um banquete para heimdallr

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História, imagem e narrativas N o 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br 1 Um banquete para Heimdallr: uma análise da alimentação viking na Rígsþula Luciana de Campos 1 Mestre em História - UNESP-Franca. Prof. História Antiga - UFMA. UFMA/NEVE - Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos [email protected] Resumo: o poema éddico Rígsþula nos apresenta alguns elementos fundamentais acerca das práticas alimentares vikings, das mais simples às mais complexas, bem como determinadas formas de processamento, preparo e consumo dos alimentos bem como a maneira de apresentar os pratos a serem consumidos. Propor uma análise inicial da alimentação na Era Viking baseando-se em uma importante fonte da mitologia escandinava, a Rígsþula é a proposta para este artigo. Palvras-chave: Rígsþula – alimentação viking – cotidiano – mitologia nórdica. 1 www.nevevikings.tk

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  • Histria, imagem e narrativas No 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br

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    Um banquete para Heimdallr: uma anlise da alimentao viking na Rgsula

    Luciana de Campos1 Mestre em Histria - UNESP-Franca.

    Prof. Histria Antiga - UFMA. UFMA/NEVE - Ncleo de Estudos Vikings e Escandinavos

    [email protected]

    Resumo: o poema ddico Rgsula nos apresenta alguns elementos fundamentais acerca das prticas alimentares vikings, das mais simples s mais complexas, bem como determinadas formas de processamento, preparo e consumo dos alimentos bem como a maneira de apresentar os pratos a serem consumidos. Propor uma anlise inicial da alimentao na Era Viking baseando-se em uma importante fonte da mitologia escandinava, a Rgsula a proposta para este artigo.

    Palvras-chave: Rgsula alimentao viking cotidiano mitologia nrdica.

    1 www.nevevikings.tk

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    I. Introduo

    O preparo, a apresentao e o consumo dos mais diversos alimentos sempre foi

    uma prtica inerente ao ser humano. De simples ato biolgico para assegurar a

    sobrevivncia at as mais sofisticadas manifestaes culturais que envolvem o cultivo, o

    preparo e o consumo, a alimentao nos proporciona uma rica fonte de anlise no

    somente dos hbitos que envolvem o simples ato de comer para assegurar a manuteno

    da vida, mas mostra o cotidiano, a estratificao social, modos e maneiras que so

    reflexos da maneira de lidar com o alimento nos mais diversos grupos sociais. Pensando

    no alimento como um reflexo do modo de vida e, mais ainda da condio de vida de

    cada populao nos propomos a analisar neste artigo como uma narrativa mtica, o

    poema ddico Rgsula2, apresentou estes hbitos e, mais ainda, como nos auxiliou para

    compreendermos o alimento como um fator importante de distino social, como nos

    explica Massimo Montanari:

    A mentalidade medieval estabeleceu uma correspondncia muito forte entre a alimentao e o estilo de vida, considerando a expresso material de uma determinada condio social que todo individuo deve manifestar de forma clara. O comportamento alimentar, certamente, o primeiro modo de comunicao e de diferenciao social. O lugar que cada um ocupa na sociedade e suas opes culturais condicionam a relao com os produtos da terra e da floresta, com os recursos das reas cultivadas ou incultas, que, entretanto, constituem, como vimos, um sistema integrado. (Montanari: 1998 292).

    Refletindo sobre essa afirmao de Montanari de que a alimentao e o estilo de

    vida na Idade Mdia estavam intimamente ligados e, reportando esse pensamento para a

    sociedade escandinava, podemos observar claramente como as refeies, a quantidade e

