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Page 2: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do

meu bairro.

Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha

de que não minto, porque lá nos encontramos, sacola à mão, olho vivo nas frutas e

nas hortaliças.

Page 3: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Mais do que o custo da vida ou a qualidade dos legumes,

o que me impressionou foi verificar que havia poucas mulheres gordas naquela

multidão de donas de casa atarefadas, matinal e encantadoramente

desalinhadas.

Page 4: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Poucos dias depois, porém, tive a grata satisfação de ver a massa feminina que acorreu à

Feira da Providência.

Por alguns minutos, postei-me na Rua Jardim Botânico,

junto de um ponto de ônibus – e vi então, vi com meus olhos,

que o saldo de gordas ainda é

dos mais positivos.

Page 5: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Na feira do bairro, para salvar o meu mandamento da necessidade de enxúndias femininas, só encontrei uma

preta velha, de andar de pata choca.

Era uma preta soberba, arrastando suas oito arrobas de carnes e dignidades.

Page 6: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Fazia-se acompanhar de uma pretinha serelepe, uma

moleca à antiga, que ia recolhendo os dourados

pomos da terra que a matrona de ébano apalpava

com familiaridade e pachorra antes de comprar.

Page 7: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

A cena tinha um sabor de séculos idos e vividos.

Foi aí que atentei então para a desastrada, terrível e letal mania que se apossou de

nosso tempo.

Refiro-me à obsessão de emagrecer.

Qualquer um de vocês pode verificar que as mulheres de hoje, mais do que de crianças e de criadas, falam

de regimes para perder peso.

Page 8: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

O regime, as mil e uma variações e modas em torno desse tema sinistro entopem oitenta por

cento das conversas femininas e começam a ameaçar os

próprios homens.

De repente, não mais que de repente, como no soneto de

Vinícius, todo mundo foi tomado desse complexo de sílfide

magricela e seca!

Page 9: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Daí a alegria com que vi desfilar a multidão que acorria à Feira da Providência.

Pude constatar, meio tranquilizado, que ainda há gordas, grandes, refolhudas e pachorrentas gordas nestes

tempos esquálidos e perversos.

E aqui estou agora para cantar o louvor das gordas.

Page 10: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Precisamos urgentemente acabar com essa mania

de emagrecer.

É bom que as mulheres engordem.

É essencial que haja mulheres gordas num povo que quer

ser dono de um destino.

Page 11: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Todas as civilizações são gordas.

Gordas do Renascimento, felizes e fartas flamengas, musas de Rubens, anjos roliços, mães redondas

de todas as épocas, romanas corpulentas.

Ó gordas cheias e generosas, inspirai-me para provar que não há civilização magra sem condenar-se

à esterilidade, à avareza e à morte!

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Assim como o Universo é redondo (e se não é, devia ser), como o Infinito é redondo, como Deus é redondo, redonda

deve ser a feminilidade, fonte da vida.

Gordas vorazes, dadas à vida com paciência e alguma aflição.

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Que coisa mais abominável pode haver do que uma avó que se recusa a engordar?

Pois a isto chegamos, pelo menos nas chamadas classes altas da sociedade.

As mulheres fogem dos quilos fatais como

o diabo da cruz.

E não comem, proscrevem o açúcar

(daí o horror às receitas de doces domésticos, fator de

estabilidade do lar),

Page 14: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Esfalfam-se em massagens, em ginásticas, em banhos

turcos e saunas.

Vivemos tropeçando nelas, nessas falsíssimas magras

que trazem no rosto desfigurado e fantasmal os estigmas da gordura

que traíram com sacrifício desumano e deslealdade diabólica.

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O regime para emagrecer é o grande pecado de

nossa época.

É preciso proibir urgentemente a indústria que prospera à base do emagrecimento

compulsório.

Família sem mulher gorda é família que não permanece unida.

A bomba atômica destruirá, se destruir, um mundo magro, em que as magras imperem.

Magras histéricas, fanáticas, tirânicas e unilaterais.

Page 16: Um dia desses, cometi a aventura de ir à feira do meu bairro. Meu amigo Valdemar Cavalcanti é testemunha de que não minto, porque lá nos encontramos,

Em suma, vivam as gordas!

Libertai-vos, rebelai-vos vocações de gordas!

O mundo precisa de vós. O Brasil confia em vossas enxúndias sadias e maternais.

Gordas de todo o mundo, uni-vos!

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Sede subversivas por um instante, indo contra

a vossa pacata natureza paciente

e boa:

ABAIXO O REGIME!

Otto Lara Resende

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Imagens

quadros da artista plástica curitibana

Letícia Rosa.

Música: Ernesto Cortazar Formatação: Christina Meirelles Neves