ufrj jornal da - universidade federal do rio de janeiro - ufrj · certo de que serão tomadas...

24
Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 21 • Outubro de 2006 Pág. 24 Jornal da UFRJ http://www.jornal.ufrj.br Lupicínio Rodrigues “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?” A sagrada República Págs. 12 e 13 Pág. 14 Págs. 4 e 5 Keynes: a hora da forra? Após 70 anos da publicação de A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, do economista inglês John Maynard Keynes, a questão do pleno emprego e o papel do estado como impulsionador do desenvolvimento está de volta à ordem do dia. Desemprego na juventude A juventude, que representa 47% do total de desempregados do país, ainda não encontra na Educação do país uma via adequada à sua inserção no mercado de trabalho. PDI: pelo fim do isolamento Continuam as reuniões e discussões em torno da proposta de Plano Qüinqüenal de Desenvolvimento Institucional elaborada pela Reitoria da UFRJ. Págs. 16 e 17 Reflexo e espelho de uma sociedade desigual O evento Habitar a cidade, organizado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ), discute, a partir de vários pontos de vista, a favela carioca. Pág. 19 Entrevista Jessie Jane Em entrevista ao Jornal da UFRJ, Jessie Jane Vieira de Souza, historiadora, professora e atualmente diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, discute o papel de setores da Igreja Católica nos golpes militares que tiveram lugar em grande parte dos países da América Latina ao longo dos anos 1960. Para ela, “a Igreja Católica é uma instituição fundamental para se entender a dinâmica da cultura política brasileira e da América Latina”. Depois da eleição, a bonança?

Upload: lequynh

Post on 07-Feb-2019

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 21 • Outubro de 2006

Pág. 24

Jornal da

UFRJhttp://www.jornal.ufrj.br

UFRJUFRJ Lupicínio Rodrigues “Você sabe o que é ter um amor,

meu senhor?”

A sagrada República

Págs. 12 e 13

Pág. 14

Págs. 4 e 5

Keynes: a hora da forra?

Após 70 anos da publicação de A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, do economista inglês John Maynard Keynes, a questão do pleno emprego e o papel do estado como impulsionador do desenvolvimento está de volta à ordem do dia.

Desemprego na juventude

A juventude, que representa 47% do total de desempregados do país, ainda não encontra na Educação do país uma via adequada à sua inserção no mercado de trabalho.

PDI: pelo fi m do isolamento

Continuam as reuniões e discussões em torno da proposta de Plano Qüinqüenal de Desenvolvimento Institucional elaborada pela Reitoria da UFRJ.

Págs. 16 e 17

Refl exo e espelho de uma sociedade desigual

O evento Habitar a cidade, organizado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ), discute, a partir de vários pontos de vista, a favela carioca.

Pág. 19

EntrevistaJessie Jane

Em entrevista ao Jornal da UFRJ, Jessie Jane Vieira de Souza, historiadora, professora e atualmente diretora do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, discute o papel de setores da Igreja Católica nos golpes militares que tiveram lugar em grande parte dos países da América Latina ao longo dos anos 1960. Para ela, “a Igreja Católica é uma instituição fundamental para se entender a dinâmica da cultura política brasileira e da América Latina”.

Depois da eleição, a bonança?

2 Outubro•2006UFRJJornal da

Reitor: Aloísio Teixeira – Vice-Reitora: Sylvia da Silveira Mello Vargas – Pró-Reitoria de Graduação – PR-1: José Roberto Meyer Fernandes – Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2: José Luiz Fontes Monteiro – Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR-3: Carlos Antônio Levi da Conceição – Pró-Reitoria de Pessoal – PR-4: Luiz Afonso Henriques Mariz – Pró-Reitoria de Extensão – PR-5: Laura Tavares Ribeiro Soares – Superintendente de Graduação SG-1: Déia Maria Ferreira dos Santos – Superintendente de Ensino SG-2: Leila Rodrigues da Silva – Superintendente Administrativa SG-2: Regina Dantas – Superintendente SG-3: Almaísa Monteiro de Souza – Superintendente SG-4: Roberto Antônio Gambine Moreira – Superintendente SG-5: Isabel Cristina Azevedo – Superintendência Geral de Administração e Finanças – SG-6: Milton Flores – Chefe de Gabinete: João Eduardo do Nascimento Fonseca – Forum de Ciência e Cultura: Carlos Antônio Kalil Tannus – Superintendente do FCC: Marcos Maldonado – Prefeitura Universitária: Hélio de Mattos Alves – Escritório Técnico da Universidade – ETU: Maria Ângela Dias – Sistema de Bibliotecas e Informação/SiBI: Paula Maria Abrantes Cotta de Melo – Coordenadoria de Comunicação: Francisco Conte

Expediente

Fotolito e impressão – Gráfi ca e Editora Ediouro – 20 mil exemplares

JORNAL DA UFRJ É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DO SERVIÇO DE JORNALISMO IMPRESSO DA COORDENADORIA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – Av. Pedro Calmon, 550 – Prédio da Reitoria - 2º andar – Gabinete do Reitor – Cidade Universitária – Ilha do Fundão – Rio de Janeiro – RJ – CEP 21941-901 – Telefone: (21) 2598 1621 – Fax: (21) 2598 1605 – [email protected] – Supervisão Editorial: João Eduardo Fonseca – Editor Chefe/Jornalista Responsável: Fortunato Mauro (Reg. 20732 MTE) – Pauta: Fortunato Mauro, Francisco Conte e Luciana Campos – Reportagem: Coryntho Baldez, Joana Jahara, Luciana Campos, Rafaela Pereira e Rodrigo Ricardo – Projeto Gráfi co: José Antônio de Oliveira – Ilustração: Jefferson Nepomuceno – Revisão: Mônica Aggio – Estagiários de Jornalismo ECO/UFRJ: Bruno Franco e Mônica Reis – Estagiários de Arte, Ilustração e Fotografi a: Anna Carolina Bayer, Daniela Follador, Juliano Pires, Patrícia Perez, Pina Brandi e Marco Fernandes (EBA/UFRJ) – Estagiária de Revisão de Texto: Daniele Robert (Faculdade de Letras/UFRJ) – Estagiário de Web: Virgílio Fávero Neto (Instituto de Matemática/UFRJ) – Resenhas: Francisco Conte - Colaboração: Márcia Carnaval, Isabela Pimentel, Mariana Brugger e Rachel Rimas

PDI: na linha do debate

– Onde se lê “Chagas fez um acordo com a Fundação Rockefeller”, deve-se ler que Chagas foi personagem importante para o estabeleci-mento do acordo entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller;

– Onde se lê “mais tarde elas (as missionárias) criaram a revista Anais de Enfermagem”, deve-se ler “mais tarde, Edith de Magalhães Fraenkel e Rachel Haddock Lobo (primeira enfermeira brasileira a dirigir a Escola Anna Nery) criaram a revista Anais de Enfermagem” (elas não eram missionárias!);

– Onde se lê “Isso permaneceu até 1949, com a Lei 7.700/49, que acaba com esta condição”, deve-se ler “Isso permaneceu até 1949, com a promulgação da Lei 775/49, que acaba com esta condição”;

– Onde se lê “O vínculo com a Igreja Católica era forte. Em 1942, a Escola ofereceu 12 vagas para enfermeiras católicas da”, deve-se ler “Em 1939, a Escola Anna Nery ofereceu 12 vagas para a Associação São Vicente de Paula, sendo enviadas para o curso de Enfermagem 11 religiosas, das quais dez concluíram o curso em 1942, mesmo ano em que a escola

Erramos

de Enfermagem católica chamada Escola de Enfermeiras Luíza de Marillac (a qual as re-ligiosas estavam vinculadas) teve o seu curso de Enfermagem equiparado ao da Escola de Enfermagem Anna Nery”;

– Onde se lê “A quebra desse se deu com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961, deve-se ler “A quebra da auto-nomia da Escola Anna Nery para realizar o seu próprio vestibular para o ingresso das alunas ao curso de Enfermagem se deu com a promulga-ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961, que transfere para a Universidade do Brasil (UB) essa função”;

– Onde se lê “Após isso, a escola passa a contar com estudantes, homens, sendo a primeira instituição de ensino de Enfermagem a fazê-lo”, deve-se ler “Após isso, a escola passa a contar, pela primeira vez, com a participação de estudantes do sexo masculino”;

– Onde se lê “a escola é a única instituição com Doutorado e Pós-doutorado em Enfermagem no Rio de Janeiro”, deve-se acrescentar: “é a única com Pós-doutorado em História da Enfermagem no Brasil”.

Pioneirismo na Enfermagem brasileira

Em matéria publicada no Jornal da UFRJ, ano 3 – nº 20, de setembro de 2006, intitulada “Pio-neirismo na Enfermagem Brasileira”, observamos algumas informações que não conferem com aquelas que eu, na qualidade de pesquisador no Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras), forneci durante entrevista realizada por Bruno Franco, na própria Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN/UFRJ).

Considerando a possibilidade de falhas na interpretação do conteúdo da entrevista, entendo que seria extremamente importante a providência de algumas correções, para assegurar a veracidade dos fatos históricos, do qual esta escola é protagonista por sua própria natureza, tais como:

Certo de que serão tomadas providências para que o conteúdo divulgado neste exemplar possa se dar de forma a garantir a publicação condizente com a trajetória da Enfermagem brasileira, coloco-me à disposição para qualquer esclarecimento que se fi zer necessário.

Antonio José de Almeida FilhoProfessor e pesquisador do Núcleo de Pesqui-

sa de História da Enfermagem Brasileira (Nuphebras) da EEAN/UFRJ

Na página 10 da última edição do Jornal da UFRJ, no sexto parágrafo da matéria PDI: na linha do debate, onde se lê “Há, na Faculdade de Farmácia, de oito a dez departamentos que não se comunicam”, leia-se “Há, na Faculdade de Farmácia, de oito a dez laboratórios de aulas práticas que não se comunicam”.

Com essa abordagem, a matéria, produ-zida por Taisa Gamboa, da equipe do Olhar Vital, da Agência UFRJ de Notícias/CCS, conquistou o prêmio internacional da So-ciedade Interamericana de Cardiologia e da Pfi zer, na categoria “Entrevista com Líder de Opinião”. A jornalista ouviu o professor Nelson Souza e Silva, chefe do Serviço de Car-diologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF/UFRJ), que discutiu o efeito danoso que as cardiopatias exercem

Coisas do coraçãoDurante muitos anos, achou-se que o aumento das

doenças cardíacas em mulheres era decorrente do estilo de vida moderno que fez com que elas absorvessem mais

funções sociais e econômicas. Sem tempo para cuidar da sua própria saúde, sofreriam os efeitos da alteração no ritmo de vida e passariam a ter mais doenças do coração e a morrer

mais em função delas.

Geralda Alves, da AgN UFRJ/ CCS

Esse é o título da recente publicação da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ (CoordCOM), lançada dia 26 de outubro, que compila todas as entrevistas, do tipo pingue-pongue, vei-culadas nas páginas centrais do periódico mensal da UFRJ, nos últimos anos.

Trata-se de mais um esforço de dar co-nhecimento à comu-nidade universitária e à sociedade civil acerca do que é produzido na instituição e de contribuir para a discussão dos mais variados assuntos, sejam de interesse acadêmico, político ou social.

Em suas 155 páginas, são encontradas 16 entrevistas com Ronaldo Mota, Ildeu de Cas-tro, Fernando Pamplona, Carlos Minc, Carlos Nelson Coutinho, Reinaldo Gonçalves, Nelson

Jornal da UFRJ: entrevistasSouza e Silva, José Luís Fiori, Luiz Antônio Cunha, Laura Tavares, Fernando Cardim, Ronaldo Lima Lins, Luiz Pinguelli Rosa, Ivana Ben-tes, Antônio Ledo e Nelson Maculan Filho que, efetiva-mente, lançam luz sobre os temas por eles desenvolvi-dos nas entrevistas.

A publicação conta com prefácio de Ivana Bentes, professora e di-retora da Escola de Co-municação (ECO) da UFRJ, para quem, em A universidade trans-versal e a produção do comum, “temas po-lêmicos e dissenso,

pensamentos plurais e mesmo em franca oposição, transitam

nestas páginas, editadas com profi ssionalismo, respeito e gosto pelo pensamento plural”.

A riqueza dos debates propostos pelos diver-sos entrevistados pode ser novamente apreciada nas páginas de Jornal da UFRJ: entrevistas.

Cartas

Agradecimentos

A senadora Lúcia Vânia agradece à Universidade Federal do Rio de Janeiro, em especial ao rei-tor Aloísio Teixeira e a sua equipe, pelo envio da edição de julho de 2006 do Jornal da UFRJ.

A referida publicação apresenta com maestria, e de forma objetiva, alguns temas de interesse de toda a sociedade, numa clara demonstração do potencial e da importância da universidade pública para o desenvolvimento da nação.

Atenciosamente,Vinícius Tavares

Assessor de Comunicação SocialGabinete da senadora Lúcia Vânia (PSDB/GO)

Acuso o recebimento e agradeço a gentileza da remessa dos exemplares das edições do Jornal da UFRJ e felicito essa instituição pela qualidade da publicação.

Com as expressões do nosso apreço, fi rmo-meMaurício Azedo

Presidente da Associação Brasileira de Imprensa

Coordenadoria de Comunicação da UFRJ (CoordCOM),

Trata-se de mais um esforço de dar co-nhecimento à comu-nidade universitária e à sociedade civil acerca do que é produzido na instituição e de contribuir para a discussão dos mais variados assuntos, sejam de interesse acadêmico, político

Luiz Antônio Cunha, Laura Tavares, Fernando Cardim, Ronaldo Lima Lins, Luiz Pinguelli Rosa, Ivana Ben-tes, Antônio Ledo e Nelson Maculan Filho que, efetiva-mente, lançam luz sobre os temas por eles desenvolvi-dos nas entrevistas.

A publicação conta com prefácio de Ivana Bentes, professora e di-retora da Escola de Co-municação (ECO) da UFRJ, para quem, em A universidade trans-

pensamentos plurais e mesmo em franca oposição, transitam

nestas páginas, editadas com profi ssionalismo,

sobre a mulher (ver a ín-tegra da entrevista no site http://www.olharvital.ufrj.br/ant/2006_04_20/mate-ria_microscopio.htm).

Lançado em 2005, o prêmio visa estimular os meios de comunicação a contribuir para educar a sociedade sobre pre-venção, conseqüências e tratamentos dos males crônico-degenerativos, principalmente infartos e derrames. Foram 114 trabalhos inscritos por

102 jornalistas de 12 países.Em função da expressiva participação

do Brasil, a fi lial nacional da Pfi zer agraciou os profi ssionais que fi caram nas primeiras colocações do ranking brasileiro com uma premiação inédita.

O prêmio foi dividido em Mídia eletrôni-ca e Mídia impressa, cada uma delas com três categorias: “Reportagem de Investigação”, “Entrevista com Paciente” e “Entrevista com Líder de Opinião”.

***

Outubro•2006 3UFRJJornal da

Internacional

Aline Durães, do Olhar Virtualilustração Anna Carolina Bayer

Nova ordem sideralNos últimos meses, os meios de comunicação dedicaram especial atenção ao céu.

Isso porque, em congresso realizado de 14 a 25 de agosto, os membros da União Astronômica Internacional (UAI), reunidos em Praga, capital da República Tcheca,

reconfi guraram o Sistema Solar ao defi nirem novos critérios científi cos para a denominação dos corpos celestes.

A partir dessas novas especificações, os objetos celestes são classifi cados em três categorias: planetas clássicos, planetas anões e corpos pequenos. Essa categorização remode-lou o Sistema Solar, agora com oito planetas, e ocasionou o rebaixamento de Plutão. Conside-rado, por 76 anos, o nono planeta do Sistema, recebeu nova defi nição e passou a ser encarado como um planetóide ou planeta anão.

O que, aparentemente, soou como novi-dade aos ouvidos dos cidadãos comuns não surpreendeu a comunidade astronômica. Mes-mo à época de sua descoberta, em 1930, pelo norte-americano Clyde Tombaugh, Plutão já suscitava, nos pesquisadores, dúvidas quanto à taxonomia, em função de seu reduzido ta-manho frente aos planetas vizinhos.

Os planetas do Sistema Solar seguem certa ordem de formação: Mercúrio, Vênus, Terra e Marte, por se localizarem mais próximos ao Sol, não acumularam, durante o processo de constituição, grandes quantidades de gelo e, por isso, são pequenos e compostos, principalmen-te, de rocha e metal. Já Júpiter, Saturno, Urano e Netuno são maiores, pois a distância em relação ao Sol e as baixas temperaturas permitiram a eles aglutinarem muito gelo. “Plutão quebrou essa seqüência. Ele é pequeno demais”, afi rma Gustavo Mello, professor e diretor do Obser-vatório do Valongo, do Instituto de Geociên-cias (Igeo/UFRJ).

Apesar da resistência inicial de alguns estudiosos, a UAI reconheceu Plutão como planeta. De acordo com Gustavo, existia uma forte pressão política pelo reconhecimento internacional, impulsionada pelo fato de os Estados Unidos, pela primeira vez, terem sido os atores da descoberta. “Além do mais, até ali, não havia uma discussão conceitual sobre planetas. Ninguém debatia quais características um objeto deveria ter para ser avaliado como tal”, explica o pesquisador.

Os primeiros questionamentos surgiram em 1978, quando pesquisadores encontraram Caronte, o satélite de Plutão. Ao analisar a ór-bita do corpo celeste, constataram que Plutão era menor do que se pensava até então: ele possuía cerca de 10% da massa de Mercúrio, planeta com 1/10 do tamanho da Terra. A des-coberta, nos anos 1980, do Cinturão de Kuiper (conjunto de asteróides próximos à órbita de Plutão), ajudou a acirrar a discussão.

Em 2003, astrônomos se depararam com um elemento novo no Cinturão: Éris (ini-cialmente chamado de 2003UB313, também conhecido como Xena). Esse objeto apresenta massa maior do que a de Plutão e, como esse, também possui um satélite. “Veio então a ne-cessidade urgente de se pensar o que era um planeta. Se Plutão continuasse a ser defi nido assim, outros astros também deveriam ser elevados a essa categoria, entre eles o Éris, banalizando o conceito de planeta”, afi rma Gustavo Mello.

