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^^ 6. Dois eixos de análise privilegiados pela antropologia social e cultural

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UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

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Page 1: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

^^

6. Dois eixos de análiseprivilegiados pela antropologia social e cultural

Page 2: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

SUMASIO

O campo do parentesco -.-"E31 6.1 Os símbolos dos diagramas de parentesco

---{ • 6.2 As abreviações

•fí 6.2.1 Notação das relações de parentesco em língua portuguesa

.H 6.2.2 Notação das relações de parentesco em língua inglesa

-. 6.2.3 Notação das relações de parentesco em língua francesa

•;. 6.3 As nomenclaturas

T í ' 6.3.1 O modo de utilização~T "

V. 6.3.2 A estrutura linguística dos termos de parentesco

6.3.3 O campo de aplicação

; 6.3.4 Os principais tipos terminológicos

7. 6.4 O casamento e a aliança matrimonial

6.4.1 O átomo do parentesco

-l-_ 6.4.2 O avunculato

6.4.3 Os tipos de casamento

6.4.3.1 A monogamia e a poligamia

' ' 6.4.3.2 O levirato e o sororato

.". 6."5 Descendência e filiação^

"V"""""6.5.1 Afiliação indiferenciada

'• • ' 6.5.2 A filiação matrilinear (ou uterina)

6.5.3 A filiação pat-i-ilinear (ou agnáúca)

6.5.4 Afiliação bilinear (ou dupla filiação unilinear)

•" 6.6 Á linhagem, a linhada e o clã

—" " " "_ó;7 Á parentela_j5.8 A residência matrimonial

6.9 A família nuclear

6.10 Á herança e a sucessão

O campo da antropologia política

i-:v . 6.1 A organização política das sociedades

6.1.1 Aperspectiva de alguns antropólogos

6.-1-.2 O Estado

121

Page 3: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

Objectivos de Aprendizagem

Após a leitura do VI Capítulo - Dois eixos de análiseprivilegiados pela antropologia social e cultural, o leitor deverá ser capazde entender:

No campo do parentesco:

• A relativa base biológica na construção social do parentesco

• Os mecanismos que estruturam os sistemas de parentesco e a suaimportância no estudo das sociedades

• A diversidade dos sistemas de parentesco '

• Os tipos de terminologias e o seu papel na estruturação do parentesco

• Os determinantes sociais da aliança matrimonial

• As características dos diferentes sistemas de filiação

• Os diferentes tipos de organização familiar

_No .campo .da antropologia poítica:

• Os objectivos da antropologia política

• A diversidade dos tipos de organização política

• A perspectiva de alguns antropólogos acerca do assunto

• A relação entre organização social e política em determinados grupos

• As diferentes formas de Estado

• A noção de Nação e de Estado

Page 4: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

O campo do parentesco

O estudo do parentesco teve, desde muito cedo, um papel preponderante nainvestigação antropológica. Pode mesmo dizer-se que o seu estado foi durantemuito tempo, e de certo modo continua a sê-lo , uma das "galinhas de ovos de

. ouro" da antropologia. O seu caracter abstruso, a utilização de um certo númerode abreviações, os diagramas, cuja leitura nem sempre é fácil, necessitando dealguma ginástica cerebral, transmitiram a ideia de que a antropologia tinhaadquirido, com os estudos de parentesco, um alto grau de cientismo. Em certospaíses, chegou-se mesmo a hierarquizar implicitamente os própriosantropólogos (o que continua a acontecer embora emmenor grau), colocandono topo os que realizavam estudos de parentesco.

Porém, exageros à parte, é verdade que o estudo do parentesco corresponde aum dos eixos da investigação antropológica cujo sucesso científico foi dosmais brilhantes. A razão prende-se com o facto doparentesco ser, nas sociedadesque habitualmente estudam os antropólogos, a chave absolutamenteindispensável para a sua compreensão. Neste tipo de sociedades, as relaçõesde parentesco estão presentes em todos os aspectos da vida social: económico,religioso, político, etc.

Emparticularnas sociedades simples, semEstado, ou nas sociedades europeiasditas tradicionais, não é possível compreender como se processam as relaçõesentre indivíduos e grupos, as relações de poder, as diversas prestações, etc. senão se conhecer como se organiza o parentesco entre os indivíduos e o modocomo se reflecte em toda a organização social. Nestas sociedades, a organizaçãodo parentesco coincide de mpdo muito estrito com a organização social no

' s~éu geral. À. R. Radcliffe-Brown, a propósito da sua larga experiência dossistemas de parentesco africanos faz notar que "Para a compreensão de umqualquer aspecto da vida social denmapopulaçãb africana- aspecto económico,político ou religioso - é essencial possuir um conhecimento aprofundado dasua organização familiar e matrimonial. Isto é de tal maneira evidente para oetnólogo que é praticamente inútil de o sublinhar" [1952:1].

Mas também nas nossas socie~dadês7s"epõde observar, embora noutro registo,interdependências entre a organização do parentesco e a organização dasociedade. Por exemplo, no estudo que realizei numa aldeia da Beira-Baixana década de oitenta, foi possível constatar como o parentesco se reflecte deforma muito estreita na paisagem agrícola - influenciando a organização doespaço agrário, tanto nas formas como na dimensão dos campos, etc. -. edetermina assim fortemente a organização social local no seu todo [A. Santos,

1992].

123

Page 5: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

m.

Outros estudos, conduzidos naEuropa, mostram que nas nossas sociedades oparentesco continua a ter um peso importante- Pesquisas recentes revelam apermanência da influência do grupo familiar alargado na sociedade actual,apesar da organização dos Estados modernos ter substituído muitas das suasfunções. De facto, para além do exemplo que dei a propósito da minha própriaexperiência na Beira-Baixa, existe um quantidade de trabalhos sobre parentescoeuropeu atestando a permanência do seu peso, ou o reactivar de certos aspectos,nas sociedades contemporâneas modernas, desmentindo, assim, os lugarescomuns que pretendiam fazer crer que o parentesco só teria importância paraos selvagens. Francoise Zonabende, em La mémoire langue [1980], revelaque, em meio rural francês contemporâneo, o casamento entre primosgermanos1 (primos direitos), muito em uso no passado, volta a ser praticadono presente. As facilidades actuais de deslocação em vez de alargar o leque depotenciais cônjuges como se poderia esperar, favorece ao contrário o casamentoentre primos residentes ern locais distintos. Narealidade, a distância geográficatorna-se, graças às facilidades de deslocação modernas, um factor que favorecea escolha deste tipo de cônjuge consanguineamente próximo. O interessanteno caso é ser precisamente a distância geográfica que, de certo modo, actuacomo factor atenuante da perspectiva do grau de proximidade consanguínea.Deste modo, o primo germano converte-se no cônjuge ideal, na medida emque nem é muito próximo nem muito afastado consanguineamente.

1 Os indivíduos que têm omesmo pai e rnãe/são cha-mados "germanos". Assim,os primos direitos por leremavós comuns e forte proxi-midade consanguínea sãoditos "primos germanos"(ou seja, quase tão próxi-mos como irmãos).

Estes esclarecimentos e diferentes exemplos são suficientes para poder constatarquanto são importantes os estudos sobre o parentesco a propósito das sociedadesem geral e das ocidentais modernas inclusivamente. Eu diria urgentemente nocaso-das-sociedades ocidentais exactamente por não terem merecido umtratamento idêntico ao que foi dado às sociedades exóticas e tradicionais. Enão foi dado um tratamento idêntico por se ter tidò"por base "de ràciõcíhiourriãatitude "anti-ciência", ao considerar-se, implicitamente e àpriori (quer dizersem fundamento de prova), ser o parentesco não determinante no nosso tipode sociedade ou ser coisa já conhecida. Na minha perspectiva, é mais quefundamental os investigadores debruçarem-se sobre estes monumentos quesão os sistemas e os usos sociais do parentesco europeu assim como sobre osseus múltiplos reflexos na sociedade e respectivos condicionamentos emdeterminadas instituições. Não será "este livro de iniciação à antropologia olugar indicado para explicar quanto a sociedade portuguesa se ressente dalonga permanência dos filhos solteiros em casa dos pais e da tardia passagemdirecta do filho da dependência materna para a da esposa.

Como não é difícil imaginar, seria possível multiplicar os mais variados exemplosdos efeitos sociais do parentesco enquanto sistema básico e o interesse do seuestudo. Felizmente, em consequência da gradual acumulação de dados e dasua pertinência, existem cada vez mais investigadores a dar atenção a estegénero de estudos no domínio europeu.

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Confrontado com a importância do parentesco, L. Morgan [1851] foi dosprimeiros a debruçar-se sobre o assunto, ao dedicar-se ao estudo dasterminologias de parentesco. Estas estiveram na base de urna tipologia dossistemas de parentesco assim como das formas de organização social propostaspor Morgan e, mais tarde, completada e afinada por Murdock [1949]. Asinvestigações sobre parentesco têm sido numerosas. Porém, também asperspectivas teóricas têm oferecido alguma variedade e importância. Sobretudoas que opuseram durante algum tempo duas escolas: a inglesa apoiada nateoria da filiação e, mais recentemente, a escola francesa quando Lévi-Straussfunda a teoria da aliança, apoiado na análise estrutural do parentesco.

Porém, tanto uma como a outra das escolas convergem nos mesmos objectivose o próprio Lévi-Strauss [1958: 333] concorda absolutamente comRadcliffe-Brown quando este define os objectivos do estudo do parentescocomo devendo conduzir a: 1) fazer uma classificação sistemática; 2)compreenderes traços específicos de cada sistema: a) seja ligando cada traçoa um conjunto organizado b) seja reconhecendo-lhe um exemplo particular deuma classe de fenómenos já identificados; 3) enfim, conseguir chegar ageneralizações válidas sobre a natureza das sociedades humanas. O terceiroponto é muito importante, na medida em que reintroduz a finalidade geral daantropologia e relembra que o estudo do parentesco não deve confinar-se ameras tautologias acerca de sistemas formais e abstractos, sem deixar aperceberos seus diferentes encaixes no contexto social de onde foram extraídos[Radcliffe-Brown, 1941:17, inLévi-Strauss, 1958: 333].

Lévi-Strauss termina dizendo que "Para Radcliffe-Brown, a análise doparentesco tem por objectivo reduzir a diversidade [de 200 ou 300 sistemas deparentesco] a uma ordem; sej"ã"ela qual for. Por detrás da diversidade, pode defacto discernir-se princípios gerais, ern número limitado, que são aplicados ecombinados de formas diversas" [Ibid.]. Na afirmação de Lévi-Strausstransparece, claramente, as suas preocupações estruturalistas que sãoessencialmente de carácter tipológico para o autor britânico.

É comum utilizar-se indiferentemente os termos parentesco, família,familiares, para falar dos parentes. Contudo, o mais usual, actualmente, éutilizar-se o termo parentesco para referir os parentes no seu geral ou referiruma relação desse tipo "nós ainda temos algum parentesco em comum". Otermo "família" sendo mais utilizado para falar dos parentes mais próximoscomo a família conjugal, "...a família lá de casa...", é no entanto também, porvezes, empregue para evocar os parentes em geral: "...na minha família..."ouainda para referir uma relação desse tipo "...ainda temos alguns laços defamília".

Por outro lado, para além de na maioria das vezes se confundirem, tanto otermo de parentesco como o de família têm sentidos pouco precisos no uso

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- Para qualquer precisão so-bre definições relativas aoparentesco ver, entre outros,Noles and Queríes ouÁnthropology, 6' ed., 1951.

corrente da língua. Acontece, o termo parentesco ser utilizado para falarindiferentemente dos nossos parentes muito próximos, como os pais etc., oureferir o conjunto dos parentes mesmo os muito afastados e inclusivamenteancestrais não contemporâneos do locutor. Do mesmo modo, a mera utilizaçãodo termo família não informa imediatamente e com precisão quem são osindivíduos incluídos nesta categoria. No uso comum, raramente se da a ambosos termos o sentido que lhes atribuem os antropólogos nas suas análises. Ora;

esta imprecisão terminológica constitui uma das dificuldades da antropologiana medida em que muitos dos seus conceitos científicos são, como foi já dito,retirados do vocabulário comum. Dada a relativa equivalência entre as palavrasparentesco e família e respectiva imprecisão, é sempre de todo o interesseprecisar de que parentesco ou tipo de família se trata. Um última nota paraindicar que os especialistas quando se referem à família fazem-no geralmenteno sentido de grupo residencial, rnais ou menos alargado, cuja organizaçãoincluem no campo mais vasto do parentesco e enquanto uma das suascomponentes.

Assim, o termo parentesco tem vários sentidos correntes, mas no que nosinteressa designa as relações entre indivíduos baseadas numa ascendênciacomum, real, suposta ou fictícia e ern certas modalidades de afinidade2.Além disso, é necessário distinguir o parentesco biológico do parentesco•socialmente rec onhecido.

Na realidade, podem existir laços de consanguinidade não reconhecidossocialmente que assimnão conduzem, a uma relação parental. Em contrapartida,o-parentesco socialmente reconhecido nem sempre repousa sobre a existênciade relações de consanguinidade reais. De facto, o parentesco não repousa

" automática e inteiramente sobre o biológico. Muito rapidamente se "separa darealidade biológica para evidenciar uma construção social do parentesco. Emcertos casos, não existe o mínimo laço de sangue no parentesco socialmentereconhecido: designadamente no caso dos filhos adoptivos. Este desajuste,entre consanguinidade e parentesco socialmente reconhecido, verifica-senomeadamente nas linhas colaterais do nosso próprio sistema português:quando designamos "tio/tia" os cônjuges dos nossos tios consanguíneos. Ouseja, nomeamos de modo idêntico os tios de sangue e os tios por afinidade, oque não é indiferente para a análise. Este fenómeno é, por exemplo ainda,igualmente observável no parentesco dito totémico em que a consanguinidadeentre os membros do clã totémico não têm por base a consanguinidade real,mas a figura de um, ou uma, ancestral comum fictício. Poderia multiplicar osexemplos reflectindo esta realidade social. Inclusivamente exemplos muitoactuais, resultantes das novas técnicas bio-médicas, conforme já referi nocapítulo l, designadamente, apropósito dos embriões extra-uterinos. Por outraspalavras, não é necessário existir uma relação de consanguinidade para que

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exista uma relação fundada sobre o parentesco. Contudo, as relaçõesbiológicas não deixam de estar na base da construção social do parentesco.

6.1 Os símbolos dos Diagramas de Parentesco

Antes de abordar o estudo do parentesco, nos seus principais aspectos, énecessário dar a conhecer os diferentes símbolos convencionais de que seserve o antropólogo do parentesco para elaborar e interpretar os diagramas deparentesco:

Indivíduo de sexo raascuHno

O Indivíduo de sexo feminino

Indivíduo de sexo indiferente

Indivíduo falecido

Primogérnto/irmão/fílho mais velho

C_J Primoénita/irmã/filha mais velha

Benjarnim/irmão/íilho mais novo

B enj arnim /irmã/filha mais nova

Ou . Casamento

Casamento polígarno

Filiação

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Gerrnanidade (relação entre irmãos)

Divórcio

l A2í. :,

r-* n

Ui ...i. . .

