um estudo sobre as representações visuais de hamlet
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Um estudo sobre as representações visuais de HamletTRANSCRIPT
Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
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Um estudo sobre as representações visuais da peça Hamlet de William Shakespeare Flávia D. Costa Morais1 UNIPINHAL/UNICAMP
O presente ensaio tem como objetivo realizar uma análise da trajetória das
representações visuais das peças de William Shakespeare, focalizando a tragédia
Hamlet; bem como das implicações da tradição da Ut pictura poesis nestas produções
artísticas.
No período elisabetano, a Inglaterra teve como maior força transformadora de
sua cultura e de sua sociedade, o teatro que foi, ao que nos mostra a história, uma
forma empenhada e firme, de ativismo social que visasse superar o clima
estritamente pietista dos tempos medievais ingleses. Se nos teatros anteriores
apresentavam-se personagens diáfanas que, apesar de às vezes muito belas,
escapavam à figuração do homem cotidiano, no teatro elisabetano – mormente sob a
força inventiva de um Shakespeare – o público se deixa seduzir por personagens e
histórias que poderiam ser as da vida cotidiana. O teatro, no período que desejamos
focalizar, é trazido de regiões quase celestiais, para a representação da vida em sua
crua realidade.
O poder da poiésis mobiliza, no âmbito de uma única arte, vetores emocionais
de grande sutileza e variedade. No entanto, o contato de diferentes âmbitos
artísticos (pintura, literatura, escultura, arquitetura, etc.) mobiliza comunicações de
conteúdo e emoção desencadeadoras de muito curiosas articulações entre diferentes
expressões artísticas. Tomemos apenas um exemplo histórico do século XIX. É
sabido que o pintor Bucher expôs impressionante quadro com o título: “A tarde de um
fauno”; o poeta Mallarmé visitando a referida exposição, e sob impressão do citado
quadro, escreveu o poema “A tarde de um fauno”; o músico Debussy, sob impressão
do quadro e do poema de Mallarmé, compôs a peça musical “A tarde de um fauno”,
sendo que, o não menos genial coreógrafo e dançarino russo Nijinski traduziu para a
linguagem cênico-musical do ballet a dança imortalizada pelo próprio Nijinski e
posteriormente também por Nureiev, “A tarde de um fauno”.
1 Mestre em Filosofia da Educação – Unicamp; doutoranda em Artes – Unicamp; Professora de Literatura Inglesa – Unipinhal.
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Encontraríamos uma quantidade de outros exemplos de comunicação entre as
artes. Porém, fixamo-nos no objetivo específico do presente trabalho que, como já foi
dito, pede observação acerca de obra literária que tenha sido ricamente contemplada
pelas artes plásticas – sobretudo a pintura
1. Considerações Sobre O Teatro Elisabetano
Não há como pensar o teatro renascentista inglês, sem considerá-lo um
desdobramento das manifestações artísticas medievais.
Naquilo que diz respeito à reflexão sobre o cultural, toma vulto cada vez mais
expressivo a pesquisa acerca da evolução do imaginário humano mediante a avaliação
de um suceder de matrizes epistêmicas (ou simplesmente epistemes, como preferia
Michel Foucault em As palavras e as coisas). Isto em razão de que a dinâmica
dialética entre continuidade e descontinuidade, que dá como resultado o intrincado
tecido da história, ao mesmo tempo que nega separações estanques ou rupturas entre
momentos diversos da periodização histórica, também afirma que o “espírito do
tempo” hegeliano não é propriamente uma fantasia, pois – e isto é tão claro! – o
homem moderno não mostra viver a realidade existencial e a visão de mundo
medievais, do mesmo modo que o contemporâneo mostra-se instalado num
imaginário que, provavelmente, não tenha tanto a ver com o homem do século XVII,
por exemplo. Ressalte-se o historiador da ciência e filósofo contemporâneo Alexander
Koyré, o qual elaborou o conceito de revoluções ontológicas (em Estudos de História
do Pensamento Científico (1991)), com a finalidade de focalizar exatamente o
descontínuo na trajetória civilizacional, do mesmo modo que Thomas Kuhn teorizou
acerca das rupturas paradigmáticas que refletem, no âmbito da ciência, modificações
profundas na visão de mundo (em Estrutura das Revoluções Científicas (1975)).
