento dos pases, ela nos parece mais verdadeira e
profunda. Em Amrica Espanhola, a primeira realidade a ser discutida a mexicana, em trecho
j iniciado com um lamento sobre a pouca quantidade de mestres de direito internacional privado
que alcanaram projeo para fora de seu territrio. O tom se torna ainda mais crtico quando oautor se volta para os processos de divrcios de estrangeiros, aprovados indiscriminadamente no
Estado de Chihuahua. Essas decises estariam sendo rejeitadas pelo Supremo Tribunal no Brasil
e por seus equivalentes em diversos outros pases, sob a acusao de serem contrrias ordem
pblica54. Esse trecho deixa entrever traos de um conservadorismo de fundo catlico,
valorizador da famlia, j manifestado por Vallado no relato, profundamente laudatrio, de sua
visita ao ento recm-fundado Estado do Vaticano e no voto de confiana no fim da guerra
europeia que fizera na nota aos leitores (O esprito edifica para sculos e o cristianismo parasempre55).
Ao falar, em seguida, de Cuba, Vallado s reserva elogios a Sanchez de Bustamante,
51 ______. ______, p. 5. No tivemos acesso a esses textos, mas, pela descrio que deles faz Vallado, parece-nosse tratar de esforo intelectual bastante prximo ao que ele prprio empreende.52 ApudVALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e noNovo Mundo, p. 5.53 Ver PERRONE-MOISS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literrio. So Paulo:Companhia das Letras, 2007, em especial p. 36-41.54 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo
Mundo, p. 208-209.55 ______. ______, p. IX. Sobre o Vaticano, ver, na mesma obra, p. 152-155.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
19/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 296
autor do Cdigo Pan-Americano de Direito Internacional (1928), chamado por ele de grande
especialista do sculo na disciplina que lecionava56. Sobre o pas, sobram ironias: a reticente
afirmao de que talvez fosse melhor ver Cuba antes da terra de Lincoln, a pilhria sobre as
cinzas de Colombo, que j [lhe] haviam sido apontadas na Catedral de Sevilha e ainda o seriam
em S. Domingos, a descrio da biblioteca, que, embora mui moderna, tinha pouco material e
era pouco frequentada. Sob o ponto de vista das representaes construdas acerca desse outro
to prximo e com pontos de contato to fortes com a histria brasileira, o comentrio mais
significativo nos parece estar, porm, alhures, em afirmao que remete a uma ideia de longa
durao e frequentemente instrumentalizada tanto pela monarquia brasileira quanto pelos
defensores republicanos de um Estado forte e centralizado , aquela que opunha a ordem
brasileira ao caos hispano-americano. Explicando o fechamento da Universidade, que frustraraem parte o seu propsito de realizar uma visita de estudos, afirma o professor brasileiro:
Histria de greves, de poltica, de revolues, coisas comuns nos pases hispano-americanos...57.
Os olhares mais benevolentes parecem ter sido reservados por Vallado para o Chile e a
Argentinafato que pouco surpreende, pois eram justamente esses os pases da regio, ao menos
nas representaes correntes a respeito de suas capitais, considerados ento os mais prximos do
modelo europeu de civilizao. Quanto ao primeiro, ele destaca a proximidade intelectual do
Brasil, apesar da ausncia de fronteiras entre os dois pases:Desta nica Repblica sul-americana que no limita com o Brasil [sic] e quenem por isto deixa de ser um dos nossos velhos e caros amigos, diremos que aglria de ter possudo um jurista do tom de Andrs Bello, se junta com a obradeste, 'Princpios de Derecho das Gentes', 1 edio, Santiago 1832 teroferecido o primeiro livro sobre o direito internacional da Amrica do Sul.58
A Argentina, por sua vez, chamada de grande repblica irm e tem a descrio
marcada por notas de apelo emocional, em que o autor rememora sua j distante estadia naquelas
terras, em 1927: tantas coisas amveis com que nos brindaram os argentinos e que tornaram a
breve estadia em seu grande pas, a passagem, de uma encantadora fita cinematogrfica...59.
O trecho sobre o Peru iniciado com a elogiosa afirmao de se tratar de um Estado
56 Merece destaque, nesse sentido, o valor que Vallado atribui ao reconhecimento internacional no elogio aBustamante, como se somente ele pudesse dar um verdadeiro atestado da grandeza do jurista: Pertence, sgrandes associaes cientficas do Novo e Velho Mundo, colabora nas principais publicaes internacionais, emsntese, um legtimo valor da Amrica e do Mundo.VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmentedo Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo, p. 211.57 ______. ______, p. 210.58 ______. ______, p. 218-219.