    2 O Rgsula (o conto de Rg) um poema ddico que descreve a origem das classes sociais. encontrado somente no manuscrito Codex Wormianus (AM 242 folio) da Edda de Snorri Sturlusson, datado aproximadamente de 1400 d.C. (LINDOW 2001: 260). Apesar de no constar da relao de poemas ddicos annimos do Codex Regius, do sculo XIII, a maioria das edies modernas da Edda Potica incluem esse poema. Existe um grande debate sobre sua origem, se foi composto originalmente durante a Era Viking (entre os sculos VIII e XI d.C.) ou se apresenta influncias objetivas no momento em que foi preservado por escrito (durante o sculo XIII); se possui influncias clticas, germnicas e bblico-crists; se genuinamente pago ou possui elementos da cultura e mitologia crist. Para um detalhado debate historiogrfico sobre essas questes, do Oitocentos at o final do sculo XX, consultar: HARRIS 2005: 94-98. As teorias germnicas de tripartio so aprofundadas no clssico artigo de Dumzil, escrito originalmente em 1958 - DUMZIL 2000: 151-168. Para uma abordagem recente, empregando a teoria do gnero junto ao modelo dumeziliano, consultar JOCHENS 1997: 111-122.

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    a qualidade dos alimentos regia o cotidiano viking, desde os camponeses at os chefes

    mais ricos. Para analisarmos mais pormenorizadamente a alimentao preciso pensar,

    em primeiro lugar, no cotidiano de uma famlia camponesa3: o dia inicia-se por volta

    das seis horas da manh e necessrio dar logo incio aos trabalhos da granja que

    consistia em alimentar e ordenhar os animais, tarefa essa que demandaria no mnimo

    duas a trs horas de trabalho. Com o findar das tarefas , necessrio alimentar-se e, por

    sinal, muito bem! A primeira e mais importante refeio do dia acontece por volta das

    nove da manh (e denominada dagver) e se constitui de papas de cereais: centeio, aveia e cevada com pedaos de peixe, majoritariamente arenque4, pes feitos com

    farinha de centeio ou aveia, leite (fervido ou coalhado), mel, frutas como amoras,

    framboesas e mirtilos e, no caso da Islndia havia tambm o consumo do skyr, uma

    espcie de queijo cremoso que at hoje consumido e fabricado praticamente da mesma

    maneira da poca da colonizao viking. Eventualmente consumia-se cerveja, mais

    espessa e amarga, lembrando muitas vezes, um caldo grosso, de sabor forte e amargo e

    nacos de carnes ensopadas ou assadas com po. A segunda refeio seria o jantar,

    (nttverr) logo aps o trmino dos trabalhos do dia e, uma ceia por volta das vinte e uma horas com uma sopa acompanhada de po e legumes. Em sua obra La vida

    cotidiana de los vikingos (800 1050), Rgis Boyer faz um estudo detalhado do

    cotidiano, tanto de camponeses como de fazendeiros e aristocratas e, no deixa de

    ressaltar a importncia das refeies, sua qualidade, alimentos preferidos e tambm

    ressalta o seu carter salutar devido as grandes pores de peixe, legumes, como

    cenouras, vagens, beterrabas, alho-por, nabos e as frutas, mirtilos, morangos silvestres,

    framboesas, mas e, claro mel usado em pequenas quantidades pois seu acesso era

    restrito. Camponeses, fazendeiros e guerreiros vikings alimentavam-se bem mas, os

    camponeses sempre viviam com o fantasma da fome a rondar suas portas e, colheitas

    ruins, invernos muito rigorosos, pouca caa e pesca tambm eram tormentos constantes

    em suas vidas e mesas e, bem como as papas de aveia com arenque to apreciadas pelo

    deus Thor.

    3 O poema ddico Rgsula vai nos apresentar a viagem do deus Himdal (alguns pesquisadores acreditam que esse seja apenas mais um dos nomes de Odin) pelo mundo dos humanos, iniciando pela casa dos bisavs, que seriam os mais simples e que dariam origem aos escravos, passando pela casa dos avs e, finalmente chegando na casa o pai e da me na qual originou-se os nobres.