Porém, o pensador que conduziu este tema a regiões de maior radicalidade foi, sem
dúvida, Michel Foucault (As Palavras e as Coisas (s/d)).
Do que lemos em Foucault, episteme é a estrutura inconsciente da cultura em
um dado momento histórico; essa mesma estrutura resulta da complexa dinâmica de
um conjunto de forças que se cruzam no imaginário, marcando, no seu exato ponto
de intersecção, a conformação de um foco irradiador de conhecimento e arte com o
qual resolvem-se uns tantos problemas, na medida em que outros tantos não são
resolvidos. Digamos que a episteme possa ser considerada o código dos códigos de
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uma cultura, podendo simplesmente ser entendida como o substrato – muito dinâmico
por sinal! – de sua mentalidade.
Vendo com nitidez que o período medieval não comporta visão monolítica, no
sentido de haver apresentado uma única característica, mesmo assim constatamos –
como de resto o têm feito tantos autores – que se tratou de um período
marcadamente teocêntrico e contemplativo. Precisamente, o Renascimento inglês
será, após aproximadamente dez séculos de auto-negação humana, o momento de
explosão de um antropocentrismo que, especialmente mediante o teatro, logrará
recuperar uma antropologia que ponha o ser humano como centro do significado da
história.
O teatro inglês do século XVI é herdeiro da tradição medieval das “moralidades”
e “mistérios”, apresentações dramáticas que tiveram origem nas liturgias católicas, e
que tinham como finalidade difundir as idéias e valores religiosos, bem como recrear.
Os dramaturgos da Era Elisabetana não perderam, como nos parece claro, sua
relação com o teatro medieval, transformando-o e criando diferentes formas, sob o
impacto de uma nova visão de mundo renascentista com sua filosofia humanista, com
novo interesse pelas artes e literatura, retomando valores greco-romanos, mas nos
moldes da Renascença.
Numa época em que as grandes descobertas marítimas alargaram os horizontes
e mostraram ser, nosso mundo, muito maior em extensão e possibilidades do que até
então imaginado, a promessa de um progresso humano, fruto também de uma ciência
experimental nascente, levou o homem para o centro do palco da vida. Afinal,
tratava-se do início do que seria um vasto processo denominado pelos historiadores
da cultura “a europeização do mundo”.
No que diz respeito ao teatro, é preciso considerá-lo no período em foco, dentro
de suas peculiaridades. Na descrição de Stevens e Mutran sobre o espaço físico e
público temos:
“O público participava da peça muito mais do que o do teatro convencional moderno. O palco era uma plataforma nua, uma parte da qual se estendia até o meio da platéia. Os espectadores conservavam-se em pé ou acomodavam-se em assentos dispostos em três lados ao redor do palco, onde se sentavam os homens da classe mais abastada, que, durante a encenação, faziam comentários a respeito da peça e dos atores, e chegavam até mesmo a tocar-lhes as roupas para avaliar-lhe sua qualidade. (...)
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Havia pouco cenário. Esse fato obrigava o autor a usar recursos para criá-lo na imaginação do público; o texto trazia, por isso, descrições muito realistas e vivas (...)”.2
Como não é difícil perceber-se, o século XX, sobretudo em sua segunda
metade, procura trazer de novo algumas das características comentadas pelos autores
acima quanto à proximidade do público (teatros de arena), e quanto a interações
eventuais entre textos, atores e platéia [por exemplo, o dramaturgo Pedro Bloch, com
sua histórica peça (um monólogo) “As mãos de Eurídice”].
Na época da Reforma, do Humanismo, dos tipos móveis de Gutenberg e da
prensa de Caxton, na Inglaterra, a necessidade de expressão aumentou, o que fez
com que um público ainda não apto para o contato mais abrangente com a literatura
escrita, buscasse no teatro essa possibilidade, devido exatamente a sua participação
ativa, como demonstrado pela citação acima. Via-se o teatro, fiel à sua história,
cumprindo um papel importante de formação social.
A força imaginativa de Shakespeare aproveitou o seu momento, trazendo para
as luzes do século XVI, um teatro pobre em cenografia, porém riquíssimo em
sugestões visuais; tão rico que encontrou, nas artes pictóricas a partir do século
XVIII, sobretudo, e no cinema a partir do século XX, excelentes veículos.