-J*-™t-!*. :.

M» v

a ;

T

4.

4W Marido e e

1h áp irmão e in

J^ Ego masculino (indivídu_ - . ... _ — ̂ asrelações-de- parentesco

..{ : . @ Ego feminino

--; • : • ; ;

í : . ..-t L .

i11 :. : -

1 •ii

1

P = - Primos paralelos

P x - Primos cruzados .

G+ - Gerações superiores

GO - Geração Zero

G- - Gerações inferiores

Uma nota, para indicar, muitcdefinem como tal pelo facto desexo. Inversamente, os primosindivíduos saídos de irmãos dí

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Segundo casamento de um homem

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Primos cruzados e primos paralelos

primoscruzados

pnmosparalelos

Eso primosparalelos

primoscruzados

patrilaterais matrilaterais

Diag. l

Para a leitura dos diagramas genealógicos, existem diferentes parâmetros quecruzados permitem indicar comrigor a posição de cada indivíduo em referênciaa outro, determinando assim o tipo de relação de parentesco entre eles. Osparâmetros são os seguintes: alinbarecta, ao longo da qual se encontram osascendentes e descendentes; as linhas colaterais, nas quais se distribuem oscolaterais a diferentes graus (os irmãos são os nossos primeiros colaterais e oponto de partida para a contagem de todos os outros); o grau deconsanguinidade que informa sobre a maior ou menor proximidade parentaldentro de uma certa categoria (por exemplo, entre os primos); e, finalmente, ograu genealógico que indica a posição de um indivíduo no grupo deparentesco. O cruzamento destes elementos permite situar com precisão umindivíduo numa cadeia genealógica.

Assim, dois indivíduos, parentes do quarto grau de consanguinidade, em queambos se encontram na geração O (GO) e no segundo grau de colateralidade(2° Col.) em relação um ao outro, só podem ser, na cultura europeia (deparentesco cognático), primos direitos (diag. 2). O cruzamento das diferentescoordenadas, dadas no exemplo, é importante visto existirem parentes diversosnum mesmo grau: por exemplo, são também do quarto grau o nosso tio-avô,entre outros. Ou seja, a simples indicação do grau de consanguinidade não

-informa sobre o tipo de parente em causa, a sua posição genealógica no conjuntoparental, mas unicamente sobre a proximidade consanguínea de umdeterminado indivíduo num grupo mais ou menos heterogéneo de parentes.

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B'..

G+l

G Oirmão

O

Eso pnmadireita

2° Gol

ff"

Diag. 2

6.2 As abreviações

í**'

U:;

Para além dos símbolos utilizados para construir os diagramas genealógicos,"utilizam-se ainda, porrazoeydecjpéràcionalidade, um sistema de abreviaçõesou de notação dos termos de parentesco. Este representa na prática, grossomodo, a tradução dos termos locais registados em termos parentais do universocultural do investigador, segundo a abreviação da sua denominação.

Não se trata apenas de uma mera tradução de termos locais para o universocultural do etnólogo. Importa obter também a maior equivalência possível"entre o significado de certo termo parental - na sua complexidade significativado ponto de vista do contexto local onde se expressam - e a língua do observadorou ainda significar uma determinada categoria de parentesco não existente,eventualmente sem equivalência exacta, na terminologia do parentesco doobservador.

Pode dizer-se que o sistema de notação representa uma tentativa de criaçãode uma linguagem científica universal dos termos de parentesco. Ou seja,apresenta-se como uma terceira linguagem - entre a linguagem local e a doinvestigador -, uma espécie de metalíngua que esta para os antropólogos doparentesco como o latim para os botânicos. Como se sabe, os botânicos, graçasà terminologia latina, e independentemente da língua falada por cada um deles,conseguem comunicar em termos científicos comuns para referenciaruniversalmente uma determinada planta. As abreviações do parentescorepresentam mais ou menos a mesma vantagem para os antropólogos.

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Porém, a tentativa de convencionar um sistema universal de abreviação dostermos de parentesco colocou alguns problemas não resolvidos até à data. Defacto, os especialistas não concordaram sobre a língua que forneceria osprincípios linguísticos convencionais e universais do sistema de notação,

A língua inglesa foi a primeira a fornecer os seus princípios, mas os franceses,para quem a notação em inglês se tomava difícil de utilizar, criaram igualmentetermos convencionais para referir o campo de aplicação (o léxico parental de

— referência) das nomenclaturas do parentesco.

Ora, temos de concordar que também para os especialistas e outros leitores delínguaportuguesa, nem uns nem outros são práticos, embora se deva reconhecerque qualquer uma.destas línguas é de maior difusão que o português. Face aesta situação, pouco ideal, e ànecessidade metodológica de análise deste campo,apresento o sistema de notação em português (não há razão para que nãoexista) que construí aquando do estudo do parentesco de uma aldeia da Beira-Baixa [A. Santos, 1992]. O seu conhecimento tornará certamente mais fácil a

.., ™__ leitura dos diagramas realizados neste idioma e permitirá com maior segurançaa tradução dos diagramas redigidos ern inglês ou francês.

Inicialmente, na medida em que todo o antropólogo é levado a ler trabalhosrealizados noutras línguas, são igualmente apresentados os sistemas de notaçãoem inglês e em francês.

Classicamente, os especialistas utilizavam exclusivamente a notação em inglês.E aindahoje, nos trabalhos publicados emrevistas internacionais, é este sistemade notação o mais usual, por razoes de universalidade científica da línguainglesa. Contudo, simbolizar uma qualquer relação de parentesco neste idioma

j-*"

"" """"" causa as maiores dificuldades, tanto na sua elaboração como, e sobretudo, naleitura dos diagramas, para quem não está suficientemente familiarizado como inglês. Como é sabido, a construção da frase em inglês relatando uma relaçãode parentesco faz-se, do nosso ponto de vista, de frente para trás (por exemplo"Father's Brother", irmão do pai: "tio"). Sendo assim, as abreviaçõesjustapõem-se na ordem inversa à do português o que exige um exercíciosuplementar de leitura dos diagramas para o que já de si nem sempre é fácil.Quanto ã adopção do sistema de notação francês é uma evidência dizer quetambém não representa qualquer vantagem em trabalhos redigidos em

- português, para além de não oferecer especial carácter de universalidade,embora o idioma tenha uma incomparável maior difusão científica que oportuguês. Estes são os principais argumentos em favor da utilização de umsistema de notação em português.

Assim, quando da publicação de um artigo ou livro em língua francesa ouinglesa, tal como o trabalho em si, também o sistema de notação deverá sertraduzido.

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3 Segundo G. P. Murdock[1949], os parentes de pri-meira ordem são os que cons-tituem as famílias nuclearesa que Ego pertence enquan-to solteiro e casado: pais, ir-mãos e irmãs na sua famíliade orientação, marido ouesposa, os filhos e filhas nasãs. família de procriação.

As abreviações dizem essencialmente respeito, por um lado, ao núcleo deparentes consanguineamente muito próximos, como: pai, mãe, filho, filha,irmão, irmã e, por outro, aos afins destes parentes de primeira ordene. Àpartir das abreviações destas relações básicas, todas as outras são possíveis deconstruir, articulando as respectivas abreviações umas com as outras, conformeas relações de parentesco a descrever.

Na notação em português aqui proposta, foi utilizada a primeira letra do termode parentesco para construir o símbolo da abreviação (por exemplo P para"pai".) ou, nos casos em que não era possível (por existirem outras relaçõescomeçadas pela mesma letra), a primeira e última letra do termo (por exemploFo para "filho"); com excepção de marido e esposa cujas abreviações contêmtrês letras, aprimeira e as duas últimas (Mdo para "marido" e Esp para "esposa"ou Mer para "mulher"). Existem dois outros casos de figura que contêmigualmente três letras (cuja escolha não seguiu as mesmas regras), mas nãosão propriamente termos de parentesco: "primogénito" (Pgt) e "benjamim"(Bjm). Contudo, mesmo nas relações de três letras, seria possível empregarunicamente dois símbolos alfabéticos. Pareceu-me, no entanto, ser maisexplícito, as abreviações adoptadas-. Quanto às idades intermédias estas sãoexpressas através dos sinais + e --.

~0s~franceses- utilizam, por razões de língua igualmente (vários termoscomeçados pela mesma inicial), duas letras em todos os casos. Inversamente,anotação eminglês é, em todas as situações, constituída por uma única letra,a que corresponde à inicial do termo de parentesco.

6.2.1 Notação das relações de parentesco em língua portuguesa

Consanguíneos:

Pai

Mae

Filho

Filha

Irmão

Irma

Tio

Tia

P

M

Fo

Fa

Io

loP/IoM (irmão do pai/da mãe)

lãP/M (irmã do pai/mãe)

132

li

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Sobrinho

Sobrinha

Primo

Prima

Primogénito

Benjamim

Folo/Folã (filho do irmão/da irmã)

Falo/Fala (filha do irmão/da irmã)

FoIoP/FoIoM/FolãP/FolãM (Filho do irmão do pai//do irmão da mãe/da irmã do pai/da irmã da mãe)

FaloP/FaloM/FalãP/FalãM (filha do irmão do pai/do irmão da mãe/ etc.)

Pgt

Bjm

Afins:

Marido

Esposa/Mulher

Cunhado

Cunhada

Mdo

Esp/ Mer

loMdo/IoMer/MdoIã/MdoIãMdo/MdoIãEsp (irmãodo marido/irmão da mulher/marido da irmã/maridoda irmã do marido/marido da irmã da esposa).

lãMdo/IãEsp/EspIoMdo/EsploEsp (irmã do marido/irmã da esposa/esposa do irmão do marido/esposado irmão da esposa).

A aposição de várias abreviações é lida introduzindo a preposição "do/da"entre dois termos de parentesco, conforme indicado nos exemplos.

6.2.2 Notação das relações de parentesco em língua inglesa

Consanguíneos:

Father

Mother

Son

Daushter

F (Pai)

M (Mãe)

S (Filho)

D (Filha)

133

Page 15: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

f

35L. Brother,:..* t-','. : '

'"'i í í1 . . '.

lis.:, : Sisterif.frj.|^J:-.;- Uncle/•» • • ' i1"1••f-!- . '

; - f t ; : Aunt

..iL,.. Nephew

•;''! ^'i Niece• r.... :. .

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;| ; L • • Husband• í' '•' ' "

•44-—— WifeÍFTPI*».

'-[•'•'l .•<B Sr

ífí!!. .

atJí.. ' . - . 6.2.3 Notação

i Consanguíneos:

Í j : - : - Père, § . < • ' .h L. .

ff ;" ; " Mère-**- f . - i '-' •

f c - , - , . . . . . . .^ j ' •• Fils

•hf :«3^* - •• • • T^Ml!j |: -• . Filie

'51' ; FrèreTT";1 • " Soeur>i - . i|i•^ ' • Oncle

| ; ' Tante-^A.-^ , . r

li Neveuf :r{ Nièce

j;;.'!."' Cousin

j :

1

j . ' 134íi s

B (Irmão

Z (Irmã) .

FB/MB (Tio)

FZMZ(Tia)

BS/ZS (Sobrinho)

BD/ZD (Sobrinha)

H (Marido)

W (Esposa)

das relações de parentesco em língua francesa5 i O J

Pé (Pai)

Me (Mãe)

Fs (Filho) ~

Fe (Filha)

Fr (Irmão)

Só (Irmã)

FrPe/FrMe (frère du père/ frère de Ia mère), (tio)

SoPe/SoMe (soeur du père/ soeur de Ia mère), (Tia)

FsFr/FsSo (flls du frère/fils de Ia soeur), (Sobrinho)

FeFr/FeSo (filie du ítère/fUle de Ia soeur), (Sobrinha)

FsFrP/FsFrM/FsSoP/FsSo, (fils du frère du père/filsdu frère de Ia mêre/fíls de Ia soeur du père/etc., (Primo)

Page 16: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 6

Cousine FeFrP/FeFrM/FeSoP/FeS oM (filie du frère du père/etc,. (Prima)

Afins:

Mari Ma (Marido)

Epouse/Femme Ep/Fme (Esposa), (Mulher)

B eau-Frère FrMa/FrEp/MaS o/MaS oMa/MaS oEp (itere du mari/frère de Tépouse/mari de Ia soeur du mari/mari de Iasoeur de repouse, (Cunhado)

Belle-Soeur SoMa/SoEp/EpFr/EpFrMa/EpFrEp (soeur du mari/soeur de 1'épouse/épouse du frère du mari/épouse dufrère de 1'épouse (Cunhada)

A aposição de várias abreviações é lida introduzindo a preposição £tde" eC!du" entre dois termos de parentesco, conforme indicado nos exemplos.

O parentesco, na perspectiva mais formal, constitui um sistema composto pordiferentes elementos mais ou menos interdependentes. A sua totalidade etecedura, mais ou menos densa, corresponde ao sistema de parentesco. Noutrostermos, corresponde ao conjunto de elementos, formas e regras que regem asrelações de parentesco em toda a sua complexidade funcional.

Assim, um sistema de parentesco, enquanto tal, é constituído no mínimo por..cinco aspectos relativamente interdependentes: 1) a nomenclatura outerminologia do parentesco. Ou seja, um conjunto de termos de parentescoservindo cada um deles para designar individualmente os nossos parentes. Ostermos de parentesco não só identificam os parentes como também informamsobre o tipo de comportamento a ter para cada um deles. Naturalmente, todasas sociedades possuiem uma terminologia de parentesco própria na sua língua,e este facto põe um problema de interpretação e tradução para o investigador;

"2) as regras de aliança matrimonial que são "um dós elementos chave daarticulação entre parentesco e sociedade; 3) o tipo de filiação que determina omodo pelo qual os indivíduos, através da descendência comum, ficam ligadosuns aos outros ou a determinados grupos de filiação; 4) o modelo de residênciaque os cônjuges escolhem para viver; 5) e, finalmente, a herança e a sucessãopelas quais se fazem a devolução dos bens e estatutos.

Estes diferentes elementos estão mais ou menos fortemente inter-relacionadose por essa razão formam sistema. Por consequência, quando se realiza umestudo de parentesco, sobretudo se for de maneira menos formal, é necessário

""apreender o conjunto dos elementos constituintes do sistema e respectivas

135

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^

conexões, na forma complexa das relações praticadas entre indivíduosaparentados pelo sangue e pelo casamento, considerando assim todos osaspectos sociais do parentesco na sua totalidade lógica. Abordar um único dosseus elementos - como, por exemplo, a organização familiar ou a filiação -não permite compreender as suas relações com outros elementos mais ou menosadjacentes e, desde logo, o edifício do sistema de parentesco, a lógica daspráticas parentais e respectivas correspondências com o todo social. De facto,nesta complexidade entram muitos aspectos dependentes, como os estatutosdos indivíduos, as relações sexuais autorizadas, a eventual escolha preferencialdo cônjuge, etc., que integram o todo e devem ser observados.

6.3 As nomenclaturas

•a • :

1, i 4 Permito-me criar o neolo-gismo "vocear" (em contra-ponto de "tutear" poucousual mas existente na lín-gua portuguesa) em substi-tuição da longa frase "trata-mento por você" que sendonecessário repeti-las vezessem conta se revela poucoprática em estudos Sobre ossistemas de atitudes.

