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TYZYTABA’U: OBJETOS E LÍNGUA WAPICHANA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL ANANDA MACHADO Tyzytaba’u na língua wapichana significa trançador. E como essa arte ainda se faz presente na vida Wapichana, dedicamos este texto a identificar as relações entre a diversidade do artesanato e a língua desse povo indígena. Não há palavra na língua wapichana que signifique de forma genérica artesão ou arte, portanto escolhemos os trançadores e suas ações para representarem este campo do conhecimento. A formação dessa palavra na língua wapichana dá-se a partir do verbo tyzytan ‘trançar’, que perde suas terminações verbais e recebe o sufixo nominalizador ba’u. Atualmente, o território tradicional Wapichana é reconhecido geograficamente aproximadamente de Leste a Oeste 1º a 4 ºN Lat. E 58º a 62ºW. Long. Do vale do Rio Uraricoera ao do Rupununi na República Cooperativa da Guiana. Numa região chamada Serra da Lua, que hoje está dentro dos municípios do Cantá e do Bonfim, no Estado de Roraima, onde vivem cerca de 7.000 indígenas 1 , sendo a maior parte deles Wapichana. Esse texto toma como base parte das leituras da etnografia dos objetos indígenas em Roraima realizada por Dom Eggeratt nos anos 1924 e da entrevista, que faz parte da metodologia com história oral trabalhada na tese que estamos redigindo no Programa de Pós Graduação em História Social (PPGHIS/UFRJ). Alfredo de Souza, um de nossos entrevistados, tem 98 anos e vive na comunidade indígena Malacacheta, município do Cantá, RR. Alfredo em muitos momentos disse que não sabia do assunto que perguntávamos, mas sua neta nos contou muita coisa que ele conhece e histórias da vida dele que ela tinha ouvido do avô no passado. Como a situação da entrevista, mesmo sendo na língua wapichana, que ele domina, não é um momento de fala espontânea, pois direcionamos o assunto, talvez na convivência, com mais tempo, possamos aprofundar a temática e ouvir suas histórias a seu modo. Doutoranda PPGHIS UFRJ, Dinter UFRR, professora do curso Gestão Territorial Indígena, Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena- UFRR. 1 As informações demográficas que utilizamos na tese são de fontes variadas e esta é uma questão complicada porque muitas vezes os números de uma instituição são muito diferentes dos da outra.

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TYZYTABA’U: OBJETOS E LÍNGUA WAPICHANA COMO PATRIMÔNIO

IMATERIAL

ANANDA MACHADO

Tyzytaba’u na língua wapichana significa trançador. E como essa arte ainda se faz

presente na vida Wapichana, dedicamos este texto a identificar as relações entre a diversidade

do artesanato e a língua desse povo indígena. Não há palavra na língua wapichana que

signifique de forma genérica artesão ou arte, portanto escolhemos os trançadores e suas ações

para representarem este campo do conhecimento. A formação dessa palavra na língua

wapichana dá-se a partir do verbo tyzytan ‘trançar’, que perde suas terminações verbais e

recebe o sufixo nominalizador ba’u.

Atualmente, o território tradicional Wapichana é reconhecido geograficamente

aproximadamente de Leste a Oeste 1º a 4 ºN Lat. E 58º a 62ºW. Long. Do vale do Rio

Uraricoera ao do Rupununi na República Cooperativa da Guiana. Numa região chamada Serra

da Lua, que hoje está dentro dos municípios do Cantá e do Bonfim, no Estado de Roraima,

onde vivem cerca de 7.000 indígenas1, sendo a maior parte deles Wapichana.

Esse texto toma como base parte das leituras da etnografia dos objetos indígenas em

Roraima realizada por Dom Eggeratt nos anos 1924 e da entrevista, que faz parte da

metodologia com história oral trabalhada na tese que estamos redigindo no Programa de Pós

Graduação em História Social (PPGHIS/UFRJ). Alfredo de Souza, um de nossos

entrevistados, tem 98 anos e vive na comunidade indígena Malacacheta, município do Cantá,

RR.

Alfredo em muitos momentos disse que não sabia do assunto que perguntávamos, mas

sua neta nos contou muita coisa que ele conhece e histórias da vida dele que ela tinha ouvido

do avô no passado. Como a situação da entrevista, mesmo sendo na língua wapichana, que ele

domina, não é um momento de fala espontânea, pois direcionamos o assunto, talvez na

convivência, com mais tempo, possamos aprofundar a temática e ouvir suas histórias a seu

modo.

