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Um agradecimento especial a Esther Dita Kohn de Cohen

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Page 1: Um agradecimento especial a Esther Dita Kohn de Cohen · Por que é um país do que eu gosto, onde me sinto bem, e aonde ia escrevendo minha obra sem dificuldades nem problemas

Um agradecimento especial a Esther Dita Kohn de Cohen

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JULIO CORTÁZAR Reportagem e carta

“No meu coração a América Latina existe como uma unidade”

viviana marcela iriart

fotos: © Eduardo Gamondés

Tradução: Alejandra Rodrigues Matias Todos os Direitos Reservados Contato: [email protected] ©1979 Eduardo Gamondés © 1979 viviana marcela iriart © 2015 Escritoras Unidas & Cía. Editoras

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“DEVEMOS LUTAR CONTRA O CHOVINISMO”

Sua voz grave e fanhosa atende ao telefone, sem intermediário, simplesmente ele atendendo ao telefone. Cortázar. Sua voz soa séria, como a imagem que tenho dele, uma imagem que sempre tem 40 anos, impossível imaginá­la mais (e suas biografias dizem que nasceu em 1914). Explica que quer ver a revista antes de nos conceder uma entrevista, e nem ele nem a gente sabe o que aconteceu, mas as revistas que deixamos no hotel jamais chegaram às suas mãos. Igualmente sugere vermos no Parque Central, na inauguração da "Primeira Conferencia Internacional sobre o Exílio e a Solidariedade Latino­americana nos anos 70”, na que ele participou. E estava ali, chamando a atenção embora sem ele quiser: era o mais alto de todos os presentes. E ali estava com a barba e bigodes acobreados que tem há tanto tempo, com a seriedade com a que aparece em revistas e jornais, com uma simpatia que não lhe imaginava. Ali estava, era Cortázar. Um ser humano como você e eu, sim, com dois olhos, uma boca, duas mãos, virtudes, defeitos, desejos, saudades.

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A entrevista foi num canto do Hotel Anauco Hilton, junto com o Assessor da Semana, Jorge Madrazo, o fotógrafo Eduardo Gamondés e quatro ou cinco admiradores do escritor, imersos dissimuladamente –ou não­ na conversa. Ele falou devagar, calidamente e os seus olhos claros percorriam os nossos enquanto suas palavras abriam­se no centro de nossas mentes, ficando ali muito tempo depois de ter sido pronunciadas. E ele ficou conosco quando a noite chegou e nos encontrou em lugares distintos. Como uma presença invisível, desejada, sempre presente a partir do primeiro encontro.

ACERCA DA LITERATURA E DA POLITICA “Bem, claro que me incomoda ser mais requerido para dar opiniões políticas que literárias, por que sou um homem literário. Assim como os franceses costumam referir­se ao homem como um animal pensante o um animal filosófico, eu sou um animal literário. Nasci para a literatura e se fui assumindo lentamente este compromisso de tipo ideológico que eu tenho e vocês conhecem, isso foi ao término de um processo muito lento, muito complicado e ás vezes muito penoso. Por que como a minha profunda vocação é a literatura, há momentos nos que as circunstâncias, as de tipo político –o ter que vir a esta conferencia, escrever artigos de conteúdo político, atacar a Junta chilena ou argentina, ocupar­me de

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casos de desaparecidos, mortos, torturados, contestar alguma da enorme correspondência que recebo, porque a gente pensa que eu sempre posso dizer alguma coisa e ajudar­ bem, há momentos nos que, o confesso, por que é verdade, tenho um grande desânimo. Porque me digo “bem, alguma vez vou poder escrever um romance? O meu ideal seria ter um ano ou dois de tranqüilidade, para escrever um romance que me dá voltas na cabeça há muito tempo. Por isso é que cada vez mais me converto num contista, porque os contos os escreve no avião, na sua casa, na rua...”

