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HUMANIDADES IMPRENSA [ ~ Allllanak Agrícola Brazileil'o 1912 IIftA(JEM 4&.00(I E'i:f.'I\f'l.\,lif,S ,_ co;;~i~ as;~~~~9~~I~NO t :U! lEI ll:\llBiELI . .I:'\l Revistas "chiques" dos anos 10 e 20: apesar do esforço da elite cultural, as publicações que faziam sucesso eram as de consumo Em revista, o desvario da paulicéia cultural Estudo mostra relação entre mídia e vida cotidiana na São Paulo antiga N a paulicéia desvairada, a luz elétrica tomou conta das ruas. As mulheres encurtaram os cabelos e as saias, os bondes aceleraram a vida. Novos hábitos noturnos: o bar, o res- taurante, as lojas de departamento iluminadas. São Paulo do início do sé- culo 20 viveu sua belle époque com di- reito a quase todo glamour de Paris. Mais: foi a cidade em que se desenvol- veu, com esplendor, uma indústria até então incipiente no país: a da produ- ção editorial de revistas. Em Revistas em Revista: Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de Re- 94 NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 PESQUISA FAPESP pública, São Paulo (1890-1922) a his- toriadora Ana Luiza Martins apresen- ta um extenso levantamento docu- mental e iconográfico sobre essas publicações, que chegaram a somar mais de 200 títulos entre 1890 e 1922. A pesquisa, desenvolvida como tese de doutorado defendida no departa- mento de História da Universidade de São Paulo (USP), acaba de ser lançada em livro, uma publicação ilustrada e muito bem cuidada, feita com apoio da FAPESP pela Edusp e Imprensa Oficial (591 páginas, R$ 50). O livro tem prefácio do bibliófilo José Mindlin e é comentado, na con- tracapa, pela historiadora Maria Lui- za Tucci Carneiro. Foi feito com base em documentos de diversos arqui- vos, entre eles o do Instituto Históri- co e Geográfico de São Paulo e o do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, além de bibliotecas particulares, como a do próprio José Mindlin. Apresenta análises que permitem en- tender de que forma essas revistas colaboraram para a formação de um público leitor, ao mesmo tempo em que, fato inusitado, deram propulsão a uma nova realidade econômica e mercadológica nos centros urbanos. Imprensa tardia - "As revistas tiveram um papel muito importante no Brasil naquela virada do século 20, em fun- ção da própria história da imprensa no país", explica Ana Luiza. "Foi uma imprensa tardia, se comparada com a existente nos países latino-america- nos de colonização espanhola, os quais conheceram o prelo desde o sé- culo 16." A primeira impressão ofici- al feita em solo brasileiro só ocorreu após a chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro em 1808, fato que elevou a cidade à capital do Império portu- guês. "Antes do Império, qualquer atividade que pudesse resultar na pu- blicação de um periódico era subme- tida a uma censura rigorosíssima, principalmente no tempo em que a Inquisição esteve na Colônia", diz. Um segundo momento curioso da imprensa nacional foi quando, ape- sar de ter surgido no Rio, ela teve

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Revistas "chiques" dos anos 10 e 20: apesar do esforço da elite cultural, as publicações que faziam sucesso eram as de consumo

Em revista, o desvarioda paulicéia culturalEstudo mostra relaçãoentre mídia e vida cotidianana São Paulo antiga

Na paulicéia desvairada, a luzelétrica tomou conta das ruas.

As mulheres encurtaram os cabelos eas saias, os bondes aceleraram a vida.Novos hábitos noturnos: o bar, o res-taurante, as lojas de departamentoiluminadas. São Paulo do início do sé-culo 20 viveu sua belle époque com di-reito a quase todo glamour de Paris.Mais: foi a cidade em que se desenvol-veu, com esplendor, uma indústria atéentão incipiente no país: a da produ-ção editorial de revistas.

Em Revistas em Revista: Imprensae Práticas Culturais em Tempos de Re-

94 • NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

pública, São Paulo (1890-1922) a his-toriadora Ana Luiza Martins apresen-ta um extenso levantamento docu-mental e iconográfico sobre essaspublicações, que chegaram a somarmais de 200 títulos entre 1890 e 1922.A pesquisa, desenvolvida como tesede doutorado defendida no departa-mento de História da Universidade deSão Paulo (USP), acaba de ser lançadaem livro, uma publicação ilustrada emuito bem cuidada, feita com apoioda FAPESP pela Edusp e ImprensaOficial (591 páginas, R$ 50).

O livro tem prefácio do bibliófiloJosé Mindlin e é comentado, na con-tracapa, pela historiadora Maria Lui-za Tucci Carneiro. Foi feito com baseem documentos de diversos arqui-vos, entre eles o do Instituto Históri-co e Geográfico de São Paulo e o doInstituto de Estudos Brasileiros daUSP, além de bibliotecas particulares,

como a do próprio José Mindlin.Apresenta análises que permitem en-tender de que forma essas revistascolaboraram para a formação de umpúblico leitor, ao mesmo tempo emque, fato inusitado, deram propulsãoa uma nova realidade econômica emercadológica nos centros urbanos.

Imprensa tardia - "As revistas tiveramum papel muito importante no Brasilnaquela virada do século 20, em fun-ção da própria história da imprensano país", explica Ana Luiza. "Foi umaimprensa tardia, se comparada com aexistente nos países latino-america-nos de colonização espanhola, osquais conheceram o prelo desde o sé-culo 16." A primeira impressão ofici-al feita em solo brasileiro só ocorreuapós a chegada de D. João VI ao Riode Janeiro em 1808, fato que elevou acidade à capital do Império portu-guês. "Antes do Império, qualqueratividade que pudesse resultar na pu-blicação de um periódico era subme-tida a uma censura rigorosíssima,principalmente no tempo em que aInquisição esteve na Colônia", diz.