Doutoranda PPGHIS UFRJ, Dinter UFRR, professora do curso Gestão Territorial Indígena, Instituto Insikiran

de Formação Superior Indígena- UFRR. 1 As informações demográficas que utilizamos na tese são de fontes variadas e esta é uma questão complicada

porque muitas vezes os números de uma instituição são muito diferentes dos da outra.

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Esse “enquadramento da memória” tem relação direta com o contexto no qual

aconteceu a entrevista e a versão que Alfredo preferiu construir. “Eu não sei, mas eu já ouvi

falar em trocas com os brancos, que chegaram e trouxeram anzóis, arma, sal e todas as coisas

e em troca deram um pouco de comida pra eles” (entrevista com Alfredo em julho de 2014).

Durante a entrevista, mostramos a Alfredo algumas fotos dos objetos Wapichana que

fotografamos no setor etnográfico do Museu Nacional (RJ) em 2013. Ele não reconheceu

nenhum deles, mas contou que na Guiana uma vez cavaram e encontraram muitos objetos,

inclusive de miçanga, mas levaram tudo e ele não sabe para aonde.

Buscamos informações sobre essa técnica de entrevista centrada em materiais visuais

(fotografias), e vimos que no campo da metodologia se chama entrevista projetiva. Aplicamos

então, junto com a história oral para aprofundar informações sobre os objetos e chegar à

memória que Alfredo pudesse ter da relação com eles.

A questão de Alfredo ter visto levarem os objetos nos fez lembrar do que discute

Apadurai, quando trata que o “desvio de mercadorias de sua rota costumeira sempre carrega

uma aura arriscada e moralmente ambígua” (2008, p.44). Dessa maneira, na vida dos objetos

acontecem transferências, conversões, com espírito seja de empreendimento, ou de corrupção

moral (APADURAI, 2008). Em alguns casos pode haver aumento do valor do objeto pelo seu

desvio. E essas rotas, segundo o autor, podem ter sido históricas e dialéticas.

Alfredo nos contou como aprendeu a fazer artesanato:

O meu pai era artesão, eu vi como era trançar ai eu tentei fazer, ai eu comecei a

trançar também. Depois eu aprendi mais com os seringueiros, eles que sabem fazer

artesanatos, ai me ensinaram mais ainda assim peneira para fazer farinha, peneira

para fazer beiju, abanador de fogo, tipiti e tem diferentes formas de fazer também,

tem um trançado chamado reto e tem outro unurukanay, esses que eu sei, mas tem

outros tipos.

Ele disse saber fazer três tipos de traçado, sendo que utu, cascudo, que imita as formas

desse peixe, segundo ele, é o mais difícil. Em sua fala percebemos que conviveu também com

os seringueiros. Perguntamos se ele trocava ou vendia seu artesanato, para quem entregava e

ele respondeu que quando esteve no garimpo vendia e até hoje nas comunidades há quem

compre cestos, peneiras, tipiti, abanos e jamaxim. A entrevista naquele momento nos trouxe a

o tema dos seringais, o que enquanto assunto poderia gerar outra entrevista. O comércio no

garimpo também daria para explorar, enfim, surgiram muitas possibilidades de

desdobramento e de novas pesquisas.

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“Tinha muitos garimpeiros também lá que eles queriam muito jamaxim, os wapichana

também compram as cordas do jamaxim2, feitas de fibras de buriti, faziam tudo ai eles iam

comprar” (Alfredo, 2014). O aspecto comercial foi forte na relação com os garimpeiros e

Alfredo ressaltou também como hoje sobressai a relação de comércio nas comunidades. “Na

minha comunidade a gente compra tudo, caxiri a gente compra, a gente faz caxiri, mas mesmo

assim a gente compra” (Alafredo, 2014).

Como é difícil reconstituir os caminhos que os objetos por nós fotografados

percorreram até chegar ao Museu Nacional, podemos apenas supor e buscar informações

sobre as pessoas que os depositaram ali. As peças Wapichana que chegaram via Dom

Alcuino, por exemplo, averiguamos e constatamos que foram impedidas de sair do pais em

grande quantidade. Assim, parte da remessa que ele enviaria à Suiça, ficou confiscada no

Museu Nacional (RJ).