    4 Tambm eram consumidos o salmo e o bacalhau, salgados e secos ou ento defumados.

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    Essa introduo acerca do cotidiano alimentar na Era Viking ser explorado em

    detalhes na anlise de trs estrofes da Rgsula onde o deus Heimdallr, provar de

    manjares simples e rsticos e compartilhar doce vinho em copas adornadas, e

    seguiremos seus passos nas choupanas dos traels e karls at chegarmos ao conforto da

    casa dos Jarls e assim, nos ser possvel desconstruir os esteretipos de vikings brbaros

    mesa.

    Foto 1: Experimento histrico-gastronmico realizado no dia 30/01/2011 em So Lus/MA. Uma tpica refeio viking: sopa de espinafre com creme a base de gemas e nata, salada Oxicogarita (chicria, nabos e alface romana), po de gros, salmo assado, camares cozidos, cenouras caramelizadas no mel e manteiga, bacalhau cozido com alho, doce de mas com nozes e mel e bolo de aafro e mel, tudo acompanhado por suco de ma, cerveja e vinho tinto seco.

    II. A alimentao na Rgsula

    O poema ddico Rgsula vai apresentar o caminho percorrido pelo deus

    Heimdallr e o seu encontro com a bisav, a av e a me. Nesses trs encontros odeus

    provar da hospitalidade, da comida e, tambm da amizade das coxas5 de cada uma

    5 Oferecer a amizade das coxas uma referncia a um costume onde o anfitrio oferece a esposa para passara noite com o hospede. Na narrativa irlandesa Tin B Cooley (A razia das vacas de Cooley) a rainha Maedb mesmo contrariando seu marido Aiil oferece a amizade desuas coxas a todos os guerreiros

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    das mulheres que visita sem causar a ira dos maridos. Mas o nosso foco se voltar para

    a refeio que compartilhada com Heimdallr na casa da bisav e da mir como a

    apresentao, e o consumo de cada alimento dos mais simples aos mais sofisticados

    no so somente uma forma de alimentao diferente, mas, alimentos distintos tambm

    so smbolos de poder e riqueza.

    A quarta estrofe do poema se inicia com a bisav servindo uma refeio

    para Heimdallr:

    4. A bisav trouxe um po granulado ou com torres em forma de cone (kkvinnhleif),

    Grosso e pesado, po de farelo (runginnsum);

    E ela colocou no meio da mesa, sopa (so) em uma tigela;

    A vitela cozida (klfrsoinn) estava muito deliciosa.

    Em uma mesa simples, sem toalhas, copos ou pratos revertidos de prata servido

    um po pesado, com um aspecto rude. Elaborado com uma farinha grossa, com gros

    partidos em pedaos pequenos ou apenas grosseiramente modos, que muito se

    assemelha ao que conhecemos hoje como farelo de trigo podendo ser at um pouco mais

    grosso e duro. O po descrito como grosso e pesado, portanto, no era levedado o que

    refora o carter rstico da comida. Alm do po6 tambm servida uma sopa,

    provavelmente feita com legumes silvestres: cenouras, nabos, beterrabas, alho-por. Os

    legumes que atualmente s conhecemos a verso j geneticamente modificada de cada

    um deles e, portanto possuem tamanho, textura e sabor distintos daqueles consumidos

    pelos vikings eram cultivados, mas, a maioria deles era colhido em um estado

    selvagem pois,desenvolviam-se nas florestas e no necessitavam de cuidados especiais,

    a no ser o tempo de crescerem e amadurecerem sozinhos, no solo silvestre. Para

    acompanhar o po e a sopa, a bisav serve a Heimdallr carne de vitela cozida, uma

    forma comum de se preparar a carne, que diferentemente do que se propagado esse

    alimento era tambm consumido pelos camponeses no sendo alimento exclusivo da

    mesa aristocrtica como nos mostra Boyer: que passam por sua casa. Podemos observar nesta passagem do poema uma determinadainfluncia celta, bem como no nome Rig (rei) que , provavelmente, uma forma celta ri(g) derivada da forma latina rex. 6 Sobretudo ao iniciar-se o sculo 11, o po assume um papel decisivo na alimentao das classes populares. Todo o resto comea a ser visto como complemento, como simples acompanhamento do po: a difuso do termo companatico (que designa aquilo que se come com po), nas lnguas da rea romnica (as mais marcadas pela cultura do po) a melhor prova. (Montanari: 2003 66).

