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Tutela e Resistência Indígena: Etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o Estado brasileiro. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Orientador: Professor Doutor João Pacheco de Oliveira Filho Andrey Cordeiro Ferreira Fevereiro de 2007 PPGAS/MN-UFRJ

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Tutela e Resistência Indígena: Etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o Estado

brasileiro.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

Orientador:

Professor Doutor João Pacheco de Oliveira Filho

Andrey Cordeiro Ferreira

Fevereiro de 2007 PPGAS/MN-UFRJ

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II

Tutela e Resistência Indígena: Etnografia e história das relações de poder entre os Terena e o Estado Brasileiro.

Andrey Cordeiro Ferreira

Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de doutor. Aprovada por: Prof: _________________________ (Orientador) João Pacheco de Oliveira Filho

Prof: _________________________ Joanildo Albuquerque Burity Prof: _________________________ Sidnei Clemente Peres Profª: _________________________ Eliane Cantarino O´Dwyer Prof: _________________________ Moacir Gracindo Soares Palmeira Suplentes: Profª: _________________________ Adriana de Resende Barreto Vianna Prof: _________________________ Stephen Baynes Profª: _________________________ Maria Fátima Roberto Machado

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III

Dedico este trabalho:

Aos meus pais, Ilda e Jorge, por todo seu esforço, carinho, conselhos e ensino.

À minha irmã Alba, que junto comigo superou tantas dificuldades e com quem pude aprender bastante. A Lucas Filipe, meu pequeno e amado sobrinho.

Aos meus amigos e companheiros de jornada, os quais dão sentido a caminhada da vida.

Aos Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul pela resistência de ontem e hoje.

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IV

Agradecimentos

Os agradecimentos aqui realizados remontam a minha trajetória pessoal e intelectual dentro do universo acadêmico. Esses agradecimentos são uma forma de resgatar uma dívida com diversas pessoas que me assistiram de diferentes maneiras ao longo de onze anos de vivencia nas ciências sociais nos cursos de graduação e pós-graduação, das quais sete dedicados especialmente à antropologia social, no Museu Nacional.

Não poderia aqui deixar de mencionar os amigos e companheiros que sempre me orientaram informalmente nas discussões políticas e teóricas: Augusto da Cruz Rosa, Gil Felix, Maycon Almeida, Selmo Nascimento e Carlos Ricardo Pereira de Sant´anna. De uma maneira ou de outra, o trabalho aqui apresentado se tornou possível enquanto projeto acadêmico e ganhou forma teórica e política, pelas discussões e trabalhos que realizamos em conjunto em diferentes momentos. A leitura da tese torna isso evidente – pelo menos para mim.

Tenho de mencionar também outros amigos e companheiros, como Aparecida Mercês, Rômulo Souza, Ana Luiza, que de diferentes formas auxiliaram em algum momento e de alguma maneira na realização das minhas atividades de pesquisa. A minha companheira Valena Ramos que deu uma contribuição fundamental para que eu pudesse superar certas dificuldades e levar a frente à conclusão da tese. Agradeço ao amigo Marcello Coutinho, com quem pude dialogar sobre temas diversos ao longo de muitos anos.

Dos amigos e colegas do PPGAS/Museu Nacional, devo agradecer a algumas pessoas em especial, especialmente em razão do diálogo durante a tese de Doutorado e processo de Pesquisa. Fábio Mura e Alexandra, que me auxiliaram a corrigir certos rumos da pesquisa e com quem pude aprender bastante sobre antropologia e etnografia. Agradeço também a Carlos Augusto da Rocha Freire e José Gabriel, que sempre se dispuseram a dar conselhos e pistas de pesquisa e me ajudaram de diversas formas. Aos demais amigos e amigas, Nora, Mércia, Sandra, Francisco e Guilherme. Alguns professores tiveram uma particular importância na elaboração desse trabalho. Ao professor João Pacheco de Oliveira, sempre um interlocutor critico e ao mesmo tempo motivador, que deu todo o apoio e liberdade necessária para que o trabalho tomasse os rumos que tomou. Além de ser, é claro, uma referencia teórica importante para a discussão da antropologia política e da tutela. Agradecemos também aos professores Antonio Carlos de Souza Lima, que também nos deu importantes orientações ao longo dos cursos e na banca de mestrado, assim como a professora Eliane Cantarino. Ao professor Moacir Palmeira, que na comissão de tese, pelas suas observações rigorosas, auxiliou na determinação dos focos teóricos da pesquisa, e a professora Antonádia Borges, também integrante da comissão de tese, que contribuiu igualmente com sua leitura atenta e instigante.

Agradeço também a todos os servidores do PPGAS-MN, da biblioteca e secretaria, e instituições financiadoras (CNPq e FAPERJ) que tornam possíveis os empreendimentos de pesquisa e estudo no cotidiano. Um agradecimento também ao corpo docente do PPGAS, com aulas sempre enriquecedoras.

Na execução das atividades de pesquisa, contamos com diversos colaboradores. No Mato Grosso do Sul, agradecemos a ajuda do professor Antonio Brand, Na administração executiva regional da FUNAI, ao então administrador Wanderley e os funcionários que nos atenderam. Também Gilberto Azanha do CTI que disponibilizou dados dessa instituição. No município de Anastácio, um agradecimento é necessário ao cacique Flávio, que nos tratou de forma muito acolhedora e nos apoio tanto, e também a sua toda família e parentes, com quem residi alguns dias durante nossa pesquisa. Em Lalima, ao Chefe de Posto Evair e Nioaque a Reginaldo Cabrocha, que nos atenderam de forma muito receptiva. No Passarinho, ao então cacique Wilson Jacobina.

E nossos agradecimentos e considerações especiais vão para os nossos amigos da aldeia Cachoeirinha. Uma menção aqui vai para Argemiro Turíbio, Marlene Lipú, e seus filhos Argemiel, Diego, Jean, Vianey, Narliene, seus pais e mães, irmãos, enfim suas famílias. Deram todo o apoio ao nosso trabalho de pesquisa, abriram as portas de suas casas, mostrando uma profunda amizade, a

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V

qual tenho satisfação de ser devedor. Esse trabalho é dedicado também a eles. Outras pessoas importantes foram Sabino Albuquerque e Lourenço Muchacho, que tornaram também a pesquisa viável e sempre se dispuseram a nos ajudar naquilo que podiam. Firmo aqui também os meus sinceros agradecimentos. Assim como ao professor Anésio Pinto, Anilson Júlio (que nos auxiliou com a tradução de fitas e compreensão de certos termos no idioma), Amarildo Júlio, Quintino Pereira Mendes, os pastores Antonio Oliveira e Zacarias da Silva.

Na aldeia Argola, agradeço a João Candelário e a família de Rufino Candelário, aos senhores Alcindo Faustino, Inácio Faustino e Adelino José. Com certeza, o resultado da pesquisa não teria sido o mesmo sem a convivência e o apoio deles. Na Lagoinha, agradeço ao então cacique Ramão Vieira, no Campão/Babaçu a Zacarias Rodrigues e as Famílias Roberto, Salvador e Balbino. No Morrinho, ao agora ex-cacique Isidoro Pinto. Enfim um agradecimento a todas as pessoas com quem conversei, entrevistei e convivi na aldeia e que fizeram do trabalho de campo um desafio e ao mesmo tempo uma experiência de vida marcante.

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VI

FERREIRA, Andrey Cordeiro

Tutela e Resistência Indígena - Andrey Cordeiro Ferreira.

Rio de Janeiro: UFRJ/MN-PPGAS, 2007.

x, 413p. il.

Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, MN-PPGAS.

1. Terena. 2. Política e Poder. 3. Tutela. 4. Resistência 5.

Dominação. 6. Organizações Indígenas. 7. Mudança Social. Tese (Doutorado– UFRJ/MN-PPGAS). I. Título.

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VII

Índice

Introdução ...........................................................................................1

Capítulo 1 - Ordem e Anarquia na Sociologia: percepções da mudança social e luta política.............................................................................................. 16

1.1 – Resistência e Dominação: a análise das relações de poder. .........................................................................17 1.2 - Como Dominar? “colaboração de classe” e “formas cotidianas de colaboração”. ...............................19 1.3 - A Política na Antropologia e a Teleologia da Ordem. ......................................................................................24 1.4 – A crítica da crítica da antropologia: os conceitos de “sociedade e cultura” .........................................29 1.5 - A Guerra das Sociologias: reflexões sobre ordem e mudança social. ........................................................43 1.6 – A antropologia política processualista e as ferramentas de análise.........................................................48

Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. ..................................... 56 2.1 – A Emergência do “protagonismo étnico”. ............................................................................................................56 2.2 – Signos da Superioridade, Códigos do Domínio. ...................................................................................................62 2.3 - Política Indigenista e Regime Tutelar: construção e metamorfoses..........................................................67 2.4- Tutela e Frentes de Expansão Econômica. ............................................................................................................72 2.5 – Uma Morfologia da Sociedade Terena: o caso de Cachoeirinha. .................................................................75 2.7 - Terras Indígenas e Grupos Étnicos..........................................................................................................................83 2.8 - A “Retomada”: balanceamento de forças na atual situação histórica (1991-2006). .........................101

Capítulo 3 - Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional: a acumulação colonial de poderes e capitais. ................................................108

3.1 - A “Situação do Chaco”: o sistema social indígena (1543-1775).................................................................109 3.2 – Conhecer e Destruir: Guaicurus, Guanás e Colonialismos no Chaco/Pantanal. ...................................113 3.3- O Cerco e o Aniquilamento: situação de diretoria e situação de cativeiro. ...........................................119 3.4 – A Situação de Reserva: o regime tutelar e as micro-revoltas indígenas (1904-1939) ........................132 3.5 - “A Emancipação Indígena” – a luta pelo controle político de Bananal..................................................137 3.6 – Da nacionalização à crise do SPI (1940-1969)...................................................................................................144 3.7 - Mudanças no campo e arenas de relações interétnicas (1970-1990). ......................................................155

Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku: organização social e tradições de conhecimento aldeãs. .............................................................................................163

4.1 – Organização Social e Territorial de Cachoeirinha. ..........................................................................................164 4.2 – O Dia do Índio: nação e etnia, identidades em sobreposição.....................................................................175 4.3- O Complexo Ritual e as Tradições Culturais.......................................................................................................198 4.4 - As Tradições Culturais, Experiência Histórica e Relações de Poder. .......................................................230

Capítulo 5 - Centralização estatal/descentralização faccional: a organização política Terena. ............................................................................................236

5.1 – A “luta pelo poder”: dinâmica política de Cachoeirinha. ............................................................................237 5.2 – As Unidades Básicas da Organização Política Terena. ...................................................................................247 5.3 - Empreendimentos Indigenistas e descentralização político-territorial. .................................................258 5.4 – As facções e a política do óleo e da semente. .................................................................................................267 5.5 – A Cisão Cruzeiro X Mangao: os conflitos de sucessão como dramas sociais..........................................270 5.6 - A Facção do Cruzeiro: genealogia e história dos “tuuti.” ............................................................................285

Capítulo 6 – A Co-gestão indígena e as micropolíticas de colaboração e a resistência cotidiana. .........................................................................................304

6.1 - A formação das Associações Indígenas .................................................................................................................304 6.2 - As Facções e a “Ocupação dos Espaços”: política indígena e clientelismo...........................................317 6.3 - As formas de resistência: a Luta contra o Cacique Geral.............................................................................348 6.4 - As formas de resistência: Cisão na Argola ..........................................................................................................353 6.5 - As formas de resistência: a ocupação da Fazenda Santa Vitória. .............................................................358 6.6 – Co-Gestão Indígena e Poder Local: mudança e reprodução das relações de dominação. ................368

Capítulo 7 -Paradoxos do protagonismo étnico.............................................375 7.1 - Os sentidos da conquista colonial: formação do Estado-Nacional e Transição Capitalista. ............376 7.2 - Etnocentrismo e sub-proletarização: os fundamentos da sobre-exploração. .......................................385 7.3- Os múltiplos usos e faces da tutela: colonialismo interno e imperialismo. ............................................389

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VIII

7.4 - Os destinos do regime tutelar e da resistência indígena. ............................................................................396

Lista de Ilustrações

Mapas

Mapa 1 – Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul. ...............................................................................................................88 Mapa 2 - Disputa Territorial no Mato Grosso. .......................................................................................................................117 Mapa 3 - Núcleos de Colonização - Sec XIX. .........................................................................................................................124 Mapa 4 - Mapa da Aldeia Cachoeirinha - 2006. ...................................................................................................................166 Mapa 5– Vila Santa Cruz. .............................................................................................................................................................294 Mapa 6 –Vila Cruzeiro. ...................................................................................................................................................................294

Figuras

Figura 1- Representação da Estratificação do Sistema do Chaco/Pantanal. ..........................................................118 Figura 2- Campo e Arenas de Cachoeirinha. .........................................................................................................................158 Figura 3- Esquema Genealógico de João Niceto Júlio. ......................................................................................................286 Figura 4– Esquema Genealógico de Dionísio Antônio. ........................................................................................................287 Figura 5– Esquema Genealógico de Alírio de Oliveira Metelo. .......................................................................................288 Figura 6- Esquema Genealógico de Argemiro Turíbio ........................................................................................................289 Figura 7– Esquema Genealógico de Sabino Albuquerque. ................................................................................................298

Fotos

Foto 1- Dia do Índio - 2004- Concentração ............................................................................................................................176 Foto 2- Comunidade participa no Dia do Índio/2004. ........................................................................................................178 Foto 3- Siputrena -Dança das Mulheres.................................................................................................................................184 Foto 4- Grupo Xumono. .................................................................................................................................................................184 Foto 5- Dança do Bate-Pau. .........................................................................................................................................................185 Foto 6- Dança do Bate-Pau. .........................................................................................................................................................192 Foto 7- "100% Sukrekeono." .........................................................................................................................................................195 Foto 8- Jovem ergue a bandeira do Brasil. ............................................................................................................................197 Foto 9 - Daniel (esquerda) e Afonso Pinto, Curandor . .....................................................................................................204 Foto 10- Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. .....................................................................................................................212 Foto 11- Imagem sendo recebida por uma índia Terena. ............................................................................................222 Foto 12- Culto na Capela com o “Bate-Pau”. ......................................................................................................................224 Foto 13- Festa de Santa Cruz/2003. .........................................................................................................................................227 Foto 14 - Governador Zeca ladeado pelo Cacique Lourenço e "Guerreiros" do Bate-Pau. ...................................319 Foto 15 - Público do Comício de Zeca. ....................................................................................................................................320 Foto 16- Zeca discursa aos indígenas. .....................................................................................................................................321

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IX

Lista de Quadros

Quadro 1– Evolução Histórica da Demarcação de Terras Indígenas...............................................................................74 Quadro 2 - Terras Indígenas e Identificadas por Delegacia Regional da FUNAI .........................................................74 Quadro 3 - Estrutura Ocupacional de CACHOEIRINHA (Fontes CTI - 1997) ..................................................................79 Quadro 4- Filhos vivendo fora da reserva por localização (fonte: CTI, 1997) ............................................................81 Quadro 5 -Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul...............................................................................................................85 Quadro 6 - FUNAI - AER-Campo Grande ....................................................................................................................................85 Quadro 7- População Terena. Dados: FUNAI/AER - Campo Grande. ..............................................................................86 Quadro 8- Quadro - Economia Brasileira por Setor e Região – 2001. .............................................................................90 Quadro 9- Economia do Centro-Oeste. ......................................................................................................................................90 Quadro 10- Participação no Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional - 2001. ............................................91 Quadro 11 - Principais produtores cana-de-açúcar - Brasil..............................................................................................92 Quadro 12 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01.............................93 Quadro 13 - Ranking das Unidades Produtoras - Centro/Sul - Safra 01/02 .................................................................93 Quadro 14 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01 .......94 Quadro 15 - A Economia em Mato Grosso do Sul – 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas). .........94 Quadro 16 - Municípios e População Rural e Urbana-MS (IBGE – Censo 2000) ............................................................95 Quadro 17 - Estrutura Fundiária do Mato Grosso do Sul - IBGE, Censo Agropecuário 1995-1996. ......................97 Quadro 18- Quadro da produção e pessoal ocupado na agropecuária, segundo meso-regiões. ..........................97 Quadro 19- Terras Indígenas do Mato Grosso do Sul ............................................................................................................98 Quadro 20- Renda Média por Tamanho dos Estabelecimentos .........................................................................................99 Quadro 21 - Valor da Produção (em mil reais) e Pessoal Ocupado. Miranda/MS (IBGE, 1995-1996).................99 Quadro 22 - Porcentagem da Renda Apropriada por Extratos da População, 1991 e 2000: IPEA ......................100 Quadro 23- Ocupação de Terras por Índios em MS. Fonte: Movimento Nacional dos Produtores .....................103 Quadro 24 – Fatos Relacionados ao Conflito Fundiário ou Reivindicação de Direitos ............................................104 Quadro 25 - População da Província de Mato Grosso - 1862 ...........................................................................................131 Quadro 26 - População de Mato Grosso – 1872-1930. ........................................................................................................131 Quadro 27 - Processo de Formação das Reservas Indígenas Terena – Século XX .....................................................133 Quadro 28 -Postos Indígenas Terena no Sul de Mato Grosso – SPI – 1910-1930 ........................................................135 Quadro 29 -Postos Indígenas da IR-5 (sul de Mato Grosso e São Paulo) ......................................................................146 Quadro 30- PI´s Terena – 1954 – As Diferentes localizações sociais dos Terena. ....................................................148 Quadro 31 Mudanças Sociais e Situações Históricas. .........................................................................................................162 Quadro 32 - Membros do Conselho de Lourenço Muchacho. ...........................................................................................242 Quadro 33 – Substitutos dos Membros do Conselho de Lourenço Muchacho. ............................................................242 Quadro 34 - Organização Política Terena em Cachoeirinha – 1850-2005. ..................................................................268 Quadro 35 - Linha de Sucessão dos Caciques Terena de Cachoeirinha (as datas são aproximadas). .............269 Quadro 36 -- Produtividade do “Projeto A grícola de Cachoeirinha” – em HA cultivados...................................274 Quadro 37- TRE-MS-2004 (CD-ROM) ..........................................................................................................................................328 Quadro 38 – Mercado Temporário de Trabalho na Política Local. .................................................................................333 Quadro 39 - Mão de Obra Empregada nos setores Fiscalizados pela Comissão Permanente de Investigação e

Fiscalização das Condições de Trabalho/SCJT – Governo/MS (1996). ................................................................391

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X

“Por certo eu sairei, quanto a mim satisfeito Deste mundo em que ao sonho a ação não é associada

Possa eu usar da espada e morrer pela espada! Pedro negou Jesus e foi muito bem feito !”

Charles Baudelaire, “Revolta – A Negação de São Pedro”, in Flores do Mal

“Raça de Abel, só bebe e Come/Deus te sorri tão complacente Raça de Caim, sempre some/No lodo, miseravelmente

Raça de Abel, teu sacrifício/Doce é ao nariz do Serafim Raça de Caim teu suplício/Será que jamais terá fim? Raça de Abel, tuas sementes/E teu gado produzirão

Raça de Caim, sempre sentes/Uaivar-te a fome como um cão. (...) Raça de Abel, eis teu label/Do ferro o chuço é vencedor!

Raça de Caim, sobe ao céu/E arremessa à terra o Senhor”.

Charles Baudelaire, “Revolta – Abel e Caim”, in Flores do Mal

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Introdução

Os Objetos da Tese: regime tutelar, resistência indígena e mudança social.

Este estudo analisa as relações de dominação e resistência política estabelecidas entre os

índios Terena e o Estado-Nacional. Nosso enfoque principal é o estudo da mudança social nos

processos e relações de poder no presente etnográfico, ou seja, nos primeiros anos do século XXI,

na terra indígena Cachoeirinha, localizada no Mato Grosso do Sul.

O estudo etnográfico e das fontes históricas acerca da sociedade Terena nos levou a perceber

uma continua e forte política de resistência dos indígenas ao regime tutelar, talvez principal forma

de dominação operante em relação aos índios. As formas de luta política e resistência indígena

existentes remetem sempre (em termos simbólicos e práticos) a essa estrutura de dominação.

A problemática desta oposição entre “tutela e resistência indígena” apareceu tanto pela

análise de relações concretas quanto pelo discurso nativo. O discurso indígena aciona em algumas

circunstancias a idéia de resistência, de capacidade política dos índios, em contraponto a “tutela”

que se apresenta ainda enquanto regime político e jurídico dentro das aldeias.

A resistência indígena assumiu diferentes formas – cotidianas e abertas – e hoje o que parece

ser mais expressivo entre os Terena é o desenvolvimento da política de resistência cotidiana ao

regime tutelar – ou a seus principais efeitos de poder. Os índios Terena hoje disputam o controle de

recursos materiais e posições de poder, tentando afirmar a capacidade política indígena de controlar

sua própria vida. Disputam também narrativas históricas e fazem a critica dos estigmas sobre o

índio (representações românticas, imagem de preguiçoso e etc) e do conjunto de mecanismos

concretos e simbólicos institucionalizados pelo regime tutelar.

Para compreender o significado desses fenômenos políticos e culturais, e sua relação com a

resistência e a dominação, é preciso compreender o conteúdo sociológico do regime tutelar. A

construção do regime tutelar acompanhou o período de “acumulação primitiva” (que implicou no

caso brasileiro, no etnocídio e na expropriação das populações indígenas), lançando as bases do

Estado-Nacional e do capitalismo brasileiros. Por isso, a oposição entre tutela e resistência indígena

se apresenta como problema empírico, que deve ser pensado em sua articulação com o problema

teórico da mudança social (transição das sociedades sem estado para as sociedades estatais e das

formas pré-capitalistas para as capitalistas), bem como da construção das relações de dominação

política e exploração econômica.

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O regime tutelar é um dos principais produtos da política colonial e expressa um modelo de

exploração capitalista de uma força de trabalho particular, a dos povos colonizados. Nesse sentido,

a compreensão do regime tutelar exige a analise das engrenagens capitalistas e imperialistas de

exploração/dominação, e uma compreensão dos sentidos do processo histórico de colonização e

formação do capitalismo.

O regime tutelar foi problematizado e teorizado na antropologia brasileira por autores como

João Pacheco de Oliveira (1988), Antonio Carlos de Souza Lima (1995) e se concatena de maneira

muito adequada com o objeto teórico postulado pela orientação genética e dinâmica da antropologia

política, que abrange especialmente o problema da origem/formação do Estado e os processos de

mudança/reprodução dos sistemas políticos, estatais e não-estatais (ver Balandier, 1969, Gluckman,

1974).

Estas demandas teóricas exigiram uma reformulação de certas maneiras de conceber o

problema do estudo sociológico e antropológico das relações interétnicas e da mudança social. Por

isso a etnografia foi acompanhada pelo esforço de buscar quadros teóricos e políticos alternativos

de análise sociológica.

Justificativa: do contexto etnográfico a crítica teórica.

O problema da tutela e da resistência indígena se colocou para nós a partir do próprio

contexto etnográfico. Mas tivemos de passar por um revezamento contínuo entre a etnografia e

reflexão teórica para conseguir realmente entender a sua importância para a compreensão da

sociedade Terena.

Em 2001, quando iniciamos nossa pesquisa junto aos Terena no Mato Grosso do Sul, setores

da sociedade brasileira e a opinião pública internacional ainda estavam sob o impacto do que

acontecera em Porto Seguro em abril de 2000, ocasião em que o chamado “movimento indígena”

sofreu uma dura repressão policial e a imagem do índio Gildo Terena, de joelhos na estrada diante

da tropa policial de choque, correu o mundo durante meses como uma espécie de síntese imagética

das relações entre os índios e o Estado brasileiro1. A nossa intenção inicial, ainda sob uma

formulação genérica, era estudar o “movimento indígena”, suas formas de ação e articulação no

plano local.

Quando chegamos a Cachoeirinha nos defrontamos com uma série de dificuldades para

encaminhar a pesquisa na forma como tínhamos imaginado; pudemos logo perceber que os Terena

1 A exaltação do “índio e da teoria das três raças formadoras, todo o pesado investimento simbólico realizado pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, se combinou com o tratamento “policial” dispensado ao movimento indígena e aos índios, que foram impedidos de ira até o local das cerimônias oficiais, onde estariam os chefes de Estado brasileiro e português.

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não apresentavam nenhum tipo de articulação orgânica com algo que se pudesse denominar

“movimento indígena”; não existiam organizações e ações coletivas, assembléias (tais como

tínhamos tido a oportunidade de acompanhar em Porto Seguro, nos protestos dos 500 anos). Apesar

da UNI (União das Nações Indígenas) ter o índio Marcos Terena como um dos seus fundadores, em

Cachoeirinha sempre ouvi comentários irônicos sobre ela, “de que não peitou nem organizou nada”.

Ao contrário, quase todas as demandas passavam pela FUNAI, as organizações indígenas existentes

eram associações voltadas para a produção agropecuária, e a vida dentro da comunidade era

marcada por conflitos faccionais evidentes entre líderes indígenas que trabalhavam sempre em

colaboração com algum comerciante ou fazendeiro, reproduzindo sob muitos aspectos a forma

“clientelista” de dominação.

Todas as ações dos índios pareciam voltadas para garantir a maior eficácia possível da sua

facção na obtenção de recursos materiais e poder político. Isto entrava em franca contradição com

aquela nossa intenção de estudar um movimento social organizado, com uma identidade e ações

coletivas definidas, tendo um adversário igualmente definido: o Estado. Assim, a etnografia nos

obrigou a abandonar certas teses e hipóteses, apesar de mantermos outras e os principais

pressupostos teóricos. A etnografia serviu para demolir estas primeiras intenções e reconstruí- las

num outro patamar de reflexão empírica e teórica. Entretanto foi preciso um esforço de superar

certas representações acerca dos índios e o Estado Brasileiro. Perceber como por detrás do aparente

equilíbrio e estabilidade na relação entre os Terena e agências estatais, passavam-se sutis mas

constantes lutas políticas, tanto uma luta pelo poder quanto uma luta de discursos sobre a história e

o “caráter” dos índios.

O discurso histórico (administrativo, mas às vezes acadêmico) colocava os Terena sempre

como uma espécie de coadjuvantes do SPI, como colaboradores periféricos da política pedagógica

de civilização e assimilação dos índios; a sua utilização como “índios exemplos” em São Paulo

junto aos Kaigang e em Mato Grosso do Sul junto aos Guaranis, além do seu envolvimento na

política local e na política interna da FUNAI reforçavam esta imagem. Desta maneira, a imagem do

“índio modelo” do discurso indigenista, parecia prevalecer em diversos planos (políticos e

científicos). Mas na realidade isso não explica uma grande parte dos acontecimentos e ações dos

Terena, tanto hoje como no passado.

É interessante que um dos líderes Terena, o cacique Ramão Vieira com quem tivemos a

oportunidade de conviver em Cachoeirinha, formulou uma reflexão que vai na direção da crítica

dessa representação. Na nossa última ida a campo em março de 2006, estávamos numa conversa

informal dentro de um acampamento organizado pelos índios numa fazenda que faz limites com

Cachoeirinha (ver capítulo 6), e Ramão ao falar da batalha política e judicial que eles estavam

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travando, disse: “Os estudiosos fala que o Terena é manso, mas no dia da reintegração de posse

não tinha ninguém manso”.

Tal formulação permite que coloquemos uma série de indagações. Primeiramente ela

sinaliza a existência de representações que formam uma imagem dos Terena como “índios mansos”

e “passivos”. Ao mesmo tempo mostra a insatisfação de certos atores indígenas com tal

representação, uma contradição entre as representações engendradas pelo regime tutelar e os

processos políticos locais, nos quais os indígenas aparecem como atores com estratégias e táticas

diversificadas. Este tipo de contradição é que nos motivou a tomar como problemas/objetos a

tutela, a resistência indígena e a mudança social.

Por que a abordagem de tais problemas se justificaria? Os índios Terena foram, em certo

contexto, alvo privilegiado de diversas pesquisas e textos etnográficos (FERREIRA, 2002).

Podemos classificar a etnografia Terena em três conjuntos distintos, a partir de critérios teóricos e

temporais: os estudos de aculturação (basicamente anos 1940), nos quais situam-se os clássicos de

Herbert Baldus (1937), Kalervo Oberg (1949), Fernando Altenfelder Silva (1949), e os estudos de

assimilação e contato interétnico de Roberto Cardoso de Oliveira (1960 e 1968); os estudos

contemporâneos, com orientações teóricas distintas, como os de Edgar de Assis Carvalho (1979),

Edson Soares Diniz (1978). Estes trabalhos, cada um com suas particularidades teórico-

metodológicas privilegiaram a temática da aculturação, mudança cultural e assimilação – categorias

estritamente relacionadas entre si.

Destas monografias, as que dão maior atenção à questão do comportamento político e ação

indígena são as de Roberto Cardoso de Oliveira. O autor trata apenas um dos aspectos que aqui nos

interessam, aquele relativo à inserção dos Terena nas instâncias políticas locais. Sua descrição foi

restrita, seja pelo fato do papel desempenhado naquele momento pelos Terena se resumir (segundo

Cardoso de Oliveira) ao de “eleitor”, seja em razão do rígido controle exercido pelo órgão tutelar (o

SPI), que chegou em certos momentos a proibir os índios de exercerem mesmo este papel (Cardoso

de Oliveira, 1968, p. 117-120). Em monografias posteriores, como as de Edgar de Assis Carvalho

(1979) e Fernanda Carvalho (1996), os autores não tomam como temas principais à ação política

indígena. O trabalho de Edgar de Assis Carvalho tenta desenvolver uma leitura marxista da situação

do contato interétnico, com ênfase nas relações econômicas. O de Fernanda Carvalho toma como

objeto as práticas de cura e os sistemas de crenças relacionadas.

Existem diferentes questões que nos foram suscitadas pela leitura da etnografia Terena e

com as quais dialogamos criticamente ao longo desta tese. Em primeiro lugar, podemos dizer que

quase todos os estudos a exceção do de Fernanda Carvalho, estão de uma maneira ou outra,

preocupados com o problema da mudança; para Oberg e Altenfelder Silva, a mudança cultural;

para Cardoso de Oliveira, a mudança social e identitária, para Diniz (1978) e Carvalho (1979) o

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problema da mudança dos sistemas econômicos. O processo de mudança, entretanto sempre foi

concebido como uma “mudança” provocada pelas relações interétnicas, na qual os índios Terena

representavam um pólo determinado e não determinante. A ação e organização política indígena,

“os pontos de vista dos nativos” quanto à mudança social e cultural não foram aspectos explorados.

Tomemos um dos estudos de aculturação, o de Fernando Altenfelder Silva. Este autor

examina os diversos aspectos da vida dos Terena, apresentando sempre primeiramente uma

descrição do passado para depois analisar a situação atual: “Pretendemos examinar neste capítulo, a

vida econômica dos Terena, no passado, e a presente situação na aldeia de Bananal, procurando

evidenciar as mudanças ocorridas”. (Altenfelder Silva, op.cit, p.286). Depois passa a descrever a

organização social, seguindo o mesmo percurso (descrição do passado, descrição do presente),

apontando como mudanças mais flagrantes a substituição da família extensa pela elementar e o

desaparecimento do sistema das metades e classes. Por exemplo, quando Altenfelder Silva analisou

a organização política, assim como sua cultura e organização social, falou em termos de

“desaparecimento e desorganização”. Segundo tal perspectiva, o “sistema político tradicional” teria

sido substituído por formas exclusivamente nacional-estatais (centralizadas) de organização

(Altenfelder Silva, 1949, p. 373).

Nos anos 1960, aparecerão os estudos de Roberto Cardoso. Sua abordagem no livro

“Urbanização e Tribalismo” indica que:

‘Os Terena viram desagregar-se seu sistema político paralelamente à ocupação de suas terras e à perda de sua autonomia; a situação de reserva constitui o resultado de seu reagrupamento (...) A rigor, a dimensão política dos Terena atuais não apresenta aquele caráter de sistema capaz de classificá-la, por exemplo, como fizeram Meyer Fortes e Evans Pritchard em relação a uma representativa amostra das sociedades africanas (...) . Comentam os mencionados autores que ´Aqueles que acham que se deve definir um Estado pela presença de instituições governamentais considerarão o primeiro grupo Estados primitivos e o segundo sociedades sem Estado. (...) Pode-se aceitar, mesmo à base de informações fragmentárias obtidas bibliograficamente ou pela pesquisa de campo, que o tradicional sistema político Terena estaria mais próximo do primeiro tipo do que do segundo”. (Cardoso de Oliveira, op.cit, 103-104)

Esta visão de que a sociedade Terena “moderna” se apresentava em processo de

transformação, se aplica também à identidade étnica: “No momento em que esta urbanização se

soma à integração nas classes mais bem favorecidas, cujo nível de vida a elas inerente esteja bem

acima do nível desfrutado por seus patrícios citadinos é que – ao que tudo indica -- terá lugar a

destribalização e os indivíduos poderão ser finalmente assimilados” (Cardoso de Oliveira, 1968,

p.196). Sua compreensão, é que a mobilidade social (integração nas “classes favorecidas”) levará a

destribalização (liquidação da identidade étnica) e assimilação.

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No final dos anos 1970 irão aparecer os estudos sobre os Terena de São Paulo. Edgar Assis

Carvalho, partindo de uma concepção marxista, pretende formular uma análise das classes sociais.

Num artigo intitulado “Pauperização e Indianidade” (Antropologia e Indigenismo, 1981) ele afirma

que: “É fato notório que a realidade econômica do grupo indígena integrado encontra-se pautada

por conjunto de atividades agrícolas de subsistência, no interior da reserva, e pelo exercício

sazonal de relações assalariadas em fazendas”. (Carvalho, 1981, p. 7). E mais adiante: “...

progressivamente, a dimensão étnica vai sendo subordinada a dimensão de classe que passa a ser a

matriz fundamental para as práticas indígenas cada vez mais destituídas de homogeneidade

cultural e lingüística”. (Carvalho, op.cit, p.8). Estas abordagens derivam da leitura global do

contato interétnico: supondo que o contato entre os Terena e a Sociedade Nacional se processou a

partir do século XIX, supõe-se uma inserção tardia na estrutura de classes capitalista, quando na

realidade isso já acontecia desde o final da Guerra do Paraguai (como iremos demonstrar no

capítulo 3). A “proletarização” e o “acamponesamento” dos Terena é um dos pontos de partida, não

de chegada, das relações interétnicas.

Tomando um outro estudo, o de Edson Soares Diniz, que apesar de ter sido realizado nos

anos 1970 em São Paulo, oscila entre a ênfase nas “relações interétnicas” e a reafirmação das teses

dos estudos de aculturação:

“As mudanças sócio -culturais, devido ao contato interétnico, são evidentes. Ao lado de sua própria língua, falam e entendem o português. Sua indumentária e seu modo de vida assemelham-se aos regionais pobres, embora para estes, haja a tendência do nível de vida ser mais elevado. Os sistemas de parentesco continuam, mas já existem confusões estruturais por identificação com o sistema brasileiro. Usam nomes cristãos e são batizados nos rituais da Igreja católica, religião a que dizem pertencer”. (Diniz, 1978, p.99).

Diniz, desta maneira, se mantém ainda dentro dos referenciais estabelecidos dentro da

antropologia e ciências sociais dos anos 1950/60, reafirmando tanto as imagens quanto o léxico dos

estudos de aculturação e assimilação, como podemos confirmar pelas suas conclusões no livro. É na

última frase do livro, com grande viés generalizador, que fica mais marcada esta imersão nos

pressupostos teóricos da antropologia culturalista dos anos cinqüenta e sessenta:

“Na atualidade, a imagem que as culturas indígenas nos oferecem é aquela de um condenado algemado e amordaçado, sem condição de reação e que, consciente ou inconscientemente, a cada passo mais se aproxima do patíbulo”. (Diniz, op.cit, p.102).

Há um modo de abordagem da sociedade Terena, que analisa todas as suas dimensões em

função da mudança provocada pelo “contato interétnico”. Assim, no plano político se supunha que a

passagem das sociedades sem estado às sociedades estatais implicava na eliminação total da

organização política indígena, supõe-se também que do ponto de vista econômico o destino dos

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índios seria a absorção completa na estrutura de classes capitalista. Isto fica nítido nos trabalhos

mencionados.

Existe também um tipo de história nestes estudos que parte de uma estrutura dualista,

opondo um “período tradicional” (que seria anterior ao contato interétnico) ao “período moderno”

(caracterizado pelo estabelecimento das relações entre sociedade indígena e sociedade nacional). No

período tradicional existiria um tipo de organização da economia (baseada na agricultura e caça-

coleta), da cultura (baseada na cosmologia e formas mágico-religiosas) e da política (baseada na

transmissão hereditária da chefia); o período moderno seria marcado pela tendência ao

assalariamento, a integração numa “estrutura de classes”; na cultura, veríamos as transformações

significativas, com a “substituição do sistema de crenças” pelas religiões católica e protestante; do

ponto de vista político, a intervenção do Estado suplantaria por completo os chefes indígenas. A

história dos Terena aparece como determinada de fora, e se apresenta como uma “queda” de uma

idade de “ouro” para um presente de “aculturação/assimilação”, provocada pelo estabelecimento

das “relações interétnicas” (Bruner, 1986).

Cardoso de Oliveira afirma que: “A história dos Terena, ao menos em sua fase que podemos

chamar moderna, é a história da ocupação brasileira no sul de Mato Grosso”. (Cardoso de

Oliveira, 1968, p.40). E mais adiante: “E mais do que os kinikinau, os Layana e os Echoaladi, os

Terena teriam sofrido de modo bem violento a conjunção com a sociedade nacional, a partir do

momento em que foram envolvidos na luta contra os paraguaios. Até esse tempo, eles constituam

um grupo relativamente isolado, como indicam algumas das principais crônicas de Taunay sobre o

episódio da guerra com o Paraguai”. (Cardoso de Oliveira, op.cit, p.40). A caracterização da

história indígena, como indicada por Cardoso de Oliveira, está inter-relacionada com o processo de

colonização, mas em seu trabalho a reflexão sobre o século XIX ocupa pouco espaço.

Assis Carvalho dá destaque à análise histórica, ocupando dois capítulos de seu livro, num

total de seis. O autor afirma: “No primeiro capítulo reunimos dados históricos significativos à

compreensão do modo de vida Terena no Chaco, suas primeiras formas de contato com o

colonizador e as várias compulsões a que foram submetidos”. (Carvalho, 1979, p. 20). Esta ênfase

sobre o “modo de vida” e as “primeiras formas de contato” revelam uma certa fixação em marcar

ainda a distintividade cultural do passado indígena com relação a seu presente. Desta maneira,

apesar de uma maior atenção à história, ainda permanece uma pouca preocupação com a

historicidade das sociedades indígenas, seu envolvimento efetivo nos processos reais e suas

conseqüências na determinação dos destinos dos povos.

A focalização da problemática da resistência indígena e do regime tutelar permitirá a

reabilitação de uma dimensão que a etnografia Terena até o atual momento não tratou

satisfatoriamente; a das formas da ação indígena. E o reconhecimento de que os índios são

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efetivamente sujeitos da sua própria história, de que eles são pólos ativos dos processos de mudança

social.

A relação Estado/Índio é perpassada por uma rede de interações muito complexa, tanto do

ponto de vista dos interesses envolvidos quanto das práticas e referenciais culturais. Compreender

os pontos desta rede é fundamental para a compreensão das relações interétnicas. Por outro lado,

não podemos pensar os povos indígenas como meros objetos de ações de agências externas, mas

devemos os considerar como “sujeitos” de ações políticas que elaboram suas próprias estratégias no

sentido de garantir seus interesses.

Neste sentido, a partir do caso Terena, pretendemos ver como se dão os processos de

resistência étnica diante das diversas formas de dominação que diferentes setores da sociedade

brasileira e o Estado exercem sobre os povos indígenas. A análise da relação entre as formas de

poder exercidas sobre as populações indígenas caminha assim lado a lado com a reflexão acerca das

formas de resistência construídas pelos próprios grupos indígenas como estratégia de sobrevivência

e fortalecimento. Mas também consideramos as formas de dominação operantes dentro dos próprios

grupos indígenas. Uma história Terena é necessária e também uma compreensão da história dos

pontos de vistas indígenas.

O estudo do regime tutelar e da resistência indígena entre os Terena se justifica então por

este conjunto de questões. É uma estratégia para chegar à compreensão dos processos de mudança e

reprodução social, formulando outras análises para interpretação da economia, cultura e política do

grupo. Também é uma forma de buscar uma história indígena que supere a dualidade

tradicional/moderno e a visão de que o estabelecimento das relações entre sociedade indígena e

sociedade nacional foi o ponto de partida da “desagregação das sociedades indígenas” (o que leva,

como veremos, a reificação da idéia do Estado-Protetor que “salva” e substitui os índios, sua

capacidade política e ação histórica). Assim, o estudo aqui apresentado está voltado tanto para

temas da antropologia brasileira, quanto para temas de interesse político-teórico mais amplo, se é

que faz sentido uma tal distinção.

Método e Hipóteses de Pesquisa.

Iremos aqui tecer algumas considerações com relação ao método, técnicas de pesquisa e as

hipóteses que formulamos para o nosso trabalho. Nesse sentido tentaremos retratar o mais fielmente

possível os caminhos que nos levaram a produção dos dados utilizados e hipóteses aqui

apresentadas.

Entendemos que o processo de pesquisa é sempre mediado por algumas teorias ou teses

gerais que funcionam como pressupostos e orientam tanto o método quanto as técnicas de coleta de

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informações empregadas no trabalho de campo2. Sendo assim, antes de tudo cabe explicitar alguns

dos pressupostos teóricos a partir dos quais desenvolvemos nossa pesquisa.

1º) Partimos da suposição teórico-metodológica de que os grupos étnicos são formas de

organização social e que a realidade é construída através da ação e interação de atores sociais

(BARTH, 2000, Oliveira Filho, 1999). 2º) A etnografia realizada em pequenas “comunidades”

locais não está em contradição com o estudo dos processos de larga escala, podendo, ao invés,

possibilitar uma melhor compreensão de processos que operam em múltiplas escalas (ELIAS, 2000,

Revel, 1998, Marcus, 1995). 3º) Esta articulação de diferentes escalas de produção e reprodução

social, possibilitadas pela etnografia, impõe que “... uma compreensão das sociedades e culturas

indígenas não pode passar sem uma reflexão e recuperação críticas da sua dimensão histórica”.

(Oliveira Filho,1999,p.8). 4º) É indispensável pensar o conflito, a luta, a guerra, como uma

dimensão central da construção das relações sociais, de maneira a compreender a sua real

importância para a constituição da sociedade (Foucault, 1999; Gluckman, 1968).

Tivemos sempre a preocupação de manter no desenvolvimento da pesquisa e no trabalho de

produção textual da etnografia três movimentos: 1º) a articulação entre etnografia e história; 2º) a

articulação dos contextos locais com os processos de larga escala e longa duração; 3º) a articulação

entre mudança social e reprodução das relações de poder, tomando como foco os conflitos entre o

Estado e grupos sociais subalternizados, como os índios e aqui vários autores inspiraram nossa

análise (como Bakunin, Marx, Lenin, Foucault, Gluckman, Turner, Balandier).

Podemos dizer que o método utilizado nesta pesquisa foi essencialmente etnográfico.

Entretanto, em razão das múltiplas construções e des-construções da definição da etnografia, cabe

apresentarmos uma definição explicativa. Entendemos a etnografia como um processo composto

por três etapas: 1ª) experiência de interação; 2ª) a aplicação das técnicas de coleta de dados (como

as descrições de morfologia e situações sociais, aplicação de questionário e entrevistas fechadas e

abertas, as técnicas genealógicas e estatísticas etc); 3ª) a produção textual, que transcreve essa

experiência visando submetê- la a critérios de controle e verificação cientificas, garantindo sua

objetividade. O trabalho de campo se apresenta antes como uma sistematização acadêmica da

etnografia, mas outras formas de etnografia (de viajantes, administradores, militares) se apresentam

como gêneros específicos de etnografia, que têm de ser submetidos aos processos sociológicos de

análise e controle, assim como as etnografias acadêmicas.

A etnografia nas suas diferentes modalidades historicamente encontradas está associada

fundamentalmente, mas não necessariamente, ao trabalho de campo, mas também a outras formas

de experiência de interação. A etnografia, enquanto modo de conhecimento, está ancorada em dois

2 Malinowski explicita isso na sua introdução aos “Argonautas do Pacífico Sul”: “O pesquisador de campo baseia-se inteiramente na inspiração proporcionada pela teoria.” (Malinowski, 1979, p.45-46).

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pilares: 1º a descrição detalhada do universo social e natural; 2º o holismo, quer dizer, a análise

desta realidade especifica como uma totalidade na qual os significados derivam das relações

concretas (Malinowski, idem, Ortner, 1995, Berreman, 1975).

Esta consideração é fundamental, porque a perspectiva histórica adotada, exige que

adotemos as descrições etnográficas como base da construção da história indígena. Por isso o uso de

descrições de militares e viajantes, além de outras fontes, na construção desta perspectiva de uma

etnografia histórica. O uso das etnografias de outros sujeitos é uma forma de dissociar a experiência

etnográfica do empirismo e auto-referencia, pois não somente a própria “experiência pessoal no

presente etnográfico” passa a ser considerada, mas também a experiência de outros sujeitos em

outros momentos históricos. Neste sentido, a etnografia, enquanto modo de conhecimento, ganha

também uma forma e um conteúdo histórico, no sentido que se torna possível usar as etnografias

como fontes históricas.

O nosso método de pesquisa então centrado na etnografia, passou também por outras etapas,

a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental ou arquivística, e por fim a produção textual da

tese. Lembramos que na realidade não foi um processo linear, mas sim descontinuo, com idas e

vindas a campo, arquivos e a produção textual, e seguindo esse itinerário flexível é que chegamos

onde estamos hoje. Explicitaremos a seguir as condições de realização de nossa pesquisa.

No correr do nosso trabalho de campo nas áreas Terena de Mato Grosso do Sul, pudemos

visitar três Postos Indígenas (PIN’s) no município de Miranda – PIN Cachoeirinha, PIN Pilad

Rebuá, e PIN Lalima, o PIN Nioaque e duas terras indígenas, Aldeinha na cidade de Anastácio e a

Aldeia Urbana Marçal de Souza na capital Campo Grande. A maior parte de nossa pesquisa foi

realizada no município de Miranda, na terra indígena de Cachoeirinha. A cidade de Miranda fica à

oeste de Campo Grande e distante 194 km desta capital, situada na meso-região do Pantana l,

acessada pela estrada BR-262 (que liga Campo Grande à cidade de Corumbá, na fronteira com a

Bolívia). A cidade tem 23 mil habitantes, sendo a população urbana de 12, 5 mil e a rural de 10, 5

mil, segundo os dados do IBGE. A população indígena Terena está entre 5 mil e 7 mil pessoas.

Realizamos um primeiro contato com os Terena em fevereiro de 2001, quando tivemos a

oportunidade de realizar uma viagem de 30 dias à região, permanecendo cerca de 3 dias em

Cachoeirinha, visitando ainda as terras indígenas de Lalima, Pilad Rebuá e Aldeinha. Devido a

dificuldades operacionais e limitações de recursos, não conseguimos ter acesso às demais terras

indígenas Terena no estado. Em 2002 realizamos uma rápida etapa de pesquisa de 3 dias em

Cachoeirinha em abril; em Outubro voltamos para mais uma etapa de pesquisa e ficamos cerca de

20 dias.

Devido à aceitação e facilidade de negociação com as lideranças locais e comunidade, e

questões suscitadas pelas primeiras viagens, resolvemos definir Cachoeirinha como local de nossa

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pesquisa. Em abril de 2003 voltamos e ficamos cerca de 40 dias em Cachoeirinha, saímos em maio

para ir a Campo Grande e ir a outras aldeias (sendo que conseguimos visitar Brejão em Nioaque, e

Aldeinha). Também ficamos cerca de 7 dias em Campo Grande. Em setembro de 2004

concentramos a maior parte de nossa pesquisa de campo (cerca de 60 dias), e neste período tivemos

oportunidade de conhecer a aldeia de Jaguapirú e Bororo em Dourados. Em 2006 realizamos uma

etapa de pesquisa de três semanas, entre março e abril. Totalizamos aproximadamente 170 dias de

trabalho de campo ao longo de cinco anos de pesquisa, dos quais cerca de 110 foram passados

exclusivamente na aldeia Cachoeirinha.

Durante o período de campo em que permanecemos em Cachoeirinha, nos hospedamos no

Posto da FUNAI, residindo ali com a família do então Chefe de Posto (sua esposa e filhos), o índio

Terena Argemiro Turíbio. Depois ficamos hospedados em sua casa, que fica localizada próximo ao

Posto da FUNAI. Neste sentido, a pesquisa foi construída a partir de uma relação específica com

um grupo doméstico, o que abriu certas portas, mas também fechou outras portas. Especialmente

porque este grupo doméstico cumpre um papel político importante dentro do contexto local.

Conseguimos construir relações com outras pessoas, que atuaram como nossos informantes,

servindo para contornar relativamente esta situação.

É importante mencionar que quando iniciamos a primeira etapa de pesquisa realmente

prolongada em Cachoeirinha, em 2003, existia um contexto em que as disputas faccionais estavam

relativamente atenuadas em razão dos seminários e assembléias promovidos pelo CIMI. Nessas

circunstâncias, conseguimos ter acesso direto ao conjunto de lideranças de diferentes facções, o que

possibilitou a construção de formas de comunicação para além dos grupos domésticos com que

residimos na Cachoeirinha, e ter acessos a pontos de vistas e expectativas que se demonstrariam

conflitantes pouco tempo depois. Mas é claro que estávamos o tempo todo situados dentro de um

grupo doméstico e de uma das vilas da aldeia, o que nos posicionava dentro de um universo de lutas

faccionais determinado.

É preciso observar também o contexto lingüístico da pesquisa. Nós realizamos a pesquisa

fazendo uso do idioma português, e sempre que possível colhemos entrevistas e termos no idioma

Terena para tradução. Os Terena são um povo que possui diferentes situações lingüísticas. Existem

comunidades bilíngües e algumas comunidades que falam majoritariamente o português. No

contexto da aldeia Cachoeirinha e Argola o domínio da língua Terena é generalizado na população,

com um índice de 78,4% e 83,3% respectivamente, sendo Babaçu a que apresenta uma menor

percentagem de falantes, 48% (Ladeira, 2001, p. 101). Mas de maneira geral, a população Terena

domina muito bem o português, e grande parte da comunicação dentro da aldeia é feita pelo uso dos dois

idiomas, até mesmo pela heterogeneidade de domínio da língua apontada acima.

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Além da pesquisa de campo, realizamos também pesquisa nos arquivos do Museu Nacional,

do Museu do Índio, da Biblioteca, do Arquivo Nacional e Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro no Rio de Janeiro; nos arquivos da FUNAI em Mato Grosso do Sul, em bibliotecas

municipais em Campo Grande, onde levantamos uma documentação importante sobre os índios

Terena e os índios do Mato Grosso do Sul. Daí saiu uma massa heterogênea de relatórios, ofícios,

cartas e fotos, que estão incorporados na nossa tese.

Do processo de revezamento entre pesquisa bibliográfica, documental e a etnografia,

surgiram algumas hipóteses, que estão diretamente relacionadas às questões apresentadas na

justificativa desse trabalho. São quatro hipóteses que formulamos para nossa pesquisa:

Primeira Hipótese: está em emergência entre os Terena o que poderíamos chamar de

protagonismo étnico, fenômeno que indica uma mudança nas relações de poder entre índios e

Estado, e se expressa na passagem das formas cotidianas de resistência para a resistência aberta.

Tal constatação exige a critica dos estereótipos dos Terena como “índios-modelo” e a

percepção de sua política de resistência à tutela. Os Terena desenvolveram formas cotidianas de

resistência à relação e regime tutelar, desde que esse consolidou com a formação das Reservas do

SPI, de maneira que as teses que afirmam a “vitimização”, a “incapacidade” e a “passividade”

Terena não encontram sustentação empírica. Hoje essa resistência se desenvolveu e se apresenta sob

a forma da emergência do protagonismo étnico.

É correto afirmar que os Terena desenvolveram políticas de colaboração com as agências

estatais (aceitando relativamente às mudanças sócio-culturais impostas e formas de exercício do

poder). Paralelamente a esta colaboração, criaram ações contra certas bases do regime tutelar

(especialmente no que tange aos elementos centrais da tutela, como a idéia de incapacidade

indígena, as formas de substituição da ação indígena pela ação estatal). Logo, muitos dos atributos

empregados para construir as representações do índio (como preguiçoso, incapaz, violento,

inconstante) na realidade expressam a oscilação entre políticas de resistência e colaboração. A

abordagem da história Terena existente na antropologia brasileira, considera normalmente que o

“contato interétnico” teria sido o marco de um processo de mudança social global nas sociedades

indígenas. No nosso entendimento a “mudança” não se deu em forma e ritmos homogêneos na

economia, cultura e política indígenas, e não podemos pensar a história do grupo como uma

“queda” de uma “época tradicional” para um presente de crise, sendo o marco de início dessa queda

o estabelecimento das “relações interétnicas”.

Segunda Hipótese: Os Terena e alguns outros grupos indígenas da região do Chaco/Pantanal

foram forças de apoio essenciais à formação do Estado brasileiro, através da articulação dos modos

de organização política “não-estatais” e “estatais” em uma formação social e histórica determinada.