Começamos então a refletir acerca do estatuto do objeto além da função inicial dada

pelo seu dono e para qual foi criado ou associado ao destino do dono. Els Lagrou afirmou que

“assim como pessoas, objetos têm seu tempo certo de vida” (2007, p. 102) Além disso, a vida

de um objeto varia segundo as sociedades e o objeto em questão. Alguns não sobrevivem ao

ritual e outros são usados até o seu dono falecer, quando podem ser enterrados com ele ou

destruídos.

Alguns dos objetos aqui descritos foram classificados no Museu Nacional (RJ) como

dos “índios da Guiana Inglesa”, outros da “Guiana Brasileira” e ainda outros como dos

“Índios do Rio Branco”. Por isso fizemos o exercício de acompanhar a vida desses objetos lá

e cá. Com o detalhe de que as informações da Guiana foram obtidas no Brasil, com os

Wapichana de lá que vivem aqui atualmente e por livros como o de Roth (1924), por

exemplo.

Após a revolta do Rupununi os Wapichana na Guiana foram “abandonados” e

passaram a não ter acesso aos bens industrializados. Stephen Baines confirmou isso em seus

estudos de campo e nos afirmou em conversa informal que os objetos industrializados como

panelas de alumínio na atualidade vão do Brasil para Guiana.

2 Jamaxim é um cesto trançado de carregar nas costas.

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Coudreau (1887) de acordo com as observações que fez na época relatou que em

muitas comunidades afastadas não havia objetos de ferro, apenas algumas facas de péssima

qualidade. Quando queriam objetos como fuzil, chumbo, pólvora, munição, machados, sabres,

facas, baús, trabalhavam até consegui-los e assim que isso se dava voltavam para suas casas.

O fazendeiro Melville na Guiana trocava objetos manufaturados por redes e cestaria

indígena, depois casou com uma Atoraiu e tornou-se influente entre os indígenas. E a força de

trabalho em sua fazenda era fornecida pelos Wapichana e Atoraiu. Esse fazendeiro falava

fluentemente a língua indígena e começou a trabalhar com os indígenas na extração de balata.

Sabemos que o conhecimento e as técnicas, assim como os instrumentos e os objetos

que as comunidades reconhecem como fazendo parte integrante de seu patrimônio cultural

são considerados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como

patrimônio imaterial.

Esse patrimônio cultural imaterial- que se transmite de geração em geração- é

constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu entorno, de

sua interação com a natureza e sua história, e lhes fornecem um sentimento de

identidade e de continuidade, contribuindo assim a promover o respeito pela

diversidade cultural e a criatividade humana (GALLOIS, 2006, p. 10).

Um dos objetos Wapichana muito valorizados é a rede, zamak (ficha 8198 na

numeração do Museu Nacional), e pelo qual as mulheres Wapichana são conhecidas como

exímias tecelãs há tempos, por serem boas fornecedoras de rede. Segundo Thurn, os Waiwai

tinham fama de adestradores de cachorros e faziam canoas e os trocavam com os Wapichana

por redes de algodão (1883, p. 273). Para obter a cor marrom, as mulheres usam o algodão

que chamam de sybyrid ‘algodão guariba’ (marrom).

No dicionário Wapichana (2013) tayribei é peça usada para preparar o algodão para

ser fiado. Há bem poucas tecelãs nas comunidades que visitamos. Vimos uma vez fiarem

algodão para fazer cobertas, redes e bolsas, porém essa prática não faz parte do dia-a-dia das

comunidades. Há escolas indígenas que estão fazendo projetos para que as meninas

Wapichana e Macuxi reaprendam a fiar e a tecer. E há mulheres Wapichana que ainda fazem

e usam didime, ‘tipoia’ por exemplo.

“[...] Com seu fuso torce o fio de algodão ou de fibras vegetaes diversas

(sobresahindo a do Curauá que pode rivalisar com o nosso linho perfeitamente) e

com elle produz no tear fachas para carregar creanças, rêdes de dormir e o mais que

lhes seja preciso. Exactamentee por ser rudimentar o processo usado, é a fabricação

de fios e tecidos muito morosa; o producto, porem, nem por isso pode ser chamado

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de grosseiro, pois é bem feito, muito regular e apresenta até complicados desenhos

(EGGERATT, 1921, p.44).