Com o objetivo de acabar com a polêmi-ca, a UAI determinou que, para ser planeta, o objeto precisa atender a três exigências básicas: girar em torno do Sol, ser esférico e dominar os demais elementos de sua zona gravitacional. “A órbita de Plutão cruza com a de Netuno. O espaço de Plutão é comandado por Netuno. Foi isso que o desclassifi cou como planeta”, esclarece Gustavo.

Os demais corpos já conhecidos como pla-netas – Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno – preencheram os requisitos determinados pela UAI e receberam o título de planetas clássicos; a denominação de

planeta anão, enten-dido como um corpo

esférico, com órbita independente ao redor do Sol, coube a Plutão e a Éris; os cometas, asteróides e grãos de poeira, por não possuí-rem tamanho sufi ciente para serem esféricos, foram agrupados sob a denominação de corpos pequenos.

A mudançaAs recentes decisões da UAI vão suscitar a

revisão dos livros de Geografi a. O Ministério da Educação já se comprometeu a inserir as novas denominações celestes nos impressos a partir de 2008.

Gustavo Mello garante que os refl exos da reformulação do Sistema Solar e do conse-qüente rebaixamento de Plutão serão sentidos apenas nos livros didáticos. O pesquisador, que elege a Teoria Heliocêntrica de Copérnico como o principal impacto da Astronomia so-bre a cultura geral, assegura que as mudanças não irão promover grandes alterações na cos-mogonia da sociedade: “Plutão ser ou deixar de ser um planeta não vai mudar a concepção de mundo das pessoas”.

Gustavo vê com bons olhos o alarde midiá-tico em torno das alterações denominacionais dos corpos celestes. Segundo ele, as notícias relacionadas à Astronomia despertam in-teresse nas pessoas e, nesse sentido, podem ajudar a promover a alfabetização científi ca da população. “A Astronomia pode ser a porta de entrada para outras áreas, como a Física e a Química”, acredita o professor.

Conceitos frágeisAs inovações tecnológicas desenvolvidas

nos últimos dois séculos não permitiram aos astrônomos conhecerem, por completo, o Sistema Solar. A região onde se localiza Plutão, em especial, foi pouco explorada pelos pesqui-sadores; a possibilidade de novas descobertas concede aos conceitos estabelecidos em Praga um caráter provisório. “Daqui a pouco, pode-mos descobrir algum objeto novo que mude toda essa história”, alerta Gustavo Mello.

O pesquisador teme que o novo rótulo iniba missões científi cas à Plutão. Ele afi rma que o planetóide continua a ser imprescindível para o entendimento do Sistema Solar primor-dial. “Plutão, assim como os objetos próximos a ele, é um fóssil vivo; a sua composição quí-mica é a mesma do início do universo. Ele deixou de ser planeta, mas não deixou de ser cientifi camente interessante”, avalia Gustavo.

Congresso da UAI no Brasil

A União Astronômica Internacio-nal (UAI) é um organismo mundial que reúne as sociedades nacionais de Astronomia. A cada três anos, os membros da UAI se encontram em uma assembléia geral para discutir os principais temas relacionados aos corpos celestes.

O Brasil sediará, pela primeira vez, em 2009, um congresso geral da UAI. Profi ssionais do Observatório do Valongo estão, desde já, envol-vidos na organização do evento, a ser realizado no Rio de Janeiro. A assembléia já tem como pauta de discussão a possível elevação de Ceres – maior asteróide do Cinturão Principal, localizado entre Marte e Júpiter – ao status de planeta anão.

4 Outubro•2006UFRJJornal da

Internacional

Coryntho Baldezilustração Jefferson Nepomuceno

As idéias-força do pensa-mento econômico do inglês John Maynard Keynes (1883-1946) parecem ter sobrevivido à sentença de morte decretada, nas últimas décadas, pela cor-rente neoliberal. Decorridos 70 anos da publicação do livro apontado como peça-chave do seu pensamento – A teoria geral do emprego, do juro e da moeda (Atlas, 1998), do original inglês The General Theory of Em-ployment, Interest and Money (1936) – o tema do estímulo ao pleno emprego por meio da ação estatal volta revigorado ao debate públi-co, após sucessivos cenários de terra arrasada patrocinados pela desregulação do mercado em muitas economias do mundo. Mas, mesmo antes de sua morte, já havia gente disposta a enterrar Keynes, lembra João Sicsú, professor do Instituto de Economia (IE/UFRJ). Uma absoluta impossibilidade – afi rma – como demonstram o atual debate de idéias e a ex-periência histórica do pós-guerra.

Hoje, muitos dos países que honram o ró-tulo de “em desenvolvimento” geram milhões de empregos com base em políticas econô-micas expansionistas, analisa Sicsú. Como

exemplos, cita as “políticas keynesianas”, adotadas na Índia, na China, na Coréia do Sul e, mais recentemente, na Argentina. Na mão inversa, aqueles países que adotaram diretrizes econômicas neoliberais ou “clássicas”, com base no chamado Consenso de Washington, conviveram com graves problemas sociais. É o caso da Argentina, na década de 1990, e do Brasil, até os dias atuais – aponta Sicsú. “São experiências que mostram que quanto mais longe está o Estado da economia, menos ela cresce, maior é o desemprego e mais voláteis são as taxas de câmbio”, enfatiza o professor.

Um marco do século XXFoi na década de 1930, quando o capitalis-

mo via seus alicerces ameaçarem ruir devido à Grande Depressão, que Keynes elaborou as bases teóricas que permitiram que a Europa,

os Estados Unidos e o Japão – após a II Guerra Mundial – entrassem

em uma era de prosperidade, expansão do emprego e re-

distribuição de renda. “A teoria geral foi a obra de

economia mais impor-tante do século XX”,

afi rma Fernando Car-dim, também pro-fessor do IE/UFRJ. Segundo ele, o livro exerceu forte im-pacto teórico – “o debate em macro-economia gira até hoje em torno da oposição entre key-nesianos e clássicos”

– e consolidou a idéia de que governos têm

responsabilidade pela busca do pleno empre-

go, embora muitos somente assumam tal compromisso para efeitos propagandísticos.

A grande novidade de Keynes foi propor que, numa economia de mercado, a pros-peridade dependa menos da existência de recursos materiais do que dos estímulos à sua utilização – esclarece Cardim. Portanto, o principal incentivo à produção e ao inves-timento, no capitalismo, é a expectativa dos empresários de que o seu produto poderá ser vendido. Segundo Cardim, o economista inglês mostrou o papel essencial da demanda – assim como os obstáculos à sua formação – na motivação da produção de uma econo-mia de mercado.

João Sicsú também concorda que Keynes provocou uma espécie de revolução à sua época, ao demolir as bases teóricas da ortodo-xia, defendida por economistas que rotula de “clássicos”. “Ele demonstrou que a livre ação das forças de mercado pode produzir infl ação, desemprego e desigualdades signifi cativas de renda e de riqueza”, ressalta Sicsú. O que Keynes fez, portanto, foi romper com a lógica do laissez-faire, da mão invisível do mercado e do Estado mínimo. Para Sicsú, Karl Marx tinha feito a crítica ao sistema com o objetivo de demoli-lo. Já Keynes fez a crítica ao modo de funcionamento do sistema tendo em vista uma sociedade com pleno emprego e reduzi-das desigualdades de renda e de riqueza. “A utopia de Marx era o socialismo, a utopia de Keynes era colocar o capitalismo a serviço do bem-estar social”, compara o professor.

Ativo reformadorAs idéias de Keynes ultrapassaram os

muros acadêmicos e se materializaram em amplas políticas econômicas adotadas nas décadas subseqüentes à II Guerra Mundial. Para Fernando Cardim, Keynes não foi apenas o maior economista do século XX.

Foi também um ativo reformador político e social, tomando parte pessoalmente em muitas iniciativas de reforma até sua mor-te, em 1946. Segundo ele, influenciados por Keynes, os governos norte-americano e inglês assumiram o compromisso com a busca e a sustentação do pleno emprego, logo ao fi nal da guerra, dando um grande passo para mudar o papel do Estado na condução da economia. “Na Inglaterra, esse consenso somente foi rompido no governo Th atcher”, comenta. Também nos EUA foram adotadas políticas de pleno emprego e de reforma social inspiradas diretamente por Keynes – frisa Cardim, sem esquecer de citar a dí-vida social “explicitamente reconhecida” da democracia escandinava para com Keynes.

Mesmo a política econômica no Brasil adotou pressupostos keynesianos, em inicia-tivas como o Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek, assinala. “Mas, nas últimas décadas, as infl uências intelectuais sobre as escolhas de política econômica no Brasil têm sido muito mais retrógradas, le-vando o Estado a promover a estagnação e o desemprego”, lamenta Cardim.

A base keynesiana do plano de recons-trução da Europa e do Japão, no pós-guerra, se evidencia na previsão de investimentos públicos e nas formas de fi nanciá-los, se-gundo João Sicsú. “São ações que facilitam o investimento privado porque a demanda por seus produtos fi ca garantida pelos gastos públicos. Assim, a economia cresce e gera milhões de empregos”, destaca. Já nos EUA, ele lembra que foi nos governos de John Kennedy e Lyndon Johnson que a teoria de Keynes foi consagrada, merecendo até capa da revista Time, em 31 de dezembro de 1965, em edição que faz balanço extremamente positivo das políticas inspiradas pelo eco-nomista inglês.

A teoria geral completa 70 anos no momento em que Keynes volta a infl uenciar os rumos da

economia mundial.

Keynes: a hora da forra?

à Grande Depressão, que Keynes elaborou as bases teóricas que permitiram que a Europa,

os Estados Unidos e o Japão – após a II Guerra Mundial – entrassem

em uma era de prosperidade, expansão do emprego e re-

distribuição de renda. “teoria geral

economia mais impor-tante do século XX”,

afi rma Fernando Car-dim, também pro-fessor do IE/UFRJ. Segundo ele, o livro

hoje em torno da oposição entre key-nesianos e clássicos”

– e consolidou a idéia de que governos têm

responsabilidade pela busca do pleno empre-

Outubro•2006 5UFRJJornal da

Internacional

De acordo com o professor João Sicsú, do IE/UFRJ, a principal idéia de Keynes é que a soma livre dos interesses individuais não gera um resultado ótimo para a sociedade. Quando, por exemplo, um empresá-rio demite trabalhadores para defen-der o lucro do seu negócio provoca um mal social, o desemprego. “Os indivíduos buscam o melhor para si. O governo deve buscar o que é o melhor para a sociedade”, afi rma. O Estado e o governo devem, portanto, dirigir ou, até mesmo, contrariar impulsos individuais para prover resultados ótimos para a sociedade – comenta.

Diante disso, é necessário utilizar instituições do Estado e políticas macroeconômicas de governo para conduzir as forças de mercado em direção aos objetivos desejados pela sociedade. E o mais importante de-les, para Keynes, é o pleno emprego. Essas idéias do economista inglês – sublinha João Sicsú – penetraram nas universidades, nas sociedades, e passaram a balizar ações dos inú-meros governos desde a metade do século XX.

A força de uma idéiaKeynes hoje

Sobre a afi rmação de alguns economistas de que o mundo viveria um momento anti-keyne-siano, Fernando Cardim considera a situação atual mais complexa. Se-gundo ele, o debate teó-rico continua sendo tra-vado entre keynesianos e clássicos, com vantagem para os primeiros, de-pois do predomínio dos “novos clássicos” até os anos 1980. “A política monetária do país mais bem-sucedido dos úl-timos anos, a Suécia, tem base keynesiana e reconhece a necessida-de de o banco central se engajar na luta pelo pleno emprego”, afi rma o professor. É uma polí-tica inversa à estreiteza intelectual que marca a ação de autoridades monetárias “em alguns países ao sul do Equador” – ironiza. O fato é que onde o pensamento “clássico” prevale-ce, segundo Cardim, também prevalecem a estagnação e o desemprego.

Nas condições históricas atuais, seria possível pensar em políticas keynesianas para países subdesenvolvidos, como o Brasil? Para

Fernando Cardim, não existem receitas pron-tas aplicáveis a qualquer país. “Quem acredita nisso é exatamente o chamado neolibera-lismo e instituições que, por muito tempo,

pareciam aplicar receitas únicas para qualquer país, como foi o caso do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, destaca. Para qualquer mudança de rota na po-lítica macroeconômica, Cardim aponta o com-promisso com o pleno emprego como a coisa mais importante. “Há muito a ser feito, mas tudo começa com uma mudança de perspectiva. A herança de Fernando Henrique Cardoso, de um Estado ausente, pre-

ocupado apenas com estabilidade de preços, já conquistada, por sinal, é extremamente deletéria e tem de ser superada”, enfatiza.

Fernando Cardim considera o recente debate sobre contenção de gastos para ga-rantir o crescimento sustentado como fruto da polarização eleitoral que o país viveu. Não há dúvida, para ele, de que há um problema fi scal a ser atacado e que défi cits fi scais per-

manentes não são sustentáveis. A retórica conservadora insiste em que tudo se resume a um problema previdenciário e joga a culpa no serviço da dívida pública – analisa. Para ele, é preciso achar alternativas que contemplem, por um lado, uma redução drástica do serviço da dívida, mas que também levem a uma recu-peração do controle sobre despesas públicas. “Além disso, política fi scal é apenas um dos instrumentos possíveis. É preciso mudar a política monetária e a cambial, para evitar a permanência do binômio juros altos e câmbio sobrevalorizado”, frisa o economista.

Para João Sicsú, Keynes pode sim servir de inspiração para mudar o modelo macroeco-nômico do Brasil, o que envolveria alterações nas taxas de juros, de câmbio e na política de gastos do governo. “Hoje, o modelo é de semi-estagnação, que leva a um crescimento médio de 2,5% ao ano”, afi rma.

Quanto à possibilidade real de mudanças substanciais na economia, em um segundo mandato de Lula, acha que isso somente acon-tecerá se a corrente novo-desenvolvimentista presente no interior do Partido dos Trabalha-dores (PT) prevalecer. “Pode-se até dizer que esse é um temor do sistema fi nanceiro”, avalia. Saindo fortalecida, segundo Sicsú, essa corren-te poderia tentar reunir o capital político que acumulou para reverter o modelo econômico conservador adotado nos últimos 12 anos.

Nas condições históricas

atuais, seria possível pensar

em políticas keynesianas para países

subdesenvolvidos, como o Brasil?

6 Outubro•2006UFRJJornal da

História

ilustração Patrícia PerezJoana Jahara

Como tudo na história do cristianismo, cada detalhe tem

um sentido simbólico intenso que perpassa os tempos. É justamente

esse caráter incerto que fascina os estudiosos. Afi nal, são dois mil

anos de uma doutrina que, no fi m das contas, triunfou apesar da

morte de seu fundador.

As múltiplas faces do cristianismo

O que isso tem a ver com a vida cotidiana? O cristianismo somente pôde se tornar objeto de investigação, a partir do século XVII, na Europa, no bojo do Iluminismo, movimento que marcou o Ocidente, fenômeno que se inicia no âmbito fi losófi co, mas que, rapidamente, se estende para todo o conjunto da sociedade. André Chevitarese, professor do Laboratório de História Antiga do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ e autor da obra Jesus de Nazaré: uma outra história (AnnaBlume, 2006) ressalta que esse fenômeno ocorre quase que paralelamente à separação, na Europa, do Estado e da religião, no fi nal do século XVII e início do século XVIII. “O cristianismo continua tendo um papel decisivo e importante. Porém, está alijado das decisões de Estado e isso, de tal maneira, possibilitou um avanço nas pesquisas sobre sua doutrina”, destaca o professor.

Movimento pluralChevitarese afi rma que os pesquisadores

não admitem mais a existência de um único judaísmo ou um cristianismo singular. “Nós pluralizamos essas duas categorias. Do judaísmo, um movimento composto de diferentes facções como o dos fariseus, dos saduceus, dos essênios, a dos judeus da Diáspora e dos judeus da Galiléia, nasceu também uma outra facção originariamente judaica e que se denominou O caminho, posteriormente chamada de cristianismo. Jesus nasceu judeu e morreu judeu. Os seus primeiros discípulos nasceram judeus e morreram judeus”, sintetiza o historiador.

A religião cristã vai trilhar o mesmo caminho da pluralidade. “Do ponto de vista histórico, poucos são os pesquisadores que admitem hoje um cristianismo monolítico originário. É ao contrário, na medida em que se avança o

século I, essa pluralidade aparece e é cada vez maior, nos evangelhos. Em um período entre 40 e 50 anos, várias cristologias convivem e nenhuma delas supera as demais. Isso nos faz perceber que, então, não se pretendeu eleger uma como a mais certa e se reconheceu formas que vão desde um cristianismo marcadamente popular, mágico, até um cristianismo extremamente refi nado das chamadas igrejas históricas”, afi rma Chevitarese.

Muitas dessas denominações religiosas ainda se conhecem, outras simplesmente deixaram de existir. Como lembra Chevitarese, “entre os anos 140 e 160, portanto pouco mais de 100 anos da existência histórica de Jesus, o bispo de uma igreja, chamado Marcião, defende que o cristianismo reconheça, única e exclusivamente, as cartas de Paulo e o Evangelho de Lucas. E enfatiza que todos os outros textos sobre o

Jesus que veio dar cumprimento às promessas do Deus dos judeus, devam ser ignorados, porque o Deus dos judeus é vingativo e mau.Essa percepção não vingou, embora tivesse, naquela época, muitos adeptos”.

A chave para um bom entendimento dessa pluralidade de igrejas cristãs, sejam elas católica, batista, luterana, presbiteriana e anglicana, remete ao século I: “é nesse período que se percebe o quanto essas comunidades do tipo lucana, mateana, joanina, marcana, paulina e tomesina estavam disseminadas, mesmo sem nunca terem se comunicado, de modo que foram produzindo uma gama de percepções para além do judaísmo original”, esclarece Chevitarese.