Como referi, uma nomenclatura de parentesco consiste no conjunto dos termosde parentesco que uma determinada cultura utiliza para tratar ou referir aspessoas entre as quais existe uma relação de carácter parental.

Assim, a terminologia representa uma linguagem específica que permitejd-agsificarjjs..parentes em diferentes categorias. Com efeito, o termo deparentesco indica simultaneamente a categoria do parente e o tipo de atitudeque lhe está associado. Por outras palavras, determina o modelo decomportamento social de tipo parental a ter para com ele. Desde logo, existeno comportamento recíproco específico às relações parentais, um elementoverbal para referir cada um dos parentes ou conjuntos de parentes e,simultaneamente/significar, por inerência do-termo ;-o comportamento -apropriado a ter. Uma criança é educada, desde a sua tenra idade, a distinguiros seus vários parentes e a integrar no seu sistema cognitivo parental todo umconjunto de atitudes arespeitar emrelação a eles.

Refira-se no entanto que em muitos casos o elemento verbal parental nemsempre é suficiente para expressar automática e completamente o tipo de atitudea observar entre parentes. Outros elementos, exteriores ao termo de parentesco,são necessários para indicar o comportamento adequado ater entre eles. Porexemplo, na nossa cultura, ao termo primo podem corresponder várioscomportamentos a ter em conta, em função da geração e do grau decolateralidade em causa: assim, entre primos de mesma geração é usual otratamento pelo prenome e o tutear; entre primos de gerações distintas, umadiferença de idade significativa pode implicar o vocear4 (de você) para alémdo uso do termo de parentesco e do prenome ou rnesrno do apelido; entreprimos ainda mais afastados, o tratamento entre eles implica geralmente oemprego do termo de parentesco juntamente com o vocear.

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Contudo, não parece haver uma equivalência automática e absoluta entre osistema de apelações e o sistema de atitudes. No entanto, é certo que háfortes correspondências entre os dois aspectos mas, apesar de tal, alteraçõesno sistema de apelações podem nunca chegar, ou levar algum tempo, acristalizarem-se em atitudes parentais correspondentes.

No estudo das nomenclaturas, o tipo de comportamento parental é verificávelsegundo três formas de classificação: 1) o modo de utilização; 2) a estruturalinguística; 3) o campo de aplicação.

6.3.1 O modo de utilização

Do ponto de vista da utilização, os termos de parentesco têm dois modos defuncionalidade: o tratamento directo - ou de endereço - e o tratamentoindirecto - ou de referência.

O tratamento é directo ou de endereço quando alguém se dirigepessoalmente ao parente interpelando-o pelo termo correspondente: £[avô!"3

"mãe!", "tio!", etc. O tratamento é de referência ou indirecto, tal comosugere a palavra, quando o locutor fala de um determinado parente a terceiros:"o meu avô", "a minha prima", etc.

A relevância das duas formas de tratamento para o analista reside no facto degeralmente haver diferenças de vocabulário e respectivo alcance, segundo seemprega uma ou outra. Por exemplo, se nos limitássemos a registar a formacomo alguém se dirige à mãe" (ou ao pai) do seu cônjuge na cultura portuguesa,ficaríamos com a falsa ideia que não existe nenhum termo para significar estarelação. A maioria das pessoas quando fala corn os pais do seu cônjuge empregageralmente circunlocuções como: "Olhe!" "Oiça!" etc. mas em nenhumacircunstância, de interpelação directa, o termo específico de aliança. Emcontrapartida, ao observarmos o modo como as pessoas falam a terceiros destesmesmos parentes por afinidade, constatamos que o designam efectivamentepor "sogra" ou£ í sogro". Na nossa cultura, como nas restantes terminologiaseuropeias de modo geral, existe de facto um termo de afinidade específicopara designar os pais do nosso cônjuge mas este não é aplicável directamenteà pessoa ern causa. Neste tipo de relação, intervém na nossa cultura (e noutrastambém) umtabuterminológico em relação ao emprego do termo sogro/sograque introduz distância, sendo mesmo preferível utilizar-se o termo pai/mãeque aproxima. Porém, esta forma subtil de integração dos sogros no grupoparental mais íntimo da consanguinidade não é exclusiva destes, aconteceigualmente com os cunhados, os quais na sociedade rural tradicional portuguesaé corrente designarem-se por "mano/a"; • • • - -

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Com efeito, esta reserva de tratamento directo para com os sogros, é em geralmuito vulgar em relação à maioria dos parentes por aliança cujos termos sãocomummente decalcados dos consanguíneos ou empregando o seu nomepróprio. Em França, designadamente, este último comportamento é muitocomum em relação à maioria dos aliados.

Resumindo, um termo de endereço faz parte integrante da conduta codificadaque cada indivíduo deve ter para com os seus parentes. Esta conduta, dado serum dado requerido pela sociedade a todos os indivíduos, resulta dadeterminação do lugar que cada parente ocupa no sistema de parentesco.

Constata-se assim que os termos de referência têm um campo de aplicaçãomais preciso que os utilizados no tratamento directo, na medida em que otratamento na referência é mais preciso que o do tratamento directo. Como seviu na nossa cultura, o termo mãe para além de servir para chamar a mãebiológica pode ainda ser empregue para se dirigir à sogra ou à madrasta.Acontece o mesmo com o termo tio que pode ser aplicado inclusivamentepara se dirigir a uma pessoa exterior ao parentesco sob a fornia contraída de"ti" (denotando uma certa familiaridade condescendente).

Para contrariar as imprecisões do campo de aplicação, certas sociedades-possuem series-diferentes.de termos para o tratamento directo e para a referência,enquanto noutras, como a nossa, são necessários, corno se viu, alguns paliativospara reduzir a ambiguidade do campo de aplicação parental.

6,3.2 A estrutura linguística dos termos de parentesco

Do ponto de vista da estrutura linguística, os termos de parentesco podemapresentar-se segundo três ordens: elementares, derivados ou descritivos.Os termos são elementares quando não podem ser decompostos em elementoslexicais dotados de significado parental, como: "pai", "mãe", "primo", etc.Um termo é derivado quando é composto por uni termo elementar e outroelemento lexical sem significado parental: bis+avô ("bisavô"), belle+mère("belle-rnère") em francês, ou grand+father ("grandfather") em inglês, etc.Finalmente, um termo é dito descritivo quando na nomenclatura não existeum termo específico para referir um determinado parente e se conjuga dois oumais termos elementares para indicar a relação, por exemplo: "irmão do pai"ou em sueco a palavra "farbor" para referir o, tio. A forma descritiva parareferir os parentes é muito utilizada, mesmo nos casos em que existem termosespecíficos. Tal, acontece nos casos em que o emprego de um termo elementarou derivado não é suficiente para identificar o parente de quem se fala. Assim,

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quando é necessário explicitar a relação para precisar o lado parental: "o irmãodo meu avô paterno" por exemplo.

6.3.3 O campo de aplicação

Segundo o campo de aplicação, os termos de parentesco podem ser denotativosou classiíícatórios.

Um termo é dito denotativo quando indica uma única categoria de parentes,em função da geração, do sexo e laço genealógico. Em certos casos um termodenotativo indica unicamente uma só pessoa: "pai", "mãe", "marido","esposa". Noutras situações, um termo denotativo remete para várias pessoas:"filho", "filha", "irmão", "irmã", genro, "nora", "cunhado", "cunhada", etc..Quer dizer que qualquer um destes últimos termos pode incluir várias pessoasnum mesmo tipo de relação com Ego, embora nem todas as relações sejamexactamente equivalentes em todos os casos (por exemplo, possuímos váriostipos de cunhados). Inversamente, este aspecto não é verificável em relaçãoao pai, à mãe, etc., dado serem pessoas únicas na sua categoria.

Um termo é dito cias sifí cato rio quando envia para vários indivíduospertencentes a mais de uma categoria de parentes, definidos segundo a geração,o sexo, e o laço genealógico. Ou seja, quando não é feita a distinção, em parteou na totalidade, entre parentes em linha recta e colaterais. Por exemplo, nanossa cultura o termo tio tanto pode indicar o irmão do pai como da mãe e,.para além desta indistinçãp-términológica consanguínea, pode empregar-seainda o mesmo designativo na afinidade para referir o marido da irmã do paiassim como o da irmã da mãe. Também o termo avô refere diferentes pessoas:o pai do pai e o pai da mãe e na província camponesa portuguesa indica ainda,de modo descritivo, outras pessoas em níveis geracionais superiores, como "oavô do meu pai" em lugar de bisavô, "o avô do pai do meu pai" em lugar detrisavô, "o avô do avô do meu pai" em lugar de tetravô, etc. Ainda naconsanguinidade, o termo primo, no sentido lato, aplica-se a um grande númerode indivíduos numa relação genealógica muito diversa com Ego. No campoda aliança, também o termo cunhado tem na nossa língua uma aplicaçãovariada: quincadimensional precisamente, porque refere cinco relações tãovariadas como as de irmão do marido; de irmão da esposa; de marido da irmã;de marido da irmã da esposa; de marido da irmã do marido.

A omissão das particularidades classificatórias nas terminologias europeias -classificadas, sem outra matiz, como descritivas com base na simples análisedo núcleo de parentes muito próximos de Ego - e a constatação da sua existêncianítida noutras sociedades, conduziram Morgan a retirar conclusões de carácter

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distintivo e tendencioso entre as terminologias europeias e as terminologiasdas sociedades "primitivas". As primeiras seriam descritivas (e desde logoseriam analíticas) enquanto as segundas seriam de tipo classificatório(denotando uma certa confusão, confundindo o que é diferente). Aconteceporém que, na realidade, todas as nomenclaturas apresentam aspectosdescritivos e classificatórios, conforme os exemplos indicados.

6.4.4 Os principais tipos terminologia o s

Um certo número de tipos de terminologias do parentesco, considerados dereferência, foram retidos por Murdock [1949] para construir a sua tipologia. Aestes foram atribuídos os nomes da sociedade ou área geográfica onde foramobservados nas formas mais características. Os principais tipos são seis:esquimó, havaiano, íroquês, sudanês, cr o w e omaha. Para além destesexistem mais dois outros, mais raros, representando formas efémeras, ou seja,formas de transição de um sistema de filiação para outro: o Yuma sub-tipoparcial havaiano e o Fox sub-tipo omaha ou sudanês, segundo os casos. Àtipologia-foLconstruída com base na terminologia de Ego masculino paradesignar os seu parentes fernininos a qual na apresentação aqui dada considerano entanto outras relações.

Se tivermosem conta a tipologia de Murdock, a terminologia portuguesa, talcomo a do resto da Europa e de outros povos tão diferentes como os esquimós

-do Cobre do Grande Norte ou os pigmeus andamaneses da.floresta _tropical,tetc., pode ser classificada na categoria esquimó.

Terminologia esquimó

Uma terminologia é qualificada de tipo esquimó quando, entre outrosaspectos, os irmãos do pai e da mãe são referidos por um termo idêntico "tios",assim como as irmãs de ambos os pais são igualmente designadas por ummesmo termo "tias". Outra característica terminológica esquimó, diz respeitoao facto dos primos de Ego serem classificados numa única categoriaterminológica - independentemente de serem patrilateraís ou matrilaterais.cruzados (filhos de irmãos de sexo diferente) ou paralelos (filhos de irmãosde mesmo sexo) - e serem distinguidos dos irmãos e irmãs por um termoespecífico. Além disso, assemelha os parentes por aliança aos consanguíneos,aplicando -lhes a mesma terminologia. Constata-se assim, não haver diferençaterminológica entre o lado paterno e materno (diag. 3); facto atestado pelo

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regime de filiação indiferenciado e preponderância da família conjugal,práticas sociais do parentesco que veremos mais à frente.

Tipo esquimó

tio pai*

àprimo prima primo prima irmão Ego irmã primo prima primo prima

Diag. 3

Terminologia hawaiana

Um caso muito típico de classificação dos parentes é o exemplo daterminologia de tipo hawaino, dito ainda "sistema geracional". De facto,este tipo caracteriza-se pela classificação terminológica dos parentes em linharecta e colaterais por gerações. Por outras palavras, os parentes em linharecta e em linha colateral -são designados por um termo idêntico em cadageração, segundo a respectiva distinção de sexo. Assim, a mãe e a irmã desta,tal como o pai e o irmão deste, são respectivamente designados pelo mesmotermo - "mãe/mãe" para as primeiras e "pai/pai" para os segundos - o que, emconsequência de tal, também a distinção terminológica entre irmãos e primosnão existe. Ou seja, os filhos de irmãos não constituem uma categoriaterminológica de primos entre eles mas de irmãos, considerando-se assim comotal (diag. 4). O tipo hawaino é ainda mais corrente que o sistema esquimó,existindo nas suas diferentes variações muito além do universo estritamentemalaio-polinésio onde foi inicialmente referenciado. As sociedades deste tipoorganizam-se geralmente na base de famílias muito extensas e do regime defiliação indiferenciada.

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Tipo hawaiano

pai pai mãe pai

irmão irmã irmão. irmã irmão Ego irmã irmão Irmã irmão irmã

filho/a filho/a filho/a

Dias. 4

Terminologia iroquesa

4*i

Outro exemplo clássico de nomenclatura classificatória, corresponde àterminologia iroquesa, onde se pode observar, designadamente, o agrupamentona mesma categoria terminológica o pai e o irmão deste, e na categoria de mãe

-a irmã desta-Inversamente, os irmãos dos pais, de sexo diferente destes, sãochamados "tios/as". Em consequência, Ego denota terminologicamente asprimas'cruzadas bilaterais (a'íilha'da'irmãdo pai ~e"ã íilha'do irmão da mãe)com um termo idêntico distinguindo-as das primas paralelas (filha da irmã damãe e filha do irmão do pai) e das irmãs, as quais são, geralmente, não emtodos os casos, designadas por um termo idêntico. Por outras palavras, osprimos paralelos são distinguidos dos primos cruzados na medida em que aosprimeiros Ego chama "irmãos" e aos segundos "primos" (dlag. 5). Áorganização social deste tipo corresponde à- filiação matrilinear oueventualmente à dupla filiação unilinear

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Tipo zroguês

tia pai pai mãe tio

primo prima irmão irmã irmão Ego irmã irmão irmã primo prima

Dias- 5

Terminologias crow e omaha

Os sistemas terminológicos Crow e Omaha apresentam característicasclassificatórias muito particulares. A particularidade classiflcatória destes doistipos resulta do facto de não marcarem terminologicamente determinadasgerações. Por outro lado, são respectivamente matrilineares e patrilineares.