Na comunidade Malacacheta fazem ainda redes de algodão fiado pelas artesãs

Wapichana. Para isso usam armação em forma de x que precisa ficar encostada num canto

sem mexerem até a conclusão do trabalho. E para fazer a saia da rede usam fibra de olho de

buriti (conversas informais em campo no ano de 2014).

Curt Nimuendaju em seu manuscrito Etnografia selvagem (s/d, p.1) afirmou que a

“tatuagem: não forma critério muito seguro: na região do Rio Uraricuéra, por ex, a tatuagem

feminina nos cantos da boca em forma de dois anzóes encontra-se nos Makusí (Karib),

Wapicána (Aruak) e Sirianá (tribo primitiva de língua isolada)” (CELIN/UFRJ). Portanto,

como acontece ainda hoje, há padrões gráficos com usos compartilhados pelos povos

indígenas em Roraima.

Em 1939 Dom Alcuino Meyer fez referência em sua carta a objetos etnográficos muito

bonitos. “Deixei-os em certos pontos para dahi serem remetidos a Bôa Vista, quando houver

portador e oportunidade” (carta de 14 de dezembro, arquivo do Mosteiro de São Bento). Em

outra carta mencionou ter coletado amostras minerais e “instrumentos de pedra polida dos

antigos índios” (1939, p.82). “Trouxe uma quantidade de artefatos indígenas: arcos, flechas,

zarabatanas, curare (e cuamaluá), cuidarús, tangas, cestos de toda qualidade”.

Um dos objetos etnográficos enviados por Dom Alcuino, que fotografamos no Museu

Nacional foi uma sandália. Quase todos os entrevistados já viram essa espécie de chinelo.

Hoje a sandália de palha ficou somente na memória, pois foi totalmente substituída. No

entanto, vimos fazerem dessa sandália para uma apresentação de parichara, dança tradicional

desses povos. O tipiti, mesmo com as máquinas e engenhocas inventadas, continua sendo

fundamental nos processamentos dos produtos da maniva.

Como contenha o producto deste processo_uma massa molhada_ ainda todo o

veneno, collocam-n’a depois no “tipity”, espécie de mangeuira, trançada pelos

hoemens de junco Ararua, fechada embaixo e aberta em cima para receber a massa.

Dependurado o tipity em uma das extremidades, dependuram-se na outra

paraespeichal-o o mais possível, do que resulta forte compressão sobre a massa, cujo

líquido, o veneno, começa a gottejar pelos interstícios do tecido até ficar enxuta

(EGGERATT, 1921, p.35).

O nizu, ‘tipiti’ é usado até hoje para escoar todo o líquido necessário da massa, mesmo

pelas famílias com barracões que tenham prensa. Durante dois períodos: de 1973 a 1976 e de

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1983 a 1984, Orlando Sampaio Silva visitou grupos Wapichana e falou de um “dualismo

tecnológico”. O antropólogo afirmou que ao lado do tipiti, da peneira e do ralo indígena, eram

empregadas a prensa de madeira e o “catitu”, máquina de ralar mandioca movida a motor ou

manual.

Como Dom Eggeratt fez etnografia dos objetos artesanais indígenas sem discriminar o

que era Macuxi ou Wapichana, por ele ter chamado os Wapichana de autóctones, e por

vermos em campo referência e uso de alguns objetos descritos pelo religioso entre os

Wapichana na atualidade, incluímos aqui algumas de suas descrições.

Como no início da pesquisa tivemos dificuldades em encontrar objetos Wapichana nos

Museus Etnográficos no Rio de Janeiro e em São Paulo, aproveitaremos os detalhes descritos

pelo religioso para identificar objetos que ainda não tinham origem definida classificada pelo

Museu e podem ser, após realizarem futuros estudos, considerados do artesanato Wapichana.

Na época Dom Eggeratt já tinha feito referência às habilidades indígenas no manuseio

de armas trazidas pelos invasores. Apesar das facilidades do uso da mukau ‘espingarda’, os

indígenas reconheceram para o religioso as vantagens de usar sua arma tradicional.

O uso da espingarda, pouco conhecido, mas então exercido com impressionante

habilidade, não conseguirá facilmente desthronar a sarabatana, poisque, conforme

me disse um índio intelligente, offerece ella vantagens insuperáveis, si bem que a

sua esphera de ação seja muitíssimo limitada em relação ao alcance da espingarda.