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Os índios Terena não constituíam um “grupo isolado” até o século XIX e nem possuíam

uma “organização de tipo estatal”. Contrariamente ao que a literatura antropológica indica,

acreditamos que os Terena participavam de um sistema social indígena específico (com inúmeros

outros grupos étnicos e instituições coloniais) e sua organização era de tipo segmentar (ou seja,

constituíam uma “sociedade sem estado”). Logo o pressuposto do “isolamento”, que sustenta todas

formulações sobre os Terena, precisa ser submetido a uma critica histórica. Em conseqüência disso,

a transição de uma “sociedade sem estado” para uma “sociedade estatal” não se apresentou como a

substituição simples de um modo de organização política por outro, mas como choque,

superposição e transformação de diferentes sistemas sociais em que o Estado conseguiu realizar a

articulação de uma lógica centralizadora e uma lógica segmentar, manipulando essa combinação

para seus objetivos.

Terceira Hipótese: A centralização estatal imposta pelo regime tutelar teve como

contrapartida dialética à descentralização faccional, ou seja, a absorção relativa da antiga lógica

segmentar do sistema indígena dentro do Estado-Nacional (e como um fator fundamental para seu

desenvolvimento local).

A imposição aos Terena de uma “organização centralizada” pelo Estado-Nacional levou não

a eliminação da organização segmentar, mas sim a sua transformação numa organização segmentar-

faccional (Nicholas, 1966). O regime tutelar imposto pelo SPI pautava-se numa lógica de

centralização política dentro das aldeias, mas na nossa visão essa centralização longe de eliminar ou

suplantar a organização segmentar, fez com que ela se integrasse numa dinâmica faccional. Ou seja,

contrariando as interpretações que viram no estabelecimento de uma estrutura de poder centralizada

a eliminação das formas segmentares, nossa hipótese é que a centralização leva ao faccionalismo e

este a centralização, e ao invés da organização segmentar ou descentralizada se opor e desaparecer

com a incorporação dos grupos e territórios indígenas às unidades de um Sistema Político Estatal-

Capitalista, esta organização segmentar se torna um elemento fundamental para o funcionamento

das instituições estatais e conseqüentemente para a reprodução das relações de dominação no nível

local da política.

Quarta Hipótese: O regime tutelar está passando por uma transformação específica, de uma

tutela baseada na “gestão branca” (SPI) para uma tutela baseada na “co-gestão indígena” e essa

tende a diluir o aumento do poder indígena expresso pela emergência do protagonismo étnico,

através do aprofundamento das formas de dominação horizontal.

Durante décadas se estabeleceu um modelo de “gestão indireta” dos territórios indígenas,

uma gestão branca pautada na exclusão e subordinação dos índios. O regime tutelar hoje passa por

processos de liberalização – de dentro para fora – e transformação – em conseqüência da pressão de

fora para dentro, dos índios. E essas transformações têm apontado no sentido da construção da co-

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gestão da instituição tutelar pelos índios. Mas essa co-gestão tem como principal efeito reproduzir e

aprofundar o padrão histórico de fortalecimento das dominações horizontais induzido pelo Estado.

A organização da nossa tese reflete em sua seqüência as preocupações e hipóteses

apresentadas acima. A tese está dividida em 7 capítulos:

? o Capítulo 1 é dedicado à definição das linhas político-teóricas de abordagem dos problemas

da resistência, dominação, tutela, origem e formação do Estado e mudança social

? o Capítulo 2, realiza a descrição etnográfica e caracterização da atual situação histórica

vivenciada pelo grupo indígena, em que apontamos as relações econômicas, políticas e

culturais, formas de mobilização política e projetos de futuro dos Terena.

? o Capitulo 3 é dedicado a análise da construção do campo de relações interétnicas no Mato

Grosso do Sul e a formação do regime tutelar, bem como do processo histórico de

territorialização dos Terena (com a identificação de diferentes situações históricas);

? o Capítulo 4, é dedicado à descrição da atual organização social e cultural do grupo,

analisando como o grupo étnico se transformou e reproduziu através deste processo

histórico, e como esta historia é parte integrante e estruturante da sua atual cultura,

organização social e experiência política.

? o Capítulo 5 focaliza os conflitos faccionais e dramas de sucessão, mostrando como políticas

de colaboração e resistência coexistem dentro do contexto das aldeias Terena, e como sua

interação e revezamento levaram a mudanças no regime tutelar;

? o Capítulo 6 analisa como as mudanças nos esquemas locais de poder levam a dominações

horizontais, de facões indígenas sobre outras, em alianças com o Estado e elites locais, e

como tal política se articula com as formas cotidianas e abertas de resistência.

? o Capítulo 7 é dedicado a uma reflexão sobre o conjunto das questões, à guisa de conclusão,

tentando apresentar uma sistematização teórica e etnográfica do problema da resistência e da

tutela, da relação racismo, capitalismo e Estado-Nacional.

A última consideração que gostaríamos de realizar diz respeito aos limites desse trabalho e

da pesquisa que lhe deu origem. Entendemos que a nossa etnografia ainda se encontra relativamente

inconclusa. É uma pesquisa que terá desdobramentos, sendo esta tese a formulação feita a partir de

uma etapa de construção do acesso àquilo que Gerald Berreman (1975) chamou de “região interior”

do grupo. Por outro lado, escolhemos um objeto teórico e empírico ajustado a atual etapa da

pesquisa, de maneira que os dados produzidos e o tipo de acesso à construção social da realidade do

grupo não ficassem aquém das exigências levantadas pela problemática. Procuramos estabelecer um

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equilíbrio entre o grau de desenvolvimento da etnografia e da produção da análise sociológica.

Movimentamos-nos sempre através da tensão entre a etnografia, história e formulação teórica.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Capítulo 1 - Ordem e Anarquia na Sociologia: percepções da mudança social e luta política.

“... três escolas do pensamento antropológico, originárias de diferentes tradições intelectuais, tornaram-se exemplares na atualização competente dos paradigmas racionalista, estrutural-funcionalista e culturalista, orientadores respectivamente da École francaise de sociologie, da Britsh School of Social Anthropology e da American Historical School of Anthropology (...)

A categoria de ordem implementa a investigação cientifica, teórica ou de campo, em todo o espaço ocupado por essas escolas. Tal a força dessa categoria no universo dessa disciplina que ela não apenas orienta o discurso das diferentes escolas, a gramaticalidade da linguagem antropológica, o que constituiria a bem dizer o impensado da disciplina, como ainda manifesta -se no centro de sua problemática, largamente explicita em todos os índices ou sumários de quantos ensaios e monografias a antropologia conheceu em sua história”

Roberto Cardoso de Oliveira, in Sobre o Pensamento Antropológico.

O contexto da segunda metade do século XX foi marcante para a antropologia, já que um

dilema – surgido com a ordem pós-colonial – se impôs. Alguns antropólogos colocaram em debate

vários dos conceitos e discursos que ajudaram a definir as bases teóricas e institucionais da

antropologia, e submeteram a exame critico as grandes correntes da disciplina (como o

evolucionismo, o funcionalismo e o estruturalismo). O livro “Anthropology and the colonial

encounter”, organizado por Talal Asad, é emblemático deste movimento auto-reflexivo. A

plausibilidade do empreendimento antropológico, diz ele, que parecia auto-evidente nos anos 60,

deixara de existir (Asad, 1973,p.10). Ao identificar as características principais do debate na

antropologia do pós 2º Guerra Mundial, afirma que:

“We must begin from the basic fact that the basic reality witch made pre-war social anthropology a feasible and effective enterprise was the power relationship between dominating (European) and dominated (non-european) cultures. We then need to ask ourselves how this relationship has affected the practical pre-conditions of social anthropology; the uses to which its knowledge was put; the theoretical treatment of particular topics; the mode of perceiving and objectifying alien societies; and the anthropologist’s claim of political neutrality”. (Asad, 1973, p.17).

Assim delineia-se uma espécie de “programa” para a crítica da antropologia, que passa pela

reflexão sobre as condições práticas de desenvolvimento da disciplina, os usos do conhecimento

antropológico e por fim a análise das próprias bases epistemológicas. Este programa de (auto)

crítica da disciplina passava fundamentalmente pela (re) articulação da política com as teorias e

conhecimentos antropológicos.

A reflexão crítica dentro da antropologia conduziria a revisão das relações entre conceitos e

práticas de poder, ou seja, entre teoria e política. A crítica implicaria uma mudança dos métodos e

da própria relação entre pesquisador e pesquisado, ou pelo menos se afirmaria tal necessidade.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Logo, não se poderia processar uma crítica das relações entre antropologia e colonialismo sem uma

profunda mudança dos pressupostos teóricos e das próprias técnicas de pesquisa.

Assumindo as orientações acima, é necessário realizar uma crítica teórica e epistemológica

que permita uma abordagem diferente dos problemas da mudança social, conflito, resistência e

dominação. E ao falar de resistência tomamos em mãos fios que conduzem em diferentes direções.

Uma dessas direções é a do debate relativamente contemporâneo dentro da antropologia, história e

sociologia, sobre as “formas cotidianas de resistência”, aquelas formas localizadas, parciais e

relativamente dispersas e fragmentárias. Outra dessas direções leva a um conjunto amplo e

heterogêneo de pesquisas e monografias da antropologia política, especialmente africanista,

realizadas nos anos 1930-1950, que refletem sobre os tipos de sistema político. Um terceiro fio nos

leva ao século XIX, aos debates entre socialistas, anarquistas e comunistas, de um lado, e liberais e

conservadores de outro, sobre a luta de classes, a história e o Estado. Iremos tomar aqui estes três

fios condutores de reflexão teórica e política, porque no nosso entendimento, somente assim

fechamos uma cadeia de questões necessárias à análise das formas de luta e dominação, das

relações de poder. Iremos começar pela definição do conceito de “resistência”.

1.1 – Resistência e Dominação: a análise das relações de poder.

Uma definição da noção de resistência não poderia deixar de fazer menção à edição The

Journal of Peasant Studies, Volume 13, number 2, 1986, em que é publicado o texto de James Scott,

“Everyday forms of Peasant Resistance”, e uma série de artigos sobre “formas cotidianas de

resistência”. Uma análise desse volume e dos artigos aí contidos é fundamental na busca de

definições teóricas. É preciso indicar que o volume é dedicado ao estudo do campesinato nos paises

do Sudeste Asiático, que na década anterior havia sido abalado pela Guerra do Vietnã, pela luta

armada no campo e pela descolonização.

Em primeiro lugar devemos entender as bases que fundamentaram o surgimento dos estudos

sobre resistência. Os estudos da “resistência cotidiana” surgiram a partir da insatisfação com o

estudo das revoluções/insurreições de larga escala. Scott afirma que fora destes contextos, o

campesinato não figurava nas pesquisas como ator histórico Assim, somente nos momentos

explosivos, de “situações revolucionárias” é que o campesinato figura enquanto sujeito capaz

politicamente. Por outro lado, o estudo daquilo que seria chamado formas cotidianas de resistência

surge nos estudos da escravidão, em que as revoltas abertas eram raras (Scott, 1986, p.5).

Desta maneira, a resistência cotidiana, aparece no bojo da preocupação do estudo da ação

política do campesinato nos períodos que antecedem ou sucedem as situações revolucionárias e as

explosões de revoltas. As formas cotidianas de resistência são “a prosaica mas constante a luta de

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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classes e requerem pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento, elas freqüentemente

representam formas de auto-assistência, evitam qualquer confrontação simbólica com as

autoridades ou as normas das elites” (Scott, op.cit, p.6)

Temos assim uma primeira e geral definição do que consistem as formas cotidianas de

resistência. A “resistência cotidiana” é uma forma de luta de classes, que exige pouca ou nenhuma

coordenação, e que se viabiliza por uma série de “técnicas”: sabotagem, dissimulação, furto e etc.

O autor sistematiza uma definição da resistência em geral, que a diferencia das formas

cotidianas de resistência.

“Lower class resistance among peasants is any act (s) by member (s) of the class that is (are) intended either to mitigate or to deny claims (e.g. rents, taxes, deference) made on that class by superordinate classes (e.g. landlords, the state, owners of machinery, moneylenders) or to advance its own claims (e.g work, land, charity, respect) vis-à-vis these superordinate) classes.” (Scott, op.cit, p. 22)

Desta maneira, a resistência abrange qualquer ação de indivíduos ou grupos que se

encontram numa mesma condição de classe, que vise barrar as demandas dos grupos ou classe

dominante, ou realizar demandas que entrem em choque com aqueles grupos dominantes. É como

Andrew Turton notou, que “o conteúdo do conceito expressa uma bidimensionalidade: ao mesmo

tempo uma oposição bem sucedida, ou tentar opor com vários graus de sucesso. (...) Resistência,

como conceito, compartilha com conceitos relacionados (insubordinação, protesto, oposição, luta,

rebelião, revolução) um significado básico de negação”. (Turton, 1986, p. 38) A resistência, em sua

essência é relacional supõe oposição a algo que lhe dá sentido. Como o autor formula; “As formas

cotidianas de resistência são desse modo em larga medida respostas às formas cotidianas de

opressão e dominação, e estas, também precisam ser examinadas”. (Turton, op.cit, p. 37) Por isso,

ele afirma que “de um ponto de vista teórico e metodológico, as formas de resistência como tais tem

menor interesse que uma análise da relação social particular e do contexto em que elas surgem ”

(Turton, op.cit p.41).

Na realidade, na definição de Scott, a grande tarefa é fazer a uma diferenciação entre duas

grandes modalidades de resistência: a resistência e as formas cotidianas de resistência 3. Enquanto o

primeiro conceito se aplica aos movimentos sociais, as rebeliões e formas de luta política coletiva, 3 Scott identifica uma postura em alguns estudos sobre a escravidão, dos autores Genovese e Mullin, que tentam criar uma oposição entre a “resistência real” e as formas de ação praticadas pelos escravos, que não poderiam ser consideradas enquanto tais, como resistência, porque não visariam transformar o sistema de dominação. Desta maneira, o conceito resistência teria algumas características: a) seria organizada, sistemática e cooperativa; b) seria baseada na abnegação; c) teria conseqüências revolucionárias; d) incorporariam idéias ou intenções que negam as bases da dominação em si. Por oposição, as formas de ação dos escravos seriam a) individuais, localizadas e descoordenadas, b) baseadas no auto-interesse; c) não teriam efeitos revolucionários sobre o sistema de dominação; d) não faria a crítica deste sistema em si. (Scott, op.cit, p. 23-24). Scott faz a crítica desse pressupostos, mostrando que na realidade ações individuais e sem nenhuma coordenação poderia ter conseqüências revolucionárias, como o caso das “deserções durante a revolução russa”; a partir do mesmo exemplo, já que não existiu contradição entre o interesse individual do soldado em sobreviver e o efeito político revolucionário, o interesse em debilitar o Exército enquanto instituição repressiva.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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que tradicionalmente prevalecem nos estudos, o segundo abrangia uma ampla variedade de fatos

que estavam sendo teoricamente descartados. (Scott, op.cit, p.24).

As “formas cotidianas de resistência” se apresentam normalmente como informais,

individuais e anônimas, e frequentemente se expressam em certas técnicas (como o furto, a

sabotagem, o boicote, a sabotagem, a agressão física, a dissimulação). O que permite afirmar a

existência de formas cotidianas de resistência é a emergência de padrões de ação (Scott, op.cit,

p.26) A resistência é formal, coletiva e pública e se expressa em técnicas como as ocupações de

terras e manifestações em vias públicas. Mas é importante observar que são várias as combinações

possíveis entre ações formais e informais, coletivas e individuais, públicas e anônimas, de maneira

que é possível haver ação coletiva anônima e ação individual pública, por exemplo. (Scott, op.cit, p.

p.28-29) O problema do contexto global e da conjuntura histórica especifica é fundamental para o

estudo da resistência, já que esta é determinada tanto pelos níveis de repressão, quanto pelas

condições econômico-sociais.

A resistência, enquanto ação negativa de oposição, e afirmativa de reivindicação e realização

de demandas, é caracterizada por um elemento geral: “O objetivo da resistência camponesa não é

diretamente superar ou transformar um sistema de dominação porém ao contrário é sobreviver

nele – hoje, esta semana, esta estação ...”. (Scott, op.cit, p. 30)

Mas é necessário pensar a resistência sempre em relação às estruturas de poder e dominação

nas quais elas surgem. Para fazer isso adequadamente nós precisamos dar um relato das estruturas e

processos de poder, e não apenas das formas institucionais, porém também seu exercício nas

múltiplas situações e meios locais informais, o que Foucault denomina suas formas capilares,

técnicas polimorfas de subjugação, ou seja, a microfísica do poder. Ao mesmo tempo nós

"necessitaríamos relacionar as concentrações especificas de poder, sejam formalmente

institucionalizadas ou não, ao Estado, ao bloco no poder, aos grupos dominantes e etc. Em outras

palavras, não é possível um adequado estudo das formas de resistênc ia sem um anterior e

simultâneo estudo das formas de dominação, não tendo sentido apreender as formas e estratégias de

resistência apenas como “realidades em si”. (Turton, 1986, p. 39)

1.2 - Como Dominar? “colaboração de classe” e “formas cotidianas de colaboração”.

Uma questão fundamental que surge nas reflexões sobre o estudo da resistência tal como

delineada por Scott, é o problema da definição das fronteiras entre o que pode ser considerado ou

não como resistência. Esta preocupação se expressa tanto pela consideração crítica em distinguir

que o exercício de certas técnicas de luta política contra membros da classe “baixa” de uma

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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sociedade, que não podem ser considerados como “resistência”, quanto pela afirmação conclusiva

de seu artigo:

“One of the key questions that must be asked about any system of domination is the extent to which it succeeds in reducing subordinate classes to purely ´beggar thy neighbour´ strategies for survival. Certain combination of atomization, terror, repression, and pressing material needs can indeed achieve the ultimate dream of domination; to have the dominate exploited each other.” (Scott, op.cit, p. 30)

Aquilo que Scott chama de “as armas do fraco” (a dissimulação, a desobediência, o furto, a

sabotagem) podem ser empregadas contra diferentes sujeitos, tais “técnicas de luta” podem ser

empregadas para a resistência e para a dominação (Scott e Turton falam que tais formas de

resistência não são monopólio dos grupos dominados), ou seja, são técnicas gerais da luta política.

Na definição da resistência, o fundamental é que tais técnicas são empregadas contra os grupos

dominantes, e por isso é possível falar de uma resistência de classe.

Na realidade existe uma terceira “variável prática” entre a resistência e a dominação: é a

colaboração, que poderia ser considerada num nível geral como uma forma alternativa e antagônica

a da luta de classes, uma forma que concilia e sintetiza interesses, gera mediações, multiplica

contradições. Nas suas reflexões, Christine P.White, analisando o caso do Vietnã, mostra como os

mesmos camponeses que opunham resistência aos colonialismos, podiam servir de mão-de-obra em

empreendimentos coloniais (White, 1986,p.55). O artigo de White ainda chama a atenção para um

fator fundamental: a dinâmica da luta política, a mudança na correlação de forças provocada pela

própria “resistência”, faz com que a “colaboração” se torne uma demanda do Estado, do Governo

ou das elites dominantes. Como no trecho abaixo:

“If the peasant majority is held to play a major role in the making of history, then established rule, however oppressive and exploitative, depends in large measure, upon their collaboration or compliance with the system. Therefore we must add a inventory of everyday forms of peasant collaboration to balance our list of everyday forms of peasant resistance: both exist, both are important.” (White, 1986,op.cit, 55-56)

A emergência e a ascensão das formas de resistência, faz com que sejam valorizadas

simultaneamente as formas de “colaboração”.

É preciso buscar uma definição conceitual do que estamos chamando de “colaboração de

classe” e sua aplicabilidade a cada situação concreta. Podemos falar de colaboração de classe,

como sendo: 1) Qualquer ação por membros de uma classe dominada que, visando evitar o

confronto e a luta, cria uma convergência de objetivos e demandas com os membros da classe

dominante (incluindo os aparelhos e instituições estatais de poder) e que tem como efeito o

compartilhamento de interesses com estas classes superiores ou alguma de suas frações ou grupos

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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concretos. 2) Ou inversamente, qualquer ação de membros da classe dominante que siga a mesma

mecânica.

Desta maneira, a colaboração se coloca como uma forma de compartilhar interesses e

expectativas, de criar identidades entre os grupos sociais dominados e aqueles que os dominam, seja

através de idéias, seja através de empreendimentos comuns, seja pela delegação de tarefas ou

formas de reciprocidade. Da mesma maneira que a resistência se define em relação à dominação, a

colaboração só se define em relação à dominação e a resistência. As suas formas concretas são

determinadas pela dinâmica dominação/resistência e sua correlação de forças. As “técnicas” que

expressam esta colaboração podem ser múltiplas, incluindo as mesmas técnicas ge rais da luta

política sinalizadas acima. Além disso, poderíamos seguindo uma mesma linha de raciocínio,

distinguir entre a colaboração firmada entre chefes e lideres políticos, associações formais ou

organizações coletivas (por meios de tratados, acordos formalmente estabelecidos) das formas

cotidianas de colaboração (submissão voluntária, adesão às ordens, delação, oferta de trabalho, etc).

A identificação da tríade dominação-resistência-colaboração, e a definição conceitual do que

é resistência e o que é colaboração, exige que alcancemos uma definição igualmente precisa do

conceito de dominação, pois somente assim estaremos alcançando um quadro mais amplo dos

mecanismos e ferramentas necessários à análise das relações de poder.

Neste sentido, a obra de Michel Foucault apresenta bases importantes. Alguns dos seus

artigos refletem sobre as bases metodológicas e teóricas do estudo das relações de poder,

especialmente “Soberania e Disciplina” e “Governamentalidade”. Aqui Foucault traça algumas

orientações específicas para o estudo das relações de poder e da dominação. A sua preocupação

principal é fugir a um “modelo jurídico” (que sublimava a dominação, ao criar a soberania, a

legitimidade das relações de comando-obediência):

“Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social..”. (Foucault, 2004, p. 100)

Vemos aqui um procedimento teoricamente decisivo e controverso: a dominação deixa de ser um

fato exclusivamente coletivo (de grupos em relação outros grupos), centralizado (de um centro de

poder em relação aos múltiplos pontos da sociedade) e vertical (de grupos dominantes para os

dominados). A definição de dominação de Foucault abrange as formas individualizadas e

localizadas de dominação, descentralizadas e digamos horizontais (entre os “súditos”, ou seja, entre

aqueles que estão numa mesma posição ou linha de classe).

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Tomando esta definição geral como ponto de partida, Foucault apresenta 5 precauções

metodológicas para a análise das relações de poder: 1ª) captar o poder em suas extremidades, em

suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições

mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o

organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se

mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violento; 2ª) “não perguntar porque

alguns querem dominar, o que procuram e qual é sua estratégia global, mas como funcionam as

coisas ao nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os

corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos; 3ª) não tomar o poder como um fenômeno de

dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de

uma classe sobre as outras. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como

algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns,

nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas

malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de

sofrer sua ação; nunca são os alvos inertes ou consentidos do poder, são sempre centros de

transmissão. 4ª) “Deve-se fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos

infinitesimais que têm uma história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes

mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, subjugados,

transformados, deslocados, desdobrados, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de

dominação global”. “Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo. Creio que

deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas e os procedimentos de poder atuam

nos níveis mais baixos; como estes procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas

sobretudo como são investidos e anexados por fenômenos mais globais; como poderes mais gerais

ou lucros econômicos podem inserir-se no jogo destas tecnologias de poder que são, ao mesmo

tempo, relativamente autônomas e infinitesimais”; 5ª) “Tudo isto significa que o poder, para

exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e por em circulação um saber,

ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas” (Foucault, 2004, p. 100-104).

Estas 5 orientações têm um objetivo estratégico: evitar a influência do “pré-concebido” no

estudo das relações de poder e dominação (que pode aparecer como a visão jurídico-formalista que

sublima a dominação; ou ainda a análise que ele denomina descendente (que parte do centro do

poder para as extremidades moleculares), como as formas que fazem derivar todas as formas de

dominação locais de um centro ou dos interesses de uma classe dominante). Além deste objetivo, de

evitar o pré-concebido, existe também um esforço em evitar a análise da dominação pelo discurso

de quem domina, o que leva a Foucault a afirmar a centralidade das práticas locais/localizadas. Ou

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

23

seja, busca-se a critica da análise “idealista” da dominação, que parte das idéias (discursos, metas,

representações) que as instituições que exercem a dominação produzem ou de teorias existentes.

Entretanto, fica o risco de ao promover estes deslocamentos, criar uma visão “localista” e

pulverizada dos processos de dominação e do ponto de vista metodológico, criar outras formas de

pré-concebido. Uma forma de viés empirista, que só valorizaria as experiências em si; outra forma,

de viés localista, que tentando fugir a determinação estrita do local pelo central, cria uma

“autonomia” total dos campos específicos que não se verifica no plano dos objetos reais e

concretos. Neste sentido, para evitar estas distorções metodológicas, é preciso fazer algumas

ênfases específicas sobre as orientações propostas.

Foucault não nega a existência de processos gerais de dominação. Na realidade a “análise

ascendente do poder” – que procede “de baixo para cima”, obriga a remontar toda a estrutura, o

contexto global da dominação, só que num sentido inverso. E além disso, as “formas locais de

poder e dominação” (como verificadas nas instituições psiquiátricas, no controle da sexualidade e

etc) podem ser “anexadas, colonizadas pelas formas gerais e globais” – apesar de não serem

meramente derivadas ou deduzidas delas. Ou seja, não se trata de negar a relação entre as formas

particulares e a estrutura geral de dominação, mas de especificar qual o tipo de relação que podem

manter entre si – relações estas que variam no tempo e espaço.

Uma outra dimensão está relacionada à interação entre o que estamos chamando de

dominação vertical/dominações horizontais. A dominação vertical seria aquela exercida entre

grupos e classes derivada de uma clivagem global; as dominações horizontais, múltiplas e

polimorfas, que se engendram dentro da mesma linha ou condição de classe, nas relações

interindividuais ou diádicas dentro de grupos e instituições localizadas. Neste sentido, podemos

falar que a “circularidade do poder” e o “exercício em cadeia” do poder e da dominação –

dominação central que se combina e exerce através de dominações locais – implicam na

combinação das formas horizontais com as formas verticais de dominação. Assim temos um quadro

complexo: quando afirmamos que todos estão em posição de “exercício do poder” não significa que

todos estão em condições de exercício do mesmo tipo de poder (tanto em termos de tecnologias,

quanto de intensidade e objeto de incidência), assim, existe uma estratificação da capacidade

política, do poder.

Duas possibilidades teóricas se abrem, e é preciso determiná- las porque elas ocuparão um

importante lugar em nossa análise: a idéia dos “sem-poder” (powerless) deixa de ter substância; a

idéia de circularidade do exercício do poder associada à noção de colaboração de classe e as formas

cotidianas de colaboração, no sentido que os poderes (sejam os globais e gerais do Estado e da

Burguesia, sejam os locais e específicos do médico do pedagogo) não são auto-suficientes; eles

demandam uma cadeia de comando, formas de compartilhar decisões, criar consenso, enfim,

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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engendrar colaborações. São as dominações horizontais que existindo autonomamente – e

exatamente por isso, por não exigirem qualquer plano global que as tornariam inviáveis –

aumentam a eficácia da dominação vertical. A multiplicidade das formas de dominação horizontais

não entra em contradição com a unidade da dominação vertical de uma classe sobre outra; na

realidade é seu complemento.

Podemos dissociar o conceito de dominação do conceito de poder; a relação de poder não se

resume à dominação, mas sim a luta, ao confronto de forças. Em toda a cadeia de dominação e de

relações de poder, não existe nenhuma posição completamente desprovida de poder; em termos

gerais podemos dizer que o poder do “dominado” é o de resistir e revoltar-se; o poder do

“dominador” é o de impor sua autoridade e/ou extrair colaboração. A relação de poder oscila assim

entre resistência, dominação e colaboração, entre formas convenciona is e cotidianas ou

moleculares/capilares das três, o que expressa a sua circularidade.

Desta maneira, quando analisamos as relações de poder, estamos na realidade analisando a

luta; a luta pelo poder, a luta por recursos materiais, a luta pelo saber, enfim, a luta. Resistência,

dominação, e colaboração são variáveis dentro da luta, que se torna o eixo organizador em função

do qual as três formas anteriores tem de ser compreendidas.

Os estudos de resistência levantam um problema importante quando colocam a seguinte

questão: a resistência se dá contra efeitos da dominação ou contra a dominação em si? Responder

esta questão significa identificar os próprios limites dos efeitos da luta e da resistência: ela é capaz

ou não de provocar a mudança social, ou se inscrevem dentro dos limites da reprodução social.

Esta questão permite uma articulação com o problema da dominação exercida por “dominados

sobre dominados”, e também à problemática levantada pela antropologia política africanista sobre a

distinção entre mudanças na distribuição do poder dentro de um sistema e a mudança no próprio

sistema de poder. Todas essas abordagens remetem a uma questão mais geral: qual é o papel do

conflito e da luta, em sentido geral, e da luta de classes em particular, dentro das sociedades? Este

tema levantado pelos estudos de resistência e que remete a um problema geral – da mudança e

reprodução das estruturas de dominação e dos sistemas sociais - já tinha sido postulado então de

uma outra maneira na antropologia e nas ciências sociais, de maneira que é possível fazer um

dialogo entre as diferentes abordagens. É a essa tarefa que nos dedicaremos agora.

1.3 - A Política na Antropologia e a Teleologia da Ordem.

A questão que poderíamos chamar de “mudança social” é um tema recorrente dentro da

antropologia. Nos estudos de Lewis Morgan sobre a sociedade primitiva, a noção de “evolução”

funciona como operador descritivo de um processo de mudança gradual e cumulativo, medido

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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especialmente pelo grau desenvolvimento técnico e econômico que se expressaria na organização

social e política. Décadas depois, autores como Radcliffe-Brown, Gluckman, Evans-Pritchard

abordariam uma problemática similar nos estudos de antropologia política dos grupos africanos.

A antropologia política foi definida pelos antropólogos como uma “sub-disciplina da

antropologia social” ou como “projeto temático- investigativo” (ver Balandier, 1969, e Vincent,

1997, Oliveira Filho, 1986). Um conjunto de estudos dedicados à política levantou uma série de

questões teóricas, criaram conceitos, tipologias e estabeleceram um campo de referências teórico-

epistemológicas. (Vincent, op.cit,p.428).

No período inicial, o evolucionismo seria a principal teoria social a interpretar o fenômeno

da política e da mudança. Os primeiros estudos sobre a “organização política” foram realizados

entre os povos nativo-americanos pelo Etnhology Bureau of the Smithonian Institution em 1879.

Herbert Spencer e Lewis Morgan forneceram a estrutura conceitual para estes estudos. Os estudos

de Morgan fixariam as bases do estudo da organização política que seguiu em parte as idéias de

Henry Maine. Estes estudos criariam uma distinção básica, que seria legada posteriormente para a

antropologia política, entre sociedades baseadas no parentesco e sociedades baseadas no território

(ver Oliveira Filho, 1988, Vincent, 1997, p. 428; Balandier, 1969, p.16-18, e Saffo, 1986 p.45).

Desta maneira, as primeiras formulações sobre as instituições e relações políticas na

antropologia estavam profundamente imbricadas nas categorias evolucionistas e sua estrutura

cognitiva, na distinção primitivo/civilizado, que marcaria a especificidade do “objeto” e da própria

disciplina. A terminologia evolucionista foi transformada e abandonada em favor de outras, pelas

novas correntes teóricas (neo-evolucionista, estrutural- funcionalista, estruturalista). Tais como pelos

norte-americanos o uso da tricotomia “sociedade igualitárias - hierarquizadas - estratificadas”, ou

entre os franceses e ingleses pela terminologia “de sociedades primitivas (ou simples ou de

pequena-escala) e avançadas ou complexas”. (Vincent, 1997, p 429).

A grande ruptura teórica, a definição e a proposta de uma antropologia política se daria nos

anos 1930, principalmente por meio dos estudos dos africanistas, da geração de antropólogos

imediatamente posterior a Malinowski e Radcliffe-Brown. A obra de referência e fundação da

antropologia política é “African Political Systems”, de E. Evans-Pritchard e Meyer Fortes. Com ela

é que surge a distinção dicotômica, agora entre sociedades com estado (states) e sociedades sem

estado (stateless). Esta distinção seria adotada, empregada, questionada e complexificada ao longo

do tempo (ver Saffo,1986). Deslocamentos teóricos viriam com os estudos de Edmund Leach

“Sistemas Políticos da Alta Birmânia” e de Max Gluckman, que enfatizariam o conflito e a

dinâmica de mudança social. Nos anos 1960, este impulso seria aprofundado pelos antropólogos da

chamada “teoria da ação” e do processualismo” que dariam cada vez maior atenção ao estudo do

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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conflito e da competição política.(ver Balandier, 1969, Palmeira & Goldman, 1996 e Vincent,

1978).

Desta maneira a antropologia política se constitui na tensão entre um impulso tipológico-

classificatório e uma abordagem dinâmica-conflitiva, em que a ênfase é dada ao estudo de

processos políticos, conflitos e transformações. Temas/objetos como “a origem do Estado”, a

“transição de sistemas políticos sem-estado para sistemas estatais”, ou de outro lado, mudança

social, rebelião, clientelismo, faccionalismo, se colocam assim como domínios constitutivos da

antropologia política nas suas diferentes fases (ver Vincent, op.cit).

O estudo da organização política entre os povos colonizados se desenvolveu num primeiro

momento dentro de uma teoria geral da mudança da sociedade (o evolucionismo). Mas quando esta

problemática é retomada no African Political Systems (1940), ela tem um significado diferente. Em

primeiro lugar, não se supõe mais a base técnica e produtiva como critério de avaliação principal da

mudança nas sociedades. Em segundo lugar, a “teleologia” e teoria da história que tomava a noção

de “evolução” (como acúmulo de progressos) como centro também desaparece.

O texto de introdução dos “Sistemas Políticos Africanos” pode deixar transparecer uma

visão relativamente equivocada do lugar da mudança social dentro daquelas pesquisas, como se ela

não fosse considerada: “Several contributors have described the changes in the political systems

they investigated which have taken place as a result of European conquest and rule. If we do not

emphasize this side of the subject it is because all contributors are more interested in

anthropological than in administrative problems.” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p.1)

No desenvolvimento da introdução dois subitens marcam a preocupação com o problema da

mudança social, o “X O Balanceamento de Forças no Sistema Político” e o “XII Diferenças nas

Respostas ao Governo Europeu”. A questão colocada é que os Sistemas Políticos Africanos estão

em “equilíbrio”, não em “estática” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p.11-13).

No texto de prefácio, de Radcliffe-Brown, vemos que há uma formulação teórica muito clara

sobre a temática da mudança: “Social structure is not to be thought of as static, but as condition of

equilibrium that only persists by being continually renewed, like the chemical-physiological

homeostasis of a living organism. Events occur which disturb the equilibrium in some way, and a

social reaction follows which tends to restore it.” (Radcliffe-Brown, 1969, p. xxii). Logo não se

trata de supor que a mudança social é recusada enquanto problema, na realidade ela é definida e

inserida numa malha de pressupostos teóricos bem determinados, da qual a principal característica é

a tendência para a “ordem”, entendida como a eliminação ou resolução dos conflitos. A “mudança”

atinge somente aspectos parciais (“mudam os reis, mas mantém-se a monarquia”) e ela garante a

restauração da ordem.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Existiria também um outro enquadramento da mudança; sua transcrição numa certa relação

com as instituições do governo colonial:

“In the societies of Group A, the paramount ruler is prohibited, by the constraint of the colonial government, from using the organized force at his command on his own responsibility. This has everywhere resulted in diminishing his authority and generally in increasing the power and independence of his subordinates. He no longer rules in his own right, but as the agent of the colonial government. (…) In the societies of the Group B, European rule has had the opposite effect. The colonial government cannot administer throughout aggregates of individuals composing political segments, but has to employ administrative agents. For this purpose it makes use of any persons who can be assimilated to the stereotyped notion of an African chief. (…) This tends to lead to the whole system of mutually balancing segments collapsing and a bureaucratic European system taken its place. An organization more like that of a centralized states come into being.” (Fortes & Evans-Pritchard, 1969, p. 15-16

O impacto do Governo e Administração Colonial levaria também ao problema da mudança

social: só que o efeito seria o inverso à situação encontrada nos sistemas políticos antes da

conquista: no caso das sociedades estatais existiria uma tendência à relativa fragmentação das

unidades anteriormente centralizadas (pela violência imposta pelo colonizador e pelo acirramento

das contradições internas); nas sociedades sem-estado existiria uma centralização imposta pelo

colonialismo. Assim, a mudança social provocada pelo colonialismo levaria a transformação (e

extinção) dos sistemas políticos africanos (aqui é posto o problema da passagem do chamado

“Estado-Primitivo” ao “Estado Moderno”, e das Sociedades sem Estado as “Sociedades-Estatais”).

Desta maneira chegamos ao cerne de uma concepção da mudança social: ou a mudança é apenas

uma etapa na restauração da ordem e reprodução social ou ela é um estágio num processo

inexorável de desaparecimento das sociedades colonizadas.

Então podemos afirmar que a mudança social é provocada por dois tipos de conflito: nas

sociedades estatais há um conflito entre “poder central” e “poderes regionais”, e nas sociedades

sem-estado entre os diferentes “segmentos territoriais”, linhagens e clãs, que tendo interesses iguais,

tendem para o conflito e a disputa.

Dentro do conjunto das proposições levantadas pelos organizadores, o que se delineia é um

modo de percepção/concepção, de “domesticação” da mudança social, organizado a partir de certos

pontos cardinais que determinam simultaneamente o que é a mudança, seus tipos e seu lugar – o que

expressa senão numa teoria, pelo menos uma concepção geral acerca da sociedade. Para entender

como operam estes pontos de referência da analítica da mudança social, é preciso entender o

conjunto da formulação sobre os sistemas políticos africanos.

Assim, não se trata de afirmar que os estudos contidos no livro “Sistemas Políticos

Africanos” carecem de uma visão da mudança e dinâmica, mas sim de fazer a crítica das bases

cognitivas, epistemológicas da concepção de mudança ali engendrada. Na realidade é preciso

perceber a sutil, mas profunda diferença entre as duas metáforas da “estática” e do “equilíbrio”; os

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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estudos fundadores da antropologia política não supunham que as sociedades não mudassem (ou

seja, que fossem estáticas), mas eles só consideravam que as mudanças tendiam a uma restauração

da ordem, o que supõe mudanças contínuas que seguiam sempre na mesma direção. O que é

cognitivamente recusado é a noção de luta, conflito, desordem ou anarquia.

Esta preocupação com a “ordem” se manifesta em diferentes momentos, tanto no texto de

Fortes & Evans-Pritchard,quanto de Radcliffe-Brown.

“In studying political organization, we have to deal with the maintenance or establishment of social order, within a territorial framework, by the organized exercise of coercive authority throughout the use, or the possibility of use, of the physical force. In well-organized states, the police and army are the instruments by which coercion is exercised. Within the state, the social order, whatever it may be, is maintained by punishment of these who offend against the laws and by the armed suppression of revolt.” (Radcliffe-Brown, 1969, p. xxii).

No texto da introdução vemos também a preocupação com a noção de ordem: “Upon the

regularity and order with wich this whole body of interwoven norms is maintained depends the

stability and continuity of the structure of an African Society.” (Fortes & Evans-Pritchard, op.cit, p.

20). Desta maneira, os temas e problemas colocados irão se articular sempre com este núcleo

gerador: crime, conflito, normas, remetem sempre a noção e uma concepção de “ordem”. A ordem é

ao mesmo tempo o ponto de partida e de chegada, o valor máximo que organiza e o “objetivo”

último da sociedade e da ciência. Estas são bases cognitivas que convergem com os múltiplos

discursos da dominação.

Foi com muita propriedade que Roberto Cardoso de Oliveira apontou em seu texto “A

Categoria de (Des)ordem e a pós-modernidade da antropologia” o peso da categoria ordem,

enquanto estrutura cognitiva, na sociologia e antropologia. Uma análise dos principais conceitos

dessas disciplinas mostra como estão marcados pela noção de ordem.

Se existia uma “teleologia da evolução” nos primeiros estudos da organização política,

podemos dizer que existiu também uma “teleologia da ordem”. Evolução e Ordem foram as

principais formas de codificação da mudança social. A preocupação contínua com a “restauração da

ordem” e da soberania da lei se impôs e não há um limite claro entre a descrição desta tendência e a

afirmação da necessidade dela. Encontrar a “ordem” passou a ser o objetivo da descrição analítica.

Existe, digamos, a emergência e (convergência) de uma temática “positivista” nos estudos da

antropologia política (não no sentido que eles derivem do positivismo enquanto proposta cientifica,

mas no sentido que as afirmações teóricas principais colocam como centro o problema da

restauração da ordem). Essa temática positivista da ordem foi incorporada à sociologia através das

formulações de Durkheim, fundamentadas em Comte, e depois assimiladas em certo sentido tanto

pela escola estruturalista quanto estrutural- funcionalista. Isto é conseqüência menos do

“positivismo” enquanto doutrina do que das posições de classe, profissionais e institucionais dos

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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antropólogos (e do lugar da antropologia enquanto saber e disciplina) no mundo colonial (as bases

materiais e posicionamentos de classe que engendraram o positivismo enquanto forma de crítica da

“desordem” eram similares aos da antropologia; ambas procuravam falar ou falavam de dentro do

Estado-Nacional).

Esta teleologia da ordem (que leva a idéia de que o principal traço da sociedade era controlar

o crime e o conflito) condena a luta de classes e o conflito a uma “condição patológica”, no sentido

que a sociedade tende sempre a corrigi- lo. Obviamente, não é possível realizar uma análise das

relações de poder nos termos definidos anteriormente sem uma profunda crítica (política e

epistemológica) desta teleologia da ordem, que implica a recusa da luta de classes ou do conflito

em geral (e das múltiplas formas que ele pode assumir) na análise cientifica.

E como indicado por Roberto Cardoso, esta teleologia ou paradigma da ordem, perpassa

tanto as temáticas quanto os próprios conceitos centrais da antropologia. Podemos falar que um

exame crítico de dois dos principais conceitos da disciplina, sociedade e cultura, é necessário

exatamente para compreender como a idéia de ordem determina suas definições, e como por outro

lado, é preciso reformular o enquadramento teórico dos conceitos para inseri- los num outro

paradigma.

1.4 – A crítica da crítica da antropologia: os conceitos de “sociedade e cultura”

Para entender as posições teóricas assumidas nos estudos de antropologia política é preciso

fazer um estudo genealógico dos próprios conceitos e temas estruturantes e geradores da

antropologia enquanto saber científico. É impossível não falar, mesmo que rapidamente da história

da antropologia e das diferentes teorias que se construíram a partir de diferentes objetos. Nesse

sentido as próprias “formas científicas de classificação” dos saberes e disciplinas podem se

constituir num ponto de partida: “...Meyer Fortes distinguiu duas tradições na antropologia sócio-

cultural: uma sociológica que ele associou com Maine, Morgan, MCLennan e seus descendentes

estruturais funcionalistas; uma cultural que ele associou com Tyler, Frazer e a escola Boasiana”.

(de Zengotita, 1984, p.10).

Dessa maneira, os conceitos de “sociedade e cultura” foram fundamentais para agregar,

mesmo a posteriori, um conjunto heterogêneo de teses, objetos e métodos oriundos de diferentes

teorias (evolucionismo, difusionismo, estrutural- funcionalismo, estruturalismo e processualismo) e

definir em termos mais amplos, identidades e linhas de descendência teóricas e metodológicas

dentro da antropologia e das ciências sociais. De uma certa maneira, estas duas grandes “formas da

antropologia” – social e cultural – se construíram relativamente por oposições pontuais e táticas,

tanto numa ordem conceitual geral quanto na explicação de processos específicos.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Os conceitos “sociedade e cultura” normalmente funcionavam por realizar a fusão de

“palavras e coisas”, no sentido que tendiam a ser ao mesmo tempo conceitos do pensamento

científico e realidades objetivas que eram tomadas como objetos de estudo. As críticas recíprocas

dos conceitos de “cultura” e de “sociedade” na realidade acabam por provocar um efeito de

deslocamento importante: desloca-se a atenção dos conjuntos teóricos mais amplos em que tais

conceitos se enquadram e dos contextos de formação dessas categorias (ou pelo menos do

significado que se consolidaria dentro das ciências sociais). E estes contextos explicitam alguns

pontos de convergência importantes. É esta convergência epistemológica e política que

pretendemos elucidar.

Com relação ao conceito de sociedade, trata-se menos de determinar a sua origem que a

gênese de seu sentido e de sua centralidade dentro de uma certa linha do pensamento cientifico. A

explicação que passou a recorrer à noção de sociedade, fazia parte de um movimento de

racionalização que procurava opor-se as explicações religiosas e biológicas, procurando assim

razões sociais. Podemos indicar aqui o livro “A Sociedade Antiga” de Lewis Henry Morgan como

uma matriz importante para essa reflexão4.

O conceito de sociedade – e indissociavelmente ligado a ele, o de evolução (e/ou progresso)-

estrutura uma das linhas de construção da análise antropológica e sociológica. O conceito de

evolução foi para a antropologia no século XIX um centro de gravidade sobre o qual tudo mais se

apoiava, teoria e métodos de pesquisa. Sabe-se que este momento da segunda metade do século

XIX é crucial para a definição da própria antropologia enquanto ciência (Stocking Jr, 1984 e 1991).

Com uma análise do conteúdo de certos elementos do pensamento evolucionista de Morgan,

poderemos delimitar alguns problemas importantes. No prefácio do primeiro volume do livro “A

Sociedade Antiga”, o autor indica três categorias de fatos que marcariam o “desenvolvimento ou o

progresso” das sociedades pelos três diferentes períodos étnicos (selvageria, barbárie e civilização):

o Estado, a Família Monogâmica e a Propriedade. O seu livro inteiro descreve como as inovações

tecnológicas e as instituições se desenvolvem paralelamente através dos diferentes períodos étnicos,

sendo que:

“A idéia de propriedade, finalmente, formou-se lentamente no espírito humano, mantendo-se embrionária e pouco desenvolvida durante períodos extremamente longos. Surgiu no período do estado selvagem, mas foi necessária toda a experiência adquirida durante certo período e no seguinte, o da barbárie, para que o germe desta idéia se desenvolvesse e o espírito humano estivesse apto a submeter-se a sua influencia e ao seu domínio. A sua predominância como sentimento marca o início da civilização”. (Morgan, op.cit,p. 16).

4 Sem esquecer também os estudos de Augusto Comte dos anos 1820 e Emile Durkheim dos anos 1890, que tomariam o “social e a sociedade” como eixo de estruturação de uma prática e teoria científica. Sobre o positivismo falaremos mais adiante.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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A noção de evolução encerrava e sintetizava ao mesmo tempo uma espécie de auto- imagem

positivada e um conjunto de atributos que afirmavam a superioridade de determinadas “sociedades”

sobre outras (superioridade de conhecimento, tecnologia, organização). Logo, o conceito de

sociedade aparece como parte de um processo histórico geral que tendia a diferenciar estas

sociedades; também criava um esquema classificatório “hierarquizante” que subordinava todos os

povos as formas superiores de civilização. É como arremata Kuper:

“Primitive society was organic whole. It then split into two or more identical building blocks. (This idea went back to Spencer). The components units of society were exogamous, corporate descent groups. By 1880s it was generally agreed (despite Maine’s continued dissent) that these groups were ´matriarchal´, tracing descent in the female line. (...) These social forms, no longer extant, were preserved in the languages (especially in kinship terminologies), and in the ceremonies of contemporary ´primitive peoples´.

It is striking how much agreement there soon was even on matters of detail. By the last decade of the nineteenth century, almost all the new specialists would have agreed with the following propositions.

The most primitive societies were ordered on the basis of kinship relations

Their kinship organization was based on descent groups

There descents groups were exogamous and were related by a series of marriage exchanges

Like extinct species, these primeval institutions were preserved in fossil form, ceremonies and kinship terminologies bearing witness to long-dead practices.

Finally, with the development of the private property, the descent groups withered away and a territorial state emerged. This was the most revolutionary change in the history of humanity. It marked the transition from ancient to modern society. (Kuper, 1988, p.6-7).

Logo, as idéias de Estado e Propriedade Privada, com destaque para esta última, seriam os

indicadores principais da civilização entendida como evolução ou progresso das sociedades

humanas5. Poderíamos citar ainda o exemplo de Henry Maine, “Ancient Law”, livro que trata da

evolução noções de contrato, herança e propriedade na sociedade antiga, tomando por base o

Império Romano, e que é situado também dentro da história da antropologia 6.

Na realidade, o conceito de “sociedade” tal como incorporado na análise evolucionista, se

confunde com o de “sociedade civil”, ou seja, “sociedade burguesa”, que é erigida em modelo e

última forma de sociedade (modelo a partir do qual as demais sociedades denominadas “primitivas”

são concebidas e hierarquizadas). O nascimento da “sociedade civil”, indicado por Morgan como

marco da “civilização” permite a formulação de um conceito de sociedade que em termos gerais

tenta reproduzir positiva ou negativamente todos os traços da sociedade civil ou burguesa

(positivamente no sentido de que estabelece como parâmetros certos traços e procura encontrá- los

5 As categorias evolução e progresso aparecem de forma eventual dentro do prefácio, mas designando sempre o movimento de ascensão de um estágio a outro dentro do esquema classificatório de Morgan. 6 Na história da antropologia de Eduard Evans-Pritchard, Maine e Morgan ocupam lugares destacados na formação da disciplina, junto com Eduard B.Tylor, James Frazer e Mclennan. Stocking Jr os inclui também dentro do grupo formador da antropologia, que iriam dar a dinâmica do desenvolvimento posterior da disciplina.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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nas demais sociedades; negativamente, no sentido que as sociedades podem ser definidas pela

ausência de tais traços).

Basta ver que as noções civilization, civilité, formadas a partir do século XVIII, são

derivativos modernos de conceitos da antiguidade, como civilitas (ver Elias, op.cit, p. 68). Essa

etimologia encerra em si uma profunda importância para o ordenamento simbólico-social do mundo

moderno. A “sociedade civil”, e a projeção nela de toda a superioridade do ocidente, encontra

paralelos na função material e ideológica que ela cumpriu na antiguidade e também na Idade Média:

“In the writings of the Cicero, Virgil, Livy, Polybus, Tacitus and Sallust – the authors, on whom most subsequent theoreticians of empire from Machiavelli to Adam Smith realist most heavily – the Roman Imperium constituted not merely a particular political order, but more significantly, a distinctive kind of society, whose identity was determined by what came to be broadly described as the civitas. (...) For the Anciens, both Greeks and Roman, cities were the only places where virtue could be practiced. They were, crucially, communities governed by the rule of law wich demanded adherence to a particular kind of life, that of the ´civil society´ (societas civilis), and which were closed identified with the physical location the citizens happened to inhabit. (…) (Pagden, 1995, p.17-18).

Da noção de civitas, derivaria tanto “sociedade civil” quanto “civilização”. Categorias e discursos

que como vimos acima estão mais relacionados do que normalmente se pensa.

A noção da sociedade primitiva e do selvagem como integrando um “tempo e um espaço

externo e inferior” ao da civilização se constrói sobre um acervo de conhecimentos históricos que

opera numa longa duração temporal (ver Fabian, 1983). Se o selvagem não cumpriu sempre a

mesma função e não foi sempre apreendido da mesma maneira, em todas as diferentes maneiras

como ele aparecia e aparece no discurso ocidental, ocupa sempre a posição de inferioridade em

relação a civitas (a sociedade civil). E o selvagem nunca fala, é sempre o personagem de um

diálogo imaginário escrito pelos europeus: “A atitude da pessoa em relação ao homem simples na

sua forma mais extrema, o selvagem – é em toda parte, na segunda metade do século XVIII, um

símbolo de sua posição no debate interno, social. (Elias, op.cit, p. 55). O selvagem é um

personagem que cristaliza em si todas as qualidades negativas que a civilização/sociedade civil

recusa e supera; na luta permanente entre eles, a vitória pertence (ou tem de pertencer) aos valores

da civilização (propriedade, estado, letramento, erudição, polidez, urbanidade).

A idéia de sociedade civil (caracterizada pela existência da propriedade privada, do Estado e

do individuo) foi uma invenção de filósofos liberais do século XVII, sendo tomada como verdade

histórica por Morgan, Maine, Frazer, não sendo em nenhum momento questionada nas tradições

francesa, inglesa ou alemã dos discursos sobre a cultura. É preciso considerar criticamente este

acervo liberal das bases filosóficas da antropologia. Inclusive porque todos os grandes temas da

antropologia do século XIX e também do início do século XX, correspondem fundamentalmente às

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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características atribuídas ao “estado de natureza” dos filósofos liberais e os valores exaltados nas

noções de sociedade, cultura e civilização, aos atribuídos à “sociedade civil”7.

A busca de uma crítica e de uma formulação cientifica para o conceito e o estudo da

“sociedade” seria desenvolvida por Augusto Comte e depois pelo principal sistematizador da sua

proposta, Emile Durkheim. É importante observar que tal como concebida por Comte e Durkheim a

idéia de “sociedade” também se inscreve numa concepção geral de história na qual a idéia de

“progresso” ocuparia um lugar central.