Eduardo Refk alefsky, professor da Escola de Comunicação (ECO), também da UFRJ, destaca o tripé conceitual do cristianismo. “Tudo que

Outubro•2006 7UFRJJornal da

NacionalHistória

está sendo discutido hoje corresponde ao resumo de três elementos: o Direito Romano, a Filosofia Grega, bastante influenciada pelo pensamento de Platão e Aristóteles, e a Teologia do cristianismo e do judaísmo. A essência do cristianismo comporta duas partes: os evangelhos, que apresentam relatos diretos da vida de Jesus e a carta dos apóstolos, as epístolas, que na verdade são transposições de Jesus para o mundo helênico. A teologia mais fi losófi ca, voltada para o mundo grego, aparece no Evangelho de João (cerca de 85 d.C), enquanto que nos evangelhos conhecidos como sinóticos de Mateus (cerca de 50 a 75 d.C), Marcos (cerca de 50 a 75 d.C) e Lucas (cerca de 80 a 130 d.C), são bastante parecidos”, explica o professor.

Império RomanoNo interior dessa pluralidade surge a Igreja

Católica, estudada do ponto de vista acadêmico, principalmente, a partir do final da Idade Média. “No momento em que essa igreja se transforma em poder, ela vai bater o martelo sob quais textos são considerados verdadeiros. Os que não são considerados verdadeiros, ou inspirados, vão ser reprimidos, destruídos, e, as comunidades que os proferem são taxadas de heréticas e vão ser perseguidas. Ou aceitam o credo ou conhecem o peso da espada”, ressalta Chevitarese.

Comunidades e textos que adotavam leituras por demais anti-romanas, vão fi cando para trás. “Em um primeiro momento o cristianismo era perseguido pelo Império Romano e depois se torna a religião quase que ofi cial desse império. O que levou o mundo romano a aceitar o cristianismo foi, em parte, a compreensão que tinha do paganismo. Os diversos níveis da sociedade buscavam uma resposta universalista de concepção moral”, explica Refk alefsky.

A Igreja Católica chega ao poder com a conversão do imperador Constantino, no início do século IV. André Chevitarese lembra que o Concílio de Nicéia (325 d.C.) é o ponto de partida para a defi nição das diretrizes fundantes de uma ortodoxia. Eduardo Refk alefsky vai além. Afi rma que a Igreja Católica não cresceu com o Império Romano, mas passou, de certa forma, a ser o Império Romano. “Com a queda desse império (fi nal do século V), toda a estrutura política militar ruiu, mas a Igreja manteve certa estrutura administrativa nas cidades. A queda do Império Romano acabou favorecendo o seu fortalecimento”, avalia.

A decadência do Império Romano não signifi cou a implantação de um modelo novo. As tribos bárbaras passaram por um processo de conversão ao cristianismo por infl uência de Clóvis, o rei bárbaro dos francos, que enxerga na Igreja Católica certa estrutura consolidada. Mas, foi a partir do imperador Carlos Magno (século VIII), com a benção do papa Leão III, que teve origem uma sociedade cristã total.

Foi um processo civilizatório amplo, em que a Igreja acompanhou a criação de leis, o surgimento dos Estados anglo-saxões, a agricultura e mesmo o comércio, apesar da crença de que seria contrária ao lucro. A tortura passou a ser vista como um meio legal para se punir criminosos, a luta entre seitas destruía a população de vários vilarejos, e a Igreja foi se encantando pelas riquezas. Além disso, os ensinamentos de Cristo estavam repletos de uma teologia túrgida, onde o fi el não sabia se devia obedecer à sua consciência ou ao papa que representava a linhagem direta de São Pedro. O que resultou em mais perseguições que puseram em risco o próprio cristianismo.

Percepções cristãsEduardo Refk alefsky aponta os evangelhos

sinóticos como ponto de partida para a refl exão moral do cristianismo. “Se pegar os textos originais, há uma série de restrições morais radicais, mas algumas delas vão se abrandando em decorrência, principalmente, da Reforma Protestante no século XVI. Questões como a livre interpretação da Bíblia e rezar a missa de frente para os fi éis se tornaram hábito, já que as igrejas protestantes faziam isso. Sem deixar de enfatizar que durante esse período surgiram diversas críticas à degeneração moral do clero. Não foi por acaso que Calvino e Lutero, os primeiros reformadores, tentam voltar à letra das escrituras”, afi rma o professor.

Certas atitudes da Igreja Católica ainda causam polêmica, como a proibição de preservativos e anticoncepcionais e o celibato para padres. Isso porque a partir do Iluminismo a razão ganha relevância. “A igreja teve e continua a ter que enfrentar esse problema: o que é a fé hoje em dia, já que a ciência explica uma diversidade de questões? Defende-se a autonomia, os direitos dos homens, há o desenvolvimento de uma ciência chamada religião comparada, onde se mostram pontos comuns entre doutrinas de qualquer lugar

do mundo. Tudo isso fez a Igreja Católica perder espaço, enquanto que as protestantes, nascidas nesse contexto, se tornaram mais adequadas à modernidade, por terem um culto mais racional, simplifi cado e se ater mais à palavra. As igrejas protestantes possuem maior fl exibilidade enquanto que a Católica apresenta uma estrutura muito pesada e centralizada”, opina Refk alefsky.

Para André Chevitarese, constata-se na América Latina o nascimento do pentecostalismo e a sua difusão com muita força. “No cristianismo, que denomino de histórico, há um marco, em 1054, com a criação da Igreja Cristã Oriental, principalmente a de língua grega – um ramo ortodoxo. No século XVI, com a Reforma Protestante, ocorre uma nova separação, agora entre ortodoxos, luteranos e calvinistas. Hoje, os que mais crescem não são os ramos mais históricos, mas os pentecostais, em grande parte infl uenciados pelo movimento reformista americano do século XIX, cindindo o protestantismo, com o surgimento das igrejas evangélicas, que não enfatizam somente o dom do evangelho, de ler as escrituras, mas apropriam, também, o dom da profecia, do Espírito Santo e da cura”, destaca o professor.

Para Eduardo Ref ka le f sky, o racionalismo influenciou até mesmo o Concílio Vaticano II, de 1962. “Depois houve um retrocesso. Na Igreja Católica ganham espaço vertentes mais conservadoras, como a Opus Dei. As igrejas protestantes param de crescer, ao contrário do pentecostalismo, que consegue apresentar uma doutrina com características pré-modernas, modernas e pós-modernas. As pré-modernas mostram a idéia de um universo manipulável pela magia, através da troca com divindades, por exemplo, oferendas para Orixás ou romarias e penitências para os santos católicos. No pentecostalismo a ‘magia’ seriam os dons do Espírito Santo. Os elementos modernos aparecem na autonomia

do indivíduo e na importância do esforço individual e do trabalho. E o pós-modernismo avança porque o indivíduo pertence a diversos grupos sociais. A Iurd (Igreja Universal do Reino de Deus), em grande parte, cresceu porque conseguiu congregar tanto os fi éis ‘de carteirinha’, que vão à Igreja mais de uma vez por semana, quanto pessoas que pouco vão, não se convertem ou pertencem até a outras denominações evangélicas, ou mesmo outras religiões. Somente vão à Iurd para fazer pedidos, participar de correntes ou com algum fim específi co”, explica Refk alefsky.

De acordo com Chevitarese, podemos encontrar traços democráticos na base do cristianismo. “Mesmo assim, a sociedade ainda é muito contaminada pelas percepções dogmáticas das grandes correntes cristãs. Luteranos, presbiterianos, anglicanos e calvinistas, acabam aparecendo no campo da historiografi a como as verdadeiras formas de se ler o cristianismo”, constata o professor.

8 Outubro•2006UFRJJornal da

Nacional

Coryntho Baldezilustração Jefferson Nepomuceno

O caminhão de votos despejados em Lula da Silva levou-o a afi rmar que o país vivia um “momento mágico”. Afi nal, a ofensiva belige-rante da oposição, com o auxílio da grande mídia, naufragou por completo no segundo turno e também deixou em estado de graça massas de eleitores que, por vários motivos, cerraram fi leiras em torno de um presidente que sai das urnas fortalecido.

No cenário pós-eleição, ainda que a oposição corra atrás de um improvável ter-ceiro round – o impeachment presidencial – o tema que inicialmente ocupará a agenda congressual, em breve, será o funcionamento do sistema político-partidário. Depois das sucessivas crises (caixa dois, “mensalão”, guerra de dossiês etc.), a reforma política e o fortalecimento dos partidos aparecem

Depois da eleição, a bonança?

Os desafi os do novo quadro político no segundo mandato de Lula da Silva.

na voz de políticos e observadores como a salvação da sacrossanta “governabilidade institucional” em um segundo mandato de Lula – que tocou no assunto em seu primeiro pronunciamento depois de eleito, na noite de 29 de outubro.

Mas, conseguirá o presidente montar uma coalização programática e conjurar o “toma-lá-dá-cá” com uma Câmara Federal

que se renovou pouco – 47,5%, incluindo a volta de antigos parlamentares – e tendo ao lado o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), cuja aderência atávica ao poder é sempre preocupante? Possíveis mu-danças nas regras eleitorais e partidárias vão, automaticamente, criar um ambiente de es-tabilidade e aperfeiçoar o sistema político do país? E, ainda, que agenda real de reformas

Outubro•2006 9UFRJJornal da

estava eclipsada pela retórica acusatória das eleições e, agora, se mostrará ao brasileiro com mais clareza? São questões que, a partir de 2007, vão ganhar maior nitidez.Modelo midiático

Desde a promulgação da Constituição de 1988 até hoje, foram apresentadas, no Congresso, quase 200 propostas de mudanças no sistema de representação político-eleitoral. Algumas das alterações aprovadas são signifi cativas, mas nasceram de interesses pragmáticos e circunstanciais de determinados partidos, como a aprovação da emenda da reeleição para cargos execu-tivos, em 1997.

Nas bases em que hoje funciona, o mo-delo político brasileiro representa melhor todos os estratos da sociedade? “Antes de adjetivar a nossa democracia, lembremos que esse foi o processo que conseguimos ela-borar”, opina a cientista política Ingrid Sarti, professora do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), que acaba de lançar o livro Da outra margem do rio: os partidos políticos em busca da utopia (Relume Du-mará, 2006).

Sarti avalia que as agremiações partidá-rias conseguiram ter um perfi l mais defi nido, apesar das difi culdades que enfrentam para se adequar ao atual “modelo midiático”. Se-gundo ela, nem Rousseau poderia imaginar que o que dizia no século XVIII – “parecer é mais importante do que o ser” – teria a dimensão que tem hoje. Para a professora, a expansão da indústria da mídia – acentuada no Brasil pelo notório monopólio da rede Globo e sua avassaladora infl uência cultural e política – autoriza o emprego de conceitos como representação midiática e videopo-lítica. Ainda assim, acredita que o sistema democrático evoluiu e suporta hoje, por

exemplo, uma ampla discussão sobre cor-rupção, uma prática que sempre existiu no Brasil. “Na reeleição de Fernando Henrique Cardoso, não se divul-gava e nem se discutia amplamente, na tevê e nas colunas políticas, a acusação de compra de votos no Congresso para a aprovação da emenda da reeleição”, lembra a pesquisadora.

Rebelião nas urnasIngrid Sarti – que

coordena o Programa de Pós-graduação em Ciência Política do IFCS – também acredita que a sociedade brasileira evoluiu, nos últimos 20 anos. Ampliando o enfoque, afi rma que os povos da América Latina estão mostrando, nas urnas, um ine-quívoco descontentamento com a falta de resultados sociais das políticas econômicas adotadas na era da globalização neoliberal.

Fidelidade: pilar da reforma

Ingrid Sarti considera a fi deli-dade partidária essencial em uma possível reforma política. É um me-canismo que, segundo ela, levaria a compromissos mais claros dos fi lia-dos com o programa partidário: “o parlamentar que quisesse trocar de camisa, deveria perder o mandato e devolvê-lo ao partido”.

A professora da UFRJ também defende maior fi scalização do Tri-bunal Eleitoral. O sentimento de impunidade ainda prevalece e o eleito sente-se à vontade para “fazer qualquer coisa, deixando de prestar contas de seus gastos e insistindo em práticas absurdas, como o nepotis-mo”, frisa.

A cláusula de barreira, para Sarti, também pode fortalecer os partidos. Neste ano, em que vigorou pela pri-meira vez, 14 partidos foram “bar-rados no baile” e apenas sete cum-priram suas exigências. O rearranjo partidário que vai resultar disso será bom ou ruim? “Acho perfeitamente natural que caminhemos para esse processo”, afi rma a cientista políti-ca, acrescentando que muitas siglas aparecem como arranjos de última hora para determinada eleição. Ela considera positivo o fato de que al-guns partidos vão ter que negociar entre si e chegar a acordos para sobreviver.

A cláusula de barreira não ex-tingue o partido, mas impede, por exemplo, que tenha acesso às verbas do Fundo Partidário e ao horário gratuito na tevê e no rádio.

O maior de todos os seus

desafios é saber como

vão se tornar, efetivamente,

porta-vozes da sociedade organizada.

Ingrid Sarti

Após a guerra do segundo turno, sustenta que o grande desafi o dos partidos políticos, especialmente os que têm raízes na esquer-

da, não é saber como se adaptar aos tempos mi-diáticos ou às novas leis da reforma eleitoral. “O maior de todos os seus desafios é saber como vão se tornar, efetiva-mente, porta-vozes da sociedade organizada, dos movimentos ligados aos direitos dos negros, das mulheres, dos sem-terra, dos índios, entre outros”, afi rma Sarti.

Ao olhar para o atual momento partidário, a cientista política che-ga à conclusão de que o país não conseguiu construir, como a maior parte das democracias

liberais, uma hegemonia do centro. Embora muitos digam que o debate entre a esquerda e a direita está superado, avalia que as eleições de 2006 desmentem isso de “forma quase

Nacional

inesperada”. Sarti enfatiza que os grandes partidos que poderiam convergir para o centro, para grandes alianças, se afi rmaram com perfi s ideológicos muito distintos. Para ela, os oito anos de uma política neoliberal identifi cam o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) muito mais com a direita do que com uma possível social-democra-cia que pretendia assimilar. E o que marca o Partido dos Trabalhadores (PT), mesmo com os graves problemas que o afetam, ainda é o discurso de viés social, que ganhou coloração mais forte no segundo turno – comenta.

No entanto, admite que a atual política econômica ainda é um fl anco aberto às críticas de que o governo Lula vem repetindo fórmulas que o PSDB aplicou à economia. “Mas, o que acho interessante é que o PT mantém, em 2006, um projeto desenvolvimentista, que confere ao Estado um papel de promotor de políticas sociais, efetivamente”, destaca Sarti – que vê com bastante otimismo um novo mandato de Lula, especialmente se priorizar a aliança com o “setor democrático” do PMDB, reatar vínculos com os movimentos sociais e recuperar temas fundantes da proposta histórica do PT. Mas, se o governo estará à altura de tal desafi o, ainda é uma incógnita.

10 Outubro•2006UFRJJornal da

Nacional

Rodrigo Ricardofotos Juliano Pires

Drogas: hipocrisia e tabu

Em plena Era das Comunicações discutir o consumo de drogas não chega a ser inter-dito, mas costuma entrincheirar discursos de apologia ou de repressão. O tema volta à tona motivado em parte pela instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com a Lei 11.343/06, que retira a cadeia como punição aos usuários e dependentes e, por outro lado, prevê penas mais duras para o tráfi co. Uma legislação, em vigor desde meados de outubro, que divide estudiosos e que ainda não foi objeto de um debate autenticamente democrático.

Raízes milenaresDe acordo com Gilberto Velho, professor

e chefe do Departamento de Antropologia do Museu Nacional (MN/UFRJ), em prati-camente todas as sociedades encontramos situações em que a alteração dos estados de consciência não somente é reconhecida, como valorizada. “O uso de drogas tem raízes antiqüíssimas e está freqüentemente

associado à dimensão místico-religiosa. Con-temporaneamente, relaciona-se a fenômenos culturais variados, como a religião, a festa, a sociabilidade”, destaca Velho.

O antropólogo lembra que, entre 1960 e 1970, se intensifi cou o uso de substâncias como a maconha, o ácido lisérgico (LSD), entre outras drogas, na busca de novas formas de percepção da realidade, sobretudo por seg-mentos jovens, hippies e variantes. Contudo, o que alterou drasticamente o clima “paz e amor”, dessas décadas, foi o desenvolvimento do tráfi co associado ao de armas. “O fenôme-no é internacional, mas no caso brasileiro está inextricavelmente associado à violência de natureza epidêmica. Há que encarar, portanto, se a proibição, a ilegalidade e a coerção poli-cial são os melhores métodos para lidar com essa problemática. O uso de drogas em si não produz inevitavelmente criminalidade, mas, desgraçadamente, foi apropriado e tornou-se peça fundamental na crise que assola a nossa sociedade”, afi rma Gilberto Velho.

O olhar clínicoDo ponto de vista clínico, parece não

haver justificativa para as drogas serem classifi cadas em lícitas ou ilícitas. O taba-co, por exemplo, tem um difícil processo de interrupção, ainda que provoque pouca alteração de comportamento. Entre as subs-tâncias consideradas proibidas no Brasil, a cocaína e o seu subproduto, o crack, são as que levam à dependência com mais rapidez, trazendo inúmeros prejuízos sociais, físicos e mentais.

Marcelo Cruz, coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (Projad), do Instituto de Psiquiatria (Ipub/UFRJ), explica que a dependência ocorre numa interação de fatores biopsico-sociais e que, muitas vezes, apenas a força de vontade não basta para dar fi m a essa relação. “As pessoas ainda têm muita vergonha em admitir o problema. Mas existem esforços, treinamentos e capacitações cada vez maiores dos profi ssionais para se proporcionar ajuda

aos pacientes”, informa Cruz. Para ele, as dro-gas precisam ser encaradas como qualquer problema que envolva danos e riscos. “Di-minuir a força da punição sobre os usuários é um bom caminho, um passo importante. Há a necessidade de controle social, assim como sobre beber e dirigir ao mesmo tempo, que faz dez mil vítimas por ano no trânsito. O que me parece um equívoco é tratar o caso apenas de uma forma legalista, como se pudesse ser resolvido na base da repressão”, opina o especialista.