Um tiro desta, por exemplo, abaterá um animal apenas, espantando os demais, ao

passo que a flechinha de sarabatana parte silenciosamente, o que permite abater um

bando de macacos, ou de pombas, cujubins, emfim de animaes em convívio social,

muitos exemplares sem assustar os outros (EGGERATT, 1924, p. 39-40).

Outro aspecto interessante no texto de Dom Eggeratt é o que menciona sobre a

educação das crianças. Antes da escola as crianças aprendiam cedo a fazer e usar os objetos

indígenas. “Usar estas armas aprende o índio já na infância: é muito dovertido vel-os, os

pequenos, a experimentarem sua habilidade com os arcos, flecha, sarbatanas em miniatura,

espécie de brinquedos que lhes fazem pacientemente os Paes e avós” (1924, p.40).

Na atualidade os Wapichana usam espingarda para caçar e arco e flecha apenas

quando há competição nos eventos, ou como enfeite na hora das apresentações culturais. Mas

mesmo a habilidade de caçar com espingarda vem sendo pouco repassada nas famílias,

principalmente nas comunidades mais próximas às cidades. É visível a dificuldade no

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manuseio e é raro ver fazer esses objetos como brinquedo para as crianças ou sendo usados

pelos adultos. E os que fazem, é para venda como artesanato ou uso em competições.

Em 1985, a liderança indígena Quintino contou em encontro de catequistas sobre

como viviam antigamente os Wapichana, disse: “naquela época não tinha escola, não

escreviam. A escola era as tranças. Os velhos ensinavam bem” (CIRD, 1985, p. 2). Na época

de Quintino então, já não aprendiam a trançar na escola, lá aprendiam a ler e a escrever sobre

outras coisas e na língua portuguesa.

Durante toda a entrevista, uma das bisnetas de Alfredo, com mais ou menos 5 anos

ficou ora ao lado dele, ora brincando ali por perto. Essa estratégia familiar certamente é o que

vem garantindo o repasse de conhecimentos, dentre eles o falar a língua wapichana. No

passado, antes de começarem a ir com quatro anos para escola, as crianças ficavam muito

tempo com os avôs.

Na entrevista realizada com Alfredo, ele criticou a forma das famílias se organizarem

na atualidade, deixando de lado esses saberes: “eu não sei por que os pais deles fizeram filhos

desse jeito, não os ensinaram a falar língua, só falam português, isso eles gostam muito de

falar. Tem apenas alguns que sabem”. Reclamou por poucos saberem falar wapichana na

comunidade Malacacheta (em média apenas 30% dos moradores).

Na comunidade Jacamim alguns professores reconheceram o objeto de pesca que

mostramos como tandam. No entanto, afirmaram que cada vez mais deixam o jiqui de lado

para usar a tarrafa. No dicionário Wapichana (2012, p. 86) está escrito tarrafa como sairu.

Pontuamos aqui a diversidade linguística porque consideramos necessário averiguar se falam

outra língua, no caso atoraiu, ou se é apenas uma variação da língua wapichana.

Arapucas e armadilhas para toda espécie de animal, elles sabem faze-las mui

engenhosamente e dellas tiram muito resultado cercados, jiquis, etc. proporcionam

pescadas fáceis que, não obstante, muitas vezes não lhes bastam. Tocam então os

peixes para dentro de um baixio morto do rio ou das lagoas, constroem rapidamente

um dique improvisado e por meio de cabaças e outros utensílios atiram a água para

traz até que os peixes fiquem descobertos (EGGERATT, 1924, p.40).

Em 1976, Orlando Sampaio Silva, considerou que os indígenas ainda faziam um

artesanato elementar com produção de cestos, paneiros, redes de algodão para dormir, arcos e

flechas, segundo ele cada vez menos usados, “substituídos pelas espingardas ‘civilizadas’,

mais eficazes na caça” (1980, p.78). E apenas em algumas comunidades o estudioso viu

trabalhos em cerâmica.

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Como já foi afirmado que os dois povos, Macuxi e Wapichana, compartilham o

mesmo território, influências circulam em vias de mão dupla. No entanto, constatamos que, ao

contrário do que afirma o religioso sobre a cerâmica Aruak, nas comunidades Wapichana na

atualidade vemos mais a prática do trançado do que da cerâmica.