É necessário mostrar como esta teleologia da ordem é transmitida dentro dos conceitos,

temas e teses levantados por Comte através de Durkheim, e como esta mesma teleologia surge

também dentro dos usos evolucionistas da idéia de sociedade.

Os estudos de Augusto Comte compreendem obras diversas, como “Opúsculos de filosofia

social: apreciação sumária do conjunto do passado moderno” (1820); “Prospectos dos trabalhos

científicos necessários para reorganizar a sociedade” (1822); “Considerações filosóficas sobre as

idéias e os cientistas” (1825); “Considerações sobre o poder espiritual” (1825-26) e entre 1830-

1854 as lições do Curso de Filosofia Positiva e o “Sistema de Política Positiva ou tratado de

sociologia instituindo a religião da humanidade”. Com relação ao pensamento de Comte, Raymond

Aron observou: “Mas a sociologia que Comte quer criar não é a sociologia prudente, modesta,

analítica de Montesquieu (...) Sua função é resolver a crise do mundo moderno, isto é, fornecer o

sistema de idéias cientificas que presidirá a reorganização social” (Aron, 2002, p.92).

Desta maneira, o pensamento sociológico surge com uma preocupação: a “crise”, provocada

pela transformação de uma sociedade teológico-militar em uma sociedade científico-industrial. A

idéia de uma “reorganização da sociedade” a partir da ciência faz parte da própria análise que

considera que a ciência alçou o lugar central na sociedade moderna.

Um elemento importante no pensamento de Comte, é a recusa da noção de guerra; de acordo

com sua teoria geral do conhecimento e da evolução da sociedade, a emergência da sociedade

científico- industrial tinha eliminado a importância da guerra. “A guerra tinha sido necessária para

obrigar ao trabalho regular homens naturalmente anárquicos e preguiçosos, para criar Estados de

grande extensão, para que surgisse a unidade do Império Romano, na qual se difundiu o

cristianismo e do qual surgiu finalmente o positivismo. A guerra tinha desempenhado uma dupla

função histórica: o aprendizado do trabalho e a formação dos grandes Estados”. (Aron, op.cit,

p.106).

7 Parentesco, magia, religião e totemismo, seriam características contrastantes com aquelas atribuídas as sociedades européias: o Estado baseava-se no território, não no parentesco, como supostamente os sistemas políticos “primitivos”; as religiões primitivas contrastariam com o monoteísmo; o pensamento mágico se oporia ao pensamento racional científico. Por fim, a guerra das sociedades primitivas se oporia a paz e ao direito (enquanto conjunto de normas jurídicas derivadas do contrato social) da sociedade civil.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Dois conceitos fundamentais no pensamento de Comte, e que se inscrevem na sua teoria

geral, são os de dinâmica e estática. É como comenta Aron:

“A estática social trouxe à luz a ordem essencial de toda a sociedade humana; a dinâmica social retraça as vicissitudes pelas quais passou essa ordem fundamental, antes de alcançar o termo final do positivismo. (...) À dinâmica está subordinada a estática. É a partir da ordem de toda a sociedade humana que se pode compreender a história. A estática e a dinâmica levam aos termos de ordem e progresso (...) No ponto de partida, estática e dinâmica são simplesmente o estudo da coexistência e da sucessão. No ponto de chegada, são o estudo da ordem humana e social essencial, de suas transformações e de seu desenvolvimento” (Aron, 2002, p. 122)

Não é que inexista a mudança no pensamento de Comte; na realidade a dinâmica e a estática

estão conjugadas, de maneira que a alternância entre ambas expressa o progresso, que é

caracterizado pela re-instauração da ordem. A mudança é assim subordinada a ordem, num esquema

teórico-histórico, em que a guerra perde sua centralidade para a economia, e a religião para a

ciência.

Mas o que nos interessa aqui é a elevação da teleologia da ordem, presente no pensamento

de Comte, a dimensão central do pensamento sociológico, através de Emile Durkheim, e que se

difundiria em grande medida, através da antropologia social estrutural- funcionalista e estruturalista.

Nas suas obras a “Divisão do Trabalho Social” (1893) “O Suicídio” (1897) e “As Formas

Elementares da Vida Religiosa” (1912), os temas e teses principais apontam nessa direção,

especialmente nas suas duas primeiras obras.

No texto “Da Divisão do Trabalho Social”, ele afirma: “As paixões humanas só se detêm

diante de um poder moral que respeitam. Se falta uma autoridade moral desse gênero, impera a lei

do mais forte; latente ou agudo, há um estado de guerra crônico... (Durkheim, apud in Aron, 2002,

p.457). Há então um problema, uma preocupação que perpassa o estudo da divisão do trabalho e da

sociedade: “O que lhe interessa, acima de tudo, chegando ao ponto de obcecá-lo, é a crise da

sociedade moderna, definida pela desintegração social e pela debilidade dos laços que prendem o

individuo ao grupo”. (Aron. Op.cit, p.486).

Em “O Suicídio”, Durkheim desenvolve sua interpretação sociológica do fenômeno. Mas é

na tipologia e na tese que ele estabelece para explicar o suicídio que fica evidente sua concepção de

sociedade centrada numa teleologia da ordem, das normas. Quando ele considera as oscilações

verificadas nas taxas de suicídio, afirma:

“É preciso portanto que nossa organização social se tenha modificado profundamente no curso deste século para ter determinado de tal modo a elevação da taxa de suicídio. Ora, é impossível que uma alteração ao mesmo tempo tão grave e tão rápida não seja mórbida, pois uma sociedade não pode mudar de estrutura com tanta rapidez. Ela só

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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adquire outras características mediante uma série de modificações lentas e quase imperceptíveis e ainda sim as transformações possíveis são limitadas”. (Durkheim, apud in Aron, 2002 p.490)

Vemos que o estudo da divisão do trabalho e do suicídio remetem ao problema da crise e da

mudança, mas se erigem ao mesmo tempo, numa barreira ao estudo da mudança social, que aparece

associada à crise e a patologia (expressa pela exacerbação das taxas de suicídio e crime, por

exemplo). A mudança social, de uma sociedade teológico-militar para uma sociedade científico-

industrial, é marcada assim pela crise. Seria necessário o re-estabelecimento de uma autoridade

moral que eliminasse as causas da patologia e re- instaurasse a ordem (as normas). A noção de

“anomia” (ausência de normas, ou conflito entre normas que “governam” os indivíduos) seria assim

o conceito que sintetiza ao mesmo tempo a descrição da crise e a sublimação da concepção da

mudança social8.

Essa concepção geral que estrutura o sentido e os usos do conceito de sociedade, estabelece-

se em torno do que estamos chamando de teleologia da ordem; uma visão que ao mesmo tempo

toma como base idéias diferentes, como a de que a mudança é patológica, ou que a mudança está

subordinada a estática e tende sempre a ordem; ou ainda que a mudança é pensada como uma

evolução do simples para o complexo, processo avaliado através da tecnologia e organização social.

Mas o que é fundamental, é que tanto na linha de pensamento que surge através de Comte, quanto

naquela de Morgan, a mudança está subordinada a ordem. Existe uma outra característica

fundamental desta teleologia da ordem: a sociedade civil burguesa é tomada como modelo, como

ponto de referência histórico; suas formas de organização é que são denominadas complexas, suas

características internas (organização político-territorial, tecnologia, padrão demográfico, economia

e valores) é que são utilizadas como critérios de avaliação e hierarquização das sociedades. Quanto

mais distante deste modelo, menor o “status” sociológico (simples, primitivo), quanto mais próximo

dele, maior o status das sociedades (complexas, modernas).

Na concepção evolucionista de Morgan, o Estado surge como uma transformação (por

evolução das condições técnicas e demográficas) que obriga a organização social a passar do

“parentesco ao território” como base do sistema político, enquanto que na linha de pensamento de

Comte, existe uma recusa da noção de guerra, no sentido que ele entende que a sociedade estava

realizando uma passagem de um estágio teológico-militar (o feudalismo) a um estágio científico-

industrial (o capitalismo); a sua teoria geral da realidade prevê assim uma composição entre uma

“dinâmica e uma estática social”, em que a ordem suplanta a mudança e possibilita o progresso; a

guerra e o conflito são recusados no esquema geral, e logo a “luta” é não somente ignorada, mas

8 Em “A Divisão do Trabalho Social” Durkheim desenvolve uma teoria das sanções e do crime, e indica que as sanções são formas de re-estabelecer a ordem (uma reparação feita à consciência coletiva). (Aron, op.cit, p.468).

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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sistematicamente recusada; na concepção evolucionista o Estado aparece como uma aquisição da

civilização; na positivista, como realização da idéia de “ordem” e meio de eliminação da guerra e

do conflito. A combinação histórica entre as visões evo lucionista de Morgan e positivista de

Durkheim produziriam um duplo efeito: a recusa do conflito em geral, da luta e da guerra e uma

mistificação histórica acerca da origem do Estado, que nunca é colocado como um problema

histórico concreto, levando-se assim a uma segunda negação da conquista e da dominação, da luta e

da guerra.

O conceito de cultura (que remete a noção de kultur alemã, por sua vez uma noção que se

opunha ao conceito de civilisation) também leva marcas da ordem. Adam Kuper, no livro “Cultura

– a visão dos antropólogos” empreende uma análise da gênese do conceito de cultura para explicar

sua significação cientifica e seus usos sociais, e fazer sua crítica9. Nesse empreendimento, ele

identifica três grandes discursos nacionais sobre a “cultura”: o germânico, o inglês e o francês, que

se construíram através de oposições e composições, e profundamente vinculados aos contextos

sociais:

“Em nenhum outro lugar, o argumento contra o darwinismo foi formulado com maior premência e intensidade que nos idos de 1880, em Berlim. O mais proeminente darwinista da Alemanha, Ernest Haeckel, aduziu conclusões políticas da teoria darwinista que deixou o próprio Darwin bastante apreensivo. (...)

O dogma de Haeckel espantou seu ex-professor, Rudolf Virchow, maior patologista alemão, político proeminente de visões liberais e mentor da Sociedade de Antropologia de Berlim. Do ponto de vista metodológico, sua objeção era quanto a uma conclusão teórica prematura. (...)

O colega de Virchow, Adolf Bastian (que em 1886 se tornou o primeiro diretor do grande museu de etnologia de Berlim), tentou demonstrar que, assim como as raças, as culturas são híbridas. (...)

Franz Boas, aluno de Virchow e Bastian, introduziu esta abordagem na antropologia americana. À medida que esta se desenvolvia numa disciplina acadêmica organizada no início do século 20, ela era definida por uma luta épica entre Boas e sua escola e a tradição evolucionista, representada nos EUA pelos discípulos de Lewis Henry Morgan, cujas narrativas triunfalistas de progresso utilizavam as metáforas da teoria de Darwin”. (Kuper, 2002, p.33-35).

O conceito de cultura empregado por Boas na sua crítica do evolucionismo, de acordo com

a história da antropologia traçada por Kuper, derivava da categoria Kultur, tal como desenvolvida

9 Depois de realizar uma ampla descrição do uso da categoria cultura em sociedades de capitalismo avançado e periférico, por empresas, intelectuais e grupos “subalternos” ele conclui: “Não é preciso dizer que cultura tem um significado bastante diferente para os pesquisadores de mercado em Londres, para um magnata Japonês, para os habitantes da Nova Guiné e para um religioso radical em Terá, sem falar em Samuel Hutington. Há entretanto, uma semelhança familiar entre os conceitos que eles têm em mente. Em seu sentido mais amplo, cultura é simplesmente uma forma de falar sobre identidades coletivas.” (Kuper, 2002, p. 24) e mais adiante: “A idéia de cultura podia realmente reforçar uma teoria racial da diferença. Cultura podia ser um eufemismo para raça, estimulando um discurso sobe identidades raciais enquanto aparentemente abjurava o racismo. Os antropólogos podiam distinguir raça e cultura, mas na linguagem popular cultura se referia a uma qualidade inata. A natureza de um grupo era evidente a olho nu, expressada igualmente pela cor da pele, pelas características faciais, pelas aptidões, pelo sotaque, pelos gestos e pelas preferências de alimentação.” (Kuper, 2002, p. 35-36).

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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pelos intelectuais alemães ao final do século XIX. Este conceito foi formado num processo de luta e

crítica, de uma elite de intelectuais alemã, a francofilia e a noção francesa de civilisation, como nota

Kuper:

“A noção de Kultur desenvolveu-se em tensão com o conceito de uma civilização universal associada à França. O que os franceses consideravam civilização transnacional, na Alemanha se considerava fonte de perigo para as culturas locais. Na própria Alemanha, a ameaça era bastante imediata. A civilisation estabelecera-se nos centros de poder político, nas cortes francófonas e nas cortes francófilas alemães. Num marcado contraste com intelectuais franceses e ingleses, que se identificavam com as aspirações da classe dominante, os intelectuais alemães se definem em oposição aos príncipes e aristocratas”. (Kuper, 2002, p. 54).

Dentro do contexto da Alemanha do século XIX, duas grandes vertentes estiveram

envolvidas na produção do discurso sobre a Kultur:

“Mais recentemente, WooddruffD.Smith aprimorou a genealogia de Ringerem Politics and Sciences of Culturen Germany, 1840-1920. Ele extrai uma linha de reflexão acadêmica liberal sobre cultura, uma Kulturwisenschaft distinta da Geistewissensschaften da tradição hermenêutica. Essa maneira de pensar se aproximava mais das idéias liberais francesas e inglesas; e Smith afirma que Herder e Humboldt eram mais solidários ao iluminismo do que pareciam. Os acadêmicos da tradição liberal abordavam a cultura com um espírito científico, buscando leis de desenvolvimento. (Kuper, 2002, p. 59).

Dessa maneira, o conceito de “cultura” difundido na antropologia durante o século XX, deve

ser remontado ao conflito de classe e nacional dentro e entre Alemanha e França, no qual as

categorias kultur e Civilisation10, respectivamente, cumpririam um papel central:

“Civilização descreve um processo ou, pelo menos, seu resultado. Diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessantemente para a frente. O conceito alemão de kultur, no emprego corrente, implica uma relação diferente com o movimento. Reportam-se a produtos humanos que são semelhantes a ´flores do campo´, a obras de arte, livros, sistemas religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um povo. O conceito de kultur delimita. (...)

Em contraste, o conceito alemão de kultur dá ênfase especial a diferenças nacionais e a identidade particular de grupos. Principalmente em virtude disto o conceito adquiriu em campos como a pesquisa etnológica e antropológica uma signif icação muito além da área lingüística alemã e da situação em que se originou o conceito”. (Elias, 1994, p. 24-25)

Norbert Elias, analisando a formas de constituição e variação da noção de Kultur, indica

também a função e vinculação concreta a grupos sociais:

10 É interessante notar que Kuper observa que essa oposição não seria absoluta: “Essas ideologias contrastantes poderiam alimentar a retórica nacionalista e suscitar emoções populares em épocas de guerra, mas até mesmo em sua faceta mais virulenta,elas nunca foram meramente discursos nacionais. Alguns intelectuais franceses simpatizavam com o contra-iluminismo apenas porque ele saia em defesa da religião contra a insidiosa subversão da razão. Depois da Batalha de Sedan, em 1870 (vencida assim disseram pelos professores da Prússia), a idéia de uma cultura nacional francesa penetrou numa França humilhada ...” Na Alemanha, havia uma antiga tradição do pensamento iluminista que jamais submergiu completamente, embora algumas vezes assumisse formas estranhas, quase irreconhecíveis. Nietzsche condenava seus compatriotas por sua caótica Bildung, formação cultural, corrompida por empréstimos e moda, que ele contrastava com a Kultur orgânica da França, que por sua vez equiparava com a própria civilização. Ele optava pela civilização...”. (Kuper, op.cit, p. 28)

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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“Se a antítese é expressa por estes outros conceitos, uma coisa fica sempre clara: o contraste de características que mais tarde servem para patentear uma antítese nacional, surge aqui principalmente como manifestação de uma antítese social. Como experiência subjacente à formulação de pares de opostos tais como ´profundeza´, ´superficialidade´, ´honestidade´ e ´falsidade´, ´polidez de fachada´ e ´autêntica virtude´, dos quais, dentre outras coisas, brota a antítese ente civilisation e kultur, descobrimos em uma fase particular do desenvolvimento alemão, a tensão entre intelligentsia de classe média e a aristocracia cortesã”. (Elias, op.cit, p. 46)

A categoria “cultura”, assim como o conceito “evolução” se formou na fricção de teorias

sociais (como o darwinismo) com ideologias políticas (como o liberalismo), como nos mostra a

história da sóciogênese destes conceitos antropológicos. Alem disso, o próprio conceito de cultura

(estamos assumindo aqui a genealogia traçada por Kuper, que remonta a Kultur), se define também

pela afirmação de um conjunto de características que expressaria a imagem de superioridade de um

determinado tipo de sociedade, assim como os conceitos de evolução e civilização; e assim como a

noção de evolução implica idéias de ordem, coerência e harmonia que expressam uma

individualidade superior11. Logo, uma grande parte da antropologia e das ciências sociais leva

consigo esta marca sócio-genética: estabelecidas sobre conceitos/categorias do discurso social e

político da burguesia européia, reproduzem grande parte de seu imaginário e discurso. A crítica do

evolucionismo, movida por Boas e posteriormente pela antropologia cultural, se fundamenta assim

numa categoria gerada por uma concepção política liberal conservadora.

Se o conceito de kultur no momento de sua gênese serviu para expressar a “auto-imagem”

da classe média alemã, “a essência de uma identidade”, o conceito de “cultura” – depurado apenas

relativamente – serviria para o mesmo fim, sendo passível de uso generalizado por qualquer grupo

social, mas sempre remetendo a idéia de uma identidade estável, essencial, o “ser” de uma entidade

coletiva. Cientificamente, o conceito de cultura teria a vantagem de contrapor-se ao etnocentrismo,

permitindo a valorização das sociedades colonizadas, que seriam colocadas num patamar de relativa

igualdade com os europeus por terem uma cultura (concebida pelos mesmos parâmetros

cognitivos).

As posteriores definições do conceito de “cultura” seriam profundamente marcadas pelos

contextos geradores, e também pela relação que os diferentes intelectuais mantinham com as

tradições de seus predecessores, de maneira que 12:

11 Como na definição de Baldus de cultura como “expressão harmônica do modo de ser, pensar e sentir de um povo”. 12 As críticas do evolucionismo foram processadas a partir de diversas perspectivas, mas seria principalmente na virada do século XX que elas iriam se consolidar. Uma das principais e mais difundidas críticas foi a realizada por Franz Boas, gestada e desenvolvida nos EUA e depois assumida por diversos antropólogos. O conceito de cultura se tornaria, a partir de então, uma categoria chave para a antropologia, tanto do ponto de vista da explicação da sociedade (que seriam analisadas em termos de sua cultura) quanto para a auto-designação dos próprios antropólogos. Mesmo nas versões estruturalista e estrutural-funcionalis ta da antropologia a noção de cultura cumpriria um papel chave (como em Lévi-Strauss e Malinowski)12.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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“Os argumentos modernos não recapitulam de forma precisa às controvérsias anteriores. Os contextos da época deixam sua marca. Cada geração moderniza o idioma do debate, via de regra, adaptando-o à terminologia cientifica do momento; evolucionismo do final do século 19, organicismo no início do século 20, relatividade na década de 1920. Metáforas emprestadas da genética competem, hoje em dia, com o jargão da teoria literária contemporânea. Entretanto, mesmo que fossem expressos em termos modernos, os discursos sobre cultura não são inventados livremente: eles remontam a determinadas tradições intelectuais que persistiram por gerações disseminando-se da Europa para todo o mundo, impondo concepções da natureza humana e da história ..”. (Kuper, 2002, p. 31)

Assim, o conceito de “cultura” foi definido em termos simbólicos e coletivos; apesar das

diferenças de interpretação (entre o estruturalismo de Lévi-Strauss, que buscou o modelo da

lingüística estrutural para definir a cultura enquanto sistema simbólico, ou o interpretativismo de

Geertz, que reivindicou a teoria literária e a cultura como “texto”, o conteúdo da cultura e sua

função eram similares - sistemas simbólicos que determinavam a vida e visão de mundo dos atores).

Na realidade entre o discurso científico e o discurso social generalizado sobre a definição de

cultura, existem pontos de convergência: a cultura representa as identidades, a cultura expressa

simbolicamente o “ser” dos grupos sociais - no sentido que se contrapõe ao avanço e a mudança

imposta pela “civilização” – tecnológica, industrial. Este é um conteúdo comum. O que tende a

mudar é a forma como são consideradas as diferenças culturais, que no discurso científico tendem a

ser percebidas por diferentes formas de “relativismo”.

Mas mesmo nas criticas pós-modernas do conceito de cultura, se assume de forma mais ou

menos implícita que “... as pessoas vivem num mundo de símbolos. Os atores são dirigidos e a

história é moldada (talvez inconscientemente) pelas idéias”. (Kuper, 2002, p. 41). Ou seja, na base

do conceito de cultura (ou em volta dele), estão uma série de pressupostos que apontam para os

processos de significação (atribuição de sentido e construção de símbolos) como o operador central

de explicação do mundo, e sua cristalização numa identidade estável e auto-reproduzida. Se o

conceito de “cultura” se apresentou como “visão crítica” da explicação evolucionista e do

determinismo biológico, ela também se desenvolveu relativamente em oposição à explicação

“social” – no sentido que tirou do conceito de sociedade o papel de “chave analítica”. Deslocamento

que implicava que a ênfase não estaria na forma como os seres humanos organizavam sua vida, mas

sim nas representações e formas de pensamento.

O paradigma da ordem é transcrito nos conceitos de sociedade e cultura, através de um

modo de percepção da mudança social. Duas formas de domesticação idéia de mudança social se

inscreveram na antropologia e sociologia através de uma bifurcação conceitual. Enquanto a idéia da

mudança social como etapa na restauração da ordem e reprodução social está associada ao conceito

de sociedade, o conteúdo do conceito de cultura levou a atualização da idéia de que a mudança é

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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apenas um estágio num processo inexorável de o desaparecimento das “identidades originais e o

ser” das sociedades. O conceito de “aculturação” expressa num certo sentido a fusão desta visão da

mudança como destruição inexorável de uma identidade originária como a idéia de cultura.

A sócio-gênese dos usos e sentidos antropológicos, das categorias “sociedade e cultura”,

revela que essas categorias se formaram em momentos de luta política e foram construídas por

intelectuais que tinham vinculações de classe, profissionais e políticas muito específicas. Muitos

dos trabalhos fundadores da antropologia seriam realizados por juristas13 que ao mesmo tempo em

que estudavam o direito e a propriedade em suas origens, buscavam legitimar a propriedade

privada, o Estado e formular uma teoria científica da superioridade das sociedades ocidentais ou

“civilizadas” sobre as demais. A “crítica” ou as “críticas” formuladas pelos diferentes conjuntos de

ação teórica (difusionistas, boasinaos, durkheimianos, estrutural- funcionalistas) não se estenderiam

para estas questões. Ao contrário, ao aperfeiçoar os conceitos e definições, levantariam

involuntariamente uma cortina de fumaça em torno deles. O conceito de cultura e a idéia de

relativismo serviram para contrapor as formulações evolucionistas em relação a certos tópicos

(como a explicação pela biologia, a idéia de origem única da humanidade); o conceito de sociedade

serviu para elaborar igualmente uma crítica das explicações religiosas, psicológicas e biológicas do

social. A “crítica” foi o meio central pelo qual o próprio pensamento cientifico (sociológico e

antropológico) se desenvolveu. Entretanto é necessária uma “crítica da crítica”, no sentido de

aprofundar a crítica política e epistemológica e alcançar uma outra forma de explicação da mudança

social e das relações de poder. Visto que os estudos de antropologia política e os estudos sobre

cultura (aculturação e mudança cultural) sempre tenderam ou a ver as sociedades e as identidades

culturais como estáticas, ou quando estudavam a mudança, a concebiam como “anomias”, que

levariam as sociedades e culturas ou a destruição e desaparecimento, ou a restauração da ordem

anteriormente existente.

Não podemos ignorar que os discursos e pressupostos da antropologia são profundamente

condicionados por uma transmissão contínua de representações ideológicas de contextos históricos

e nacionais a outros. Morgan, como um dos fundadores da antropologia norte-americana, deu as

bases para formação do Bureau de Etnologia de Powell, onde seria formulado o conceito de

aculturação, para designar as relações entre sociedades indígenas e o Estado-Nacional (ver Kessing

Jr, 1986, p.19). A reformulação do conceito de aculturação (ou sua definição), por Linton, Redfield

e Herskovits em 1936, no “Memorando sobre a Aculturação”, estabeleceria as bases para

antropologia cultural boasiana do pós-II guerra, que apesar das rupturas, tinha certas continuidades

com estudos evolucionistas, já que retomava conceitos e temáticas formuladas por eles. O

evolucionismo, ou os estudos e discursos que depois seriam classificados sob tal rubrica, estava

13 Este é o caso de Henry Maine, que escreveu o livro “A Lei Antiga”.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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profundamente imbricado nos valores e no imaginário burguês e nacionalista. As críticas do

evolucionismo, direcionadas para a “noção de progresso e ao determinismo biológico” (ver

Stocking Jr,1984), jamais questionaram este imaginário e suas bases epistemológicas.

Sob a influência de categorias como sociedade e cultura e principalmente de um

determinado o modo de cognição que lhes é subjacente, ficamos reféns de uma determinada ótica de

interpretação da mudança e reprodução social e da própria sociedade. A noção de evolução é a

interpretação da mudança como “progresso” do inferior para o superior. O conceito de cultura pode

tender a visão da mudança como “degeneração” da diferença autêntica e “pura” para a “mistura”,

até a eliminação total de um grupo por outro pela aproximação de idéias e valores. O conceito de

cultura surge com uma marca: a da reação à mudança (no sentido da influência das idéias

estrangeiras sobre uma nação e classe determinada); estes conceitos entraram na antropologia

política encerrando em si a marca de uma concepção histórico-política.

Num certo sentido, apesar das múltiplas oposições, divergências (quanto a métodos, objetos,

modelos de referencias e teses explicativas) nas duas grandes tradições cientificas da antropologia –

as organizadas a partir do conceito de cultura e aquelas a partir do conceito de sociedade, existe

uma convergência, ou pelo menos uma cumplicidade, em torno de uma teleologia da ordem e de

coordenadas de conhecimento burguesas, liberais e conservadoras, que levam a deslegitimarão da

luta, da guerra e da mudança social (tanto de seu estatuto teórico quanto político). A dificuldade em

torno do estudo da mudança social está associada, em parte, as bases cognitivas das ciências sociais,

e também as bases materiais de organização da ciência dentro da sociedade capitalista. É preciso

uma ruptura com esta teleologia para alcançar uma via para o adequado estudo da mudança social,

das relações de poder e da luta de classes.

A questão colocada é, como romper com essa teleologia da ordem? É um problema ao

mesmo tempo político e epistemológico e só pode ser resolvido por meios igualmente políticos e

epistemológicos. Roberto Cardoso, no texto mencionado “A categoria (des)ordem na antropologia”

frisa com bastante propriedade que essa teleologia abrange quase todos os domínios da ciência:

“O exame dos paradigmas sustentadores das “escolas” consolidadas nas primeiras décadas do século permitem caracterizá-los como paradigmas da ordem, uma vez que é sobre essa temática que os oficiantes dessa disciplina se debruçam. Poder-se-ia dizer que a categoria ordem está explícita nas diferentes “escolas”, enquanto noção devidamente tematizada em seus respectivos discursos. Senão vejamos: o paradigma racionalista, já em seus primeiros passos na École francaise, aplica-se tanto na questão da organização social (solidariedade mecânica e solidariedade orgânica) como na descoberta de formas elementares ordenadoras do pensamento primitivo, e, em seus últimos passos, no exercício radical da categoria, já no interior do moderno estruturalismo francês, como bem ilustra a conhecida máxima lévi-straussinana de que “a pior ordem é melhor do que a desordem”; na questão equacionada em termos de estrutura-social e de função social, destaca-se o paradigma estrutural-funcionalista particularmente no que diz respeito à instituição do parentesco e aos grupos organizacionais tão extensamente estudados na Britsh School; enquanto o paradigma culturalista, subjacente a

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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American Historical School of Anthropology, conduz a indagação para os processos culturais e ao estabelecimento de padrões ou regularidades culturais. A categoria de ordem implementa a investigação cientifica, teórica ou de campo, em todo o espaço ocupado por essas escolas. Tal a força dessa categoria no universo dessa disciplina que ela não apenas orienta o discurso das diferentes ´escolas´, a gramaticalidade da linguagem antropológica, o que constituiria a bem dizer o impensado da disciplina, como ainda manifesta -se no centro de sua problemática, largamente explicita em todos os índices ou sumários de quantos ensaios e monografias a antropologia conheceu em sua história”. (Cardoso de Oliveira,1997,p.92-93).

Dessa maneira, não se trata de um movimento exterior ou paralelo, trata-se de fazer uma ruptura

com a própria base cognitiva. Os principais efeitos dessa concepção centrada na ordem nas diversas

correntes foi uma tendência a, senão completa exclusão, pelo menos domesticação e deslegitimarão

da “subjetividade, do individuo e da história” (Cardoso de Oliveira, op.cit, p.93).

Roberto Cardoso apontou a necessidade de introduzir certos procedimentos associados a

uma postura de dissidência, de “desordem”, no sentido da criação uma lógica de oposição aos

princípios estabelecidos dentro da antropologia. Por exemplo, a história enquanto fator seria um

marcador de “desordem”, no sentido que introduzido na “estrutura social” implicaria uma

imprevisibilidade, eventualidade. (Cardoso de Oliveira, op.cit,p.95-96). Ele aponta que o

“paradigma hermenêutico”, representado pelo movimento da chamada antropologia interpretativa

ao mesmo tempo que criticava poderia corrigir os efeitos do paradigma da ordem, e assim

incorporar algumas formulações dos chamados “pós-modernos”. Roberto Cardoso chega a dizer,

acompanhando Feyerabend, que talvez “no limite seria necessário caminhar para um “anarquismo

epistemológico” (Cardoso de Oliveira, op.cit,p. 99).

Cabe registrar que a solução apresentada por Roberto Cardoso não implica uma ruptura com

o paradigma da ordem, mas apenas uma “reforma” de seus quadros, apresentado-se como uma

solução de “compromisso”. “Para concluir gostaria de voltar à questão da ordem e da desordem e

de suas implicações com a matriz disciplinar da antropologia. Haveria alguma possibilidade do

paradigma hermenêutico compor com os paradigmas da ordem o mesmo campo epistemológico de

tensão indicado na matriz disciplinar, concorrendo assim para o enriquecimento da

antropologia?” E ainda que: “e quem sabe aguardar a emergência de uma nova ordem, como uma

progressiva domesticação da desordem (inaugurada pela introdução da intersubjetividade, da

individualidade, da história) na disciplina..”. (Cardoso de Oliveira, op.cit,p.102). Alguns dos mais

proeminentes do movimento pós-moderno, como Marcus e Fisher, admitem essa coexistência.

O movimento proposto pelos pós-modernos, pela habilitação teórica da “história, da

subjetividade e do individuo”, representa mais uma liberalização no paradigma da ordem do que

sua rejeição. E de acordo com nossa análise, o ponto principal da teleologia da ordem, o que ele

visa realmente expulsar não são esses domínios (expulsos mais por efeitos colaterais do que

intenção direta). O que a teleologia e o paradigma da ordem visam expulsar é a idéia de mudança,

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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de conflito, luta e guerra, na realidade é uma espécie de “pacificação cognitiva” estruturada em

torno de conceitos e teses (sobre o mundo e a natureza). E devemos lembrar também que a própria

noção de “ordem” tem uma dupla transcrição, cognitiva e científica, social e política. A idéia de

ordem está associada às estruturas de poder, a recusa da mudança nas formas de organização

política. O que o positivismo fez, num certo sentido, mas também os teóricos da soberania como

Hobbes (ver Foucault, 1999), foram recusar a idéia de guerra, de violência, de luta em nome da

ordem, e ao associarem a “mudança” à luta, expulsaram ambas do domínio da ciência. A

manutenção da ordem era a manutenção do “poder”, dos ciclos de relações, verdades e hierarquias

engendradas por ele, e ao mesmo tempo, que lhes serviam de sustentáculos. A idéia de “anarquia”

foi utilizada como “anátema” aos opositores da Monarquia e do Absolutismo, da Igreja, como

Gracco Babeuf, que no seu Jornal comentava isso. Ou seja, a idéia de anarquia estava associada à

contestação do poder, a inversão da hierarquia, a mudança social e por isso era transcrita no

discurso dominante como “desordem”.

Na realidade, se a solução pós-moderna, centrando-se numa problemática estritamente

cognitiva representa suma solução de compromisso, de conciliação com o paradigma da ordem, a

ruptura epistemológica só se torna possível pelo recurso ao pensamento revolucionário. Somente aí

é possível estabelecer realmente um “anarquismo epistemológico” que se apresenta enquanto tal

exatamente pelas suas origens sociais e políticas.

1.5 - A Guerra das Sociologias: reflexões sobre ordem e mudança social.

O século XIX, marcado pela transição de uma sociedade “teológico-militar” a uma

sociedade “científico- industrial”, testemunhou uma profunda guerra de filosofias políticas e

sociologias. Foi um momento em que, dentro das frações da classe dominante, engendrou-se de

forma cada vez mais intensa um discurso cientifico e da autoridade da ciência, em oposição à

religião, que redundaria num cientificismo autoritário. Por outro lado, o desenvolvimento da luta de

classes, produziria diferentes e contraditórios esforços de sistematizar uma “ciência da sociedade”

que servisse também como instrumento de sua transformação revolucionária, como crítica da

religião e das ciências produzidas a partir das próprias classes dominantes.

O problema da origem da Sociedade e do Estado condicionou a definição teórica destes

mesmos conceitos. É interessante observar que, nos debates fundadores da antropologia, a

preocupação com a origem e a sociedade primitiva deram os contornos gerais da formulação de

uma teoria geral da sociedade e sua evolução. Mas no momento em que apareceu o livro de Henry

Maine, “A Lei Antiga”, não devemos perder de vista que o que estava em jogo não era um exercício

especulativo, ao contrário; o livro fazia parte de uma guerra de sociologias, que disputavam no caso

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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a orientação administrativa a ser adotada pelo Governo Britânico na Índia Colonial. Maine

desenvolveu uma teoria da sociedade que buscava apresentar uma explicação diferente da

concepção individualista de Bentham, que postulava a reforma da administração colonial britânica

na Índia. A teoria da família patriarcal como ponto de partida da evolução e não os indivíduos

livres, tinha uma conotação essencialmente filosófico-política. Depois, a crítica feita por Mclennan

e Morgan, deslocariam a problemática para a discussão da origem da sociedade em si, formulando a

tese de que as famílias matriarcais seriam o ponto de partida da evolução e não a família patriarcal

(Kuper, 1988). Desta maneira, o ponto de partida político delimitou o conjunto de alternativas do

debate (individuo X família, origem patriarcal X matriarcal), mas o conjunto das alternativas e seus

pressupostos não foram questionados.

As linhas de pesquisa cientifica que confluiriam na formação da antropologia e da

sociologia, começam entretanto, nos grandes debates políticos e filosóficos do século XIX. E estes

debates não falavam normalmente de objetos específicos (do parentesco, do sistema político, da

religião), mas sim de uma teoria geral da sociedade e da história, da qual se desprenderiam a

posterior os objetos e debates específicos. Assim, diferentes discursos sobre a ciência surgem

dirigidos a partir de diferentes posições sociais, convergindo no aspecto da crítica da religião, mas

diferindo nas teses e explicações de problemas específicos, e também na concepção histórico-

político geral que sustentam. É necessário compreender a guerra das sociologias, que não é senão

um enfrentamento de saberes histórico-políticos que tiveram destinos muito diferentes. É por meio

da compreensão desta guerra de saberes, e pela apropriação de certas teses e teorias, de forma

similar ao projeto genealógico, que iremos fixar marcos para o estudo da mudança social14.

Existem vários caminhos para uma crítica da “teleologia da ordem”, mas é impossível

chegar a uma crítica efetiva senão levarmos em consideração o socialismo e o pensamento

revolucionário enquanto fenômeno político e intelectual. Os saberes críticos da sociedade, dentro do

campo socialista, ao mesmo tempo reivindicavam para si um duplo estatuto: o da cientificidade e o

caráter de classe – em oposição a qualquer tipo de neutralidade. É neste acervo que iremos buscar as

referências metodológicas. 14 Segundo Foucault, o projeto genealógico consistiria em um duplo movimento: a incorporação do saberes sujeitados no discurso científico, a crítica das relações de sujeição que marca a vida dos grupos estudados: “Por saberes sujeitados eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados; saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes a baixo do nível de conhecimento ou cientificidade requeridos. E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não qualificados mesmo, foi pelo reaparecimento desses saberes: o do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, mas paralelo e marginal em relação ao saber médico, o saber do delinqüente, etc. – esse saber que denominarei saber das pessoas (e que não é de maneira alguma um saber comum, um bom senso, mas, ao contrario um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) foi pelo reaparecimento destes saberes locais das pessoas, desses saberes desqualificados, que foi feita a crítica . (...) .o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais.” (Foucault, 1999, p. 12-13)

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Uma teoria é o que poderíamos chamar de materialismo sociológico de Mikhail Bakunin e

que se propõe a tomar a própria mudança como elemento constitutivo da vida material, sendo a

noção de ação e de forças agentes as principais. Existe um debate político central para Bakunin: é o

problema do Estado e da Religião, que na realidade se confundem na sua formulação com a crítica

da teoria do direito divino dos reis e da relação Estado-Igreja, e com a crítica da teoria

contratualista, do liberalismo. A formulação de Bakunin se dá a partir da fusão de idéias

proudhonianas com a absorção crítica de idéias positivistas, condensadas no que ele denomina de

visão materialista.

Nesta teoria geral da realidade ele irá distinguir um mundo natural do mundo social, dentro

do conceito de natureza, que é sinônimo de universo material. É pela definição do conceito de

natureza que podemos ver sua concepção materialista:

“Podría decir que la naturaleza es la suma de todas las cosas realmente existentes. Pero eso me daría una idea completamente muerta de la naturaleza, que se presenta a nosotros, al contrario, toda movimiento y toda vida. Por lo demás, ¿qué es la suma de las cosas? Las cosas que son hoy no serán mañana; mañana se habrán no perdido, sino enteramente transformado. Me acercaré, pues, mucho más a la verdad diciendo que la naturaleza es la suma de las transformaciones reales de las cosas que se producen y que se producirán incesantemente en su seno; y para dar una idea un poco más determinada de lo que pueda ser esa suma o esa totalidad, que llamo la naturaleza, enunciaré, y creo poderla establecer como un axioma, la proposición siguiente:

Todo lo que es, los seres que constituyen el conjunto indefinido del universo, todas las cosas existentes en el mundo, cualesquiera que sea por otra parte su naturaleza particular, tanto desde el punto de vista de la calidad como de la cantidad, las más diferentes y las más semejantes, grandes o pequeñas, cercanas o inmensamente alejadas, ejercen necesaria e inconscientemente, sea por vía inmediata y directa, sea por transmisión indirecta, una acción y una reacción perpetuas; y toda esa cantidad infinita de acciones y de reacciones particulares, al combinarse en un movimiento general y único, produce y constituye lo que llamamos vida, solidaridad y causalidad universal, la naturaleza”. (Bakunin, 2003, p.3)

Essa visão materialista, que parte do conceito de natureza, na realidade se estende à

interpretação e explicação da sociedade, uma vez que esta é entendida como uma extensão –

particular e especifica – da própria natureza.

“(5) Sigo el uso establecido, separando en cierto modo el mundo social del mundo natural. Es evidente que la sociedad humana, considerada en toda la extensión y en toda la amplitud de su desenvolvimiento histórico, es tan natural y está tan completamente subordinada a todas las leyes de la historia, como el mundo animal y vegetal, por ejemplo, de que es la última y la más alta expresión sobre la Tierra. (Bakunin, op.cit, p.10).

Assim, o mundo social se apresenta sujeito a esta visão dinâmica: o mundo material é mundo da

contínua e permanente mudança e transformação. O pressuposto filosófico-cientifico da mudança

no mundo natural é o que dá fundamento para a crítica do teologismo e do liberalismo, de maneira

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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que ele formula uma teoria não apenas da relação mundo social-mundo natural, mas indivíduo-

sociedade.

“We are profoundly convinced that the entire life of men — their interests, tendencies, needs, illusions, even stupidities, as well as every bit of violence, injustice, and seemingly voluntary activity — merely represent the result of inevitable societal forces. People cannot reject the idea of mutual independence, nor can they deny the reciprocal influence and uniformity exhibiting the manifestations of external nature.

In nature herself, this marvelous correlation and interdependence of phenomena certainly is not produced without struggle. On the contrary, the harmony of the forces of nature appears only as the result of a continual struggle, which is the real condition of life and of movement. In nature, as in society, order without struggle is death”. (Bakunin, 2005)

Esta preocupação em desenvolver uma teoria geral da realidade, que compreendesse o

mundo social e natural, tinha como objetivo a contraposição aos pressupostos teológicos e liberais,

dos republicanos, monarquistas e conservadores do século XIX. Nesse sentido, existe uma

concepção muito específica sobre o lugar do conflito e da luta na sociedade e na história:

“Olhem para a toda a história e convençam-se que em todas as épocas e em todos os países em que há desenvolvimento e exuberância da vida, do pensamento, da ação criadora e livre, houve divergência, luta intelectual e social, luta de partidos políticos e é precisamente por meio dessas lutas, e graças a elas, que as nações foram mais felizes e as mais fortes no sentido humano dessa palavra. (...) Qual foi a época mais fecunda da história romana? Foi a da luta da plebe contra o patriciado. E que é que fez a grandeza e a glória da Itália na Idade Média/ Certamente não foram nem o papado e nem o Império. Foram as liberdades municipais e a luta intestina das opiniões e dos partidos..”. (Bakunin, 1975, p. 164-165). “Reparem que os que pregam a paz à viva força, a imolação das convicções opostas às necessidades duma união aparente, e que lançam as suas maldições no que chama a guerra civil, são sempre moderados, reacionários, ou pelo menos homens a quem falta convicção, energia e fé. Uma boa guerra civil, bem franca, bem aberta, vale mil vezes mais do que uma paz corrompida. Aliás esta paz nunca é senão aparente; sob a sua égide enganosa, a guerra continua, mas impedida de se manifestar livremente..”. (Bakunin, op.cit, p.165).

Neste sentido, o problema da definição conceitual da sociedade e da sua explicação ganha um

contorno completamente diferente. A idéia de “ordem”, a visão “patológica” da mudança, não

somente não está presente como é teoricamente combatida por outros pressupostos político-

cognitivos. A mudança-transformação contínua faz parte do mundo natural e social; a “luta pela

vida” que preside o mundo natural tem correspondência na luta política e de classes, no mundo

social 15.

15 A idéia da luta pela vida, de Darwin é utilizada por Bakunin como tese de explicação da do mundo natural. Ver “Considerações Filosóficas” , p. 18.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Na concepção anarquista-materialista de Bakunin, as categorias principais são as de ação,

luta e combinação; a mudança no mundo social e natural está associada ao papel que a ação

recíproca (as forças agentes e produtivas) desencadeiam pela sua combinação particular. A

mudança e a transformação não têm uma direção pré-definida, mas são relativamente caóticas,

indeterminadas; elas não se apresentam como um pré-concebido, mas como parte de funcionamento

do mundo material.

Essa discussão filosófico-política acerca da sociedade (sua origem, princípios, formas

elementares de organização e funcionamento) relacionam-se diretamente a bases da teoria

antropológica. Não somente a origem do Estado e da Sociedade; relação indivíduo x sociedade,

constituíram problemas originários da teoria social e antropológica, possuindo marcas políticas

fundamentais. A explicação evolucionista da sociedade (da origem social na família

patriarcal/matriarcal que evoluiria até o Estado) se relaciona a uma crítica das teorias contratualistas

liberais. Entretanto, a ruptura com o elemento individualista na explicação da origem da sociedade,

não representou a ruptura com a teoria da soberania, com os valores burgueses e etc. Estes

elementos permaneceram tanto nos conceitos quanto nas teses fundamentais da antropologia e das

ciências, como vimos anteriormente.

Neste sentido, não é possível buscar uma base neutra para a explicação da sociedade; todas

as teses e teorias explicativas da sociedade têm necessariamente um conteúdo filosófico-político

que não é possível ignorar sem pagar o preço da reificação das categorias e modos de cognição

atrelados as formas de dominação hegemônicas em uma sociedade. Trata-se não dos conceitos em

si, mas da seqüência, formas de organização, métodos de coleta e sistematização dos saberes e dos

seus efeitos práticos (intencionais ou não) no mundo real.

A diferença fundamental do pensamento socialista, pelo menos nos autores aqui

mencionados, é a ruptura fundamental com a teleologia da ordem no sentido em que, os

pressupostos da negação da guerra, do conflito e da luta de classes, e a visão patológica da mudança

social não se encontram presentes. Neste sentido, as formas de explicação da sociedade não se

amparam na “teoria da soberania” (ver Foucault, 1999), ou seja, não há o esforço de explicar a

Origem da Sociedade, do Estado pelas formas contratualistas.

Esta posição garante o estabelecimento de um efetivo anarquismo epistemológico, no

sentido da interiorização da mudança social, do conflito, da ação e da transformação como

determinantes do “ser” dos sujeitos e objetos do mundo real; a idéia da multi-causalidade ou da

pluralidade das forças agentes, orientará nossa abordagem das relações de poder e também da

mudança social. O conflito, a luta e a guerra como operadores centrais da organização social. Isto

implica também uma ruptura com a teoria da soberania do poder.

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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Por fim, retomando a discussão entre as grandes teorias sociais, entre uma concepção geral

de realidade centrada na “teologia da ordem” e uma concepção centrada numa visão da sociedade

como um processo anárquico (mais ou menos ordenado/desordenado porque em permanente

mudança), poderemos olhar para a etnografia e história das relações de poder entre os índios e o

Estado brasileiro de outra maneira. Essa perspectiva permitirá que demonstremos ao longo desse

trabalho a sociedade não é mais que um processo permanente de mudança social – mudança de

grupos que exercem o poder e suas técnicas e relações com outros grupos, mudanças nas

instituições existentes, mudança no sistema geral de relações entre classes dominantes, território e

meios de produção e de poder. Nada autoriza, muito pelo contrário, a suposição que existe uma

“ordem” original que as mudanças sociais quebram e que cabe a um arbitro externo e imparcial – o

Estado – restaurar. Nada indica que a ordem seja o destino final da mudança – já que no que diz

respeito às relações de poder, tanto a mudança social quanto a reprodução da dominação, dependem

da luta, da guerra.

1.6 – A antropologia política processualista e as ferramentas de análise.

A partir da crítica da perspectiva da teleologia da ordem, e da fixação de uma concepção

crítica de análise da mudança social e das relações, podemos tentar definir e (quando for o caso

redefinir) os conceitos principais que empregaremos ao longo desta tese como ferramenta de

análise. Dentro da antropologia, estaremos calcados na orientação dinâmica (ver Balandier, 1969) e

processualista (Palmeira & Goldman, 1996).

Os primeiros conceitos dizem respeito a uma tipologia geral, entre os sistemas sociais que

estão em mudança social e os sistemas repetitivos:

“É possível sentir a atuação das poderosas tensões que formam a vida nacional:rei e Estado contra o povo e o povo contra o rei e o Estado; o rei aliado aos plebeus contra os seus rivais, os irmãos-principes; a reação entre o rei e sua mãe e entre o rei e suas rainhas; e a nação unida contra os inimigos externos, numa luta pela sobrevivência com a natureza. Essa cerimônia não é apenas uma demonstração maciça de união, mas também uma ênfase no conflito, uma afirmativa de rebelião e rivalidade contra o rei, com afirmações periódicas de união com o rei e de retirada de poder do rei. A estrutura política é santificada na pessoa do rei, por ser essa estrutura a fonte de prosperidade e força que protege a nação interna e externamente. O rei é associado a seus ancestrais, pois a estrutura política se mantém através das gerações, embora reis e súditos nasçam e morram. (...) mas já ficou claro que os Suazi acreditam que a representação dramática das relações sociais,em toda a ambivalência destas,consegue unidade e prosperidade”. (...) “A aceitação da ordem estabelecida como certa, benéfica e mesmo sagrada parece permitir excessos desenfreados, verdadeiros rituais de rebelião, pois a própria ordem age para manter a rebelião dentro de seus limites. (...) Todo sistema social é um campo de tensões, cheio de ambivalências, cooperações e lutas contrastantes. Isso é verdade tanto para sistemas sociais relativamente estacionários – que me apraz chamar repetitivos – como para sistemas que mudam e se desenvolvem. Num sistema repetitivo os conflitos são resolvidos não por alterações

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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na ordem dos postos, mas por substituição das pessoas que ocupam estes postos”. (Gluckman, 1974, p. 20-23).

Os conceitos de sistema repetitivo e sistemas dinâmicos aplicam-se a realidades de grande

escala (por exemplo, a comunidade branco-zulu na África do Sul), e são caracterizados por conflitos

ou clivagens que marcam o desenvolvimento destes mesmos sistemas. A idéia da distinção entre

sistemas repetitivos e dinâmicos permitirá a construção de uma tipologia dos processos de mudança

social, já que a principal característica diferenciadora dos dois sistemas não é a existência ou

inexistência de mudanças, mas sim o tipo e o grau de mudanças verificadas em cada um deles16.

Não estamos utilizando o conceito de sistema social como definido pela escola estrutural-

funcionalista. Estamos entendendo sistema social como uma unidade aberta e flexível, mas que

abrange realidades de larga escala, e no qual podem ser destacados campos e arenas. O conceito de

“sistema social” – entendido enquanto conjunto de relações de interdependência - busca contrapor-

se a visão de que poderiam existir “grupos isolados” ou “pares de grupos isolados” de outros, e

marcar unidades sociais e territoriais globais mais amplas. Os conceitos de sistemas sociais

repetitivos e dinâmicos permitem uma caracterização do tipo de mudança social encontradas em tais

sistemas sociais.

No nosso entendimento, quando se trata do estudo das relações de poder, da sua gênese,

mudança e reprodução, não devemos esquecer que por maior que seja o caráter dinâmico das

relações e processos, os grupos sociais concretos agem para manter e ampliar seu poder. As noções

de campo e arena são fundamentais na análise e variações de escalas, entre o micro e o macro.

Principalmente porque a antropologia esteve teoricamente ligada a propostas entendidas como

micro-sociológicas, sendo importante a articulação destes contextos etnográficos com as sociedades

nacional e global (ver Revel, 1998, Oliveira Filho, 1998).

Os conceitos de “campo” e de “arena” serão aplicados para recortar conjuntos locais dentro

destes sistemas sociais globais. Referidos e intercambiáveis num certo sentido com o conceito de

situação, os conceitos de campo e arena tem suas especificidades. Usamos aqui os conceitos tal

como formulados por Marc J. Swartz, no livro “Local Level Politics”.

O autor emprega o conceito de campo para demarcar unidades de ação política, e a extensão

espacial e temporal do processo político (Swartz, 1968, p.6). Logo, o conceito de campo se

apresenta como uma ferramenta de focalização dos processos, que ao mesmo tempo realça o caráter

aberto das relações sociais e políticas e reduz o escopo da análise aos sujeitos que estão in loco.

16 “Em geral, é difícil classificar um sistema social particular como sendo repetitivo ou em transformação. As mudanças concretas dentro de um padrão repetitivo podem acumular-se gradualmente para produzir mudanças no padrão. Num sistema em transformação, há inúmeras mudanças repetitivas e toda uma seção de um sistema em transformação pode parecer repetitiva.”(Gluckman, 1987, p. 310).

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O “campo” seria assim definido: “Um campo é composto de atores diretamente envolvidos

no processo estudado, Seu escopo social e territorial e áreas de comportamento mudam quando

atores adicionais entram no processo ou participantes anteriores retiram-se e quando eles reúnem

novos tipos de atividades e/ou abandonam velhas na sua interação”. (Swartz, 1968). O conceito de

campo se apresenta também como tática de flexibilização analítica: “Campo é um conceito que

permite continuidade e mudança nas relações entre os participantes na política e não tem a mesma

qualidade rígida portada por termos mais comuns como sistema político e estrutura política”

(Swartz, ibdem).

A noção de “arena” aparece como conceito complementar ao “campo”. Swartz define assim

o conceito de Arena:

“A arena consistiria de indivíduos e grupos diretamente envolvidos com os que participam do campo mas não em si mesmos envolvidos no processo em questão. O conteúdo da arena incluiria os recursos, valores e regras dos componentes porém não estariam em uso no campo e os relacionamentos dos membros da arena a cada um e aos recursos seriam sua estrutura. O campo está incluído na arena e então os participantes do campo operam em no mínimo dois conjuntos de relacionamentos, a indivíduos e grupos e a recursos, regras e valores conectados com cada grupo”. (Swartz,op.cit, p.13).

Dessa forma arena se apresenta como uma “ampliação do olhar sobre o campo”, abrangendo

outras relações não manifestas nele. O processo político, ainda segundo Swartz, pode ser estudado

de três maneiras: 1) considerando a organização interna do grupo; 2) a organização do campo; 3) as

relações entre campo e arena. (Swartz,op.cit, p.38).