Nilo Batista, criminalista e professor de Direito Penal da Faculdade Direito (FD/ UFRJ), não tem a menor dúvida “do fracasso retumbante” das políticas sobre as drogas capitaneadas pelos Estados Unidos da América (War On Drugs). O professor expõe como prova, a indústria cinematográfica – que após o fi m da Guerra Fria – substitui o inimigo ruivo da KGB (polícia secreta russa) pelo narcotrafi cante latino: “eles trocam. Ao invés de escolas de guerra passam a exportar

Outubro•2006 11UFRJJornal da

UniversidadeNacional

Mais do que uma estratégia de sobre-

vivência, a juventude encontra nessa ativi-dade uma maneira de ter acesso a bens materiais valoriza-dos pela sociedade

de consumo.Michel Misse

escolas de polícia. Por que todo o mundo somente fala em combate? Não sei se a le-galização resolveria, mas o que fi zeram, até agora, nada resolveu”.

Marcelo Cruz também tem dúvida sobre os impactos dessas políticas. Uma hipótese que deve considerar a evolução do consumo e dos riscos das pessoas passarem do limites: “antes desse passo, precisamos fazer estudos, aumentar a quantidade de informações e ver os resultados de políticas mais tolerantes dos países europeus. De qualquer modo, é uma boa pergunta”.

Sob o foco da correlação de forças e da conjuntura internacional, varrida por uma onda conservadora que avança na Europa e se mantém fi rme nos EUA, Michel Misse, sociólogo e professor do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), entende que o governo conseguiu aprovar o possível no Congresso Nacional. Avalia o pesquisador que “apesar de tímida, essa lei já é melhor do que a anterior. Não adianta fi carmos achando que deveria ser mais avançada. A maioria condena as drogas e exige uma forte reação moral. Incomoda as sociedades modernas a possibilidade de as pessoas perderem a noção de responsa-bilidade, essa espé-cie de economia de repressão, defi nida por Foucault, que nos ensinam desde pequenos para nos controlarmos”.

Aspectos legaise o “boom”carcerário

Antigo defen-sor da bandeira da legalização, o deputado estadual Carlos Minc (PT/RJ) – professor li-cenciado da UFRJ – lamenta que não exista, no momento, no país, nenhum movimento social consistente reivindicando a descrimi-nalização das drogas. Segundo o parlamentar, não houve nenhuma modifi cação em relação ao projeto de lei original quanto à punição de fi nanciadores e comerciantes do tráfi co.

Minc ressalta ainda progressos como o fi m da prisão para quem plantar ou for pego, mesmo em fl agrante, com uma quantidade de drogas destinada ao consumo pessoal. A lei determina que se estabeleçam penas alter-

nativas para os usuários infratores. Caberá aos juizados especiais decidir a punição, que pode ser de advertência, de prestação de ser-viços comunitários ou de comparecimento a um programa de recuperação. Entretanto, o deputado também lança críticas à legislação “por transformar em trafi cante quem oferece droga a algum amigo, mesmo sem objetivo de lucro, para que consumam juntos”. Além disso, Minc se diz contrário ao aumento da pena mínima relacionada ao tráfi co de três para cinco anos, “o que abarrotará as prisões de jovens pobres”, destacando que o mais efi -ciente seria trabalhar com penas alternativas para os delitos em que não haja emprego de violência.

Carlos Minc ainda promete articular com deputados federais e senadores a supressão e a modifi cação de determinados pontos da lei. Um dos alvos é o Parágrafo 2º, do Artigo 28, que especifi ca que o juiz “atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pesso-ais do agente” para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal. Um texto

que, para Minc, abre brechas para práticas discrimi-natórias, pois “a linha de demarca-ção entre usuário e trafi cante poderá ser interpretada a partir das carac-terísticas sociais e pessoais do agente infrator.” A verdadeira tragédia

“Estão fazen-do muito barulho por nada”, afi rma o advogado Nilo Ba-tista, ressaltando

que, na prática, difi cilmente algum usuário ia preso e que não são eles o grupo social que precisa de salvação. “Continuamos a perpe-tuar a equívocos. Rigorosamente a política criminal para as drogas ilícitas deveria ser igual para as drogas lícitas. Qual é o bem jurídico ofendido, quando alguém consome drogas nesse país? Nenhum. O Estado não deveria violar o direito próprio do cidadão, quanto a sua autonomia e a sua liberdade individual. E mais, será que somos cegos a essa realidade indissociável entre consumo

e mercado varejista? Ou não importam os mil assassinatos de jovens pobres cariocas todos os anos. A verdadeira tragédia são esses garotos, que estão na ponta desse processo e participam desse comércio, muitas vezes, como estratégia de sobrevivência”.

Durante um debate promovido na Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), sobre as dro-gas, a juíza aposentada Lúcia Karan declarou que somente o “entorpecimento da razão” sustenta o proibicionismo das drogas. A magistrada também classifi cou as novas pe-nas como “delirantemente altas” e deu como parâmetro um crime de homicídio simples, que pode levar a seis anos de privação da liberdade. Enquanto que pela Lei 11.343, o fi nanciamento ao tráfi co prevê de oito a 20 anos de prisão. O princípio da delação premiada, que estipula redução da punição ao se colaborar com a Justiça, também é contestado. “Por esse ângulo, o herói da Inconfi dência Mineira (rebe-lião em 1789 contra os impostos portugueses) seria o Joaquim Silvério dos Reis (denunciante da rebelião, que recebeu o perdão de suas dívidas junto à Fazenda Real)”, satiriza Nilo Batista.

A sedução do tráfi co e o marco Tim LopesJovens, sejam eles de comunidades ca-

rentes ou da classe média, são atraídos pelo tráfico. A alta lucratividade e os ganhos, relativamente fáceis, explicam essa sedução. “Mais do que uma estratégia de sobrevivên-cia, a juventude encontra nessa atividade uma maneira de ter acesso a bens materiais valo-rizados pela sociedade de consumo. Também há o fascínio pela imagem do traficante, ligada a um status de força”, analisa Michel Misse, reforçando que a questão passa pelo capitalismo, onde as drogas constituem mer-cadoria de valor. “Nesse contexto, também há os trabalhadores, quase sempre explorados, como os camponeses andinos. O que cha-mamos usualmente de trafi cante, não passa de um camelô de drogas, da mesma maneira que aquele que vende perfumes paraguaios ou CDs piratas”.

O sociólogo explica que com o aumento da repressão nas comunidades carentes, o comércio de drogas acabou pulverizado pela cidade. “Hoje o tráfi co dos morros atende basicamente aos consumidores locais. Com a repressão policial, tornou-se arriscado ao usuário subir até lá. Por isso muitas cargas de drogas passam a ser entregues diretamente nas casas de intermediários que distribuem para os usuários. Esse medo tornou-se mais visível com a morte do jornalista Tim Lopes, que é uma espécie de divisor de águas. De-pois disso, fi cou mais difícil, até para se fazer pesquisas nessas comunidades”.

Em busca de inspiração, muitos artistas e intelectuais utilizaram as chamadas drogas associadas à atividade criativa, ressalta o antropólogo. Nessa “loucura” ou expansão da consciência, alguns encontraram a destruição e outros sobreviveram. Talvez, falte coragem à sociedade em experimentar soluções ou construir alternativas. Enquanto isso seguem as disputas à bala por pontos de venda e a sensação de “hipocrisia social” apontadas por Misse: “é aquela onde todo mundo fi nge que não sabe, que se aplica ao jogo do bicho ou às

clínicas clandestinas de aborto”.

Lúcia Karan: somente o entorpecimento da razão sustenta o proibicionismo das drogas.

12 Outubro•2006UFRJJornal da

Jessie Jane

A sagrada RepúblicaEntrevista

Rodrigo Ricardofotos Marco Fernandes

Jornal da UFRJ: Recentemente, a universidade rememorou o conhecido Massacre da Praia Vermelha, ocorrido há quatro décadas durante a ditadura militar. Qual é o significado desse tipo de evento para a comunidade acadêmica?Jessie Jane: Essas rememorações são extremamente impor-tantes. Primeiro, para que os nossos alunos e os mais jovens se informem sobre o nosso passado, saibam o que o Brasil viveu, e valorizem a democracia conquistada. E mais, perce-bam como ela ainda é frágil e que eles precisam estar sempre alertas para que isso não volte a se repetir. Num outro aspecto, é muito importante para quem está na universidade hoje e viveu esse momento. Na sessão solene do Conselho Uni-versitário (Consuni), havia vários contemporâneos àqueles acontecimentos, pessoas que foram atingidas. Mais do que o reconhecimento, isso serve para exorcizar, funciona como uma espécie de terapia de grupo.

Jornal da UFRJ: Em uma de nossas reportagens, a senho-ra afirma que, freqüentemente, as nações, assim como as famílias, optam pelo silêncio quando vivenciam traumas profundos. Como funciona esse comportamento?Jessie Jane: Memória e esquecimento representam uma tensão tanto para a subjetividade individual quanto para a história dos povos. Hoje, a Psicologia e a Psicanálise traba-lham em torno disso. Toda sociedade – que sofre um trauma – e a ditadura é sempre um trauma social – precisa de um tempo para se recompor e se refazer. Acho que esse tempo foi importante para as pessoas e para a sociedade brasileira também. Mas existe uma outra dimensão de ordem política. A transição de ditadura para democracia acontece dentro de uma negociação que favorece o esquecimento desse passa-do. Muitos daqueles personagens sombrios da história, que atuaram na repressão, estão aí bastante ativos. Eles refizeram suas biografias e muitos estão no palanque daquilo que se chamaria esquerda.

Jornal da UFRJ: Quais as principais heranças da ditadura na universidade e as marcas mais visíveis desse período na sociedade brasileira?Jessie Jane: A nossa sociedade ainda é resultante da ditadura. A corrupção, essa confusão do público e privado. Enfim, esse período ceifou uma geração, deixando um vazio de lideranças políticas. Se por um lado, a ditadura construiu universidades, ela criou um modelo muito diferente da que existia nos anos 1960. Naquela época, a universidade estava muito mais colada com um projeto nacional do que está hoje. Despolitizaram a universidade e criaram a cultura tecnocrata.

Lançar luzes sobre obscuros meandros do passado é cada vez mais necessário. Com naturalidade,

a historiadora Jessie Jane Vieira de Souza cumpre essa missão ao discutir o papel político de uma das

instituições mais importantes da sociedade, a Igreja Católica. Atual diretora do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), a professora segue desenvolvendo a sua linha de pesquisa A Igreja Católica

no contexto das ditaduras militares no Cone Sul. Um esforço dificultado pela “absoluta ausência”

– afirma ela – de análises acadêmicas sobre o tema. Com a indignação de quem pertence à uma

geração que lutou contra a repressão, Jessie Jane impressiona-se com a apatia da sociedade frente ao

que considera a mais recente intervenção eclesiástica no mundo da República, quando a Igreja interferiu,

indevidamente, segundo ela, na disputa pela vaga ao Senado, no Rio de Janeiro.

Outubro•2006 13UFRJJornal da

Entrevista

Jornal da UFRJ: Há algum aspecto favorável desse período de exceção?Jessie Jane: As ditaduras nunca criam nada de positivo.

Jornal da UFRJ: Na Argentina, as leis de anistia foram revistas, levando aos tribunais muitos dos carrascos da ditadura. No Brasil, poderia ocorrer um processo semelhante ou ainda é cedo, historicamente, para se mexer nessas feridas nacionais?Jessie Jane: Sempre me manifestei dizen-do que as coisas precisam ser colocadas como elas foram. O Brasil tem esta idéia da negociação, que sempre ocorre de cima para baixo. A própria Lei da Anistia traz a idéia do esquecimento. Não para quem foi preso e sofreu com a ditadura, mas para o Estado e para quem cometeu crimes. Além das punições, tínhamos que abrir todos os arquivos, porque o direito à memória é um direito humano fundamental. Mas houve um jogo de cena, conciliações e acordos que permanecem até hoje. No Cone Sul, somos o país mais atrasado nesse aspecto. É uma discussão, porém, que ainda não se esgotou na América Latina. Jornal da UFRJ: Por que os países vizinhos encaram esses problemas do passado de maneira mais aberta? Jessie Jane: Há uma questão de quantidade. No Brasil, se fala em cerca de 300 mortos. No caso argentino, não há um número preciso e correto, mas os livros avaliam entre dez e 30 mil mortos. Acho difícil se graduar a crueldade. O fato é que a ditadura brasilei-ra manteve, ainda que de fachada, alguns instrumentos parlamentares e jurídicos, numa aparente “normalidade democrática”. Existia, por exemplo, dois partidos políticos, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB)– mesmo que fossem o do sim e do sim senhor – e o sistema jurídico com uma legislação de exceção, mas, ainda assim, funcionando. Na Argentina, digamos, eles foram menos cuidadosos e mais descarados, somando-se ao fato de existir uma relação da direita com o nazifascismo em sua história. Portanto, lá é muito mais dramático. Dificilmente, alguém não tem um parente ou um conhecido as-sassinado ou desaparecido. Aqui, isso ficou mais circunscrito a determinados segmentos da sociedade. Jornal da UFRJ: Lá se tornou mais difícil esconder o passado?Jessie Jane: Sim. Embora, recentemente, tenha desaparecido uma testemunha – Julio López, um pedreiro de 77 anos, que está sendo chamada de “o desaparecido 30.001” –, chave no julgamento que condenou o ex-chefe de polícia, Miguel Etchecolatz, à prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade ocorridos durante a ditadura militar de 1976/1983. Esse é o lado mais dramático da ditadura, porque esses subterrâneos e esses personagens da sombra sobrevivem. Jornal da UFRJ: De acordo com alguns pensadores, o que há de mais interessante na política está acontecendo na América Latina com o fortalecimento das democracias e a ascensão ao poder de lideranças populares. Isso reflete uma demanda de participação reprimida com as ditaduras? Jessie Jane: De certa maneira sim, mas essa demanda vem de mais tempo, desde o pe-ríodo das colônias. Hoje, quando se fala em democracia tem que se pensar em inclusão social. Ela não pode mais ser apenas o direito de votar. Nos anos 1960, havia projetos na-cionais que pensavam nessa inclusão, mas que foram reprimidos. Veja a questão da terra e de outras demandas sociais que as

chamadas democracias não conseguem resol-ver. A tal cidadania não pode ser apenas um discurso de palanque, mas estar na existência da vida cotidiana das pessoas. Na América Latina, ainda não houve isso.

Jornal da UFRJ: Nestas eleições, assistiu-se à derrota eleitoral de uma candidata ao Senado, no Rio, em parte por conta de que setores da Igreja Católica, e de outras religiões cristãs, a rotularam como defensora do aborto. Esse fato deixa claro o poder político desses grupos? Jessie Jane: A Igreja Católica é uma instituição fundamental para se entender a dinâmica da cultura política brasileira e da América Latina. A Igreja tem uma pauta permanente nessas questões de família e não pode ser subesti-mada como ator político. O que fizeram com a candidatura de Jandira Feghali foi indigno, mas está dentro do papel conservador da Igreja. O que me chama a atenção é ver essa intervenção tão legitimada, sem ninguém questionar esse escândalo que atenta contra a República. Eu queria saber, por exemplo, como é que operadoras de telefonia celular foram usadas, enviando mensagens para as pessoas no dia da eleição?

Jornal da UFRJ: Pode-se afirmar que a Igreja Católica brasileira participou do golpe militar de 1964? Jessie Jane: Toda a Igreja não. É preciso lembrar que na instituição existem diferentes tendências. Agora, ela tem um núcleo dogmático formado em grande parte pelo episcopado e quem for contra, está fora. O que acontecia na ditadura é que ela também não era homogênea. Ainda há muito pouca pesquisa sobre isso, mas é certo que a Igreja, com incrível plasticidade, foi um dos personagens que refez sua história de ab-soluta aliança com os golpistas à oposição. Na verdade, não é uma coisa nem outra. Se há o episcopado que apóia o golpe – expresso na fala da Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB) –também há um movimento contrá-rio. Recentemente, Dom Waldyr Calheiros, bispo de Volta Redonda, disse em público que a Igreja deveria pedir desculpas por ter apoia-do a ditadura. Ele é uma figura especial, quase uma exceção na instituição. Por outro lado, há quase um consenso na sociedade de que ela não apoiou o golpe.

Jornal da UFRJ: É justo que, mesmo no jogo democrático, a Igreja se manifeste tão expli-citamente, permitindo que arcebispos dêem declarações tais como a de que o presidente é “caótico”? Jessie Jane: É totalmente indevido. Mas, nesse episódio, aconteceu um equívoco do presidente Lula que, em vez de dar satisfação à sociedade, foi conversar com a CNBB. O bispo como cidadão pode falar qualquer coisa, mas ele não pode se arvorar, como autoridade eclesiástica, a emitir opinião sobre qualquer governo. Até porque a República deixa bem claro que o Estado brasileiro é laico e, no meu entender, deve ser cada vez mais laico. Mas como a Igreja trabalha com o transcendente, costuma entender que pode fazer qualquer coisa.

Jornal da UFRJ: Quais são as diferenças nas ações da Igreja Católica nos países do Cone Sul?Jessie Jane: Há muitas diferenças, até pela história de sua inserção, no Século XX, nesses países. Na Argentina, o caso é mais sério, porque a Igreja vai ser mais do que uma cúmplice da ditadura. Ela se infiltra no aparelho do Estado, através do chamado “episcopado castrense”, onde bispos são oficiais do Exército. Eles vão ser parte da ditadura, colaborando para isso, uma idéia muito forte, desde os anos 1930, da Argentina como nação católica. Essa qualidade de aliança é bem diferente da que aconteceu no

Brasil e no Chile. Agora, o problema da Igreja com a República, é que ela é retirada do espaço público para o privado. No Chile, ela assume o Partido Democrata Cristão como espaço de expressão católica. No Brasil, não há um envol-vimento e um apoio tão claros. Mas ela se insere como auxiliar no disciplinamento da sociedade e como instituição da ordem.