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ATÉ A FRANÇA CHEGOU O EXÍLIO "Há 28 anos que eu moro fora da Argentina, mas nunca me considerei um exilado, porque para mim o exílio é uma coisa compulsiva, e eu morava na França porque me dava vontade. Por que é um país do que eu gosto, onde me sinto bem, e aonde ia escrevendo minha obra sem dificuldades nem problemas. E de repente, a partir do golpe militar, soube que me tinha convertido num verdadeiro exilado. É dizer, que agora tenho esse sentimento, que têm os exilados todos, onde os aspectos negativos são muito fortes, pesam muito. Isso me levou por primeira vez reflexionar acerca do problema do exílio. É então que eu me deu conta que eu ou qualquer outro exilado entra no estereotipo, na noção essencialmente negativa, esmagadora do exilo, está outorgando uma carta de triunfo à ditadura que o exilou. Então considerei o problema em termos muito claros: é uma loucura, é ilógico, não se pode aplicar cientificamente, mas eu em vez de estar numa marcha para diante dou marcha para trás, inverto a velocidade e entendo o exílio em termos positivos. Eu diz­lo em Paris, e fez sorrir a muita gente, diz que é como se o Videla, agora que me exilou, me tivesse dado uma bolsa de estudos para escrever fora da Argentina. E a minha melhor maneira de contestar a esse exílio é dar o máximo do que eu posso dar como escritor, e o que estou tratando de fazer. Mas ao exilado que chega totalmente quebrado, seja porque ele mesmo tem sofrido, incluso fisicamente, antes de poder sair ou porque há muitos mortos, desaparecidos, torturados em torno dele, não se pode pedir­lhe que comece sua vida de exilado com um sorriso, dizendo: “isto está muito bem”. Não, porque está horrorosamente mal. Quando para todo homem e mulher que tem salvado a inteligência chegue o momento de pensar na nova vida que está começando, é nesse momento em que eu o incito a que em vez de cair nos estereótipos e dizer “eu sou uma vítima, eu sou um exilado, eu tenho sido injustamente expulso do meu país”, e que isso se traduz pouco a pouco em amargura, numa nostalgia esmagadora, eu o incito a que –saído do primeiro choque traumático­ volte a se sentir um homem ou uma mulher plena”. SUL, PAREDÃO E DEPOIS... "Sim, porque ¿para quê serve a saudade de juntarmos cinco argentinos, fazer um assado, beber mate, pôr um disco da Susana Rinaldi, Mercedes Sosa ou Gardel (segundo os gostos) e comprazermos na saudade de um passado ao que quiséssemos ressuscitar? Eu o faço também, mas isso não me impede no dia seguinte acordar em Paris, e estar em contato com muita gente que não são argentinos e levar o meu trabalho adiante. De modo que é um assunto que há que matizá­lo, não é muito simples, e claro, não todas as pessoas estão igualmente preparadas no plano mental ou intelectual. E o operário, que do ponto de vista intelectual está mais limitado – por que por a sua condição de operário não tem podido estudar­ esse homem