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    La carne no era ms rara. La norma, sinduda, era manjar la despus de cocerla, como se ve todavia em Europa central, pero los arquelogos han encontrado um nmero importante de utenslios para asarla, algunos de cual es son muy originales y prcticos, como esa larga varilla de hierro terminada em uma espiral del mismo metal. (Boyer: 1992 98).

    Como Boyer demonstra a carne no estava ausente da mesa nem de camponeses

    nem de nobres - havia uma distino apenas no modo como eram preparadas e

    consumidas. Acredita-se que a aristocracia devia estar acostumada ao consumo de

    carnes de caa, no limitando-se a consumir apenas as carnes dos animais criados nas

    fazendas e, a forma como essas mesmas carnes eram preparadas, a utilizao de

    temperos e especiarias vindas de terras longnquas seriam um diferencial no preparo da

    carne. Camponeses contavam apenas com legumes, um pouco de manteiga e ervas

    nativas que no deviam deixar a carne to saborosa. Cozer a carne7 nos seus prprios

    sucos poderia ser uma maneira de deix-la mais saborosa e essa seria uma maneira

    encontrada pelos camponeses de melhor aproveitarem esse alimento. A carne podia ser

    cozida com os ossos preservando assim o tutano, fonte essencial de nutrientes; o sangue

    e os midos dos animais tambm seriam aproveitados no preparo tornando assim ainda

    mais rico o prato e, para camponeses que no podiam perder sequer um naco de carne o

    total aproveitamento dos animais torna-se uma necessidade que os auxiliaria a se

    manterem melhor nutridos. A bisav oferece a Heimdallr uma vitela ensopada que

    agrada ao deus que, provavelmente devia estar acostumado a consumir alimentos mais

    sofisticados do que o guisado campons que atenderiam s necessidades do exigente

    paladar divino. A carne8 ensopada mais do que os outros pratos servidos po e sopa

    elogiada por Heimdallr demonstrando que o deus estava acostumado a consumir carne

    7 Uma outra diferena de natureza tcnico-gastronmica estabelece-se entre a alimentao dos camponeses e a dos senhores: enquanto os primeiros comem, basicamente, carne cozida, acreditando, assim tirar dela toda a substncia possvel, a nobreza prefere os assados, as carnes grelhadas diretamente sobre o fogo em grandes espetos ou em grandes grelhas. Alm dosgostos e das predilees de cada um, essa oposio a expresso de valores culturais precisos: segundo uma tradio bem determinada em antropologia, o uso do fogo sem a dimenso da gua e dos recipientes domsticos implica uma relao mais estreita com o cru e a natureza selvagem e, portanto, com a imagem profundamente animal que a nobreza da Alta Idade Mdia quer dar de si mesma (Montanari: 1998 293). 8 Os camponeses cozinhavam carne, geralmente salgada, em gua fervente. Assim, diminuem o sal e tornam-na menos dura. Sobretudo conservam e utilizam ao mximo seus sucos nutritivos, diludos no caldo que, em seguida, serve de ingrediente bsico para outros pratos. No campo, cozinha-se principalmente em um caldeiro pendurado numa corrente ou colocado diretamente nas brasas, no qual cozinham e tornam a cozinhar a carne, os cereais, as leguminosas, os legumes. Os arquelogos encontraram, em stios da alta Idade Mdia, restos de recipientes do tipo caldeires (olla) com as bordas reentrantes, de terracota ou de pedra resistente ao fogo (Montanari: 1998 289).

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    e que a apreciava mais do que qualquer outro alimento. A refeio simples agrada e

    Heimdallr sai da mesa para o sono com palavras de elogios para aquela simples, mas

    saborosa comida.