No tipo Crow5, o princípio das gerações é de facto ignorado em relação acertas categorias de parentes. Estas são classificadas verticalmente por umtermo idêntico independentemente da geração o que explica a particularidade.da terminologia. Assim, coirmãos dos pais de ego de sexo diferente destesnão são denotados pelo emprego de um termo específico, mas referidos demodo descritivo ("irmã do pai"/1'irmão da mãe"). Em contrapartida, os .irmãosdos pais de ego de mesmo sexo que estes são chamados pelo mesmo termocom que ego designa os seus pais ("pai"/"mãe") e em consequência os primosparalelos (filhos de irmãos de mesmo sexo) são chamados "irmãos" por Ego.Na ausência de marcação das gerações e segundo o princípio da verticalidade,Ego chama "pai" ao filho da irmã do pai e "irmã do pai" à tia paterna. Nadescendência seguinte, a modalidade terminológica repete-se ao continuar anão marcar a diferença de geração. No lado materno, o tio é referido por umtermo descritivo ("irmão da mãe") para na geração seguinte Ego chamar "filho/a" aos filhos deste diag. 6). Resumindo, na terminologia dos primos, Egodistingue, por um lado, as primas cruzadas patrilaterais das matrilaterais e, poroutro, distingue cada uma destas categorias das primas paralelas e das irmãsque são designadas pelo mesmo termo. À filiação é matrilinear e a residênciapatrilocal.

5 Os Crow são um povo dasplanícies do Montaria cujaterminologia, por ter sidoestudada cm primeiro lugar,constitui um tipo de referên-cia ao qual correspondemoutros sistemas, como o dosHopi (matrilineares).

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Tipo Cr o w

í l 'li-i-.

tr

11 i« ' :K > .•J F .

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irmã do páa pai pai mãe mãe

pai irmãdopai

irmão irmã irmão Ego irmã irmão irmã

pai irmã do pai\s

Diag. 6

irmão d i mãe

filho filha

A terminologia de tipo omaha (diag. 7) é patrilinear do ponto de vista dafiliação pelo que em consequência deste facto apresenta características-terminológicas .simetricamente inversas à Crow.

Tipo Omaha

sobrinho sobrinha \; irmã irmão Ego

A Ofilho filha

irmã irmão irmã irmão mãeda mãe

irmão da mãe mãe

Diag. 7

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Terminologia sudanesa

A terminologia sudanesa, tem características fortemente descritivas namaioria dos casos. Á particularidade reside no facto de Ego fazer a distinçãoterminológica entre as primas cruzadas (primas saídas da irmã do pai e doirmão da mãe), as primas paralelas (primas saídas do irmão do pai e da irmã damãe), ou seja patrilaterais e matrilaterais, e entre estas as irmãs. Além disso,Ego distingue também, as tias e tios patrilaterais e matrilaterais assim como assobrinhas saídas de irmãos e de irmãs com termos diferentes. Assim, cadauma destas categorias é normalmente, mas nern sempre, referida pelo empregode termos descritivos ("filha da irmã do pai"5 "filha do irmão da mãe"). Omesmo acontece com os indivíduos de sexo masculino. Á existência destasparticularidades na maioria dos casos observados, conduziram Murdock [1949]a caracterizar o tipo sudanês como sendo uma terminologia descritiva. Naapresentação dada no diagrama (diag. S), preferi dar, por razões, desimplificação, a indicação dos termos distintivos de forma não descritiva,marcando a distinção com. letras diferentes. Do ponto de vista da organizaçãosocial, o tipo sudanês caracteriza-se por urna filiação patrilinear.

Tipo sudanês

Dias. S

Como indiquei no início do presente sub-capítulo, na tipologia de Murdocksão ainda indicados dois outros tipos terminológicos, bastante minoritários,representando uma forma transitória de sistema de filiação: o Yuma e o Fox.

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m

6 Método introduzido defi-nitivamente na investigação

•antropológica~por-Rivers-[1864-1922] .

O sistema Yuma, instável, porque indefinido quanto ao regime de filiação, eem transição de um regime de filiação para outro, pode apresentar umaterminologia de tipo iroquês no que diz respeito às primas (o qual distingue,como se viu, as primas cruzadas das paralelas). O tipo Fox tem aparticularidade de apresentar, como o Yuma, não só um regime de filiação emtransição mas ainda uma terminologia das primas cruzadas assimétrica (ouseja, o uso de termos distintos para cada um dos lados patri-matrilateral). Emsuma, umas vezes são de tipo crow outras vezes de tipo omaha ou mesmosudanês. Por outro lado, a terminologia das tias pode variar de uma sociedadepara outra.

Para terminar a questão das nomenclaturas, ficou evidenciado a existência dediferentes graus de classificação e formas descritivas dos parentes, comopudemos constatar nos vários tipos de terminologias expostas. Graças àterminologia classificatória, as sociedades conseguem reduzirconsideravelmente o grande número de termos que teriam de utilizar se nãofizessem intervir este tipo de classificação, que segundo Murdock [1949] sãoda ordem média dos 25 entre os milhares teoricamente possíveis.

Para recolher os termos de um determinado vocabulário do parentesco,recorre-se ao método genealógico6 e simultaneamente à observação doscomportamentos parentais que acompanham cada um dos termos linguísticosregistados. O método genealógico consiste em consignar uma genealogiarecorrendo à memória dos seus interlocutores para indicarem os seus parentesum a um, do conjunto dos seus ascendentes, descendentes, colaterais e aliados.É precisamente neste processo de registo que se obtêm os diferentes termos deparentesco.

.4-

Corn o registo da totalidade dos termos de parentesco ajudado pelareconstituição de um certo número de genealogias-tipo, fica assim evidenciadaa correspondente nomenclatura. A partir desta, reconstituem-se todas as outrasgenealogias a fim de estabelecer a totalidade das relações parentais existentese em seguida proceder à análise completa do respectivo sistema de parentesco.Na análise, convém empregar um certo número de parâmetros permitindoefectuar as necessárias medidas em termos de graus de consanguinidade e,assim, situar com precisão um determinado indivíduo numa dada genealogia:

1) O cômputo dos graus de consanguinidade (existem vários sistemasde contagem dos graus, mas os mais utilizados no universo europeudo parentesco são, por um lado, o cálculo romano ou civil empregueern antropologia, direito e genética e, por outro, o sistema de cálculogermâníco-canónico usado nos documentos daigrejacatólica).

2) A geração, cuja determinação das gerações superiores (G+) ouinferiores (G-) se inicia a partir de Ego (G 0).

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3) O grau de colateralidade (°Col) cujo estabelecimento se fazhorizontalmente a partir da linha recta (Lr) n a geração deEgo (GO).Assim, por exemplo, os irmão de Ego são para ele parentes do primeirograu de colateralidade, os tios e primos germanos (primos direitos)de segundo grau.

4) Em determinadas nomenclaturas o sexo e a idade podem serpertinentes para a análise, não somente do ponto de vista estritamentelinguístico mas simultaneamente do ponto de vista do significadomais estritamente antropológico.

Estes parâmetros cruzados entre eles permitem uma maior precisão na avaliaçãodas relações de parentesco entre indivíduos.

Outros procedimentos de medição, mais excepcionais, dos graus de parentesco,tais como a matemática, são utilizados por certos analistas, como por exemploJ. Atkins [1974]. Do ponto de vista da análise linguística dos termos deparentesco mencione-se, na perspectiva estraturalista, a obra de F. G. Lounsbury[1966]; noutro campo, o emprego da análise componencial. inspirada nalinguística americana, foi utilizada de forma muito interessante por W. H.Goodenough[1951].

Refira-se, no entanto, que o excessivo grau de formalismo na análise dossistemas de parentesco reverte sempre para uma abstracção cuj a abrangênciaantropológica é raramente descortinável.

6.4 O casamento e a aliança matrimonial

O casamento entre dois indivíduos de sexo diferente pressupõe uma aliançaentre grupos mais ou menos distintos. O grau de distância consanguínea entreos grupos de onde emanam os indivíduos esposáveis pode serconsideravelmente variado de uma sociedade para outra, pelo que a aliançatanto pode realizar-se fora de qualquer laço de parentesco como dentro de umgrupo de consanguíneos relativamente próximos e autorizados para o efeito.

O tab u do incesto obriga a procurar cônjuge fora de um círculo de aparentadosconsanguineamente muito próximos. A proibição do incesto não se limita ainterditar determinadas relações sexuais (as quais podem acontecer de modoilícito), mas sobretudo, através da permissão, autorizar certos casamentos ealianças. As relações sexuais consideradas incestuosas mesmo que aconteçame se mantenham não permitem o casamento. O círculo de parentes abrangidopelaproibição do incesto varia muitpjdejima sociedade para outra assim comotem variado no tempo. Tem porém como característica ser uma proibição de

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natureza universal cujo fundamento é nunca permitir, no mínimo, o casamentoentre irmãos.

No caso das sociedades europeias, a extensão da zona de parentes abrangidospela proibição variou muito ao longo do tempo. No passado, a igreja proibiuo casamento até ao sétimo grau do cômputo canónico (o correspondente aodécimo quarto grau do nosso cálculo civil) indo assim muito além da memóriagenealógica média das três gerações para chegar às sete a partir das quais sepodia contrair casamento. Mais tarde, reduziu a proibição para o quarto grau

7 Em 1215 no concílio de canónico (o correspondente ao oitavo grau civil)7 e só recentemente regrediuLatrão. ' . , . , . . . .

a proibição ate aos primos direitos cujo casamento passou a ser autonzadomediante dispensa [Dos Santos, A., 2000].

Segundo a teoria de Lévi-Strauss [1967], a aliança corresponde à escolha docônjuge segundo dois grandes modelos. Um deles definido por regraspositivas e outro por regras negativas. As primeiras, prescrevem ou indicampreferencialmente a escolha do cônjuge e as segundas, limitarn-se a proibirum pequeno círculo de parentes consanguíneamente muito próximos, deixando"livre a escolha do cônjuge relativamente a indivíduos não aparentados ou aoconjunto dos"outros parentes.

Aprimeiradas regras corresponde ao que Lévi-Strauss [1967] definiu comoas estruturas elementares do parentesco, segundo as quais as regras de escolhado cônjuge têm efectivamente um caracter positivo, no sentido em que a escolhado cônjuge deve ser realizada preferencialmente numa determinada zona doparentesco. Por exemplo, entre primos cruzados matrilaterais (primos germanossaídos de irmãos de sexo diferente do lado materno) ou ao contrário, entre-primos paralelos patri ou matrilaterais indiferentemente, etc. - .—

A segunda das regras, corresponde às estruturas complexas do parentescoque conhece designadamente o universo europeu. O código civil e a própriaigreja limitam-se a emitir regras negativas definindo uma certa zona deparentesco cujos membros não podem contrair matrimónio entre eles.

6.4. l O átomo do parentesco

Segundo a teoria da aliança apresentada por C. Lévi-Strauss [1985], o átomode parentesco ou elemento de parentesco consiste na estrutura de parentesco

j- ; irredutível a qualquer outra forma mais elementar. Segundo o autor, estaestrutura de parentesco implica a existência de três tipos de relações familiares,sempre dadas em qualquer sociedade humana: 1) uma relação deconsanguinidade, 2) uma relação de aliança, 3) uma relação de filiação.

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Ou seja, nas palavras de Lévi-Strauss, "uma relação de germano a germana[de irmão para irmã], uma relação de esposo a esposa, uma relação de pais afilhos" [Ibid: 56]. Aconfiguração de parentesco assim delimitada, representaa estrutura mínima correspondente à tripla exigência necessária para a suaexistência segundo o princípio da maior economia (diag.9). Esta teoria que seopõe à teoria da filiação desenvolvida pelos britânicos, designadamente porRadcliffe-Brown, tem por raciocínio imediato a troca matrimonia]

Átomo do parentesco Troca matrimonial primária

K-FO

Diag. 9 Dias-10

das mulheres entre os homens de uma determinada comunidade ou grupo,tendo em consideração a universalidade da proibição do incesto (diag. 10).

Segundo esta teoria, um homem para adquirir uma esposa terá de ter uma filhaou irmã para a dar em troca, como esposa, ao homem que lhe deu a sua. Se afilha ou irmã não existir, a conclusão da troca será diferida e realizada rnaistarde. Como diz Lévi Strauss, "...na sociedade humana, um homem só podeobter uma mulher de um outro homem que lha cede sob a forma de filha ou deirmã" [Ibid: 56].

6.4.2 O avuncLilaio

O avunculato (do latim avunculus, tio) consiste numa relação particularentre o tio e o filho da irmã (diag. 11). Esta relação corresponde ao conjuntode direitos e obrigações que o tio materno tem para com o filho da irmã,assim como o tipo de tratamento que é reconhecido entre eles. Embora amodalidade da relação avuncular possa variar muito de sociedade parasociedade, geralmente o tio tem autoridade sobre o sobrinho, ao qual transmite

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K l

os seus bens; inversamente, o pai exerce a sua autoridade não sobre os seusfilhos mas sobre os filhos da sua irmã a quem transmite os seus própriosbens. A este tipo de relação parental, habitualmente presente nos sistemasmatrilineares, mas não unicamente, é dada uma explicação fundadora nateoria da aliança apresentada por Lévi-Strauss.

Com efeito, voltando ao elemento de parentesco referido anteriormente, LéviStrauss considera ser a figura do tio materno o seu princípio estrutural. Ouseja, o princípio indispensável que dá forma à estrutura elementar resultanteda relação entre cunhados; por outras palavras, a relação entre "dadores demumères''VAslim;"o"ãvunciilato não pode ser isolado da sua estrutura mínima(o que impediria a sua compreensão). De facto, este tipo de relação não selimita a dois-indivíduos (tio/sobrinho) mas à correlação entre quatro pessoas.Ou seja, ela pressupõe um irmão, uma irmã, um cunhado e um sobrinho: querdizer, a estrutura parental elementar a partir da qual se forma a sociedade.

À importância do tio materno remete, por sua vez, para a relação com o filhoda sua irmã - para a relação avuncular -, fortemente característica dos sistemasmatrilineares (embora nem sempre observada nem exclusiva destes como foidito), e nos quais o tio uterino se substitui à autoridade do pai e às limitaçõesde transmissão patrimonial da mãe. A teoria da aliança insiste na proibição do

-incesto-e-na sua universalidade, para explicar a razão pela qual os indivíduostêm necessidade de procurar cônjuge fora do grupo de parentescoconsanguineamente muito próximo. Assim, os irmãos e irmãs não podendoesposarem-se entre si, terão de procurar cônjuge num grupo distinto mais oumenos próximo. Esta exogamia de grupo explicaria o princípio fundador dasociedade. Além disso, a aliança matrimonial ao ser praticada com vizinhospotencialmente adversos ou mesmo fortemenfè~minug6Tpermitê^riar'"as"condições .necessárias para o restabelecimento de relações de boa vizinhançae paz.