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é realmente o que está mais em perigo como exilado. Se um obreiro tem que viver em Suécia, só o problema do idioma é para ele uma espécie de ameaça de morte. E ali a saudade, Gardel, suas lembranças e suas fotografias voltam­se sua única defesa. E eu acho que todos nos podemos fazer muito a traves de publicações, de atos, de reuniões, para faze­lhes sentir que não estão sozinhos." O EXÍLIO CULTURAL “O que para mim é e tem sido traumático, é um fenômeno no que o mundo todo não pensa, e que no caso de um artista exilado é fundamental. O que eu chamaria o exílio de tipo cultural: é terrível quando você se da conta de que no seu pais há uma barreira de censura que faz, por exemplo, que eu não possa publicar mais livros na Argentina. Então se descobre –e é isto o horroroso para mim­ que estou exilado, mas que do outro lado, no meu pais, há 26 milhões de exilados em relação conosco. Eu estou separado dos meus leitores, mas meus leitores estão separados de mim: meu último livro de contos não pôde ser publicado na Argentina por que incomodaram a Junta. E não faço disto uma questão pessoal: estão separados de 150 magníficos escritores uruguaios, chilenos e argentinos que não se podem editar em nosso pais. No Chile, desde 11 de Setembro de 1973, uma geração de jovens foi tomada pela Junta e metidos numa escola fascista dirigida por militares. Tem passado seis anos e eles viveram a idade crítica (entre os 12 e 18) sob esse regime, milhares e milhares de crianças chilenas que nestes momentos crêem na Junta, crêem na Segurança Nacional, crêem que todos nós somos traidores, crêem que o Chile é um país injustamente atacado e combatido. Não têm a culpa, pobrezinhos, porque em seis anos os têm convertido no mesmo que o Hitler converteu às juventudes hitleristas, ou o Mussolini aos “balilhas”. Bem, isso é para mim uma das coisas mais horrorosas, e não podemos fazer nada, intelectualmente. Porque isto eu digo­lhes, mas ninguém vai escutá­lo na Argentina, ninguém vai lê­lo, vocês vão publicá­lo e exceto que alguém o leve num bolso, ninguém vai poder lê­lo ali. "

O ESCRITOR E O SEU COMPROMISO COM A REVOLUÇÃO “Eu tenho uma grande latitude no plano de trabalho dos escritores. Eu acho que pode haver escritores puros, que não introduzam mensagem política nenhuma no que fazem. Acho que isso é possível, e que a sua obra pode ser revolucionária se é uma obra criadora, que renova, uma bela obra. O único que exijo nesses casos é que a pessoa que faz literatura pura mostre com sua conduta pessoal que não é um fugido. Que se ele não põe política no que faz, é somente porque –por exemplo­ sua vocação é escrever um soneto onde a política não entre. Mas ele tem que demonstrar com a sua conduta, com sua responsabilidade pessoal, que tem direito a escrever esses sonetos.

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Olhe, eu divirto­me muito em escrever literatura pura... No ano que vem publicarei um livro, que estou terminando, onde há um ou dois contos com conteúdo político, os demais são contos fantásticos. E acho que tenho direito a escrevê­los, porque meus leitores sabem quem sou. Então, ¿por que me vou sentir obrigado a pôr a política em cada cosa que escreva? Minha literatura, então, seria muito má, sou muito consciente disto. Todo homem não tem nascido para a ação, não todo homem tem às vezes, ¿como te dizer? As aptidões físicas para arriscar­se num plano de ação. Não todo homem tem nascido para ser soldado de uma revolução. Pode ser um homem de uma vida interior, de uma timidez de caráter, que o leva a escrever exclusivamente uma obra que canta à revolução. Mas eu não acredito que se possa exigir uma militância prática a o mundo todo.”

VIETNAM E A MANIPULAÇÃO DA INFORMAÇÃO PELO IMPERIALISMO “Eu acho que é positivo que se denunciem as violações de direitos humanos ocorridas nos países socialistas, na medida em que se tenha segurança do que se denuncia. Porque, quando se fala de violação de direitos humanos nesses países, eu, por principio, examino com muito cuidado o expediente, porque sei de sobra até quê ponto a informação do imperialismo reforma, muda e modifica as coisas. Eu não me esqueço que, por exemplo, seguindo a última etapa da revolução nicaragüense no Herald Tribune em Paris, podia­se encontrar uma análise de como os ianques preparavam ao leitor norte­americano para que estivesse em contra do triunfo. Falavam de Somoza como o tirano, o ditador, mas quando falavam das colunas que avançavam falavam: “as colunas marxistas”. A cada oito ou nove parágrafos punham­nos essa palavrinha, para que a boa senhora que mora em Minesotta ou em Detroit diga: “Meu Deus, os comunistas!”. Então, quando se fala do caso de Vietnam, eu estou esperando me encontrar com García Márquez, que esteve ali fazendo uma grande pesquisa, para que ele me conte as coisas. Eu não me confio dos telegramas de imprensa. Mas quando na Rússia e nos países da órbita socialista há flagrantes violações aos direitos humanos, eu pessoalmente não me calo."