Nas palavras de Bárbara Heliodora:
“É perfeitamente possível argumentar que o palco italiano, com sua cenografia, presta um grande serviço à platéia por criar visualmente o universo de que o texto fala naquele momento. O que seria, nesse caso, a inferioridade do teatro elisabetano, isto é, a ausência dessa espécie de muleta para a imaginação, passa a ser na verdade a sua maior qualidade: desde que o autor seja muito bom, o espetáculo elisabetano é um desafio, uma provocação à imaginação de cada espectador”.3
Oswald Spengler, historiador e filósofo alemão, destaca em sua obra A
decadência da civilização ocidental, considerando a abertura de uma das cenas de Rei
Lear, que só um gênio como Shakespeare descreveria tão completamente um cenário
ao enunciá-lo assim: “Uma rua”. Noutras palavras, comenta Spengler, que por essa
rua passam todas as ruas do mundo; passa a minha rua; passa a rua da minha
curiosidade pela existência.
Fica-nos claro que a genialidade de Shakespeare, bem como a importância
social e cultural do teatro no século XVI, propiciou para os séculos seguintes, um
manancial de estudos artísticos sobre o legado deste dramaturgo, no qual se insere
2 Kera STEVENS e Munira H. MUTRAN, O teatro inglês da Idade Média até Shakespeare, p. 17. 3 Bárbara Heliodora, Reflexões shakespearianas, p. 51.
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uma enorme quantidade de representações visuais de inestimável valor estético, seja
em campo de estudos cenográficos, de ensaios de design, de experiências pictóricas e
mesmo escultóricas.
2. O Status artístico de Shakespeare e as artes visuais.
A forte turbulência política, motivada também por questões de ordem religiosa,
do século XVII acabou por obstaculizar grandemente as manifestações dramáticas na
Inglaterra. Em 1642, os puritanos conseguiram aquilo que consideraram uma vitória
ante um tipo de manifestação cultural tida como espúria - fecharam os teatros
acabando, assim, com uma tradição de encenação e interpretação que jamais pôde
ser resgatada com a força que adquirira até então. Os teatros permaneceram
fechados até 1660; após esta data, o renascer desta modalidade de arte se deu com o
chamado drama especialista, com uma platéia de gosto um tanto estreito e duvidoso,
que não aceitava mais a densidade do drama shakespeariano, por exemplo. Era uma
das primeiras tentativas do primado ou mesmo imposição do entretenimento.
Como exemplifica Anthony Busgess, mencionando comentários de Samuel
Pepys sobre representações de Shakespeare:
“1662 – [...] vi Romeu e Julieta (Shakespeare) na primeira vez em que foi encenada, a pior peça que já vi em minha vida. Sonho de uma noite de verão (Shakespeare), que jamais vira antes, nem verei de novo, pois é a peça mais insípida, ridícula, que já vi em minha vida.
1663 – A noite de Reis (Shakespeare), uma peça tola e sem qualquer relação com seu nome e época”.4
Contudo, e apesar de reações semelhantes a que pudemos observar acima
(afinal, quem pôde, em qualquer época, conter a mediocridade?), vemos que, na
aurora do século XVIII, a figura de William Shakespeare começa a adquirir um status
de ícone nacional, posteriormente ganhando a aceitação como gênio da literatura
universal.
Em razão disso, os estudos pictóricos relativos às peças de Shakespeare
começaram a proliferar a partir da metade deste século.
“The proliferation of images relating to Shakespeare’s plays was only one part of the process that led to the virtual canonization that began
4 Anthony BUSGESS, A literature inglesa, p. 160.
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perhaps with the unveiling in 1741 of a memorial statue of Shakespeare in Westminster Abbey.”5
Estava instaurada a chamada bardolatria, que colocaria o dramaturgo
finalmente em lugar correspondente com a sua grandeza. Com o Jubileu de
Shakespeare, celebrado em 1769, em Stratford Upon Avon (sua cidade natal), temos
uma grande multiplicação de encenações de suas peças que acabaram notabilizando
alguns atores, como por exemplo David Garrick.
