um horizonte de possibilidades

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20 LIFE | AMOR E ATRACÇÃO No fundo, é reconhecer-se a possi- bilidade de várias relações, sejam elas sexuais ou não, amorosas ou não, poderem coexistir com co- nhecimento das pessoas envolvidas e de forma responsável”. Quem o diz é Daniel Cardoso, investigador na área e poliamo- roso, tentando explicar um conceito que considera complexo por ser difícil “traçar as fronteiras”. Segundo o especialista, “trata-se de uma identidade queer e precisamente por isso é difícil desenhar um círculo à volta e dizer: poliamor é isto”. “Normalmente, quando se fala em poliamor fala-se em constelações poliamorosas. Uma pessoa pode estar numa relação com duas pessoas e essa relação ter uma certa configuração naquele momento e seis meses depois pode ser completamente diferente”. Por exemplo, há quem aborde o poliamor estabelecendo um modelo em três patamares: relações primárias, secundárias e terciárias. A primeira seria aquela que temos com a pessoa com que consideramos ter relações mais fortes. Uma segunda em que os sentimentos não seriam tão fortes e, por fim, uma terceira, que se basearia mais no sexo. “Há outras pessoas que consideram este tipo de divisões dema- siado hierarquizantes, classicistas, e que não fazem sentido nenhum.” Portanto, são diversas as formas de encarar o poliamor. Polifidelidade, relações extremamente promíscuas ou nada promíscuas, relações puramente afectivas e relações em que amizade e sexo se misturam sem tabus são alguns exemplos. A ideia é existir um horizonte de possibilidades por explorar sem ver nisso um problema, e a palavra- -chave é depende. Depende da maneira como a pessoa o quiser viver. ALTERNATIVA À MONOGAMIA E se o conceito de poliamor pode ser con- siderado recente, porque a palavra nasceu há pouco tempo, a sua prática não. “Um exemplo muito clássico é Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, devido às relações que tinham, os modelos que viviam, etc.”, afirma. O investigador julga ser relevante reflectir sobre o assunto. “Se as pessoas nunca ti- nham pensado que havia uma alternativa à monogamia, será que escolheram a mo- Poliamor comOut nogamia? Acho que é mais importante que as pessoas tenham em mente aquilo que podem fazer e não apenas o que os outros fazem. Porque quando olhamos demasiado para aquilo que é normal os outros fazerem começamos a criar standards, padrões de comportamento.” Por vezes, alguns pensam que numa relação poliamorosa existe um casal central que acaba por ter ligações com outras pessoas. Para o especialista, quanto mais depressa Quem são os poliamorosos? Ainda não há estudos representati- vos sobre este grupo, muito menos em Portugal. Os estudos não- -representativos dizem respeito à realidade americana e apontam para um grau muito elevado de bissexua- lidade feminina. Em Portugal, Daniel Cardoso refere existirem mais de 100 inscritos na mailing list do gru- po PolyPortugal, com idades desde a casa dos 20 à casa dos 40. Sara Afonso, 36 anos, bissexual “Há que distinguir o poliamor da poliqueca” Foi em 2006 que descobriu o poliamor. Quando fez parte da organização da marcha LGBT, no Porto, ouviu uma pessoa falar sobre o tema. “Há que distinguir o poliamor da poliqueca, pois as pessoas associam sistemati- camente o poliamor à diversidade de contactos sexuais, orgias, promiscuidade, leviandade, e a essência não é de todo isso. Somos todos diferentes. Um gosta de chocolate, outro de baunilha. Somos pessoas e o importante é conversar, descobrir o que queremos, qual é o nosso caminho de vida e como queremos fazer as coisas, respeitando-nos e ao próximo.” esquecermos esta ideia, mais rapidamente se compreende o poliamor. “O Poliamor é feito de pessoas e não de casais que estão à procura de terceiras rodas.” O conceito de cara-metade não tem lugar no poliamor. “Isso quereria dizer que cada pessoa só é meia coisa e precisa do outro para ser uma coisa completa.” TRAIÇÃO, CIÚME E COMPERSION A traição também pode existir, mas esta muda de aspecto. Ou seja, se a pessoa tiver sexo com outra não trai ninguém, mas se o fizer e ocultar esse facto perante aqueles com quem mantém uma relação, aí sim há traição. E, de acordo com o investigador, “isto também remete para a definição de fidelidade”, pois “fidelidade vem do latim fides, que tem a ver com ser-se verdadeiro. Portanto, ser fiel não é não fazer sexo fora de uma relação. Se eu nunca disser a ninguém que vou ser sexualmente exclusivo, não sou infiel porque não estou a quebrar uma coisa que não disse”. Muitas vezes, acabam por surgir problemas, quer no poliamor quer na monogamia, pois “as pessoas entram nas relações com pressupostos”. “Quantas pessoas entram numa relação e logo de início discutem os termos dessa relação? Pessoalmente, não conheço assim tantas que o façam explicitamente. Que coloquem a pergunta: vamos ser monógamos ou não? Para muitos a resposta parece óbvia e depois há mal-entendidos.” Quanto ao ciúme, é normal que possa sur- gir. Mas é visto como algo a desconstruir através do diálogo. Não é ao acaso que ‘Comunicar, comunicar, comunicar’, seja um dos slogans do poliamor. Por outro lado, os poliamorosos criaram um conceito antónimo do ciúme: a compersion, isto é, sentirmo-nos bem por ver uma pessoa de quem gostamos feliz por estar com outra pessoa. “É lindíssimo. Eu fico maravilhado. É algo estruturante e fundamental nas minhas relações.” O de possibilidades Um horizonte É UM MODELO DE RELAÇÃO EM QUE SE PODE AMAR MAIS DO QUE UMA PESSOA AO MESMO TEMPO. NÃO VÊ NA MONOGAMIA UM IDEAL DE FELICIDADE. PORÉM, SER POLIAMOROSO NÃO OBRIGA A QUE SE MANTENHAM RELACIO- NAMENTOS EM SIMULTÂNEO, APENAS DEIXA ESSA OPÇÃO EM ABERTO. TEXTO: MARISA TEIXEIRA comOut 21

