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UM HOSPITAL QUE TRABALHA EM QUALIDADE DE VIDA Hospital do Mar O Hospital do Mar é o único hospital geriátrico e de reabilitação do país. Está organizado em função das necessidades dos doentes e não das especialidades clínicas. Por isso, cada doente geriátrico, paliativo ou de reabilitação é tratado com base num plano individual de cuidados preparado por equipas multidisciplinares e pensado na perspetiva da qualidade de vida. 44 Outubro 2014 seu lado um dos elementos desta equipa – fosse uma enfermeira, um técnico de neurofisiotera- pia, de terapia da fala e de neuropsicologia ou até uma auxiliar, além dos médicos. De dois em dois dias, a equipa reunia para ava- liar a evolução de Maria e parametrizar a inter- venção de cada um dos profissionais envolvidos. «Foi um trabalho intenso e muito exaustivo. Os envolvidos tinham de se revezar de duas ou de três em três horas. A doente exigia muita aten- ção, muito cuidado, muito controlo. Mas era a única forma de trabalhar com ela. Como é que poderíamos fazer a neuroestimulação de que ela precisava se estivesse sedada?», conta Paula Mar- tins, a enfermeira diretora do Hospital do Mar. Maria não sabia comer, não conseguia pegar num talher, tinha perdido a capacidade para dominar as funções sociais mais básicas. «Tivemos de en- sinar-lhe tudo. Um de nós sentava-se à mesa com ela e ia tentando que ela imitasse os movimentos. Isto num contexto, sempre, de grande agitação e de grande stress. Porque ela não parava um se- gundo…», recorda a enfermeira. O plano individual de cuidados de Maria envol- veu toda a gente, até auxiliares, funcionários da receção e pessoal do bar do Hospital. «Na verdade, toda a gente tem de saber lidar com os doentes. Qualquer um de nós, em qualquer momento do dia, pode vir a contactar com o doente. E tem de saber o que fazer e como. Por isso, o trabalho de equipa é condição fundamental para este plano de cuidados ser eficaz», diz Caldas de Almeida. Maria estava há meses literalmente presa a uma cama, num grande hospital de Lisboa, com pro- fundas alterações neurológicas centrais provoca- das por uma meningite. Quando não estava se- dada, mantinha-se num estado permanente de agitação e inquietude. Era agressiva, gritava, batia em si própria e em quem estava por perto. Não conseguia comunicar. Era muito difícil mantê- -la acordada nestas condições, num hospital de agudos. Por isso, passava a maior parte do tem- po sedada. «Até que foi transferida para aqui…», lembra Manuel Caldas de Almeida, diretor clí- nico e administrador executivo do Hospital do Mar, em Loures, a unidade do grupo Luz Saúde (ex-Espírito Santo Saúde) dedicada aos cuidados continuados, paliativos e de reabilitação. Tinha, então, 18 anos apenas. Hoje, com 22 anos, Maria regressou à sua vida normal. «Tirou um cur- so, está a trabalhar, voltou para o namorado…», conta, com um orgulho indisfarçável. Não acon- teceu nenhum milagre, claro. Maria é apenas um dos muitos exemplos da forma como se trabalha no Hospital do Mar. «Fazemos, para cada doente, um plano indivi- dual de cuidados. Há situações em que se pode dizer que esse plano é mais ou menos padroni- zado, como em muitos casos de síndrome de imobilização. Mas em casos como o de Maria, destacamos, inclusive, uma equipa para acom- panhar a doente permanentemente», explica o médico que dirige o Hospital do Mar. Isto tradu- ziu-se, na prática, no facto de Maria ter sempre a

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UM HOSPITAL QUE TRABALHA EM

QUALIDADE DE VIDA

Hospital do Mar

O Hospital do Mar é o único hospital geriátrico e de reabilitação do país. Está

organizado em função das necessidades dos doentes e não das

especialidades clínicas. Por isso, cada doente geriátrico, paliativo ou de

reabilitação é tratado com base num plano individual de cuidados preparado

por equipas multidisciplinares e pensado na perspetiva da qualidade de vida.

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seu lado um dos elementos desta equipa – fosse uma enfermeira, um técnico de neurofi siotera-pia, de terapia da fala e de neuropsicologia ou até uma auxiliar, além dos médicos. De dois em dois dias, a equipa reunia para ava-liar a evolução de Maria e parametrizar a inter-venção de cada um dos profi ssionais envolvidos. «Foi um trabalho intenso e muito exaustivo. Os envolvidos tinham de se revezar de duas ou de três em três horas. A doente exigia muita aten-ção, muito cuidado, muito controlo. Mas era a única forma de trabalhar com ela. Como é que poderíamos fazer a neuroestimulação de que ela precisava se estivesse sedada?», conta Paula Mar-tins, a enfermeira diretora do Hospital do Mar.Maria não sabia comer, não conseguia pegar num talher, tinha perdido a capacidade para dominar as funções sociais mais básicas. «Tivemos de en-sinar-lhe tudo. Um de nós sentava-se à mesa com ela e ia tentando que ela imitasse os movimentos. Isto num contexto, sempre, de grande agitação e de grande stress. Porque ela não parava um se-gundo…», recorda a enfermeira.O plano individual de cuidados de Maria envol-veu toda a gente, até auxiliares, funcionários da receção e pessoal do bar do Hospital. «Na verdade, toda a gente tem de saber lidar com os doentes. Qualquer um de nós, em qualquer momento do dia, pode vir a contactar com o doente. E tem de saber o que fazer e como. Por isso, o trabalho de equipa é condição fundamental para este plano de cuidados ser efi caz», diz Caldas de Almeida.