São mestres em artefactos de cerâmica e olaria e não menos perfeitos nos officios de

cesteiros, empalhadores e semelhantes. Trabalho exclusivo dos homens, fazem estes

de certos juncos (arumá e outros) e de material das palmeiras bacaba e Burity as

cestas de carregar, chamadas “panacús”, jacás, aljavas, mantas, esteiras, tipitys,

peneiras e outros utensílios mais, dos quaes alguns ficam tão bem feitos que a água

nelles não penetra. [...] entremeiam no seu trabalho desenhos de lindo aspecto, tanto

feitos de linhas regulares, como representando figuras phantasticas de homens e

animaes. Para isso colocam parte do seu material dentro d’água, misturada com

folhas de certas árvores, para retirarem-n’o algum tempo depois, como que curtido e

de brilhante cor preta (EGGERATT, 1924, p. 42).

Nas formas de trançado que o religioso fala, na atualidade, apenas alguns artesãos

sabem fazer. Mauricio Camilo, morador da comunidade Malacacheta, disse em aula

ensinando língua e cultura wapichana na Universidade Federal de Roraima que antigamente a

sumbara, ‘esteira’, era a mesa dos Wapichana. Ficavam envolta da esteira juntos, durante

horas, conversando e se alimentando. Ele disse também que usam vários tipos de manary,

‘peneira’, uma para cada função e com determinado tipo de trançado.

No Museu Nacional, não tivemos tempo de ver os objetos de cerâmica e nem os

trançados, no entanto, vimos grande quantidade de objetos feitos com miçanga. Acreditamos

que os Wapichana usaram bastante este material, porém, na atualidade usam kaxuru

‘miçanga’ de todas as cores não mais para as tangas e sim para fazer pulseiras, colares,

chaveiros zoomórficos e bonecos de miçanga.

O uso das missangas é necessariamente o resultado do intercambio com o civilizado,

mas adaptou-se aos costumes originaes com felicidade rara, tal a maestria, com que

as empregam as índias, tal o gosto artístico que elas revelam [...] as cores preferidas

são o branco, o vermelho e o azul (EGGERATT, 1924, p.43).

Na atualidade todos os Wapichana andam vestidos com o mesmo tipo de roupa dos

regionais. No período observado pelo religioso “A vestimenta é tanto mais simples, quanto

mais afastado o índio vive dos nucleos civilisados até desapparecer por completo. A tanga é

feita pela própria mulher e varia nos seus tamanhos” (EGGERATT, 1924, p.43). A forma de

se vestir foi de fato substituída e as “vestes antes tradicionais” são adaptadas e usadas apenas

para apresentações culturais.

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Coudreau observou mais de uma vez em seus relados de campo que sob as roupas, os

Wapichana guardavam suas tangas e colares de contas. Chamavam a roupa de kashoro

‘miçangas’, ‘contas’ dos brancos. Portanto na época a roupa poderia significar enfeite. E o

geografo observou “nada guardando da civilização a não ser a calça e a camisa” (1888, p.74-

75).

Em relação às tangas de miçangas, ouvimos de alguns artesãos trançadores Wapichana

que possuem a habilidade de fazer no trançado em arumã aqueles padrões gráficos que

aparecem nas tangas. Outros povos indígenas usam miçanga há tempos e no texto abaixo

usam a relação com este material para explicar o conceito de patrimônio imaterial.

Ai está a miçanga que nós chamamos de samura. Está certo que é o branco quem

fabrica, mas a miçanga só é material lá na loja ainda. Quando ela chega na mão do

índio, ela já vai se transformando. Ela vai se transformar em patrimônio material?

Não, em patrimônio imaterial também. Automaticamente vai se transformando. Pelo

conhecimento dele, que é invisível. O nosso pensar, o nosso conhecer, todo gravado

na nossa cabeça. As mulheres vão enfiando miçanga em metros e metros de linha,

todo dia [...] Então, na medida em que mulher vai trabalhando, enfiando a miçanga,

ela já está transformando a miçanga em imaterial, ela está enfiando o conhecimento

dela dentro da miçanga (TIRIYÓ in GALLOIS, 2006 p. 22).

Um saadkariwiei ‘desenho’ na tanga de miçanga pareceu réplica de pele de cobra,

para um Wapichana da comunidade Raimundão I que nos falou e mostrou na foto em seu

celular, comparando com a foto da tanga que projetamos em slaide para sua comunidade.