“So successful to this date had Garrick been at establishing Shakespeare on the stage, at acting major Shakespearean roles, and at winning credit as the finest of interpreters of Shakespeare, that his status had acquired mythic proportions. His contemporaries, and later many theater historians, credited him as almost single-handedly having rediscovered Shakespeare and as having interpreted him aright.”6
Fica-nos claro que, a partir sobretudo desta data, o culto ao poeta, bem como
as leituras interpretativas de suas peças, de seus personagens, cresceu imensamente,
chegando a adequações um tanto mutiladoras, como é o caso das adaptações
moralizantes que, embora não deixem de ser terríveis do ponto de vista da arte, são
importantes mostras da grandeza de Shakespeare e do retrato de épocas cujas
necessidades ditaram tais reações (sirva-nos como exemplo o período vitoriano).
Shakespeare não deixou de fazer parte do cenário inglês, nem mesmo quando
suas peças, se lidas na íntegra (sem cortes ou adaptações), gerariam desconforto e
mesmo aversão. Passou por diferentes períodos histórico-artísticos com a mesma
força, trazendo, aos dias de hoje, declarações como a de Jan Kott, sobre a peça
Hamlet:
“(...) Muitas gerações reconheceram seus traços nele [Hamlet]. E a genialidade de Shakespeare talvez resida no fato de a peça servir como um espelho. Um Hamlet perfeito seria ao mesmo tempo o Hamlet mais shakespeariano e o mais contemporâneo.”7
Seja no teatro como, posteriormente, no cinema a questão psicanalítica da
identificação é crucial. Alguns psicanalistas referem-se a algo que denominam
“regressão narcísica”, o que significa que, ao assistir a uma peça ou a um filme, a
história que vemos e que nos toca, toca-nos porque vemo-nos no espelho das águas à
feição da figura mitológica de Narciso.
E é justamente esta peça - Hamlet, uma das mais encenadas e estudadas
dentre as demais obras de Shakespeare, que será o foco de nossa atenção no tocante
a sua representação visual. 5 Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, p. 42. 6 Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, p. 45. 7 Jan KOTT, Shakespeare nosso contemporâneo, p.70.
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3. Considerações sobre Hamlet nas artes visuais – A tradição da Ut Pictura
Poesis.
Dante Gabriel Rossetti. Hamlet and Ophelia, 1858.
De um modo geral, poderíamos dizer que as peças de Shakespeare ganharam
representatividade nas artes visuais destacando-se algumas, notadamente aquelas
mais encenadas, ou mesmo aquelas que melhor traduziram as necessidades de uma
determinada época, considerando-se o período que vai do século XVIII ao XX.
O Renascimento é todo permeado pela questão da comparação entre poesia e
pintura, proporcionando desdobramentos importantes para a teoria da pintura nos
séculos seguintes, considerando tanto a pintura como a poesia como a imitação da
natureza, diferentemente do privilegiamento proposto por Leonardo da Vinci em
relação à pintura (Paragone).
O conceito de arte, que ao longo da Idade Média foi filtrado pela concepção
pietista de mundo, recobra as angulações aristotélicas de imitação da natureza, nas
palavras de Aristóteles, não como ela é, mas como ela deveria ser, segundo a
subjetividade do artista.
No caso de Shakespeare, o que vemos é a apresentação, em suas peças, de
personagens mais próximas da realidade do homem comum, com suas paixões,
incertezas e questionamentos; com toda a miríade complexa de significações internas,
bem distante daquele herói trágico grego, que habitava uma espécie de Olimpo
divinizador das expressões humanas. O fato é que Shakespeare é como um
Copérnico do teatro, de vez que provoca intencionalmente o seguinte
descentramento: do núcleo grego da questão do destino nas tragédias, para dramas
concernentes à dinâmica emocional e cotidiana do homem comum.
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Após a comemoração do Jubileu, imagens relativas à peça Hamlet começam a
aparecer, sendo que o primeiro item só apareceu em 1775 - curiosamente era um
desenho da cabeça de Ofélia, por John Hamilton Mortimer, exibido na Society of
Artists.
John Everett Millais. Ophelia, 1852.
A partir daí, a reprodução de desenhos das peças de Shakespeare se afigurou
como algo muito rentável para os editores, fazendo com que os mesmos fossem
procurados até como objetos de decoração.