Relações avuncular es

Diag. 11

150

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Todas as sociedades incitam ao casamento dos seus membros, inclusivamentea nossa onde se atribuem aos rapazes e raparigas, mesmo ainda muito novos,namorados imaginários ou se questionam insistentemente com a pergunta "j ánamoram?". Porém, paradoxalmente, apesar desta insistência matrimonial, porrazões particulares das sociedades modernas, aumenta cada vez mais nestas onúmero de celibatários e sobretudo de divórcios. Nas sociedades tradicionais,do ponto de vista das formas de solidariedade conjugais, só o casamento e aexistência de um. parceiro sexualmente diferenciado permite a repartição sexualdas tarefas. Os celibatários e em certos casos os viúvos têm as maioresdificuldades na existência do dia-a-dia. Lévi-Strauss conta como durante asua estada no Brasil numa localidade bororó observou estas limitações:"Lembraremos sempre ter notado numa localidade dos Bororó do Brasilcentral, um homem de aproximadamente uns trinta anos, sujo, rnal alimentado,triste e solitário. Quisemos saber se estava gravemente doente; a resposta dosindígenas espantou-nos: o que não estava bem? Mas nada, era simplesmenteum celibatário [...] E a dizer verdade, numa sociedade onde reina a divisão dotrabalho entre sexos, e onde só o estado de casamento permite ao homem defruir do trabalho damulher, inclusivamente ser catado, pintado, penteado, assimcomo tratar da horta e cozinhar [...] um celibatário não é realmente mais que ametade de um ser humano" [C. Lévi-Strauss, 1982: 105]. .

6.4.3 Os tipos de casamento

6.4.3.1 A monogamia e a poligamia.^

Á monogamia (do grego mono «único» gamia «união, matrimónio») tal comoa conhecemos legalmente na nossa cultura, está longe de ser universal. Defacto, numerosos povos praticam a poligamia ou seja os seus membrospartilham vários cônjuges autorizados. Porém, a poligamia subdivide-se emduas práticas distintas: apoliginía e apolíandria.

A poliginia (do grego poli «várias» 4- gino «mulher»), bastante comum entrecertos povos, designadamente entre os indivíduos de cultura islâmica, consisteno facto de um homem ter várias esposas (ou várias mulheres partilharementre elas o mesmo homem, formulação que depende do ponto de vista dolocutor ou da sociedade em causa) e de ser admitido legalmente em determinadasociedade.

Á poliandría (igualmente do grego poli «vários» + andro «homem»), génerocertamente menos comum que a monogamia e a poliginia mas bem real,apresenta a característica inversa, ou seja consiste no facto de uma mulher

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f

dispor de vários maridos (ou vários homens partilharem uma mesma mulher)admitidos legalmente na sociedade em causa. Esta modalidade de casamento

'é observável nos toda da índia e no Tibete designadamente, muitas vezespraticada na forma adélfica ou seja os maridos são irmãos entre si.

Tanto uma com outra destas práticas matrimoniais poligâmicas tem naturalmenteconfigurações diversas secundo as sociedades onde existem. Além disso, o

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número de cônjuges máximo partilhado pode variar em função de múltiplasrazões: por imposição religiosa, limitações demográficas, económicas,desigualdade social, etc. " - . - . . .Assim, existem povos onde a forma de associação matrimonial praticada émuito diferente da que estamos habituados, inclusivamente de formas de

-1

associação matrimonial modernas como as dos casais homossexuais de ambosos sexos. Por exemplo, em certas sociedades poliândricas particulares, decaçadores e guerreiros, o casal matrimonial não é constituído por dois indivíduosde sexo oposto mas de sexo idêntico e heterossexuais, porém com a seguinteparticularidade: o casal compõe-se de duas mulheres no qual uma é bastantemais velha que a outra. Á mais nova, em idade de procriar, é fecundada porum homem mais ou menos de passagem. O indivíduo de passagem terá umpapel de genitor mas não de pai social, papel que será assumido pela mulhermais. velha. Neste tipo de sociedade, o homem não têm. uma actividade contínuadentro da comunidade, ausenta-se constantemente em acções de caça oumilitares, deixando aos membros femininos a estabilidade social damatrirnonialidade.

6.4.3.2 O levirato e o sororato

O levirato (uma forma de casamento designado secundário, na medida emque foi precedido por um primeiro casamento), consiste na obrigação queurna mulher tem em casar com irmão do seu marido falecido. Com efeito,quando um homem morre, a viúva torna-se esposa do irmão mais novo dodefunto e permanece na mesma família. Os filhos nascidos deste novocasamento não serão considerados filhos do genitor mas do defuntoconsiderado como pai social. Em certas sociedades poligínicas, quando umhomem morre os seus filhos partilham entre si as esposas deste, com excepçãoda sua própria mãe, sublinhando assim a qualidade de pertença das esposas aogrupo social do marido e parte da herança deixada pelo defunto.

Entre múltiplos exemplos de levirato, note-se o caso da sociedade arapesh,estudada por M. Mead [1935], em que uma viúva volta geralmente a casar noclã do marido, tanto quanto possível com um dos irmãos deste, sobretudo se

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tiver filhos, dado estes deverem ser criados nas terras do seu pai falecido.Também Evans-Pritchard [1951] observou na sociedade nuers um casointeressante, parecido com a forma de casamento por levirato, e onde quandoum homem morria solteiro sem deixar descendência, o seu irmão podia tirardo rebanho do defunto os animais indispensáveis ao pagamento dacompensação matrimonial para a obtenção de uma esposa, e com ela procriarem nome do defunto.

Modalidade inversa ao levirato, o sororato consiste no princípio segundo oqual quando a esposa morre, o seu grupo de parentes de origem tem a obrigaçãode fornecer uma outra em substituição da primeira. Sobretudo, nos casos emque as circunstâncias do falecimento foram obscuras e a mulher sendo jovemnão tenha deixado a esperada progenitura. Ou ainda no caso em que nãotendo falecido é no entanto uma esposa estéril. Em qualquer destas situações,uma irmã mais nova da referida esposa pode substitui-la e os filhos nascidosda união serão considerados filhos da primeira esposa. Tal prática sublinha,da mesma forma que o levirato, as obrigações do grupo de origem da esposapara com o grupo que a recebeu. Esta modalidade de casamento pode serobservável, entre outros, nos shoshone onde uma mulher quando morre, a sualinhagem deve substitui-la por outra, geralmente uma irmã mais nova, cedidapor um valor mais baixo que a primeira. Outro exemplo, é o das ilhas Marquesasonde o sororato é praticado pela aristocracia como forma de manter as relaçõesprivilegiadas iniciais.

Estes casamentos são compreensíveis se tivermos em conta que envolvemfortemente os grupos a que pertencem os nubentes. Sendo assim, como Lévi-Strauss refere, a aliança diz fundamentalmente respeito ao grupo no seu todoe menos aos indivíduos que têm de agir em função dos interesses gerais dogrupo. Também a nossa própria sociedade regulamenta as condições que regemos contratos matrimoniais, assim como a sua dissolução,, impondo formasjurídicas específicas a que os indivíduos têm de se conformar,independentemente das suas vontades particulares.

6.5 Descendência e filiação

Na medida em que a filiação deriva do laço que une um indivíduo ao seu paiou mãe exclusivamente ou a ambos, segundo as sociedades, as regras de filiaçãodeterminam o grupo de parentesco ao qual um indivíduo pertencerá enquantomembro. Assim, a filiação define relações de consanguinidade, reais oufictícias, que diferenciam grupos de consanguíneos e os tornam possíveisaliados, segundo a selecção imposta pelo tabu do incesto. Por outro lado, afiliação ao definir o parentesco e não parentesco determina, em consequência,

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no quadro da herança e da sucessão, os direitos, deveres e obrigaçõesrespeitantes a determinados indivíduos e grupos aparentados, decidindo osque são excluídos.

Com efeito, como vimos anteriormente, neste sub-capítulo, o parentesco socialnem sempre corresponde ao parentesco biológico. Por outras palavras, a filiaçãonem sempre corresponde à descendência, ou seja ao conjunto de indivíduosbiologicamente aparentados, razão pela qual alguns especialistas distinguemfiliação e descendência.

Ê igualmente necessário ter em atenção a distinção entre genitor e pai/mãesocial,, dado as duas realidades nem sempre coincidirem. Acontece muitasvezes, na nossa sociedade, uma criança ter um pai biológico desconhecido eviver com um homem que assume a paternidade social provindo a todas asnecessidades inerentes ao correspondente papel (é o caso notório da adopção).Por vezes ainda, uma criança conhece o seu genitor mas este não exerceplenamente o papel de pai social que fica a cargo de um padrasto. Um exemplomuito notável e revelador pode ser encontrado na história francesa, na relação"adulterina de Louis XIV com a marquesa de Montespan, da qual resultaramvários filhos os quais para não serem reclamados pelo marido de madame deMontespan (que adquiriria assim o estatuto de pai de filhos que não eramseus) foram declarados'filho s "do rei mas de mãe incógnita. Noutras sociedades,como por exemplo os Nayar do sul da índia, distinguem três papeisnormalmente reunidos num único: o papel de pai social, de genitor e detentorda autoridade. Nesta sociedade, um homem, geralmente pertencente à castasuperior brâmane, pode realizar um casamento com uma rapariga quecontinuará a viver em casa dos_ seus pais e onde tem toda a liberdade de teramantes. Os filhos nascidos destas relações sexuais (de diferentes genitores)serão considerados filhos do marido (pai social) e, dado tratar-se de umasociedade matrilinear, dependerão da autoridade do seu tio uterino. l-í

1•-a

6.5.1 Afiliação indiferenciada

A filiação indiferenciada, dita ainda bilateral ou cognática (bilateral descentou cognatic descent em inglês ̂ /zóEíicift bilateral, indifférenciée ou cognatiqueem francês) corresponde à modalidade que conhecemos na nossa sociedade egrosso modo à maioria das sociedades ocidentais. Está no entanto longe deestar reservada às sociedades de modelo europeu, reflectindo na realidade umtipo de filiação bastante comum em toda a humanidade.

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Sistema de filiação indiferenciada (ou cognáti c a/bilateral)

primos pnmos Ego pnmos pnmos

Legenda; / \s de pertença

Diag. 12

Nas culturas onde se pratica a filiação indiferenciada, ego pertenceindiferenciadamente à linhagem do seu pai e da sua mãe e desde logo àsquatro linhagens ascendentes da linha recta. Sendo assim, a terminologia doparentesco patrilateral e matrilateral é exactamente a mesma em ambos oslados, como se viu nos diferentes tipos de nomenclatura. Outro aspecto,consiste em as relações de parentesco de ego serem idênticas tanto com olado paterno como com o lado materno.

- . .-*"•Em consequência desta pratica, os direitos, deveres e obrigações são, regrageral, exactamente os mesmos em relação às duas linhas de descendência.

De facto, a generalidade dos sistemas europeus de parentesco correspondecaracteristicamente à filiação indiferenciada, sobretudo no que toca à relativaequivalência das relações de parentesco com ambas as linhas parentais. Porém,um sistema destes claramente típico é o sistema português (e de forma idênticao caso espanhol) se tivermos em consideração o modelo de transmissão do nome.Com efeito, o principal critério de definição de pertença a um grupo e, desdelogo de filiação, é a partilha de urn mesmo patronímico. E no presente exemplo,contrariamente à maioria dos sistemas europeus, a transmissão jurídica do nomeem Portugal permite a atribuição conjunta do nome do pai e da mãe ao filho/a,dando-lhe assim um cunho caracteristicamente indiferenciado.

Se examinarmos os diferentes sistemas europeus torna-se notório que amodalidade de transmissão do nome, independentemente das variedade daspráticas, imprime uma forte inflexão patrilrnear ao regime de filiação. Ou seja,

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a atribuição do nome ao filho/a faz-se necessariamente em linha masculina,perdendo a linha feminina a sua identidade em todos os casos.

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6.5.2 Afiliação matrilinear (ou uterina)

Nas sociedades onde se pratica a filiação matrilinear (matrilineal.descentem inglês efiliation matrilinéaire em francês), ego pertence ao grupo de parentesmaternos. Nestes sistemas, o laço de parentesco é exclusivamente transmitidopelas mulheres. Assim", "só a"ífm.a de ègõ transmite a qualidade de pertehçá'áogrupo, o irmão embora tenha a mesma pertença não a pode por consequênciatransmito. Tal, não significa que ego não reconheça os seus parentes paternos.A linha de parentesco paterna é naturalmente reconhecida mas esta tem umpapel de parentesco secundário. Os parentes paternos de ego pertencem à suarespectiva linha materna que, desde logo, é diferente da de ego. Geralmente aresidência é dita simétrica porque concorda com a filiação, ou seja a residênciamatrimonial é matrilocal (diag. 13).

Filiação matrilinear (ou uterina)

Legenda:

O

k grupo matrilinear

grupo residencial matrilocal (sistema dito simétrico)

Diag. 13

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Existem numerosos sistemas de parentesco rnatrilineares embora, segundo oque parece, a maioria dos sistemas existentes seja patrilinear. Para dar umexemplo, volto a citar as ilhas Trobriand, uma sociedade já referida neste livro,onde os filhos de uma mulher pertencem ao seu clã, exclusivamente. Assim,os filhos do filho perdem este estatuto e passam a pertencer ao clã da esposa enão ao seu [Malinowski, 1929]. Nestes sistemas, um homem está reduzido aopapel de marido da mãe dado não ter nenhuma função na atribuição do estatutoparental aos filhos. Assim, o parentesco, biológico relativamente ao pai éignorado e simultaneamente o de pai social, cujo papel é desempenhado peloirmão da mãe. O pai desempenhará este mesmo papel em relação aos filhos dasua irmã.

Outro exemplo muito interessante e elucidativo é o caso apresentado porGeorges Condominas, apropósito dos mnong gar (ou phii brêe) matrilineares3,onde o conjunto dos indivíduos pertencentes a um clã se reclama de um ancestralcomum emlinha materna e o estatuto de escravo e de homemlivre se adquiriapor via feminina. Com efeito, se um homem, livre se casava com unia mulherescrava, os filhos tinham o estatuto de escravos e vice-versa: "um homemlivre não se torna escravo pelo seu casamento com uma escrava, mas os seusfilhos seguem a condição da sua mãe" [1977: 111].

Na comunidade judaica a qualidade de pertença adquire-se através das mulheres.Assim, uma judia casada com um hornem não judeu, os seus filhos serãoconsiderados judeus.o que não acontecerá com a situação inversa. A nossaprópria sociedade embora não tenha qualquer característica que nos leve adefini-la como tipicamente matrilinear, apresenta, contudo, uma forte flexãodo género no que respeita às relações preferenciais com o parentesco materno[Dos Santos, 1992]. "" '

8 Os mnog gar ("Homens dafloresta") são um povo seminómada dos Altos Planaltosvietnamitas.

6.5.3 Filiação patrilinear (ou agnática9)

A filiação $a.tritiiit&r (patrilineal descent em inglês tfiliationpatrilinéaireemfrancês), apresenta uma configuração diametralmente inversa à matrilinear.A descendência faz-se exclusivamente pelos homens. Urna mulher não temqualquer papel na atribuição da pertença parental do filho. Porém,contrariamente ao sistema matrilinear, a mulher não concilia os papeis de mãebiológica e mãe social da mesma forma.

Os muçulmanos são caracteristicamente patrilineares, o que significa que osfilhos de um casal têm o estatuto de pertença ao grupo de parentes do pai.Deste facto, derivam as tensões existentes entre os direitos europeus e"muçulmanos e incompreensão no que"respeita ao direito de custódia dos filhos

9 Os (igualas correspondemaos indivíduos (masculinose femininos) descendendode um mesmo ancestralpelos homens exclusiva-mente.