Outros desenhos podem ser metáforas de caminhos entre mundos. Ou mesmo caminhos

traçados como mapas de percurso para não se perderem durante as caçadas, conforme

interpretou Geraldo Douglas, de 56 anos, sobre os desenhos na cuia que mostramos a foto.

Além da cultura Wapichana, Geraldo viveu entre os Wai Wai e Macuxi, é músico, compositor

em língua wapichana, professor de língua wapichana e inglesa. Ele considera que o

“artesanato guarda o que aprendeu para o futuro”. E completou ainda: “sem fazer arte

indígena não fico satisfeito” (Entrevista realizada no encontro dos professores de língua

indígena da região Serra da Lua, na comunidade Malacacheta, em 26 de outubro de 2014).

É interessante pensar nas novas formas que foram surgindo em como calcular o valor

dos objetos. Nem sempre a medida considerava a força de trabalho empregada na sua

produção. A escassez ou a fartura do objeto e dos materiais para produzir, o valor cultural e

simbólico do objeto que antes circulava em sistema de troca. Inclusive, certos objetos, mesmo

depois da entrada do dinheiro, impõem o sistema de troca. Antigamente tinham que viajar,

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muitas vezes em território inimigo, para levar produtos melhores do que aquele povo poderia

fazer. Assim os processos de comunicação entre povos espalharam idéias e novidades de

interesse geral.

O chimery ‘ralo’ por exemplo, têm origem de áreas geográficas distantes em mais de

1.000 quilômetros entre elas. Primeiro circulavam dos Wai Wai para os Wapichana, depois

Macuxi, depois Arekuna. Em segundo periodo passou a circular dos Ye’kuana, para os

Arekuna, depois para os Macuxi e por último para os Wapichana. Os Taurepang e Akawaio

também trocavam ralos.

O ralo funcionou antes da entrada do dinheiro como objeto para identificar o valor da

troca. Por exemplo, uma rede valia 2 ralos. Quando o contato com o “branco” foi se

intensificando, os Wapichana trabalhavam, recebiam e acabavam trocando por facas, por

exemplo, com os Waiwai. Assim o objeto passava do povo que tinha mais contato para o que

ainda não conhecia o colonizador, e sofria uma refuncionalização, muitas vezes porque

faltava a quem recebia o conhecimento da função dada pelo produtor originário.

De acordo com a especialidade de cada povo produziam objetos bem definidos e

trocavam por produtos que lhes eram indispensáveis. Entravam nas trocas, sobretudo

alimentos, e Alfredo na entrevista fez menção a isso também, e quem recebia aproveitava o

que não produzia. Dessa forma a economia entre povos funcionava e os objetos e suas

significações circulavam entre culturas diferentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos que esses conhecimentos vêm sendo repassados há anos pelas narrativas

orais, gestuais e, na maior parte das vezes, na língua wapichana. Em muitas comunidades

quase monolíngues na língua portuguesa, os conhecimentos e práticas mudaram, receberam

novos significados e alguns continuam a ser vividos.

Percebemos que há orgulho, principalmente dos mais velhos, por conhecer suas

tradições e também vivenciam ao mesmo tempo o medo de perdê-las. A cultura material e

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imaterial Wapichana atual é diversificada na forma de cestos, cuias, há produção variada de

trançados, cerâmica e tecelagem.

Percebemos que os objetos fruto do artesanato Wapichana e patrimônio imaterial

desse povo em muitas ocasiões, na atualidade, são emblemas de sua identidade étnica,

inclusive expõem os objetos artesanais para enfeitar as escolas indígenas e as festas, reuniões

e demais eventos que realizam. Percebemos também que muitos dos Wapichana que ainda

guardam o saber fazer artesanato são falantes da língua wapichana. Supomos então que o falar

wapichana e o saber fazer esses objetos têm estreita relação. De modo parecido como

acontece com os Uitoto, povo indígena que tem a hora de contar histórias sendo a mesma do

fazer artesanato (PEREIRA, 2012).

Muitos desses objetos etnográficos estão relacionados a rituais que acontecem desde o

tempo dos antigos. Alguns caíram em desuso também pela influência das religiões e de outras

instituições, mas os mais velhos continuam transmitindo esses conhecimentos, até, na medida

do possível, os proibidos por instituições como as igrejas que invadiram seus territórios, como

os rituais que envolvem encantações, por exemplo.

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