Jornal da UFRJ: Como se comportaram os movimentos de resistência ligados à Teologia da Libertação durante esse período?Jessie Jane: Uma das explicações para o apoio da Igreja aos regimes militares seria para sufocar esses movimentos. Eles começaram nas décadas de 1950 e 1960 e adquiriram uma proporção enorme em torno de causas sociais, além do questionamento a hierarquia da Igreja. O resul-tado disso é que Igreja entra numa crise interna e acaba se servindo da repressão feroz para desarticular esses grupos. Na Argentina, por exemplo, bispos chegaram a ser assassinados.

Jornal da UFRJ: Essa estratégia de asfixia teve êxito?Jessie Jane: Com certeza, e o papa João Paulo II foi persona fundamental nesse processo. Ele fez como Leão XIII, no final do século XIX, retirando a autonomia das Conferências Epis-copais – que, de certa forma, incentivavam esses movimentos contestatórios – e centralizando as decisões na Cúria Romana. Desse modo, a ins-tituição voltou a se mover dentro de uma certa unidade. Também vai ser Karol Wojtila que se reconcilia com o liberalismo e o capitalismo na luta contra o comunismo. Na verdade, a Igreja sempre quis criar uma terceira via.

Jornal da UFRJ: Quais são as diferenças entre as bancadas evangélica e católica no Parlamento? Jessie Jane: Eles têm estratégias diferentes. Os evangélicos possuem uma ação mais visível em seu projeto de ter representação parla-mentar. Já a ação católica é mais subliminar. Porém, a união ocorre, quando há questões como aborto e pesquisa das células-tronco.

Jornal da UFRJ: O papa Bento XVI aparen-temente derrapou em recente discurso cujas declarações causaram forte reação do mundo islâmico? Jessie Jane: O papa não derrapa. Não há nada que o papa diga que não tenha sido pensado, repensado e refletido. Naquela sua fala, ele legitimou um mapa geopolítico que está em construção. Desde João Paulo II, os EUA são fortes aliados do Vaticano.

Jornal da UFRJ: Como reagem os EUA ao fortalecimento de governos nacionalistas na América Latina? Jessie Jane: Eles somente não estão mais preocupados por conta das questões no Oriente Médio. Mas a influência deles per-manece em vários níveis, principalmente sob o ponto de vista cultural. As pessoas vivem de modo individualista em uma sociedade sem utopias, como se o neoliberalismo fosse a única possibilidade de viver e pensar o mundo. É uma tragédia ver que o socialismo real não conseguiu construir sociedades mais democráticas, deixando a impressão de que essas experiências fracassadas representam verdadeiramente o socialismo.

14 Outubro•2006UFRJJornal da

Nacional

ilustração Daniela Follador Kareen Arnhold , da AgN UFRJ/Praia Vermelha

Desemprego na juventude

O mercado de trabalho vem sofrendo mudanças nos últimos anos que colaboraram para o quadro de desemprego entre os jovens. A economia brasileira cresceu fortemente dos anos 1930 aos 1970, mas, na década de 1980, a trajetória de desenvolvimento acelerado do pós-guerra perdeu força devido a fatores como dívida externa, crises infl acionárias, mudanças políticas e transformações tecnológicas. O baixo crescimento do período resultou em um Produto Interno Bruto (PIB) per capita estagnado e altos índices de desemprego.

Até os anos 1980, e, mesmo que de forma autoritária, durante a ditadura militar, o Brasil preocupava-se com o crescimento e concla-mava os jovens a participarem de um projeto nacional. Hoje, com a hegemonia do capital fi nanceiro, há pouca preocupação com taxas de emprego e políticas sociais. Para Ricardo Tauíle, professor do Instituto de Economia (IE/UFRJ), esse quadro agrava a difi culdade de ingresso dos jovens no mercado, visto que, em períodos de retração econômica, eles são sempre os primeiros a serem expulsos dos postos de trabalho. O professor afi rma que a “Europa vive esse problema”, a exemplo da França, onde há confrontações acerca de espaços de trabalho e de que país construir – e que o Brasil, diferentemente da Europa, “tem

Reproduzindo uma tendência mundial, o número de jovens que procuram o mercado de trabalho no Brasil chega a 47% do total de desempregados. As causas para isso são várias,

com destaque para as sucessivas crises econômicas, a falta de programas específi cos e, principalmente, a má qualidade do sistema educacional.

uma vantagem, por ter muito a construir, mas é fundamental termos um projeto de país”.

Além da crise econômica, a falta de expe-riência, muito valorizada pelos empregadores, acentua a desvantagem dos jovens na disputa por vagas. Como se não bastassem esses fatores, os empreendedores que se aventuram na vida economicamente ativa esbarram na sobrecarga tributária brasileira, que impede a sustentabilidade dos negócios. “A taxação é pesada e inibe investimentos”, afi rma Tauíle.

Além disso, o professor des-taca que as indústrias não re-solvem mais os problemas do desemprego “porque para serem competitivas, estão automatizadas e não contratam mais. Por isso, o fenômeno é geral. Mas tem-se que saber como re-solver essa ques-tão” e aponta, como uma possível solução, o estímulo à “criação de so-ciedades de trabalhadores, não

apenas de capital, mas de sociedades anônimas e limitadas de trabalhadores”.

As difi culdades para se conseguir uma vaga, porém, não se encontram apenas do lado da demanda. Se as crises econômicas e os problemas estruturais da economia não favorecem o ingresso de jovens no mercado de trabalho, a oferta de mão-de-obra mostra-se pouco qualifi cada, em uma épo-ca que exige trabalhadores cada vez mais polivalentes e participativos. Segundo Marcelo Paixão, também professor do IE/UFRJ, “o Brasil ainda não encontrou um sistema educacional que seja adequado ao tem-po presente, com uma es-cola que prepare os jovens tanto para as transforma-ções de hardware (máqui-nas), quanto para as de soft ware (organização do trabalho) das indústrias. A escola brasileira vem sendo pouco capaz de formar esse tipo de profi ssional”.

Sem educação não há como protestarO alto desemprego de jovens é uma rea-

lidade em todo o mundo. Na França, por exemplo, em maio passado, jovens ocuparam universidades e saíram às ruas em protes-to ao Contrato Primeiro Emprego (CPE), uma lei proposta por Dominique Villepin, primeiro-ministro francês, que facilitava a demissão sem justa causa de trabalhadores com até 26 anos de idade. O governo francês alegou que na medida em que a lei trouxesse facilidades para o empresário, possibilitaria, em longo prazo, um contingente maior de contratados.

Para Mariléia Inoue, professora da Escola de Serviço Social (ESS/UFRJ), os franceses protestaram por que tiveram uma percepção adequada do que estava acontecendo. Para ela, a maior violência que a desigualdade bra-sileira pode gerar “é a negação da cidadania, é a pessoa não ter acesso a pensar que tem direito a ter direito. Por esse motivo entende-se porque os jovens protestam na França e aqui ninguém fala nada”, opina Inoue.

O ponto-chave da questãoA falta de qualifi cação da mão-de-obra

juvenil, no Brasil, deve-se ao baixo nível de

escolaridade apesar dos avanços nas taxas de alfabetização e de acesso de crianças

e jovens à escola. Segundo João Sabóia, diretor do IE/UFRJ, “o processo educati-

vo básico contribui para a qualifi cação dos indivíduos, formando não apenas

mão-de-obra especializada, com me-lhores salários, mas, principalmente,

cidadãos capazes de enfrentar as dificuldades impostas pelo

processo de globalização da economia mundial”. Para ele, o

Brasil tem melhorado alguns indicadores educacionais,

mas esse avanço não foi ainda qualitativamente

adequado.Segundo Mariléia

Inoue, a grande ques-tão é o tipo de edu-

cação que se está oferecendo: “não

vai ser fácil inse-rir e manter no mercado de trabalho uma

pessoa que não foi bem alfabeti-

zada e preparada”. A esse respeito, Marcelo Paixão afi rma

que “a melhor lei de primeiro emprego que o Brasil poderia ter, dado o contexto do país, seria uma radical transformação da escola”.

O nível de escolaridade, porém, está for-temente relacionado à renda familiar. Não se pode falar em educação sem se considerar as questões socioeconômicas e as desigualdades de acesso ao sistema educacional. Aqueles cujos pais podem investir em educação de qualidade conseguem as melhores vagas no mercado, o que exclui grande parte dos jovens menos qualifi cados, em geral oriundos de extratos sociais populares, condenando-os ao desem-prego e ao subemprego. Inoue ressalta que melhores condições de educação permitiriam às pessoas fazerem uma leitura de sociedade e verem-se como participantes dela: “com um curso superior, a pessoa terá uma postura de mundo, conseguirá se identifi car, saber onde estão suas falhas e superá-las”. Para se propagar a escolarização, segundo Sabóia, deve-se criar condições econômicas mais favoráveis para as populações de baixa renda, de modo a evitar que sejam obrigadas a enviar seus fi lhos ao mercado de trabalho precocemente.

Para Marcelo Paixão, o quadro de desem-prego apenas se reverterá com estratégias de longo prazo, que visem mudanças sistêmicas: “temos que aprender a pensar no país em ter-mos de anos e em termos estruturais; somente assim conseguiremos promover mudanças verdadeiras”.

João Sabóia: processo educativo capacita para o enfrentamento das difi culdades impostas pela globalização.

Outubro•2006 15UFRJJornal da

Universidade

Mostrando a “real”

Com o diferencial de realizar pesquisa em conjunto com a intervenção social, o Nipiac apoiou o Projeto Jovem Total, do governo do Estado do Rio de Janeiro, que compreendia duas propostas básicas – uma que visava à ca-pacitação por meio de dez ofi cinas de geração de renda; e outra que avaliava o impacto da ação do governo do ponto de vista dos jovens das comunidades, propiciando um espaço para a reflexão e troca de idéias. E foi nessa segunda parte que o Nipiac atuou e, no ano passado, com o apoio da Faperj (Fundação Carlos Cha-gas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), editou o livro Mostrando a real, um retrato da juventude pobre no Rio de Janeiro (Editora Nau, 2005) – importante contribuição ao entendimen-to de um grupo social que, em muitos casos, vive na in-visibilidade e na periferia dos acontecimentos veiculados pela grande mídia.

Dirigida por Lúcia Rabello de Castro e Jane Correa, ambas professoras do IP, a pesquisa teve lugar ao longo do segundo semestre de 2002 e entrevistou cerca de 1.900 jovens, 70% com idade entre 14 e 18 anos, de 19 comunidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. “O livro expressa uma preocupação de como a vida dos jovens brasileiros está sendo alte-rada, na medida em que mudanças ocorrem na comunidade que os cerca, e que afetam seu olhar para o futuro”, escreveu, no prefácio do livro, Deepak Kumar Behera, professor titular de Antropologia Social da Universidade de Sambalpur (Orissa, Índia).

A proposta de atuação, elaborada pelo Nipiac, acompanhou os jovens exatamente no momento em que sua comunidade se tornava alvo de iniciativas do governo do Estado. Para tal, duas estratégias foram traçadas. Uma, inti-tulada Grupos de Refl exão, permitiu aos jovens a discussão e compartilhamento de idéias sobre os temas propostos pelos pesquisadores. A outra tinha objetivo de mapear e conhecer como os jovens das comunidades envolvidas descreviam a si mesmos, seu cotidiano, suas idéias, entre outras questões.

A partir da análise das respostas, foi possível gerar um retrato da juventude com base em diferentes abordagens. “De início, fi caram tí-midos. Não estavam acostumados a ações desse tipo. Com o tempo e a convivência, puderam perceber a importância e a riqueza do trabalho que fi zemos. Foi um espaço alternativo, nem familiar e nem escolar, que proporcionou um espaço de troca fundamental na adolescência”, recorda Luciana Gageiro Coutinho, uma das pesquisadoras do Nipiac.

Conversar com jovens sobre suas vidas, sua comunidade, suas perspectivas, sua inserção na sociedade e esperanças em relação ao futuro, é o objetivo da pesquisa realizada pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (Nipiac), do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia (IP/UFRJ).

Rafaela Pereirailustração Juliano Pires

das comunidades, propiciando um espaço para a reflexão e

Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), editou o

Mostrando a real, um retrato da juventude pobre

(Editora Nau, 2005) – importante contribuição ao entendimen-to de um grupo social que, em muitos casos, vive na in-visibilidade e na periferia dos acontecimentos veiculados pela

Referencial maternoA vida em família, o tráfi co e a relação com

as drogas, a gravidez, o preconceito sexual e a falta de oportunidades de trabalho foram alguns dos muitos temas debatidos durante os momentos de refl exão. Segundo dados da pesquisa, cerca de 20% dos jovens já abandonou

os estudos e 17% responderam que fora do seu círculo de conhecidos imediatos, não admiram nin-guém. Evidência de um cotidiano empobrecido de oportunidades, esvaziado de sentidos e de hori-zontes, segundo os pesquisado-res do Nipiac.

Outro ponto da pesquisa que pode ser destacado é a forte presença da figu-ra materna nos lares dos jovens entrevistados – compreende-se mãe, avó, madrinha e madrasta. Em cerca de 30% das respostas, a mãe é a pessoa mais ci-tada como fi gura representativa e

admirada. “Ela criou eu (sic) e meu irmão sozinha, trabalhou muito para criar a gente e até hoje ainda se preocupa muito”, afi rma uma jovem moradora de Senador Camará, en-trevistada pelo programa.

Para esses jovens, é pelas mães que são transmitidos os valores de formação, edu-cação e criação, ou seja, segundo as respostas, elas mantêm a estrutu-ra dos lares. “A família surge como principal referência na ausência de uma ação mais decisiva da escola e das instituições públicas, por exemplo. Assim, o grande projeto deles é se estabelecerem para ajudarem essa mãe”, ex-plica Sonia Borges Cardoso de Oliveira, também pesqui-sadora do Nipiac, que acres-centa, ainda, ser a gratidão um dos sentimentos mais presentes nas respostas. “E isso muito por conta da vida que levam e da força de vontade atri-buída à fi gura materna. Eles querem devolver para as mães todas as suas conquistas. Por isso, seus projetos de vida não se restringem a uma melhora indivi-dual, ficando sempre atrelados à ajuda da

família”, revela a pesquisadora. De acordo com Sonia, em menos de 10% das respostas a fi gura paterna aparece como referência.

O medo e o desejo de mudançaO narcotráfi co, e a rede de atividades a ele

associada, tem o poder de mudar a rotina dos que convivem de perto com essa realidade. E os jovens dessas comunidades são os mais afetados.

Segundo informações da pesquisa, os jovens relatam o medo de sair de casa, de falar algo que não devam, de estar na hora errada no lugar errado e de estar em casa quando policiais ou trafi cantes a invadem. “Eu tenho medo, não vou à casa do meu pai sem acompanhante, ele mora em outra comunidade (dominada por outra facção do tráfi co de drogas)”, relata uma moradora do Jacarezinho.

Outro jovem, morador de Senador Camará, afi rma que o governo paralelo manda na região

onde mora: “não posso parar na esquina da minha rua, porque se vai a polícia... Tenho que estar sempre com um documento. Ou entra para a vida (do tráfi co), ou se esconde com medo. Até dentro de casa é perigoso, imagina na rua”. Assim, o cotidiano desses jovens é pautado pelo medo, pela violência, pela falta de oportunidades e pela exclusão social.

A visão idealizada do jovem estudante, ocupado com as tarefas escolares e sem outras preocupações está bem distante da realidade dos entrevistados pelo projeto. Apesar de cons-tituírem a grande maioria, os jovens pobres não são tomados como base da representação coletiva da juventude.

A vontade de mudança, porém, de acordo com Sônia Borges, é visível nas respostas. “Eles mostram que, apesar de tudo, querem uma outra coisa. Querem um trabalho, con-dições melhores de vida, embora não tenham condições materiais e aparato cultural para isso. Os jovens querem uma outra coisa que não a que lhes está sendo oferecida”, conclui a pesquisadora.

16 Outubro•2006UFRJJornal da

Universidade

Aline Durães, do Olhar Virtual

Desde maio de 2006, as reuniões do PDI movimentam o cotidiano da universidade. Os encontros se caracterizaram por deba-ter não apenas as diretrizes estratégicas de desenvolvimento da UFRJ, mas buscam problematizar ainda questões constitutivas da instituição.

A fragmentação, encarada como resultado do processo histórico de construção da UFRJ e defi nida, pela proposta de PDI, como a au-sência de integração entre as atividades das unidades acadêmicas, é o grande fi o condutor dos debates. A cada discussão, novos aspectos negativos da estrutura segmentada são apon-tados, e fi ca mais clara a relação causa-efeito existente entre a superação dessa realidade e a possibilidade de crescimento da UFRJ.

Pelo fi m do isolamento

Os debates promovidos pela Reitoria junto à comunidade acadêmica para a formulação do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) da UFRJ completam seis meses. O combate à fragmentação universitária

permanece a principal pauta de discussão dos encontros.

Os refl exos da fragmentação são diversos e percebidos de acordo com a experiência das unidades. Para Celina Costa, diretora do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRJ, o isolamento em relação aos demais setores da UFRJ é o grande entrave resultante da seg-mentação. A professora defende, em especial, a maior articulação entre a escola e a Faculdade de Educação (FE). “O CAp tem como contribuir com disciplinas na graduação para a formação de professores; temos interesse também em fa-zer ações no sentido da formação continuada desses profi ssionais”, assegura a docente.

Celina destaca que a interação insufi ciente difi culta a divulgação, junto à comunidade acadêmica, dos projetos institucionais desen-volvidos pelo Cap: “é difícil levar adiante esses

projetos. Temos vontade de atuar, mas não temos plenas condições de desenvolvê-los. É preciso superar a fragmentação e nos integrar em uma atuação conjunta”.

No Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes), a fragmentação se manifesta através das relações limitadas com a gradua-ção de outras unidades: “temos a possibilidade de disponibilizar profi ssionais de Ensino para atuarem na graduação de diferentes unida-des, mas não podemos cadastrar as nossas atividades como disciplinas desses cursos. Isso cerceia nosso potencial de ação”, explicita Miriam Struchiner, diretora do Nutes.

Os departamentos, identifi cados como um agravante do processo desagregador, são também criticados pela dirigente Nutes. O

diálogo da unidade com os demais setores da universidade, embora não seja o ideal, é facilitado pela estrutura administrativa or-ganizada em laboratórios: “Em nossa revisão estrutural, procuramos não reproduzir a cul-tura fragmentária arraigada da UFRJ. Nesse sentido, o Nutes pode servir como referência de um modelo menos segmentado”, sublinha Miriam Struchiner.

Já os profi ssionais do Instituto de Mate-mática (IM), que afi rmam a incidência ainda mais forte da fragmentação nas atividades de Ensino, reclamam maior proximidade com os cursos de Engenharia. “Existem trabalhos conjuntos, mas a UFRJ precisa de mais. Che-gamos a discutir aqui uma nova estrutura administrativa que nos permitisse dialogar com o restante da universidade, mas não chegamos a lugar algum”, lembra Eduardo Siqueira, docente do IM.

Apesar do aparente consenso em relação à fragmentação, o reitor Aloísio Teixeira ga-rante reiteradamente que o conceito sofrerá reformulações para compor o texto fi nal do PDI. O objetivo é não deixar dúvidas quanto aos propósitos da mobilização pelo fi m da organização fragmentada da universidade.

Aloísio procurou esclarecer, nos últimos debates, que erradicar a fragmentação do dia-a-dia da UFRJ não implica promover a centralização. Segundo ele, a oferta de maior autonomia aos centros e unidades é a saída para a integração entre as diversas esferas da universidade: “não podemos eliminar a fragmentação por atos de vontade. Há uma diversidade de opiniões muito grande; pontos de vista radicalmente contrários aos expostos no PDI. Temos que aproveitar isso para uma discussão positiva”.

Hospitais e Assistência EstudantilO futuro dos hospitais universitários (HU)

é preocupação recorrente entre as unidades do Centro de Ciências da Saúde (CCS) que já receberam o reitor para a discussão do PDI. A última delas, o Instituto de Neurologia Deolindo Couto (INDC), mostrou-se parti-cularmente engajada nessa questão.

O INDC é uma das oito unidades de saúde que compõem o complexo hospitalar da UFRJ e teve a demanda por atendimentos aumenta-da nos últimos anos. Isso porque a maior parte dos hospitais do estado, fechou os laboratórios de Neurologia (Souza Aguiar e Miguel Couto, por exemplo).

Outubro•2006 17UFRJJornal da

Universidade

O crescimento na procura pelos serviços prestados pelo INDC é motivo de apreensão para os profissionais do instituto. De acordo com os docentes, que propuseram a inclusão dos HU como projetos de Extensão Univer-sitária e sugeriram a criação de um centro de saber de Saúde Mental na Praia Vermelha, o PDI da UFRJ deve contemplar, com mais ênfase, a assistência nos hospitais.

Na opinião de José Mauro, professor da unidade, o PDI deve contemplar entre suas metas estratégicas modos e meios de assegu-rar a permanência dos HU: “a estruturação de uma UFRJ do século XXI tem o dever de pensar a saúde para a sociedade. Ela tem que ter um ouvido para a demanda social. Nesse aspecto, o INDC cumpre um papel fundamen-tal”, salienta o médico.

Já os institutos vinculados às Ciências Humanas dedicam maior atenção às questões da assistência estudantil. A Escola de Serviço Social (ESS), por exemplo, unidade que con-centra um número elevado de estudantes de baixa renda, apóia iniciativas para frear a eva-são de alunos e defende a inserção dos gastos com a assistência ao estudante no orçamento geral da universidade.

Projetos como a construção de restau-rantes universitários, o aumento no número de bolsas de estágio e de monitoria e a dis-ponibilização das bibliotecas aos sábados, são bandeiras levantadas pela comunidade

da ESS. “Precisamos ampliar a discussão sobre a evasão de alunos e criar mecanismos para que eles permaneçam na universidade”, sugere Maria Magdala, diretora da unidade.

Aloísio Teixeira salienta que a participação dos hospitais uni-versitários e a importância da Extensão Universitária, que inclui a discussão sobre a Assistência Estudantil e o número de bolsas cedido, serão revistas, e um novo texto sobre esses assuntos vai com-por a versão final do PDI.

PDI em Macaé: a experiência da interiorização

A Reitoria montou uma co-mitiva para ir a Macaé discutir o

PDI e as possibilidades criadas pelo processo de interiorização

da universidade com o Núcleo de Pesquisas em Ecologia e Desenvolvimento Sócio-Am-biental de Macaé (Nupem).

O núcleo, criado em mar-ço de 2006 e vinculado ao

Instituto de Biologia (IB), foi a primeira experiência de interiorização da UFRJ em 86 anos de sua história. O reitor fez questão de ressaltar que o conceito de campus descontínuo, definido no PDI como a falta de comunic aç ão entre as diversas unidades da insti-tuição espalhadas territorialmente pelo Rio de Ja-neiro, em nada afeta a questão da interiorização das atividades da universida-de. A proposta de PDI contem-pla, inclusive, a possibilidade de o Nupem servir como exemplo para futuras ini-ciativas do mes-mo porte.

O Nu p e m f o r m u l o u e apresentou um documento, no qual expôs dificuldades e metas da unidade, nos níveis de graduação e pós-graduação. No que tange à Pesquisa, os professores destacaram infortúnios enfren-tados nesses primeiros meses de existência

do núcleo: corpo docente jovem e baixa de-manda de alunos. Na busca por autonomia, os profissionais requisitaram mais recursos para o Ensino, sugeriram a criação de um curso próprio de Licenciatura em Biologia e reivindicaram maior liberdade, frente ao IB, na formulação dos currículos de graduação.

Aloísio Teixeira argumentou que, apesar da distância, o Nupem deve trabalhar em con-junto com o IB e com toda a UFRJ, evitando assim propagar a fragmentação. “Devemos ter muito cuidado para que, no esforço de superar os obstáculos impostos pela estrutura segmentada da universidade, não acabemos reproduzindo essa estrutura”, alerta o reitor.

A apresentação do relatório mostrou ainda que alguns itens estabelecidos no PDI como objetivos fundamentais para o futuro da UFRJ já estão sendo realizados pelo Nupem. “Trabalhamos a interdisciplinaridade; somos um grupo de pessoas de várias áreas que trabalham de forma integrada. Também de-senvolvemos atividades que agregam Ensino, Pesquisa e Extensão. Por isso, o Nupem se vê incluído na visão de futuro da universidade”, sublinha Alexandre de Azevedo, professor da unidade.

Alguns representantes de projetos de re-gionalização que mantêm colaboração com o Nupem, como o Núcleo Interdisciplinar UFRJ Mar e o Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec), marcaram presença e participaram do debate.

Sidney Lianza, professor do Departa-mento de Engenharia Industrial da Escola

Politécnica (DEI/Poli) e coordenador do Soltec, propôs como meta estratégica para o futuro da universidade, a instituciona-lização dos projetos de regionalização e interiorização e elegeu o compromisso com o desenvolvimento regional como o principal aspecto dessas experiências. “Existem localidades brasileiras que depen-

dem exclusivamente da universidade. Em consórcio com os aliados, nós faze-mos a UFRJ cumprir o seu papel cons-titucional”, afirma Lianza.

O encontro emo-cionou alguns mem-bros da Reitoria. Foi o caso da superin-tendente da Pró-rei-toria de Graduação (PR-1), Déia Maria, que é professora do Departamento de Ecologia do IB e uma das responsá-veis pela implanta-ção do Nupem. No evento, a docente parabenizou a todos os profissionais en-volvidos no projeto

e estimulou a reflexão sobre propostas ino-vadoras de interiorização: “O Nupem é uma oportunidade única de fazer essa expansão crescer para outras Licenciaturas”, disse.

Fórum de Discussão do PDI

Os membros da comunidade universitária interessados em participar dos debates não preci-sam esperar pelo encontro com o reitor. No endereço www.ufrj.br/pdi, existe um link para o fó-rum de discussão da proposta. Ali, professores, alunos e funcionários podem enviar comentários e su-gestões para o plano.

Estudantes, funcionários e professores que desejarem obter mais cópias da versão impressa da proposta de PDI podem entrar em contato com a Divisão de Relações Públicas, da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ, pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone 2598-1622.

18 Outubro•2006UFRJJornal da

Universidade

Professor associado, eis o nome da classe criada pelo governo federal para uma carreira que há tempos espera por mais estímulos. A novidade duplica o horizonte profi ssional, em especial para os jovens doutores. Por outro lado, gera desigualdades ao aplicar um mesmo critério a docentes que, sem alternativas, estagnaram como adjuntos IV. Os críticos também classificam a proposta, além de verticalizada, como compensação salarial. Uma conveniência de ano eleito-ral, que não pela primeira vez, deixa de lado as reivindicações reais e históricas da categoria.

Para o bem ou para o mal, o fato é uma realidade. Na UFRJ, entre 657 e 794 professores – adjuntos IV há dois anos e com o título de doutor – podem requerer a progressão, mas precisam correr para cumprir os trâmites da burocracia. “Essa estimativa é porque existem 137 casos em que não temos a data que aconteceu a ho-mologação da passagem de adjunto III para IV”, explica Luiz Afonso Henrique Mariz, pró-reitor de Pessoal da UFRJ. A PR-4 é o porto de desembarque dos pedidos de pro-gressão, que se inicia nas congregações das unidades e são homologados pela Comissão Permanente de Pessoal Docente (CPPD). “Nós temos até 15 de dezembro – data de fechamento da última folha de pagamento de 2006 – para fazer a inclusão no Sistema de Informações da Administração Pública (Siap)”, informa o pró-reitor.

Etapas legaisA partir da Portaria 7 do Ministério da

Educação, publicada em 30 de junho, as

Lições a serem discutidas

Criação de nova classe entre os professores suscita debate sobre os rumos da carreira docente.

Rodrigo Ricardo

universidades federais ganharam 60 dias para definir as regras de progressão da nova classe. Etapa cumprida com a aprovação da Resolução 7/06, complementar a 2/89, durante a sessão de 24 de agosto do Con-selho Universitário (Consuni). “Há muitas críticas a se fazer e outras considerações, mas nos detivemos na parte prática do problema: o prazo. Por isso, optamos por uma resolução complementar. De todo modo, tentamos encarar o aspecto positivo dessa situação, como uma oportunidade para se mexer numa carreira que estava absolutamente estagnada. Agora, mais do que salários, precisamos de boas instalações para o desenvolvimento do trabalho acadê-mico”, destaca Ricardo Bicca, membro do Consuni que relatou a proposta elaborada pelas Comissões de Ensino e Títulos e de Legislação e Normas do colegiado.

A iniciativa do governo, que começa com uma Medida Provisória e depois foi pormenorizada através da Portaria do Mi-nistério da Educação, gerou protestos entre os conselheiros. Através de moções, eles manifestaram a insatisfação pela utilização desse instrumento para modificar a legisla-ção que rege a carreira do magistério.

Salário e carreira“Essa proposta veio atravessada como

um reajuste salarial e de forma injusta, pois deixa de fora os aposentados”, destaca José Simões, presidente da Associação de Docentes da UFRJ (Adufrj). Desvincular a carreira da questão salarial é urgente para os dirigentes da seção sindical do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de

Ensino Superior (An-des-SN). “Tentamos isso junto há vários governos, com uma nova de f in iç ão de prioridade no papel de Ensino e Pesquisa. Hoje, a Pesquisa é pra-ticamente feita fora da universidade e a Ex-tensão continua sendo considerada o ‘patinho feio’ da universidade”, avalia Simões.

O ut r a i n j u s t i ç a apontada é a de que todos que preencham os pré-requisitos ne-cessários, serão pro-movidos ao mesmo nível. Um professor, por exemplo, que há uma década é adjunto IV passará a associado I, do mesmo modo que outro colega com dois anos no cargo. “O governo nem quis ouvir falar acerca do assunto, mas tenta-mos que aqueles que já tivessem direitos passassem diretamen-te a ser associados de outros níveis (II, III e IV)”, explica Simões.

Num primeiro momento, a estrada para quem está começando uma carreira acadê-mica foi alongada. Os oito anos para se al-cançar o ponto máximo da carreira (adjunto IV) saltaram para 16 (associado IV). Simões admite esse ganho, entretanto destaca a frustração como balanço fi nal: “devido ao grau de exigência, professores substitutos e assistentes são poucos. Adjunto é o início da carreira e perdemos mais uma chance de revê-la. Hoje, as bolsas viraram questão de sobrevivência. Até a Dedicação Exclu-siva (DE) está sendo transgredida, com as consultorias, sem que a universidade tenha nenhum controle. No fi nal dos anos 1970, as teses eram valorizadas e o resultado sala-rial estava mais vinculado ao desempenho acadêmico, levando em conta o número de orientações, projetos de Extensão e Pesquisa desenvolvidos”.

Progressão horizontal e relatório de atividades

Durante a sessão do Consuni, o conse-lheiro Alcino Câmara manifestou seu de-sacordo com a idéia de que o interstício de progressão horizontal, no caso de professor associado, seja defi nido temporalmente e “não pelo preenchimento de condições de

mérito como se deve esperar de uma insti-tuição de Ensino Superior dedicada à busca da excelência”.

Na verdade, a progressão horizontal irá se fundamentar no chamado Relatório de Atividades, preenchido pelo próprio docente e acompanhado dos documentos comproba-tórios das atividades exercidas. Os quesitos que contam para a Comissão de Avaliação são: produção intelectual, atividades de ad-ministração, ensino de graduação e pós-gra-duação, além de outros. Entre esses pontos, os alunos também dão sua nota para avaliar o desempenho do docente. “Essa avaliação discente já existia, mas nunca aconteceu de fato. Acredito que ela vai ser mais uma letra morta”, avalia Simões. Pela resolução, cabe à unidade de ensino, ou órgão suplementar, defi nir a forma de participação.

Para Luiz Afonso algumas distorções podem ser corrigidas. “No momento, fi ze-mos o que foi possível. Esse nivelamento de todos passarem a associado I não está cor-reto e deve ser rediscutido mais à frente. Os movimentos e instituições como a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) devem prosseguir com as discussões sobre a carreira”.

José Simões: “proposta veio atravessada como um reajuste salarial e de forma injusta.”

Outubro•2006 19UFRJJornal da

Universidade

O evento Habitar a cidade, que ocorrerá de 27 de novembro a 1º de dezembro, será aberto à comunidade da UFRJ. Embora o foco seja a urbanização, o debate promete ser amplo e fecundo acerca de um tema sobre o qual a FAU já desenvolveu um volume considerável de pesquisa, mas que, pela primeira vez, toda a faculdade discutirá de forma organizada. E já não era sem tempo, de acordo com Cris-tóvão Duarte, coordenador de Extensão da instituição, “as favelas são um assunto que afeta a vida de muitas pessoas, e também uma importante questão para a Arquitetura e para o Urbanismo”. Para ele, os grandes entraves à compreensão do fenômeno, pela universidade, são o desconhecimento e o preconceito.

Habitar a cidade contará com quatro faixas de horário: a primeira, de 9h30 às 10h30, discu-tirá as pesquisas da universidade sobre o tema. Na segunda, de 10h30 às 12h30, arquitetos e urbanistas avaliarão experiências concretas de intervenção. De 13h30 às 15h30, haverá exposições com trabalhos que desenvolvem reflexões críticas sobre essas comunidades populares. As abordagens incluem a Estética da favela e a cultura popular, passando por Segurança Pública.

O último horário – que termina às 16h30 – será dedicado a uma maratona de projetos e

Refl exo e espelho de uma sociedade desigual

idéias dos alunos da FAU, com o intuito de es-tudar uma área do Complexo da Maré e propor projetos e intervenções que serão selecionados por um júri, formando uma exposição no encerramento da semana. Além disso, grupos artísticos da Maré foram convidados para se apresentar na abertura e no encerramento do evento.

Gustavo Peixoto, diretor da FAU, esclarece que uma dimensão importante do Habitar a ci-dade é o aprendizado que a universidade poderá extrair do evento. “As favelas têm um tipo de fazer arquitetônico e urbano diferente daquele com o qual a academia está acostumada a trabalhar”, afi rma Peixoto, para quem a universidade deve buscar compreender os mecanismos de autoges-tão dessas comunidades e contribuir para o apro-fundamento dessa lógica. “Não é uma questão de ser boa ou ruim, a favela foi uma forma que a sociedade encontrou para resolver um problema de habitação”, esclarece o diretor.

Peixoto ressalta, ainda, que essa solução não foi construída à revelia do Estado. “A favela é resultado de um projeto de Estado que segrega as pessoas e não prioriza o acesso à moradia a todo mundo. É o modo que as pessoas têm de morar perto do trabalho, uma forma de autogestão nas brechas, nos entremeios da sociedade ofi cial”, opina o professor.

Bruno Franco

Cristóvão Duarte reforça a necessidade da universidade discutir o assunto com grande dose de humildade científi ca: “hoje temos mais a aprender do que a ensinar quando se trata de favelas. A universidade precisa ouvir a voz da favela e compreendê-la, buscando sintonizar-se com ela”.

Desconstruindo o senso comumSegundo Duarte, a associação mecânica

entre essas comunidades e a violência – cons-truída pelo senso comum da classe média – além de equivocada, oculta as verdadeiras razões da brutalidade, adiando uma ação mais efi caz e responsável por parte do Estado.

“Na verdade, a favela é vítima dessa violên-cia e do próprio sistema econômico”, acredita o professor. Em sua opinião, os moradores dessas comunidades não estão interessados na perpetuação das agressões – ao contrário, são os mais interessados no seu fi m: “eles estão coagidos, são reféns de grupos que se apossaram territorialmente da favela. É uma cooptação compulsória”.