    Essa refeio nos mostra como os camponeses ainda dependiam muito dos

    alimentos provenientes da floresta para sobreviverapesar de criarem animais tanto para

    terem leite e carne como para arar a terra. Cultivavam os campos no somente para a

    sua subsistncia mas, tambm, para assegurarem uma boa colheita e, consequentemente

    boa alimentao para os seus senhores que, seguramente deviam ficar com a melhor e

    maior parte da colheita assegurando para si uma melhor alimentao. Essa distino

    presente nos regimes alimentares da Alta Idade Mdia e, aqui mais especificamente da

    Era Viking representado no poema ddico assim descrito pelo medievalista e

    historiador da alimentao Massimo Montanari:

    Sem dvida, os regimes alimentares dos diversos grupos sociais revelam diferenas quantitativas e qualitativas, revestindo-se at de um valor simblico preciso na cultura da poca. Mas, no geral, a variedade de alimentos garantida, principalmente, com um aporte significativo de produtos animais na mesa das classes populares. Esse fato importante porque se trata de um dado inslito na histria da alimentao. Ao que parece durante a Alta Ida Mdia os camponeses europeus tiveram uma alimentao mais equilibrada do que em outras pocas, passadas ou futuras, em que os cereais constituam a base da alimentao. Embora seja difcil afirmar que essa variedade tenha trazido uma maior segurana material a despeito das muitas dificuldades de uma poca marcada por graves flagelos naturais e sociais -, muitos indcios parecem confirmar essa hiptese (Montanari: 1998 283).

    Tanto Boyer como Montanari concordam que a alimentao campesina apesar

    das muitas restries eram saudveis e, por que no dizer fartas, o que nos auxilia a

    entender melhor o cotidiano dessas pessoas e tambm a desfazer as falsas imagens

    propagadas em sua maioria pelo cinema que sempre nos apresenta a aristocracia

    alimentando-se somente de carne assada e vinho, mordendo um pequeno pedao da

    perna assada de carneiro a e atirando todo o resto aos ces que rodeavam a mesa,

    enquanto os camponeses morrem de fome, sem ter absolutamente nada para comer. O

    poema ddico nos apresenta uma outra realidade: a de camponeses que se alimentam de

    maneira simples mas rica e saudvel e que so capazes mesmo com essa rusticidade

    agradar aos deuses e deles ouvir elogios de que a vitela cozida campesina estava

    deliciosa.

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    Partindo da casa camponesa onde Heimdallr havia saboreado um bom cozido de

    carne e, como agradecimento deixou cheio o ventre de sua anfitri, o deus continua seu

    caminho e, chega enfim, a casa de Mir onde ser recebido maneira aristocrtica com

    o refinamento tanto no modo de se servir a refeio como no modo de preparo do

    prprio alimento. O trecho do poema ddico nos diz:

    31. Ento Mir pegou um pano bordado,

    De linho branco e cobriu a mesa,

    Logo ela pegou um po fino (hleifaunna),

    De trigo branco (hvtaafhveiti),

    E colocou sobre o pano da mesa.

    32. Depois ela trouxe pratos cobertos com prata,

    E colocou na mesa,

    Carne de porco/bacon (finfleski), aves assadas (fuglasteika),

    Uma jarra com vinho, com as copas ornamentadas,

    Beberam e falaram, assim acabou o dia.

    A anfitri preocupa-se em oferecer ao hspede no somente um alimento de

    excelente qualidade e sabor elaborado com bons ingredientes que iriam conferir ao prato

    no s um bom aspecto, mas tambm um sabor agradvel; Mir preocupa-se com

    aparncia da mesa e tambm dos utenslios9 que sero utilizados durante a refeio. As

    diferenas entre a casa camponesa e a casa senhorial comeam j na disposio dos

    alimentos sobre a mesa. A estrofe inicia-se com a arrumao da mesa para receber o

    alimento. Mir coloca sobre a mesa um pano de linho branco e bordado o que nos

    mostra a riqueza da casa na qual Heimdallr recebido. Estender uma tolha j denota um

    refinamento por parte dos anfitries mostrando que a refeio deve ser feita em um

    lugar limpo - e por que no dizer belo? - e a utilizao de um pano branco e bordado

    como toalha de mesa pode ser interpretado como um fator de ostentao do poder da

    9Haba platos, o , ms exatamente, escudillas de madera, teniendo cada uno, hombre y mujer, su prprio cuchillo y sucuchara de madera o de cuerno. Por supuesto, no existia eltenedor, como tampouco em otros lugares (Boyer: 1992 98).