59 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no NovoMundo, p. 220-221.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
20/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 297
que ficou, para sempre, ligado histria do direito internacional privado pelo 'Congresso
Americano de Jurisconsultos', reunido em Lima em 1877 e culminando na assinatura de um
tratado que buscou uniformizar o direito internacional privado. Embora apenas o prprio Peru
tenha ratificado o documento, levando sua ineficcia, Vallado o comenta em termos ufanistas,
afirmando que, de qualquer maneira, a Amrica do Sul tivera a primazia inconteste, na obra
mundial de codificao do direito dos conflitos de leis no espao60. Comentrio de teor
semelhante se encontra no incio da seo dedicada ao Brasil, logo aps a rubrica Amrica
Espanhola, em que Vallado sustenta a possibilidade de o pas
[...] vangloriar-se de ter produzido o primeiro Projeto orgnico e com basecientfica, de legislao de direito internacional privado, quer nas Amricas, querno mundo, o Esboo de Teixeira de Freitas, 1860, e a primeira obra sistemtica,
precisa e completa sobre o assunto, Direito Internacional Privado de PimentaBueno, Rio de Janeiro, 1863.61
Isso nos remete a outro dos paradoxos nacionalistas discutidos por Perrone-Moiss,
ao falar das vanguardas latino-americanas, que pretendiam ser, a um s tempo, nacionalistas e
cosmopolitas62. Estudioso militante do direito internacional em tempos de exacerbao de
sentimentos nacionais; intelectual fascinado pelos modelos vindos da Europa e, em verses
modernas, (pretensamente) pacifistas e muito sedutoras, dos Estados Unidos; homem
preocupado em afirmar as belezas e o lugar do Brasil entre os povos civilizados ou em pensar,
como em diversos dos trechos que discutimos, na identidade mais ampla de latino-americano, o
autor sobre o qual viemos nos debruando parece ter vivido essas ambiguidades com especial
intensidade.
Exemplos que confirmem esse fato poderiam ser multiplicados tanto na obra sobre a
qual nos detivemos, quanto em outros escritos de Vallado. Destacaremos, nesse sentido e guisa
de concluso, apenas uma significativa mudana observada entre a verso publicada na Revista dos
Tribunais e as outras duas aparies do trabalho, nas pginas do Jornal do Comrcio e no livro O
ensino e o estudo do Direito especialmente do Direito Internacional Privado no Velho e no Novo Mundo. Noltimo trecho publicado no peridico jurdico paulista, integrante do fascculo de maro de 1940,
mas datado pelo autor em dezembro de 1939, o tom de otimismo quanto disciplina e ao
direito:
Da longa caminhada feita, dessa peregrinao pelo Velho e Novo Mundo,colhemos uma observao: nenhuma das cadeiras do curso jurdico despertou
60 ______. ______, p. 215-216.
61 ______. ______, p. 231.62 PERRONE-MOISS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo:paradoxos do nacionalismo literrio, p. 39.
-
8/13/2019 Um jurista em tempos de guerras: a atuao intelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940, entre o Velh
21/21
Um jurista em tempos de guerras: a atuaointelectual de Haroldo Vallado nos anos 1930 e 1940,
entre o Velho e o Novo Mundo
TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG
Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 298
no sculo XIX e no sculo XX maior interesse, obteve dedicaes to grandes,apaixonou mais fortemente os sbios, professores, diplomatas, homens deEstado, juzes e advogados dominou o ensino das Faculdades do que o direitointernacional privado.
Essa afirmao ficou comprovada, de modo a espairecer quaisquer dvidas,com o presente trabalho.63
A passagem desapareceu por completo da consolidao em livro, que, assim como
ocorrera na verso do Jornal do Comrcio,encerra-se abruptamente com o final da seo anterior.
Em tal passagem, o autor, ao justificar a ausncia de discusses sobre o direito internacional
pblico, afirma que, caso o tivesse feito, a concluso seria de que sempre a conduta internacional
do Brasil foi uma e nica aquela de nossa tradio. A tradio que Vallado reivindica seria
eminentemente pacifista e estaria, segundo ele, expressa de maneira lapidar no art. 4 da ento j
revogada Constituio de 1934: O Brasil s declarar guerra se no couber ou malograr-se orecurso do arbitramento; e no se empenhar jamais em guerra de conquista, direta ou
indiretamente, por si ou em aliana com outra nao64.
Esse encerramento do texto, ainda que desprovido do tom otimista do fechamento da
verso que ocupou as Pginas Destacadas da Revista dos Tribunais,ganha notas menos sombrias
quando conjugado a outra passagem, extrada de um dos primeiros captulos da obra. Relatando
sua surpresa ao encontrar, nas universidades italianas, inmeras homenagens ao s professores e
alunos, juzes e advogados, que tombaram pela ptria na Grande Guerra, afirma HaroldoVallado:
Espetculo que imps admirao e respeito, mas surpreendeu a um sulamericano, vindo de um continente pacifista, onde nas Universidades seencontram ao lado dos nomes de sbios nacionais, outros de grandes vultosamericanos, como vimos na Argentina e no Uruguai com o nome do imortalcivilista brasileiro, Teixeira de Freitas.65
Para um jurista marcado por tantas ambiguidades, esse curioso internacionalista em
tempos de guerras contra a supresso da disciplina que lecionava, os excessos da ditadura
varguista ou, ainda, no combate ao mais literal dos seus sentidos, observvel na situao em que
se via imersa a Europa talvez fosse a defesa do pacifismo a nica concluso desejvel. Talvez,
em sua concepo, os sul americanos, para usar a expresso do trecho citado, enfim tivessem
algo a ensinar ao tantas vezes reverenciado Velho Mundo.
Recebido em: 15/05/2012Aprovado em: 14/08/2012
63 VALLADO, Haroldo. O ensino e o estudo do direito internacional privado no Velho e Novo Mundo , p. 268.
64 ______. ______, p. 258.65 ______. ______, p. 19-20.