Os conceitos de situação social (ver Max Gluckman, 1987) e situação histórica (ver

Oliveira Filho,1988) serão duas ferramentas analíticas importantes. A noção de “situação social” é

desenvolvida por Gluckman nas suas formulações a partir da etnografia Zulu.

«A partir das situações sociais e de suas inter-relações numa sociedade particular, pode-se abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições, etc., daquela sociedade.» (Gluckman, 1988, p.228). “Denomino estes eventos de situações sociais, pois procuro analisá-los em suas relações com outras situações no sistema social da Zululândia. (..)Portanto, uma situação social é o comportamento em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões. (Gluckman, op.cit, p.228).

Segundo Oliveira Filho, a noção de situação social em Gluckman:

“O sentido mais conhecido, que o autor explicita em uma definição e materializa através de intensa discussão de um exemplo específico, é aquele que implica na sobreposição de três elementos: a) um conjunto limitado de atores sociais (indivíduos e grupos); b) ações e comportamentos sociais destes atores; c) um evento ou conjunto de

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eventos, que referencia a situação social a um dado momento do tempo.”. (Oliveira F, 1988, p. 55).

Logo, a noção de situação social fornece uma unidade agregada mínima para análise,

diferente do fluxo contínuo e total de ações que constitui a própria realidade. Além disso, as

situações sociais têm ainda uma função: explicitar e definir certos padrões nas relações sociais, ou

dizendo de outra maneira, modos de ação-reação entre os grupos, que correspondem a dinâmicas

estruturais, ou ao que Gluckman denomina “equilíbrios”.

As “situações sociais” podem ser relacionadas a outras situações sociais, dentro do presente

etnográfico, mas também a modos de distribuição do poder, a diferentes “equilíbrios” que

expressam a diferentes temporalidades históricas. Neste sentido, a noção de “situação social” é uma

chave para a análise de certas configurações sociológicas e históricas, já que permite ver tanto a

organização dentro de uma sociedade quanto correlacioná- la a um padrão historicamente

determinado.

A noção de situação histórica, formulada por Oliveira Fº deriva teoricamente da noção

situação social, e se apresenta como um desenvolvimento teórico desta perspectiva:

“... uso aqui a expressão situação histórica, noção que não se refere a eventos isolados, mas a modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais. (...) O que assim se designa é o resultado de uma análise situacional, pressupondo portanto o manuseio de situações sociais (no primeiro sentido) e da noção de campo. Trata-se de uma construção do pesquisador, uma abstração com finalidades analíticas, compostas dos padrões de interdependência entre os atores sociais, e das fontes e canais institucionais de conflito”. (Oliveira Filho, op.cit, p.57).

A noção de situação histórica se apresenta assim como uma forma de constituir um padrão

de relações a partir da análise das ações concretas dos atores sociais. O “equilíbrio” indicado por

Gluckman, corresponde aqui à noção de situação histórica.

Outros conceitos construídos com base na idéia de “processo social”, são os formulados por

Victor Turner, de dramas e empreendimentos sociais. Estes conceitos “são perpassados pela

idéia de que a vida social humana é a produtora e o produto do tempo, que torna-se sua medida”

(Turner, 1974,p.24). Estes conceitos se apresentam fundamentalmente como ferramentas adequadas

à análise da dinâmica social, no seu caráter essencialmente transformativo:

“Os funcionalistas da minha época na África tendiam a pensar a mudança como “cíclica” e “repetitiva” o tempo como o tempo estrutural, não o tempo livre. Como minha convicção sobre o caráter dinâmico das relações sociais eu vi o movimento tanto como a estrutura, a persistência tanto quanto a mudança. Eu vi as pessoas interagindo, e como os dias se sucediam, as conseqüências das suas interações. Eu então comecei a perceber uma forma no processo do tempo social. Esta forma era essencialmente dramática. Minha metáfora e modelo aqui foi uma forma estética humana, um produto

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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da cultura não da natureza. Uma forma cultural foi o modelo para um conceito científico” (Turner, 1974, 32).

Enquanto “unidades processuais”, esses conceitos são definidos da seguinte maneira:

“Os dramas e empreendimentos sociais– como também outros tipos de unidades processuais – representam seqüências de eventos sociais, que vistos retrospectivamente por um observador, podem se mostrar possuidores de uma estrutura. Tal estrutura temporal, diferente da estrutura atemporal (incluindo as estruturas conceptuais, cognitivas e sintáticas) está organizada primariamente através de relações no tempo em vez do espaço, embora, naturalmente, esquemas cognitivos sejam eles próprios o resultado de um processo mental e tenham qualidades processuais”. (Turner, op.cit, p. 34-35)

Neste sentido, sendo os dramas e os empreendimentos sociais unidades processuais, é

preciso indicar que se referem a tipos de processo social distintos, que recobrem diferentes

situações.

“Entre estas unidades processuais harmônicas estariam o que eu chamo de empreendimentos sociais primariamente econômicos em caráter, como quando um moderno grupo Africano decide edificar uma ponte, escola ou estrada, ou quando um grupo polinésio tradicional, como os Tikopia de Firth, decide preparar tumerico, uma planta da família do gengibre, para tintura ritual ou outros propósitos” (Turner, op.cit, p. 34).

Assim, o empreendimento social (social enterprise) é caracterizado basicamente pelas relações de

cooperação.

O conceito de drama social, por sua vez, recobre uma realidade distinta: “Dramas sociais,

então, são unidades de processo desarmônico ou a-harmônicos, surgindo em situações de conflito.

Tipicamente eles tem quatro fases de ação pública, acessível a observação. Estas são”: 1) Ruptura

das relações sociais de indivíduos e grupos dentro do mesmo “campo ou sistema social”; Tal

ruptura é sinalizada pela ruptura de normas de convivência. 2) ascensão da crise, com a extensão da

ruptura a outros domínios de relações sociais, de maneira coextensiva a outras clivagens existentes.

3) a das ações reparadoras, que visam conter a crise; é nesta fase que as técnicas pragmáticas e ação

simbólica alcançam sua maior expressão; 4º) reintegração do grupo social ou legitimação do

“cisma” – o que pode significar a secessão de uma unidade, família ou aldeia. (Turner, 1974, 38-

71).

Neste sentido, o drama social, enquanto construto analítico, fica sempre em aberto, de

maneira que podemos, retrospectivamente, relacionar acontecimentos e processos, aparentemente

desconexos, num quadro, estrutura ou dinâmica, na qual se apresentam como seqüência ou

desdobramento, no tempo e espaço, de outros acontecimentos e processos. Assim, a realidade

etnográfica, descrita e analisada através dos “dramas e empreendimentos”, pode ser pensada como

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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uma seqüência contínua de transformações, de empreendimentos a dramas, de dramas a

empreendimentos. As inversões podem ser processar, e o tempo cíclico ou repetitivo se transformar

em tempo dinâmico.

Pretendemos aplicar o método do estudo de casos desdobrados a etnografia terena. Este

método consiste em: “Uma história de casos-desdobrados é a história de um grupo ou comunidade

singular através de um considerável período de tempo, coletado como uma seqüência de unidades

processuais de diferentes tipos, incluindo os dramas sociais e os empreendimentos sociais antes

mencionados”. (Turner, op.cit, p.43)

Cultura e Grupos Étnicos

É importante aqui definirmos como estamos considerando o conceito de cultura. O conceito

de cultura tem de se ajustar a esta situação especifica. Neste sentido Fredrik Barth afirma que: “o

problema conceitual na discussão do pluralismo é, identificar e separar o que ocorre numa

comunidade formada por uma pluralidade de linhas culturais, nenhuma das ênfases permite dizer o

que faz parte de uma das culturas das pluralidade do que faz parte da outra. Todo habitante de

uma comunidade plural precisa saber muito mais do que aquilo que faz parte de uma das culturas

coexistentes (Barth, 1992). Ou seja, dentro de uma localidade marcada pela pluralidade, existem

dificuldades específicas, e a principal delas, é delimitar com clareza, quando uma cultura termina e

outra começa. Além disso, uma vez dada as relações sociais, os conhecimentos que compõem as

ações simbólico-expressivas e garantem a comunicação e interação no contexto societário plural ou

multi-cultural, tem de circular entre os diferentes grupos, de maneira que cada grupo concreto

obrigatoriamente trabalha com diversas referências simbólicas.

O conceito de cultura pode ainda ser qualificado como:

“...tradições culturais, cada uma delas exibindo uma agregação empírica de certos elementos e formando conjuntos de características coexistentes que tendem a persistir ao longo do tempo, ainda que na vida das populações locais e regionais varias dessas correntes possam misturar-se. (...) O principal critério é que cada tradição mostre um certo grau de coerência ao longo do tempo, e possa ser reconhecida nos vários contextos em que coexiste com outras em diferentes comunidades e regiões”. (Barth, 2000, p.123-124).

Neste sentido, chega-se a uma primeira definição de cultura, entendida como “tradição”, no

sentido que ela representa algo que as pessoas herdam, empregam, transformam, adicionam, e

transmitem (Barth, 1992). “Tais conceitos deveriam servir para enfatizar propriedades tanto de

separação quanto de interpretação, sugeridas talvez por correntes ou fluxos imaginários de um rio,

que está de forma distinta, poderosa a transportar objetos e criar redemoinhos de água, no entanto

somente relativo em sua distinção e efêmero em sua unidade” (Barth, ibdem). A cultura tem um

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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primeiro aspecto, que poderíamos chamar de processual, é mediada por ações (empregar, transmitir,

interpretar).

Logo, podemos dizer que, cada cultura ou tradição cultural, que opera enquanto fluxo ou

corrente (no sentido da metáfora de Barth), pode ser identificada e distinta das outras dentro da

situação de pluralismo pela sua capacidade de auto-reprodução através do tempo, e pelo conjunto de

saberes/conhecimentos que articula.

A análise das tradições culturais, parte do pressuposto que esta é um universo de discurso e,

a partir disso deve-se; “(i) caracterizar seus padrões mais destacados; (ii) mostrar como ela se

produz e reproduz, e como mantém suas fronteiras; (iii) ao fazê- lo, descobrir o que permite que haja

coerência, deixando em aberto para ser solucionado de maneira empírica, como e em que grau seus

conteúdos ideativos chegam a formar um sistema lógico fechado como tradição de conhecimento.

Devemos também estudar os processos sociais pelos quais essas correntes se misturam,

ocasionando pro vezes interferências, distorções e mesmo fusões”. (Barth, 2000, p.126-127).

O conjunto de recomendações de Barth para o estudo da cultura pode ser sintetizado da

seguinte maneira:

“1. O significado é uma relação entre uma configuração ou signo e um observador, e não alguma coisa sacramentada em uma expressão cultural particular. Criar significado requer o ato de conferi-lo (...) Para descobrir significado no mundo dos outros (...) precisamos ligar um fragmento de cultura e um determinado ator, à constelação particular de experiências, orientações e conhecimentos desse ator.”. 2. Em relação à população, a cultura é distributiva, compartilhada por alguns e não por outros. (...) As estruturas mais significativas da cultura – ou seja, aquelas que mais conseqüências sistemáticas tem para os atos e relações das pessoas – talvez não estejam em suas formas, mas sim em suas distribuição e padrões de não compartilhamento”. 3. “Os atores estão (sempre essencialmente) posicionados. Nenhum relato que pretenda apresentar a voz dos próprios atores tem validade privilegiada, pois qualquer modelo de relação, grupo ou instituição será necessariamente uma construção antropológica”. 4. Eventos são o resultado do jogo entre causalidade material e a interação social, e conseqüentemente sempre se distanciam das intenções dos atores individuais. Precisamos incorporar ao nosso modelo da produção da cultura uma visão dinâmica da experiência como resultado da interpretação de eventos por indivíduos, bem como uma visão dinâmica da criatividade como resultado da luta dos atores para vencer a resistência do mundo”. (Barth, op.cit, p.128-129).

Essencialmente, uma outra característica da cultura, é que ela é distributiva, ou seja, o

significado enquanto relação varia conforme variam as perspectiva e posições dos atores sociais.

Não se pode então, descrever e compreender uma cultura sem considerar os seus modos de

distribuição entre os grupos sociais concretos.

Mas podemos adicionar ainda, uma outra definição para o conceito de cultura, que

funcionará de maneira complementar as definições dadas acima. Nesta definição “...a cultura

comunica: a interconexão complexa dos fatos culturais transmite, ela própria informação aqueles

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Capítulo 1 – Ordem e Anarquia na Sociologia

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que participam desses fatos. Visto isso, minha proposição é sugerir um procedimento sistemático

que o antropólogo observador participante possa utilizar para decodificar as mensagens contidas

nas complexidades que ele observa”. (Leach, 1978, p. 8)

Logo, o papel da cultura para Leach, é comunicar, é dizer algo, o que supõe

necessariamente, três elementos: o emissor, a mensagem, e o receptor. E “A comunicação humana é

alcançada através de ações expressivas que operam como sinais, signos e símbolos”.

(Leach,1978,p.15). A comunicação realizada pela cultura se dá por meio de ações expressivas,

ações que carregam significados e dizem algo para alguém. Esta posição é compatível com a

posição de Barth17.

O que mais nos interessa na definição de Leach, é sua forma de conceituar a cultura

enquanto um sistema simbólico, no sentido de um conjunto de signos/símbolos:

“As letras do alfabeto romano são símbolos se usadas em equações matemáticas, mas quando usadas no contexto de uma transcrição verbal possuem valores fonéticos convencionais, aproximadamente fixados e tornam-se signos. Neste ultimo contexto, qualquer letra particular sozinha não têm significado, mas em combinação os subgrupos das vinte e seis letras-signos existentes podem representar centenas de milhares de diferentes palavras das mais diversas línguas”. (Leach, 1978, p.20).

A cultura é composta de três elementos fundamentais: o símbolo e o signo (decomposto por sua vez

em significado e significante). (Leach, op.cit, p.21).

E o que é mais importante, “... o significado depende da transformação de uma modalidade

em outra (metáfora/metonímia)...”, ou seja, o signo em símbolo e vice-versa. (Leach, op.cit,p.33).

Quer dizer, se os signos expressam formas simbólicas pré-determinadas por culturas ou sistema

simbólicos, o símbolo diz respeito à liberdade de associar estas formas à expressão a outras culturas

e sistemas, e o significado só se constrói pela transação se símbolos/signos entre diferentes

contextos culturais, de maneira que não podemos desconsiderar esta dimensão da troca e conversão

para a constituição de cada cultura ou sistema simbólico.

É com este sentido que entendemos o conceito de cultura, como sistema simbólico, ou seja,

como conjunto articulado de expressões de sentimentos/idéias através de símbolos (Leach); como

processo, especialmente no sentido da dialética ação-idéia-ação, ou seja, os símbolos e formas de

expressão simbólica, se materializam em práticas específicas, e se transformam no tempo e no

espaço; como distributiva, quer dizer, a cultura se distribui pelos diferentes segmentos componentes

de uma sociedade, particularizando-se de acordo com as localizações específicas que as formas

culturais assumirem na organização social (Barth).

17 Barth afirma que uma tradição cultural só ganha coerência na ação. (Barth, 2002).

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena. “Nós, do povo Terena da Terra Indígena “Cachoeirinha”, localizada no município de Miranda-MS, cansados de esperar pelo término do processo de demarcação de nossa terra que há mais de 06 anos encontra -se em andamento pela FUNAI, sem nenhum encaminhamento concreto para sua conclusão, desrespeitando todos os prazos estipulados pelo Decreto 1.775/96 bem como a Constituição Federal, vimos pela presente, manifestar o seguinte: Que o povo Terena, no dia 28 de novembro de 2005 retomou uma parte de sua terra tradicional chamada “Acampamento Mãe Terra” onde incide a fazenda “Santa Vitória”, na expectativa de que o Governo Federal termine de uma vez por todas a demarcação definitiva de nossa terra”.

Carta do povo Terena da terra indígena Cachoeirinha para autoridades, Dezembro/2005.

Delinearemos neste capítulo as principais características da atual situação histórica,

focalizando especialmente os processos de territorialização dirigidos pelo Estado e aqueles dirigidos

pelos indígenas, pois esses processos materializam de forma objetiva a interação dialética entre

política indígena e política indigenista, o desenvolvimento de formas de resistência e dominação.

Iremos descrever tanto a estrutura da situação histórica, quanto à morfologia da sociedade Terena,

suas formas de inserção na estrutura econômica e ocupacional regional.

Como podemos ver pela epígrafe, este atual momento é marcado pelo desenvolvimento de

conflitos fundiários, pela constituição de demandas de acesso ou ampliação das terras indígenas. A

luta pela terra e os fatos sociais engendrados por ela, fazem parte de um certo padrão, que

expressam mudanças no balanceamento de forças entre os índios e o Estado, que se materializa

tanto em processos difusos e localizados quanto em formas políticas mais determinadas (mas sendo

resultantes também de processos de transformação macro-estruturais, tanto político quanto

econômicos).

2.1 – A Emergência do “protagonismo étnico”.

Ao percorrermos as terras indígenas Terena, com suas inúmeras aldeias e postos, e nos

relacionarmos com as pessoas que vivem nelas seu cotidiano, percebemos que elas ostentam um

certo “orgulho”, expresso numa discursividade de afirmação da sua identidade de índios Terna.

Essa discursividade manifesta-se na ostentação do fato de os seus “patrícios18” estarem ocupando

diversos espaços que no passado só estavam disponíveis aos “purutuye” (brancos), espaços

profissionais, políticos ou administrativos.

Os Terena freqüentemente comentam com satisfação o fato de os chefes (ou encarregados)

dos Postos da FUNAI em suas terras serem índios da sua etnia, assim como muitos dos funcionários

da Administração Executiva Regional da FUNAI. Ressaltam também a importância de uma parte

18 Um dos termos pelo qual usualmente um Terena designa outro (na forma singular) ou o conjunto do grupo (na forma plural).

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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significativa dos professores que lecionam nas escolas existentes nas aldeias, e em alguns casos

ainda também os funcionários dos postos de saúde, serem índios Terena.

Além disso, as Igrejas (evangélicas e católicas) que existem em grande número nos diversos

territórios Terena, também são “dirigidas” por índios (presidentes, secretários, tesoureiros), nas

organizações religiosas se manifesta também à “hegemonia” indígena. São inúmeras as

“Associações” existentes, que buscam a captação de recursos externos - todas elas fundadas e

geridas pelos próprios Terena. E a escolha do “cacique”, que foi em diversas ocasiões históricas

imposta ou muito influenciada pelo órgão tutelar, hoje é um cargo eletivo e são as próprias aldeias

Terena que definem através do voto os seus respectivos líderes. Não são poucos os que apontam a

necessidade de os índios terem “representação política” nas câmaras municipais, no sentido de

garantir seus interesses (note-se que vários Terena já se elegeram para cargos no âmbito legislativo

municipal no estado do Mato Grosso do Sul).

Acrescente-se que – e isso é possível de se perceber principalmente nas falas das lideranças

Terena, como caciques, membros dos conselhos de aldeia e etc. - que a ocupação destes “espaços”

têm um caráter relativamente intencional: eles dizem, por exemplo, que é importante ter escolas

para preparar os índios para assumirem todas as tarefas possíveis que lhes dizem respeito (na

educação, na saúde, no órgão indigenista), porque, segundo entendem, seria vantajoso para eles

enquanto grupo. Ou seja, a realidade atual é explorada pelos Terena tanto a partir de projetos

individuais quanto coletivos, seguindo estratégias próprias, o que afeta substancialmente as relações

do grupo com os demais agentes (tanto no plano das representações culturais quanto dos efeitos de

poder).

Para exemplificar como os Terena empregam esse discurso afirmativo e como ele está

relacionado a uma prática, podemos citar uma situação social registrada em nosso trabalho de

campo. No dia 25/04/2003, ocorreu no PIN Cachoeirinha uma reunião entre representantes da

Administração Regional da FUNAI de Campo Grande (todos índios Terena), lideranças indígenas

locais e o Chefe do PIN Cachoeirinha (também um índio Terena de Cachoeirinha) para discutir o

Programa Pantanal (um programa de desenvolvimento regional). Uma das pessoas presentes na

reunião disse “dar “nota O” ao Programa Pantanal”. Um dos representantes da FUNAI falou que

“deveriam colocar um patrício na coordenação”. Ele comentou que haviam indicado para a

coordenação do programa um técnico, mas que, entretanto “é preciso ter compromisso com a

causa19”. A FUNAI, assim disse seu representante, “irá encaminhar ao MPF pedido de

substituição do coordenador “branco” por um “índio”. “É impossível um índio não ter

sensibilidade à causa”, afirmou. As resoluções da reunião, que passariam a ser a posição oficial das

aldeias de Cachoeirinha sobre o tema, indicaram: “considerando que os índios não foram

19 A idéia de “causa indigenista” integra o léxico utilizado pelos funcionários e administradores da FUNAI.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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convidados a elaboração, e que não há por isso um ajuste entre as ações do programa e a

realidade das aldeias, e que depois do fracasso da produção é o índio o estigmatizado como

preguiçoso, propõe-se a nomeação de um índio para a coordenação do programa”. Está muito

presente nessa situação social, a luta entre “afirmação identitária e estigamização do índio”, como a

“luta simbólica” está associada a “luta pelo poder”.

Outra situação social ilustrativa destas questões ocorreu durante a comemoração do Dia do

Índio em 19 de abril de 2003, poucos dias antes do fato acima mencionado. Enquanto estávamos na

aldeia Cachoeirinha, na sede do PIN, foi possível ouvir a transmissão de um programa da rádio “FM

Terena”,20 do qual pudemos gravar alguns pronunciamentos. Era um programa comemorativo do

Dia do Índio em que participaram convidados especiais, como o administrador regional da FUNAI

de Campo Grande, na ocasião Márcio Justino Marcos, lideranças das aldeias de Miranda, e o futuro

Administrador da FUNAI, Wanderley Dias Cardoso, índio Terena da aldeia Lalima.

Wanderley, em seu pronunciamento, afirmou:

“Bom dia a todos, da aldeia Moreira e Passarinho e aos mirandenses em geral. É um prazer estar revendo companheiros aqui, de partido e lideranças indígenas, também conhecendo esta rádio tem como já foi dita...um instrumento da divulgação da cultura e da força que possui a nação Terena.

Nós temos hoje uma data muito especial e eu enquanto historiador, educador, é emocionante falar desta data, porque foi uma luta histórica dos povos indígenas da América do Sul, que através de muita resistência estabeleceu que 19 de abril fosse chamado Dia do Índio.É um dia que para nós é especial.

A história do nosso país ela revela um lado triste de tratamento que o sistema de governo, digamos assim, que foi implantado no nosso país, desde a monarquia, de colonização, de exploração, tentou dizimar as populações indígenas de todo o país. Mas nós após 503 anos de país constituído estamos aqui provando o nosso poder de resistência, nosso poder de organização, nosso poder de acreditar nos nossos sonhos.

Então resistimos, estamos aqui com a rádio com uma potência dessa, outro dia eu estava lá no centro de Miranda e estava ouvindo um debate que acontecia aqui. Então isto é motivo de orgulho. E com certeza nós estamos num momento histórico em que tá aberto o diálogo, toda discussão concernente à questão indígena. Nós termos aqui uma nova forma de governar, está proposto isso no nosso estado, no nosso país. Então vai valor cada vez mais nossa organização, nossos movimentos. (Wanderley, Aldeia Moreira, MS, 19/04/2003).

Outro pronunciamento que merece destaque foi o realizado por Carlos Jacobina (que

disputaria, com Wanderley o cargo de administrador regional), irmão do cacique da aldeia

Passarinho Wilson Jacobina, e membro do Conselho estadual de Política Indigenista, que falou:

“Mas esse momento a gente tá falando dos nossos problemas, das nossas políticas, dos nossos movimentos, Faustino eu quero parabenizar você, parabenizar a direção da rádio, (...) Nós estamos no movimento indígena aqui no município de Miranda, bem como no estado, a gente enfrenta dentro do movimento divergência de nossas lideranças, de nossos patrícios.

20 Rádio Comunitária que tem sua sede funcional na aldeia de Moreira, a alguns quilômetros de Cachoeirinha, também município de Miranda.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Só quero relembrar quando pessoas se colocaram contra a rádio (...) Qual a importância da radio FM Terena no município de Miranda, a importância da radio Fm Terena para nossa população indígena registrando a presença do administrador, do vice-prefeito, registrando a presença da presidente do partido, das lideranças indígenas, do Néder Vedovato presidente da Câmara dos Vereadores, a gente conversando com você ouvinte, morador aqui da aldeia, que vive o dia a dia daqui da aldeia, vive os problemas o quanto é importante essa radio.

Eu quero fazer meu apelo da população indígena daqui da aldeia Moreira para que apóie a FM Terena, temos que apoiar, porque é através desse veiculo que nós levamos a comunicação, levamos a novidade, nós levamos a noticia, nós fazemos nossa proposta, nós fazemos nossas colocações sobre a política indigenista.

Parabéns Faustino, parabéns aldeia Moreira, por ter a honra de ter uma rádio, a FM Terena, ter uma rádio que tem um momento da cultura indígena Terena, é o momento de nossas comunidades indígenas começar a refletir sobre nossas potencialidades, das nossas demandas, que são os nossos professores, que sãos as nossas organizações evangélicas, são as lideranças indígenas, os conselheiros tribais, as associações, movimentos indígenas, as rádios comunitárias que temos nas aldeias é o momento de nós refletirmos, dizermos não a exploração, e aonde a população indígena quer chegar. (...) (Carlos Jacobina, Aldeia Moreira, MS, 19/04/2003).

O discurso de Wanderley fala do “poder de resistência, poder de organização” dos índios, dentro da

história brasileira (e a categoria resistência aprece em diversos momentos na composição narrativa).

O discurso de Jacobina fala de “potencialidades e demandas” ao citar um conjunto heterogêneo que

inclui professores, organizações evangélicas, lideranças e rádios comunitárias. Os dois discursos

considerados permitem indicar que dentro das aldeias Terena, existe um discurso, uma narrativa

auto-afirmativa acerca da história indígena, que evoca a idéia de “resistência” e que expressa um

posicionamento quanto ao “lugar que o índio” deve ocupar na sociedade. As identidades acionadas

(historiador, educador) mostram também as posições políticas e as bases concretas, factuais, do

discurso de afirmação identitária.

Esse discurso e essa prática se expressam em fenômenos diversificados, difusos, que se

apresentam como um campo de estudos e problemas etnográficos, teóricos e políticos. Acreditamos

que destas evidências do discurso indígena (que dado seu contexto de enunciação, são fragmentos

de ações políticas) são sintomas de um processo social-histórico de transformação das relações de

poder entre índios, grupos sociais dominantes e o Estado-Nacional. O que está na base deste

processo é a emergência do que podemos chamar de protagonismo étnico, num contraponto direto

às bases simbólicas e políticas do regime tutelar instituído em 1910 com a criação do SPI e

ratificado pelo Estatuto do Índio de 1973.

Este protagonismo étnico recobre um conjunto heterogêneo de intervenções e ações políticas

indígenas. Oliveira Filho apontou que os índios formularam diferentes práticas ou estratégias

políticas frente ao regime tutelar que lhes foi imposto:

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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“Frente à estrutura tutelar, os indígenas se encontram diante de três alternativas concretas. A primeira, que para simplificar definiremos como índios funcionários, é que os índios entrem no jogo das relações clientelistas estabelecidas com os indigenistas, encontrando ai canais de acesso ao uso de recursos coletivos e a acumulação de bens materiais e prestigio. A segunda que chamaremos de assembléias indígenas, se refere à mobilização por terra e assistência. A terceira que chamaremos de organização indígena, busca criar mecanismos modernos de gestão territorial e desenvolvimento. Há também outras alternativas – que envolvem na sua maioria formas de mobilidade individual e familiar ..”. (Oliveira Filho, 2006, p. 137)

Dessa maneira, estamos considerando diferentes possibilidades de intervenção política

indígena, mas em todas elas o regime tutelar é não somente o contexto geral, mas o próprio alvo

direto dessa intervenção. Além disso, os dados globais mostram que esse fenômeno verificado entre

os Terena é generalizado nas sociedades indígenas, e que as três formas de intervenção política têm

efeitos agregados muito importantes.

Hoje a FUNAI afirma possuir 1300 funcionários indígenas, num universo de cerca de 3000,

ou seja, mais de 40%. Com relação às assembléias indígenas, suas proposta eram encaminhadas

através de uma sucessão de encontros e reuniões realizados em escalas diversas, recobrindo desde

as aldeias até pólos regionais e das capitais, sendo iniciadas em 1974 em Mato Grosso. Tais

assembléias até o final da década de 1970 chegaram a 15; entre 1980 e 1984 foram realizados 42

encontros desse tipo (Oliveira Filho, 2006, p.137-138). Com relação às organizações indígenas,

houve também um processo importante. “Em 1991 já eram 48, em 1996 somavam 109 e em 1999

alcançaram as 290. Desse total, 195, ou seja, mais de 2/3, estavam situadas na Amazônia,

refletindo a prioridade brindada a essa região nos financiamentos internacionais”. (Oliveira Filho,

2006, p. 145)

O conceito de protagonismo étnico visa apreender esses processos difusos de mudança nas

relações e cadeias de poder (mudança que significa que as diferentes posições dentro de

instituições, comunidades, espaços de produção, estão tendo sua função e significado redefinidas).

Isso quer dizer que um símbolo, um posto administrativo ou profissão passam a ter importância

estratégica dentro dos esquemas e relações de poder, podendo representar maior acesso ao controle

de recursos ou expressar simbolicamente um aumento de status de certos sujeitos (ou a destruição

de certas representações, legitimadoras das formas de dominação). O protagonismo étnico, em

termos sociológicos, é a afirmação da capacidade política indígena, do seu caráter de sujeito e de

sua capacidade de “governo”, o que exige três elementos básicos: 1) a constituição de centros de

ação política, formais ou informais; 2) a formação de idéias ou discursos comuns que delimitam

fronteiras de oposição política e se opõem à certas idéias da estrutura de dominação; 3) o aumento

do poder dos grupos submetidos a essa estrutura. Essas características se aplicam à realidade dos

Terena enquanto grupo étnico.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

61

Mas é importante perceber que na realidade sob o protagonismo étnico, se encontram

estratégias não somente diferentes, mas contraditórias21. Poderíamos agrupar em duas grandes vias

de ação política, que se relacionam de forma diferentes com a estrutura de dominação, ou seja, a

política indigenis ta e o regime tutelar. O discurso de “Marcos Terena” deixa muito claro o

delineamento de uma dessas vias:

“Temos a plataforma de uma Secretaria Especial de Direitos Indígenas e um índio na presidência da Funai [Fundação Nacional do Índio]. Esse trabalho o governo já sinalizou que é possível, mas temos que construir isso de acordo com as possibilidades. Chegou o momento do índio não só requerer direitos, mas responsabilidade, co-participação.”

Esse discurso foi pronunciado numa Conferência Regional em Brasília realizada com o

apoio da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e da Organização das

Nações Unidas. O tema do evento são os avanços e desafios do “Plano de Ação Contra o Racismo”.

Cerca de 400 representantes de 35 países participaram do encontro, que avaliou os compromissos

firmados no encontro de Durban (África do Sul) em 2001. Poderíamos denominar essa via,

apontada por Marcos Terena como a “via da co-gestão indígena”, ou seja, que visa estabelecer

mecanismos que possibilitem aos índios se tornarem co-gestores das instituições político-

administrativas do regime tutelar. Isso tem uma série de efeitos de poder e significados

sociológicos. Num certo sentido, esta via da co-gestão é sustentada por grande parte das lideranças

e população Terena, se apresentando como um projeto político compartilhado por diferentes facções

e comunidades locais. Mas essa via não esgota as alternativas, até porque as variações no campo e

nas arenas das relações interétnicas (como o conflito fundiário) possibilitam a introdução de novas

estratégias de intervenção política (como as ocupações de terra), que modificam os processos

locais.

Uma outra via, é a da “resistência aberta”, e que se opõem de forma local e concreta, aos

principais efeitos e mecanismos de poder do regime tutelar, pautada num enfrentamento político

contínuo. Mas a resistência se coloca – como no documento citado na epigrafe – como forma de

pressão sobre o Governo, pelo menos no seu momento inicial. Essa via se esboça hoje, e assim

como a via da co-gestão, é um desdobramento das formas cotidianas de resistência dentro das

aldeias Terena, compondo assim um quadro de alternativas complexas e contraditórias.

21 “Deixando de lado os impactos sobre a opinião publica e com relação ao reordenamento da política oficial, os resultados desse processo foram relativamente limitados sobre a forma de organização política das aldeias e sobre o controle dos territórios étnicos. Os mediadores indígenas que tinham uma fonte de poder externa a aldeia e de fora dos mecanismos de controle da coletividade que pretendiam representar, se tornaram progressivamente frágeis frente ao poder de Estado e as acometidas dos setores poderosos da sociedade. Apenas especialistas na função de intermediação para fora, muitas das lideranças indígenas terminaram por ser capturadas nos anos seguintes pela estrutura tutelar, transformando-se em braceros, em chefes de posto, em professores bilíngües, monitores de saúde ou ate administradores regionais e assessores (em Brasília).” (Oliveira Filho, 2006, p. 143)

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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A existência e o significado da emergência deste protagonismo étnico, e as contradições

inerentes a esse processo, só podem ser compreendidas pela caracterização da estrutura de

dominação na qual este protagonismo emergiu, e mediante o entendimento dos efeitos dialéticos da

interação de ambas as vias. Por isso é impossível compreender a emergência desse protagonismo

étnico sem compreender o que é o regime tutelar. É essa tarefa que nos dedicaremos agora.

2.2 – Signos da Superioridade, Códigos do Domínio.

Em 1911 o tenente Alípio Bandeira pronunciou um discurso na sessão de instalação da

Inspetoria do SPI no Amazonas. Este discurso seria publicado com alguns outros documentos

(Memorial com um projeto de lei em que se define a situação jurídica do índio brasileiro, O

Decreto nº 5484 de 27 de Junho de 1928 que regula a situação jurídica dos índios nascidos no

território nacional , Regulamento do serviço de Proteção aos Índios e Localisação de

Trabalhadores Nacionaes) num livro intitulado “Coletânea Indígena”, editado pela tipografia do

Jornal do Comércio em 1929. Este conjunto de documentos serve para analisarmos as bases

simbólico-culturais e teóricas da política de assistência e proteção aplicada pelo Estado aos índios,

política esta que criou a relação e regime tutelar (tal como ela existiu no século XX).

O texto do discurso de Alípio Bandeira começa da seguinte maneira:

“A voz estrangulada de doze gerações de martyres brada contra nos através de quatrocentos annos de extermínio. Voz de infortúnio e desespero (...) e fala como uma trompa apocalyptica do sacrifício de alguns milhões de índios, que, em vez de termos chamado ao convívio da civilização, imolamos barbaramente aos ditames da nossa ganância, da nossa fereza até- força é dizel-o – da nossa covardia. Voz de maldição e de praga, ella penetra a nossa consciência, e, sob a forma viperina de remorsos, recorda-nos os processos tenebrosos que empregamos na conquista da costa pelo colono..”. ” (Bandeira, 1929, p.4)

A narrativa adotada traça uma leitura histórica do processo de conquista colonial,

expressando uma espécie de “consciência culpada do branco” acerca de sua relação com os povos

indígenas; é um discurso de denúncia e ao mesmo tempo, uma confissão, como se as palavras

enunciadas por Alípio Bandeira, expressassem a “voz” da sociedade branca diante de um tribunal,

sendo o acusado e o acusador os mesmos sujeitos.

A análise da história indígena ressalta que no passado o “extermínio ou o etnocídio” se

impuseram como formas dominantes de relação entre brancos e índios; ao mesmo tempo esta

analise lançava um alerta, sobre a possibilidade de reedição deste etnocídio. É também realizada

uma apologia dos índios, da “resistência” que eles ofereceram a este processo:

“Elles resistiram: nós os intrigamos uns com os outros, para enfraquece-los. Resistiram ainda: nós os fomos surpreender em outros pontos. Elles recuaram diante da superioridade da força e

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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se embrenharam pelas florestas remotas; nós os procuramos ai mesmo e, ainda pelo processo da investida traiçoeira, destruímos impunemente o ultimo refúgio dos desgraçados”. Nesse hediondo quadro de desolação e morte, não sei eu o que mais deva impressionar a alma do patriota; si a resistência épica dos míseros habitantes das selvas, entregues aos seus insignificantes recursos, reduzidos aos mais elementares meios de defesa, divididos, ludibriados, desprotegidos, si a ignobil constância na perseguição, apesar da fraqueza da victima e, portanto, da cobardia do feito”. (Bandeira, op.cit,p.6).

O ponto de partida da análise histórica de Bandeira é a constatação da luta de morte entre os

índios e a sociedade nacional, de maneira que a “resistência indígena” se opunha ao “extermínio

branco”. A resistência indígena é celebrada pelos militares positivistas fundadores do SPI. Mas é

fundamental observar que a resistência, tal como concebida pelos militares, está inserida em uma

série de teses e signos que dão um significado bem preciso a ela; na realidade a resistência indígena

está associada a uma “idade de ouro” das sociedades indígenas que o próprio extermínio e conquista

colonial liquidou. A resistência pertence a esta idade de ouro que desapareceu em face do avanço da

conquista e colonização do território. Existe no discurso dos militares uma visão que poderíamos

chamar de romântica e passadista, acerca da resistência indígena; romântica no sent ido que essa

resistência é objeto de veneração, mas considerada ineficaz, impotente; passadista pois ela está

associada necessariamente a um passado perdido. A narrativa histórica positivista leva a

“vitimização dos índios”, entendendo a vitimização como a junção estrutural entre a denúncia do

genocídio e a afirmação sub-reptícia da incapacidade indígena.

Esta narrativa histórica visa fornecer o contexto básico para a tomada de um posicionamento

político; mas ela prepara o terreno também a enunciação de teses, digamos, acerca da natureza e do

caráter do índio. E assim é que se delineiam as bases simbólico-culturais da tutela.Vemos isso

através do discurso:

“O português que no século XVI aportou as plagas do Brazil, encontrou nesta parte da América povos de assimilação facílima, a julgar pelo testemunho dos antigos navegadores e viajantes.

Eram sóbrios, confiantes, dóceis e ingênuos e, como tal, amigos da festa e da alegria.

Estavam esses povos na infância da humanidade e, portanto, participavam assim dos vícios e virtudes inherentes a essa situação.

Sendo como creanças que a educação amolda e modela à vontade e feição do educador, uma sábia e humanitária política tel-os-ia aproveitado tanto para o desbravamento da terra como para o concurso intellectual e moral que era licito esperar delles”. (Bandeira, op.cit,p.8)

O índio aparece como um tipo de sujeito coletivo suscetível de assimilação, de caráter “dócil

e ingênuo”. Mas o mais importante, o índio aparece como uma “criança simbólica”, ocupando um

estágio infantil na escala de evolução da humanidade. É a educação, uma relação pedagógica na

qual a sociedade nacional ocupa o papel de “professor” e as sociedades indígenas de “alunos”.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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“Sabe-se que não é a inntelligencia o característico predominante na raça amarella, a que pertence o aborigenme brasileiro. Seu princvipal principal atributto é a actividade, coimo a intelligencia o é do branco e sentimento do negro, conforme a melhor apreciação philosofica. O índio não é, pois, um typo que se distingua pela capacidade intellectual; d´ahi, porem, a consideral-o estúpido vai tão grande erro como iria em suppor o branco malvado por não ser o sentimento o seu apanagio” (Bandeira, op.cit,p.14-15).

Esta tipologia de “raças” indica ao mesmo tempo uma diferenciação de aptidões e

capacidades. O índio é considerado como pouco propenso às atividades intelectuais e apto as

“atividades” (ao trabalho). O índio é considerado como possuidor de baixa capacidade intelectual.

Na realidade, toda a análise histórica de Alípio Bandeira prepara suas considerações sobre a

situação do índio no início do século XX. Ele afirma:

“Pouco differe a situação actual do indígena brazileiro da em que elle se encontrou nos tempos coloniaes.(...) “Esta precaríssima situação, inverso de todos os princípios de justiça e humanidade, é uma resultante do desprezo em que os poderes publicos deixaram o mais genuíno elemento da população nacional”. ” (Bandeira, op.cit,p.20- 21)

E aqui se coloca a conclusão principal: a situação de opressão vivenciada pelos índios era

decorrente da não intervenção do Estado – enquanto mediador – nas relações entre a sociedade

nacional e sociedades indígenas. Esta situação de omissão dos poderes de Estado diante da questão

indígena somente teria sido resolvida pela criação do SPI em 1910, que cumpriria a missão de

“proteção e assistência” aos povos indígenas. O papel do SPI era o de retirar o índio da situação de

degradação e colocá- lo dentro da civilização.

É esta tarefa que Alípio Bandeira entende ser definidora do SPI. Ao falar sobre o

regulamento do SPI, ele diz: “Mas o que realmente preoccupa o espírito do regulamento é a

proteção em todos os sentidos ao índio brazileiro, já fornecendo-lhe gratuitamente tudo o que

precise desde o alimento até a ferramenta de trabalho..”. (Bandeira, op.cit, p.24) Ao mesmo tempo

em que se define uma obrigação do Estado para com os Índios, estabelecesse-se um plano de

utilização para os mesmos: “E depois não seria mais nobiliante que os filhos da terra fossem os

desbravadores do seu solo, os cultivadores da gleba, os guardas da fronteira?” (Bandeira, op.cit,

p.26). A formação do “índio-trabalhador e o índio-soldado” aparece como meta e razão de ser da

política de Estado, coroando toda a análise histórica e a caracterização da natureza do índio

realizadas por Bandeira.

No outro documento componente da mesma publicação, temos um “Memorial acerca da

antiga e moderna legislação indígena com um projeto de lei apresentado ao tenente Coronel

Candido Mariano da Silva Rondon” por Alípio Bandeira e Manoel da Costa Tavares

Miranda”. Este memorial se apresenta como fundamentação histórica e teórica a proposta de

regulamentação da situação jurídica dos índios, como os autores declaram: “Dando unidade e

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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corpo as idéias predominantes deste memorial, no intuito de reduzil-as a um instrumento legal de

proteção aos índios, organizamos o projeto de lei que vae appenso e que, com a devida vênia,

apresentamos”. (Bandeira & Miranda, 1929, p.70-71).

Este documento apresenta uma análise da “legislação indígena” desde o século XVI até o

século XX, criando uma polarização entre os defensores da escravização e extermínio dos índios, e

aqueles da proteção e liberdade.Também tenta mostrar como a legislação era contraditória,

oscilando sempre entre estes extremos.

Algumas formulações acerca do caráter do índio são adicionadas. Exatamente porque se

visava formular uma proposta de regime político e jurídico para a administração dos índios.

Vejamos:

“Ora, sucede que ao índio, ao menos enquanto não se modificar sufficientemente a sua situação – o que só é possível pelo convívio social - não é razoável que si outorguem certos direitos e menos ainda que se imponham outras tantas obrigações. Estas e aquelles seriam innumeras vezes, por falta de capacidade do sujeito, inteiramente descabidos. Deve, pois, haver não apenas restricção de regalias, mas também, e especialmente, diminuição de responsabilidade. Evidentemente o índio que comete, por exemplo, um assassinato, não pode ser passível das mesmas penas que se applicam em taes casos ao civilisado (...) “Ainda quando sejam eles equiparados a menores, muito é de considerar a grande differença que existe entre um menor creado e educado no seio da sociedade civilizada, conhecedor dos hábitos e noções correntes no meio em que vive, e um habitante das selvas que, sobre desconhecer estes habitos e noções, é ainda movido e dominado por costumes radicalmente diversos”. (Bandeira & Miranda, op.cit, p. 63)

A analogia índio/criança tinha uma limitação objetiva: uma criança não indígena sempre

seria mais apta a viver e interagir na sociedade nacional que o índio. Desta maneira, o índio é

pensado como silvícola (em oposição ao civilizado), diferente culturalmente, e esta diferença e

distancia é o que o impede de ser sujeito de direitos e deveres, ou seja, politicamente capaz.

Os discursos de Bandeira e Miranda, que na realidade expressavam o discurso do SPI,

articulam por meio de uma narrativa histórica diversos signos/representações, que visam dar

significado tanto a categoria índio (e os grupos sociais que ela recobre) quanto a política de Estado

estruturada em torno dela (ao mesmo tempo justificando e apontando seus meios e objetivos).

Podemos falar de um conjunto de signos acionados pelo discurso dos militares do SPI, que

traduzem sempre uma relação de desigualdade de capacidade e de poder, composta por pares de

oposição que estruturam a idéia de tutela: a oposição “adulto/criança” (que se funda numa analogia

com os ciclos biológicos); a oposição “civilizado/primitivo” ou selvagem (tipos de sociedade, nível

social, técnico e cultural); a oposição “capaz/incapaz” e (no sentido político, mas também,

intelectual e biossocial, já que a incapacidade está associada ao “caráter fisiológico” e ao “tipo de

sociedade” do índio). Este conjunto de signos remete sempre a desigualdade, mas não através do

mesmo conteúdo simbólico, e podemos dizer que são signos porque fazem parte de um conjunto,

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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dentro de uma estrutura narrativa acerca da história indígena e dão sustentação as idéias de

assistência e proteção do Estado. Os índios são considerados como crianças, como estando na

“infância da humanidade”, mas estão aquém das crianças civilizadas; desta maneira a distinção

entre “civilizado e primitivo”, define uma fronteira ainda mais acentuada, e diz que infantilidade

não é suficiente para traduzir a condição do índio em face da sociedade nacional; por outro lado, a

oposição “capaz e incapaz”, é a conclusão política e societária das duas oposições anteriores. O

índio pode ser considerado como criança porque é primitivo/selvagem, mas sendo primitivo está

aquém das próprias crianças civilizadas, e sendo assim rebaixado duplamente, ele é duplamente

incapaz, no sentido de que está fora da civilização e quando se aproxima desta é colocado numa

condição de infantilidade. Este raciocínio foi fielmente traduzido na regulamentação jurídica do

regime tutelar, através da categorização dos índios.

As representações acerca da superioridade/inferioridade, infantilidade/adultidade,

capacidade/incapacidade, estão associadas ao mesmo tempo a uma interpretação da história

formulada dentro dos aparelhos de Estado e por agentes sociais como os militares, vinculados

organicamente a este mesmo Estado. É pelo fato do índio ser concebido/percebido a partir destes

signos, que se coloca a idéia de proteção e assistência como centrais. Sendo o índio incapaz, ele

precisa de um protetor, de alguém que o represente e atue como provedor. A idéia de “proteção” é

associada ao “controle”, sendo a tutela a forma concreta pela qual se estabelecem as formas de

proteção e controle do Estado sobre os índios. O papel político, a ação e pensamento indígenas são

obliterados, colocados como meramente determinados pela sociedade nacional e pelo Estado-

Protetor. No fim, o Estado aparece como o verdadeiro e único sujeito da história indígena, já que –

sendo o índio incapaz, este somente existe graças ao Estado. Assim a relação e o regime tutelar,

aparecem como único meio possível de impedir o extermínio final e definitivo dos índios. O índio

não existe sem a tutela.

É interessante observar que esta tese (a de que ausência de proteção do Estado é o fator

determinante para a história indígena) acaba sendo compartilhada por muitos estudos sobre os

Terena, como por exemplos os clássicos de Kalervo Oberg, Fernando Altenfelder e Roberto

Cardoso. Partindo de teorias da “aculturação e assimilação”, normalmente fazem afirmações que

indicam que a sobrevivência dos Terena enquanto grupo étnico diferenciado, só foi possível pela

intervenção do Estado através do SPI (OBERG, 1948, p.291 e OBERG, 1949, p.35). Correntes da

antropologia e do pensamento cientifico acabavam reificando, dessa maneira, o discurso indigenista

ou estatal.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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2.3 - Política Indigenista e Regime Tutelar: construção e metamorfoses.

De acordo com as definições tradicionais:

“A tutela em direito civil, designa o instituto que, juntamente com o pátrio poder e a curatela, integra o sistema legal de proteção aos incapazes. Pode ser conceituada como o ‘encargo conferido a alguém para que dirija a pessoa e administre os bens do menor que não incide no pátrio poder do pai ou da mãe”. (Dicionário de Ciências Sociais, FGV).

Enquanto dispositivo jurídico, se apresenta fundamentalmente como uma intervenção na relação

familiar, para regular o patrimônio ou propriedade, transmitidos através do direito de herança, em

situações em que a criança se encontra órfã ou similares (ou seja, sem o controle da família). O tutor

se apresenta como um substituto da “família”, e também como um substituto/representante da

criança em atos civis. Desta maneira, a tutela se apresenta como uma intervenção transitória e em

caráter excepcional, regulamentada pelo Estado, no direito de propriedade e na liberdade individual

(ir e vir, decidir, expressar), dentro da relação família- indivíduo.

Mas o regime tutelar nesta forma se baseia no pressuposto de que a situação de tutelado é

“transitória”, é um intervalo de tempo em que o individuo – a criança – cresce e adquire a

capacidade exigida para exercer seu direito de propriedade e seus direitos civis. Ela estaria então,

objetivamente limitada, pelo ciclo biológico do individuo, de maneira que escapa ao tutor,

determinar até quando o tutelado ficaria nesta condição.

A tutela é uma categoria jurídico-política que foi aplicada as relações interétnicas, mas não

sendo originaria e exclusiva deste universo. A situação dos índios no Brasil é determinada pela

relação tutelar, em que o Estado impõe uma dinâmica aos grupos étnicos, e um regime jurídico

tutelar que regula esta mesma relação. Devemos perceber entretanto a construção histórica desta

relação, e suas transformações e o significado político destas últimas. A tutela é um tipo concreto de

relação constituída entre o Estado brasileiro e os povos indígenas através de um processo histórico

de longo prazo. A forma estabelecida em 1910 representava uma mudança em comparação à tutela

orfanológica, que vigorou desde 1831. Esta relação foi o produto da conquista colonial, e sofreu

transformações importantes ao longo da história, especialmente nas transições do regime colonial

para o Império, e do Império para a República. Para entendê- la é preciso compreender suas

metamorfoses.

Podemos dizer que o regime tutelar passou por três diferentes momentos históricos. O

momento de sua gênese corresponde ao período final do regime colonial no Brasil, em que surge a

tutela orfanológica que era um dispositivo que visava garantir a disponibilização de força de

trabalho indígena, aplicando-se aos índios que se encontravam deslocados de seus respectivos

grupos. O segundo momento corresponde à extensão da tutela orfanológica aos índios em geral, por

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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lei imperial de 1831, que associa também os direitos territoriais, à relação tutelar. O terceiro

momento corresponde à transição da tutela orfanológica para a tutela do SPI, por decreto, em 1928,

em que a tutela seria exercida agora por uma instituição de Estado especializada. Manuela Carneiro

da Cunha indica que:

“É no entanto na transição da escravidão indígena para o trabalho assalariado que, no bojo das reformas pombalinas implementadas a partir da década de 50 do século XVIII, podemos localizar, com maior precisão, a gênese do conceito de tutela orfanológica”. (Carneiro da Cunha, 1988, p. 104). A principal providencia tomada pelo Governo Colonial para impedir uma evasão dos índios libertos, citadinos ou a serviço dos moradores no interior da capitania foi colocá-los sob o regimento dos órfãos”. (Carneiro da Cunha, op.cit, p.107). Desta maneira, a tutela, na sua gênese e na primeira forma que assume, está relacionada primeiramente, as necessidades econômicas da Coroa Portuguesa: visava garantir a estabilidade da oferta de mão de obra indígena (...) Na verdade o juiz de órfão foi usado em todo o século XIX para tutelar toda a mão de obra potencialmente rebelde: ficavam sob sua jurisdição não apenas os índios, mas os escravos alforriados e os africanos livres”. (Carneiro da Cunha, 1988, p.110).

A relação tutelar surge ainda sob regime Colonial, como um dispositivo de dominação, que

incidia simultaneamente sobre a política e sobre a economia; não era um dispositivo exclusivamente

aplicado aos indígenas, mas, aos negros africanos, ou seja, incidia sobre os grupos etnicamente

diferenciados, visando estabelecer sobre eles o controle e a disciplina que garant isse sua

participação enquanto mão de obra na economia colonial.

A relação tutelar é marcada por um impulso simultaneamente preservacionista e dominador.

Ela tem como ponto de partida a desigualdade social e econômica gerada pela guerra de conquista

colonial. Esta relação, em ultima instância, consagra esta desigualdade e lhe dá um formato

jurídico-político historicamente especifico, distinto daquelas formas anteriores, existentes durante

os séculos XVI-XVIII. A relação tutelar, desta maneira, coloca-se como forma histórica de

institucionalização da desigualdade entre grupos étnicos e outros grupos sociais, dentro do contexto

de formação do Estado-Nacional.

O regime tutelar pode ser definido como um conjunto de dispositivos político-

administrativos (calcados em signos/símbolos difusos) destinados a governamentalização22 dos

índios. A governamentalização, tem dois objetivos: criar uma racionalidade na exploração dos

povos colonizados, aproveitando os índios enquanto população, transformando-os em mão-de-obra

para extrair- lhe o sobre-trabalho. Ao mesmo tempo é uma forma de dominação que pautando-se não 22 “Para concluir, gostaria de dizer o seguinte. O que pretendo fazer nestes próximos anos é uma história da governamentalidade. E com esta palavra quero dizer três coisas: 1 - o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2 - a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros - soberania, disciplina, etc. - e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes.” (Foucault, 2004, p. 174).