Um interessante aspecto destas representações é a grande quantidade de
desenhos e pinturas baseadas em encenações das peças, trazendo, na própria obra
pictórica, a figura de atores famosos em seus personagens e momentos mais
aclamados.
Na época do Romantismo, Hamlet continua sendo de interesse central; a
personagem ganha grande difusão, em parte por causa das imagens pictóricas
baseadas na peça. E mesmo neste período vemos mostras de uma discussão que
ainda faz parte das preocupações dos teóricos; notem para o que escreveu Boydell no
prefácio ao seu catálogo da Shakespeare Gallery, em maio de 1789:
"... it must always be remembered, that he [Shakespeare] possessed powers which no pencil (i.e. brush) can reach; for such was the force of his creative imagination, that though he frequently goes beyond nature,
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he still continues to be natural, and seems only to do that, which nature would have done, had she o'erstepp'd her usual limits. - It must not then be expected, that the art of the Painter can ever equal the sublimity of our Poet. (…) It is therefore hoped, that the spectator will view this Pictures with this regard, and not allow his imagination, warmed by the magic powers of the Poet, to expect from Painting, what Painting cannot perform"8
Mas há algumas cenas que deram ensejo a um número maior de
representações pictóricas, principalmente pela carga de significados que possuíam e
pelas possibilidades de fidelidade ao texto. São elas:
A aparição do fantasma do Rei Hamlet.
Hamlet e os coveiros.
A peça-dentro-da-peça - a encenação da morte do rei Hamlet, forjada pelo
príncipe Hamlet.
A loucura e morte de Ofélia.
A cena do quarto da rainha Gertrude, em que Hamlet mata Polônio.
Analisando esta incidência, percebemos que há uma riqueza de motivações
pictóricas nelas. São cenas que trazem a possibilidade da unidade representativa de
importantes momentos da peça, momentos que se tornaram emblemáticos. No caso
da aparição do fantasma do pai de Hamlet, observamos a necessidade de expressão
de diversas reações envolvendo: terror, medo, admiração, entre outros sentimentos;
evocados pela força das palavras reveladoras do fantasma e pela própria aparição.
"The artist should rather convey the impressions of speech and indicate the emotional reactions of the figures in his paintings by means of their movements and, above all, their facial expressions".9
Fascinante é esse jogo de imaginações; Shakespeare pinta na sua imaginação
aquilo que tão habilmente escreve; os atores se não lograrem pintarem em sua
própria imaginação algo semelhante, trairão a Shakespeare; os pintores, nessa
cadeia, precisam também exprimir por pinceladas e composições o que lograram
imaginar a partir de Shakespeare.
8 Apud, Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, p. 73. 9 Charles Le BRUN, The expression of the Passions, p.61.
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HAMLET - An original painting by H. Fuseli.
Eis aqui alguns outros exemplos:
Hamlet and the Gravediggers , Jean Dagnan-Bouverte
Nesta imagem vemos retratada a famosa cena de Hamlet, com o crânio de
Yorick nas mãos; um momento de falas que mesclam comicidade e espanto ante os
mistérios da existência humana. Edward Edwards foi um dos primeiros a retratar a
cena:
"Edward showed Hamlet holding Yorick's skull accompanied by the quotation "Alas, poor Yorick!"
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(…)
Whatever may have been the intent behind Edwards's design, it retains a singular importance in that it was the first of a long and copious series of art works on the subject of the Graveyard Scene and in particular of Hamlet's reaction to Yorick's skull"10
Eugène Delacroix. Hamlet and Horatio in the Graveyard, 1835.
"… lithographs of Eugène Delacroix appear primarily to have been an attempt to express the poetry of reverie and the quiet lyricism and brooding melancholy that he valued in the play".11
Os pintores, como se observa, nem sempre se prendem às visões de palco para
as quais Shakespeare escreveu; a riqueza é tal que as cenas são trazidas para
paisagens e locais outros que não os espaço cênico.
A cena que envolve o momento da representação teatral da morte do pai de
Hamlet é especialmente intrigante, porque envolve a necessidade de agrupamento de
focos interpretativos importantes contendo: a objetivação da cena representada pelos
atores; a reação de Hamlet; a reação de Cláudio (tio de Hamlet e assassino do rei); a
reação do público.