O preconceito decorre da produção e mar-ginalização de pobreza, levada a cabo, historica-mente, pela sociedade brasileira. “O sambista já foi olhado com desconfi ança. O capoeira, o malandro, e hoje é o favelado”, aponta Du-

arte. A resposta que vem da favela, segundo ele, entretanto, não é a guerrilha urbana, “é o Hip-hop, o Rap, a dança, o cinema, a fotografi a”.

Embora boa parte da atividade cultural dessas comunidades não produza retorno econômico imediato, as iniciativas são im-portantes, de acordo com o professor, para a construção de identidades e sociabilidades e para o desenvolvimento da auto-estima dos moradores.

Para Gustavo Peixoto, a questão crucial é restabelecer relações que articulem essas áreas da cidade à cidade ofi cial. “Entre outras coisas, conseguir que a classe média pare de ver a favela como uma coisa única e enxergue sua diversidade”, discorre Peixoto.

Um bom caminho para isso, é enxergá-las como lugar de produção de um saber arqui-tetural. Na favela – lembra o diretor – mora a maior parte dos produtores do espaço arquitetônico da cidade ofi cial: os marce-neiros, serralheiros, vidraceiros, pedreiros. “Eles usam seu conhecimento na produção da favela, sem o dado das restrições legais e o saber acadêmico”, explica Peixoto. Entender essa capacidade de “produção de Arquitetura como uma forma de poesia” é um desafi o para o Habitar a cidade.

Em iniciativa pioneira, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ) dedicará uma semana para a discussão de um tema cada vez mais importante para o cidadão carioca: as favelas.

20 Outubro•2006UFRJJornal da

Universidade

Bruno Francoilustração Anna Carolina Bayer

Contra a fragmentação

do saber

Como alternativa à construção de conhecimento tradicional, que leva à fragmentação, a interdisciplinaridade busca

um saber universal.

O ensino e a produção do conhecimento, na academia, seguiram, tradicionalmente, uma progressão cartesiana, na qual a fé na especialização do saber em disciplinas ou categorias rígidas e estanques dariam conta do acúmulo de informações científi cas. Mas, as demandas reais da prática

científi ca contemporânea exigem cada vez mais uma outra leitura, que ponha de lado o dogmatismo do conhecimento encastelado nas cátedras e compartilhe horizontalmente as contribuições de múltiplas disciplinas.

De acordo com Francisco Dória, professor emérito da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), a interdisciplinaridade era uma das diretrizes prioritárias da ECO, quando de sua fundação. “A idéia era criarmos um centro de estudos de fenômenos complexos, centrado na comunicação”, explica Dória, tal qual o modelo pelo qual funciona, atualmente, o Santa Fe Institute (Novo México, EUA). “Mas fazer uma tal instituição no Brasil é impossível. Vai contra toda a cultura da terra. Éramos sonhadores utópicos”, lamenta.

Assim, a Escola de Comunicação teria se tornado – ao contrário do que almejavam seus idealizadores – uma escola profi ssionalizante. “Forma profi ssionais competentes, basta vê-los espalhados no mercado de trabalho. É uma visão restrita, mas efi ciente”, acredita o professor.

Em sua opinião, um profi ssional competente conhece seus próprios limites, mostra humildade, e “por outro lado, tem espírito de aventura: para melhor compreender uma questão, resolver um problema interessante, se precisar

entrar numa área totalmente desconhecida, vai fazê-lo”, acredita Dória. “Compartimentação é a maneira pela qual os medíocres se defendem: dizem, hei, cara, você está entrando na minha área! Pula fora!”, critica o professor.

Um objeto, dois olharesUma das experiências interdisciplinares da UFRJ é o La-

boratório de Economia Política da Saúde (Leps) que reúne pesquisadores do Instituto de Economia e do Centro de

Segundo Piaget – em The epistemology of interdis-ciplinary relationships – a multidisciplinaridade

ocorre quando “a solução de um problema torna necessário obter informação de duas ou mais ciências ou setores do conheci-mento sem que as disciplinas envolvidas no processo sejam elas mesmas modificadas ou enriquecidas”.

Compreendendo os termos

Ciências da Saúde (CCS/UFRJ). De acordo com Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc), o laboratório propões “trabalharmos como disciplinas dife-rentes em torno de um mesmo objeto. Olhar para a saúde através de uma ótica mais sistêmica. Assim, precisávamos unir os conhecimentos dessas duas disciplinas”.

Entretanto, não é fácil atuar interdisciplinarmente. “São culturas disciplinares diferentes, não é fácil juntar pessoas com culturas e idiossincrasias diferentes, que se consideram os ‘reis da cocada preta’, quem sabe mais, quem contribui mais. Todos são ciosos de seu protagonismo na explicação da realidade. Na interdisciplinaridade deve haver uma si-multaneidade de contribuições e não o estabelecimento de hierarquias”, chama a atenção Lígia Bahia, para quem “o nosso (da UFRJ) conceito de aula é ainda cartesiano”.

Teoricamente, um estudante do curso médico pode cursar uma disciplina de Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), por exemplo. Na prática, para Bahia “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha”. Na opinião da professora, a própria universidade poderia incentivar ações interdisciplinares. “As iniciativas existentes vêm de baixo (dos docentes). São frutos da ne-cessidade de se fazer avançar o conhecimento”, analisa a professora.

Reticente, Lígia Bahia acredita que seja uma ilusão pen-sar que a interdisciplinaridade em si possa revolucionar a sociedade. “Caso o objeto seja recortado de maneira con-servadora, não será a interdisciplinaridade que dará jeito nisso. Um objeto da Sociologia funcionalista com a Econo-mia neoclássica pode ser interdisciplinar, e ser, igualmente, conservador”, explica Bahia, afirmando ser um privilégio “olhar o mundo pelo olhar do outro”. A interdisciplinarida-de seria assim um exercício de alteridade. No entanto, ela não crê que esse olhar confira maior humildade ao fazer acadêmico: “não sei se é possível que, em uma sociedade tão desigual, doutores se permitam ser humildes”.

A multidisciplinaridade seria a tentativa de estabelecer relações entre as disciplinas que, porém, continuariam estruturadas em suas esferas de abrangência. A transdicipli-naridade, por sua vez, alcançaria um estágio onde não haveria mais fronteiras entre as disciplinas e se consideraria outras fontes e níveis de conhecimento.

Outubro•2006 21UFRJJornal da

Taisa Gamboa, da AgN UFRJ/CCSilustração Pina Brandi

Biodiversidade pirateada

O Brasil é considerado o campeão mundial da biodiversidade. Para se ter uma idéia, somente a Amazônia brasileira representa 40% das florestas tropicais existentes no mundo, mas apenas 5% da flora mundial foi estudada até agora. Esses dados, do Ministério do Meio Ambiente, são tão impressionantes quanto o número de empresas dispostas a explorar esse filão.

A ganância é tanta que algumas chegam a subornar grupos indígenas para facilitar o acesso a seus conhecimentos milenares, numa prática conhecida como biopirataria. Essas ações não são, porém, novidade, e foram freqüentes ao longo da formação do país.

De acordo com Celso Lage, professor do Departamento de Biofísica Ambiental do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ), os cientistas ainda

A biopirataria, de definição ainda nebulosa, não esconde os problemas causados ao país.

não chegaram a um consenso a respeito da definição mais adequada para o termo. De um modo geral, a biopirataria pode ser compreendida como uma prática caracterizada pela retirada de um componente da biodiversidade ou do conhecimento tradicional associado a ela para obtenção de lucro em outro lugar, sem se preocupar com a repartição dos benefícios com seus detentores originais que, geralmente, não dão conta do que detêm ou não dispõem dos mecanismos para viabilizar a comercialização de seu conhecimento ou do produto derivado desse.

Todo esse processo foi acelerado pela mundialização capitalista, que abriu caminho para o registro de marcas e patentes em âmbito internacional, tal como aconteceu com o cupuaçu (patenteado no Japão), o açaí (na Alemanha), a andiroba (na França, no Japão, na União Européia e nos EUA) e a copaíba (na França e nos EUA). Além disso,

questões relacionadas ao desenvolvimento de tecnologias devem ser mencionadas. Hoje em dia não há a necessidade de retirada de uma grande quantidade

de amostras para o desenvolvimento de

uma pesquisa. Uma pequena muda brasileira, por exemplo, pode se transformar numa plantação no outro lado do mundo, o que facilita a biopirataria.

Busca de controleSegundo Celso Lage, um dos cernes

da questão é justamente o fato de que informações de cunho tradicional raramente estão documentadas, ou possuem um detentor legal. Sem nenhum vínculo oficial, dificilmente o governo consegue proteger o patrimônio da ação dos biopiratas. Nesse sentido, a conscientização social sobre os benefícios que a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais oferecem à nação tem facilitado a criação e o planejamento de mecanismos de controle de práticas ilegais. Práticas essas que raramente respeitam as noções sobre repartição de benefícios incluídas na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), firmada no Rio de Janeiro, durante a ECO-92. Assinada pelo Brasil, a CDB assegura uma exploração econômica sustentável e a divisão justa dos benefícios obtidos, garantindo a cada país a soberania sobre o patrimônio genético em seu território.

A criação de um banco de dados sobre a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais à ela associados pode contribuir para uma solução. O objetivo é permitir ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, questionar pedidos de patente dentro e fora do Brasil. Todo o nosso conhecimento tradicional é reconhecido pela União e sua comercialização depende de legislação específica e autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável por tifipicar a biopirataria como crime.

A artilharia parece pesada, mas ainda é pouco. Para Celso Lage, os biopiratas têm passaporte turístico de cientistas, mas apresentam propósitos duvidosos. Diante da carência social e econômica das populações tradicionais, fica fácil para as empresas estrangeiras explorar e traficar mudas, sementes, insetos, e qualquer outro recurso natural que possa gerar lucros futuros.

A legislação brasileira prevê uma exploração equilibrada e responsável dos recursos naturais através de leis que protejam seu patrimônio. Entretanto, a enorme extensão territorial e o despreparo das autoridades atrapalham o combate à biopirataria, mas também dificultam o andamento das pesquisas brasileiras, criando barreiras para o acesso dos cientistas às fontes de conhecimento sobre biodiversidade. “É por isso que a principal estratégia do governo deve girar em torno do aumento de investimentos nas questões sociais, e em pesquisa e tecnologia sobre a biodiversidade. Se a população brasileira permite a extração de seu conhecimento, o faz por necessidade, ignorância e desamparo”, destaca Celso Lage.

Instituições federais e estaduais estão começando a investir em bioprospecção. A idéia é identificar oportunidades econômicas que potencializem empresas locais e nacionais e contribuam para o desenvolvimento de produtos que respeitem o uso correto dos recursos naturais. Segundo o pesquisador, o grande problema ainda é o pequeno número de empresas capacitadas a interagir produtivamente com as instituições de pesquisa e desenvolvimento. Por essa razão,

as universidades federais e alguns institutos e fundações vêm

buscando desenvolver competência para incubar

novas empresas de base biotecnológica.

22 Outubro•2006UFRJJornal da

Cultura

Mônica Reisfotos Marco Fernandes

Histórias de mulher

Denúncia, contestação, amor, autodes-coberta. Os temas abordados pela literatura brasileira de autoria feminina refl etem a pró-pria trajetória da mulher na sociedade, suas conquistas sociais e confl itos internos. Ainda pouco conhecida do grande público, essa pro-dução vem ganhando visibilidade através das iniciativas como as do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura (Nielm) da Faculdade de Letras da (FL/UFRJ).

Com o objetivo de discutir questões teóricas relacionadas a essa literatura, o Nielm organiza encontros com escritoras, contando com a par-ticipação de estudantes de pós-graduação em torno de debates e seminários, além de desen-volver considerável produção intelectual, como teses e dissertações. Está organizando, também, entre os meses de setembro e dezembro, o curso de Extensão Mulher em Prosa e Verso, oferecido em sua 3ª edição na FL. A meta é dar visibilidade a essas obras, não apenas na univer-sidade, mas também ao grande público.

Muitas autoras ainda desconhecidas têm trabalhos considerados de qualidade, como os de Júlia Lopes de Almeida, escritora do século XIX cuja produção somente começou a ser re-conhecida na década de 1980, e Nilsa Floresta, que defendia os direitos de indígenas e negros também na segunda metade do século XIX. Entretanto, segundo Helena Parente Cunha, professora do Departamento de Ciências da Literatura da FL e escritora, apesar de a impor-tância dessas obras, ainda não é possível fazer uma avaliação das contribuições que trouxeram a literatura brasileira. “A gente ainda precisa de um distanciamento para avaliar isso”, ressalta a professora.

TrajetóriaA incursão feminina pelo mundo da lite-

ratura brasileira é recente. As primeiras obras de que se tem notícia datam ainda do século XIX. Segundo Elódia Xavier, do Departamento de Letras Vernáculas da FL, elas constituem a primeira etapa da participação feminina na produção literária: a da imitação. “É uma lite-ratura ainda muito presa aos valores patriarcais. Às vezes há algumas desconstruções, mas logo se retorna aos padrões, como se ainda não desse para escapar daquele modelo”, explica a docente.

Entretanto, transgressões já são notadas nesse período. Helena Parente Cunha ressalta que algumas autoras desafi aram as regras com-portamentais da sociedade vigente, abordando temas como divórcio, ideais republicanos e direitos da mulher. “Não foi cem por cento imitação. Muitas reduplicaram sim essa idéia da mulher voltada para o lar, mas, por exemplo, Maria Adelaide de Castro Alves Guimarães, irmã de Castro Alves, escrevia romances eróti-cos, falando de desejo. Isso era impensável para a época”, exemplifi ca a professora.

O feminismo trará a ruptura defi nitiva. Na busca pela eliminação das diferenças de gêne-ro, proposta do movimento, pelo menos em sua fase inicial, a mulher começa a questionar seu próprio lugar na sociedade. É com Clarice Lispector, nos anos 1960, e Lya Luft , nos anos

A literatura brasileira de autoria feminina é, em grande parte, um espelho das transformações e conquistas sociais recentes da mulher. E essa

produção vem gradualmente sendo descoberta e reconhecida.

1970 e 1980, que se consolida o rompimento com a submissão aos valores tradicionais. Nes-se momen-to surgem personagens mais inde-pendentes. As temáti-cas ficavam por conta dos confl itos resultantes das relações homem/mu-lher, da recu-sa ao mundo doméstico como uma forma de se l ivrar das repressões familiares e da crítica a seu próprio papel desem-penhado na sociedade.

E n t r e -tanto, ainda que norteada pelas aspira-ções do femi-nismo, a produção dessa etapa de ruptura não tem propriamente função de divulgação ou militância. Segundo Elódia Xavier, essas obras abordam temáticas do movimento, embora não possam ser caracterizadas como exclusivas dele. “Quando o objetivo do texto é somente o de fazer a divulgação de idéias, esquece-se a proposta estético-literária. Essas idéias são elementos estruturantes, fazem parte do universo fi ccional, mas não são primordiais”, afi rma. Já para Rosa Gens, também professora do Departamento de Letras Vernáculas da FL/UFRJ e coordenadora do Nielm, a infl uência do contexto faz parte das atribuições das escritoras: “é o papel de criticar, de mostrar, de fazer ver o que não é visível”.

Na medida em que a mulher vai conquis-tando espaços, a literatura pós-anos 1990 se volta para a sociedade à procura de um novo posicionamento, uma nova visão que não se de-tenha somente em assuntos típicos do universo feminino. Surge, então, uma variedade de temas que vão desde o romance de amor até a crítica social, construída, muitas vezes com jargões e vocabulário de baixo calão.

Identidade feminina e suas tendências

A representação feminina na literatura brasileira é permeada por contradições. Enquanto no final do século XIX a feminilidade das personagens estava intimamente relacionada a submissão, na litera-tura dita de ruptura, a mulher se vê de forma independente, porém so-zinha e angustiada, atravessada por confl itos entre a tradição e o desejo

de rompimento com as referências que estru-turavam sua identidade tradicional. Um exem-

plo de como esse conflito inverteu a vi-são feminina de mundo é a abordagem da temática amorosa. Ela passa a ser vis-ta como algo que fragiliza a personagem, não havendo possibilidade de conciliação entre vida afe-tiva e realiza-ção pessoal.

De acor-do com Rosa Gens, essa so-lidão presente nas persona-gens femini-nas entre os anos de 1960 e 1970 faz parte de uma crise de identidade

da mulher, um mergulho no autodescobrimento e denuncia a busca de um novo papel a ser ocupado pós-rup-tura. “É como se houvesse um ritual de passagem em que o objetivo é o encontro consigo mesma. Toda crise é um estar consigo mesmo, senão

não há descobertas”, explica a professora. Dessa forma, o período atual – pós-anos 1990 – é o de construção de novas referências.

Essa crise da identidade feminina na litera-tura, assim como a representação da mulher, encontra suas raízes em um contexto maior. Segundo Helena Parente, a rigidez social característica do século XIX fazia com que as identidades femininas representadas na literatura fossem fi xas. “A mulher tinha uma identidade mais uniforme: ou era donzela, pura, anjo ou pecadora, depravada”. Ainda segundo ela, essas identidades se tornaram mais mutáveis, frutos das transformações da sociedade. “A mulher agora pode se apresentar de uma maneira em determinada situação e em outra se manifestar de forma diferente, de acordo com as variações da identidade. É uma diversidade muito grande que refl ete esse mosaico que é nosso momento cultural”, constata Helena.

Juntamente com as múltiplas identidades assumidas pela mulher na contemporaneidade, apresentam-se também tendências variadas, tanto na representação, quanto na estrutura narrativa e/ou poética. Se percebe, então, cer-ta transição para uma literatura sem marcas específi cas de gênero, com as questões típicas do universo feminino sendo incorporadas à ar-madura global da obra. De acordo com Elódia Xavier, isso signifi caria o próprio fi m da desig-nação “literatura de autoria feminina”, uma vez que ela, como um todo, está caminhando para a uniformidade. “O que nós fi zemos foi abrir um espaço com essa expressão que não existia antes, uma vez que esse campo era exclusiva-mente masculino”, explica a professora.