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    casa. A riqueza da refeio comea, pois, na apresentao dos utenslios que sero

    utilizados na refeio. E, se compararmos os pratos que so apresentados nas duas

    casas, podemos dizer que na casa de Mir ser servido um banquete10 Heimdallr.

    Depois de vestir a mesa com um pano branco de linho bordado, a anfitri

    comea a dispor a comida sobre a mesa. Primeiro, coloca um po branco de farinha

    trigo fina, o que, conclui-se que esse po, diferentemente do po consumido na casa

    camponesa este havia sido elaborado com o a flor-da-farinha ou como conhecida

    atualmente a semolina, farinha de trigo finssima utilizada para a elaborao de pes

    especiais e, que na Alta Idade Mdia, assim como na Central e na Baixa era utilizada na

    alimentao dos nobres. Podemos observar como o mesmo produto no caso o trigo ou

    mesmo o centeio e a cevada, podem ter derivados e daro origem a pes totalmente

    distintos. E preciso levar em conta que, no caso especfico da Escandinvia o centeio,

    a cevada e a aveia ocupavam um lugar de destaque na fabricao do po pois, tambm

    os germnicos consumiam cereais, mingau de aveia ou po de cevada (Montanari: 2003

    20).

    Aps o po a anfitri traz mesa pratos revestidos de prata, mais uma vez, os

    utenslios para a refeio refletem o poder e a riqueza da famlia que est recebendo

    Heimdallr. E, finalmente o prato principal da refeio: as carnes assadas11. A carne

    assada seja ela de caa ou de animais de criao para o abate, mais do que um smbolo

    de poder e riqueza um alimento que possui uma ligao estreita com a aristocracia12

    pois dela provm os reis e os guerreiros que precisam estar sempre bem alimentados. E

    h tambm um detalhe importante o poema nos fala de dois tipos de carnes servidas a

    10 Aqui nos referimos ao banquete como sinnimo de uma refeio com vrios pratos (entrada, pratos principais e acompanhamentos) e as bebidas, vinho e cerveja. O banquete propriamente dito possui um carter festivo que podiam durar, dois, trs dias e se tratavam de refeies que chegavam a nove mil calorias. (...) Excessivas em glicdios e protenas, insuficientes em vitaminas, demandavam longas digestes acompanhadas de sestas, arrotos e flatulncias expressas da maneira mais sonora possvel, pois constituam prova de boa sade e de deferncia ao anfitrio. O conviva s ficava contente depois de encher a barriga. Estes hbitos alimentares nada tinham de um grande banquete luxuoso e refinado, mas tinha tudo de um grande empanzinamento para lutar contra a sensao de fome sempre presente por causa da alimentao desbalanceada. (Rouche: 2009 435) 11 (...) as carnes assadas expressam a ligao muito estreita existente entre as noes de consumo de carne e de fora fsica, uma ligao que aparece em todos os aspectos da cultura medieval. Com efeito, embora a cincia diettica da poca seja herdeira da tradio antiga, ela a adaptou, valorizando o consumo da carne nos planos nutricional e social. Ela no hesita, tambm, em apresent-la como o alimento mais adaptado ao homem fsico, a seus msculos, a sua carne (Montanari: 1998 293). 12 Na cultura das classes dominantes, principalmente, este valor primrio da carne fortemente considerado e afirmado. A carne surge, aos olhos desses grupos, como um smbolo de poder, o instrumento para obter energia fsica, vigor, capacidade de combate; qualidades que constituem a primeira e verdadeira legitimao do poder. (Montanari: 2003 28).