A AMÉRICA LATINA COMO UNIDADE: ¿REALIDADE OU UTOPIA? “Vou dizê­lo de uma maneira sentimental, quase como se o dissera o Rubén Darío: no meu coração, América Latina existe como uma unidade. Sou argentino, claro, (e sinto­me contente), mas fundamentalmente sinto­me latino­americano. Sinto­me na minha casa em qualquer pais da América Latina, sinto as diferencias locais, mas são diferenças dentro da unidade. Isso, no plano pessoal. No plano geopolítico, está a nefasta política de dividir para reinar, que têm aplicado os norte­americanos desde há muito tempo.

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Fomentando os nacionalismos, as rivalidades entre os países para dominá­los melhor, destruindo o sonho de Bolívar dos “Estados Unidos da América do Sul” e criando diferentes países orgulhosos, seguros de eles mesmos, dispostos a fazer a guerra por questões que não resistem um análise profundo; isso é uma realidade. E eu penso que um dos deveres capitais dos políticos de esquerda, dos escritores revolucionários, é tentar por os meios todos de lutar contra esse chauvinismo, que faz que um menino argentino na escola aprenda que ele é muito mais e melhor que um menino chileno ou paraguaio. Aliás que em minha visita anterior falei com venezuelanos da rua e sua idéia sobre os colombianos, seu desprezo, seu ódio, me aterraram. O mesmo acontece, com certeza, no caso inverso. Isso é prova que dividir para reinar funciona, que aos ianques lhes convém seguir fomentando­o e que as ditaduras locais estão encantadas em fazê­lo. "

ENTÃO FALOU SOBRE A VIDA E A MORTE "Um dia na minha vida é sempre uma coisa muito formosa, porque eu sinto­me muito feliz de estar vivo. Não tenho nenhuma intenção de morrer, tenho a impressão que sou imortal. Sei que não o sou, mas a idéia da morte não me molesta e também não tenho­lhe medo. Denego­lhe existência, então, isso me ajuda a viver de uma maneira, ¿como dizê­lo? Debaixo do sol, solar. Eu estou muito feliz por estar vivo, e, além disso, há uma coisa na que pouca gente pensa. Acho que é um prodígio maravilhoso que todos nós sejamos seres humanos, que estejamos no mais alto da escala zoológica, por um azar puramente genético. Por que você não é responsável de ser quem é. Vimos de uma longa cadeia genética e quando vejo uma galinha ou uma mosca que também têm nascido das mesmas cadeias genéticas, maravilho­me por ser um homem e não uma galinha. Sou um homem, com tudo o bom e o mau que isso tem. E estou contente em ter tido uma consciência, de ter visto mais do que uma consciência pode ver do planeta. E não te falo mais”. Quando pronunciou estas palavras tinha mais de uma hora que estava conosco, contando anedotas e sorrindo, às vezes, como uma criança. Sim, ele é um ser humano como você e como eu, para falar precisa de mover a boca na mesma forma na que o fazemos você e eu. Mas ele é Julio Cortázar. Caracas, Setembro 1979 Publicado na Revista Semana, Novembro 1979 Fotos © Eduardo Gamondés Tradução© Alejandra Rodrigues

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“Julio Cortázar: Cartas 1977­1984 (Alfaguara): carta a viviana marcela iriart” A história detrás da carta

“Paris, 30 de Novembro de 1979 Querida Viviana: Obrigado pelo envio da Semana. A entrevista que me fez ficou muito bem tendo em conta as circunstancias caóticas nas que a fizemos. Há tido muito em conta coisas que eu diz, e espero que os leitores sintam a autenticidade dupla de seu trabalho e da minha palavra. Obrigado outra vez, com um abraço muito cordial de seu amigo.