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nascidos de casais mistos constituídos por um muçulmano e uma nãomuçulmana em caso de divórcio. Nestas situações, o marido muçulmanoconsidera com a maior naturalidade que os filhos lhe pertencem exclusivamentee que a mãe nada tem a reclamar em relação à sua custódia ou outros direitos.Numerosas sociedade estão organizadas segundo o regime patrilinear, de longeo mais comum. Na Europa, inclusivamente, existem mais que fortes inflexõespatrilineares em certos sistemas de parentesco, como por exemplo no que dizrespeito à transmissão do nome como já foi visto atrás [Dos Santos, 1994].

Geralmente o grupo residencial é simétrico ao sistema de filiação e correspondeassim ao grupo patrilocal, .conforme o diag. 14.

n;Filiação patrilinear (ou agnática)

i3

i:

í-iiM .

f V' l

I ,n: j .

i

Legenda: ffia. @9 grupo patrilinear

grupo residencial patrilocal (sistema dito simétrico)

Diag. 14

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6.5.4 Filiação bilinear (ou dupla filiação unilinear)

A filiação bilinear ou dupla filiação unilinear (double descent em inglês efiliation bilinéaire ou double filiation unilinéaire em francês), combina os doissistemas unilineares, patri-matrilinear, e cada uma das duas linhas preencheum papel diferente da outra (diag.15). Ou seja, reconhece o parentesco dolado paterno e materno mas cada um deles com uma finalidade distinta.Segundo R. Fox [1986], um sistema bilinear funciona se cada uma das duaslinhas exercer uma função distinta. Por exemplo os yakò" do Nigéria, segundoD. Forde [1964], herdam os bens fundiários do pai eprestam culto aos ancestraispaternos mas recebem os bens móveis e dinheiro da parte da mãe (do tiouterino concretamente). Nos ashanti do Gana, o pai transmite o espírito (o"ntoro") enquanto o sangue (o "abusua") é transmitido pela mãe [Fortes, 1950].

Á definição de filiação bilinear dada mais acima, reporta-se às característicasprincipais do sistema, porém foram observadas algumas variantes importantesem. diferentes partes do globo. Poderia assim citar, entre outros, o sistema de"cordas" dos mundusamor da Nova Guiné ou a variante da distinção sexualo j

dos apinayé do Brasil.

Filiação bilinear (ou dupla filiação unilinear)I0

10 Diagrama segundo R.Fox.

Lesenda: linhas de filição

Diag.15

159

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Segundo alguns autores, o sistema de filiação bilinear seria de todos o maisraro. Pela minha parte penso que, provavelmente, não o será tanto comogeralmente se pensa.

11 Aldeia do concelho do Em Portugal mesmo, na aldeia dos Chãos", pude constatar a existência deFundão, Beira-Baixa. a y^j-j^-g ^0 sistema bilinear muito próxima do caso Apinayé, com exclusão

_L .L -/ *

naturalmente da organização social.

Uma última nota para fazer observar que os diferentes exemplos, dados maisatras, a respeito daEuropa, como sendo sistemas indiferenciados, atestam narealidade modalidades de regimes de parentesco que levam a colocar, na maioriadeles, a questão de saber se os seus sistemas definidos habitualmente comoindiferenciados o são efectivamente. Neste sentido, não se pode deixar deconcordar plenamente com C. Lévi-Strauss quando refere que provavelmentese incluiu, apressadamente, nos «sistemas de descendência ditos "bilaterais"ou "indiferenciados" [...] sistemas sobre os quais se começa aperceber que sepoderiam reduzir a formas unilaterais» [1967:XV].

6.6 A linhagem, a linhada e o clã

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1 i'' A linhagem (lineage em inglês; lignage em francês) consiste num conjuntoí Í ; de indivíduos tendo em comum um (ou uma) ancestral comum fundador, do! i • qual se reclamam, em virtude de uma regra de filiação unilinear: agnática

íj!jj "i j " i ~ (linhagem patrilinear) ou uterina (linhagem matrilinear). Os membros datt-ll-J-L linhagem"são capazes de estabelecer todos os elos que os ligam uns aos outros3I"Í"!~"~pJ l - - - - - - . . . _ _ . . _ ^. çj . . -, i, *.«-«- * „. i jit^jy,— - - . .t . . . . -_^-L - __-__ -*-. _- _ Sm-__:^^f ___, ___ _ . . ..

ÍM.;i": : e ao ancestral comum, característica que distingue a linhagem do clã.*'"'" ; ; • • Geralmente a linhagem constitui um grupo local (patri ou matrilocal) cuja

; . unidade social tem por princípio a autoridade jurídica, o património, a].;.. exogamia, o culto e a solidariedade. Por exemplo, na sociedade Ashanti do

•fkr-4— - Gana a linhagem é considerada corno uma "pessoa" [Fortes, 1950] e cada• { ; : ; j j indivíduo representa a linhagem e é responsável pelos actos dos restantes?r4- ;- membros.

Quanto à linhada (issue ou slock of descendants em inglês; lignée em francês),esta representa um segmento de linhagem de indivíduos primogénitos ebenjamins, independentemente da regra de filiação e da linha, recta ou colateral,pela qual o parentesco é estabelecido. Assim, num sistema indiferenciado, alinhada de ego consiste nos seus descendentes, solteiros ou casados comexclusão dos cônjuges. Porém, por sua vez, ele, e os seus própriosdescendentes, pertencem à linhada do seu pai (ou da sua mãe) ao mesmotítulo que os seus irmãos e irmãs. Uma linhada não constitui sempre um recortesocial e jurídico numa linhagem, mas em certos casos ela pode reivindicar

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certos direitos. Por exemplo, no nosso tipo de cultura, certos direitos podiamser transmitidos por via primogénita e fazer, assim, evidenciar uma linhada deprimogénitos por oposição a filhos segundos. Estes últimos constituem porsua vez urna linhada de benjamins. Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumasnão são outros senão os benjamins ("Lês cadets deFrance") excluídos, devidoaposição na sua ordem de nascimento, dos bens principais dos seus respectivospais (reservados aos primogénitos), não lhes restando senão a espada que põemao serviço do rei.j

Relativamente ao clã, os seus membros dizem-se aparentados uns aos outrospor referência a um ancestral cornum, mas na realidade são geralmente incapazesde estabelecer o laço que afirmam ter com o ancestral epónimo, contrariamente,como se viu, à linhagem. O clã pode ser constituído por urna ou váriaslinhagens, ter umabase territorial local ou encontrar-se disperso pela regra daexogamia. Seja como for, o clã é dotado de um espírito de solidariedade efunciona como um todo em acto. Ou seja, se uni dos seus membros cometerum crime todo o clã se encontrara envolvido e deverá prestar contas enquantogrupo no seu conjunto.

6.7 Parentela

A parentela consiste no grupo de parentes consanguíneos que ego reconhececomo tal. Nos casos em que a linha genealógica de descendência é indiferente- o que acontece na maioria dos casos -, a parentela é dita bilateral. Porém,existem sociedades em que o.recrutamento dos membros da parentela é feitonuma única linha, agnãtica ou uterina. A fundamental característica da parentelaé ela definir-se exclusivamente em relação a um indivíduo de referência, ouseja ego, que se encontra no centro de uma tal configuração. Inversamente,nos outros grupos de filiação, como as linhagem ou os clãs, os seus membrosconsideram-se aparentados por referência a um ancestral comum, como járeferi. Estes grupos existem enquanto tais e não em função dos diferentesindivíduos que os compõem. No caso da parentela, só ego e os seus irmãospossuem a mesma parentela e esta não tem qualquer realidadeindependentemente deles. Assim, o pai ou a mãe, por exemplo, não só têmuma parentela diferente um do outro como diferente da de ego e seus irmãos(e irmãs, subentende-se).

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12 Diagrama segundo R. Fox. Parentela simples (até aos primos germanos) 12

O"rrir-

O

D

Diag. 16

No traço contínuo está contida a parentela de A; no/traço descontínuo aparentela de B; Assim, B e C são membros da parentela de A; A e Dmembros da parentela de B; porém D não é membro da parentela de Inem de C.

Por outras palavras, nem todos os membros do grupo têm um ancestral em-comum-mas-têm-inversamente uma relação comam com o indivíduo dereferência em relação ao qual se define a sua parentela (o ego colectivo A nodiag, 16).

A residência matrimonial

Em muitas sociedades o local de residência matrimonial resulta de regrasdeterminadas pelo sistema de parentesco, independentemente da consciênciaque delas têm os indivíduos. Inversamente, em. sociedades como a nossa, porexemplo, a residência não obedece a regras fixas e rígidas, estando antesdependente de aspectos diversos e exteriores ao parentesco, em particular oeconómico. No entanto, nestas mesmas sociedades, se não se pode falargeralmente de reais regras residenciais é possível evidenciar, em alguns casos,fortes tendências no sentido da realização de um determinado modelo culturalde residência matrimonial. Ou seja, quando as condições sociais e económicaslocais são neutras em relação a ambos os cônjuges, a tendência é praticar-seum modelo cultural de residência matrimonial em conformidade com os usosdo lugar. Por exemplo em Portugal, em meio especialmente rural, é comum aresidência ser de tipo rnatrilocal entre aldeias, sempre que eventuais impeditivosnão se interponham. Porém, outros tipos de residência existem no nosso País,

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os quais também - sempre que os elementos favoráveis ao modelo culturalestão presentes - tendem a realizar-se por força de emergência da estruturasocial local antiga, mais ou menos ainda existente.

A partir da experiência no terreno, os antropólogos elaboraram una tipologiados modelos de residência matrimonial. Foram observados os seguintes modelosprincipais: 1) a residência patrilocal, 2) a residência virilocal, 3) a residênciamatrilocal, 4) residência uxorilocal, 5) a residência biiocal, 6) a residênciaalternada, 7) a residência duolocal (chamada também natolocal), 8) aresidência avuncolocal, 9) a residência neo-local. É possível que certosautores refiram alguns destes modelos utilizando outros termos, para alémainda da sua definição poder também variar em alguns dos casos. Porém, aterminologia aqui indicada parece reunir o maior consenso.

A residência patrilocal, matrilocal, virilocal, uxorilocal corresponde a umaregra unilocaí de residência, segundo a qual um dos cônjuges deve ir habitarpara junto do grupo de parentes do outro.

A residência patrilocal, corresponde à regra que leva a que os dois cônjugesdevam residir na casa ou terras do pai do marido.

A residência virilocal distingue-se-da residência patrilocal pelo facto doscônjuges se estabelecerem na casa e nas próprias terras do marido e não dogrupo de parentes do marido.

A residência matrilocal, resulta da regra que leva um casal a ir viver juntodos parentes da mãe da esposa ou no seu território.

A residência uxorilocal consiste na regra inversa à da residência virilocal, oscônjuges vão instalar-se na casa da esposa.

A residência bílocal não impõe um único local de domicílio como o tipounilocaí. O casal pode escolher, em função de determinados critérios, o localde residência: junto do grupo de parentes do marido ou da esposa. Segundo aescolha, o casal integra-se num ou noutro grupo de parentes, podendo um doscônjuges deixar de ser membro do grupo de origem abandonado. Os iban doBornéu, bilineares, praticam este modelo de residência matrimonial.

A residência alternada consiste no facto de esta alternar entre a residênciapatrilocal e matrilocal. A alternância pode ser periódica ou em função dedeterminadas regras. Por exemplo, os homens boschiinanes estão obrigados aviver em casa do pai da esposa até ao nascimento de um certo número defilhos, antes de poderem ir residir com o grupo dos seus parentes.

A residência duolocal, designada também de natolocal, significa que cadaum dos cônjuges vive separadamente ern casa dos seus respectivos pais.

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Contudo, as suas modalidades variam muito de sociedade para sociedade ondese pratica esta forma de residência. Na maioria das vezes ela é provisória maspode ter um carácter definitivo.

Os. homens ashanti casados vivem em casa de sua mãe juntamente com osseus irmãos e irmãs assim como com os filhos das irmãs. Por seu turno, asesposas vivem igualmente na casa de sua mãe com os próprios filhos ondeconfeccionam a comida que é levada por estes ao seu pai.

Também no norte de Portugal foi observado este tipo de residência, em que oscônjuges vivem e trabalham separadamente durante o dia em casa dos seusrespectivos pais e passam a noite juntos na casa dos pais da esposa [B. O^Neil,1984].

A residência avuncolocal, consiste na regra segundo a qual um casal vairesidir junto do irmão da mãe do marido. Este tipo pode ser facilmenteobservado nas sociedades matrilineares, mas não exclusivamente.

A residência neo-local corresponde à regra segundo a qual os cônjuges moramnum local independente do dos seus respectivos pais. Este tipo de residência écaracterístico das sociedades ocidentais, embora não seja exclusivo delas. Masmesmo nestas, em períodos de crise económica, é comum um jovem casal_c^mi|ificuldades£nanceu:asjnorar3,mais ou menos tempo, em casa de um dospais do casal, geralmente em casa dos pais da esposa no caso português.

6.9 A família nuclear

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Como vimos no início deste sub-capítulo, o conceito de família é muitoimpreciso dado poder subentender associações de parentes muito diferentes,segundo o locutor: indivíduos ligados pelo sangue, pelo casamento, pelaadopção; ou também indicar pessoas pertencentes a uma determinada Unhadaimportante. Assim, "A Casa de..." como por exemplo "A Casa de Bragança",que pretende significar a continuidade de uma certa linhada, ou ainda quandose fala em termos de "famílias" de um determinado lugar, para significar gruposde indivíduos aparentados com certo relevo social local.

O conceito de família nuclear tern uma maior precisão, dado corresponder àdefinição de um grupo irredutível de indivíduos co-resídentes constituído peloscônjuges e respectivos filhos solteiros (geralmente de mesmo sangue mastambém eventualmente adoptados). Porém, este grupo (diag. 17) está longede ser universal, como também ser exclusivo do mundo ocidental moderno.Mais ainda, o reconhecimento da família nuclear como base nas diversas formas

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de organização social, apoiadas no parentesco, não é unânime e contínua aser objecto de debates controversos entre cientistas.

Com efeito, o grupo que constitui a famílianuclear, designada ainda de restrita,conjugal ou elementar (os termos são inutilmente vários e atrapalham-se unsaos outros), não corresponde ao átomo do parentesco (ou elemento deparentesco) evidenciado por C. Lévi-Strauss para forjar a teoria da aliança,enquanto centro da organização social fundamentada no parentesco, como seviu anteriormente.

Família nuclear

Dias- 17

Numpassado recente (e porventura ainda hoje em certos locais mais recônditosdaEuropa), no seio das sociedades ocidentais modernas onde a família conjugalé generalizada, foi igualmente possível observar este agrupamento associado

._ **a agregados mais vastos como a família extensa ou alargada. Contudo, nasociedade moderna actual, a família nuclear está a sofrer uma forte mudança,é menos exclusiva e encontra-se em crescente concorrência com outras formasde associação, como os casais de indivíduos de mesmo sexo (legitimados ounão pela sociedade) reivindicando inclusivamente a possibilidade de adopçãode crianças.