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    Heimdallr: aves que tanto podiam ser de caa como de animais domsticos e do porco13

    que, para os povos germnicos possua um simbolismo especial. importante salientar

    que o consumo de carne assada requer mais ateno no seu preparo do que a carne

    cozida preparada pela bisav. Alm dos utenslios grelhas e espetos -, preciso

    selecionar os cortes, temper-los e, claro ter algum que os prepare de maneira correta

    para que no fiquem crus ou queimados. O processo de assar a carne mais complexo e

    exige cuidados. J o cozido no necessita mais do que um caldeiro, gua, legumes e o

    fogo; no h necessidade de mexer os ingredientes constantemente e isso possibilita

    uma maior mobilidade ao campons que precisa comer, mas, acima de tudo, precisa

    trabalhar e no pode dedicar-se somente a elaborao de sua refeio. J os nobres

    podem dispor de escravos ou servos especializados no preparo de carnes assadas

    desde o seu corte e tempero - pois, o seu nico trabalho ser saborear o assado.

    O poema nos descreve que Mir serve bacon a Heimdallr, o que podemos

    deduzir que o corte servido era macio e com muita gordura, o que agradava ao paladar

    dos povos germnicos em geral, pois, ao contrrio dos romanos que apreciavam a fina

    gordura vegetal do azeite de oliva e a consumiam muitas vezes apenas com po, os

    germnicos associavam a gordura animal a obteno e manuteno da fora14. O

    porco,15 devido a sua facilidade de criao, solto na floresta alimentando-se de trufas,

    bolotas de carvalho, castanhas e avels uma carne especial ainda mais que neste

    estado selvagem em que criado possibilita ao nobre exercitar seus dotes de guerreiro

    na caada ao animal possibilitando, assim, um dublo prazer: a prtica esportiva da

    caada e, depois, quando senta-se mesa para saborear o seu prmio e compartilh-lo

    com seus pares.

    13 O grande porco que, na corte de Odin, basta para nutrir todos os heris mortos em batalha, uma vez que todo dia cozido e distribudo para a refeio, e de noite est novamente inteiro assim narra a Edda, o mais antigo poema escandinavo, escrito na Idade Mdia, mas expresso de uma cultura muito mais antiga, transmitida oralmente. (Montanari: 2004 31). 14(...) os mdicos da Idade Mdia a comear por Antimo, que escreveu, no sculo VI, um tratado intitulado De observation eciborum, dedicado ao rei dos francos, Teodorico acreditavam bem mais no valor nutritivo da carne. Alguns sculos depois, Aldebrandin de Siena sintetizar essa grande transformao cultural, afirmando que, entre todas as coisas que alimentam o homem, a carne que alimenta mais, porque o engorda e lhe d fora (Montanari: 1998 293). 15 So porcos semi-selvagens, mais prximos dos javalis do que dos porcos domsticos do nosso tempo, o que, alis, no surpreendente, uma vez que os porcos e javalis vivem em liberdade nos bosques e os cruzamentos so forosamente frequentes. O modo de vida influi tambm na cor, no gosto e na consistnciadas carnes: na Idade Mdia, o porco considerado uma carne vermelha. (Montanari: 1998 284).

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    Mas no s a comida que torna a refeio para Heimdallr especial, Mir

    tambm oferece vinho em uma jarra, servido em copas ornamentadas. Uma casa rica

    oferece aos convidados um bom vinho16 e no a cerveja cotidiana. O vinho importado

    das regies mediterrneas e da Europa central constituam uma bebida rara, para ser

    apreciada em ocasies especiais devido a sua raridade e elevado preo. A exemplo dos

    outros alimentos que foram ofertados na casa de Mir e que nos mostram a riqueza de

    sua morada o vinho no diferente: a apresentao, os alimentos preparados de maneira

    cuidadosa e com esmero necessitam ser acompanhados por uma bebida igualmente

    nobre.