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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na lógica da sobrerania, mas na da gestão ou governo (ver Foucault, 2004) em que a preocupação

central é deslocada da arte de manter o poder para arte de governar, porque o poder deixa de ter

grandes ameaças internas ou externas. A introdução da “economia” ao nível do governo geral do

Estado estabeleceria o principio do controle, da vigilância, da “gerencia” dos bens e indivíduos

(como o pai de família faz dentro da sua casa). Implica um deslocamento da preocupação com o

território para a preocupação com os “homens e as coisas”, entendidas como as riquezas, os

recursos naturais (Foucault, ibdem). Ao mesmo tempo, cria-se uma “razão de estado” que não se

legitima somente pela vontade interna de manter o poder, mas pela eficácia ou “boa gestão” dos

governados, o que significa a idéia de identificação, ou internalização da própria dominação, no

sentido que a população não é mais somente alvo de políticas de conquista, mas de gestão, e que o

governo visa garantir o melhor para ela (do ponto de vista da razão de governo, mas ainda assim se

forma uma outra forma de legitimação do poder). O “príncipe” (o governante) não está mais em

relação de exterioridade, mas sim de identificação, com a população.

O regime tutelar foi instaurado a partir da ação dos sertanistas e militares positivistas no

início do século XX e tem as características que indicam a governamentalização do Estado

brasileiro. Sua arquitetura jurídico-normativa é estabelecida a partir de dois dispositivos principais,

o Decreto Nº 9214 – 15/12/1911, o “Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios e Localização

dos Trabalhadores Nacionais” e o Decreto nº 5484 de 27/06/1928, tal como aprovado por

Washington Luiz, então presidente da República.

Este decreto foi baseado numa proposta de instrumento legal elaborada por Alípio Bandeira

e Manoel T. Miranda, em 21/04/1911. Ou seja, o processo de codificação jurídica foi lento e

somente se deu a posteriori da implantação do SPI enquanto instituição tutelar. A criação do regime

tutelar se deu pela ação política das redes de poder (compostas por militares positivistas,

engenheiros e outros) integrantes ou não dos quadros do SPI. O decreto de 1928, concebido dentro

do SPI:

“Em outros termos, propunha-se a incapacidade dos nativos relativamente ao grau de civilização, que deveria ser aferido pelo SPILTN, a tutela cessando à medida em que se transformassem em trabalhadores nacionais como tantos outros. A idéia estava pronta em 1911, antes da apresentação da emenda de Munis Freire ao Senado (publicada pelo DCN em 5 de dezembro de 1912), o texto definitivo do código civil nada mais fazendo do que consagrar o proposto pelo SPILTN”. (Lima, 1995, p. 207).

O regime tutelar fo i sendo materializado em lei ao longo 15 anos, até a aprovação do decreto

pelo Senado em 1928. Esse regime esteve diretamente relacionado aos interesses do órgão que o

concebeu e trabalhou pela sua estruturação política. Uma preocupação central seria a da

nacionalização dos índios, de maneira que: “As idéias em torno das quais se organizaria o Serviço

estariam claramente estabelecidas no regulamento aprovado pelo decreto nº 736, de 6 de abril de

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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1936 (...) O regulamento marcava-se pela preocupação com a nacionalização dos silvícolas, com o

fim de incorporá-los à Nação (art1º)”. (Lima, 1992, p. 165).

De uma certa maneira estes dois documentos legais é que instituem per si o regime tutelar,

impondo uma forma de “gestão indireta e branca” aos grupos indígenas. A arquitetura interna do

regime tutelar tal como descrito acima, instituída durante as atividades do SPI, se pauta pela

prescrição especifica de um conjunto de poderes (baseados na oposição primitivo/civilizado,

superior/inferior, criança/adulto). O regime tutelar se estende a múltiplas dimensões da vida dos

grupos étnicos, de forma molecular; da regulação de atos individuais relativos à troca,

documentação, e etc, até a gestão dos bens. O principal poder instituído pelo regime, é da

substituição da ação e vontade do tutelado pelo tutor, ou seja, pelo Estado. Em todos os domínios

seria garantida a gestão indireta dos bens e decisões dos índios. De outro lado, a exclusão da

possibilidade de acesso dos índios ao serviço público, fez com que essa gestão indireta assumisse a

feição de uma “gestão branca”, ou seja, os índios seriam geridos, administrados por “brancos” que

teriam a autoridade de decidir quase tudo em seu nome frente ao Estado e Sociedade Nacional. A

linha de dominação política cristalizou uma clivagem “étnica” dando- lhe outro significado. Outro

poder, é o da investidura da identidade étnica. O art. 42 deixa claro que quem atesta quem é índio e

em qual categoria se enquadra é o inspetor do SPI, ou seja, o Estado. Era um poder ao mesmo

tempo de submeter ao controle e proteção do regime tutelar ou excluir de ambos.

Entretanto cabe indicar aqui uma duplicidade de regulação, já que os índios que vivessem

em “promiscuidade” com civilizados poderiam ser submetidos a um regime diferente dos demais

índios, ou seja, à regelações externas ao regime tutelar. É o caso das exceções previstas no tocante

as penas e crimes e mesmo aos bens. A princípio, essa duplicidade seria expressa pela localização

dos índios (aqueles que viviam fora das povoações indígenas e em centros agrícolas ou em outras

comunidades rurais ou urbanas).

Fica nítido como a idéia de “isolamento” (inexistência de contatos ou contatos eventuais), é

a idéia base do próprio esquema de classificação do regime tutelar, e como as relações (contatos

permanentes) são vistas sob um prisma ambíguo, no sentido que ao mesmo tempo indicam a

aquisição de “capacidade pelo índio” e sua descaracterização enquanto índios. Observemos que o

termo “promíscuo” indica mistura caótica ou desordenada, e ainda tem a conotação “de pessoa que

se entrega sexualmente com facilidade” – idéias pejorativas.

Essa arquitetura institucional perduraria até o início da década de 1970, quando da

promulgação do Estatuto do Índio. O Estatuto do Índio produziu alguma mudança no regime

tutelar?

Na verdade o Estatuto do Índio apresenta um conjunto de medidas que expressam uma

tendência a uma “liberalização” do regime tutelar, no sentido que é aberta a participação “indígena”

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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na gestão da política indigenista e contrariando em certa medida, as representações ideológicas

acerca da incapacidade do índio. Mas devemos observar que essa liberalização não muda os poderes

básicos que caracterizam o regime tutelar.

O poder de gestão dos bens e a propriedade das terras indígenas continuam sob controle

Estatal. O artigo 20 em seu §2º permite a “remoção permanente ou temporária de grupos indígenas

para outras áreas”. O “poder de substituição” da ação e vontade indígena também permanece, na

gestão das terras indígenas e outras instâncias societárias. Além disso, as bases simbólicas do

regime tutelar permanecem as mesmas do SPI, apesar da substituição de categorias, conceitos e

metáforas. Ainda permanece a equivalência entre “emancipação e integração”, o que reconduz a

uma dinâmica cíclica: os índios só são índios sob o regime tutelar, e se são emancipados deixam de

ser índios. Assim, o poder de investidura identitária é ainda resguardado ao Estado. No computo

geral, o regime tutelar mantém suas bases fundamentais. Mas as mudanças ocorridas teriam efeitos

importantes.

O Estatuto do Índio traz algumas alterações importantíssimas: 1) a abertura do serviço

público aos índios e o incentivo a sua especialização indigenista; 2) uma relativa abertura a

participação dos índios na administração dos “bens e renda indígena”, assegurando entretanto a

exploração do solo aos índios e do subsolo a regulação estatal; 3) definição formal de índios e

comunidades indígenas, de maneira que não é mais um Inspetor que define quem é integrado ou

não, mas sim o próprio Estatuto; 4) a introdução de uma orientação formal para os “contratos

coletivos de trabalho”.

Nos princípios e definições do Estatuto do Índio se inscrevem os marcos gerais da política

indigenista, ou seja, uma certa forma de regulação e gestão dos grupos indígenas, vinculando a

principio as idéias de “preservação e integração”. Ou seja, a tensão existente no SPI irá perpassar

também o novo enquadramento jurídico e a nova forma do regime tutelar. Isso fica visível pela

contrariedade entre a caracterização dos índios: primeiro se define que as “comunidades indígenas”

são aquelas não integradas (Art.3,II), apesar de que se reconhece que os índios integrados podem

preservar características culturais (Art. 4, III). Porém em outros momentos se assegura a

participação dos índios nos quadros de funcionários da FUNAI (art.16 § 3), mas somente de “índios

integrados”. Nesse sentido existe uma contradição evidente: enquanto que as comunidades

indígenas são definidas pela sua “não integração”, o que dá margem para o entendimento de que a

integração implica o desaparecimento das comunidades indígenas, fala-se em outros momentos de

“índios integrados”. Esta tensão é uma outra continuidade em relação ao SPI.

Assim, o “regime tutelar” sofre uma primeira liberalização, o exclusivismo da gestão branca

é relativamente atenuado (ou abre-se espaço pra isso). Nos anos 1980, a Constituição Federal no

artigo 232 irá afetar um importante dispositivo do regime tutelar, uma vez que reconhece plena

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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capacidade civil aos índios. Entendemos que esse fato não elimina o regime tutelar, ao contrário,

cria uma relativa contradição com o Estatuto do Índio em vigor, e mesmo assim uma contradição

relativa. Poderíamos falar de uma segunda liberalização do regime tutelar, e também de uma

hibridação das normas tutelares a partir 1988, no sentido que existe o regime tutelar enquanto

política indigenista e ao mesmo tempo com o reconhecimento da capacidade civil dos índios pela

constituição que possibilitou certas ações jurídicas dos índios. Essa hibridação pode sugerir o

“enfraquecimento” do regime tutelar, uma crise, mas não é exatamente isso que acontece, mas sim

uma mudança institucional.

2.4- Tutela e Frentes de Expansão Econômica.

A análise da estrutura geral do regime tutelar feita acima, somente, precisa ser contemplada

com as características principais de sua aplicação ao longo da história e os efeitos sociais concretos

que ele produziu sobre as sociedades indígenas. Nesse sentido, estamos considerando aqui o regime

tutelar como o produto de um conjunto articulado de ideologias e prática políticas, que podem ser

rotuladas por indigenismo e política indigenista:

“Assim, pode-se considerar indigenismo o conjunto de idéias (e ideais, aquelas elevadas à qualidade de metas a serem atingidas em termos práticos) relativas à inserção de povos indígenas em sociedades subsumidas a Estados Nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para o tratamento das populações, operados em, em especial, segundo uma definição do que seja índio. A expressão política indigenista designaria as medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas”. (Lima, 1995, p.14-15)

Dessa maneira, a política indigenista compreende todas as técnicas utilizadas dentro das

diferentes situações, para gerir os territórios e a mão de obra indígena, como as técnicas de atração e

pacificação, as técnicas de substituição e representação política do índio, as formas de repressão

como a “polícia indígena”, a pedagogia da nacionalização e etc (ver Lima, 1995, Oliveira Filho,

1988).

O regime tutelar seria assim a estabilização de uma determinada forma de gestão, com

regras e pressupostos determinados, formas de distribuição da autoridade e da força, na qual o órgão

tutor seria o depositário dos dispositivos legais e legítimos de controle das sociedades indígenas. A

política indigenista 23operou através de diferentes técnicas e táticas de poder, e o regime tutelar foi

uma demanda de confirmação do exercício do poder através dessas técnicas.

23 O indigenismo é um tipo de “saber de estado” que se originou no contexto mexicano, migrando para o Brasil onde foi reapropriado e transformado. Nesse sentido, é preciso observar que o indigenismo se combinou com outras saberes de

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

73

Podemos dizer que o regime tutelar e a política indigenista tiveram dois objetivos e efeitos

estratégicos (ver Decreto 1928, Títulos II e V; Estatuto do Índio Titulo II, cap. 4 e Titulo III): 1º) o

regime tutelar impôs padrões de territorialização aos povos indígenas; 2º) o regime tutelar produziu

uma inserção determinada dos índios na estrutura de classes. Dessa maneira é impossível pensar o

regime tutelar sem pensar os processos de territorialização e inserção especifica na estrutura de

classes imposta aos povos colonizados.

Quando falamos de territorialização, devemos entender que:

“Não se trata unicamente de enfocar as sociedades indígenas como coletivivades inseridas em uma escala regional mais ampla, senão de explorar o fato da definição de um território como uma chave analítica privilegiada para a compreensão dos modos de sociabilidade que apresentam. A abordagem em termos de um processo de territorialização permite descrever e inter-relacionar os re-ordenamentos ocorridos nos múltiplos níveis – na morfologia social, nos papeis políticos, nas tradições culturais e na construção de identidades.

O processo de territorialização não compreende unicamente as razões de Estado, mais também expressam os conceitos indígenas sobre tempo, pessoa e natureza do mundo” (Oliveira Filho, 2006, p. 132)

Logo, os processos de “territorialização” constituem uma dimensão central que articula

política, identidade, cultura e economia.

O regime tutelar e a política indigenista em geral tiveram como uma das características

principais o desencadeamento de processos de territorialização. A construção de “povoações

indígenas”, “centros agrícolas”, “parques” e “reservas”, são a expressão desses processos de

territorialização dirigidos pelo Estado. As migrações voluntárias e criações de aldeias são formas de

territorialização dirigidas pelos próprios grupos indígenas.

Paralelamente aos processos de territorialização, se desenvolveu o projeto de inserção dos

índios dentro da estrutura de classes da sociedade capitalista, em uma posição subalterna. Tanto o

regulamento de 1928, quanto o estatuto do índio tinham medidas práticas nesse sentido: “O estatuto

do Índio enfatiza de forma bastante nítida a via camponesa como modo privilegiado de integração

das populações indígenas na sociedade brasileira”. (Oliveira Filho, 1998, p.19) e ainda: “É preciso

deixar bem clara a singularidade desse campesinato indígena face a outros tipos de campesinato.

Além do controle coletivo sobre o meio básico de produção, há que ser destacado que tal

campesinato é, por diversos meios, colocado como sendo diretamente subordinado ao Estado”.

(Oliveira Filho, op.cit, p.20).

Os índios seriam “camponeses” e “trabalhadores manuais”, de acordo com o projeto político

delineado pelo regime tutelar e pela política indigenista. Seria essa sua modalidade de inserção na

estrutura de classes. Esta política foi não somente uma orientação geral, mas moldou de forma

estado, como o sertanismo, e que o termo, em sentido estrito, só foi introduzido no Brasil nos anos 1940/50. (Lima, 2006).

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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concreta as interações sociais entre índios e sociedade nacional. Ou seja, o regime tutelar era ao

mesmo tempo uma forma de territorialização e de estratificação (no sentido de atribuição de lugar

na estrutura de classes).

Trata-se de observar os efeitos sociais do regime tutelar, de como e em que medida sua

política produziu e impôs dinâmicas societárias concretas aos povos indígenas. E veremos que na

realidade essa política é determinante para as sociedades indígenas no Brasil. Tomemos como eixo

os processos de territorialização dirigidos pelo Estado através do órgão e da política indigenista. O

quadro abaixo fornece dados importantes:

Quadro 1– Evolução Histórica da Demarcação de Terras Indígenas.

Elaborado a partir de dados do ISA e do “Indigenismo e Territorialização”. SPI FUNAI

1910-1967 1968-1982 1990-2000 298, 595 mil hectares 11.966.043 mil hectares 63.389.692 mil hectares

O processo de demarcação de terras indígenas teve seu padrão profundamente alterado,

sendo que a partir de meados dos anos 1970 até hoje, verificou-se uma demarcação de terras

indígenas com maiores extensões territoriais do que todas aquelas ocorridas na primeira metade do

século XX. As áreas demarcadas pelo SPI em media tinha 5 mil hectares enquanto que as da

FUNAI 181 mil hectares. (Oliveira Filho, op.cit, p.33). Dessa forma, do ponto de vista histórico, o

“regime tutelar”, apesar de ter como meta a formação de um “campesinato indígena”, em razão do

padrão de territorialização, produziu mais uma camada de assalariados rurais, de “semi-proletários

e semi-camponeses” (Oliveira Filho, 1998, p. 34).

Não somente o padrão de intervenção do SPI e da FUNAI tiveram efeitos diferentes, ao

longo da história, como tiveram também variações regionais associadas ou não as primeiras.

Vejamos o quadro abaixo:

Quadro 2 - Terras Indígenas e Identificadas por Delegacia Regional da FUNAI

Delegacias UF Terras Indígenas Identificadas (1000 hectares)

Terras Indígenas Identificadas mas não demarcadas (%)

Terras Demarcadas (%)

1º AM 8.518 100 - 2º PA-AP 10.018,4 77,0 23 3º BA-SE-AL-

PB-PE 122,3 89,9 10,1

4º PR-SC 84,6 - 100 5º MT 2.741,6 68 32,0 6º MA 1.835,8 88,0 11,9 7º GO-MT 577,2 81,4 18,5 8º AC-RO-AM-

MT 5.566,4 52,5 47,4

9º MS 526,9 94,1 5,8 10º RR-AM 5.297,9 84,3 15,6

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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11º MG-ES-BA 83,6 20,0 79,9 12º SP-PR 29,6 0,6 99,3 13º RS 50,6 - 100 AJABAG MG (MT) 1.198,4 - 100

Das 16 regiões consideradas como de colonização antiga, 10 têm índices próximos ou superiores a

80% de terras demarcadas. Das 6 regiões em que tal fato não ocorre, a região em que o índice terras

indígenas demarcado é menor, é exatamente no Mato Grosso do Sul, apesar do volume total de

terras ser reduzido quando comparado com outras regiões, e devemos levar em consideração que a

população do Mato Grosso do Sul é a segunda maior do país. Ou seja, mesmo sendo uma região de

colonização antiga, o Mato Grosso do Sul não apresenta índices de demarcação significativos. Os

efeitos da política indigenista e do regime tutelar não são homogêneos, mas são relativamente

constantes dentro dos seus objetivos gerais.

A interpretação dos dados levou Oliveira Filho as seguintes conclusões:

“As delegacias regionais da FUNAI em que estão registradas as maiores proporções de terras demarcadas encontram-se nas áreas de colonização mais antiga, nas quais as frentes pioneiras já passaram, atomizando as posses indígenas e incorporando a região à economia nacional. (...)

“Por ora basta reter a hipótese de uma correlação entre avanço das frentes pioneiras (e conseqüentemente incorporação dessa região à economia de mercado) e efetividade no processo de demarcação das terras indígenas”. (Oliveira Filho, 1998, p. 29)

Isso significa que as frentes de expansão econômica condicionam a política indigenista e aos

processos de territorialização indígena, e também a imposição de um padrão de inserção na

estrutura de classes. O padrão do SPI implicou na semi-proletarização de muitos grupos indígenas,

mantendo assim o caráter semi-colonial das relações índios-Estado, sendo o lugar dos índios na

sociedade o de camponeses pobres e assalariados rurais.

Os dados acima permitem ver uma certa especificidade da política indigenista no Mato

Grosso do Sul, de como na realidade a territorialização dirigida pelo Estado-Nacional naquela

região seguiu certos padrões e particularidades locais. Delinearemos agora como a morfologia da

sociedade Terena foi moldada por esses processos de territorialização dirigidos pelo Estado, e

apreender as singularidades da região do Mato Grosso do Sul.

2.5 – Uma Morfologia da Sociedade Terena: o caso de Cachoeirinha.

A configuração da organização territorial das aldeias Terena e sua composição demográfica

no município de Miranda, podem ser caracterizadas pelos seguintes dados. Os dados da FUNAI

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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para 1999 apontam a existência de 4.000 pessoas em Cachoeirinha, 1.800 pessoas para Pilad Rebuá

(que compreende as aldeias de Passarinho e Moreira) e 1.500 pessoas para Lalima, o que

representaria um total de 7.300 indígenas no município. Os dados da FUNASA apontam para

2003, um número inferior a este: para Cachoeirinha, os dados apontam 2.683 pessoas; Pilad Rebuá

1.696 pessoas, Lalima 1.252 pessoas, o que representaria um total de 5.635 indígenas. Podemos

considerar o intervalo que vai dos 5.000 aos 7.000 habitantes indígenas como margem de variação

plausível do universo demográfico considerado.

As aldeias de Passarinho e Moreira ficam a 6 km da cidade, se apresentando como “bairros”

periféricos de uma região de transição entre as zonas urbana e rural do município. A aldeia de

Lalima fica a 45 km da cidade, em meio a fazendas, assim como a aldeia de Cachoeirinha (ou mais

especificamente, a Sede do Posto da FUNAI) que fica a 13 km da zona urbana e do núcleo

comercial e administrativo da cidade24.

Descreveremos a morfologia da sociedade Terena a partir de eventos específicos que

revelam as articulações entre contextos locais e globais, e entre os processos sociais

contemporâneos e de longa duração. Uma situação social auxiliará na descrição e análise da

morfologia da sociedade Terena dentro da atual situação histórica.

Durante uma de nossas visitas à terra indígena Cachoeirinha em outubro de 2002, como

fizemos desde a primeira vez, ao chegarmos, nos dirigimos ao PIN da FUNAI, onde ficaríamos

hospedados. Ao chegarmos ao local, fizemos contato com o então chefe do posto da FUNAI,

Argemiro Turíbio. Tomamos conhecimento da mudança do Cacique Geral. Sabino Albuquerque,

cacique anterior, havia sido derrotado nas eleições realizadas em maio daquele ano, dando lugar a

Lourenço Muchacho. Nesta tarde haveria também uma reunião das lideranças. Por isso estavam no

local, o então Cacique Geral, Lourenço Muchacho e outras lideranças locais da Cachoeirinha, como

o presidente do Conselho Tribal, pastor Zacarias da Silva.

Percebemos pelo lado de fora dois veículos da FUNAI (da administração regional)

estacionados no local. Pouco depois um veículo com placa do município de Sidrolândia trazendo

três homens, estacionou em frente ao PIN. Estes homens eram representantes de uma Usina de

produção de Açúcar e Álcool, e seriam responsáveis pelo recrutamento de trabalhadores. Os

homens entraram e ficaram reunidos com o Chefe do Posto.

Conversamos com Jesulino de Souza, encarregado da Usina Santa Olinda, do Grupo

Empresarial José Pessoa, que opera no município de Sidrolândia. Estavam em Cachoeirinha além

dele, um médico e uma representante do departamento de pessoal, para contratar duas turmas de 45

homens, que ficariam fora da reserva 70 dias, trabalhando nas Usinas. O Grupo José Pessoa é

proprietário ainda da Usina Debrasa no município de Bataguaçu, Abenalco (no estado de São 24 Fonte: Distrito Sanitário Especial Indígena/DSEI, Pólo Base de Miranda.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Paulo), Sanagro (Minas Gerais e Sergipe) e ainda uma outra no Rio de Janeiro. Segundo Jesulino,

que trabalha neste ramo há 17 anos, a maior parte da mão obra empregada no Mato Grosso do Sul

pelas Usinas do Grupo José Pessoa é indígena, recrutada principalmente em Cachoeirinha, Pilad

Rebuá, Taunay e Buriti. A Usina trabalha com uma média de 15 grupos de 45 homens. Segundo ele

a Usina também emprega brancos, que trabalham o ano inteiro, somente os índios ficam por

contratos temporários.O Plantio de cana é feito o ano inteiro, mas a safra somente a partir de maio.

A produção é destinada a exportação.

O procedimento para o recrutamento, relatado por Jesulino e por nós observado, é o

seguinte: o responsável da Usina (o “gato”) procura os “cabeçantes” (agenciadores indígenas de

grupos de trabalhadores), que por sua vez seriam indicados pelo Cacique e pelo chefe do PI. Os

representantes da Usina fazem então exame médico e recolhem os nomes (pudemos vê-los levando

as carteiras de trabalho dos indígenas indicados). Eles esperavam o retorno do Cacique Geral, que é

quem assinaria o contrato. Pudemos ouvir um dos representantes da Usina afirmando que o Cacique

receberia sua parte depois. As turmas sairiam para o trabalho no dia 08/10/2002 e os cabeçantes

responsáveis por elas seriam Jorge Vitor e Sebastião Vitor.

Um pequeno incidente ainda aconteceu, entre um homem Terena, que ao que parece insistia

em entrar no PIN para ser colocado na lista dos indicados para o trabalho e o Cacique Lourenço,

que o retirou do local com empurrões e esbravejando bastante. Logo após os representantes da

Usina se retiraram, e o procedimento para a contratação de trabalhadores, foi encerrado.

A Organização da Política, Economia e Cultura.

Esta situação social nos permite traçar um quadro morfológico, tanto da sociedade Terena

como um todo, quanto do quadro das suas relações de interdependência com outros grupos e

instituições sociais. Este quadro de inter-relações irá abrir espaço para uma caracterização mais

precisa da atua l situação histórica, e para a reflexão crítica sobre ela. Em primeiro lugar, podemos

utilizar a situação acima descrita, para fazer uma descrição das formas de organização política

entre os Terena. As terras ocupadas pelos Terena são divididas em aldeias, Cachoeirinha, por

exemplo, é subdivida em cindo aldeias.

Cada uma destas aldeias tem um cacique próprio. Entretanto, o Cacique da Sede, é o

Cacique Geral, e têm um poder político maior que os demais. Este poder está associado

fundamentalmente à situação social descrita acima, que tem uma profunda importância na

sociedade Terena como veremos ao longo deste trabalho. É o poder de regular e mediar a

contratação de trabalhadores. As aldeias Terena possuem “Conselhos Tribais”, que variam em

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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número de membros de caso a caso, indicado pelo Cacique, escolhido normalmente em eleições.

Este sistema é utilizado em praticamente todas as aldeias Terena.

Para compreender o funcionamento desta organização política indígena, é fundamental

compreender também a relação dos índios com as instituições estatais. Na situação social acima

descrita, vemos que a o Chefe de Posto da FUNAI, era um índio Terena. Era ele, juntamente com o

Cacique, que regulava as relações econômicas com os representantes das Usinas, assim como os

outros representantes da FUNAI, que estavam no local. Assim, o funcionamento da organização

política entre os Terena é caracterizado por esta inter-relação com as instituições de Estado.

Além desta importância local, o que é mais importante indicar, é o poder que os Terena

enquanto grupo étnico tem sobre o funcionamento da máquina da FUNAI no Mato Grosso do Sul.

Pelo menos desde meados dos anos 1980, o administrador da regional de Campo Grande da FUNAI

é um índio Terena. E mais importante que isto, os administradores da FUNAI são indicados pelos

Terena, ou mais especificamente pelos Caciques Terena de todas as aldeias do estado, que se

reúnem com certa regularidade, para tratar de assuntos relativos a FUNAI e outras questões que

afetam a vida deste grupo. Mesmo quando o Chefe do PI não é um índio Terena, já existe uma

relação de controle político que os Terena exercem sobre a administração regional da FUNAI em

Campo Grande, através de pressões variadas (que podem ir desde as contínuas visitas e solicitações

de reuniões, passando por abaixo assinados e denúncias públicas, até a ocupação do prédio da

administração regional). É por sua vez a Administração Regional da FUNAI que detém o poder de

reconhecer e legitimar as lideranças indígenas locais, ou seja, os Caciques, que negociam com ela a

aplicação de recursos (materiais e simbólicos).

A organização política entre os Terena, em termos gerais, funciona sobre estas bases. No

plano local o Cacique e o Conselho Tribal, o Chefe de Posto, regulam conjuntamente, as relações

políticas e parte das relações econômicas; no plano regional, o Conjunto dos Caciques Terena e

FUNAI/ AR Campo Grande, regulam a vida dentro dos grupos locais (compreendendo

fundamentalmente as aldeias e terras indígenas).

É importante sinalizar também, que no plano local, dentro de cada aldeia, esta organização

política se sobrepõe às formas de organização social especificas do grupo, e estamos entendo aqui

tanto as relações de parentesco, quanto às organizações formais religiosas e associativas existentes.

Em Cachoeirinha, nos referimos a Igreja Católica, da qual o Cacique Lourenço foi uma

liderança e na qual a família Turíbio também tem peso importante. Existem ainda outras Igrejas

evangélicas, mas em sua grande maioria, estas igrejas se formaram a partir de processos de fissão

dos membros da Igreja Católica. Referimos-nos também as “associações”, organizações indígenas

fundadas com o objetivo de obter recursos e organizar o trabalho e produção entre os índios.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Argemiro Turíbio, Chefe do PI na situação descrita acima, foi presidente de uma das associações

criadas em Cachoeirinha.

Com relação à organização da economia, é fundamental observar que os Terena são uma

sociedade composta majoritariamente por camponeses pobres e semi-proletários. Mas a situação

social que descrevemos ilustra bem que a condição camponesa dos índios se inter-relaciona com

uma pluralidade de situações na estrutura econômico-ocupacional. O que a situação social acima

descrita permite revelar, é que a sociedade Terena se estrutura economicamente em função das suas

inter-relações no contexto regional. A observação etnográfica e dados de uma pesquisa realizada

pelo CTI permitem delinear um conjunto de ocupações pelas quais a população indígena se

distribui.

Quadro 3 - Estrutura Ocupacional de CACHOEIRINHA (Fontes CTI - 1997) Principais ocupações declaradas pelo dono da casa.

SEDE

Morrinho Babaçu Lagoinha

Total de cada segmento

Lavourista 141 26 30 15 212 Feirante 30 10 7 47 Professor (a) 2 1 2 5 Missionário/pastor 2 1 3 Tratorista 2 2 Campeiro 1 1 Marreteira 1 1 Motorista 2 2 Eletricista 1 1 Operador 1 1 Ceramista 1 1 Cabeçante 1 1 1 func. Funai 1 1 Manut. Maquinas 1 1 Segurança 1 1 Merendeira 1 1 Horticultor 1 1 Aposentado 96 13 14 123 Total 188 53 54 15 506

Vemos pelos dados acima que daqueles indivíduos identificados como “donos da casa” em

Cachoeirinha, considerando as cinco aldeias existentes, o segmento majoritário é o de lavouristas

(212), seguidos pelos aposentados (123) e feirantes (47) num total de 506 pessoas ocupadas, sendo

que somente dentro das aldeias são encontradas 18 ocupações distintas, incluindo ofícios rurais e

urbanos. Devemos levar em consideração que a pesquisa do CTI somente considera “os donos da

casa”, desta maneira não incluem ainda os ofícios dos dependentes do dono, o que ampliaria

possivelmente o número de ceramistas, lavouristas e professores, por exemplo. Além disso, outras

categorias como marreteiros e empregadas domésticas não estão presentes na tabela. Caberia

destacar algumas ocupações:

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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? os assalariados rurais e operários agrícolas, que trabalham em Fazendas e Usinas de Cana de

Açúcar no Estado;

? os “marreteiros”, homens que trabalham negociando produtos nas cidades.

? as ocupações ligadas ao setor de serviços que, compreendem um conjunto de heterogêneo de

funções, dentre os quais encontramos efetivamente dentro das áreas indígenas: a)

funcionários públicos federais, especialmente o Chefe de Posto da FUNAI e os demais

funcionários do posto e agentes da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde); funcionários

públicos estaduais e municipais, especialmente os professores indígenas e demais

funcionários das escolas (como merendeiras); b) empregadas domésticas nas cidades e

fazendas da região, ocupação essencialmente feminina.

Este conjunto heterogêneo de ocupações é produto e produtora da constante mobilidade

social e espacial dos índios Terena no estado do Mato Grosso do Sul. Também permite dizer que

apesar da diversificação ocupacional, 9 das 18 ocupações se relacionam diretamente as atividades

agropecuárias (como feirantes, tratorista, campeiro) o que mostra que existe uma tendência à

reprodução do modo de vida tradicional, aquilo que os Terena identificam como “kixovoku” ou

“maneira de ser” (no qual estão incluídos o trabalho na roça, por exemplo). Os lavouristas, as

ceramistas e os aposentados pela previdência rural constituem assim as mais importantes

“ocupações” dentro da aldeia, e tratoristas, mecânicos, cabeçantes são ocupações que se subordinam

às atividades agropecuárias, complementando as necessidades técnicas da produção e

comercialização. As demais ocupações são basicamente ligadas à Saúde e Educação, e aparecem

também como uma forma de integração dos índios não somente na estrutura econômica, mas

também política, do Estado (FUNAI, FUNASA e Prefeituras). Desta forma, existem indígenas

ocupados em atividades agrícolas (setor primário), agroindustriais (setor secundário 25) e terciário

(comércio, serviços e administração pública).

A condição camponesa dos Terena assim é apenas o ponto de partida e ao mesmo tempo o

ponto de convergência de uma pluralidade de atividades econômico-ocupacionais, que ao invés de

abalar esta condição camponesa, a reforça num grande sentido.

Em Cachoeirinha, a maior parte dos grupos domésticos está dedicado aos trabalhos na

lavoura, e também com um mesmo grau de importância, ao trabalho temporário nas Usinas e

Fazendas do estado. Podemos falar que a sociedade Terena se organiza também em “fluxos” (ver

25 Note-se que registramos apenas um indígena que afirmou trabalhar na parte de processamento industrial de uma Usina, o então recém eleito vice-cacique de Cachoeirinha no ano de 2002.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Vincent,1988), já que há uma circulação estrutural de pessoas para algumas cidades e regiões

economicamente importantes.

Existe um fluxo de trabalhadores para as Usinas nas diversas regiões do estado; existe

também um fluxo de trabalhadoras (feirantes) para as Cidades, especialmente Campo Grande, onde

existe uma feira indígena. Estamos falando aqui de uma sociedade organizada em fluxos, porque

esta relação de circulação de pessoas e bens é parte da vida dos Terena enquanto grupo étnico.

A produção realizada pelos grupos domésticos no âmbito da aldeia é destinada em grande

parte à comercialização, seja no município de Miranda, seja em Campo Grande. Existem

instituições e redes de relações (a Feira, a Associação das Feirantes Indígenas de Campo Grande),

que regulam estas mesmas relações. A vida dos grupos domésticos dentro das aldeias também é

profundamente marcada pelas relações de trabalho, de maneira que grande parte dos homens acima

de 16 anos de idade insere-se no mundo das relações de trabalho, seja nas Usinas, seja nas Fazendas

e ainda em outras ocupações. Mas o trabalho nas Usinas se destaca como uma das principais formas

de interação econômica, tendo um grande impacto sobre a vida do grupo. Existem ainda as outras

ocupações dentro das aldeias, aquelas vinculadas ao serviço público, especialmente nas áreas de

educação e saúde. Estas ocupações estão associadas a um nível de escolarização maior, e são muito

valorizadas pelos Terena. Mas estão disponíveis ainda a uma parcela comparativamente menor de

pessoas que as ocupações ligadas à produção agrícola e ao trabalho manual. Além disso, quase

todos os Terena se revezam em atividades na lavoura e suas ocupações enquanto professores ou

funcionários públicos.

Existem ainda as questões ecológicas, que influenciam grandemente a dinâmica da produção

e da economia. O período entre agosto e outubro é o período de seca, enquanto entre novembro e

março, é um período de chuvas. O período da safra, geralmente se dá entre abril e julho. É claro que

isto é basicamente relativo às lavouras de arroz, feijão,mandioca e leguminosas. A lavoura da cana-

de-açúcar, segue uma outra dinâmica, de maneira que é possível para muitos índios trabalharem nas

suas lavouras e nas Usinas de açúcar, sem haver uma contradição entre as duas atividades.

O quadro abaixo serve para indicar as formas de dispersão e migração dos Terena no

contexto do Mato Grosso do Sul e mesmo outros estados.

Quadro 4- Filhos vivendo fora da reserva por localização (fonte: CTI, 1997) Municípios Sede Morrinho Babaçu Lagoinha Campo Grande

61

Corumbá 4 7 Aquidauana 1 4 Miranda 2 4 Vanuíre/SP 1 São Paulo 1 Rio Verde 2

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

82

Anastácio 2 Cuiabá 2 Bonito 1 Brasília 1 Araçatuba 2 N/D 13 13 TOTAL 93 (desses 38 contribuem com a

manutenção da família na aldeia) 11 (desses 3 contribuem com a família na aldeia)

13 4 121

A grande maioria dos egressos das aldeias de Cachoeirinha é da Sede (93), sendo que seu

principal destino é a capital sul mato-grossense Campo Grande.; Corumbá (11) é o segundo lugar a

concentrar o maior numero de “filhos” de índios Terena. Cerca de 1/3 dos migrantes, contribuem

economicamente para a manutenção da família na aldeia, o que mostra que existe uma manutenção

das obrigações sociais e vinculação dos grupos domésticos em diversos tipos de situação (aldeia e

cidade). Estes fluxos são compostos também pelos grupos de “visitantes”, aqueles que morando

definitivamente ou há muito tempo nas cidades vão a aldeia regularmente visitar parentes ou

participar de festas e rituais religiosos. Desta maneira, não podemos falar de uma morfologia da

sociedade Terena sem levar em consideração os “fluxos e os fixos”, que constroem as redes sociais

articulando diferentes territórios.

Como já foi observado pela etnografia Terena em outros momentos (ver Cardoso de

Oliveira), as reservas indígenas são antes de qualquer outra coisa, uma “reserva de mão de obra”,

que é disponibilizada hoje para as Usinas de Açúcar no Mato Grosso do Sul (lembremos que como

disse um de seus funcionários, a maior parte da mão de obra é indígena).

Com relação à organização da cultura, podemos dizer que algumas considerações sobre a

biografia dos atores individuais envolvidos na situação social mencionada, também nos permitirão

traçar as características gerais da organização da cultura entre os Terena. Argemiro e Lourenço são

ambos membros de grupos domésticos que tem uma intervenção importante nas atividades culturais

dentro de Cachoeirinha. Além disso, enquanto Chefe de Posto e Cacique respectivamente, também

jogam um papel decisivo nos rituais.

Argemiro, por exemplo, é de uma família que teve um dos mais importantes “curandores”

de Cachoeirinha, pelo menos dos últimos 40 anos. O próprio Argemiro já havia nos revelado ter

tido iniciação nas práticas xamanísticas, com Mário Lemes, um parente seu (koixomuneti conhecido

na aldeia, e falecido no ano de 2002). Lourenço seria filho de um “curandor”.

As atividades xamanísticas têm ainda uma grande importância em Cachoeirinha. Elas se

encontram articuladas com as diferentes formas que o cristianismo assume dentro das aldeias, seja

através de relações de oposição, seja de composição. O xamanismo se encontra profundamente

articulado com o catolicismo, de maneira que os grupos domésticos aos quais pertencem os

curandores, normalmente se dedicam à administração da Igreja Católica e a promoção de uma série

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

83

de ritos cristãos. Os principais ritos promovidos pelos católicos são as “festas de santo”, que variam

de acordo com as aldeias, e mesmo, com os grupos domésticos, mas a maior parte do ano, as

atividades das aldeias Terena são marcadas pela realização de rituais. As igrejas evangélicas se

caracterizam por uma dinâmica própria, mas os membros delas se relacionam de maneiras muito

diferentes com xamanismo e com o catolicismo, podendo ocorrer desde a oposição total, até formas

de participação nos ritos e festas.

Existe ainda, uma outra ordem de atividades simbólico-culturais, e que tem uma grande

importância para a identidade Terena, tal como definida no atual contexto histórico. É o “Dia do

Índio”, ritual em que são realizadas diversas atividades, mas da qual a principal é a “Dança do Bate-

Pau” (Hiokixoti-kipahe, cuja tradução literal seria “Estar Vestido de Ema”). O Dia do Índio é

celebrado em todas as aldeias Terena, e na maior parte delas, quando se pergunta sobre algo

importante para o grupo, os Terena indicam o Dia do Índio. E neste ritual, de caráter

fundamentalmente político, podemos ver que as figura do Cacique e do Chefe do Posto se colocam

como centrais, articulando toda uma serie de representações e artefatos simbólicos que dizem

respeito a reprodução das identidades nacional e étnica. No mesmo mês, tradicionalmente se realiza

também o oheokoti, ritual xamanistico realizado na “semana santa”.

Quer dizer, existe um complexo de rituais, que articulam diferentes representações

simbólicas, e que marcam a vida dos Terena enquanto grupo étnico diferenciado. Estas formas

simbólicas estão materializadas em ritos e mitos específicos do grupo, que dão significado para a

sua experiência histórica e dão algumas explicações também sobre o ordenamento social. A

organização da cultura entre os Terena se relaciona muito explicitamente com sua economia e

política, e é o produto da experiência histórica do grupo, tanto das relações de dominação, quando

das estratégias de resistência adotadas pelos indígenas.

O que aqui chamamos de sociedade Terena se compõe dos territórios indígenas, dos grupos

domésticos e indivíduos concretos que se reproduzem socialmente neles, e as redes e fluxos sociais

que estes constroem para além de seus próprios territórios.

As considerações realizadas acima, sobre a organização da política, economia e cultura, são

válidas em termos gerais, para o conjunto das comunidades- locais Terena. É claro que existem

variações (de grau de importância econômica e demográfica, de práticas culturais em cada

comunidade- local), mas estes traços são à base dos processos de socialização da maior parte dos

índios Terena. A análise detalhada da organização da cultura, da economia e da política entre os

Terena, será realizada em outros capítulos. Agora cabe ampliar a escala do local para o global e

considerar estes traços de morfologia social, no contexto regional e nacional de que fazem parte.

2.7 - Terras Indígenas e Grupos Étnicos.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Os processos de territorialização e o modelo de inserção na estrutura de classes impostos

pelo regime tutelar, moldaram a sociedade Terena. Iremos agora ver como isso se deu, tanto no

contexto local como regional. Essa análise regional exige dois movimentos analíticos distintos:1º)

uma caracterização mais precisa dos territórios e grupos étnicos, de sua composição social, para que

tenhamos uma base de comparação entre Cachoeirinha e outros territórios indígenas e compreender

seu papel na sociedade regional; 2º) uma caracterização mais precisa da situação econômica e

política do estado do Mato Grosso do Sul e da cidade de Miranda, espaços sociais das arenas e

campo das relações interétnicas desta etnografia.

Os Terena se encontram localizados em três estados do Brasil: Mato Grosso do Sul (com

nove terras reservadas), São Paulo (localizados nos Postos da FUNAI de Araribá e Icatú), e no Mato

Grosso (no município de Rondonópolis).Segundo os dados do censo 2000 do IBGE, a população

total do estado do Mato Grosso do Sul é de 2.078.070 milhões de pessoas, sendo a população

urbana de 1 746.893 e a rural de 331.177 e a população indígena de 53 mil pessoas26. Levando em

consideração somente os dados do IBGE, os povos indígenas representariam mais de 15% da

população rural do estado.

A FUNAI no Mato Grosso do Sul, responsável pela administração da política indigenista, é

composta por duas Administrações Executivas Regionais (AER) - Campo Grande e Amambaí, e por

um Núcleo de Apoio em Dourados. A FUNAI/AER-Campo Grande tem sob sua jurisdição a

população Terena, Ofaié-Xavante, Guató, Kadiwéu, Atikum e Quiniquinau. A FUNAI/AER-

Amambaí tem 5 PIN’s, com população Guarani Kaiowá e Nhandevá. O núc leo de Dourados tem 3

PIN’s com população majoritariamente Guarani Kaiowá (há cerca de 1.000 Terenas no PIN

Dourados). Abaixo segue um quadro com as características demográficas dos povos indígenas,

número de terras e em quantos municípios eles se encontram.

São encontradas 6 etnias indígenas reconhecidas pela FUNAI (Guarani; Guató; Terena;

Kadiweú; Ofaié-Xavante; Atikum). Existem ainda povos não reconhecidos pela FUNAI, como os

kamba, ou dados como extintos, como os Quiniquináu residentes em áreas Kadiwéu e Terena. A

população indígena se encontra distribuída em 74 dos 77 municípios do Estado, nas diferentes

regiões econômicas e ecológicas, sendo que esta presença pode corresponder à existência de

reservas e terras indígenas ou, na maioria das vezes, a de indivíduos e pequenos grupos domésticos

residentes. 26 Os critérios de classificação do censo empregam cinco alternativas de designação: Branca, que indicou - 1 135 811, Negra 71 139, Amarela - 16. 263, Parda – 788.797, Indígena - 53 900, Não declarado - 12 162. Independentemente das críticas que se possa realizar a metodologia e aos critérios de classificação, é importante indicar que o censo retrata a diversidade étnico-racial ao mesmo tempo que permite colocar algumas questões teóricas, como o problema da mestiçagem e do branqueamento, tão discutido na sociologia e antropologia brasileira. Existem divergências a respeito do total da população indígena no Brasil. As estimativas do ISA, do CIMI e da FUNAI divergem das do IBGE para o conjunto do país, mas se aproximam no que diz respeito ao Mato Grosso do Sul.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

85

Quadro 5 -Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul 27

Etnias População Terras Municípios

Guató 382 1 1

Kadiwéu 1.592 1 2 Ofaié-Xavante 58 1 1

Terena 17.741 12 8 Guarani 25.741 10 17

Atikum, Quiniquinau, Kamba Sem informações 0 4

Os Terena estão entre as sociedades indígenas de maior escala demográfica no Brasil. No

estado do Mato Grosso do Sul, os Terena são a segunda maior população, depois da Guarani.

Existem três categorias de classificação para as áreas indígenas: 1) Terra Indígena; 2) Posto

Indígena; 3) Aldeia. A categoria Terra Indígena é usada para identificar um território ocupado por

índios seja regularizado juridicamente ou não. O PIN indica a existência de uma unidade

administrativa básica da FUNAI, ficando sediado dentro de uma terra indígena. A aldeia é uma

unidade criada pelo grupo indígena e reconhecida ou não pela FUNAI. Dessa maneira uma mesma

Terra Indígena pode ter ou não um PIN e ter ou não várias aldeias.

Abaixo apresentamos um quadro da distribuição do povo Terena no Mato Grosso do Sul. As

categorias usadas são aquelas empregadas pela FUNAI em seus documentos administrativos e

também pelo grupo:

Quadro 6 - FUNAI - AER-Campo Grande

Terra Indígena

Aldeias PIN Município

Água Limpa Rochedo

Aldeinha 28 Anastácio

Buriti Buriti Córrego do Meio

Água Azul

Buriti Dois Irmãos do Buriti e Sidrolândia

Buritizinho Tereré Sidrolândia

Cachoeirinha Sede Argola Babaçu

Morrinho Lagoinha29

30Cachoeirinha Miranda

Lalima Lalima Lalima Miranda

Pilad Rebuá Moreira Passarinho

Pilad Rebuá Miranda

Limão Verde Limão Verde Córrego Seco

31Limão Verde Aquidauana

27 Esta tabela foi construída com dados do livro “Aconteceu Povos Indígena – 1996/2000”, do ISA. 28 Aldeinha é um dos casos em que há um funcionário da FUNAI designado e atuante como chefe de Posto, mas o mesmo não se encontra regularizado. 29 Lagoinha não consta no documento da FUNAI, possivelmente foi uma área recentemente. 30 No documento da FUNAI o espaço do PIN Cachoeirinha está em branco.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Taunay/Ipegue Bananal Morrinho

Água Branca Jaraguá

Imbirussú Colônia Nova

Ipegue

Taunay Ipegue

Aquidauana

Nioaque Brejão Taboquinha

32 Nioaque

O quadro permite ver a existência de 10 Terras Indígenas Terena, totalizando 25 aldeias. No Mato

Grosso do Sul existe ainda população Terena em terra indígena Kadiwéu no Município de Porto

Murtinho (PIN São João33), no Município de Dourados (PIN Dourados) em terra Guarani e no

Município de Campo Grande (Aldeia Urbana Marçal de Souza 34). Em Campo Grande há também

população Terena distribuída por diversos bairros da cidade, como Guanandi e Bandeirantes.

Obtivemos acesso a dois censos realizados pela FUNAI nas áreas indígenas, um

correspondente ao ano de 1995 e outro ao ano de 1999, o que nos permite ter uma idéia aproximada

da evolução demográfica. Apresentamos no quadro abaixo os dados correspondentes:

Quadro 7- População Terena. Dados: FUNAI/AER - Campo Grande.

1995 1999

Área Indígena Município População Área Indígena Município População

Buriti Sidrolândia/Dois Irmãos do

Buriti

1.578 Buriti Sidrolândia/Dois Irmãos

do Buriti

2.400

Cachoeirinha Miranda 2.312 Cachoeirinha Miranda 4.000

Lalima Miranda 1.007 Lalima Miranda 1.500

Pilad Rebuá Miranda 1.391 Pilad Rebuá Miranda 1.800

Taunay Aquidauana 2.708 Taunay Aquidauana 3.060

Ipegue Aquidauana 1.364 Ipegue Aquidauana 1.250

Limão Verde Aquidauana 1.456 Limão Verde Aquidauana 1.100

Aldeinha Anastácio 209 Aldeinha Anastácio 236

São João Porto Murtinho

48835 São João Porto Murtinho

55136

Tereré Sidrolândia 284 Tereré Sidrolândia 320

31 O caso de Limão Verde é similar ao de Aldeinha, como a área passou por muito tempo sem regularização. 32 No documento da FUNAI o espaço está em branco, mas existe PIN em Nioaque. 33 Os documentos da FUNAI apresentam informações contraditórias. O PIN São João aparece também como sedeado no município de Bonito. 34 Terra que era segundo informações existentes, de propriedade da FUNAI, sendo ocupada pelos Terena em 1995. 35 Consta como população exclusivamente Terena. 36 Neste censo constam três populações: Terena, Kadiwéu e Quiniquinau

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Nioaque Nioaque 953 Nioaque Nioaque 1.183

Água Limpa (Faz. Bálsamo)

Rochedo 38 Água Limpa (Faz. Bálsamo)

Rochedo 46

Total de Áreas com Presença Terena

Total de Municípios

Total de População Terena

Total de Áreas com presença Terena

Total de Municípios

Total de População Terena

12 8 13.788 12 8 17.746

A população Terena sob a jurisdição da FUNAI/AER Campo Grande cresceu 20% segundo

os dados do censo de 1999. Isso em um período de 4 anos, e os Terena representam um total de

92% da população total da AER. Segundo os dados da FUNAI, o município de Miranda, com as

TIN’s Cachoreirinha, Pilad Rebuá e Lalima é o que tem o maior volume de população Terena

aldeada, são 7.300 habitantes (41% do total de população Terena no MS). Aquidauana vem logo em

seguida com 5.410 (30% do total) habitantes. Estas duas cidades concentram dessa maneira mais de

70% da população Terena Aldeada no estado do Mato Grosso do Sul. O município de Miranda,

local de desenvolvimento da pesquisa, pode ser considerado o principal núcleo do ponto de vista da

concentração populacional. Também foi nas aldeias de Miranda que a população Terena cresceu

mais nos anos corridos entre 1995 e 1999 (aproximadamente 2.500 habitantes a mais enquanto que

em Aquidauana a população sofreu um decréscimo de 128 pessoas).

Além da população denominada “aldeada”(fixada em aldeias), existe também a população

indígena nas cidades. Em Anastácio são 600 Terena morando em bairros e ruas próximas à aldeia,

segundo informações dos próprios moradores do local. O censo indígena de Campo Grande37

identificou 918 famílias que compreendem o total de 3.836 pessoas, destas 733 famílias (80%) são

da etnia Terena, estando 129 residindo na aldeia urbana Marçal de Souza. E os próprios

organizadores do censo admitem que a pesquisa deixou de documentar uma parte expressiva de

indígenas residentes na cidade devido a diversos fatores38.

É importante registrar o profundo contraste em que se encontra o Mato Grosso do Sul;

estado com grande diversidade étnica, com duas das maiores populações indígenas do país, e com

pouca disponibilidade de terras para os mesmos. De certa forma, como quase que a totalidade das

terras indígenas se encontra na Amazônia Legal, é quase que inevitável que nas demais regiões do

país o conflito pela terra seja um dos elementos que marcam a vida dos povos indígenas.

Legenda das Terras Indígenas Terena (Figura 1) 352 – Água Limpa 5 – Aldeinha

60 – Buriti

572 – Buritizinho

63 - Cachoeirinha

186 – Lalima

191 – Limão Verde

219 – Nioaque

242 – Pilad Rebuá

305 – Taunay/Ipegue

37 Censo Indígena de Campo Grande- 1999. Arquidiocese de Campo Grande. Pastoral do Índio. CIMI. Prefeitura Municipal. UCDB. 38 Ibdem p. 7.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Mapa 1 – Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul.

Fonte: Aconteceu Povos Indígenas 2000.

Além disso, os indígenas, e em especial os Terena, tem procurado em numero cada vez

maior se deslocarem para Campo Grande, principal cidade do estado. Mas esta tendência à

concentração em centro urbano não atinge somente a população indígena, já que o crescimento das

cidades se deve também a fluxos migratórios do campo, e não somente a um crescimento

vegetativo. Neste sentido, os Terena acompanham também as tendências e dinâmicas societárias

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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mais amplas. O papel dos grupos indígenas na região ficará completamente claro através de uma

caracterização precisa da economia e sociedade regional.

Considerando os dados demográficos de um ponto de vista histórico, podemos constatar que

as sociedades indígenas estão num novo momento, em que as taxas de declínio que alimentavam as

teses do desaparecimento indígena se atenuaram ou mesmo se reverteram. Em 1957, eram 143

etnias no Brasil, em 2000 no número era 206 grupos; a população total que estaria entre 68 mil e 99

mil em 1957, em 2000 já seria de 270 mil (dados do ISA). 325 mil (FUNAI) e 740 (IBGE); o

número de sociedades com população superiores a 2 mil pessoas em 1957 era de 6, e hoje já de 50

(ver Oliveira Filho, 2006). Logo, não se pode pensar as sociedades indígenas como compostas de

pequenas “microsociedades”. O caso do Mato Grosso do Sul exige ainda mais a ruptura com esse

modelo sociológico.