De resto, é um facto que, na maioria das sociedades humanas, a famíliaconjugal, monogâmica (na qual nenhum dos cônjuges está autorizado a tersimultaneamente outro cônjuge) e restrita, está associada a agregados maisvastos e complexos, tais como a família poligâmlca (ou família composta)(diag. IS), a família extensa (diag. 19), a família indivisa ou alargada(diag.20).

 família nuclear deve ser distinguida do grupo doméstico devido estecorresponder, na sociedade camponesa, a uma unidade residencial, com funçõesde produção e consumo, onde nem todos os seus membros são aparentados

165

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13 Esta forma de associaçãodoméstica existia na planí-cie panoniana da Jugoslávia(entre o Danúbio e a Ilíria),

dado que ao grupo de parentes está muitas vezes associado um certo númerode trabalhadores agrícolas, entre outros.

Investigações históricas mostram, que, em certas condições e por várias razões,os grupos familiares eram levados a associar-se entre eles e, muitas vezes,podiam incluir, de facto, membros estranhos ao parentesco. Em alguns casos,os èstranhõs~âssociavam-se como se fossem irmãos ou mesmo como famíliasconjugais aparentadas ficticiamente. Ás comunidades familiares reagrupavamtambém parentes e eram regidas sem contrato formal mas tácito - razão pelaqual .sãoj:hamadas^prnunM^de^4ç^^_É^arr^ém q caso da zadrugajusgoslava13, formação agrícola constituída por famílias voluntariamenteassociadas na qual, tal como nas comunidades tácitas, o grupo doméstico tinhacomo elo central a residência e as refeições em comum.

Já vimos em que consiste a poligamia e a multiplicação das situações conjugaisque tal implica. A realidade da família poUgâmica conduz à família composta,pelo facto de compreender o conjunto dos diferentes cônjuges e respectivo_s_filhos.

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Família poligâmica (ou composta)

Diag. 18

Em contrapartida, a família extensa (extended family em inglês; famille^étendue em francês) não corresponde à mera justaposição de várias famíliasconjugais mas a um grupo de consanguíneos, aliados e descendentes,representando no'mínimo três gerações co~habitando num mesmo local.

Na realidade, é a co-habitação de diferentes gerações e não o número deindivíduos que torna a família extensa diferente da família nuclear.

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Família extensa

Diag. 19

A família indivisa ou alargada (jointfamily em inglês; famille indivise ouélargie em francês) é um agregado relativamente diferente da família extensa,na medida em que apresenta um a configuração menos vertical e mais horizontal.De facto, este agrupamento pelos laços de sangue e de residência consiste noconjunto dos germanos casados, com os seus filhos e netos.

Família indivisa ou alargada

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167

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6.10 A herança e a sucessão

Porque se pode herdar sem suceder, os antropólogos distinguem a herança dasucessão. Na realidade são duas praticas muito diferentes. Para os antropólogos,a herança diz respeito aos bens - móveis e imóveis - que um indivíduo deixaapós o seu falecimento e que deverão ser partilhados segundo determinadasregras em vigor na sua sociedade. Em casos extremos, as eventuais dívidas eoutros deveres e obrigações a que um indivíduo se encontrava eventualmenteadstrito, são elas também susceptíveis de serem endossadas aos respectivosherdeiros; porénij os-deveres-e-obrigações cabem ser assumidos,.geralmente,pelo sucessor. Com efeito, a realidade da sucessão difere da herança por nãoestar em causa a partilha de bens materiais mas a transmissão de estatuto -relativamente a direitos, deveres e obrigações - e de autoridade - relativamenteaposição do autor da sucessão.

Urn exemplo muito interessante desta distinção é descrito num trabalho etnográficosobre a transmissão da propriedade agrícola no Alentejo14. Neste, apresenta-se, o.caso de umafratria de vários germanos em que apenas um deles é de sexo masculino.No momento da herança dos pais, todos foram herdeiros em partes iguais dos

14 Ver a tese de mestrado deConceição Reis, O MonleAleniejano e a sua Transfor-mação no Século XX: o casoda Amoreira de Cima, Univ.Nova de Lisboa, 1996.

Herança e sucessão

sucessãoherança

Diag. 21

bens deixados, mas na sucessão da gestão da totalidade (nenhum herdeiroretira o seu quinhão do conjunto) foi eleito um único indivíduo que no presentecaso foi o indivíduo de sexo masculino (o qual ficou com o encargo de nofinal da actividade agrícola dividir Incros e prejuízos em partes idênticas).

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Como se pode facilmente entender, neste processo de devolução dos bens ede transmissão da sucessão, a ordem, de nascimento também é importante.Em muitas sociedades, a regra de primogenitura significa importantes direitosde preferência em relação aos filhos segundos.

Na maioria das sociedades, o sexo dos herdeiros é igualmente relevante, tantorelativamente à herança como à sucessão. Por exemplo, este distinção de sexoé extremamente significativa do ponto de vista da herança e da sucessão nopovo hopi (diag. 22). Os bens do tio-avô materno são devolutos a uma sobrinhaem forma de gado e culturas arvenses e uma parte destes pode ser igualmenteherdada por uma filha da sobrinha. Em contrapartida, a sucessão nos estatutosdo defunto, enquanto chefe político e figura religiosa do clã, é atribuída aofilho da sobrinha.

Herança e sucessão nos Hopi

sucessão

Dias.22

Se o processo de transmissão dos bens patrimoniais familiares releva geralmenteda competência da família nuclear, em algumas situações a sociedade toma odireito de intervir, a fim de verificar a execução do seu modelo de partilha. É'o caso na nossa sociedade, aquando"do estabelecimento de um "inventário demenores", em que um órfão se encontra em concorrência com outros herdeirosà herança disponível e em particular com um dos seus progenitores e lhe édesignado pelo tribunal um. tutor exterior ao grupo de parentes.

Outro aspecto relevante, está relacionado com o facto da herança e sucessãonão se realizarem forçosamente na sua totalidade no seio da família nuclear.

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Na nossa sociedade, entre outros exemplos, um indivíduo pode subtrair damassa patrimonial uma parte correspondente à sua "quota disponível" e doá-laem vida a quem bem entender. Em alguma regiões de tradição do herdeiro

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principal o autor da herança pode designar um sobrinho para lhe suceder emdetrimento de uma filha ou de um filho incapaz de dar continuidade à casa de

!i Neste caso, todos são her-deiros mas o sobrinho é J&ftllllCL .beneficiário de uma terçaparte dos bens e sucede na Esta breve passagem em revista dos principais elementos do parentescoexploração da totalidade dapropriedade, o sistema fim- corresponde na prática a um universo social extremamente rico e significativo«ona porque os herdeiros ^a variedade social e cultural da Humanidade. Universo social merecendonão desmantelam a unidadeda propriedade, retirando as uma abordagem profunda e competente, a fim de poder conhecer emsuas partes, e aceitam a eiei- profundidade as sociedades mais distantes e diferentes mas cujamodernidadecão de um único sucessor r

para dar continuidade aoconjunto indiviso.

Para saber mais:

í! : FOX, Robin,r.;.1:

1986 Parentesco e Casamento ~ uma perspectiva antropológica, Lis-boa: Vega Universidade.

LÉVI-STRAUSS, Claude

1 •': 1982 As Estruturas Elementares do Parentesco, Petrópolis: Vozes.

as. iM . MURDOCK, George Peter,! - j • . • - —. - . . _ ._ .

;. 1949 Social Stmcture, The Free Press. Collier- Macmillan.

jíijj i i RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald, FORDE, Daryll (Eds),«irij,.. j

' j . ' 1982 Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento, Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian. (Ler em particular a introduçãoonde é dado a compreender a noção de funcionalismo e a teoriada filiação).

SEGALEN^ Martíne,1981 Sociologie de laFamille, Paris: Armand Colin.

170

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O campo da Antropologia Política

6.1 A organização política das sociedades

Perante a riqueza do campo da antropologia política, mais não se podia fazer,no quadro deste livro, do que colocar as premissas que permitem abrir a via auma rápida abordagem do assunto e situar o lugar e função da organizaçãopolítica no sistema global das sociedades, dirigindo necessariamente o leitorpara uma literatura mais especializada. De facto, o domínio da antropologiapolítica é vastíssimo e a seu respeito existe uma literatura especializada bastanteprofunda e diversificada, reflectindo a história do seu desenvolvimento.

Apesar de se ter constituído em especialidade, a antropologia política remetepara o todo social ou seja para as propriedades gerais que nele operam e oorganizam., atravessando assim todos os elementos da organização social aque o antropólogo social normalmente presta a sua atenção. Nesta medida, oinvestigador dificilmente pode descurar os efeitos sociais da organização políticana forma das sociedades quando tenta compreender a complexidade do sistemasocial e a razão profunda das relações entre os seus diferentes elementos activos.A este título, a organização política tem sido encarada como um dos eixos deinvestigação estruturante da vida das sociedades e ocupou desde cedo osantropólogos enquanto especialidade.

Naturalmente, todas as sociedades possuem uma organização política agindoa diferentes níveis: social, territorial, económico, militar, etc. Este facto, só porsi, é suficientemente importante para interessar os antropólogos. Mas ofenómeno torna-se ainda mais relevante, se observarmos que as organizaçõespolíticas são muito diversificadas, e mais ou menos complexas, segundo otipo de sociedade.

Todos os membros de uma sociedade estão sujeitos ao sistema político que aregula, embora nem todos participem, directa e especificamente, nos seusdiferentes níveis enquanto particularmente responsáveis por um órgão de poder.No entanto, todos eles estão, de facto, implicados no sistemapolítico, directaou indirectamente, em posição dominante ou secundária, se considerarmosque um sistema político consiste numa rede complexa de relações sociais naqual se inscreve o binómio governantes/governados.

Nas pequenas sociedades, habitualmente estudadas pelos antropólogos, aorganização social e a organização política estão intimamente interligadas.Emmuitos casos, estes dois níveis relacionais sobrepõem-se nitidamente, peloque não é de admirar que naquelas sociedades a organização política sejafuncionalmente decalcada da organização parental; que o mesmo"é dizer da

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organização social, visto também estas últimas se confundirem ouinterpenetrarem profundamente.

Face a esta constatação, Radcliffe-Brown [1940] considerava o estudocomparativo das instituições políticas um dos eixos fundamentais daantropologia social merecendo um tratamento particularmente atento. Mas esteestudo deveria ter como ponto de referência essencial as "sociedades simples".Posteriormente, Balandier definiu a antropologia política como uma ciênciaque procura "as propriedades comuns a todas as organizações reconhecidasna sua diversidade histórica e geográfica" [1967: 5].

Assim, no processo de identificação da diversidade dos sistemas políticos, osantropólogos aplicaram-se a registar as particularidades dos diferentes aspectos

• ' referentes ao domínio político, ou seja as formas de governo, as relações de' poder entre os diferentes grupos sociais, a autoridade, as jurisdições territoriais,

| j r i etc. Nesta medida, pode dizer-se que a antropologia política procuraf e s t a b e l e c e r a tipologia dos diferentes sistemas políticos existentes no;• universo, estudando-os teoricamente um a um., para finalmente proceder!,.. à sua comparação. Não é, no entanto, seguro poder estabelecer-se facilmente] \ referida classificação tipológica e, sobretudo, evidenciar as correlações entre; ;. um determinado modelo político.e as diferentes.características da sociedadeIlll onde,ele»se_aplica..P.orémJ.apesar_de.tal,.pode considerar-se, grosso modo, a

antropologia política como a ciência que estuda e compara - apoiada emj 1 estudos etnográficos - as formas e modos de organização política. Todavia,i i a realização exaustiva deste quadro está longe de ser evidente, na medida emL que-a-grande-dificuldade-do seu-estabelecimento tipológico reside - comoj condição prévia - na definição precisa da noção de organização política, e emi ' " """ ciévèFtef"êmclbn^^Í ' : combase nos múltiplos aspectos da diversidade dos sistemas políticos.

6.1.1 A perspectiva de alguns antropólogos

Foram representantes da antropologia britânica e o americano L. Morgan osque inicialmente mais se interessaram pelo estudo da organização política,designadamente H. J. Maine, R. Lowie, A. R. Radcliffe-Brown, M. Fortes,E. E. Evans-Pritchard, com a particularidade destes dois últimos teremintroduzido a noção de sistema político. Mais recentemente, e ainda na Europa,contribuíram com novas reformulações teóricas sobre os sistemas políticos, osautores dinamistas M. Gluckman, G. Ballandier; a importante corrente

'j*: . marxista representada por, entre outros, Y. Copans, M. Godelier, E. Terray;os estruturalistas J. Pouillon e E. Leach; nos Estados Unidos, há salientar osneo-evolucionistas corno M. Fried, L. Krader, M. Sahlins.

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As preocupações iniciais dos antropólogos privilegiavam, na perspectivaevolucionísta, a questão da origem do Estado e do direito. L. Morgan, emAncient Society [ 1877], pretendeu reconstituir a história do Estado, válida paratoda a humanidade, com base no esquema evolucionísta e na sequência dostrês estados ditos de selvajaria, barbárie e civilização. Mas se inicialmenteforam colocadas muitas questões sobre a origem do Estado, depressa se chegouà conclusão que, independentemente das respostas, a existência deste nãoconstituía a única possibilidade de organização política, tal como ficoudemonstrado pelos antropólogos, ao revelarem múltiplas formas de organizaçãosocial onde esta condição não tem realidade. É assim que H. S. Maine, emAncient Law [1801], evidenciou, desde muito cedo, a existência de sociedadescuja organização política assenta no parentesco e não no território. Ou seja, aexistência de sociedades sem Estado paralelamente asociedades c'om Estado.Porém, se em muitas sociedades o parentesco fornece de facto o esqueletoque articula os mecanismos reguladores da gestão política, tal não significatambém que, nas sociedades humanas, o mecanismo do parentesco seja oúnico sistema regulador político para além do Estado. Mais tarde, R. Lowie,em Primitive Society [1927], rejeitará todos os esquemas evolucionistas queenvolviam a questão da origem do Estado, e às sociedades fundadas naorganização parental acrescentou outros tipos: as organizações fundadas nosgrupos etários, na idade e no sexo.

Na última década de trinta, as preocupações sobre as origens do Estado deramlugar à perspectiva funcionalista inicial que concentrava a sua atenção nosmecanismo da ordem e da coesão social, ao serviço da qual se encontrarianaturalmente a organização política. Neste quadro teórico finalista, a questãodas tensões e conflitos políticos assim como a estratificação desigual dosgrupos não podia ser evidenciada. A partir da década de cinquenta, o fim doscolonialismos impõe a realidade do movimento histórico social deemancipação dos povos colonizados, ao formalismo anterior. Ainda em reacçãoao funcionalismo inicial, surge nos Estado Unidos a corrente neo-evolucionistaque inclui nas suas análises tanto as sociedades antigas corno as sociedadescontemporâneas. Pela mesma altura, o estruturalismo abstrai-se, como noutrosdomínios, dos aspectos formais privilegiados pela análise funcionalista epropõe-se estudar sobretudo os sistemas políticos como processos complexosde acção política.