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Artigo sobre Poliamor - Com'Out

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20

life | Amor e AtrAcção

“No fundo, é reconhecer-se a possi-

bilidade de várias relações, sejam

elas sexuais ou não, amorosas ou

não, poderem coexistir com co-

nhecimento das pessoas envolvidas e de

forma responsável”. Quem o diz é Daniel

Cardoso, investigador na área e poliamo-

roso, tentando explicar um conceito que

considera complexo por ser difícil “traçar as

fronteiras”. Segundo o especialista, “trata-se

de uma identidade queer e precisamente

por isso é difícil desenhar um círculo à

volta e dizer: poliamor é isto”.

“Normalmente, quando se fala em poliamor

fala-se em constelações poliamorosas.

Uma pessoa pode estar numa relação com

duas pessoas e essa relação ter uma certa

configuração naquele momento e seis

meses depois pode ser completamente

diferente”. Por exemplo, há quem aborde

o poliamor estabelecendo um modelo

em três patamares: relações primárias,

secundárias e terciárias. A primeira seria

aquela que temos com a pessoa com que

consideramos ter relações mais fortes. Uma

segunda em que os sentimentos não seriam

tão fortes e, por fim, uma terceira, que se

basearia mais no sexo. “Há outras pessoas

que consideram este tipo de divisões dema-

siado hierarquizantes, classicistas, e que

não fazem sentido nenhum.” Portanto, são

diversas as formas de encarar o poliamor.

Polifidelidade, relações extremamente

promíscuas ou nada promíscuas, relações

puramente afectivas e relações em que

amizade e sexo se misturam sem tabus

são alguns exemplos. A ideia é existir um

horizonte de possibilidades por explorar

sem ver nisso um problema, e a palavra-

-chave é depende. Depende da maneira

como a pessoa o quiser viver.

AlternAtivA à monogAmiA

E se o conceito de poliamor pode ser con-

siderado recente, porque a palavra nasceu

há pouco tempo, a sua prática não. “Um

exemplo muito clássico é Jean-Paul Sartre

e Simone de Beauvoir, devido às relações

que tinham, os modelos que viviam, etc.”,

afirma.