Julio Cortázar”

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Julio Cortázar não teve só a amabilidade de me dar uma entrevista em Caracas ao final de setembro de 1979, quando eu tinha 21 anos, era uma desconhecida exilada e escrevia free­lance e grátis para “Semana”, uma revista que estava morrendo. Também teve a imensa generosidade de me enviar uma carta agradecendo o envio da entrevista quando saiu publicada, dizendo belas palavras que só uma pessoa maravilhosa como ele podia escrever e que, certamente, eu não merecia.

Cortázar estava em Caracas para participar da Primeira Conferência sobre o Exílio e a Solidariedade Latino­americana nos anos 70 (Primera Conferencia sobre el Exilio y la Solidaridad Latinoamericana en los años 70), que se inaugurou em Caracas e continuou depois em Mérida, que reuniu aos mais importantes escritores do momento: Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Antonio Skarmeta, Ernesto Cardenal…

Eu assinei a entrevista com pseudônimo (o nome foi eleito pelo chefe de redação) porque Cortázar era uns dos opositores mais celebres e combativos da ditadura argentina; minha mãe e minhas irmãs viviam na Argentina e eu temia represálias contra elas. Cortázar, com a humanidade que o caracterizava, entendeu meu medo quando lhe expliquei.

Quando nos encontramos no lobby do Hotel Anauco Hilton não nos demos um beijo, ao estilo argentino, senão a mão, ao estilo venezuelano, porque isso foi a primeira coisa que tinha aprendido depois de ter ficado muitas vezes com o beijo no ar vendo a cara de surpreso da pessoa que ia beijar. Cortázar, que tinha estado muita vezes na Venezuela, parecia conhecer a costume muito bem.

Ele não perguntou por que eu tinha sido condenada ao exílio e tampouco contei­lhe. Admirava­o demais como para perder tempo falando de mim. Só queria ouvir seu pensamento. Ele estava comCarol Dunlop, encantadora com seus grandes olhos ternos que olhavam maravilhados como se fosse uma menina, e teve muita paciência comigo quando ataquei aos intelectuais que mandavam à gente a combater e depois quando as bombas caiam se escondiam detrás de seus livros. Não era seu caso, certamente não, mas tinha conhecido tantos intelectuais que eram assim nos meus últimos meses fugindo na Argentina, que sentia asco pelos intelectuais. Cortázar, como se intuíra que eu me estava dessangrando de exílio, respondia meus ataques com paciência e muita doçura.

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Ele via­se muito jovem e atrativo (e tinha 65 anos), mas parecia um homem muito triste, embora na entrevista eu diga que às vezes sorria como um menino pequeno, um homem muito preocupado e parecia estar muito cansado fisicamente.

Quando a entrevista acabou e estávamos nos despedindo, já os dois parados, quando vi que ele começava a caminhar e que ia embora para sempre da minha vida, tirando coragem de onde não sei, eu que era tão tímida, o parei e lhe diz:

­ Cortázar, posso lhe pedir um favor?

­ ¡Claro! – respondeu com amabilidade.

­ Posso lhe dar um beijo?

Cortázar lançou uma gargalhada cheia de surpresa e alegria e por primeira vez vi brilhar seus olhos contentes. Carol, a seu lado, olhou pra mim sorrindo com seus grandes olhos cúmplices.

­ ¡Claro! ­ respondeu com um sorriso esplêndido, e se inclinou para que eu pudesse chegar a sua bochecha.

Um beijo, uma entrevista, uma carta. Quem podia pedir mais? Cortázar foi meu melhor presente de exílio (junto com Joan Baez, mas essa é outra historia).

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O que Cortázar não sabia, e não tinha por que saber e nunca soube, era que eu tinha sido condenada ao exílio por ser pacifista e editar uma pequena revista “underground” de cultura, Machu­Picchu, na que tinha expressado minha oposição à guerra com Chile em setembro de 1978. Isto significou a persecução, clandestinidade, asilo na Embaixada de Venezuela em Buenos Aires e exílio, nessa ordem. E por não ter militância política era muito ingênua ao supor que bastava um pseudônimo para me esconder da ditadura.