Outubro•2006 UFRJJornal da 23

CulturaPara ler

Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas

Jurgis BaltrusaitisEditora UFRJ, 1999

272 páginas

Glaucia Kruise Villas BôasEditora FGV, 2006180 páginas

Mudança provocada:passado e futuro no pensamento sociológico brasileiro

Aberrações: ensaio sobre a lenda das formas

Jurgis BaltrusaitisEditora UFRJ, 1999

272 páginas

Glaucia Kruise Villas BôasEditora FGV, 2006180 páginas

Mudança provocada:passado e futuro no pensamento sociológico brasileiroO cinema dos

direitos

Nos dias 4 e 5 de outubro, a Faculdade de Direito (FD) da UFRJ realizou o 2º Seminário Internacional Direito e Cinema – visões sobre o direito e a ditadura. Mas por que Direito e ci-nema? Quem responde é Juliana Neuenschwander Magalhães, professora e diretora da FD/UFRJ, explicando que o Direito é, antes de mais nada, uma linguagem social, portanto uma forma de expressão e comunicação: “de 20 anos para cá, no campo da Teoria do Direito, começa-se a discutir a questão do Direito como linguagem, e, mais recentemente, como literatura, na medida em que o discurso político pode ser comparado ao discurso literário. Indagamos porque não pensar numa relação entre cine-ma e Direito, já que o poder da imagem é muito maior do que o poder da palavra”.

O seminário, or-ganizado por Nádia Pires e Vítor Macabu, estudantes da FD, con-tou com a presença de pesquisadores interna-cionais, como Adriana Prizreni, da Universidade de Lecca (Itália) e Rainer Maria Kiesow, do Instituto Max Planck (Alemanha). De acordo com Juliana Ma-galhães o projeto foi iniciado sem muito conhecimento das pesquisas que já haviam sido feitas nessa área. “A primeira fase desse projeto foi explora-tória. Levantamos informações sobre que tipo de investigação estava sendo levado a cabo em ou-tros lugares e mapeamos pesquisas nos Estados Unidos, em Israel, em Portugal e no Canadá. A idéia não era, de todo, original, mas o marco teórico que adotamos seguia uma direção diferente de que os outros pes-quisadores haviam trilhado”, informa a diretora.

Nádia Pires precisa o foco do seminá-rio: “Não é um estudo sobre cinema, mas sobre o Direito e suas diferentes formas nas produções cinemáticas”. Juliana Maga-lhães ressalta que “discutimos a questão da ditadura, porque o Direito é indizível nesse contexto, ou seja, ele se manifesta de outras formas que não seja a da legalidade, e o meio de comunicação se torna extremamente poderoso na veiculação de conteúdos jurídicos”.

A abordagemTrês fi lmes foram discutidos nos dois dias de seminário: O

triunfo da vontade (1934), de Leni Riefenstahe, Estado de sítio (1973), de Costa-Gavras, e Abril despedaçado (2001), de Walter Salles. Os organizadores salientam não haver uma temática em comum entre eles, a não ser a possibilidade de visualizar as di-ferentes formas do direito. “Com O triunfo da vontade pudemos

O cinema também serve para construir direitos. As imagens tanto podem denunciar o sofrimento humano, como servir de

instrumento de legitimação das desigualdades sociais.

Joana Jahara

discutir como as imagens são capazes de constituir e legitimar um determinado tipo de Direito, que é o totalitário”, destaca Nádia Pires.

Ao contrário do fi lme de Leni Riefenstahe, Estado de sítio foi um instrumento de crítica e denúncia do autoritarismo na América do Sul. “O mesmo cinema que legitima o totalitaris-mo é o mesmo que pode desmistifi car ou denunciar ditaduras. Enquanto esse fi lme estava sendo projetado na Europa, ele era proibido por aqui”, resume Nádia Pires.

No caso de Abril despedaçado, Nádia explica que não há a presença das gran-des questões políticas que envolvem Estados ditatoriais, mas do direito costumeiro, do direito à vida. “O cinema também é capaz de resgatar esse direito do cotidiano que nem se percebe que é direito. Vivemos em um mundo muito judicializado, onde se confunde direito com a letra fria da lei. Direito é muito mais do que lei. Walter Salles trabalha um livro albanês que envolve o direito consuetudi-nário, da dívida de sangue, e o contextualiza para o Brasil, onde fi ca muito interessante enxergar o direito, a honra e a moral, tudo misturado”, explica a estudante.

A tentativa, segundo Juliana Magalhães, foi pensar como o Direito se produz através do cinema: “quase todos os autores que vimos trabalham com certo viés pedagógico. Por exemplo, um filme que aborda a evolu-ção do constitucio-nalismo nos Esta-dos Unidos vai en-volver a desagre-gação racial das escolas públicas

norte-americanas. Demos um passo adiante porque

estamos pensando como o discurso jurídico se au-toconstitui. Ele não nasce apenas do legislador, da vontade do Estado, ele é resultante de um processo genuinamente nacional. E nesse momento de formação do Direito, o cinema pode ser um instrumento a serviço da produção da comunicação jurídica”.

A diretora e os organizadores do evento sublinham, no entanto, que não se pretendeu fazer um estudo pontual da ditadura. “Trabalhamos a ditadura como um fenômeno social, uma categoria geral. E, inclusive, um dos pontos da pesquisa é investigar e descrever o próprio conceito de ditadura. O que são a ditadura, o totalitarismo e o fascismo, categorias, vamos dizer assim, pouco precisas para a Teoria Política e Jurídica?”, indaga Juliana Magalhães.

Maria Kiesow, do Instituto Max Planck (Alemanha). De acordo com Juliana Ma-galhães o projeto foi iniciado sem muito conhecimento das pesquisas que já haviam sido feitas nessa área. “A primeira fase desse projeto foi explora-tória. Levantamos informações sobre que tipo de investigação estava sendo levado a cabo em ou-tros lugares e mapeamos pesquisas nos Estados Unidos, em Israel, em Portugal e no Canadá. A idéia não era, de todo, original, mas o marco teórico que adotamos seguia uma direção diferente de que os outros pes-quisadores haviam trilhado”, informa a

Nádia Pires precisa o foco do seminá-rio: “Não é um estudo sobre cinema, mas sobre o Direito e suas diferentes formas nas produções cinemáticas”. Juliana Maga-lhães ressalta que “discutimos a questão da ditadura, porque o Direito é indizível nesse contexto, ou seja, ele se manifesta de outras

explica que não há a presença das gran-des questões políticas que envolvem Estados ditatoriais, mas do direito costumeiro, do direito à vida. “O cinema também é capaz de resgatar esse direito do cotidiano que nem se percebe que é direito. Vivemos em um mundo muito judicializado, onde se confunde direito com a letra fria da lei. Direito é muito mais do que lei. Walter Salles trabalha um livro albanês que envolve o direito consuetudi-nário, da dívida de sangue, e o contextualiza para o Brasil, onde fi ca muito interessante enxergar o direito, a honra e a moral, tudo misturado”, explica a estudante.

A tentativa, segundo Juliana Magalhães, foi pensar como o Direito se produz através do cinema: “quase todos os autores que vimos trabalham com certo viés pedagógico. Por exemplo, um filme que aborda a evolu-ção do constitucio-nalismo nos Esta-

Demos um passo adiante porque estamos pensando como o discurso jurídico se au-

toconstitui. Ele não nasce apenas do legislador, da vontade do

Indagamos porque não pensar numa relação entre cine-ma e Direito, já que o poder da imagem

O pensamento sociológico brasileiro parecia, em meados do século passado, convicto de certa leitura do país que combi-nava um esforço por compreen-der as mutações estruturais por que passava a nossa sociedade com a vontade de intervir na

armadura das instituições de modo a alterar mentalidades e comportamentos considerados arcaicos e construir uma sociedade moderna, concebida, ainda que com modula-ções e infl exões diversas, como democrática, secularizada e industrializada. Visceralmente comprometida, assim, com esse projeto igualitário e universalista de mudanças sociais, essa geração da nossa intelligentsia haverá de submeter à crítica interpretações anteriores que acentuavam nossos particularismos e enfatizavam um suposto caráter nacional ambivalente, vistas como tributárias de uma visão imobilista da vida social e, sobretudo, legitimadoras daquele status quo que, justamente, se buscava superar.

Cinco décadas depois, o pensamento sociológico bra-sileiro tomará novos rumos e adotará outros paradigmas que acabarão por descartar precipitadamente a produção intelectual daquela geração como iluminista e a estigmatizará como impregnada de uma teologia laica que abriga em suas entranhas um projeto totalitário. A magnífi ca obra de Gláucia Kruise Villas Bôas, professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ e coordenadora do seu Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura, reúne ensaios escritos em momentos diversos que ajudam a levantar o véu que encobre aquele momento crucial da história das idéias sociais do país e que certo prêt-à-penser contemporâneo ameaça relegar ao esquecimento.

Mudança provocada, cujo título retoma expressão de dic-ção mannheimiana – usual entre os sociólogos dos anos 1950 – que sintetiza a vontade de “intervir na realidade” de modo a superar os entraves à instauração de uma ordem moderna no país, está organizada em três partes. A primeira discute as interpretações do Brasil avançadas em Os sertões de Euclides da Cunha e Casa Grande & Senzala de Gilberto Freire, que resultam numa “ontologia do brasileiro” que sustenta o mito da ambigüidade do ethos nacional. A segunda volta-se para os escritos de Florestan Fernandes, Luiz de Aguiar Costa Pinto e Guerreiro Ramos e discute as tarefas do sociólogo e seu papel na formulação e implantação de uma ordem social capaz de ultrapassar nossos arcaísmos. Por fi m, a última mostra como as contribuições daqueles pensadores ajudaram a revelar as desigualdades estruturais da sociedade brasileira.

Jurgis Baltrusaitis é, sem dúvida, um dos espíritos mais originais do seu tempo e um dos mais inquietos historiadores da Arte do sé-culo passado. A discussão que propõe sobre o papel das imagens inaugurará certo estrutu-ralismo das formas – uma hipótese que renovará sem cessar ao longo da vida e na qual muitos encontrarão antecipações do trabalho Claude Lévy-Straus. Natureza e Arte podem convergir em uma única obra, assim como a Arte pode evi-denciar semelhanças entre formas. Uma abordagem em que os rígidos contornos que limitavam a perspectiva euclidiana renascentista são subvertidos, a partir de um simbolismo “em que - como sublinha o autor – o olhar é dominado pelo desejo e a paixão de ver as coisas de uma maneira preconcebida”.

Aberrações, cuja primeira edição data de 1957, foi mais tarde reeditada por Baltrusaitis, junto com Anamorfoses e A busca de Isis, sob o título geral de As perspectivas depravadas, o que indica a preocupação comum com o estudo da mor-fologia das formas, ainda que cada uma dessas obras tenha valor próprio. São quatro ensaios que analisam mais de uma centena de obras de arte, cobrindo um percurso que vai do século XIV ao XX, através da comparação entre os reinos da natureza com as formas do corpo humano e das artes visuais em textos que, de acordo com as próprias palavras do autor, tangenciam o desvario. No primeiro ensaio, formas animais são comparadas às feições humanas. Formas minerais são articuladas com as confi gurações dos seres vivos e de paisa-gens, no segundo. Os dois seguintes discutem aproximações entre formas vegetais e arquitetônicas, sendo que o último também abarca o paisagismo e a pintura.

Um livro interessante para todo aquele que trabalha com imagens em diversas áreas do conhecimento, com destaque para a Antropologia, a Literatura, a História da Arte, a Ar-quitetura, as Belas Artes e o Design. A tradução é de Vera de Azambuja Harvey e foi publicada com o apoio do Ministério Francês de Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison Française do Rio de Janeiro.

24 Outubro•2006UFRJJornal da

paixão

doramor

sofrer morrer

Personalidade

Isabela Pimentel, Mariana Brugger e Rachel Rimas, da AgN UFRJ/Praia Vermelhailustração Jefferson Nepomuceno

“Você sabe o queé ter um amor, meu senhor?”

Após 32 anos de sua morte, a obra de Lupicínio Rodrigues continua viva. Aqueles que possuem “nervos de aço” se rendem ao lirismo dos versos de um

poeta que sabia como ninguém o que era ter um amor e “por ele quase morrer”.

Lupicínio Rodrigues

Lupicínio Rodrigues tornou-se um dos grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB), devido a força de suas canções em que sobressai a temática amorosa levada ao paroxismo, já que em cada uma delas “havia pedaços do seu coração”. Afinal, quem nunca padeceu por amor? Quem nunca se apaixonou por alguém e não sofreu quando dispensado? Todo aquele que viveu desilusões amorosas pode reconhecer em Lupicínio Rodrigues um companheiro de sofrimento e, sobretudo, um intérprete das emoções mais fortes.

Trajetória de um boêmioPrimeiro homem de uma família grande e humilde, Lupi,

como era chamado por familiares e amigos, evidenciou dotes musicais desde pequeno, ainda na escola. Na adolescência, fre-qüentava, até tarde da noite, os bares, bebendo e cantando com amigos. Seu pai, preocupado com a vida desregrada que levava, o alistou “voluntariamente” no Exército. O tiro, entretanto, terminou saindo pela culatra, pois acabou cantando em um grupo formado por soldados do batalhão em que servia e, por essa época, compôs seus primeiros sambas importantes.

Em uma viagem à Santa Maria, no Rio Grande do Sul, ainda como militar, conheceu Iná (“a primeira namorada, pri-

meira noiva e primeira desilusão”, segundo o próprio Lupicínio), por quem acabou se apaixonando. O ro-mance não teve final feliz: a família dela não aceitou a boemia de Lupicínio e, depois de cinco anos, os dois romperam o relacionamento. Iná se converteu, porém, em musa permanente, inspirando muitas de suas músicas, inclusive a famosa Nervos de

aço (1932). Fervoroso torcedor do Grêmio foi também o autor do hino do tricolor gaúcho. Compôs ainda marchinhas de Carnaval em que manifesta um lado mais descontraído.

Expressão do cenário musical de sua época, Lupicínio sofreu influências de

Mário Reis (sambista carioca, branco, que representou uma grande novidade, com sua voz “pequena” e interpretação

brejeira, mas ritmicamente rica, sem impostação, diferente da marcada pela influência do bel-canto) e tentou certa convergência entre o regionalismo

sulista e o cantar quase falado de Mário, que disputava com Francisco Alves e Vicente Celestino o papel de ídolo popular, posteriormente,

influenciando a Bossa Nova.

Lupicínio, que despontou no fim dos anos 1930, consolidou seu sucesso nas décadas de 1940 e 1950. Após um período de relativo esquecimento, sua obra foi redescoberta, na década de 1970, por nomes como Caetano Veloso e Elis Regina.

Rompendo com o regionalismoPara homenageá-lo, o Fórum de Ciência e Cultura (FCC/ UFRJ)

promoveu, dia 29 de setembro, um “Tributo a Lupicínio Rodrigues”. O evento constou de palestras sobre o compositor e de um show com músicas do poeta gaúcho em um cenário que retratou bem a boemia em que viveu.

Samuel Araújo, docente da Escola de Música da UFRJ, presente ao evento e estudioso da obra de Lupicínio, destaca o modo “lupi-ciniano” de interpretar. “Lupicínio foi mais do que um intérprete no sentido convencional, ele era alguém que vivia literalmente através de sua música”, enfatiza o professor, para quem o com-positor aprofundou uma nova maneira de cantar, um estilo mais suave e menos impostado, com uma interpretação que remetia ao cotidiano, através de representações e imagens coloquiais. “Lupi trouxe uma nova sensibilidade para a MPB, integrando vertentes regionais, nacionais e internacionais das obras de seu tempo”, constata Araújo.

Gaspar Paz, mestre em Musicologia pela UFRJ, um dos pales-trantes do evento, afirma que “Lupi procura romper com as fron-teiras restritivas do regionalismo. Sua poesia era ouvida em todo o território nacional; afinal, quem não sofreu por amor?”, indaga.

O tragicômico em LupicínioComo a maior parte de sua obra trata de matizes das decepções

amorosas, Lupicínio acabou rotulado como o “cantor da dor-de-cotovelo”, o que, infelizmente, relegou à sombra outras facetas do compositor. Criticando esse reducionismo, Gaspar destaca dimensões insuspeitadas da obra lupiciniana, desvelando nuances, que, por vezes, ficam esquecidas, “pois é uma pobreza imensa en-clausurá-lo ou estigmatizá-lo apenas como um cantor romântico ou da dor-de-cotovelo”.

O lado cômico da obra de Lupi, por exemplo, ganha relevo na análise de Gaspar. Quando discute a dialética entre o trágico e o cômico na obra lupiciniana, o músico sublinha que nela “o trágico pode transitar para o cômico com certa naturalidade a partir do lúdico. Acho que Lupicínio situa-se na fronteira entre as dimensões do trágico e do cômico. Quase sempre acentuando esse último aspecto”. Gaspar Paz lembra que a vertente cômica da obra de Lupi serviu de base para obras do cartunista Jaguar, que

produziu trabalhos baseados em canções como Volta (1957) e Se acaso você chegasse (1938). Esses trabalhos puderam ser vistos no FCC.

Os padrões de comportamento imperantes em sua época também foram criticados por Lupi. Segundo Paz, suas composições denotavam certa crítica aos

valores sociais, a partir de diferentes perspectivas. Para ele, Lupicínio Rodrigues “sempre se colocou

à margem de uma sociedade institucionalizada. Parece que estava rindo disso tudo, desses acon-

tecimentos, desse ambiente enclausurador e dessa moral estabelecida”.

Paz ainda enfatiza que “o aspecto cômico revela-se como manifestação social, já que havia em suas canções,

ao lado da dor, um caráter lúdico que as povoavam de lembranças alegres. Através de uma poética personalís-sima, brincou com a música e, tocando sua caixinha de fósforos, driblou o requinte satisfeito e construiu uma

linguagem romântica, crua e apaixonada”.O poeta aposentou-se em 1947, alegando sério problema

de saúde: amor. Em 1974, falecem por insuficiência cardíaca.