O investigador julga ser relevante reflectir

sobre o assunto. “Se as pessoas nunca ti-

nham pensado que havia uma alternativa

à monogamia, será que escolheram a mo-

Poliamor

com’Out

nogamia? Acho que é mais importante que

as pessoas tenham em mente aquilo que

podem fazer e não apenas o que os outros

fazem. Porque quando olhamos demasiado

para aquilo que é normal os outros fazerem

começamos a criar standards, padrões de

comportamento.”

Por vezes, alguns pensam que numa relação

poliamorosa existe um casal central que

acaba por ter ligações com outras pessoas.

Para o especialista, quanto mais depressa

Quem são os poliamorosos?Ainda não há estudos representati-

vos sobre este grupo, muito menos

em Portugal. Os estudos não-

-representativos dizem respeito à

realidade americana e apontam para

um grau muito elevado de bissexua-

lidade feminina. Em Portugal, Daniel

Cardoso refere existirem mais de

100 inscritos na mailing list do gru-

po PolyPortugal, com idades desde

a casa dos 20 à casa dos 40.

Sara Afonso, 36 anos, bissexual“Há que distinguir o poliamor da poliqueca”Foi em 2006 que descobriu o poliamor. Quando fez parte da organização da

marcha LGBT, no Porto, ouviu uma pessoa falar sobre o tema.

“Há que distinguir o poliamor da poliqueca, pois as pessoas associam sistemati-

camente o poliamor à diversidade de contactos sexuais, orgias, promiscuidade,

leviandade, e a essência não é de todo isso. Somos todos diferentes. Um gosta de

chocolate, outro de baunilha. Somos pessoas e o importante é conversar, descobrir

o que queremos, qual é o nosso caminho de vida e como queremos fazer as coisas,

respeitando-nos e ao próximo.”

esquecermos esta ideia, mais rapidamente

se compreende o poliamor. “O Poliamor é

feito de pessoas e não de casais que estão

à procura de terceiras rodas.” O conceito

de cara-metade não tem lugar no poliamor.

“Isso quereria dizer que cada pessoa só é

meia coisa e precisa do outro para ser uma

coisa completa.”

trAição, ciúme e compersion

A traição também pode existir, mas esta

muda de aspecto. Ou seja, se a pessoa tiver

sexo com outra não trai ninguém, mas se o

fizer e ocultar esse facto perante aqueles

com quem mantém uma relação, aí sim há

traição. E, de acordo com o investigador,

“isto também remete para a definição de

fidelidade”, pois “fidelidade vem do latim

fides, que tem a ver com ser-se verdadeiro.

Portanto, ser fiel não é não fazer sexo fora de

uma relação. Se eu nunca disser a ninguém

que vou ser sexualmente exclusivo, não sou

infiel porque não estou a quebrar uma coisa

que não disse”. Muitas vezes, acabam por

surgir problemas, quer no poliamor quer

na monogamia, pois “as pessoas entram

nas relações com pressupostos”. “Quantas

pessoas entram numa relação e logo de

início discutem os termos dessa relação?

Pessoalmente, não conheço assim tantas

que o façam explicitamente. Que coloquem

a pergunta: vamos ser monógamos ou

não? Para muitos a resposta parece óbvia

e depois há mal-entendidos.”

Quanto ao ciúme, é normal que possa sur-

gir. Mas é visto como algo a desconstruir

através do diálogo. Não é ao acaso que

‘Comunicar, comunicar, comunicar’, seja

um dos slogans do poliamor. Por outro

lado, os poliamorosos criaram um conceito

antónimo do ciúme: a compersion, isto é,

sentirmo-nos bem por ver uma pessoa de

quem gostamos feliz por estar com outra

pessoa. “É lindíssimo. Eu fico maravilhado.

É algo estruturante e fundamental nas

minhas relações.” O

de possibilidadesUm horizonte

É um modelo de relação em que se pode amar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo. Não vê Na moNogamia um ideal de felicidade. porÉm, ser poliamoroso Não obriga a que se maNteNham relacio-NameNtos em simultâNeo, apeNas deixa

essa opção em aberto. texto: Marisa Teixeira

com’Out 21