Foram, de facto, H. J. Maine [1861] e mais tarde L. H. Morgan [1877], osprimeiros a evidenciar o facto dos laços de parentesco constituírem aarquitectura social das sociedades sem Estado. Face a esta constatação, noseguimento da demonstração de Maine e Morgan, as investigaçõesmultiplicaram-se nesta direcção e tornaram-se o meio incontornável para acederà organização social e ao seu snb-sistema da organização política. Nestascondições, estudar .o parentesco é, como .se.pôde antever no sub-capítulo

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anterior, abrir caminho para penetrar nas múltiplas dimensões do social e emparticular nas formas políticas das sociedades de pequenas dimensões, assimcomo nos mecanismos da acção política das sociedades ern geral.

Em African Political Systems [1940], M. Fortes e E. E. Evans-Pritchard,principais representantes da antropologia política funcionalista, apoiados nasua experiência de terreno em África, introduziram uma segunda classificaçãopolítica nas duas categorias já referidas, das sociedades com Estado esociedades sem Estado. Em relação às sociedades sem Estado, estes autoresconfirmavam, no seguimento de autores anteriores, que estas se subdividiam,por sua vez, em pequenas sociedades nas quais ^organização política e aorganização do parentesco são decalcadas uma da outra e sociedadesnas quais a organização política corresponde ao modelo da organizaçãolinhagística. Contudo, esta subdivisão revelou-se ser nitidamente insuficiente,na medida em que os princípios reguladores políticos da sociedade podem serainda outros: por exemplo, as classes etárias ou vários factoressimultaneamente, como j á referira R. Lowie [1927].

Como facilmente se entende, a elaboração de uma tipologia dos diferentessistemas políticos corresponde a um passo metodológico indispensável parauma abordagem completa e comparativa do fenómeno da organização política.Os antropólogos apresentam hoje um quadro dos sistemas políticos que, embora

mão sendo'exaustivo; permite orientar as investigações e afiná-lo, enriquecendo-o à medida das novas complexidades observadas.

Do ponto de vista tipológico, Fortes e Evans-Pritchard [l 940] salientaram três-grandes-modelos de organização política: 1) as sociedades de dimensões muitoreduzidas ern que a estrutura política se funde completamente na organização

parental,' 'queêlà abarca o conjunto das relações de parentescoda totalidade do grupo; 2) as sociedades Imhagísticas, onde a organizaçãopolítica se modela na linhagem reflectindo uma estreita coordenação entre osdois sistemas, os quais conservam porém a sua distinção e autonomia; 3) associedades com Estado cuja organização se apoia num aparelhoadministrativo, etc. Estas últimas, contrariamente às primeiras, são ditas assimpor possuírem um governo e aparelho administrativo especializados, umaparelho judicial, agentes de administração política," etc.. Mas, tal como associedades sem Estado, também as sociedades com Estado apresentam umaenorme diversidade.

Em relação às duas primeiras categorias de organização política, observa-se,como já foi referido, uma diversidade que se pode resumir nas seguintesformas principais:

a) o bando: a primeira das organizações políticas corresponde àssociedades dos grupos caçadores e recolectores, como por exemplo

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os bosquímanes da região desértica do Calaari (Sudoeste africano), osaborígenes australianos, etc. O bando, formado por umnúmero muitoreduzido de indivíduos, entre quinze a duzentos, possui um territóriosuficientemente capaz de provir às necessidades de sobrevivência dogrupo. Á finalidade da autoridade e do poder no grupo consiste na boadistribuição dos produtos da caça e da colheita, A organização socialapoia-se inteiramente na família nuclear. Ern muitos casos, váriasfamílias nucleares associam-se umas as outras podendo mesmo aorganização social apresentar uma base correspondente à famíliaextensa. No bando, os direitos são iguais entre indivíduos ao ponto dadistinção sexual não constituir uma diferença funcional. Tal associaçãoconstitui assim um grupo político. As transgressões são reprimidasessencialmente pelo afastamento do infractor do grupo. Mesmo astransgressões mais graves raramente são punidas com a pena de morte.

b) A organização linhagística: existem outros grupos de caçadores erecolectores cuja base política vai mais além da unidade da famíliaextensa. São sociedades onde o poder é difuso, e que certos autoresapelidam de sociedades "anarquicamente controladas". Na organizaçãopolítica linhagística, a legitimidade de pertença a um grupo e o direitoao seu território são definidos pela ligação ao ancestral fundador dogrupo. Nestas sociedades, as alianças matrimoniais entre linhagens,em particular em torno das linhagens dominantes, constituem ofundamento das alianças políticas.

A estes tipos de organização foram acrescentados outros modelos como, porexemplo os sistemas baseados exclusivamente na organização segundo osgrupos de .idade. Os grupos etários correspondem a classes de idade que,como grupos institucionalizados, constituem a base da organização políticade certas sociedades.

Outro aspecto considerado, como característica de determinados sistemaspolíticos, segundo Radcliffe-Brown [1940], são as diferentes formas estruturaisde desigualdade política, evidenciadas nas pequenas sociedades, com base,por exemplo, na idade e no sexo. Os homens mais velhos exercem geralmenteuma maior autoridade em relação aos mais novos. A fornia de governo pelosmais velhos é uma fornia de organização política muito corrente em muitasdas sociedades estudadas pelos antropólogos. De igual modo, em geral, oshomens exercem maiores responsabilidades sociais e políticas que as mulheres(naturalmente, as desigualdades não se esgotam com estas categorias sociais,no seu próprio seio outras podem evidenciar-se).

Assim, emresultado da sua experiência do terreno africano tradicional, o autorentende que o estudo comparativo dos sistemas políticos implica estudar oagrupamento dos indivíduos nos grupos territoriais ou linhagísticos, assim como

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a sua discriminação com base no sexo e idade ou com base na distinção dasclasses sociais. Na sua perspectiva estrutura-funcionalista, ele considera quese este equilíbrio for perturbado a sociedade reagirá em vários sentidos possíveispodendo conduzir à sua renovação ou ao estabelecimento de um novoequilíbrio.

Segundo o mesmo autor, um sistema político pressupõe um conjunto derelações entre grupos, organizados na base do parentesco ou do território,

J" enquanto sistema de equilíbrio social. Este sistema de equilíbrio não seriaoutra coisa senão o resultado de uma relação de forças no interior da sociedade.Deste-ponto de-vista,-quando-a-relação de-forças se altera, o sistema socialmanifesta o desequilíbrio do statutquo político das relações sociais e esforça-

rá ' se na constituição de uma nova relação de forças.

Quanto ao Estado, Radcliffe-Brown diz ser este comumrnente apresentado' como uma entidade superior aos indivíduos, dotada de soberania sobre estes,mas que na realidade não passa de uma mera ficção de filósofo no contextodas pequenas sociedades habitualmente estudadas pelos antropólogos, onde

• |^íi esta abstracção não existe: £ÍO que existe é uma organização, quer dizer umconjunto de seres humanos ligados por um sistema complexo de relações. Nointerior desta organização, indivíduos diferentes têm papeis diferentes. Alguns,como os chefes ou os^anciãos, capazes de darem ordens que serão acatadas,como os legisladores ou os juizes..., estão em posse de poderes especiais eencontram-se investidos de uma autoridade. Nada é parecido com os poderes

ÍI.1! í. do Estado, na realidade existem unicamente poderes emanando de indivíduos:' ' ' ! : ' _ ^rei_s^pnncipais_dign_atários, magistrados, polícias, chefes de partidos e eleitores. •

A organização política da sociedade não é mais que a parte da organização- - - --socialassumindoocontroloe^regularnentaçãodorecursoaoconstrangimento

físico" [Ibid:XXraj.

Estudar-se a organização política significa, finalmente, considerar umadeterminada ordem social (igualitarista ou desigual) no interior de uma

__ sociedade. A conservação desta ordem social resulta de constrangimentosjí:]:. - organizados com recurso possível à força física. Nas sociedades ocidentais,

bem organizadas, o eventual recurso coercitivo com o objectivo da manutençãoda ordem pública, é exercido por forças especializadas. Quanto à preservaçãoda integridade do seu território, a sociedade recorre a forças de defesa contraeventuais ataques exteriores. No plano interno, a questão política diz respeitoà imposição do direito público e no plano externo aos assuntos de defesa emvista de eventuais atentados à integridade da entidade territorial. No seio dasociedade, as infracções à ordem estabelecida resultam na punição do seuautor, segundo diferentes modalidades, em função do delito ou crime praticado.No âmbito externo, as relações com outras sociedades são geridas porprotocolos de defesa do interesse comum interno.

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6.1.2 O Estado

Como foi referido anteriormente, urna questão importante que preocupou osantropólogos foi a origem do Estado. M. Fortes, E. E. Evans-Pritchard [1940]colocaram a questão de saber se a existência ou ausência de Estado estariarelacionada corn a demografia ou a densidade populacional numdeterminado território ou, ainda, com o modo de viver. Lowie (1927) antesdele tinhareferido a possibilidade de diferentes hipóteses relativas a nascimentodo Estado.

Mas a questão da definição de Estado põe-se em primeiro lugar. Aconteceporém que os diferentes tipos de Estado variam muito segundo as sociedades.Assim, podem existir Estados democráticos, oligárquicos, autocráticos,teocráticos, reinos, impérios. Todavia, todos eles possuem alguns atributoscomuns que lhes concedem a qualidade de Estado: um governo mais ou menoscentralizado, um corpo administrativo, instituições especializadas na gestãogovernamental, forças de segurança governamentais internas e externas,soberania territorial. Mas para além da forma do Estado, importa percebersobretudo a natureza dos seus objectivos e os meios empregues para os atingir,os quais também variam bastante segundo as sociedades.

Na realidade, o Estado corresponde a uma instituição que tem por funçãoconservar interna e externamente a organização política da sociedade, dispondodos meios necessários a essa função. Assim, uma das características do Estadoconsiste em poder exercer um controlo coercitivo sobre os seus membros assimcomo nas suas relações com outras sociedades, comojáfoireferido mais atrás.Por outro lado, a superestrutura (para utilizar a terminologia marxista) daorganização política, subjacente à noção de Estado, implica, naturalmente,aspectos de suporte ideológico, corno uma constituição, diferentes códigos,etc. Muitas sociedades possuem uma organização política correspondendo aestes critérios mínimos. Na Europa, e de modo geral no resto do mundoocidentalizado, estamos habituados a reconhecer as formas clássicas de Estado.Mas, por exemplo, no continente africano tradicional, em certos reinos, podiaobservar-se diferentes fornias de forte organização política, como, por exemplo,no reino kuba do Zaire organizado em torno de chefaturas corn chefesnomeados pelo rei. Noutros, como no Daomé, os chefes nomeados pelo reiestavam sujeitos a um controlo de delegações enviadas pelo poder supremoreal.

O Estado não se confunde com um governo, o qual não é mais do que umadas suas componentes principais. O Estado também nem sempre coincidecom a nação. A noção de nação pressupõe a representação colectiva de umaidentidade própria fundada numa cultura homogénea, numa língua própria,numa bandeira como emblema dessa unidade. No caso português, é consensual

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dizer-se que, por razões históricas profundas, Estado e Nação formam umtodo confundido. Portugal, enquanto Estado-nação, possui uma identidade

: cultural majoritária que se impõe a todas as identidades fraccionarias: umalíngua única, uma bandeira e até há pouco tempo uma moeda própria, etc. Emcontraste com este panorama, a vizinha Espanha apresenta um cenáriocompletamente diferente. Espanha é de toda a evidência um Estadomulticultural, heterogéneo do ponto de vista regional, composto por váriasregiões-naçoes: catalã, galega, basca, etc. Cada uma destas entidades regionaiscorresponde a entidades identitárias distintas, dispondo de uma língua exclusiva,diferente da língua supra nacional (o castelhano), de urna bandeira própria ede unrforte grau-de~autonomia--^designadamente política - em relação aopoder central. JParaalém destas características, estão sobretudo, algumas delas,animadas de um certo espírito de separação em relação ao poder centralespanhol, a fim de se constituírem em Estados-nações independentes. Estagrande heterogeneidade nacional, induz no caso espanhol uma certainstabilidade do Estado central, o qual se esforça em manter permanentemente

si;.''. o equilíbrio da sua unidade artificial. A dimensão geográfica do país não parecej! ;i : constituir uma explicação para a referida heterogeneidade. Pequenos países«S:i:. como a Bélgica, designadamente, apresentam, numa outra escala territorial, o

I|j4-v - mesmo género de equilíbrio, enquanto países de maiores dimensões como,jSí ÍH por exemplo, a França, apresentam, comparativamente, uma maior integração

: das'SuasTegiões'(porestasnão"chegaremarepresentar-se significativamente. como regiões-naçoes) em relação ao poder central, com excepção relativa da

Córsega. A longa duração, também não parece ser-uma explicação para aexistência destes Estados imperfeitos. De facto, tanto aFrança como Espanha

_ - s^õ^alsTslLntigòsTên^ unidade actual é muito recente, os_jnovimentos centrífugos em relação ̂ ojoder central não_parecem ter, pelo

|5]'"' ' menos até agora, grande expressão.

W!

: ' Os conteúdos apresentados ao longo deste livro^estão"longe de terem esgotado, \ campo da antropologia social e cultural. Como o leitor facilmente se

: jjjj ; aperceberá, a matéria antropológica é praticamente inesgotável, os pontos de" j • vista, as perspectivas teóricas, os segmentos de investigação são muito variados,

i Por esta razão, não era materialmente possível tratar, no âmbito desta iniciação,: toda a matéria, em toda a sua profundidade e em todas as suas dimensões,i . - Alguns eixos de investigação e outros tantos temas ficaram, naturalmente, por

Tj"l tratar, designadamente a economia, areligião, o simbólico.'•\:\

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Bffgfo^E-^lffaW^ A^tM««tfB*tfJMUUUIMliH^

Fica, assim, o leitor sujeito a aprofundar e a explicitar os diferentes aspectostratados nesta apresentação recorrendo necessariamente à bibliografiaespecializada indicadano fim de cada capítulo. Naturalmente, uma bibliografianunca é indiferente, nem corresponde a um mero ritual em qualquer obracientífica. Num manual em especial, representa sem dúvida, a matériapropriamente dita relacionada com as orientações teóricas nele dadas, à qual o .leitor deverá obrigatoriamente se reportar para aprofundar as questões.

Para saber mais:

BALAKDIER, George,

1967 Anihropologie Politiqite, Paris. PUF.

COPANS, Jean

1971 "A antropologia política", in Antropologia Ciência das Socieda-de s Primitivas?, Lisboa: edições 70.

FORTES, Meyer, EYANS-PRITCHARD, Edward Evan,

1940 African Polilical Systems, Oxford: Clarendon Press.

LEACH, Edmund,

1954 Political Systems of Highland Bunna. A Study ofKachin Social ÍStructiire, Lonctres: Bell and Sons.

POULÁNTZAS, Nicola,

1968 Pouvoir Politiqiie et Classes Sociales, Paris: Maspero.

RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald, FORDE, Daryl. (Eds),

1982 Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento, Lisboa:Fundação Calouste Gulbenldan.

SAHLINS, Marshall,

1958 Social Stratification inPolynesia, Seatle: University ofV/ashing-ton Press.

TERRAY, Emmanuel.,

1969 Lê marxisme devant lês sociétés «primitives». Paris: Maspero.

179