Economia e Sociedade Regional

Uma compreensão do papel econômico jogado pelo estado de Mato Grosso do Sul na

divisão territorial do trabalho no país, e por outro lado às diferenças intra-regionais, são

fundamentais para o entendimento dos efeitos do tipo de inserção dos índios na estrutura de classes,

porque esses fatores cond icionam as formas de individualização e particularização dos processos

políticos. Esta configuração das relações econômicas, propiciada por condições ecológicas e

reforçadas pelas ações políticas e processos históricos, é à base da diferenciação cultural e política

vividas pelos povos indígenas.

O Estado do Mato Grosso do Sul foi instalado em 1º de janeiro de 1979, tendo sido

desmembrado de Mato Grosso por lei complementar de 11 de outubro de 1977. Ele tem como

limites, ao norte, Mato Grosso; a nordeste, Goiás e Minas Gerais; a leste São Paulo; a sudeste

Paraná; ao sul e a sudoeste, a República do Paraguai; e a oeste, a República da Bolívia. Seu clima é

tropical, e em sua área territorial de 358 158,7 km2 destacam-se as vegetações de cerrado e o

Pantanal. Na planície pantaneira, dada a alternância entre os períodos de cheias e secas, a vegetação

é bastante diversificada, havendo espécies típicas de florestas, cerrados e campos39.

O estado do Mato Grosso do Sul, e a região Centro-Oeste como um todo, não estão entre as

áreas economicamente mais importantes do Brasil quando consideramos os dados macro-

econômicos agregados. Desta maneira, existe uma hierarquia territorial, tanto do ponto de vista da

concentração quanto da produção de riqueza (na indústria, comércio/serviços e agropecuária) na

economia brasileira. Vejamos o quadro abaixo que fornece alguns elementos para reflexão:

39 Com relação aos dados referentes à urbanização, cabem ponderações relativas à metodologia de classificação empregada pelo IBGE, já que ela parte de um critério exclusivamente de densidade demográfica, desconsiderando as atividades econômico-sociais na definição do espaço urbano.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

90

Quadro 8- Quadro - Economia Brasileira por Setor e Região – 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas).

Pessoal Ocupado nas unidades locais População Total País e Regiões

PIB a preços correntes, 2001 (R$ milhão) Indústria Serviços Agropecuária.

Brasil 1.198.736 4.801.611 24.461.604 429.028 172.385.826

Norte 57.026 247. 150 3.834.601 15.116 13.223.859

Nordeste 157.302 978. 773 1.386.544 96.734 48.332.163 Centro-Oeste 86.288 381.803 2.059.847,00 40.708 11.885.458 Sudeste 684.730 4.419.808 12.986.540 196.688 73.501.405 Sul 213.389 1.839. 448 4.194.072 79.782 25.442.941

Vemos pela tabela acima que a região centro-oeste é apenas a quarta em importância econômica,

quando consideramos o PIB como indicador principal, estando muito distante dos principais

núcleos de concentração da riqueza e força de trabalho.

Dentro da região Centro-Oeste, o estado do Mato Grosso do Sul ocupa também uma posição

secundária. Vejamos o quadro abaixo:

Quadro 9- Economia do Centro-Oeste.

UF PIB em milhões (2001)

População Total Pessoal Ocupado

Industria Serviços Agropecuária total Goiás 25.048 5.114.055 175.893 668.884 11.906 856.683 Distrito Federal 33.051 2.101.818 58.179 823.851 2.996 885.026 Mato Grosso do Sul 14.453 2.111.512 60.050 277.680 10.786 348.308 Mato Grosso 13.736 2.558.073 87.681 289.951 14.747 392.379

Os dados sobre a economia da região indicam que o estado do Mato Grosso do Sul tem o

menor PIB do centro-oeste. Sua principal área de concentração de atividades e força de trabalho

assalariada é o setor de serviços, seguido pela indústria. As atividades agropecuárias estão

ocupando a última colocação em termos de concentração de força de trabalho. Mas é preciso fazer

algumas ponderações. Apesar destes dados sugerirem uma pouca relevância do Mato Grosso do

Sul, devemos indicar alguns fatores que contrapõem esta afirmação.

Em primeiro lugar, o PIB per capta de Mato Grosso do Sul é maior que o de Goiás e de

Mato Grosso, sendo inferior somente ao do Distrito Federal Isto expressa a relação entre capacidade

econômica e população (que no Mato Grosso do Sul é inferior a dos demais estados, ver Contas

Regionais, IBGE). Em segundo lugar, o estado que se destaca na região é Goiás que tem um maior

nível de industrialização e tem um maior PIB, sendo que o Distrito Federal fica nos limites do

território deste estado. Brasília, devido a ser Capital Federal, também tem seu PIB pressionado para

cima em razão das atividades da administração pública. O Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul têm

economias parecidas, com faixas de PIB e pessoal ocupado em cada setor da economia, similares.

Em terceiro lugar, é importante também saber analisar o desempenho setorial da economia,

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

91

considerando o papel da agropecuária dentro “agro-negócio40”, e deste último no conjunto da

economia do país, para poder melhor compreender a dinâmica societária nos contextos regiona l e

local.

No Brasil, no ano de 2002, o PIB do ramo da agricultura foi de R$ 72,72 bilhões. O da

agropecuária foi de R$ 125,79 bilhões. O PIB total do agro-negócio no mesmo ano foi R$ 424,32

bilhões. Assim, a Agricultura e a Pecuária somadas foram responsáveis por R$ 198, 51 bilhões do

PIB do agronegócio de 2002, ou seja, mais de 40%41. Podemos concluir afirmando que a agricultura

e a pecuária gozam hoje de uma importante posição econômica, fato que vem se verificando desde

os anos 1980, confirmou-se nos 199042 e que parece que irá se manter como traço fundamental da

vida do país nas décadas iniciais do século XXI. Desta consideração se pode concluir tanto que a

agropecuária está hoje entre as atividades que mais concentram e fazem circular capital no Brasil,

quanto que a própria economia do país nas últimas duas décadas se define por estas atividades e sua

articulação íntima com a indústria de transformação, na cadeia mais ampla do agro-negócio.

O desempenho das grandes regiões e dos estados com relação a este setor da economia não é

homogêneo. Vejamos o quadro abaixo:

Quadro 10- Participação no Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional - 2001.

Unidade da Federação Participação (%)

1) São Paulo 26, 1 %.

2) Rio Grande do Sul 13, 7 %.

3) Paraná 9, 5 %.

4) Minas Gerais 8, 4 %.

5) Santa Catarina 6, 3 %.

6) Bahia 5, 4 %.

7) Mato Grosso do Sul 4, 4%.

As informações acima nos permitem afirmar que o Mato Grosso do Sul não tem uma grande

importância econômica quando consideramos a economia de maneira agregada, mas ao

considerarmos a economia setorialmente, vemos uma realidade diferente. O Mato Grosso do Sul no

40 “A cadeia de “Agro-negócios” compreende setores relacionados ao processamento de produtos agropecuários e à fabricação de produtos utilizados nas atividades correlatas, como por exemplo fertilizantes e defensivos agrícolas e rações e medicamentos para animais.” Relatório do Work-Shop I, Agronegócios. FIESP, 2004. 41 PIB agrícola crescerá 8% no ano, diz CNA. Gazeta Mercantil - Nacional - 19/12/2003 , in www.cna. “A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) estima que o Produto Interno Bruto (PIB) global do agronegócio brasileiro fechará este ano em R$ 458,83 bilhões, com crescimento de 8% em relação aos R$ 424,32 bilhões registrados no ano passado. O PIB agrícola deverá representar algo em torno de 38% de toda a produção de bens e serviços do País em 2003, que deverá ficar estagnada no mesmo patamar de R$ 1,2 trilhão registrado no ano passado”. 42 “O agronegócio responde por 32% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro (cerca de US$ 250 bilhões ano), 38% da pauta de exportações (cerca de US$ 20 bilhões/ano) e mais de 40% da população economicamente ativa).” O que está em jogo na OMC. Folha de São Paulo, 26/10/1999, p. 1. As exportações brasileiras estão assim profundamente vinculadas ao setor primário.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

92

ano de 2001 ocupava a sétima posição entre os estados com maior participação no valor da

produção agropecuária.

Dentro da região Centro-Oeste (que tem 12% do PIB da agropecuária), o Mato Grosso do

Sul é o estado que tem a maior participação, seguido por Goiás (4,3%), Mato Grosso (3,5%) e

Brasília (0,2%). Isto significa que o Mato Grosso do Sul tem 1/3 do valor da economia agropecuária

do centro-oeste, setor que ocupa posição estratégica na economia brasileira. Na indústria de

transformação, que tem grupos de atividades que também integram a cadeia do agro-negócio, o

Centro-Oeste tem apenas 2,5% do PIB nacional. O Mato Grosso do Sul tem 0, 5%, Mato Grosso 0,

5%, Goiás 1,2%, e Brasília 0,2%. Como havíamos dito, a diferença de PIB entre Distrito Federal e

Goiás se explicam em grande parte pela presença da administração pública e extensão do setor de

serviços.

A agropecuária também agregou em média mais valor ao PIB Nacional que a média do

conjunto da economia. No período que vai de 1998-2001 (tomando como base o ano de 1985 =

100), por exemplo, temos o seguinte quadro: em 1998 o PIB do conjunto da economia apresentou

crescimento de 138,1% enquanto que agropecuária de 143,2%; no ano de 2001 a diferença

aumentou; o conjunto do PIB cresceu 149,3% em relação ao ano base, enquanto que o PIB da

agropecuária chegou a 170, 5%43. O valor adicionado bruto ao PIB pelo Mato Grosso do Sul foi de

R$ 12. 302 (milhões). E ainda: “Vimos que a principais lavouras do Mato Grosso do Sul são as do

algodão, do arroz, da cana-de-açúcar, do feijão, da mandioca, do trigo, do milho e da soja – com

forte predomínio, mais recentemente, das duas últimas”. (IBGE, 1996, p.35) A industria da cana-

de-açúcar tem sido uma das mais importantes do Mato Grosso do Sul nos últimos 20 anos.

A cana-de-açúcar é um importante setor no que diz respeito a pauta de exportações nacional.

O Mato Grosso do Sul é um dos estados que tem uma participação nas exportações desse produto.

O quadro abaixo mostra a produção de açúcar dos principais estados produtores do Brasil:

Quadro 11 - Principais produtores cana-de-açúcar - Brasil

UF 94/95 95/96 96/97 97/98 98/99 99/00 00/01 01/02 SP 149.112.904 151.717.203 170.424.122 181.511.031 199.521.253 194.234.474 148.226.228 176.574.250 AL 20.067.353 19.706.078 23.542.254 23.698.079 17.345.105 19.315.230 21.618.069 23.124.558 PR 15.531.183 18.461.963 22.258.512 24.874.691 24.224.519 24.351.048 19.320.856 23.075.623 PE 16.477.943 17.076.508 20.157.163 16.970.789 15.588.250 13.320.164 13.138.516 14.351.050 MG 9.485.374 8.986.524 9.906.236 11.971.312 13.483.617 13.599.488 10.634.653 12.206.260 MT 4.907.255 6.739.310 8 .084.832 9.788.430 10.306.270 10.110.766 8.669.533 10.673.433 GO 5.833.635 6.329.500 8.215.687 8.192.963 8.536.430 7.162.805 7.207.646 8.782.275 MS 3.769.730 4.674.560 5.404.641 5.916.046 6.589.965 7.410.240 6.520.923 7.743.914 PB 3.239.910 3.584.115 4 .742.596 5.329.824 3.888.104 3.418.496 3.423.640 4.001.051 RJ 5.479.990 5.227.817 5.437.211 4.926.275 5.191.421 4.953.176 3.934.844 3.072.603

Fonte: Informação UNICA.

De outro lado, não podemos perder de vista, que a cana integra historicamente cadeias

mercantis internacionais, sendo um dos principais produtos da agro-exportação. São 54 países de 43 IBGE, Contas Regionais, 2003.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

93

destino das exportações brasileiras das usinas de cana e álcool listados nas nossas fontes, sendo o

primeiro do ranking nos anos de 2004/2005, a Rússia, constando ainda diversos paises africanos e

do Oriente Médio como Emirados Árabes Unidos. Nigéria, Egito, Marrocos. Abaixo alguns dados

sobre as exportações brasileiras:

Fonte: Informação UNICA - Ano 6 - Nº 51 - Janeiro/Fevereiro de 2003

Quadro 12 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01 Exportação Total - 2001 Exportação Total - 2002 Mês

Brasil US$ FOB Açúcar US$ FOB

Participação (%) do

Açúcar nas Exportações

Brasil

Brasil US$ FOB Açúcar US$ FOB

Participação (%) do

Açúcar nas Exportações

Brasil Janeiro 4.537.905.000 229.618.827 5,06 3.971.828.775 148.309.343 3,73

Fevereiro 4.083.023.000 74.282.170 1,82 3.658.349.034 127.931.406 3,50

Março 5.167.500.000 116.041.631 2,25 4.260.412.206 63.761.274 1,50 Abril 4.729.698.000 71.822.001 1,52 4.641.399.729 52.996.253 1,14

Maio 5.367.054.000 78.503.793 1,46 4.441.379.547 90.329.025 2,03

Junho 5.041.980.000 163.264.621 3,24 4.078.559.856 186.919.084 4,58

Julho 4.964.485.000 239.760.286 4,83 6.223.3 34.278 229.823.044 3,69

Agosto 5.727.436.000 287.345.097 5,02 5.751.020.402 219.061.211 3,81

Setembro 4.754.965.000 292.192.709 6,15 6.491.806.837 329.861.646 5,08

Outubro 5.002.529.000 291.304.947 5,82 6.474.407.905 268.940.680 4,15

Novembro 4.500.260.000 281.727.815 6,26 5.126.951.442 183.602.649 3,58

Dezembro 4.345.808.000 151.867.191 3,49 5.242.335.956 192.100.759 3,66

Total 58.222.643.000 2.277.731.088 3,91 60.361.785.967 2.093.636.374 3,47

Os produtos derivados da cana-de-açúcar ocupam uma posição importante na pauta de

exportações brasileiras. No período 2001/2002, a participação nas exportações sempre esteve acima

de 3% do total das exportações, se equiparando a outros produtos industrializados. A cadeia

mercantil que vincula a produção do açúcar aos mercados internacionais e as formas de organização

das unidades produtivas e comunidades rurais é assim determinante para a compreensão da atual

situação histórica. Abaixo estão as principais Usinas de Mato Grosso do Sul, num, ranking de 217

posições:. Fonte: Informação UNICA - Ano 5 - Nº 46 - Março/Abril de 2002

Quadro 13 - Ranking das Unidades Produtoras - Centro/Sul - Safra 01/02

ORD. Unidades Produtoras Cana Moída (ton.)

Açúcar (sacas - 50kg)

Álcool Total (m3)

62 Coopernavi (MS) 1.283.565 1.786.380 46.700 71 Debrasa (MS) 1.225.065 --- 96.222 72 Passa Tempo (MS) 1.200.438 1.936.260 24.385 89 Santa Olinda (MS) 1.030.006 735.200 52.359 94 Sonora Estância (MS) 991.689 741.100 58.433 109 Maracaju (MS) 865.283 1.358.360 24.882 145 Sta. Helena - Nova Andradina (MS) 617.540 --- 52.231 158 Novagro (MS) 530.328 --- 41.309

É possível perceber que as Usinas de Mato Grosso do Sul estão ocupando posições

intermediárias em termos de produção e lucro. As principais unidades são do estado de São Paulo.

A Usina Santa Olinda, que surgiu na situação social descrita acima, na safra 2001/2002 era a 4º em

termos de produtividade no Mato Grosso do Sul, e octogésima nona em termos nacionais.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Quadro 14 - Comparativo das Produções de Cana, Açúcar e Álcool de SP e Região CS-00/01

Cana-de-açúcar Açúcar Álcool Estado Toneladas % Toneladas % Toneladas %

Espírito Santo 2.554.166 1,23 45.474 0,36 150.663 1,66 Goiás 7.207.646 3,48 397.440 3,15 318.431 3,51 Mato Grosso 8.669.533 4,19 369.530 2,93 464.357 5,12 Mato Grosso do Sul

6.520.923 3,15 23.635 1,83 314.777 3,47

Minas Gerais 10.634.653 5,14 619.544 4,90 485.063 5,35 Paraná 19.320.856 9,33 989.139 7,83 799.364 8,82 Rio de Janeiro 3.934.844 1,90 307.698 2,44 92.596 1,02 São Paulo 148.226.228 71,58 9.671.388 76,58 6.439.113 71,04 Total Centro -Sul

207.068.849 100,00 12.631.848 100,00 9.064.364 100,00

Fonte: Informação UNICA.

Apesar de estar situado no que poderíamos chamar de “base” da hierarquia da divisão

territorial do trabalho no país, localizado numa região economicamente secundária, em relação ao

Sul-Sudeste, o Mato do Grosso do Sul ocupa nas últimas décadas posição chave em certos grupos

de atividade econômica (como soja e cana de açúcar), que por sua vez são estratégicos do ponto de

vista da política de exportações e comércio exterior do país. Uma vez situada à posição do Mato

Grosso do Sul na economia nacional, podemos avançar na identificação dos principais traços da

economia dentro do próprio estado, de maneira a determinar como a economia e sociedade regional

afetam as relações interétnicas.

Estrutura Ocupacional e Estrutura Fundiária

A estrutura ocupacional no Mato Grosso do Sul apresenta concentração na área de serviços,

com pouca participação das ocupações industriais no volume total de pessoal ocupado e baixos

índices de emprego na agropecuária, apesar de existir grande quantidade de população rural, e de

grande participação deste grupo de atividades na economia do estado. A tabela abaixo mostra a

produção econômica e o pessoal ocupado no estado, dados desagregados por setor e grupo de

atividade econômica.

Quadro 15 - A Economia em Mato Grosso do Sul – 2001. Fonte: IBGE (Cadastro Central de Empresas).

Grupos de Atividade sócio-Econômica. Valor adicionado Bruto 2001

(R$ mil)

Pessoal

Ocupado nas

Unidades legais.

Numero de Unidades

Legais

Agropecuária R$ 3.137.010 10.848 1.679

Industria Extrativa

R$ 36.906

910 161

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Transformação

R$ 1.439.334 41.077 4.327

Eletricidade, água e gás.

R$ 221.436.

2.356 137

Construção

R$ 1.242.302 15.707 1.460

Comércio R$ 1.156.388 91.064 32.184

Alojamento e Alimentação

R$ 295.248.

10.439 2.903

Transportes e armazenagem e Comunicações

R$ 565.942 14.198

2.619

Intermediação financeira

R$ 418.268 5.532 795

Atividades imobiliárias e serviço e prestados a empresas.

R$ 873.442 25.570 5.471

Administração Pública. R$ 2.152.850

94.275 346

Saúde 10.446 1.130 Saúde e educação R$ 405.996 Educação –

10.635 1.157

Outros serviços coletivos R$ 307.550 15.251 5.064

Serviços

Serviços domésticos R$ 98.046

Estes dados quando contrastados permitem uma visualização mais precisa da economia regional e

de seu impacto sobre a sociedade. Em primeiro lugar, quando consideramos os grupos de atividades

de forma desagregada, vemos que agropecuária tem o maior produto econômico, sendo seguido

pela administração publica, indústria de transformação e construção civil, e comércio, que tem

mais de 1 bilhão de reais em produto. Isto significa que o caráter da sociedade no Mato Grosso do

Sul, é especialmente agrário, mas com uma tendência a “terciarização” da economia.

Poderíamos indicar a organização e situação da economia tem impactos óbvios sobre o perfil

da sociedade. A composição social e demográfica das unidades político-administrativas na região

permite determinar algumas características essenciais. Vejamos o quadro abaixo:

Quadro 16 - Municípios e População Rural e Urbana-MS (IBGE – Censo 2000) População residente Classes de tamanho

da população dos municípios (habitantes)

Número de

municípios Total Urbana Rural

Taxa de

crescimento 1991/2000

Razão de

dependência

Mato Grosso do Sul 77 2 078 001 1 747 106 330 895 1,7 55,4

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Até 5 000 8 33 481 18 513 14 968 (-) 1,1 59,6

De 5 001 até 10 000 20 146 935 86 251 60 684 0,9 61,8

De 10 001 até 20 000 28 394 532 278 040 116 492 1,3 58,5

De 20 001 até 50 000 16 438 807 344 264 94 543 1,4 57,6

De 50 001 até 100 000 3 235 676 214 196 21 480 1,4 59,3

De 100 001 até 500 000 1 164 949 149 928 15 021 2,2 53,8

Mais de 500 000 1 663 621 655 914 7 707 2,6 49,9

O estado do Mato Grosso do Sul possui 77 municípios, sendo que apenas duas cidades têm

dimensão para serem considerados como médias ou grandes pelos atuais padrões de urbanização,

que são Dourados e Campo Grande. Cerca de 35% das cidades têm no máximo 10.000 habitantes e

outros 35% delas tem no máximo 20.000. Somente 16% das cidades têm mais de 20.000

habitantes. 70% dos municípios concentram apenas de 27% do total da população do estado

(574.948 pessoas), enquanto que as duas maiores cidades concentram cerca de 40% . Esta tendência

acompanha a dinâmica da urbanização brasileira como um todo, que é a da concentração

populacional da população nas cidades de maior porte (que centralizam as atividades econômicas e

infra-estrutura). Os dados do censo demográfico apontam assim um estado altamente “urbano” do

ponto de vista social. Mas isto não corresponde plenamente à realidade.

O censo agropecuário do IBGE de 1996 indica 200.000 mil pessoas ocupadas em

estabelecimentos agropecuários, o que significa mais de 50% do total de pessoal ocupado nas

unidades legais (que é de 348 mil). Logo, o numero de pessoas ocupadas nas zonas rurais em

atividades agrícolas é muito próxima daquelas ocupada no setor de serviços, e muito superior

àquela ocupada na indústria.

Neste sentido é preciso analisar a economia e a sociedade do Mato Grosso do Sul a partir de

um outro ângulo, já que como vimos, a análise de dados agregados pode produzir alguns equívocos

sérios. Os dados utilizados acima, provenientes do cadastro central de empresas só consideram o

pessoal ocupado nas unidades locais legais e não os estabelecimentos rurais. Os dados do censo,

partindo de critérios demográficos, classificam a população urbana e rural por vias questionáveis.

Logo, grande parte de pessoas que são ocupadas, mas não nos estabelecimentos legais, não foi

considerada. Para corrigir as distorções usaremos os dados do Censo Agropecuário (IBGE-1996),

que faz uma análise mais fina do setor agropecuário, permitindo assim uma visualização mais

precisa da economia e sociedade regional.

Vejamos o quadro abaixo, sobre a estrutura fundiária do Mato Grosso do Sul.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

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Quadro 17 - Estrutura Fundiária do Mato Grosso do Sul - IBGE, Censo Agropecuário 1995-1996.

Valor da Produção44

(em mil reais)

Número de Estabelecimento

s

Pessoal Ocupado

Total de Hectares

Animal Vegetal

Total 49.423 202.709 30.942.772 1.462.458 719.361

Grupos de Área

Menos de 10 há 9.170 24.694 39.681 22.108 15.676

De 10 a 99 há 17.753 56.012 637.163 100.465 64.422

De 100 a 999 há 15.423 59.035 5.992.676 403.125 274.303

De 1000 a 9.999 há

6.493 48.949 16.677.386 778.337 248.375

Mais de 10.000 ha 409 13.516 7.595.866 156.738 114.187

Vemos pelos dados que existe uma considerável concentração fundiária. Os estabelecimentos com

menos de 100 hectares representam 54,7% do total, mas ocupam apenas 2,2% das terras

disponíveis. Os estabelecimentos com mais de 1000 hectares, em contrapartida, representam 14%

dos estabelecimentos, mas ocupam 78, 4% das terras. A concentração de terras acompanha a

concentração de riquezas. Cerca de 65% do valor adicionado na produção animal e mais de 50% da

produção vegetal, estão concentrados no grupo de mais de 1000 hectares. Ou seja, a concentração

de terras expressa também a geração e concentração de renda.

Existe também uma profunda diferença intra-regional. Cada zona econômica e ecológica

tem um desempenho e um perfil social diferenciado. A estrutura fundiária e produtiva também. O

IBGE emprega a distinção em 4 Meso-regiões para classificar diferenças intra-regionais do estado:

Sudoeste do Mato Grosso do Sul; (em que se encontra a população Guarani-Kaiowá e Terena); o

Pantanal sul-mato-grossense (com população Terena e Kadiweú); o Leste de Mato Grosso do Sul;

Centro Norte de mato Grosso do Sul (Terena, Guarani, Kadiwéu). Na região do Pantanal, que

compreende os Municípios de Miranda, Aquidauana, Dois Irmãos do Buriti e Anastácio, estão as

principais terras e reservas indígenas Terena. As terras indígenas Guarani se encontram

principalmente na região sudoeste.

Quadro 18- Quadro da produção e pessoal ocupado na agropecuária, segundo meso-regiões.

IBGE. Censo Agropecuário 1995-1996.

Meso-regiões

Valor da Produção

(em mil reais)

Pessoal Ocupado

Animal Vegetal Numero de estabelecimentos

Responsáveis e membros

não remunerados

Empregados

permanen

Empregados

Temporár

Outros Total

44 O número de informantes sobre os valores varia. Os informantes sobre a produção animal foram em numero de 47.676 e vegetal de 30.754.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

98

das famílias tes ios

Centro-Norte do Mato Grosso do Sul

277.440 152.670 8.779 16.656 14.518 4.206 1.201 36.581

Leste de Mato Grosso do Sul

501.930 173.518 11.780 20.405 22.541 4.938 892 48.776

Pantanal

Sul-mato-grossense

143.227 12.234 4.801 10.529 8.280 1.370 525 20.704

Sudoeste do Mato Grosso do Sul

539.761 380.938 24.063 57.465 26.237 9.984 2.872 96.558

202.709

A região do Pantanal, em que estão concentradas as Terras Indígenas Terena, é a que

concentra menor número de estabelecimentos, e menor número de empregos permanentes e

temporários. As micro-regiões Sudoeste e Leste são as que concentram maior parte do valor da

produção agropecuária. Por outro lado, as duas maiores cidades, Campo Grande e Dourados, com

grande peso político econômico tem, em contrapartida, uma população Terena extensa.

Os povos indígenas do Mato Grosso do Sul, com seus modos específicos de utilização da

terra, se encontram nos grupos com menos de 10 hectares, o que significa que eles estão entre os

segmentos que menos conseguem agregar valor a sua produção agrícola. Vejamos os dados abaixo:

Quadro 19- Terras Indígenas do Mato Grosso do Sul Aldeias Povo Hectares. População Hectare per capta Município

Água Limpa Terena 0 46 Rochedo

Aldeinha Terena 4 236 0,01 Anastácio

Buriti Terena 2090 2.400 0,87 Dois Irmãos do

Buriti/Sidrolandia

Buritizinho Terena 10 320 0,03 Sidrolândia

Cachoeirinha Terena 2644 4.000 0,66 Miranda

Lalima Terena 3000 1.500 2 Miranda

Pilad Rebuá Terena 208 1.800 0,11 Miranda

Taunay/Ipegue Terena 6461 4.310 1,4 Aquidauana

Nioaque Terena 3029 1.183 2,56 Nioaque

Limão Verde Terena 4886 1.100 4, 4 Aquidauana

Elaborado a partir dos dados do ISA.

Poderíamos dizer que o crescimento demográfico das populações indígenas, combinado com

as características e tendências econômicas e sociais regionais e nacionais, estão levando a uma

redução drástica da média de terras disponíveis a reprodução econômica e cultural dos Terena

(estando muito abaixo da média histórica do SPI, de 8 hectares). Este é um dos fatores a produzir

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

99

um fluxo continuo de migração dos Terena para as principais cidades do estado.O fato das TIN

Terena estarem na região do Pantanal criam ainda uma dificuldade muito especifica: é a região que

tem menor oferta de trabalho e emprego nas atividades agropecuárias, tem menor produção no

setor, dentre todas as micro-regiões do estado. A redução proporcional das terras indígenas faz que

a atividade econômica de subsistência exercida no próprio local de moradia (as aldeias) seja

virtualmente inacessível para a totalidade da população existente. Além disso, mesmo aqueles que

estão ocupados nesta atividade econômica dificilmente conseguem tirar sua subsistência

exclusivamente dela, já que a atividade de produção em áreas de menos de 10 ha tem uma renda

média muito baixa.Vejamos o quadro abaixo, com valores válidos para o conjunto do Mato Grosso

do Sul:

Quadro 20- Renda Média por Tamanho dos Estabelecimentos Mato Grosso do Sul - Censo Agropecuário IBGE - 1996

Área HÁ Estabelecimentos informantes. Valor Total da Produção Renda Média Anual Menos de 1 476 R$ 2.525,00 R$ 1.500,50 1 a menos de 2 1269 R$ 3.211,00 R$ 2.240,00 2 a menos de 5 4004 R$ 13.903,00 R$ 1.870,25 5 a menos de 10 3185 R$ 18.144,00 R$ 1.870,25

Uma grande parte do povo Terena dispõe de pouca terra (menos de 1 hectare) para plantio, o

que os coloca numa posição econômica de pauperidade. A renda média obtida é muito baixa (sendo

inferior ao salário mínimo atual em todas as faixas de tamanho de estabelecimento). É neste

contexto econômico-social, em que se situam as etnias indígenas do Mato Grosso Sul, e dentre eles,

os Terena.

Quadro 21 - Valor da Produção (em mil reais) e Pessoal Ocupado. Miranda/MS (IBGE, 1995-1996).

Valor Grupos de Área Pessoal Ocupado

Produção Vegetal Produção Animal

Menos de 10 hectares 1.138 734 782

De 10 a 99 hectares 432 262 785

De 100 a 999 hectares 486 488 2.478

De 1000 a 9.999 hectares 508 1.273 7.546

Mais de 10.000 hectares 536 1.930 10.147

Com relação à cidade de Miranda, onde fica localizada a aldeia Cachoeirinha, os dos do

IBGE indica, que o seguinte: Responsáveis e Membros da Família – 1733 pessoas; Empregados

Permanentes – 1145 pessoas; Empregados Temporários – 166. Destes empregados permanentes,

840 estão vinculados a estabelecimentos com mais de 500 há de terra. Ou seja, à concentração do

trabalho assalariado agrícola se dá também nos latifúndios da região. Cachoeirinha fica localizada

num dos municípios em que a desigualdade social é mais acentuada no Mato Grosso do Sul,

existindo um grande número de pobres e população com baixa renda.

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

100

Quadro 22 - Porcentagem da Renda Apropriada por Extratos da População, 1991 e 2000: IPEA 1991 2000 20% mais pobres 2,7 0,8 40% mais pobres 8,4 4,0 60% mais pobres 17,3 10,1 80% mais pobres 32,1 21,4 20% mais ricos 67,9 78,7

A renda per capita média do município cresceu 87,88%, passando de R$ 132,10 em 1991

para R$ 248,19 Em 2000. A pobreza (medida pela proporção de pessoas com renda domiciliar per

capita inferior a R$ 75,50, equivalente à metade do salário mínimo vigente em agosto de 2000)

diminuiu 13,84%, passando de 60,6% em 1991 para 52,2% em 2000. A desigualdade cresceu: o

Índice de Gini passou de 0,63 em 1991 para 0,80 em 2000. “Em relação aos outros municípios do

Brasil, Miranda apresenta uma situação intermediária: ocupa a 2526ª posição, sendo que 2525

municípios (45,9%) estão em situação melhor e 2981 municípios (54,1%) estão em situação pior ou

igual. Em relação aos outros municípios do Estado, Miranda apresenta uma situação

intermediária: ocupa a 51ª posição, sendo que 50 municípios (64,9%) estão em situação melhor e

26 municípios (35,1%) estão em situação pior ou igual”. (Atlas do Desenvolvimento Humano). Os

indicadores utilizados são o nível de escolarização, acesso a saúde, expectativa de vida e renda.

Poderíamos tirar algumas conclusões acerca da economia e sociedade regional. Podemos

dizer que se trata de uma economia fundamentalmente centrada na agropecuária, já que a maior

parte da produção de valores deriva deste grupo de atividades, concentrando também grande parte

da população economicamente ocupada. A maior parte da população do estado se concentra em

dois centros econômicos, Campo Grande e Dourados (40% da população), e 25% da população se

encontra em cidades pequenas, com menos de 20.000 habitantes. É um estado que segue a tendência

geral da estrutura fundiária brasileira, com grande concentração de terras. Do ponto de vista

demográfico, é um estado com uma grande quantidade de municípios pequenos, que concentram

proporcionalmente, a menor parcela da população regional, e de poucas cidades grandes. Do ponto

de vista intra-regional, temos uma hierarquia de espaços econômicos, sendo que as micro-regiões

Sul e Sudeste são aquelas com maior concentração de riquezas e produção econômica.

A posição social dos índios deriva em grande parte de sua localização territorial no quadro

geral da economia e sociedade regional. No caso de Cachoeirinha, a diversificação ocupacional

encontrada expressa tendências encontradas na sociedade regional: a centralidade das atividades

agropecuárias com uma certa diversificação concentrada principalmente na área de serviços,

acompanhando a terciarização da economia (o que dá um outro sentido para a liberalização do

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

101

regime tutelar, que permitiu a incorporação de índios, significou uma abertura de outra frente

econômica); o assalariamento em ocupações ligadas à agropecuária; as unidades produtivas de

pequeno porte (menos de 10 hectares). Também as tendências à constituição de fluxos e redes

sociais para Campo Grande e Cuiabá são compreensíveis em razão da importância econômica

destas duas cidades; os fluxos de trabalhadores para as Usinas de Açúcar são explicados pela pouca

importância econômica da micro-região do Pantanal, que se apresenta basicamente como região de

latifúndios agropecuários, com pouco pessoal ocupado em empregos permanentes e temporários

(20.704, cerca de 10% do total do estado, enquanto que a região sudoeste concentra 96.558 pessoas

ocupadas, quase 50%). A ausência da oferta de empregos, combinada com impossibilidade fixação

de todos os filhos nas terras da aldeia (e também as estratégias indígenas de diversificação

ocupacional) ajuda a entender o porquê da formação dos fluxos e sua importância para a reprodução

da sociedade Terena enquanto um tipo de campesinato étnico.

O modelo de territorialização e inserção dos índios na estrutura de classes, imposto pelo SPI

e preservado pela FUNAI, teve como efeito direto no caso do Mato Grosso do Sul, que os Terena

fossem colocados nas posições e ocupações inferiores, onde a desigualdade econômico-social é

mais marcante. As especificidades intra-regionais (ecológicas, históricas e econômicas) acentuam

ainda mais esse fenômeno no caso dos Terena e da aldeia Cachoeirinha. O regime tutelar e a

política indigenista reproduziram e agravaram a tendência a subordinação política e econômica dos

povos indígenas. Ter em mente estes dados é algo fundamental para compreender as relações

interétnicas e também, as estratégias e organização social indígena Terena, pois elas estão

profundamente vinculadas a tendências sociais e econômicas acima analisadas.

Ao mesmo tempo não se pode colocar de forma contraditória e excludente a reflexão sobre

as relações interétnicas e de classe, já que elas se encontram imbricadas. Precisamos redimensionar

a questão indígena como uma questão de classe, no sentido que envolve conflitos em torno da

propriedade privada, interesses de Estado e taxas de acumulação de capital e renda. A resistência

indígena nesse sentido, exatamente por ser uma forma de luta contra o regime tutelar, se torna uma

forma particular de luta de classes.

2.8 - A “Retomada”: balanceamento de forças na atual situação histórica (1991-2006).

Pudemos ver pelas informações acima, que a política indigenista e o regime tutelar

produziram efeitos muito concretos sobre os Terena: eles foram colocados na condição de

camponeses pobres, proletários rurais e trabalhadores urbanos; isso significou também a formação

das reservas dentro de padrões do SPI (com até 5 mil hectares em média). Só que em razão do

crescimento demográfico e processos sociais dos últimos 20 anos, o tamanho médio das terras

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

102

Terena decresceu de 8 hectares per capta para menos de 1/5 hectare per capta. É dentro dessas

condições materiais, objetivas, que devemos analisar a emergência do protagonismo étnico e buscar

seus significados. O padrão de territorialização e o modo de inserção na estrutura de classe, fez dos

Terena um grupo subalterno, tanto do ponto de vista global, quanto local. Num certo sentido, existe

no caso do Mato Grosso do Sul uma tendência ao rebaixamento dos padrões de territorialização

estabelecidos pelo SPI, e que ficam muito distantes dos padrões da FUNAI.

Mas se de um lado, os processos de territorialização dirigidos pelo Estado podem ser

tomados como base para definição das formas de intervenção do regime tutelar, as formas de

territorialização dirigidas pelos índios podem ser tomadas como formas de resistência às bases

simbólicas e políticas desse mesmo regime. E é nesse sentido que iremos considerar as técnicas de

resistência empregadas pelos índios dentro dos conflitos fundiários, que expressam o esforço

indígena no sentido de criar outras formas de territorialização (ou questionar os padrões

estabelecidos pelo Estado), como ponto de partida para a análise da interação entre resistência e

tutela. E ao tomar esses processos de territorialização desencadeados pelos indígenas, podemos

perceber como formas de resistência aberta tomam cada vez mais espaço entre os índios de Mato

Grosso do Sul em geral, e entre os Terena em particular. Os dados do Mato Grosso do Sul são

muito significativos com relação a isso. O número de terras ocupadas pelos índios e em disputa com

os proprietários rurais é muito expressivo, como podemos ver pelo quadro abaixo:

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

103

Quadro 23- Ocupação de Terras por Índios em MS. Fonte: Movimento Nacional dos Produtores Invasão Famílias Imóvel Município Área/ha Proprietário Apoio Saída Origem/Famílias 01/11/1985 8 São Miguel Arcanjo Juti 925,00 Miguel Subtil de Oliveira Índios -------- Jarará 24/08/1998 100 Paraná Ponta Porã 400,00 Hani Taleb Índios -------- Município e Proximidades 21/12/1998 80 Fronteira Antônio João 1.400,00 Dácio Queiroz Silva Índios -------- Município e Proximidades 18/01/1999 50 Pito Aceso Ponta Porã 608,00 Amilcar Lima Índios 19/01/1999 Aldeias Próximas 28/04/1999 300 Brasília do Sul * Juti 9.345,00 Jacintho Honório S. Neto * Índios 16/10/2001 Caarapó/Guarani/Caiuás 28/08/1999 30 São Sebastião Sete Quedas 2.300,00 Agro Zoller Ltda Índios 24/12/1999 Índios da Região Tacuru 18/09/1999 100 Santa Maria Paranhos 200,00 Safranor Lopes Índios 20/09/1999 Aldeia Paraguassú -Tacuru 18/09/1999 100 Água Colorada Paranhos 200,00 Roberto Faraco Índios -------- Aldeia Jaguapire-Tacuru 07/10/1999 50 El Shadai* Ponta Porã* 303,00 Ubirajara Mello* Índios 08/10/1999 Município e Proximidades 28/10/1999 40 El Shadai** Ponta Porã** 303,00 Ubirajara Mello** Índios 28/10/1999 Município e Proximidades 16/11/1999 2 Retiro Vinte Laguna Caarapã 40.000,00 Cia. Ag. Past. Campanário Índios 18/11/1999 Município e Proximidades 03/01/2000 30 Ipuitã * Caarapó * 4.330,00 José Roberto Teixeira Índios 05/01/2000 Índios Aldeia de Caarapó 31/01/2000 40 São Miguel Amambai 152,46 Vicente J. de A. Maciel Índios 01/02/2000 Índios Aldeia Limão Verde 04/04/2000 150 Ipuitã ** Caarapó ** 4.330,00 José Roberto Teixeira** Índios 08/04/2000 Índios Aldeia de Caarapó 17/04/2000 70 Flórida Sidrolândia 370,00 Jean Franco Rossi Índios -------- Índios da Aldeia Buriti 17/04/2000 100 Estância Alegre Sidrolândia 370,00 Valéria A. Barbosa França Índios -------- Índios da Aldeia Buriti 25/04/2000 300 Furna da Estrela Dois Irmãos do Buriti 3.900,00 Haroldo Ferreira Côrrea Índios 20/11/2003 Índios Aldeias Sidrolândia 21/06/2000 30 Recanto Ponta Porã 500,00 Eneida Fuchs Índios -------- Índios da região 21/06/2000 30 Chácara Ponta Porã 30,00 Olímpio Cabreira Índios -------- Índios da região 23/01/2001 30 São Francisco Naviraí 276,60 Itrio dos S. Maciel Índios 24/01/2001 Índios Aldeia Teikuê 29/06/2001 20 Iporã Paranhos 184,00 Maxionilio Machado Dias Índios -------- Aldeia Corã 31/08/2001 14 Lote 6 qd. 21 Dourados 15,00 Valdeir Ferreira Leonel Índios -------- Índios da Aldeia Panambizinho 28/08/2002 50 Vitória em Cristo Itaporã 908,00 Associação dos Produtores de Montese Índios 03/09/2002 Caiuá/caarapó/guarani 12/01/2003 30 Brasília do Sul ** Juti 9.345,00 Jacintho Honório S. Neto ** Índios 13/01/2003 Caarapó/Caiuás/Guarani 15/01/2003 30 Brasília do Sul ** Juti 9.345,00 Jacintho Honório S. Neto ** Índios -------- Caiuá/Caarapó/Guaraní 22/02/2003 50 São Sebastião Dois Irmãos do Buriti 300,00 Jorgina Correa Moura Índios -------- Aldeia Burit i 22/02/2003 50 Recanto do Sabiá Dois Irmãos do Buriti 300,00 Justina Correa Ribeiro Índios -------- Aldeia Buriti 22/02/2003 50 N. Sra. Aparecida Dois Irmãos do Buriti 300,00 Cristina Correa Índios -------- Aldeia Buriti 22/02/2003 60 Buriti Dois Irmãos do Buriti 425,00 Waldemar Marques Rosa Índios -------- Aldeia Buriti 06/03/2003 60 Santo Antônio Sidrolândia 56,00 Moacir Franco Índios -------- Aldeia Córrego do meio 26/06/2003 50 Furna da Estrela Dois Irmãos do Buriti 3.900,00 Haroldo Ferreira Côrrea Índios -------- Aldeia Água Azul 18/08/2003 30 N. Sra. Aparecida Dois Irmãos do Buriti 1.300,00 Acelino Roberto Ferreira Índios -------- Aldeia Corrego do Meio 25/08/2003 30 Bom Jesus Sidrolândia 1.200,00 José Barbosa Coutinho (Espólio) Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha

25/08/2003 30 Querência São José Sidrolândia 300,00 Lourdes Bacha Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha 25/08/2003 30 3R Sidrolândia 300,00 Rachid Bacha Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinh a 25/08/2003 30 Buriti Sidrolândia 300,00 Ricardo Bacha Índios 31/08/2003 Aldeia Corrego do Meio e Lagoinha 22/12/2003 1000 São Jorge Japorã 2.000,00 Pedro Fernandes Neto Índios -------- Aldeia Porto Lindo 28/12/2003 300 Paloma Japorã 457,38 Jeadir Silvestre de Carli Índios -------- Aldeia Porto Lindo 03/01/2004 15 Guaçuri Japorã 314,60 Edson Alves Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 03/01/2004 300 Brasil 2 Japorã 314,60 Alberi Pereira de Lima Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 03/01/2004 15 São Marcos Japorã 169,40 Cícero Eugênio Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 04/01/2004 15 Guaporema Japorã 135,52 Márcio Paulo Polzin Indios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 05/01/2004 100 São José Japorã 532,40 José Maria Varago Índios 24/02/2004 Aldeia Porto L indo 05/01/2004 100 Chaparral Japorã 605,00 Luiz Carlos Tormena Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 06/01/2004 15 Sítio Zé Lago Japorã 35,09 José Joaquim Nascimento Indios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 06/01/2004 15 São Sebastião Japorã 7,00 Sebastião Pereira Indíos 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 06/01/2004 15 São Miguel Japorã 252,00 Benedito Machado Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo 06/01/2004 100 Remanso Guaçú Japorã 2.633,00 Flávio Telles de Menezes Índios -------- Aldeia Porto LIndo 06/01/2004 100 São Pedro Japorã 677,60 Joel Rodrigues Índios 24/02/2004 Aldeia Porto LIndo 07/01/2004 15 Estância Varago Japorã 121,00 José Maria Varago Índios 24/02/2004 Aldeia Porto Lindo

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

104

Pelos dados acima, podemos ver que entre 1998 e 2004 ocorrem 49 ocupações de terras

(apenas 1 foi realizada em 1985), 4359 famílias envolvidas, 44 propriedades ocupadas, das quais 29

foram despejadas e cerca de 21 permanecem nas áreas em conflitos. Das propriedades ocupadas no

quadro acima, 11 o foram pelos índios Terena das aldeias de Buriti e Sidrolândia (25% do total), e a

demais 75% pelos índios Guaranis. Deve somar-se a este numero a ocupação realizada em 2005

pelos índios Terena de Cachoeirinha. O envolvimento dos Terena nas ocupações de terras é

significativo, apesar de não ser majoritário.

Ou seja, estamos falando de um novo processo de territorialização, dirigido pelos índios,

com origem nas suas próprias demandas, materiais e simbólicas. As ocupações de terra não são

fatos isolados, mas um processo sistemático de luta política, que se aprofundou a partir do ano de

1998. O número de famílias envolvidas (mais de 4 mil) indica um envolvimento expressivo do

conjunto da população indígena, que poderia alcançar até de 20 mil pessoas (ou cerca de 50% da

população indígena oficial do estado).

Quadro 24 – Fatos Relacionados ao Conflito Fundiário ou Reivindicação de Direitos 45

Reféns feitos Pelos Índios

Propriedades Ocupadas em “Retomadas de Terras”

Bloqueio de Rodovias

Ocupação de Prédios Públicos

2000 2 (funcionários da FUNAI)

3 (Sidrolândia)

1 (FUNAI)

2001

2002 1 (repórter) 6 (BR-163, Rondonópolis, MT).

2003 8 (4 policiais 1 motorista, 3 proprietários rurais)

11 (entre Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti) foram invadidas onze propriedades somando cerca de 10 mil hectares de terras. São elas: Santa Clara, Lindóia, Cambará, Buriti, Bom Jesus, Querência São José, Três R, Quitandinha, Vassoura, São Sebastião, Águas Claras.

1 (FUNAI)

2004

2005 1 (produtor rural)

1 (Fazenda Santa Vitória em Miranda) 1 (Delegacia de Polícia Civil Miranda).

2006 2 (funcionários da FUNASA)

2 (BR-163, Jaguari-MS)

1 (FUNASA – Pólo Base Sidrolândia).

O processo concreto de territorialização dirigido pelos indígenas acaba expressando a

resistência aos padrões de territorialização impostos pelo regime tutelar e também as condições

econômico-sociais que derivam dele, ao mesmo tempo depende da combinação de algumas técnicas 45 Elaborados a partir de notícias de jornal e do “Aconteceu Povos Indígenas”; Folha de São Paulo 07/11/2006

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

105

de luta política, que expressam a oposição aos efeitos do regime tutelar. Nesse sentido, as

ocupações representam a superposição conflituosa de formas de regulação de diferentes grupos

sociais (indígenas e produtores rurais) sobre certos territórios e recursos naturais.

O quadro 24 mostra um levantamento das técnicas de resistência e dos conflitos concretos

envolvendo as ações de índios Terena em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, que se relaciona

diretamente a esta oposição ao modelo de territorialização do SPI/FUNAI:

Vemos que os processos de ocupação são realizados de forma a combinar-se com outras

técnicas de luta política. Podemos dizer que o uso freqüente dessas técnicas permite que as

agrupemos em quatro grandes categorias: 1) ocupação de terras; 2) seqüestros (ou tomada de

reféns); 3) bloqueios de estradas e rodovias; 4) ocupações de prédios públicos. Essas diferentes

técnicas podem ser combinadas como vimos no quadro acima, de maneira que os índios seqüestram

carros e pessoas para realizar uma ocupação ou na seqüência de uma.

A existência de “retomadas de terras” no Mato Grosso do Sul e entre os índios Terena

expressa por si só uma mudança qualitativa nas relações de poder e na correlação local de forças

entre os índios e o Estado. As ações coletivas, públicas, organizadas em torno de um discurso

afirmativo, indicam o desenvolvimento da capacidade política indígena que se articula inclusive

com outros processos sociais difusos (como a escolarização, mobilidade social e espacial e etc).

Podemos falar que a retomada de terras é uma das técnicas da resistência política camponesa e que

o seu emprego indica que os grupos sociais construíram condições materiais, organizativas e

ideológicas, para sua utilização. A partir do momento em que grupos sociais empregam a retomada

de terras, configura-se um conflito político em que os indígenas desenvolvem uma política de

resistência a (e simbolicamente de inversão) uma situação de desigualdade gerada pela dominação

estabelecida. A retomada de terras expressa esse desenvolvimento da capacidade política indígena

através do conflito político que desencadeia novas formas de territorialização.

A utilização dessas técnicas de resistência pelos índios mostra que certas condições políticas

amadureceram a ponto de permitir a passagem de formas cotidianas de resistência para a resistência

aberta. E esse é um componente fundamental desse protagonismo indígena, calcado numa mudança

da co-relação de forças entre índios, Estado e grupos sociais dominantes.

A mudança na co-relação ou balanceamento de forças, na distribuição dos poderes na atual

situação histórica, se dá pela quebra do “monopólio” (nunca plenamente alcançado) de

representação do índio e o poder de substituição da ação indígena pelos agentes de Estado.

O objetivo das ocupações é a revisão dos limites das terras no sentido de sua ampliação, e a

demarcação das terras identificadas como indígenas. Nesse sentido ela afeta diretamente duas das

principais bases da política indigenista e do regime tutelar: o padrão de territorialização e o modo de

inserção na estrutura de classes (já que o aumento das terras e recursos permite uma alteração da

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

106

posição na estrutura de classes). Assim, as técnicas de resistência empregadas se dirigem aos efeitos

dessas bases, procuram modificá- las.

Iremos denominar aqui a atual situação histórica como “situação de retomada”, para indicar

esses processos de territorialização e mudança nas relações de poder. A semântica desta expressão

visa caracterizar os padrões de relações entre os indígenas, o Estado e outros atores sociais,

chamando a atenção para as transformações processadas no conteúdo e na forma do regime tutelar.

É uma categoria etnográfica carregada de significado político e simbólico. Primeiramente,

devemos indicar que quando usamos a categoria “retomada”, estamos empregando uma categoria

utilizada em larga medida pelos próprios indígenas e suas organizações, e também por outros atores

que se articulam politicamente com os indígenas (como o CIMI). A categoria “retomada” é

utilizada para designar a ação de entrada ou ocupação dos índios nas terras que eles reivindicam

como tradicionais. Neste sentido é uma categoria que surge do conflito fundiário e político e

também de processos de territorialização. Em Cachoeirinha, por exemplo, entrevistamos um dos

caciques que organizaram e participaram de uma ‘retomada de terras” (a ocupação de uma fazenda

limítrofe à Cachoeirinha).

“Quando nós tava fazendo reunião aldeia por aldeia, nós tava preparando para fazer essa retomada, Lagoinha, Babaçu e Argola, quem decidiu mesmo para fazer esse retomada foi esse três aldeia. Então até hoje tá esses três aldeias junto, três caciques junto, apesar que dois caciques, eu e Ramão, Lindomar é um líder que lidera as pessoa que veio da Argola. Não esperou cacique de lá, cacique de Argola por enquanto tá indeciso”. (Cacique Zacarias Rodrigues, Março 2006).

A categoria retomada é emblemática da atual situação histórica (situação esta que se

configurou a partir da década de 1990 do século XX) e permite a caracterização de seus traços

sociológicos fundamentais.

Fazendo uma consideração geral sobre o conjunto de processos que identificamos entre os

Terena, podemos dizer que tanto a estratégia dos índios funcionários, quanto das assembléias e

organizações indígenas são empregadas de forma alternada ou combinada. Na realidade, a via da

co-gestão indígena já se consolidou regionalmente no Mato Grosso do Sul, com o controle da

regional Campo Grande FUNAI pelos Terena. A este projeto disseminado entre lideranças e facções

indígenas, está se contrapondo um outro, caracterizado pelas retomadas de terras. Mas não devemos

opor a via da “co-gestão” a via da “resistência”, pois apesar delas tenderem a se neutralizar

mutuamente, elas derivam de processos similares, que são as formas cotidianas de resistência ao

regime tutelar dentro das aldeias e comunidades locais.

Logo, a atual situação histórica, permite que formulemos uma série de problemas. Como

seria possível a eclosão de tais conflitos políticos e tais processos de territorialização e mobilização

política se os índios Terena fossem apenas pólos determinados na relação com a sociedade

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Capítulo 2 – Territorialização e Resistência Indígena.