Maria estava há meses literalmente presa a uma cama, num grande hospital de Lisboa, com pro-fundas alterações neurológicas centrais provoca-das por uma meningite. Quando não estava se-dada, mantinha-se num estado permanente de agitação e inquietude. Era agressiva, gritava, batia em si própria e em quem estava por perto. Não conseguia comunicar. Era muito difícil mantê--la acordada nestas condições, num hospital de agudos. Por isso, passava a maior parte do tem-po sedada. «Até que foi transferida para aqui…», lembra Manuel Caldas de Almeida, diretor clí-nico e administrador executivo do Hospital do Mar, em Loures, a unidade do grupo Luz Saúde (ex-Espírito Santo Saúde) dedicada aos cuidados continuados, paliativos e de reabilitação.Tinha, então, 18 anos apenas. Hoje, com 22 anos, Maria regressou à sua vida normal. «Tirou um cur-so, está a trabalhar, voltou para o namorado…», conta, com um orgulho indisfarçável. Não acon-teceu nenhum milagre, claro. Maria é apenas um dos muitos exemplos da forma como se trabalha no Hospital do Mar.«Fazemos, para cada doente, um plano indivi-dual de cuidados. Há situações em que se pode dizer que esse plano é mais ou menos padroni-zado, como em muitos casos de síndrome de imobilização. Mas em casos como o de Maria, destacamos, inclusive, uma equipa para acom-panhar a doente permanentemente», explica o médico que dirige o Hospital do Mar. Isto tradu-ziu-se, na prática, no facto de Maria ter sempre a

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O objetivo é sempre, seja qual for a situação do doente, ponderar as suas necessidades e dar-lhe uma resposta integrada e com-pleta. «Com Maria, foi fazê-la reaprender as suas capacidades sociais, torná-la de novo autónoma, dar-lhe as competências necessárias para regressar à vida normal. Mas noutras situações, o objetivo pode ser dar conforto em fi m de vida. Cada plano de cuidados é individual precisamente por essa razão: as necessidades são dife-rentes de doente para doente. A mesma pessoa terá, até, necessidades diferen-tes ao longo da evolução da sua doença. Por isso, pensamos no que é melhor para cada doente em cada momento», explica Manuel Caldas de Almeida. E é isso que traduz o plano individual de cuidados.

HOSPITAL GERIÁTRICO…O Hospital do Mar é o único hospital ge-riátrico e de reabilitação do país. Não é apenas uma unidade de cuidados conti-nuados e paliativos. Nem é só uma uni-dade de reabilitação. «Revolucionámos

profundamente a nossa organização de cuidados, desde que abrimos, em 2006. Precisamente, porque encaramos o que fazemos na perspetiva das necessidades dos doentes, e não numa lógica de orga-nização tradicional por especialidades», acrescenta Caldas de Almeida.É dentro dessa perspetiva, diz, que se justifi ca o facto de o Hospital do Mar ter, por exemplo, a fi sioterapia de reabilitação separada em duas áreas diferentes, até fi -sicamente separadas. «Percebemos que é completamente diferente responder aos doentes com síndrome de imobilização quando têm uma demência ou quando não têm. Em ambos, é o mesmo proble-ma que os leva à reabilitação – um AVC, uma fratura do colo do fémur… - mas a abordagem tem de ser diferente», diz ain-da, referindo: «Por isso, investimos na for-mação e no treino específi co de um grupo de fi sioterapeutas, que se dedica apenas à reabilitação de pessoas com demências». Enquanto hospital geriátrico, o Hospital do Mar está vocacionado para dar res-