    A Rgsula um poema ddico e se constitui em uma importante fonte de

    estudo da mitologia nrdica como tambm pode ser utilizada para o estudo de

    determinados aspectos daquela sociedade pois como toda obra literria ela um reflexo

    de comportamentos e padres da poca em que foi composta e, aqui, no se apresenta

    de maneira diferente, pois ali encontramos os elementos cotidianos das pessoas que

    viviam inspiradas pelas narrativas mticas. O banquete para Heimdallr foi servido pela

    Bisav e pela Mir, em suas mesas o deus fartou-se e ficou feliz, em seus leitos

    concebeu filhos traels e jarls e, nos deixou o legado das delcias que alimentam os

    corpos antes e depois das batalhas e so fontes fundamentais para o estudo da sociedade

    viking.

    III. guisa de concluso

    Pensar em uma concluso para um primeiro estudo sobre a alimentao na

    Rgsula ao nosso ver, seria fech-lo, e assim torna-lo definitivo, sem deixar aberta a

    casa de Bisav e de Mir para novas visitas, novos banquetes e, ainda, mais anlises

    que enriqueceriam ainda mais a bibliografia no s de anlise do poema ddico mas da

    alimentao na Era Viking. Este , por assim dizer o nosso primeiro estudo da

    16 A civilizao alimentar da alta Idade Mdia europeia marcada pelo triunfo do vinho, bebida ao mesmo tempo apreciada e de consumo dirio. A densa cerveja que s muito mais tarde se tornar o lquido claro e transparente aromatizado, o lpulo, durante o que conhecemos sob o nome de cerveja ser, durante muito tempo, o smbolo da cultura germnica, e os pagos usam-na em seus rituais para marcar sua oposio sacralidade crist do vinho. Com o tempo, porm, ela deixar de rivalizar com este, que acabar por ser reconhecido por motivos de gosto e de imagem como a bebida de prestgio por excelncia (Montanari: 1998 286).

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    alimentao viking com uma fonte mitolgica. A medida que mais leituras so

    realizadas mais h por estudar e conhecer sobre as prticas alimentares e, a mitologia

    ainda tm muito a nos oferecer, pois so inmeras as narrativas onde o banquete um

    dos personagens principais.

    O banquete para Heimdallr descrito na Rgsula no lembra em nada a imagem

    de banquetes que temos to popularizados pelo cinema, histrias em quadrinhos e a

    literatura de fantasia onde homens vestidos com peles ou roupas grosseiras fartam-se de

    carne, vinho e cerveja comportam-se, enfim como brbaros dando a impresso de que

    no poderiam provar outra comida que no fosse a carne assada. Heimdallr sendo um

    deus prova da comida do traels e dos jarls com a mesma deferncia e porta-se a mesa

    como convm a um deus. Mais do que oferecer subsdios para o estudo da histria da

    alimentao, mas, da construo de estudos sobre o que o que a Dominique Fournier17

    denominou uma arqueologia do gosto. Onde so estudados no somente os hbitos

    alimentares e modos de comer e servir descritos nas fontes literrias e mitolgicas e nos

    manuais de cozinha mas ir alm: retirar os panos de tecido grosso ou mesmo de fino

    linho que cobrem os vestgios tanto dos alimentos como do gosto daqueles que os

    consumiam, pois como ensina Montanari a cozinha contm e exprime a cultura de quem

    a pratica.18

    *

    Esse artigo s foi possvel graas pacincia, conselhos, leituras, sugestes

    discusses e debates com o professor Johnni Langer. Agradeo tambm ao Johnni,

    agora meu esposo, ao Thor e a Isolda, ao Sandro, ao Vitor, ao Pablo ao Druida-mr

    Joo Lupi e a todos os guerreiros germnicos e celtas que sentaram-se minha mesa e

    dela compartilharam - compartilham! - como gentis-homens e doces damas que so!

    BIBLIOGRAFIA

    Fontes primrias:

    17 Para maiores detalhes sobe o conceito de arqueologia dos gosto vide Revista Alethia volume 2/2 agosto/dezembro de 2010, resenha As trocas do gosto. 18 MONTANARI : 2009 13.

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