Um segundo momento curioso daimprensa nacional foi quando, ape-sar de ter surgido no Rio, ela teve

Page 2: :U!lEI Emrevista, odesvario da paulicéia cultural...mente em solo paulista, sob a égide dos barões do café, que cultivavam a terra roxa no interior eapostavam na modernidade da

Ação do guarda: usando a imprensa para educar o povo

São Paulo como palco de seu grandedesenvolvimento. "Ela surgiu tardia-mente, mas num período de grandese importantes mudanças", observa aprofessora Maria Luiza Tucci. Essastransformações ocorriam principal-mente em solo paulista, sob a égidedos barões do café, que cultivavam aterra roxa no interior e apostavam namodernidade da capital.

De que tratavam, então,essas publicações, responsá-veis pelo nascimento e cresci-mento de um verdadeiro par-que gráfico na então terra dagaroa? "De um pouco detudo", diz Maria Luiza. Entreas de maior popularidade es-tavam as femininas, as de es-portes, as religiosas, as quetratavam de educação e - pas-me - as revistas agrícolas."Ocorre que essas publicaçõessurgiram no início da Repú-blica, quando os grupos maisprogressistas estavam lutandopor uma melhor educação -não podemos esquecer que opaís tinha uma herança escra-vocrata, portanto, era predo-minantemente analfabeto",explica a pesquisadora. O pe-ríodo foi marcado tambémpelo fortalecimento do ensinopúblico, com a fundação, porexemplo, dos grupos escolaresCaetano de Campos e Rodri-gues Alves. "As revistas servi-am para ampliar o público lei-tor e era importante falar sobreassuntos valorizados pelo governo,por exemplo, a agricultura, em pri-meiro lugar, e a educação, logo emseguida", continua a historiadora.

Embora fossem setorizadas, as re-vistas não eram monotemáticas, deforma que era possível, por exemplo,encontrar peças literárias em umarevista que tratava de assuntos liga-dos à terra e ao plantio. "Um grandeexemplo foi a revista Chácaras eQuintais, na qual a escritora Iúlia Lo-pes de Almeida despontou, publi-cando seus contos", narra Maria Lui-za. "Esse tipo de coisa era uma via demãodupla: ao mesmo tempo em que

a autora conquistava seu público, suaobra ajudava a revista a encontrarleitores entre os mais diferentes gru-pos da sociedade", explica ela. Comoainda não havia editoras de livros,muitos autores e até movimentos li-terários ficaram conhecidos graçasaos periódicos. Niterói, por exemplo,a primeira revista brasileira de que setem notícia, impressa na França, foi

---_ ..._ ...~---Fóra da calçada ...

espaço de veiculação dos escritoresdo Romantismo.

As revistas paulistas religiosastambém apostavam na diversidadede assuntos para atrair mais leitores.Leia-se: fiéis. "Costumavam divulgarexposições de arte. A primeira expo-sição de Benedito Calixto em SãoPaulo foi divulgada em uma revistada Igreja", aponta a pesquisadora. Oimpresso periódico foi o meio en-contrado pelos eclesiásticos paracompensar a diminuição do poderda Igreja após a separação dessa ins-tituição do Estado, o que ocorreucom a proclamação da República. Jáas esportivas acompanhavam o mo-

dismo trazido pelos ingleses. Naque-le tempo, além do tênis, o futebol,hoje um evento popular, também eraum esporte exclusivamente elitista.

"Sem dúvida, as mais lidas eram asrevistas femininas", afirma a autora.Vários motivos explicam essa popula-ridade. "Naquele tempo, havia maismulheres do que homens alfabetiza-dos na elite", diz Maria Luiza. "Além

disso, as revistas femininaspodiam entrar nas casas dasfamílias, porque mesmo quecontivessem, por exemplo,contos ou textos literários,eles jamais chocariam moçase senhoras, como costumavaacontecer, muitas vezes, comas revistas literárias", continua.O período estudado segue so-mente até 1922, justamentepor se tratar do ano em que oModernismo se afirmou e asrevistas modernistas apresen-taram rupturas de linguagem ede propostas em relação a suasantepassadas.

Beleza gráfica - Um passeiopelas páginas coloridas de Re-vistas em Revista permite aoleitor deliciar-se com a belezagráfica de muitas dessas pu-blicações (Sports, Correio Pau-listano, A Estação, Vida Mo-derna). Os títulos mostram oesforço criativo para assuntosgerais (A Rolha, O Parafuso, ACigarra, A Farpa, A Vespa,

Arara, O Queixoso - de oposição aogoverno, Caras Y Caretas) e para falarde São Paulo de maneiras diferentes(A Garoa, Ilustração Paulista, CorreioPaulista no, Vida Paulista, Ilustraçãode s. Paulo, O Álbum Paulista).

Os esforços gráficos e editoriaiseram acompanhados pelo desenvol-vimento da publicidade. "Foi naqueleperíodo que surgiu a idéia de revistacomo negócio. Vingavam as de con-sumo. Revistas literárias eram conhe-cidas por durar pouco tempo, daí ainserção da literatura em outros tiposde publicação", diz Maria Luiza.Qualquer semelhança com os dias dehoje não é mera coincidência. •

PESQUISA FAPESP . NOVEMBRO/OEZEMBRO DE )001 95