107

nacional? Como seria possível a existência de retomadas se eles fossem apenas “índios mansos”,

colaboradores periféricos das agências tutelares e indigenistas? Essa resistência verificada na atual

situação histórica que expressa em termos concretos a emergência do protagonismo étnico poderia

ser precedida de um vazio total de conflitos e um completo silêncio de ações dos indígenas? Ou os

conflitos entre os Terena e o Estado se desenvolveram de forma sub-reptícia, sob a égide de uma

aparente “pax” imposta pelo regime tutelar? A nossa hipótese vai nessa direção e é isso que

demonstraremos ao longo dos próximos capítulos.

Pretendemos demonstrar como na realidade a via da co-gestão indígena na realidade aponta

para a reprodução das relações de dominação (particularmente, o regime tutelar) e como ela pode

ser entendida como uma forma histórica de atualização de uma política de colaboração dos índios

com os poderes de Estado. Essa colaboração exige o aprofundamento das formas de dominação

horizontal, viabilizada pela lógica de centralização estatal e descentralização faccional, e pela

reificação da intervenção do Estado nos conflitos internos. Esse faccionalismo por outro lado tende

a enfraquecer as ações coletivas e a própria base do poder indígena. Por outro lado pretendemos

mostrar o fenômeno de emergência do protagonismo étnico é marcado por contradições que lhe dá

um caráter relativamente imprevisível e indeterminado, tendo vários desdobramentos possíveis,

tanto o aprofundamento na co-gestão e colaboração, quanto da resistência indígena. É essa a nossa

tarefa.

Mas para isso, é preciso ver como a política indigenista, desenvolvida a partir de um

momento histórico determinado, consagrou padrões de territorialização das sociedades indígenas. E

ainda como esses padrões de territorialização foram instrumentos de construção do Estado-Nacional

e da economia capitalista, e ao mesmo tempo, como essas formas coloniais implicaram na inserção

dos índios Terena – muito precocemente – dentro de uma estrutura de classes capitalista. A

sociedade Terena, tal como existe hoje, é produto dessa dialética histórica, desse balanceamento de

forças continuo entres grupos indígenas, forças coloniais, classes e agencias estatais. É necessário

fazer uma etnografia histórica das relações de poder entres índios e o Estado, da dialética entre

política indigenista e política indígena e as múltiplas formas de localização e temporalização

associadas a elas, no sentido que buscaremos uma descrição detalhada, local e concreta, dessas

interações e oposições. É o que faremos ao determinar os “tempos e espaços indígenas” na

formação do Estado-Nacional.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

108

Capítulo 3 - Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional: a acumulação colonial de poderes e capitais.

“Estes casamentos também servem de obstáculo para um aldeamento constante; porque muitos são contrahidos em outras diversas e distantes tribus, casando-se muitas vezes os de Albuquerque e Miranda uns com os outros, e com os Cadiuéos, e ainda em outras toldarias vizinha dos hespanhoes, das quaes vem igualmente homens e mulheres ligar com primeiros semelhantes allianças, que ordinariamente são de pouca dura; e como os maridos, sempre se mudam para a morada da mulher, praticando o mesmo os chamados captiveiros, tanto por semelhante motivo como por seguirem, e só por affecto, a seus senhores, resulta d´esta vaga pratica um inconstante circulo de mudanças que em nenhuma parte fixa o centro de sua residência. (...)

Como este capitulo sobre a estabilidade d́ estes Indios é talvez o mais fundamental para desvanecer a esperança de se aldearem elles de tal forma que sejam úteis á mineração, agricultura e população portugeza, eu devo ser mais extenso em relatar alguns fatos constantes e recentes”.

Ricardo Freire de Almeida Serra, Continuação do Parecer sobre os índios Uaicurus e Guanás, 1803

Neste capítulo iremos realizar um estudo da formação histórica do campo e arenas das

relações interétnicas no Mato Grosso do Sul, reconstruindo os processos pelos quais o regime

tutelar se constituiu e se transformou, até assumir a forma com que hoje se apresenta. É uma

história das relações de poder entre os povos indígenas, o Estado-Nacional brasileiro e outros atores

sociais, que visa apreender a gênese das relações de dominação, seus fundamentos (internos e

externos, político-econômicos e simbólicos) e sua dinâmica funcional.

Iremos descrever aqui as situações históricas pelas quais os Terena passaram desde o século

XVI. Isto significa identificar as diferentes formas de balanceamento e equilíbrio de forças entre

índios, forças coloniais e Estado e os diferentes processos de territorialização que os Terena

vivenciaram. O objetivo é compreender como a inserção dos Terena numa estrutura de classes e

seus processos de territorialização, foram construídos historicamente, percebendo também a

especificidade étnica e social dos povos que faziam parte do sistema social indígena do

Chaco/Pantanal.

As duas citações da epígrafe servem para dar o norte da nossa discussão. Em primeiro lugar,

a constatação de um modo de vida indígena marcado por uma profunda alteridade, uma relação

específica com territórios, recursos naturais e grupos sociais, marcados por uma intensa mobilidade,

que leva a constantes “mudanças sociais”; de outro a constatação de que essa alteridade de modos

de vida era impeditiva para um projeto colonial que já se delineava com clareza: a necessidade de

fixação dos índios em territórios para a exploração da sua mão de obra, seja em atividades de

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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mineração, seja na agricultura. Os tempos e espaços indígenas correspondem assim a diferentes

balanceamentos de poder e modos de vida.

3.1 - A “Situação do Chaco”: o sistema social indígena (1543-1775).

A etnografia Terena, ao considerar a história do grupo, menciona sua presença no “Chaco”.

Kalervo Oberg, por exemplo, afirma que “...grupos de Terena continuaram a chegar do Chaco até

a Guerra do Paraguai” (Oberg, 1948, p. 4). Neste sentido, ao descrever a história e a cultura

tradicional Terena, este autor começa a descrever a sua vida no “Chaco” (Oberg, op.cit, p. 6).

Altenfelder Silva, ao considerar a problemática da mudança cultural, diz que a principal foi

“o deslocamento dos Terena do Chaco para o Brasil”. Esta mudança de ambiente teria tornado

inoperante muitos dos elementos da antiga cultura Terena. Afirma que a antiga cultura Terena não

permitia resolver os problemas causados pela mudança de ambiente, e a população brasileira

oferecia aos Terena novas formas culturais (ALTENFELDER SILVA, 1949, p.374). Este autor

também dedica uma parte de seu trabalho a considerar a cultura tradicional Terena associada

sempre a sua “presença no Chaco”.

Roberto Cardoso de Oliveira considera: “A rigor, as primeiras referências que temos sobre

os Terena são devida a Sanchez Labrador (....) Eram, até esse tempo, dos grupos Guaná, o mais

isolado. Segundo Azara (...) os Terena estariam representados por dois bandos, um ainda vivendo

no Chaco, próximo aos Kinikináu, outro a leste do rio Paraguai, sob o paralelo 21º, sobre uma

cadeia de pequenas montanhas que denominavam Echatyá” (....) Todavia não podemos saber qual

desses grupos teria recebido o missionário ou se, na época a que se referiam os informantes

Terena, ainda estariam no Chaco – o que parece ser o mais provável”. (Cardoso de Oliveira,

1976,p. 58).

Existe um consenso na história dos Terena, em se indicar a sua presença no Chaco. Ao

Chaco estaria associada à vigência da “cultura tradicional”. O estabelecimento de relações

interétnicas se daria através do deslocamento migratório dos Terena do “Chaco para o território

brasileiro”, e com isto começaria a “aculturação indígena”. Vejamos que a memória indígena

confirma essa localização territorial. O “Chaco” aparece como “Exiwa” e marca os relatos de

muitos índios quando falam da história das famílias ou do grupo como um todo. Nesse sentido,

podemos falar de uma situação do Chaco e cabe interpretá- la.

A nossa hipótese é que no Chaco, os Terena não constituíam um grupo isolado, com uma

existência paralela a outros grupos isolados, mas faziam parte de um sistema social indígena, que só

pode ser compreendido a luz das relações entre os diversos povos indígenas e em interação com as

unidades locais do sistema mundial – o colonialismo espanhol e português. E segundo esta hipótese

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

110

não houve uma migração do Chaco para o “Brasil, e esta migração não seria conseqüentemente o

marco zero das “relações interétnicas” e da aculturação e assimilação. Na realidade, foi graças a

articulação do sistema indígena com o sistema estatal, através de múltiplas formas de colaboração,

que tornou-se possível o empreendimento colonial e a formação do Estado-Nacional brasileiro.

Os territórios hoje ocupados pelos indígenas do Mato Grosso do Sul são apenas fragmentos

de um território indígena muito mais amplo, que foi desintegrado em meio ao processo de conquista

colonial e formação dos Estados Nacionais sul-americanos. A região em que se encontram hoje as

reservas Terena faziam parte de um território indígena e de um sistema social específico. Para falar

desta história, é preciso falar da história da colonização. Pois é em meio ao processo de colonização

e guerra de conquista que foram produzidos, progressivamente, os saberes sobre os povos indígenas

do “Chaco”. Com relação ao território do que hoje é conhecido como Pantanal:

“A imensa planície inundável situada no interior da América do Sul, hoje denominada Pantanal, foi transformada em terras pertencentes à coroa espanhola, pelo tratado de Tordesilhas no final do Século XV. (...) Desde então, a área inundável da bacia alto-paraguaia passou a ser reconhecida como a fabulosa Laguna de los Xarayes. (...) Em meados do século XVIII, a mesma região passou ser o Pantanal. A denominação foi dada pelos portugueses Del Brasil, os monçoeiros. Estes seguindo as bandeiras paulistas,avançaram além dos limites fixados e 1494 em Tordesilhas e, no início dos anos setecentos, fizeram daquela águas seu caminho às terras conquistadas”. (Costa, 1999, p. 17-19).

Podemos dizer que este território foi um território de posse “indefinida” até o século XVIII,

e que as diferentes classificações (Pantanal, Laguna de Xarayes) e representações cartográficas

acerca dele, comprovam isso. Todo o território do hoje estado do Mato Grosso do Sul era no século

XVI, território da Coroa Espanhola, de acordo com o que foi acertado pelo Tratado de Tordesilhas

(1494) e território indígena de acordo com os fatos. A produção da categoria e da realidade político-

territorial “Pantanal” seria realizada pela luta entre Impérios e pela disputa com as sociedades

indígenas.

Esta informação é importante porque da mesma maneira que o que hoje é território

brasileiro, no século XVI era território indígena, o que hoje se considera o Chaco não corresponde

ao que era o Chaco no século XVI-XVIII. Na verdade, a definição do território do Chaco, assim

como das fronteiras dos Impérios Português e Espanhol, era extremamente fluída. Veremos que esta

fluidez é o produto dos processos de luta político-militar, entre impérios e povos indígenas, ao

longo de três séculos, a partir de 1540. O Mapa número 2 expressa sob forma gráfica toda a

dinâmica territorial do período.

O topônimo Chaco (do Qêchua, “Chacu”) indicava inicialmente a província de Tucúman,

passando a designar posteriormente todo o território a leste dela, numa extensão de 700 mil

quilômetros, abrangendo territórios da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil (Carvalho, 1992, p.

457). A região do Chaco era caracterizada pela existência de uma grande diversidade étnico-

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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cultural, sendo sub-dividida em “áreas culturais”: a do Alto, Médio e Baixo Paraguai. O alto

Paraguai ou Chaco Boreal se estenderia do Porto de Candelária até o rio Jauru, abrangendo

atualmente a região de Corumbá até Cuiabá (ver Susnik, 1978, p.9). Quer dizer, o que hoje se

denomina “Pantanal”, incluindo o pantanal sul mato-grossense, estava integrado no “Chaco

Boreal.”, não constituindo um território distinto dele. Esta região, que mesmo hoje é em algumas

partes incógnitas, foi, contudo, uma das primeiras áreas a serem conquistadas. (Metraux, 146,

p.199):

“A história do Chaco no século XVI não pode ser separada daquela da conquista do Rio Plata. Assunção foi fundada em 1536 somente como uma conveniente base para a exploração do Chaco. Os principais eventos que marcaram aquele período foram: a trágica expedição de Juan de Ayolas, 1537-1539, que atravessou o Chaco até as terras dos Chané, porém no seu retorno foi massacrado próximo a La Candelária pelos indios Paiaguás; a expedição de 26 dias de Domingo Martinez de Irala a partir de São Sebastião, 8 léguas sul de La Candelaria oriental, 1540; a expedição de Alvar Nunes Cabeza de Vaca contra os Mbayá Guaicuru em 1542; a expedição de reconhecimento Domingo Martinez de Irala em 1542 a Puerto de los Reyes...» (Metraux, 146, p.200).

O processo de colonização da bacia do alto-Paraguai, do Chaco Boreal ou Pantanal, nas suas

primeiras fases, não seguiu um plano de ocupação e povoação, pois era visto como um território de

passagem, uma rota para os Andes e Peru, onde se buscava a exploração do ouro. Foi assim que os

espanhóis a concebiam, e um projeto de ocupação e povoamento, só foi realizado pelos portugueses

no final do século XVIII (Costa, op.cit, p. 32, Metraux, op.cit, p. 199). Logo, desde muito cedo os

povos indígenas daquela região se defrontaram com as forças coloniais, primeiramente espanholas,

depois, portuguesas.

A primeira incursão colonial nesta região foi realizada pelo português Aleixo Garcia em

152046, que adentrou o “Gran Chaco”, num primeiro esforço de alcançar as fronteiras das riquezas

Incas47. Em 1526 Sebastian Caboto, a serviço da Coroa Espanhola, organiza uma outra expedição

que adentra a região pelo rio Paraguai. Depois, a partir de 1534, uma expedição comandada pelo

espanhol Pedro de Mendonza, declarado adelantado (titulo dado aos Governadores dos territórios

espanhóis) volta a explorar a região. A partir de 1543, o processo de conquista colonial da região, se

consolidaria. O segundo adelantado, Alvar Nunez Cabeza de Vaca, impulsionaria a expansão

colonial espanhola. Assunção era a base de onde partiam as expedições através do rio Paraguai

46 Aleixo Garcia era um naufrago sobrevivente de uma expedição comandada por Juan Diaz de Solís, que em 1515 navegou no rio Paraná-Guaçu. 47 É interessante notar que Costa afirma que segundo o historiador paraguaio Manuel Dominguez, as terras que seriam denominadas Chaco, eram inicialmente conhecidas apenas como “terras dos Mabayaes”. (ver Costa, op.cit, p. 34, nota 5).

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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acima. Em 1580 seria fundada Santiago de Xerez48, na região de Itatins, onde depois seriam

estabelecidas as missões jesuítas, no ano de 1632, (Costa, op.cit, p. 41-43).

As referências de que se dispõem acerca dos Terena, os indicam como um “subgrupo” dos

Guaná, que ocupavam a região do “Chaco Paraguaio” (Cardoso de Oliveira, 1976) Segundo

Metraux, os grupos de língua e cultura Aruak, estariam divididos em dois ramos. Os “Chané”, auto-

designação usada pelos grupos existentes ao longo do Andes e Guaná, aqueles grupos que

ocupavam a região da Bacia do Paraguai. Entretanto, é preciso notar que segundo registros de

Sanchez Labrador, no Paraguai os Guanás se auto-denominavam Chanás, e a origem do etnônimo

Guaná seria uma denominação atribuída pelos conquistadores espanhóis aos índios “Chané”

daquela região (ver Cardoso de Oliveira, op.cit, p.24).Guaná poderia ser ainda a forma pela qual os

Mbayá-Guaicurú chamariam os Chanés (Susnik, 1978). Os grupos Aruak, denominados

Guaná/Chané estariam ainda subdivididos em quatro sub-grupos: Terena, Layana, Quiniquinau e

Exoaladi. (ver Cardoso de Oliveira, 1976, p.26).

As primeiras referências aos Guaná/Chané, são do século XVI. Elas são feitas por Ulrico

Schmidl, um soldado alemão que integrou as expedições espanholas, e Alvar Nunez Cabeza de

Vaca, governador do Paraguai entre 1542-1546. Os relatos destes são utilizados por Cardoso de

Oliveira para construir sua análise histórica sobre os Terena. É interessante observar que ambos

(Cabeza de Vaca e Schmidl) participaram de expedições nos anos de 1543-45. Estas expedições

alcançaram a região do alto-Parguai, sendo aí encontrados os índios Chanés49.

Ou seja, os índios Terena, se localizavam no século XVI, no território do Chaco; mas este

território não está fora das fronteiras territoriais da região que hoje eles ocupam. Na verdade, as

fronteiras deste território eram relativamente móveis, já que, como veremos, estava integrado num

tipo de sistema social que exigia isso.

O início da Conquista Colonial espanhola com a formação da povoação de Assunção e do

Vice-Reino do Paraguai transformaria profundamente as relações entre os povos indígenas daquela

região da América do Sul. Em primeiro lugar, devemos dizer que se implantam novos conjuntos de

forças e atores sociais: as povoações, os fortes e portos, que instituíram novas bases de comércio e

relações políticas. Este novo conjunto de atores e instituições estabeleceu novas relações sociais; a

ideologia mercantilista da acumulação de ouro-prata criou um circuito de exploração da mão de

48 Esta cidade ficaria localizada as margens do rio Mbotetei (atual rio Aquidauana), que teria sido abandonada anos depois. De acordo com a história regional, outra Santiago de Jerez teria existido, na região de Camapuã, fundada em 1593 (ver Campestrini & Guimarães, 2002, p. 15). . 49 “Estavam certamente no que hoje se chama Pantanal do rio Negro, nas cercanias da cidade de Corumbá. (...) Ao falar sobres os indígenas habitantes de Los Reyes, Cabeza de Vaca cria uma imagem que, por mutações, dará a este lugar uma mítica representação de porta de riquezas. Os Sacocies e Chaneses, já anteriormente relatados por Irala...” (Costa, op.cit, p. 102-103). Cabeza de Vaca teria passado inclusive no foz do rio Miranda e Domingos Martinez de Irala, que assumiria o Governo de Assunção depois dele, explorou os rios Iguatemi e Paraná, e no norte de Corumbá, fundou em 1538 o Porto dos Reis (Campestrini & Guimarães, op.cit, p. 14-15).

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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obra indígena, seja nas povoações, seja nas expedições militares. Algumas parcelas dos índios

foram incorporadas como “trabalhadores-soldados” em empreendimentos coloniais. (Susnik, op.cit,

p. 80)

A cidade de Assunção no Paraguai, os fortes e portos estabelecidos criaram uma nova

dinâmica nas relações entre as sociedades indígenas. Os Guaicurus, puderam ampliar seus ataques

contra os espanhóis e demais povos indígenas. As cidades e povoações coloniais converteram-se em

espaço de “saque e troca”; os Taquiyiquis, Mbayá e outros grupos como os Paiaguás atacavam as

cidades para conseguir ferro, aço, cavalos e gado, que eram utilizados para aperfeiçoar suas

atividades de caçadores-coletores-guerreiros ou canoeiros-guerreiros, aumentando seu poder, ou

então atacavam outros grupos indígenas para buscar cativos, que seriam utilizados como

trabalhadores a seu serviço ou negociados nas cidades e povoações coloniais50.

Logo, duas relações básicas se estabeleceram entre grupos indígenas e colonizadores: a

relação de troca-guerra e a relação de troca-aliança. Cada grupo poderia alternar estes tipos de

relação, situacionalmente. Vale a pena frisar, que o sistema social vigente dentro desta situação

histórica, já era interdependente do sistema mundial e de suas seções territoriais, as colônias

espanholas e portuguesas da América. As bases de funcionamento de suas relações de poder,

organização social e dinâmica, já eram condicionadas por este sistema mundial, através das

agências dos colonialismos português e espanhol, de maneira que é impossível compreender a

dinâmica do sistema social indígena sem compreender suas relações com os diferentes

colonialismos existentes.

3.2 – Conhecer e Destruir: Guaicurus, Guanás e Colonialismos no Chaco/Pantanal.

Para entender a dinâmica da Conquista Colonial e Resistência Indígena no sul de Mato

Grosso, é preciso compreender que um conjunto de forças sociais entrou em choque a partir do

século XVI: o colonialismo espanhol, que estabelecido na região de Assunção no Paraguai,

pretendia avançar ao norte, passando pelo sul de Mato Grosso; o colonialismo português, que partia

especialmente de São Paulo no sentido Oeste, para Mato Grosso; e os povos indígenas, que

ocupavam a região desde o período pré-colonial e que disputavam o controle dos mesmos

territórios.

Uma rápida cronologia do desenvolvimento dos colonialismos no alto-Paraguai aponta o

seguinte: Em 1538 é formada a Colônia de Maracajú, a leste do rio Paraná,por Irala; depois no

50 Os Taquiyiquis entravam nas aldeias cario-guarani da outra orla do aproveitando-se de seus cultivos, dos lugares de boa caça e pesca, provendos-e de adolescentes para exigir abundantes resgates e obtendo também alguns scalps para adquirir o direito ‘ao penado’ do guerreiro de prestigio ou vingar a vitimação antropofágica de algum dos seus.” (Susnik, op.cit, p. 80)

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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período 1542-1543, o Porto de São Fernando (possivelmente a atual Corumbá) e o Porto dos Reis,

ao norte deste, igualmente fundados por Irala. Em 1580 forma-se Santiago de Jerez, nas margens do

Rio Aquidauana. No século XVII, a partir de 1630, formam-se reduções jesuítas conhecidas como

Província do Itatim. Ficavam limitadas ao norte pelo Rio Miranda, ao sul pelo Rio Apa, a leste pela

Serra de Maracaju e a oeste pelo Rio Paraguai. (Campestrini e Guimarães, op.cit, p. 84).

Ainda no século XVII, começam as incursões portuguesas além das linhas de fronteira

traçadas pelo Tratado de Tordesilhas, entrando na região do alto-Parguai. A partir de 1628, o

bandeirante Antonio Raposo Tavares atacaria as missões jesuítas do Guairá e o Itatim, em busca de

escravos indígenas que pudessem ser comercializados no litoral brasileiro. Desta maneira, “... no

final do século XVI, o território hoje sul-mato-grossense (vale do Iguatemi, Pantanal, a será de

Maracajú e Vacaria) era todo conhecido, principalmente pelos espanhóis; e no século seguinte, foi

percorrido por numerosas bandeiras em direção ao norte, ao Paraguai e ao Peru”. (Campestrini &

Guimarães, 2002, p. 15-17).

No século XVIII, se consolida a expansão portuguesa através das monções, que partiam do

litoral, de São Paulo, em direção ao centro-oeste51. A descoberta de ouro em 1718 por Pascoal

Moreira Cabral, é que desencadearia o processo. Em 8 de abril de 1719 surgiu o “arraial da

Forquilha, núcleo de povoamento minerador que daria origem a cidade de Cuiabá. Em 1719 surge a

fazenda de Camapuã, primeiro núcleo português na região do atual Mato Grosso do Sul. Em 1727, é

fundada a Vila Real de Bom Jesus do Cuiabá, iniciando-se então a colonização da região do Mato

Grosso, especialmente a região norte. Configurada estava uma disputa imperial entre Portugal e

Espanha, pelo controle efetivo dos territórios do alto Paraguai, ou do Chaco Boreal. A busca de

ouro marcaria a expansão colonial portuguesa nesta região (ver Campestrini & Guimarães, op.cit, p.

19-23).

O Tratado de Tordesilhas seria revogado em 1750, dando lugar ao Tratado de Madrid, que

estabeleceu uma comissão mista para demarcar as fronteiras, que realizaria seu trabalho nos anos

seguintes. Mas a questão só seria efetivamente resolvida, em 1801, com o Tratado de Badajoz, que

estabeleceu que os territórios da bacia do alto Paraguai seriam da Coroa Portuguesa e do Vice-

Reino do Brasil. (Costa, op.cit, p.58). Entre os séculos XVI e XVIII, então existem duas fases da

colonização na região do Chaco Boreal: a primeira, realizada por espanhóis; a segunda, pelos

bandeirantes e monçoeiros portugueses. Ambos entram na região do alto-Paraguai, denominada

pelos primeiros de “Lagoa ou Mar de Xaraés” e pelos segundos de “Pantanaes”.

Para compreender as formas de resistência e dominação estabelecidas, é preciso

compreender as características do sistema social indígena do Chaco/Pantanal, que é como

51 O termo “monções” designa as expedições que desciam e subiam rios das capitanias de SP e MT, nos sécs. XVIII e XIX, pondo-as em comunicação.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

115

denominaremos o conjunto de relações entre grupos indígenas e forças coloniais estabelecidos entre

os séculos XV e XVIII.

As relações entre os Mbayá-Guaicurú e os Guaná/Chané foram caracterizadas pela etnologia

brasileira como de “simbiose” (ver Baldus e Cardoso de Oliveira, 1976). Esta relação remeteria ao

período pré-colonial, mas teria sido mantida no inicio da colonização espanhola (esta é uma

hipótese, ver Cardoso de Oliveira, op.cit). Entretanto a idéia de simbiose, assim como a de

isolamento, sugere uma imagem equivocada, pois desconsidera o conjunto das relações de inter-

dependência entre os diferentes grupos indígenas e as forças coloniais, considerando a relação

somente entre “dois grupos indígenas”.

Da demarcação de fronteiras acertada em 1750, sairia o relato de Félix Azara, um dos

membros da comissão responsável por estudar e demarcar os limites dos Impérios espanhol e

português. Segundo as informações de Azara:

“A época da chegada dos espanhóis, os Guanás iam, como atualmente, se reunir em bandos aos Mbayás, para lhes obedecer, servi-los e cultivar suas terras, sem nenhum salário. Daí o motivo dos Mbayás os chamarem sempre de escravos seus. É verdade que a escravidão é bem doce, porque o Guaná se submete voluntariamente e renuncia quando lhe agrada. Mais ainda, seus senhores lhes dão bem poucas ordens, não empregam jamais um tom imperativo, nem obrigatório, e tudo dividem com os Guanás, mesmo os prazeres carnais. (Azara, apud in Cardoso de Oliveira, op.cit, p. 31-32).

Percebemos acima a principal característica, que seria depois apontada tanto nos relatos de

militares, governadores, missionários que atuaram na região: a relação de aliança Guaicurú-Guaná.

É preciso descrever o funcionamento desta relação, pois através dela poderemos compreender a

dinâmica do sistema social do Chaco/Pantanal, e conseqüentemente, a situação histórica aqui

considerada, e também os fatores condicionantes do processo histórico posterior (de formação do

regime tutelar).

A relação de dominação e aliança Mbayá-Guaicurú com os Guaná/Chané, formou- se sobre

as demandas político-culturais indígenas e em meio ao processo de transformação das relações

sociais no Chaco por conta do processo de colonização. Esta aliança permitiu, no plano da

organização social e econômica (assim como adoção do complexo “cavalo-aço” no plano da

estratégia militar e dos modos de ação guerreira) o estabelecimento da supremacia Mbayá-Guaicurú

naquela região. No final do século XVIII, o padre Sanchez Labrador, que atuou numa Missão na

região do Chaco/Pantanal faria outro registro da relação Guaicuru-Guaná. Com relação à forma pela

qual se realizava a aliança, temos o relato de Sanchez Labrador:

“Aconteceu que os caciques Eyiguayeuis que se casaram com as mulheres Nyololas, cacicas ou capitãs, tinham por seus os vassalos de suas esposas; desde então os reconhecem como tais. (...) Por isso, os capitães Eyiguayeuis, somente eles tem criados: a plebe Guaicuru não adquiriu direito sobre aquelas gentes. Daí é que os Nyololas apelidam os caciques Guaycurus e seus parentes de nossos capitães; mas ao resto da nação e os que não se acham aparentados com caciques chamam de nossos irmãos. (...) À véspera da partida dos Mbyas, lhes presenteiam

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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seus criados algum grão para a viagem; um bolo, de Nibadana, com que se pintam de vermelho, e alguma manta de algodão, seja branca ou listrada de varias cores, que com gosto tecem os Chanás. Aos Mbayas plebeus não lhes fazem semelhantes presentes...”. (Sanchez Labrador, apud in Cardoso de Oliveira, op.cit, p. 32).

Logo, as relações entre os Mbayás-Guaicurús e Guanás eram efetivadas a partir de uma

categoria social especifica, a dos chefes. Apesar disto ter efeitos sobre as relações de todo o grupo,

mostra uma estratificação social interna a este sistema, de maneira que como se afirma, os Guaicuru

enquanto grupo, estavam acima dos Guanás, mas era através dos chefes e suas parentelas

principalmente, que tal sistema se articulava. E se é correto afirmar a existência de uma aliança

Mbayá-Guaicurú/Guaná é certo dizer também que ela se articulava pela “cúpula” da hierarquia

social, de camadas de chefes para camadas de chefes.

O sistema social autóctone vigente no “Chaco/Pantanal” era caracterizado pela guerra e

pela dominação exercida por grupos indígenas uns sobre os outros, e eles se valiam das relações

entre si e com as agências coloniais para fortalecerem suas posições dominantes. A supremacia

Guaicuru gerou uma contradição ou clivagem entre os povos indígena. Ao mesmo tempo em que a

guerra e a divisão do trabalho dinamizava o sistema social do Chaco nestes séculos, fazia com que

os Mbayá-Guaicurú estivessem parcialmente numa relação de oposição de interesses a certos

setores das sociedades indígenas. Além disso, este sistema criou uma contradição/clivagem

secundária que se tornaria no decorrer do processo, a clivagem central e favoreceria a sua ruína: a

contradição do sistema indígena com o sistema estatal nascente. Este sistema social fez dos

Mbayás um poderoso grupo indígena, que obstruiu o avanço do colonialismo espanhol e português.

Até o final do século XVIII (principalmente entre 1775-1799) os espaços indígenas, eram espaços

de autonomia; mas esta autonomia sucumbiria, em parte pelo poder colonial, mas também pelas

contradições internas a este próprio sistema52. O período de 1775-1790 marcaria início do declínio

desse sistema social indígena. Até aquele momento, todas as mudanças verificadas pela presença

dos colonialismos eram de tipo repetitivo, ou seja, não alteravam a estrutura de poder e de classes,

nem a relação grupos sociais/território/recursos naturais.

52 Devemos lembrar que no sistema social do Chaco neste momento, a supremacia Guaicuru se estabelecia não somente através das alianças, mas principalmente pela guerra e pela força. Mesmo os Guanás não eram poupados em certas ocasiões, dos ataques realizados pelos Guaicurus, e outros grupos indígenas, por sua vez, também moviam ataques contra os Guanás e entre si. Quando o colonialismo espanhol e português avança na região, já existiam assim contradições econômicas e políticas entre os diferentes grupos indígenas. Sem entender isso, é impossível compreender as bases da ação colonial na pacificação da região.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Mapa 2 - Disputa Territorial no Mato Grosso.

Fonte: Arquivo Nacional. Serviço do Estado Maior .

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Figura 1- Representação da Estratificação do Sistema do Chaco/Pantanal.

Grupos Indígenas Componentes 1) Mbayá-Guaicurus (sub-grupos Ejueus, Cadieus e outros ; 2) Payaguás; 3) Guanás (sub-grupos Terena, Quiniquinau e outros); 4) Guaxis; 5) Guatós; 6) Xamacocos; 7) Guaranis. O sistema social do Chaco/Pantanal era composto assim pela inter-relação entre diferentes grupos sociais, meio natural e material e forças coloniais. Pelo menos 7 grandes grupos indígenas e cerca de mais dez sub-grupos participavam desse sistema, que incluía em seu funcionamento as forças coloniais. Em termos demográficos, é possível indicar que esse sistema, já na fase final de existência, era composto por algumas dezenas de milhares de pessoas. Estratos ou Classes. O esquema de estratificação acima mostra as relações de poder entre os grupos indígenas: a “soberba ou etnocentrismo” dos Guaicurus estava relacionada a sua posição dominante. Abaixo, os demais grupos eram considerados pelos chefes guaicurus como “cativos” e deviam prestar trabalho, como caso dos Guanás. Mas dentro da estrutura de estratificação existia também o lugar para cativos dentro dos grupos sociais, que seriam aqueles “capturados” pelos Guaicurus ou Guanás e submetidos e incorporados na comunidade doméstica local. As relações eram tensas e complexas entre chefes e cativos. O cativo representava assim duas ordens de estratificação: em relação ao conjunto dos grupos, opondo os Guaicurus aos demais; e dentro dos grupos, marcando o status familiar e individual.

Oquilidi (Chefes

Guaicurus)

Naati/Unati (Chefes Guanás)

Niololas (“designação dos Comuns” dos

Guaná)

Cativos (segmentos de capturados a outros grupos,

como Guaranis, Guatós e Xamacocos)

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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3.3- O Cerco e o Aniquilamento: situação de diretoria e situação de cativeiro.

O sistema social indígena pôde ser mais bem descrito e analisado por nós a partir do século

XVIII e XIX, quando fontes mais sistemáticas são produzidas. É interessante observar que no que

tange as fontes portuguesas, elas começam a se tornar mais sistemáticas no século XVIII: relatórios

administrativos, crônicas, cartas, estudos. Conforme avançava a conquista colonial, estabelecem-se

empreendimentos cognitivos: “Existe ai um encadeamento terrível em que compreender leva a

tomar, e tomar a destruir”, ou seja, o conhecimento da alteridade era pré-condição para a expansão

colonial (Todorov, 2003, p. 183).

A nossa etnografia é marcada por esse processo; as fontes históricas que utilizamos

expressam essa tensão entre “conhecer, tomar e destruir”. Paradoxalmente, no momento em que os

colonialismos se lançam na ofensiva de destruição desse sistema indígena é que são produzidas

maiores informações sobre ele. Grande parte dos relatos é deixada por militares que cumpriam

funções na Guarda da Fronteira ou realizavam estudos cartográficos e científicos.

Alguns documentos importantes são o “Parecer Sobre o Aldeamento dos índios Uaicurus e

Guanás, com a descripção dos seus usos, , religião, estabilidade e costumes” (publicada na

Revista do IHGB, volume 7, 1845) e “Continuação do Parecer sobre os índios Uaicurus e

Guanás”, estudos escritos pelo militar Ricardo de Almeida Serra, que comandou as forças militares

portuguesas na fronteira com o Paraguai e realizou estudos astronômicos e deixou essas etnografias

sobre os índios (Revista do IHGB, volume 13, 1850). Estes dois documentos fornecem descrições

dos grupos indígenas, das suas relações com as agências dos colonialismos espanhol e português na

região. Outros documentos igualmente relevantes são o “Resumo das Explorações feitas pelo

Engenheiro Luiz D´Laincourt desde o Registro de Camapuã até a Cidade de Cuyabá”, 1824

(Revista do IHGB, vol 20, 1857) e “Reflexões sobre o Systema de defesa que adoptar na

Fronteira do Paraguay em Consequência da Revolta e dos Insultos Praticados Ultimamente pela

Nação dos Indios Guaicurus ou Cavalleiros”, 1826 (Revista do IHGB, vol 20, 1857).

O avanço dos colonialismos narrado acima conduz a um “cerco e aniquilamento” do sistema

social indígena do Chaco/Pantanal. Esse processo atravessa duas situações históricas: a de diretoria

(aproximadamente entre 1790-1860) e a de “cativeiro” (aproximadamente 1870-1900). São essas

duas situações históricas que analisaremos agora, momento em que se deram importantes mudanças

sociais.

Os últimos anos do século XVIII marcam o início do processo da fragmentação do território

e do sistema social indígena do Chaco/Pantanal. Fazendas de Gado, fortes e povoados, representam

a multiplicação das forças coloniais. Neste momento, o acirramento das lutas imperiais fez com que

a Coroa Portuguesa tivesse uma política de ocupação sistemática da região do Chaco/Pantanal,

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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depois que as monções deram início aos empreendimentos mineradores e abriram espaço para as

fazendas e povoados portugueses. Este é o processo inicial de construção do Estado Colonial

Português naquela região, ou seja, de estatização dos territórios indígenas, e da sua subordinação a

um novo esquema de distribuição do poder. Alguns dos principais indicadores desta hostilidade

foram às anulações dos tratados delimitadores de fronteiras: o Tratado de Madrid foi anulado em

1761; e em 1767 e 1777 foram feitos novos tratados (Mendonça, 1982, p.23).

O Mato Grosso foi até 1748 um território integrado na Capitania de São Paulo. Neste ano,

foi indicado seu Primeiro Governador, Antonio Rolim de Moura, que assumiu o cargo em janeiro

de 1751, permanecendo nele até 1764. É neste período que se acirram a tensões entre Portugal e

Espanha, por conta de suas disputas na América. Como quarto Governador da capitania de Mato

Grosso, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cárceres assumiu o cargo com a missão recebida da

Coroa Portuguesa de assegurar os territórios “até o Rio Paraguai” (ver Campestrini & Guimarães,

op.cit,p.34).

A partir de então acelera-se a construção do Estado Colonial português: na região sul do

território, em 1767 funda-se um presídio no Iguatemi; em 1775 é fundado o Forte de Coimbra; em

1778, Vila Maria do Paraguai (hoje Cárceres); em 1778 a Povoação do Albuquerque (aonde está

localizada a atual Corumbá). Ou seja, na segunda metade do século, inicia-se uma ocupação efetiva

da região do “Alto-Paraguai”. Este processo se consolidaria no governo de João de Albuquerque de

Melo Pereira e Cárceres, irmão de Luis Albuquerque. Um fato de fundamental importância para o

processo da expansão colonial na região é o “Tratado de Paz e Amizade”, assinado pelos Mbayá-

Guaicurús com a Coroa Portuguesa em 1791, na cidade de Vila Bela. Este tratado irá possibilitar a

criação dos fortes e povoações em território indígena, de maneira que muitos grupos- locais irão se

estabelecer nas imediações das unidades militares e vilas, como anos antes o acordo com os

Mbayá-Guaicurú havia sido fundamental para derrotar os Paiaguás, e viabilizar o processo de

colonização mineradora portuguesa entre Cuiabá e São Paulo.

Em 1797 é criado o Presídio de “Miranda”. Este foi criado por sugestão de João Leme do

Prado, enviado por ordem do presidente da Província de Mato Grosso, durante o governo de

Caetano Pinto de Miranda. Junto ao presídio forma-se a “Vila Mondego” (esta Vila teria sido

construída sobre as ruínas grupos da antiga cidade “Santiago de Xerez”). Começa a se definir um

novo processo de territorialização dos indígenas.

Neste momento, a autonomia dos povos indígenas seria transformada em problema de

Estado. O contexto de disputa imperial favorecia relativamente os indígenas. A consolidação do

poder português e a formação do Estado Colonial exigia a liquidação da autonomia e do sistema

social indígena. Vejamos o relato do governador da Província de Mato Grosso:

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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“A maior difficuldade que eu encontro, é a do local em que vivem entre portuguezes e hespanhoés, que, a profia pretendem atrahil-os para a sua amizade, e elles manejando estas contrárias pretenções com bastante sagacidade, por este meio, alcançam o que querem de uns e de outros, sem trabalho nem sujeição. Aplaine a nossa corte esta dificuldade, de sorte que elles só fiquem dependentes de nós, e logo, Vmce experimentará uma grande mudança, assim como mais abatido o seu orgulho, ou soberba, a qual em parte procede do modo como presentemente são tratados, e outra parte da posse e uso de seus cavallos”.

Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Cuiabá, 5 de Abril de 1803, Carta ao Tenente Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra.

As palavras do então Governador da Província de Mato Grosso, sugerem que no início do

século XIX os índios sabiam manipular também as contradições coloniais. Fica claro o

reconhecimento da capacidade política indígena. Mas a supremacia Guaicuru estava já ameaçada, e

com ela, todo o sistema social autóctone. O objetivo do Estado Colonial era criar condições para

que os índios “ficassem dependentes” somente do Estado Colonial do Brasil. Delineava-se um

projeto claro de dominação e subjugação dos povos indígenas naquela região.

Entre 1801-180353, Ricardo Franco de Almeida Serra, tenente-coronel responsável pelo

presídio de Miranda, encaminhou um “Parecer sobre o aldeamento dos índios uiacurus e guanás,

com a descrição dos seus usos, religião, estabilidade e costumes”. Este documento contém uma

detalhada descrição dos diferentes grupos indígenas existentes naquela região, e das formas pelas

quais eles se inter-relacionavam com os militares ali fixados. As palavras do tenente-coronel

indicam bem como a “alteridade” étnico-cultural, se apresentava como um problema político:

“O seu systema político, e aferro a seus dados costumes e abusos, a sua vida errante e libidinosa, as suas poucas leis arbitrarias, ou simples e mutuas convenções, mas regras fixas com que se regulam entre si tranquilamente por uma tendência natural e herdada da tradição; o horror que têm para o trabalho, que consideram só próprio de escravos e incompatível com sua innata soberba, suppondo-se pela primeira e dominante nação de índios; contando todas as outras por suas cativeiras, não se julgando inferiores aos mesmos hespenhoes e portuguezes, gabando-se diariamente de que, apezar de sermos muito bravos, nos souberam amansar; esta ridícula altivez e negação ao trabalho, lhes faz desprezar as fadigas da agricultura, que com effeito nao precisam para viverem longos annos, robustos e fartos, achando no rio Paraguay, e nos seus amplíssimos campos a sua sempre provida dispensa. (...) tudo em fim accumula uma confusão de idéias contradictorias, que, parecendo entre si diametralmente opostas, constituem o systema, a moral e conservação de todo o corpo dos uaicurus, formidável as mais nações indígenas do amplissimo Paraguay, e ainda muitas vezes ao mesmo portuguezes e hespanhoes, sobre os quais por dois séculos commetteram repetidas atrocidades, e quase sempre impunemente.

Por tanto Illm e Exm.Sr, não deixando de tocar em alguns factos constantes que as verificam, passarei a expor, não quanto me parece necessário para se aldearem estes índios; de tal forma que sejam úteis a agricultura e a mineração, mas sim as dificuldades, que acho a um estabelecimento fixo e constante, do qual se possam tirar as utilidades que se esperam, e as quaes só o tempo poderá facilitar quando, pela nossa mais longa comunicação, se adoçarem os seus costumes e parte dos estranhos princípios com que se governam, se acaso isso ser posa”. (Almeida Serra, op.cit),

53 É importante mencionar o ataque espanhol descrito por Mendonça ao forte de Miranda. Ou seja, a zona de fronteira era uma zona de guerra.

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Este relato é revelador de que, no final do século XVIII, quando se inicia a colonização

portuguesa do Chaco/Pantanal, o sistema social autóctone então existente, do qual os Guaicurus

eram o grupo dominante, se apresentava como obstáculo a expansão colonial. O relato do militar

responsável pelo presídio de Miranda, ao analisar “o sistema político”, destaca a importância e os

padrões de comportamento dos Guaicurus (baseadas nas atividades de caça-coleta e guerra), tanto

com relação aos demais povos indígenas quanto europeus, aos quais teriam “amansado”. Ele indica

também que nos dois séculos anteriores, os Mbayá-Guaicurú souberam construir e manter esta sua

supremacia em relação aos demais grupos indígenas e colonos espanhóis e portugueses.

Aqui podemos ver alguns traços característicos da organização social e cultura Mbayá-

Guaicurú, que afetavam todo o sistema social do Chaco. Dois elementos são importantes: 1º)

primeiro, a prática do infanticídio, com a qual se combinava uma política de assimilação de outros

grupos indígenas, de maneira que fazia dos Mbayá-Guaicurú, um grupo especialmente misturado, e

por efeito, também dos Guaná e Chamacoco, mesmo que esta hibridação se aplicasse a

comunidades- locais, e não aos Guaná e Chamacoco como um todo; 2º) a “independência e

rivalidade” política interna, que era pautada numa lógica de fissão e fusão situacional dos sub-

grupos e grupos indígenas. Segundo o relatório aqui mencionado:

“Os uaicurus se dividem em differentes tribus, e cada uma com diverso nome. A primeira é dos uatade-os, composta por vários capitães, entre os quaes o capitão Paulo é olhado como chefe, em poucas circunstancias. Formam a segunda tribu com o mome de ejué-os também vários capitães, dos quaes é julgada como principal D. Catharina, por ser filha do Capitão Guaná (...) A terceira tribu é dos cadiue-os novamente fugidos das vizinhanças de Bourbon para se estabelecerem na mesma morada das duas primeiras; ella constta de 680 pessoas, como fica dito, doze capitães e outras tantas donas”. (Almeida Serra, op.cit)

Pelas informações acima, tudo indica que os Mbayá-Guaicurú possuíam múltiplas lideranças locais

(os Kadiwéus possuíam doze, uma média 1 para cada 56 pessoas), e que o reconhecimento de uma

liderança centralizada era algo eventual. Indica também as relações de parentesco-aliança entre os

Mbayá-Guaicurú/Guaná-Chané, de maneira que uma das “Chefes” de sub-grupo Mbayá era

descendente de Guaná. Estas informações etnográficas confirmam as elaborações feitas pela

etnologia brasileira acerca da relação Guaicuru-Guaná, mas permite maiores detalhamentos.

Esta descrição permite ver também que, além da multiplicidade de lideranças políticas,

existia um padrão de territorialização que expressava a cultura e economia indígena; primeiramente,

as unidades de residência podiam se distanciar entre 19 km (1 légua = 6.600 m) e 42km, ou ainda

mais; se tomarmos o padrão Kadiwéu (um chefe para cada 56 pessoas, e calcularmos que este seria

o padrão de territorialização, somente este sub-grupo ocuparia uma faixa territorial de 252km desde

a serra de Albuquerque). Além disso, a cultura e economia de caçadores-coletores-guerreiros, fazia

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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com que os Mbayá-Guaicurú fizessem uma constante circulação dos dois lados do Rio Paraguai54.

O Sistema Social do Chaco possuía um tipo de sistema político sem-estado, com uma organização

segmentar, baseada em múltiplas lideranças políticas que se centralizavam situacionalmente, e

durante um período de tempo determinado

Com relação aos Guaná, o relatório indica algumas informações importantes. Podemos dizer

que existe uma caracterização desta sociedade como segue:

“Os 600 guanás que existiam há quatro annos, tem augmentado o seu numero com alguns filhos e xamicocos comprados. Esta nação é certamente a que promettia um aldeamento constante; ella tem moradia fixa nas fertillissimas terras e matos das escarpadas serras de Albuquerque, e perto do morro d´este nome e da margem do Paraguay, lugar a que geralmente índios e portuguezes chamam Albuquerque, dando simplesmente o nome de povoação á que com elle se caracterisa. Os Guanás vivem dentro de grandes casas, que formam de entrelaçados troncos e ramos”.

Notemos que, uma vez instalados os fortes, os novos atores sociais, novas relações se

estabeleceram; uma nova categoria social, também se definiu: os “portugueses”, que eram neste

primeiro momento, fundamentalmente, militares. As relações comerciais forneceram novas

possibilidades de aliança política. E as contradições internas do sistema indígena do Chaco, seriam

tão importantes para sua transformação e para a viabilização da conquista colonial quanto à força

militar e político-administrativa do colonialismo português.

54 Se considerarmos este padrão, e multiplicarmos por 3 (teríamos 2040 pessoas, um número próximo, ligeiramente superior ao do total da população Guaicuru dependente de Coimbra. Teríamos então um padrão de ocupação territorial, somente pelos sub-grupos e parentelas de chefes dos Guaicuru, que alcançaria 750 km de território.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Mapa 3 - Núcleos de Colonização - Sec XIX.

Os traços fundamentais deste sistema permaneceram operando durante o início do século

XIX, quando foi aplicada uma política de “cerco colonial”, e perduraria até a primeira metade do

século, quando fatores nacionais e internacionais alterariam a dinâmica política do país 55. Mas a

política do “cerco colonial” expressava a primeira fase da formação de um novo sistema social: o

Estado-Nacional (e a incorporação dos territórios do Chaco/Pantanal a este sistema56).

55 Temos aqui as Guerras Napoleônicas, que iriam acirrar a disputa entre Portugal (apoiada pela Inglaterra) e Espanha (apoiada pela França), e que ocasionaria, depois de 1800, a transformação do Brasil em “Império”, e depois a transformação da economia colonial-escravista em economia capitalista. 56 Ao mesmo tempo em que se intensificam as relações sociais, começa a se dar um movimento de produção de saberes sobre os índios, realizados pelo aparelho administrativo do Estado Colonial. Os saberes sobre s índios são uma variável

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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É interessante notar que, neste momento, o cerco não realizou plenamente o domínio do

Estado sobre os povos indígenas; mas lançou certas bases para isso. A política de cerco, seria

sucedida por uma política de “aniquilamento” da autonomia, território e alteridade indígenas. Ela já

estava enunciada no inicio da colonização, inclusive com um delineamento de uma perspectiva

tutelar:

“Se eu pudesse regular as cousas ao meu arbítrio talvez que preferisse o antigo methodo de dar os índios novamente reduzidos por administração, acautelando vigilantissimamente os abusos, vigiando sobre o modo porque eram tratados, e reduzindo-os a um estado semelhante ao d´aquelles, que pela sua tenra idade não são capazes de se governaram, a si mesmos, os quaes no reino servem ate certos annos pelo comer e vestir, e ao depois por uma soldada proporcionada por seu trabalho.

E se as circumstancias não permittissem adoptar este methodo,como não seria possível adoptar-se com os uaicurus e goanás, n´este caso não fariam as novas povoações só de índios, porém uma boa parte seria composta de familias pobres, laboriosas e bem morigeradas, as quaes transmitiriam seus costumes para os índios, vindo todos com o andar do tempo, a ficar confundidos.

Para directores e curas d´estas povoações, escolheria homens proporcionados para uma tal empreza, animados de um verdadeiro zelo pelo serviço de Deus e do Estado, e que sem terem a ambição jesuítica, tivessem a mesma arte e industria, com que elles ordinário ganhavam o coração d´esta gente.”.(Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Cuiabá, 5 de Abril de 1803, Carta ao Tenente Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra)

A constatação da fragilidade relativa do colonialismo português na região da fronteira,

obrigou a delimitação de uma estratégia específica de abordagem e relacionamento com os povos

indígenas. O Império Português necessitava contar com a colaboração dos índios, evitando a guerra

e resistência destes. Nesse sentido, a relação estabelecida teve de tolerar em certa medida a

alteridade étnico cultural e tentar se aproveitar dela como fosse possível. Esse modo de relação

durou cerca de um século, até a Guerra do Paraguai.

Mas quais os fatores que obrigaram os Mbayá-Guaicurus, que tinham resistido durante cerca

de dois séculos aos colonialismos espanhol e português, a combinar formas de resistência e

colaboração? Alguns acontecimentos são fundamentais: em 1791 os portugueses firmaram um

“Tratado de Paz e Amizade” com os índios Guaicurus. Esse tratado, segundo as fontes da época, era

uma necessidade tanto colonial quanto indígena. Em 1796 eles se fixaram nas proximidades de

Albuquerque e depois em 1797 Miranda. Esse deslocamento se fez em razão da ofensiva militar que

espanhóis estavam lançado contra os Guaicurus. O marco desse processo de declínio do poder dos

Guaicurus se localiza no ano de 1775:

“Até o anno de 1775 tinham os Uaicurus, cojunctamente com os Payguás, com que então viviam em estreita aliança , e a quem devem a iintelligencia da navegação, um extenso pais devoluto, que ocupavam; o rio Paraná limitava por Oriente; ambas as margens do Paraguay

dependente da relação dos diversos atores com os mesmos grupos indígenas. Por isso, a partir do século XIX, vários relatos sobre os índios serão produzidos.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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por Occidente; pelo lao do Sul as immediações da cidade e governo hespanhol da Assumpção, e pro Norte até perto do registo do Jaurú e de Villa Maria.

Neste vasto terreno os Uaicurus sempre de vida errante praticaram as suas repetidas incursões e estragos, não só contra os mais índios., mas sobre os mais débeis e avançados estabelecimentos da das respectivas fronteiras portugueza e hespanhola, auxiliados sempre pelos seus amigos Paraguayos”. (Almeida Serra, RIHGB, 1850, p. 381).

Dessa maneira, as afirmações que havíamos apresentado para sus tentar a tese da existência de um

Sistema Social indígena do Chaco/Pantanal, são aqui confirmadas e sintetizadas na idéia de um

“País Guaicuru”. As bases de funcionamento de suas relações de poder, organização social e

dinâmica, já eram condicionadas por este sistema mundial. Esse sistema era composto por mais de 7

grupos indígenas, inúmeros subgrupos, um amplo território e um tipo de estratificação social

determinada (ver Figura 1). O sistema social indígena vigente dentro da situação histórica do Chaco

era interdependente do sistema mundial e de suas seções territoriais, as colônias espanholas e

portuguesas da América. Não sugerimos com isso que todos os grupos indígenas mantivessem

relações diretas com os europeus, ou relações do mesmo tipo e regularidade; mas os dados acima

citados revelam que o sistema social do qual os grupos faziam parte já era determinado por relações

diretas e indiretas com o sistema mundial e o colonialismo. Ou seja, mesmo que as unidades do

sistema (os povos indígenas) não estivessem em relação direta com o colonialismo, o sistema de

que faziam parte estava.

Se coube aos espanhóis a estratégia que destruiu a aliança Mbayá-Guaicuru/Paiguá a base

militar do sistema social indígena, coube aos portugueses a estratégia que destruiria as bases

econômicas e sociais, pela destruição da aliança Mbayá-Guaicuru/Guaná.

Mas é no documento intitulado “Reflexões sobre o Systema de Defesa” que vemos mais

claramente se delinear uma política deliberada de “destruir” a base econômico-política da aliança

Guaná-Guaicurú, e de exploração das contradições e rivalidades entre os próprios grupos indígenas.