10 Alan R. YOUNG, Hamlet and the visual arts 1709-1900, pp. 64-65. 11 Ibidem, p. 108.
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Daniel Maclise. The Play Scene in "Hamlet," 1842
A personagem Ofélia é uma das mais representadas nas artes visuais. Sua
importância, como heroína shakespeariana e como representante de um universo
feminino que envolve submissão ao pai, ao irmão, aos soberanos, ao próprio Hamlet,
leva-nos a buscar nela respostas para os meandros implicados neste universo até os
dias de hoje.
Ofélia ora é representada com ares de ninfa complacente, ou com um
semblante de carregada melancolia, ora desgrenhada, em plena loucura, e mesmo no
momento da morte por afogamento.
George Frederic Watts. Ophelia, c. 1864.
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Dominico Tojetti (1817-92). Ophelia, 1880.
Joseph Severn. Ophelia, c. 1831.
Arthur Hughes Oil on canvas with an arched top, approximately 27 x 49
inches. Manchester City Art Galleries, Manchester, England. 1852.
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Eugène Delacroix. The Death of Ophelia, 1853.
Instruir e deleitar - no caso de Shakespeare parece que ambos os conceitos se
aplicaram ora distintamente, ora simultaneamente.
"Horacio, como satírico, había vuelto el espejo de su arte a las flaquezas humanas, y sentia un interes profundo, aunque cortés y desapasionado, por el perfeccionamiento de la vida humana. Directamente de él procedia la recomendación de que la pintura, como la poesia (Horacio pensaba em el efecto del arte dramático en el auditorio) debía instruir a la vez que deleitar."12
Percebemos que, ao tempo de Shakespeare, o teatro tinha uma manifesta
função de entretenimento, que motivou inclusive os ataques ferrenhos dos adeptos do
puritanismo. Shakespeare, ao que parece de forma intencional, usava a referida
função manifesta (de entretenimento) juntamente com a função latente, cujo objetivo
era fazer pensar sobre a existência.
As violências da guerra civil, do regicídio, do fechamento dos teatros, no século
XVII, e o século XVIII, com suas pretensões cientificistas, delinearam um século XIX
cultor da moral de aparência, atribuindo às manifestações artísticas uma forte
conotação de educação dos sentimentos e veículo de valores morais, ou seja, cabia à
arte, mais do que deleitar, instruir.
Como conclusão...
É conveniente por primeiro concluirmos o óbvio: de um lado a circulação de
sentidos e de sentimentos que mobiliza as artes em geral; de outro, a energia
artística de Shakespeare como geradora de grandes obras em outras formas de
manifestação artística.
12 R. W. LEE, Ut pictura poesis, p. 59.
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No entanto, esta conclusão pede também o mais sutil que, neste caso, é a
manifestação de um mundo subjetivo em constante ebulição estabelecendo nítido
diálogo com o seu tempo e com o seu povo. Mais do que isso, esta coisa mesma de
gênio que é a diacronia que leva a estética teatral e poética, bem como os arroubos
de pensamento de Shakespeare a todas as gerações a ele posteriores, naturalmente
as capazes de sensibilidade e inteligência para do bardo se aproximarem.
Oswald Spengler, já citado neste trabalho, alerta para o tecido literário de
Shakespeare, no qual os fios e os espaços vazios (aparentemente) comungam entre
si. Isto é, lê-se Shakespeare no que ele disse e no que ele calou, nas linhas e nas
entrelinhas. Uma vida cheia de muitas vidas pulsava vigorosamente e destilava uma
literatura capaz de envolver todos os séculos posteriores.
Neste texto, dadas as suas dimensões, precisamos deter-nos em algumas
expressões da pintura oriundas da influência shakespeariana, sendo que a pesquisa
nos mostra que são muito mais abundantes no campo pictórico tais influências.
Cremos, no entanto, ter apresentado – com intenção didática e explicativa – pintores
os mais expressivos que se viram envolvidos na aura de arte e pensamento de
Shakespeare.
Referências Bibliográficas
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SPENGLER, Oswald. A decadência da civilização ocidental. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971.
STEVENS, K.; MUTRAN, M.H. O teatro inglês – da Idade Média a Shakespeare. São Paulo: Global Editora, 1988.
YOUNG, Alan R. Hamlet and the visual arts, 1709-1900. London: Delaware, 2002.