Porque Alberto Boixadós, escritor argentino aderente da ditadura, cujo livro “Arte e Subversão” (“Arte y Subversión” ) tem um capítulo dedicado a atacar a Cortázar, chamado “Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa. São franco tiradores ou constituem exército regular?” (¿Son francotiradores o constituyen ejército regular?”), pode ler­se, ¡hoje!, no blog chamado Nacionalsocialismo, escreveu em 1981 “A revolução e o Arte Moderno” (“La Revolución y el Arte Moderno") e, continuando seus ataques a Cortázar, diz:

“Em entrevista formulada a Cortázar por Viviana López Osornio para a revista “Semana”, No. 581, em um canto do Anauco Hilton, com motivo da primeira Conferencia sobre o Exilio e a Solidariedade Latino­americana ” (Fonte: Google Books)

Isto demonstra duas coisas.

Primeiro, quanto molestavam as palavras de Cortázar à ditadura argentina e seus aderentes, porque “Semana” era uma revista que estava em falência (fechou aos poucos meses) e por tanto tinha muitos poucos leitores e influência na vida política venezuelana, e a entrevista tinha sido feita por uma pessoa completamente desconhecida e insignificante em 1979.

Mas em 1981, quando o livro foi publicado, eu era uma ativa combatente da ditadura desde meu trabalho ad­honorem em Anistia Internacional (Amnesty International) e a “Coordenadora Pro­Direitos Humanos na Argentina” (“Coordinadora Pro­Derechos Humanos en Argentina”), formada por parte do exílio argentino na Venezuela, havia deixado de usar pseudônimo em 1979, y me havia convertido numa pequena figura publica, igualmente insignificante mas para a ditadura qualquer pulga significava a ameaça duma erupção gigante.

E segundo, que havia traidores no exílio argentino em Caracas, porque só a gente de meu ambiente sabia que essa entrevista a Cortázar a tinha feito eu, e

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nunca se havia republicado com meu nome. (Por outra parte, em 1980 adotei o sobrenome materno, Iriart, e assim se me conhece desde então.) Quem ou quem foram os traidores?

Viver no exílio sempre foi, entre outras coisas, como andar por um caminho minado, nunca você sabia quando podia estourar em pedaços. Tampouco quando a mão que se estendia amiga era a mão que em realidade queria assassina­lo.

Na entrevista Cortázar se lamenta: “Porque isto eu digo­lhes a vocês, mas ninguém o vai ouvir na Argentina, ninguém vai poder lê­lo, vocês vão publicá­lo e salvo que alguém o leve num bolso, ninguém vai poder lê­lo lá”. Eu achava o mesmo. Que errados estávamos! Tínhamos nos esquecido dos traidores, servindo nossas cabeças em bandeja de prata por dinheiro, inveja, ambição, perversão o simplesmente ódio.

Cortázar não foi convidado à assunção de Alfonsin quando a democracia voltou na Argentina em dezembro de 1983. E se alguém merecia ser convidado por todo o que havia lutado, entregado, deixado de fazer para se mesmo, sacrificado pela democracia argentina, era ele.

E eu só espero que os traidores tenham sido castigados pela justiça ou pela vida, e senão foi assim, pouco me interessa: nunca deixarão de ser um pedaço de merda debaixo duma bota militar ou dum sapato democrático.

Cortázar segue sendo um dos maiores escritores de todos os tempos, de todo o mundo. Um dos seres humanos mais amados. E eu vivo em paz.

E agora que aquela carta que me enviou em 1979, forma parte do livro “Julio Cortázar: Cartas 1977­1984”, que em 5 volumes reúne quase todas as cartas que Cortázar escreveu em sua vida, só posso dizer uma vez mais: Obrigada, Cortázar, por me permitir ser parte da sua vida.

22 de abril de 2013

Tradução

Alejandra Rodrigues Matias

viviana marcela iriart

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