posta às várias fases do envelhecimento. Quer em termos de prevenção, ao nível do envelhecimento ativo – aqui com o objetivo de manter «os velhos novos. Ou seja, ativos, autónomos e capazes de man-ter um dia-a-dia normal». Quer em termos de reabilitação, perante problemas pontuais que exigem cuida-dos médicos – e aqui o propósito é recu-perar da perda psicológica e motora que implica normalmente, aos 70 ou aos 80 anos, partir uma perna ou ter um AVC, permitindo ao doente recuperar as suas funções pessoais e sociais para regressar a casa e à sua vida normal». Finalmente, quer perante a fragilidade ge-riátrica e a doença crónica, «porque hoje as pessoas são muito mais velhas e por muito mais tempo, e nessa medida pre-cisam de cuidados especiais, pensados caso a caso», explica o diretor.Na área geriátrica, o Hospital presta ainda cuidados paliativos. «E aqui, mais uma vez, o paradigma dos cuidados alterou-se profundamente nos últimos anos. Deixá-mos de encarar os doentes paliativos como doentes agónicos, a quem restam apenas uns dias de vida. Cuidados paliativos, aqui, são uma resposta às necessidades paliativas de cada doente. E estas neces-sidades podem ser diferentes, consoante o estadio da doença ou mesmo o tipo de doente», acrescenta o médico. Caldas de Almeida explica que o Hospital tem es-tes cuidados organizados em dois progra-mas: um de manutenção e conforto, para as doenças em fase muito avançada e em que o objetivo é que os doentes se sintam o mais confortáveis possível nesta fase fi nal da vida; e o outro é de reabilitação, para o doente que ainda tem possibilidade de recuperar alguma funcionalidade, em que ainda pode voltar a casa e manter-se com alguma atividade. «Tivemos aqui um doente que tinha es-tado internado num hospital de agudos e

Cada plano de cuidados é individual porque as necessidades são diferentes de doente para doente. A mesma pessoa terá, até, necessidades diferentes ao longo da evolução da sua doença. Por isso, pensamos no que é melhor para cada doente em cada momento», explica Manuel Caldas de Almeida, diretor do Hospital do Mar.

A abordagem dos doentes paliativos pode ser feita de dois modos: na perspetiva da manuten-ção e conforto, para dar qualidade ao fi m da vida, e na perspetiva de uma reabilitação paliativa, para permitir que o doente recupere função e capacidades

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Hospital do Mar

que a família achava que estava à beira da morte. Durante esse internamento anterior, o senhor estava sempre deitado, nu, semse mexer, literalmente à espera de morrer. Veio para cá e, no dia seguinte, quando a mulher o veio visitar, encontrou-o ves-tido, sentado num cadeirão e a ouvi-lo dizer que iria, mais tarde, até ao ginásio fazer exercício», recorda o médico. Este doente fez um programa de reabilitação paliativa e, a partir de certa altura, até foi passar fi ns de semana a casa e férias ao Algarve. «Esteve dois anos assim. Morreu porque, de facto, tinha uma doença on-cológica em estado muito avançado…», acrescenta Caldas de Almeida.

… E DE REABILITAÇÃOEnquanto unidade de reabilitação, o Hos-pital do Mar tem-se destacado na especia-lização e diferenciação. «Desenvolvemos

as nossas competências a pensar na rea-bilitação, não apenas da função, mas da qualidade de vida», diz Manuel Caldas de Almeida. Ou seja, os cuidados visam, não apenas fazer com que a perna partida volte a mexer, mas também recuperar qua-lidade de vida, abordando o doente como um todo, que tem de voltar à sua vida com todas as competências e autonomia.Mário era motorista de pesados até ter tido um acidente grave que o deixou paraplé-gico. Foi para o Hospital do Mar depois de muitos meses de reabilitação noutra uni-dade de saúde de Lisboa. «Ele queria algo diferente da reabilitação. Queria mais do que saber sair e entrar da sua cadeira de rodas. Pediu-nos para o ajudarmos por-que não queria depender de ninguém, no seu dia-a-dia. Queria voltar a sair com os amigos, cozinhar as suas refeições, che-gar a todos os armários. E não queria fa-

zer mudanças, nem na sua casa, nem na sua vida», recorda a enfermeira.No Hospital do Mar, onde esteve mais uns meses, fez então uma reabilitação ‘diferente’. Depois de estudadas todas as possibilidades, Mário foi treinado para viver com uma cadeira que verticaliza-va. «Fez-se um trabalho muito específi co com este doente. Ele queria ganhar com-petências nas atividades instrumentais e foi isso que trabalhamos com ele». É outro caso de sucesso, que Caldas de Almeida gosta de recordar.Neste momento, o Hospital do Mar tem 112 quartos, uns individuais e outros du-plos, e 138 camas. Trabalham aqui mais de 200 profi ssionais, entre especialistas de Medicina Interna, de Medicina Geral e Familiar, de Neurologia, de Psiquiatria, de Fisiatria e de Oncologia (sendo este um consultor); psicólogos; enfermeiros espe-cialistas em saúde mental e reabilitação, com competências e formação avança-da em demências, cuidados paliativos e AVC; fi sioterapeutas também com estas competências; e terapeutas da fala e ocu-pacionais, entre outros. Tem ainda 38 vagas da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNC-CI), 30 para doentes em convalescença e oito para cuidados paliativos, de referen-ciação dos hospitais públicos.

O Hospital do Mar especializou-se em fi sioterapia de reabilitação para doentes com demências e está agora a desenvolver uma área especial de reabilitação para pessoas que sofreram AVC