Podemos dizer que este processo na realidade se inicia com a própria aliança entre Portugueses e

Guaicurus:

“Tratam-se com melhor fé e urbanidade os Índios Guanas das diversas tribus e aldeas, e os Guaxis, que tiverem permanecido no nosso partido, mimoseando-se os seus principaes chefes, e louvando-se a sua Constancia e fidelidade à amizade, e bom agasalho, que nos devem; desafiando-se por este modo, a emulação nos Índios que se tiverem voltado contra nós, abraçando o Partido dos Guaicurus. Comprem-se mantimentos por todas as aldeas, introduzindo-se no pagamento algum gênero de luxo, para que os índios se acostumem a gostar d´elle; o que nos trará as vantagens seguintes; provimentos necessários para as guarnições, conduzirem-se os índios a praticarem plantações mais avultadas, vendo prompto o lucro de seu trabalho, e arreigarem-se nos sítios de sua habitação.

Procure-se persuadir por todos os modos e maneiras aos Guanás das aldeas abandonadas, que devem tornar a ellas, e á nossa amizade, fazendo-se lhes lembrar-se do que já sofreram da má

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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fé e orglho dos Guaicurus, e do motivo por que não se devem fiar nelles, e cahir na nossa indignação.

Busquem-se meios de fazer chegar ao conhecimento dos capitães Guaicurus, que o ressentimento do governo da província é somente contra o principal delles (...) Desta sorte, semeando a divisão entre aquelles chefes, obteremos o meio mais seguro de chegar as fins que melhor convem as nossas circunstancias”. (D´Alincourt, op.cit,. p363 ).

Assim, as relações dos colonialismos (espanhol e português) com os Guaicurus e demais

índios oscilavam rapidamente da guerra a tratados de aliança política e comercial. A guerra de

resistência e revolta poderia ser movida pelos Guaicurus contra os espanhóis com o apoio dos

portugueses ou contra os portugueses com o apoio dos espanhóis. Entretanto, a partir dá década de

1820, a política do Estado Imperial brasileiro começa a investir nos aldeamentos e no incentivo a

oposição Guaná X Guaicuru. Os tratados e a “política de colaboração” que sucedia a “política de

guerra resistência indígena” - e que estava diretamente ligada a ela, já que esta colaboração era mais

importante pelos antecedentes históricos da resistência Guaicuru e pela disputa com o colonialismo

espanhol – é que viabilizou a criação das condições para o domínio português na região.

Podemos falar de uma pluralidade de formas de dominação, colaboração e resistência, que

podiam se combinar ou se alternar no tempo e no espaço. Não era somente uma oposição

“dominação/resistência” que se colocava, mas sim uma complexa triangulação entre diferentes

possibilidades de aliança, guerra e repressão. E foi graças a política de “colaboração indígena”

adotada pelos portugueses que sua dominação e a formação do Estado-Nacional se tornou possível.

É importante lembrar que os Guaicurus sabiam também manipular a colaboração de portugueses e

espanhóis, e que esta sua política foi eficaz nas primeiras fases da colonização; entretanto, foram as

contradições internas nas suas relações de dominação com outros povos indígenas, que exploradas

pelos portugueses, fizeram pender a balança em favor do colonialismo português. Os índios são

definitivamente inseridos numa nova estrutura de poder e de classes, que se misturam e confundem

em certos níveis. Os Guaicurus e a camada dos “Chefes Indígenas” é tratada com honras de Estado,

e colocada num mesmo patamar que os “senhores” ou nobreza da sociedade colonial57. Mas esse

tratamento é um recurso tático, já que o projeto colonial visava colocar os índios como mão-de-obra

dos empreendimentos agrícolas.

Cabe aqui introduzir um parêntese sobre as principais técnicas de luta política empregadas

por índios, militares e colonos nos séculos XVIII-XIX. O processo descrito acima mostra

exatamente a emergência de novo padrão de balanceamento de forças, que leva a destruição do

sistema do Chaco/Pantanal e fragmentação do seu território. Uma análise etnográfica do sistema

revela exatamente que certas características que depois seriam atribuídas ao “caráter” ou “natureza”

57 “Se vão a Cuiabá, ou a Villa Bella, aonde são honradissimos ao lado e mesa dos Ex. Sr. S generaes, e assaz prendados, sempre quando voltam se lastimam de que quanto receberam foi improporcional aos seus altos merecimentos e qualidades”. (Almeida Serra, op.cit, p. 378).

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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do índio fazem parte de um repertório de técnicas de luta política empregadas como táticas de

dominação ou resistência.

O “Parecer” de Ricardo Almeida Serra e alguns outros documentos servem para delinearmos

esse conjunto de técnicas e táticas. Poderíamos indicar aqui, por exemplo, um dos elementos que

compõem o Parecer: “virtude e caráter”, em que se apresentam os elementos da “instabilidade” dos

índios Guaicurus: entre os fatores estão a “dissimulação” e a facilidade com que trocavam à aliança

dos “portugueses pela dos espanhóis” e vice-versa; essa dissimulação se dava pelo uso de mentiras

ou subterfúgios como não dizer nunca a direção correta de uma viagem ou mesmo não revelar o

objetivo de alguma atividade realizada. Além disso, a “fuga”, depois desses índios serem

recrutados como militares ou trabalhadores e conviverem dentro dos fortes e presídios portugueses.

“.. Ficando aqui o capitão Guaná, detestando a retirada dos dois e a vacillante inconstância dos mais Cadiue-os que ficavam, afirmando-me que se alguns delles se ausentavam, que os emabraçasse (...) Enfim este solapado bárbaro que nem de noite nem de dia me deixava, e prometia ir convidar os seus parentes, pedindo todos os dias alguma coisa, ainda em 10 do presente mês de janeiro me pediu varias bagatellas e um porco e dando-lhe tudo e os mais trastes que guardava no meu quartel, tudo levou essa noite ocultamente d´elle para o seu rancho, e embarcando de madrugada a titulo que ia à pesca do jacaré, fugiu e se ausentou tao ingrato como infiel, levando em sua companhia outro monstro de ingratidão no Guaná Luiz Manoel (...) que todos estimávamos muito, ambos elles em uma canoa fugiram sem mais motivo que sua inconstância natural, levando-me ainda a roupa que acharam à mão no meu quartel, aonde viviam e entravam como em sua casa”. (Almeida Serra, op.cit, p. 378).

A fuga dos Guanás expressa o tipo de estratégia e relação dos índios: buscavam manter o

acessos a bens e recursos materiais, freqüentemente a informações sobre os militares para venderem

aos adversários, sem entretanto se submeter ao regime de trabalho e a fixação que se queria a eles

impor. Podemos falar que depois de 1800, as técnicas de luta política indígena passaram a assumir

formas de resistência cotidiana, em que procuravam sobreviver num contexto em que um novo

poder se instituiu. O relato de Ricardo Almeida Serra fala também de uma reunião com os capitães

Guaicurus em que se sugeriu que se casassem com os portugueses, fixassem moradia e plantassem,

e eles indagaram quantos escravos os portugueses enviariam para trabalhar na lavoura, pois eles não

eram cativos. Ou ainda, da situação em que fazendo parte de uma campanha militar dos portugueses

contra um forte espanhol, os Guaicurus “desertaram”, sendo acusados de “covardia”. Poderíamos

falar aqui de outras situações, mas os exemplos acima são suficientes. Existia um conjunto

diversificado de “Técnicas Indígenas” das quais destacamos as seguintes: 1) Dissimulação; 2)

Fuga; 3) Recusa ao Trabalho; 4) Sabotagem; 5) Deserção; 6) Correrias (assaltos aos campos

inimigos). Na realidade, as correrias passaram a ser cada vez menos freqüentes e as formas

cotidianas de resistência passaram a predominar. Nós podemos falar de formas cotidianas de

resistência porque os índios a empregavam freqüentemente para se recusar a servir aos objetivos

coloniais (a submissão desses ao trabalho, a agricultura, padrões de casamento, habitação e etc)

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Mas observemos que na realidade, essas técnicas de luta política podiam ser utilizadas para

diferentes finalidades. Por exemplo, os registros coloniais falam das “correrias” que índios Guanás

de Miranda faziam contra os Caiuás, Guaxis e Chamacoco, para fazer cativos e vendê- los para as

fazendas ou trabalharem em suas plantações58.

Por outro lado, existiam também “Técnicas Coloniais”, voltadas para o controle e gestão

dos índios: 1) tratados; 2) empreendimentos agrícolas e de mineração; 3) trocas e brindes; 4)

recrutamento militar e/ou profissional; 5) aprisionamento; 6) bandeiras; 7) trabalhos forçados.

Essas técnicas foram aplicadas ao longo do século XIX, através de três gêneros distintos de

relação entre os grupos indígenas e os colonialismos português e espanhol. As relações de

aliança/colaboração; as relações de guerra/resistência e guerra/repressão, cada qual ilustrada por

diferentes gêneros de discurso político-jurídico e maquinário político-administrativo.

De um lado, existiam as ações guerreiras retratadas no léxico imperial regional como

“Correrias” – indicando as ações violentas dos índios contra as agências coloniais (fazendas,

unidades militares e os próprios colonos); de outro lado existiam as “Bandeiras” –assumiam o

caráter de expedições punitivas contra os índios, movidas tanto pelo Estado quanto pela sociedade -

colonos pobres e fazendeiros, as vezes com o apoio do Estado, as vezes sem este apoio, e as vezes

com o apoio de certos grupos indígenas (ver Vasconcelos, 1999); “Tratados”, que foram uma

forma importante de estabelecer relações de aliança/colaboração política entre os povos indígenas e

as instituições/agências colonial-estatais, como as unidades militares e administrativas, e também,

estabelecer relações comerciais e econômicas que garantissem a exploração dos territórios; a

política de “aldeamento, catequese e civilização”. Os “empreendimentos agrícolas” –o incentivo a

produção indígena e sua compra ou comercialização nos povoados era uma forma de consolidar

formas de colaboração que afastavam os índios das antigas relações com outros povos. Também o

recrutamento para o exército e ofícios era uma técnica, baseada no principio da colaboração entre

dominantes e dominados. As técnicas de colaboração não excluíam as técnicas repressivas; ao

contrário, ou as legitimava ou complementava, no plano dos efeitos.

Neste sentido, podemos afirmar que para realizar uma análise correta da dinâmica

dominação/resistência, temos de levar consideração às contradições internas no sistema social

indígena, as diferentes estratégias que cada unidade de ação política indígena (conjuntos de ação

segmentares) poderiam estabelecer, indo desde as “correrias” aos “tratados” ou inserção em

“empreendimentos coloniais” (como bandeiras, obras, ofícios), e por outro lado também as políticas

das agencias coloniais, que iam dos “tratados” até as “bandeiras”, “prisões”, “trabalho forçado” e

58 “N´isto entrou o presente anno de 1849. A 2 de janeiro continuei a viagem, e a 3 encontrei dois índios um de nação Layana e outros Terena, que vinham de fazer uma correria nas matas do Iguatemi, nas margens do Paraná. O fim d´estas correrias é captivar outros, que sugeitam ou vendem, como antigamente se praticava com os infelizes índios...” (Francisco Lopes, RIHGB, 1850, p.315).

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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etc. Cada uma destas variáveis dependia de uma combinação contextual complexa de interesses,

condições materiais, balanceamento de forças político-militares e referências culturais, que no

longo prazo possibilitaram a consolidação dos interesses do colonialismo português e depois do

Império do Brasil, graças à intervenção política no sentido de destruir as bases do sistema social

indígena então existente no sul de Mato Grosso. Essa dinâmica expressa a coexistência e

articulação de dois sistemas políticos, o indígena e o estatal-nacional. Sem as alianças políticas com

os povos indígenas, sem a colaboração destes (que não era contraditória em sentido imediato com as

políticas da resistência), a consolidação do colonialismo seria impossível. São nas contradições do

sistema social indígena que residem algumas das principais causas da vitória do colonialismo

português, as causas que possibilitaram a formação do Estado-Nacional brasileiro naqueles

territórios.

Da Guerra do Paraguai ao Cativeiro

Uma segunda fase do que estamos denominando “situação de diretoria” se configura entre

1850 e 1880. Nesta fase se desenvolvem os desdobramentos inevitáveis do “cerco” iniciado na

primeira metade do século; quais seja, o aniquilamento do sistema social indígena do

Chaco/Pantanal, a fragmentação de seu território, a subordinação dos grupos étnicos indígenas e a

consolidação do Estado-Nacional na sua forma colonial-escravista, integrado na economia mundial

capitalista. A promulgação do regulamento das missões e a formação de aldeamentos marcam todo

o período que vai de 1800 até 1850.

Na verdade, no período entre os anos 1800-1850, o que se dá, é um processo progressivo de

construção do Estado; estabeleceriam-se as freguesias (povoados), vilas, municípios e comarcas, ou

seja, unidades territoriais, populacionais, jurídicas e políticas. A criação desta estrutura

administrativa implicava tanto na formação de novas categorias sociais (funcionários, juizes,

militares, fazendeiros) – quanto à produção de uma nova geografia, com a edificação de prédios

públicos e a infra-estrutura (vias de comunicação, portos e etc).

É interessante notar que, no ano de 1858 é criada a repartição de terras públicas, (decreto

2092 de 30/01/1858), em obediência a Lei de Terras de 1850, que começa a funcionar a partir do

ano seguinte. Isto significa que um processo de medição de terras e definição de propriedades, ou

seja, de controle fundiário, estava sendo estabelecido. No mesmo ano, o presidente da Província

afirma: “Em Miranda muito conviria fazer hum aldeamento regular disso encarreguei ao

Commandante das Armas. Porem ter elle encontrado embaraços, para os quaes muito concorre a

falta de hum sacerdote que exlusivamente se preste attrahir os índios de hum modo benévolo e

insinuante”. (Relatório da Província de Mato Grosso, 1859, p.36). Quer dizer, o avanço dos

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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aldeamentos se dá paralelamente ao dos mecanismos de controle da terra. No ano seguinte seria

iniciada a construção da aldeia de Miranda.

Na década transcorrida, a composição social e demográfica da província se altera em traços

significativos. E isto afetará profundamente a dinâmica social e marcará o processo histórico

posterior. Vejamos os dados abaixo:

Quadro 25 - População da Província de Mato Grosso - 1862

Condição

Livres 30.486

Escravos 7.052 Indígenas 10.000 a 15.000

Total 52.538

Com a Guerra do Paraguai (1864-1869), a questão de terras “interna” dará lugar à questão

“externa”. O processo de catequese e civilização, que combinava uma estratégia econômica com

outra simbólico-cultural, seria interrompido pelo advento da Guerra. Ainda mais porque, a rota da

ocupação paraguaia do território sul da província de Mato Grosso, fez com que as freguesias de

Miranda e Corumbá/Albuquerque fossem levadas ao centro dos principais eventos da guerra.

A Guerra do Paraguai deve ser vista como um momento de interrupção temporária de certos

processos; a descontinuidade não foi absoluta. Logo após a guerra, os processos antes verificados,

foram retomados. É com o pós-guerra que teria início a configuração de uma nova situação

histórica. A política de catequese e civilização, como vimos, ainda não tinha se consolidado. Mas

ela começava a se estruturar, a Guerra a interrompeu; os principais pontos dos aldeamentos foram

destruídos. Entretanto, no pós-guerra, certos processos sociais – não exatamente novos – se

intensificaram.

O primeiro foi o da colonização e povoamento da província; o segundo foi à expansão

econômica, ao mesmo tempo efeito e causa da colonização. Vejamos os quadros abaixo com a

evolução da composição demográfica da Província do Mato Grosso no pós-guerra:

Quadro 26 - População de Mato Grosso – 1872-1930.

1872 1890 1900 1920 1930 60.417 92.827 118.025 246.612 349.857 Nos vinte anos que se seguem a Guerra do Paraguai, a população total do Mato Grosso

cresce cerca de 130% se comparada com o ano de 1850. Nestes números não é considerada a

população indígena. Neste processo de crescimento demográfico, se insere a política de incentivo a

imigração de europeus “Desse modo, o fim da guerra do Paraguai em 1870 marcou o início de uma

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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fase de ampla abertura da economia de Mato Grosso ao exterior via comércio e navegação pelo rio

Paraguai”. (Borges, 2001, p.31)59.

A principal característica dessa situação histórica é o “cativeiro” dos Terena, ou seja, sua

subordinação a esquemas de escravidão e trabalho forçado nas fazendas do Mato Grosso logo após

a Guerra do Paraguai. Para usar a imagem de Karl Polany, a construção de um Mercado Auto-

regulável (através de uma política de Estado e do colonialismo interno) fez com que todos os

demais domínios da vida social se subordinassem a ele. Este Mercado regional, constituído já sob

uma lógica monopolista nos seus principais ramos (agro-exportadores), levaria também a uma

grande concentração fundiária60. Assim, a “política indigenista” no Mato Grosso neste contexto, por

imposição da lógica da economia capitalista, não poderia ser senão a política do capitalismo

monopolista aplicada à resolução da “questão indígena” (contradição entre os interesses dos povos

indígenas e da burguesia rural e do capital monopolista nascentes).

Nos primeiros momentos do pós-guerra do Paraguai, apesar das relações políticas dos

Terena com o Estado não terem se alterado, as condições gerais e as relações econômicas começam

a se transformar, principalmente por conta da transformação da relação homem-terra-recursos

ambientais, que a formação do mercado capitalista produziria. No período do pós-guerra, dois

períodos distintos se sucedem; o primeiro vai de 1870 a 1890; o segundo de 1891 a 1904. No

primeiro, temos ainda a tentativa de implementação de uma política de catequese e civilização, por

parte do Estado, através da Diretoria de Índios, e choques entre índios e fazendeiros, pelo controle

de terras e recursos ambientais na região do Pantanal e em todo o Mato Grosso. O segundo

momento é quando a política global de Estado na região do Pantanal vai praticamente suprimir a

política de catequese, vigorando o choque frontal entre índios, fazendeiros e colonos, do que resulta

a expropriação quase total das terras indígenas e um verdadeiro etnocídio.

3.4 – A Situação de Reserva: o regime tutelar e as micro-revoltas indígenas (1904-1939)

O processo de constituição das reservas indígenas Terena marca o início de uma nova

situação histórica: a da subordinação dos Terena a um novo tipo de regime tutelar, vinculado

diretamente ao Estado e separado das relações com os outros povos e territórios do antigo sistema

do Chaco/Pantanal. A destruição das relações de interdependência e fragmentação dos territórios é o

principal efeito das situações de diretoria e cativeiro.

59 O Governo Imperial deu alguns incentivos ao comércio na região; 1) reabertura da alfândega em Corumbá; 2) isenção de impostos para as mercadorias que circulassem naquele Porto. Assim, estabeleceu-se as bases para uma retomada econômico, através da abertura comercial. 60Segundo Borges, em 1920, os estabelecimentos com menos de 100 hectares em termos de Brasil, correspondiam a 70% do total de estabelecimentos. No Mato Grosso, estes estabelecimentos de 100 hectares, correspondiam a apenas 20% do total. Em termos absolutos, eram 1525 unidades com extensões superiores a 2000 hectares, o que representava cerca de 45% do total de estabelecimentos.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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A formação das Reservas Indígenas vai parcialmente de encontro aos interesses e

reivindicações dos índios, de maneira que as demarcações não são o resultado apenas de ação

normativa do Estado, mas também da ação política dos índios Terena que buscaram na Comissão de

Linhas Telegráficas aliados dentro do aparelho de Estado, para garantir pelo menos algumas

parcelas dos seus antigos territórios (Vargas, 2003).

É por isso que no período entre 1904-1905 são realizadas as demarcações de duas das

principais aldeias Terena, Cachoeirinha e Ipegue, pela intervenção direta da a Comissão de Linhas

Telegráficas, que promove a negociação com fazendeiros e faz as reuniões demarcatórias

(Vargas,op.cit,p.83). Devemos lembrar que desde 1892, se tinha iniciado em Mato Grosso, um

processo geral de regulamentação das “posses”, no qual as terras indígenas tiveram um tratamento

apenas secundário. O quadro abaixo permite uma visualização do processo de formação das

Reservas Indígenas:

Quadro 27 - Processo de Formação das Reservas Indígenas Terena – Século XX61

Reserva Indígenas. Área em Hectares Data do Decreto Cachoeirinha 2.260 1904 Bananal-Ipegue 6.337 1904 Lalima 3600 1905 Francisco Horta 3.600 1917 Capitão Vitorino (Brejão) 2.800 1922 Moreira-Passarinho 171 1925 Buriti 2.000 1928 Limão Verde 2.500 (?)

Três aldeias têm suas áreas demarcadas até 1905, e as demais, depois do ano de 1917. O que

significa que as primeiras foram reservadas pela Comissão de Linhas Telegráficas, e as demais, pela

ação do SPILTN.

No início do século XX, algumas transformações importantes se processaram dentro do

aparelho de Estado, e repercutirão também no âmbito da política indigenista. A principal delas é a

formação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais criado por

lei de 1906, mas implantado em 1910. A partir daí, entre 1905 e 1940, irá ocorrer progressivamente,

um processo de estatização dos territórios, cultura e organização social Terena, processo este que se

dá simultaneamente e subsidiariamente ao processo mais amplo de transformação do Estado-

Nacional.

Com relação aos índios de Mato Grosso, é o momento em que o processo de pacificação dos

índios do norte do estado (Bororo, Parecis), e que os índios do sul, começam a se defrontar mais

diretamente com um novo tipo de ação do Estado, a do órgão tutelar, recentemente formado. É o

momento também de consolidação da economia agro-exportadora, de maneira que

61 Elaborado a partir de Roberto Cardoso de Oliveira, 1968.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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progressivamente se instalam os PI (Postos Indígenas), IR´s (Inspetorias Regionais), submetidas a

estrutura político-administrativa do SPI, por sua vez integrado no MAIC (Ministério da Agricultura,

Indústria e Comércio). A partir de então, se define claramente um novo conjunto de grupos e

instituições que irão interagir diretamente com os índios. As novas relações de interdependência

transformarão tanto a cultura quanto a organização social dos grupos indígenas, especialmente dos

Terena.

A primeira unidade de ação política do SPI, fixada junto aos Terena, é o PI de Bananal, que

é instituído no ano de 1915, ou seja, cinco anos depois da criação do SPI, apesar de neste mesmo

ano, já se indicar a existência das aldeias de Cachoeirinha e Passarinho em Miranda e Bananal e

Ipegue em Aquidauana. É somente no ano de 1920, que se estabelecerá um Posto Indígena em

Cachoeirinha. A quantidade de PI´s irá aumentar e se reduzir até 1937, mostrando ao mesmo tempo

a expansão do SPI e as dificuldades iniciais em dar um caráter estável a suas ações e estrutura.

No relatório da Inspetoria Regional nº06, do ano de 1917, temos o seguinte relato sobre PI

Bananal:

“A população india do aldeiamento é composta de 722 almas que vivem da pequena lavoura, da creação de aves suínos e um pouco de bovinos.

É uma população ordeira e sedentária que já produz grande parte dos cereaes que se consomem em Miranda e Aquidauana, e que uma vez concentrada nos aldeiamentos do Bananal, Ipegue e Cachoeirinha, convenientemente auxiliada, fará rápido desenvolvimento. (...)

Este ano é pensamento desta Inspetoria dar organização definitiva ao Posto construindo casa para o Serviço e, com a pequena verba de que dispõe, auxiliar os índios quanto for possível para evitar-lhes as explorações de que são vítimas pelos açambarcadores e pombeiros da região. Augmentar-lhe as roças e methodicar-lhes os serviços.

Além dos índios terenas, habitantes citadas, vivem muitos outros grupos da mesma tribu disseminados pelos sertões e pelas fazendas dos municípios de Aquidauana, Miranda, Coxim e Nioac, que torna-se de urgente necessidade serem reunidos em aldeiamentos afim de evitar-se-lhes a escravização muito comum em Matto Grosso”. (Relatório IR-5, 1915, MI, microfilme 329, ft. 1093-1094).

O posto indígena de Bananal funcionou provisoriamente numa escola do estado, sendo

construída sua sede própria apenas depois de 1915. As demais aldeias Terena, apesar de já serem

conhecidas do serviço, não entraram imediatamente na sua órbita de ação.

A IR-6 começou a estruturar sua ação pelo Sul de Mato Grosso. Isto significa que, mais uma

vez, as diversas comunidades- locais Terena foram as primeiras a se defrontar com uma intervenção

sistemática do Estado-Nacional, agora através do SPI. Outros grupos indígenas teriam este contato

direto com o SPI anos mais tarde. Cabe indicar os traços fundamentais desta situação histórica que

começou a se constituir.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Os relatos da Inspetoria Regional nº 06 permitem traçar algumas das características

principais deste momento da ação do SPI. Vejamos as orientações do Inspetor do SPI, acerca das

ações do encarregado de posto.

“... cumpria ao citado funccionario, convenientemente auxiliado, methodizar-lhe o trabalho de modo que da terra houvessem a subsistência sem humilhações, e, regularizar-lhes as relações no comércio local, evitando, desse modo, as actuaes explorações a que estão expostos.

Além desses deveres, grande sem duvida, mas perfeitamente practicos e possíveis, cumpria ao mesmo funccionario, sem pertubar os costumes das tribus, alias já muito corrompidos pelos maus contatos, procurar que pelo trabalho, pelos costumes, pelos bons actos, aquelles infelizes elevem-se nos conceitos dos civilizados d´aquella região. (...)

Depois com o tempo, viriam as escolas, as oficinas, a grande e inteligente industria e o mais que convém a civilização.

Mas como no serviço aqui, por falta de recursos, tem falhado as melhores tentativas, também esta se não falhou de todo, não teve a execução prática que seria de desejar. (...) (Relatório da IR-6, 1914, José Bezerra Cavalcanti, Museu do Índio – Mic 379, ft -1072-73).

Desta maneira, a ação do SPI junto aos Terena, era pautada desde o início por uma

especificidade: não era um grupo em estado de guerra, logo, não cabia uma política de “atração e

pacificação”; na verdade se tratava de um grupo que já tinha um longo tempo de interação e aliança

com o Estado e com grupos sociais estabelecidos na região.

O quadro abaixo permite visualizar a evolução da ação do SPI, no que tange a fixação de

população e sua administração, gestão da mão-de-obra e produção das terras indígenas, geração de

instituições ideológico-culturais para ação junto aos povos indígenas.

Quadro 28 -Postos Indígenas Terena no Sul de Mato Grosso – SPI – 1910-193062 Aldeias 1915 1919 1920 1922 1923 1924 1925 1929

População 722 657 756 800 1130 1260 1314 1531

Produção 33 HA 150 alq 1500 cabeças de gado 200 cavalos

90 HÁ 1430 cabeças de gado 227 cavalos

1000 cabeças de gado 300 cavalos

435 HA 2050 cabeças de gado 220 cavalos

430 HA 2300 cabeças de gado 243 cavalos

2132 cabeças de gado 260 cavalos

2138 cabeças de gado 410 cavalos

Bananal

Escolas 1 2 2 2 2 134 alunos

2 2 2

População 228 300 326 380 432 473 Cachoeirinha Produção 200

cabeças de gado 20 cavalos

223 cabeças de gado 18 cavalos

330 cabeças de gado 100 cavalos

174 HA 345 cabeças de gado 75 cavalos

218 HA 385 cabeças de gado 85 cavalos

379 cabeças de gado 130 cavalos

471 cabeças de gado 123 cavalos

62 Consideramos aqui somente Bananal e Cachoeirinha porque foram as aldeias indígenas mencionadas nos relatórios desde a década de 1910, com mais freqüência.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

136

Escola e Alunos

1 (63)

1 1 44 alunos

1 1 40 alunos

Os dados permitem ver que a instabilidade da ação do SPI nos primeiros anos de década de

1910 foi superada nos anos 1920. O Posto de Bananal conheceu um progressivo crescimento

populacional, e também da produção da sua lavoura e criação a partir dos anos 1920. A existência

de 2 escolas (uma estadual, depois assumida pelo SPI e outra de uma missão protestante

americana), levou a um processo crescente de escolarização dos Terena. A instalação de engenhos

para beneficiamento da mandioca e cana de açúcar, produção de farinha e rapadura, se deu a partir

do ano de 192264. Em cachoeirinha a instalação do Posto e da Escola são mais tardias (em 1922),

mas a partir de então começa a se verificar um crescimento lento, mas constante, da população, da

produção e do número de estudantes65.

A ação do SPI seguiu rigorosamente as intenções declaradas em 1914, através do

estabelecimento de uma lógica de proteção pautada em pelo menos três eixos distintos: 1) um eixo

econômico, através do financiamento de ferramentas e insumos para as reservas indígenas, de

maneira que esta pudessem aumentar sua produção na lavoura, e também o controle e gestão da

força de trabalho indígena; 2) um eixo ideológico-cultural, pautado na construção de “escolas” e no

trabalho pedagógico de “ensinar” os índios a cultura nacional e a “civilização”; 3) um eixo político,

de administração das terras indígenas pelo Encarregado do Posto, que ao mesmo tempo assumiria as

tarefas econômicas e ideológico-culturais, e de regulação da vida indígena.

Se configuram os atores e relações de um novo campo de relações interétnicas. Este campo

era composto pelo SPI e seus postos e povoações indígenas; pelas então reservas “indígenas” e as

diferentes comunidades- locais indígenas (Cachoeirinha, Bananal, Passarinho, Lalima, Brejão e

outras).

Os índios Terena estavam neste momento em alta conta com os encarregados e inspetores do

SPI, seguindo assim uma linha histórica (já que também os presidentes de província os

consideravam como índios “mansos e civilizados”). Desta maneira em 1922 o relatório da IR-6

menciona: “os terenos são os índios mais adiantados que conheço...(...) “Tenho esperança fazer

dos terenos, colonisadores e mestres de creação em outros postos onde devemos invial-a”. (Filme

379 fl 1491). A intenção de utilizar os índios Terena na implementação das políticas das instituições

estatais também havia ocorrido no Império, com a política de “catequese e civilização”.

63 E enviado um professor que atuaria como representante do SPI. 64 Ver Relatório da IR-6, 1922 (Filme 379 fl 1491). 65 A casa da escola foi construída em 1922, e é interessante observar o que diz o relatório do SPI a este respeito: “Esta casa de iniciativa toda indígena estava apenas começada, pois somente haviam feito os índios sua armação medindo 301/1X8 m.” (Filme 379 ft 1349-50)

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Mas se de um lado podemos dizer que os Terena absorviam com facilidade a nova relação

“econômica” com o SPI, materializada principalmente na política de doação de

ferramentas/sementes, o mesmo não acontece com a intervenção política do SPI e seu controle

molecular da vida dos índios (através das tentativas de regulação do “consumo do álcool” e da

proliferação de missões religiosas dentro das aldeias, por exemplo). Também se verificam

problemas sérios no que tange ao esforço do SPI de impor uma administração centralizada através

do Encarregado do Posto e de um único Capitão. Assim, o regime tutelar, no seu elemento

historicamente novo (em relação a situação histórica anterior), qual seja, o do controle político

direto pelo Estado, seria recusada pelos Terena. Em Bananal se daria um processo de resistência

efetiva a construção do regime tutelar, e especialmente a imposição de uma determinada estrutura

política centralizadora. A resistência a imposição do regime tutelar se deu especialmente em

meados dos anos 1920, e podemos classificá- la como a primeira tentativa de “emancipação”

indígena, só que feita pelos próprios índios.

3.5 - “A Emancipação Indígena” – a luta pelo controle político de Bananal

A história da resistência indígena Terena contra o regime tutelar começa com a construção

das reservas. Esta resistência à ação estatal se manifesta no maior aldeamento Terena, no qual o SPI

depositava as maiores esperanças de progresso do processo de “civilização” dos índios. No ano de

1927 Roberto Vieira dos Santos Werneck, superintendente dos PI´s do sul de Mato Grosso, dá o

seguinte informe em seu relatório:

“Com o ensaio feito por essa Inspetoria da administração interna do Bananal passa a ser feita pelos índios, ficou o professor Joaquim Fausto Prado accumulando a escola do Ipegue, pois cessou sua acção administrativa do Posto. (...)

O Bananal passou a ser administrada internamente por uma junta de 3 membros desde 22 de agosto.

Havendo graves queixas dos índios contra o capitão Marcolino Lili e da polícia por ele organizada, essa inspetoria resolveu reorganizar a polícia que passou a ter em seu seio índios filiados ao Capitão Manoel Pedro e Marcolino Lili e não somente a este último como era”. (Filme 341, fl 1128-29)

As lutas internas em Bananal levaram a estabelecimento de um padrão de organização

política distinto daquele normalmente adotado pelo SPI. Ao invés de um único “capitão” ser

reconhecido oficialmente para cada aldeia indígena, foram reconhecidos “três indígenas” como

“administradores” da aldeia. Dois “capitães” e um índio indicado pelo SPI. Esta administração

indígena deveria substituir a administração do SPI, que até então era responsável politicamente,

pela gestão política da aldeia do Bananal.

Em 1918, um relatório da IR-6 nota o seguinte:

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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“Mantém ali a inspetoria um encarregado com a diária de dois mil reis.

Como estes índios já se acham quase emancipados esse funcionário tem o encargo de zelar pela ordem e diminuir os conflitos que surgem diariamente com os civilisados e fazendeiros visinhos.

Os anexos a este relatório mostram a gravidade dos conflitos ali sucedidos tendo sido necessária para manter a ordem uma verdadeira operação militar levada a effeito pelo inspetor em data de 19 de julho do corrente anno com a força publica do estado cedida para esse fim pelo Inspetor Federal dr. Camillo Soares. Prova-se portanto necessário a conservação nessa aldeia do encarregado”. (Filme 380, ft 1542).

Nota-se aqui que a representação social, que circulava no SPI acerca dos índios Terena, de

que estes índios seriam mais “civilizados”, mais “capazes” para o trabalho, levou também a

considerá- los como próximos da “emancipação”, ou seja, da retirada de suas aldeias da estrutura

político-administrativa do SPI. Vejamos pelo documento abaixo que conflito estava em causa

naquele momento:

Exmo Sr. Presidente do Estado de Mato-Grosso. Levo ao vosso conhecimento que o inspetor do Serviço de Proteção aos Índios e localização dos trabalhadores Nacionaes Snr. Adriano Metello, no dia 31 do mês passado na povoação do Bananal, próximo a estação Visconde de Taunay da EFI a Corumbá, sede do 4º Disctricto municipal, sede de uma escola publica primaria mixta creada desde 1911, sede d´uma sessão eleitoral e residência de índios da tribu Terena, já civilisados, a titulo de proteção fez armar 15 homens da referida tribu e mandou debaixo de chuva despejar na rua as mercadorias existentes na casa de negócios dos cidadãos syrios Nicolau Falcão, Aurd Mustafá, Gened Hoder e Nagib Atukis porque vendiam também aguardente (...) Não contente em tamanha violência requisitou hoje ao delegado de policia providencias para que fizesse sair da mencionada povoação os cidadãos Honório Coutinho, Jose Basan, Jose Teixeira, Jose de Souza Coelho, Manoel Correa, Bernardino Macedo e o índio emancipado Adolpho Massi. Devo salientar que este índio de 30 anos de idade é não só civilisado, mas instruído, eleitor, ahi nascido, criado e morador e todos os outros ahi moram há annos entregues a vida laboriosa e afamiliados aos ditos índios (...) O que parecer querer o referido inspetor é retirar desse povoado os cidadãos que não sejam indios afim de ficarem sós, evitando assim o desaparecimento natural, lógico útil e desejado da tribu pela civilisação, como já aconteceu neste municipio com a tribu dos Layanas e Quiniquinaus.

Relevas que assignale ainda o facto muito significativo de terem os próprios índios enviado ao delegado de policia uma representação contra essas violências praticadas pelo inspetor Metello, representação por 60 nomes delles. (Representação do Intendente Municipal de Aquidauana-1918, Filme 380, Anexo ao Relatório da IR-6).

O trecho acima mostra o padrão de ação do SPI, que depois seria consolidado: constituição

de uma “polícia indígena” para; controle do acesso aos territórios indígenas; fixação de critérios de

“indianidade”, que permitiriam a exclusão – como no caso acima citado – de sujeitos considerados

como “´não índios” pelo SPI, das aldeias. Em 1919 ainda se mencionam conflitos em Bananal:

“De 1917, a esta parte teem se suscitado algumas questões entre estes índios e civilizados que os procuram explorar, mas com a intervenção amigável do encarregado do Posto, teem sido as mesmas quasi sempre resolvidas pacificamente. O pior elemento que ali tem, e que quase sempre é o autor, de todas as queixas que surgem, é o índio emancipado Adolpho Massi, que já por mais de uma vez tem sido posto para fora do aldeamento pelo Sr. Inspetor, como um individuo perigoso”. (filme 379; ft 1198).

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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A problemática da “emancipação” dos Terena seria colocada de maneira mais efetiva, no

ano de 1922, sendo assim relatada:

“Os protestantes (índios) distinguem-se dos outros índios especialmente por não beberem, mas ao que dizem, são um tanto pedantes, julgando-se superiores o que invita os outros. Nada disso eu percebi por mim mesmo. Informou o sr. Roberto Werneck houverem-lhe dito que o missionário aconselha ao Capitão Marcolino Lili, chefe de mais prestigio e protesta nte, a propor ao Governo a emancipação do Posto e retirada dos funcionários do serviço, que no dizer dele, nada tem feito pelos terenos. Poucos dias depois de empossado recebi, transmitida pelo sr. Lindolpho Azevedo, uma carta do índio do Bananal, denunciando faltas contra a moralidade do Posto cometidas pelo encarregado Manoel de Oliveira Cravo ” (Relatório da IR-6, 1922, Museu do Índio, Filme 379 fl. 1439)

Os relatórios da IR-6 nos anos 1920, indicam uma série de conflitos políticos em Bananal,

atribuindo-o a ação da “União Missionária Sul-americana”, que atuava nesta aldeia. Os conflitos se

dariam dentro da aldeia de Bananal, pela divisão entre “protestantes e católicos”, e entre o SPI e a

União Missionária. Isto levando inclusive a migração de famílias de Bananal para Cachoeirinha

(Relatório da IR-6, 1922, Museu do Índio, Filme 379)

Os atritos do SPI com a União Missionária se iniciariam em 1919. No relatório referente a

este ano, Silveira Lobo escreve um item denominado “questão religiosa”:

“Entre estes índios encontrei uma forte propaganda feita por pastores da igreja anglicana afim de induzil-os a se converterem ao protestantismo. Em meus relatórios precedentes tive o ensejo de vos expor claramente a situação e demonstrar as razões pelas quais esta administração acreditava necessário prohibir fosse continuada esta propaganda que estava dividindo os índios em dois grupos. Igualmente vos fiz sciente das diversas providencias, editaes, intimações etc, tomadas para evitar a continuação de taes fatos. Tendo esta Inspectoria expedido ordens severas para impedir que entrassem no território sob sua fiscalização missionários de tal propaganda promoveram estes uma collecta entre os índios seus adeptos afim de seguirem para essa capital Federal e ahi se entenderem com essa Directoria”. (Filem 379, fl. 1346-47).

Em anexo a estes relatórios estão documentos e comunicados trocados entre a IR/SPI e a

União Missionária. O caso é levado até a Direção do SPI no Rio de Janeiro, que autoriza o trabalho

da Missão dentro da aldeia de Bananal, permitindo a construção de templo, escola e hospital (anexo

11, 14/03/1922).

Assim, existia um conflito de interesses entre a Inspetoria Regional e União Missionária

Sul-americana, pelo controle político da aldeia de Bananal. Seria a tentativa de “emancipação

indígena” uma mera estratégia de manipulação dos índios por parte da Missão? Mesmo que tenha

havido tal manipulação, como sugerem os documentos do SPI, a ação dos índios não pode ser

explicada somente por ela.

Em primeiro lugar, na substituição do encarregado de posto, acima mencionada, a petição

encaminhada pelos índios, é assinada por “católicos e protestantes”, o que significa que não

existiam somente índios da órbita de influência União Missionária envolvidos na derrubada do

encarregado. Além disso, o índio relacionado com a União Missionária era Marcolino Lili, e foi

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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contra o controle político exclusivo deste, questionado por outro Capitão, que é aplicada a fórmula

de uma junta composta de três membros, um indicado pelo Capitão Marcolino Lili, outro por

Manoel Pedro, e outro pelo SPI66.

Some-se a isto o fato de o SPI ter firmado um acordo de “convivência pacifica” com a União

Missionária, pelo menos é isto que sugere o relatório de 1923: “Já não existe contenda religiosa,

vivendo a administração do Posto e missão protestante que ali opera na melhor harmonia, a

primeira cuidando de tudo e todos e a segunda cuidando da propagação e instrução doutrinária

entre os que livremente a querem ouvir”. (Relatório da IR-6, Filme 379 fl 1467).

Ainda no ano de 1927, a IR entraria em choque com o Capitão Marcolino Lili. Nesta ocasião

ficariam explícitos os motivos. O que a documentação revela é que existia um problema que tocava

a região nevrálgica do regime tutelar: a administração do patrimônio indígena, especialmente, das

terras da aldeia. Seria o controle político deste patrimônio e de todos os meios empregados para sua

gestão e exploração (“polícia”, “engenhos”, “arrendamentos”) que seriam disputados pelos

diferentes “capitães”, e também, pelo próprio SPI, através do Encarregado de Posto. Uma série de

documentos da IR-6 de 1927 permite analisar o processo de emancipação indígena como parte de

uma primeira etapa do processo de revolta contra a tutela.

Vejamos o que o relatório da IR-6 de 1927 informa:

“O Posto do Bananal é uma verdadeira povoação indígena em vésperas de ser emancipada, pelo adiantamento a que já attingio. A falta de cooperação por parte do governo do Estado, nos obriga a adiar muitas providencias indispensáveis para isso; mas, vamos alli mantendo, uma ingerência cada vez menor, hoje reduzida ao ensino da primeiras lettras, aos cuidados médicos e auxílios referentes a construções de casa, instrumentos de lavouras, machinas de beneficiamento, repdroductores para melhorias de rebanhos, açudes para água, cercas de arame e matança de formiga. A administração propriamente dita passou, como sabeis, a ser exercida por uma junta de três índios, governando sucessivamente, cada um durante um mez. Essa providencia de que vínhamos cogitando desde algum tempo, foi precipitada pelo constante antagonismo dos índios protestantes encabeçados pelo de nome Marcolino Lili, com os auxiliares nomeados pela Inspetoria para dirigirem o Posto”. (Relatório da IR-6, 1927, Estigarribia, Filme 341, fl 1011).

O relatório deixa bem claro que, apesar da questão religiosa, existia uma oposição indígena a

“administração” imposta pelo SPI nos territórios indígenas. A solução encontrada pelo SPI foi, em

agosto de 1927, instituir uma “Junta Indígena” para substituir a administração, mais

especificamente, o Encarregado do Posto, Junta esta composta por três nomes, indicados um pelo

SPI (Manoel Vitorino), um por um capitão identificado como “protestante” (Paulo Lili Marques) e

outro por um capitão identificado como “católico” (Umbelino Candido).

É importante notar que o capitão Marcolino Lili foi a princípio indicado pelo próprio SPI,

por conta da sua filiação religiosa protestante, que incentivava um ethos “ascético”, especialmente

66 O referido relatório menciona a solicitação de força policial para retirada dos Missionários do Bananal.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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no que tange ao não consumo de bebida alcoólica, o que facilitava o controle e manutenção da

ordem dentro das aldeias. Marcolino Lili foi consagrado capitão da aldeia de Bananal. Entretanto,

pouco tempo depois, algumas queixas começaram a ser realizadas por setores da comunidade,

denominadas pelo SPI de “católicos”, que acusavam de agressões e uso indevido do patrimônio da

comunidade. Isto levou o SPI a tentar destituir o capitão Lili, que logo desencadeou a oposição

ativa de sua facção política. Em agosto de 1927, o SPI deu início à “emancipação” dos Terena de

Bananal por que não conseguia fazer com que o encarregado de posto exercesse suas funções.

No mesmo ano de 1927, o auxiliar da IR, Roberto Vieira dos Santos Werneck, apresentou

um relatório sobre os postos do sul do estado, em que constavam alguns anexos, dentre eles um

documento endereçado aos três índios membros da junta do Bananal, composto por 26 itens, que

discriminavam detalhadamente a função da Junta Indígena e o processo de “emancipação” da

povoação do Bananal. O documento é assim formulado:

“Tendo em consideração o adiantamento a que já attingiu a povoação do Bananal e a necessidade de estender as actividades e recursos de que dispõe esta Inspetoria a índios mais atrasados julgamos chegada a ocasião de tentar a sua emancipação, isto é, a administração pelos seus próprios habitantes, que será opportunamente proposta. A titulo de experiência e preparo organisamos esta junta, procedendo a 22 do corrente, como sabeis, e de acordo com o edital ahi affixado, a vossa escolha para constitui-la. Será um governo para uso interno, que administrará sob as vistas da Inspetoria, tendo como principal objectivo a manutenção da ordem dentro da povoação e o encaminhamento dos serviços de interesse geral. Vae enumerado a seguir o que julgamos essencial para o cumprimento de sua missão: 1º - Evitar e cohibir desordens e desrespeito a moral, uzando para isso, quando necessário, a polícia agora constituída; 2º Impedir que qualquer pessoa, índia ou não, seja perseguida ou enxovalhada por motivo de crença religiosa ou modo de pensar qualquer. Dada a divergência religiosa que há dentro do Bananal, a junta deve ter muito em vista que o Governo não dá preferência a ninguém pela religião que professa (...) 3º Garantir aos índios a liberdade de matricular seus filhos nas escolas que preferirem, desde que taes escolas estejam de accordo com as leis brasileiras; 4º Garantir o direito de locomoção as pessoas não criminosas e a permanência, o respeito e o uso da palavra, dentro das terras da povoação, aos sacerdotes e crentes de quaesquer religiões que a visitem, os quaes não poderão. 5º Não impedir os folguedos e festas religiosas ou não, que os índios ou grupos de índios queiram fazer, desde que não conduzam a desordens ou imoralidades; 6º no caso de crimes (assassinatos, roubos, attentados violentos ao pudor), mandar effectuar a prisão do criminoso, o arrolamento das testemunhas (...) 7º Impedir que um índio ou grupo de índios uze, em seu proveito exclusivo, qualquer das propriedades coleticvas existentes na povoação. A) nenhum índio ou grupo de índios poderá arrendar ou dar pastos para animaes particulares. B) nenhum índio ou grupo de índios poderá vender lenha tirada nas mattas ou pedras de suas terras e etc. (...) 10º Ter muito em vista que na Povoação do Bananal só os índios e o Governo podem possuir immoveis ou sementes de qualquer natureza. 11º Procurar resolver pacificamente toda as questões existentes entre índios e entre esses e as pessoas não índias, apellando para a Inspectoria nos casos mais difficeis. 12ºO uso da polícia na repressão de qualquer caso irregular deverá ser feito moderadamente, evitando toda violência e brutalidade. 13º Essa polícia se comporá de 12 homens escolhidos, uniformizados e armados pela Inspetoria e terá a missão de policiar a povoação (...).

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14º A polícia cumprirá ordens exclusivamente da Junta, por intermédio de um de seus membros, os quaes sucessivamente e por um mez exercerão sua chefia imediata (...) (Antonio Martins Viana Estigarribia N200/13, IR-6, 1927 Filme 347, filme 1172). Vemos que o poder da Junta Indígena era constituído por três elementos fundamentais; 1º) a

investidura estatal, já que os poderes da Junta eram concedidos pelo SPI, e dependiam de sua

estrutura administrativa para serem exercidos; 2º) a polícia, ou o monopólio da violência dentro dos

limites do território da “povoação indígena”; 3º) a conciliação de interesses entre diferentes

“caciques” ou facções políticas que disputavam o controle e uso dos recursos econômicos de

Bananal.

O controle da “propriedade indígena” (incluindo ai todos os bens materiais, como engenhos

e etc, e os recursos naturais da reserva) sempre foi uma questão fundamental, mesmo numa área

territorial relativamente “pequena”, como o caso das reservas indígenas do Sul de Mato Grosso. A

questão religiosa estava associada à questão política, do controle da polícia indígena, de maneira

que expressava uma clivagem política existente dentro da aldeia. Assim, a emancipação indígena,

da qual se tratou nos anos 1920, tocava o centro mesmo do regime tutelar, dos poderes que esta

relação envolve e implica,e dos discursos e representações simbólico-culturais que produz e nas

quais se ampara. Era pelos índios Terena serem considerados pelo SPI como estando em avançado

estágio de “civilização” (o que supunha uma identificação destes com a cultura nacional/ocidental),

que se propôs a emancipação. Mas não somente por isso. Na realidade o fundamental foi a luta e

resistência política desencadeada pelos indígenas pelo controle dos territórios indígenas.

O processo de emancipação indígena foi sempre todo conduzido pelo SPI. A “Junta

Indígena”, que deveria substituir a administração do SPI, estava subordinada ainda a Inspetoria

Regional, de maneira que fazia parte de um esquema estatal. Assim, a experiência da emancipação

dos Terena não deve ser vista romanticamente como um projeto de “liberação indígena” (como

seria concebido décadas depois, pelas organizações e movimento indígena), mas sim como uma

reação do Estado as micro-revoltas desencadeadas pelos índios contra sua intervenção nos

territórios e organização social indígena.

Mas a experiência da emancipação indígena ocasionava uma mudança importante numa

esfera “micro-política”, pois provocava a luta concorrencial entre diferentes facções indígenas pelo

controle e uso monopólico da “propriedade coletiva” da aldeia. Isto fica explícito nos itens que

compõem o documento, já que seria uma das funções da Junta evitar que tal fato ocorresse. E esta é

uma mudança fundamental. Outro fato importante é que existe uma dimensão cultural- ideológica

implícita neste processo, que é o da legitimação e o da criação de fundamentos internos (ao grupo

indígena) para as relações de dominação. Isto se consolidaria depois com o processo histórico, e é o

que pretendemos analisar.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Apesar da profunda vinculação da Junta Indígena ao SPI, esta não esteve em operação por

muito tempo. Não conseguimos localizar os relatórios do SPI dos anos 1928, 1930-1934, e os de

1929 não menciona nada sobre a experiência da Junta Indígena. No relatório da IR-6 de 1935, num

tópico referente a aldeia Bananal, lemos o seguinte:

“Infelizmente, tive de registrar, em agosto do anno findo, uma facto bastante desagradável para esta Inspetoria, no que muito concorreu a grande incompatibilidade existente entre o encarregado e a população indígena. Por intermédio daquelle, recebi um apello do prefeito de Aquidauana, snr Manonel Alves de Arruda, e do juiz de paz da povoação de Taunay, snr Manoel de Andrade, para permitir que o gado pertencente a esse povoado se servisse da água existente em grande abundancia na Bahia situada dentro dos campos do posto, enquanto perdurasse a grande seca que assolava a região. (...) considerando que a permissão equivalia a um ato de humanidade, cujos effeitos so poderiam redundar em sympathias para o índio; e, finalmente, considerando a abundancia d´agua, conforme declaração do próprio encarregado, na Bahia em questão, e que portanto, não se justificaria uma negativa, dei meu consentimento. Nunca supuz, no entanto, que dessa minha autorização, baseada unicamente na informação do encarregado, adviessem graves distúrbios. No momento em que construíam o corredor, afim de dar acesso ao gado à Bahia, os índios Marcolino Lilli e José Francisco, alcunha Japonez, a frente de um grupo de índios armados, impediram com ameaças violentas o prosseguimento de dita construção. Esse acontecimento deu causa a que o encarregado, sem mais preâmbulos, requeresse ao comandante do 16 B.C., com sede na cidade de Aquidauana, à delegacia de polícia o desarmamento do grupo amotinado com a prisão dos cabeças. A presença de uma força armada fez com que muitos índios se despersassem, indo a maior parte para Aquidauana, para cuja cadeia seguiram também presos Marcolino Lili e Japonez. Imediatamente me transportei para essa localidade, fazendo com que os índios regressassem tranqüilos para suas casas e providenciando a remoção de Marcolino Lili e Japonez, da cadeia publica para o Posto de Cachoeirinha, até segunda ordem. Com a retirada definitiva de Jayme Machado do lugar de encarregado de Bananal, autorizei a volta desses índios para seus pagos. “ (Relatório IR-6, Filme 380, fl 1674).

Ou seja, até meados dos anos 1930, o capitão Marcolino Lili, ainda mantinha uma política

resistência à ação do SPI. Note-se que o conflito acima mencionado é um conflito armado; em

conseqüência dos “distúrbios” provocados pelo evento, o exército e a polícia intervieram na

povoação indígena. Poderíamos concebê- lo como um desdobramento do processo de resistência

iniciado ainda nos anos 1920, talvez mesmo como seu corolário.

Neste evento, o conflito está organizado em torno de dois elementos: 1) oposição liderança

indígena X encarregado do SPI; 2) controle da propriedade indígena (o acesso ao território indígena

e recursos ambientais existentes dentro dele). Exatamente os mesmos fatores existentes nos

primeiros atritos entre lideres Terena e agentes do SPI. Este acontecimento, entretanto, é marcado

por uma maior gravidade, já que resulta num processo de revolta armada dos índios contra o SPI e o

regime tutelar.O desdobramento é a repressão armada do Exercito e Polícia, acionada pelo SPI,

contra os indígenas Terena liderados por Marcolino Lili.

A série de conflitos/situações sociais verificadas entre 1927-1935, que começa com a

proclamação de uma Junta Indígena para Emancipação da Povoação de Bananal, e termina com a

intervenção do Exército e a prisão de lideranças indígenas da mesma povoação, deve ser entendida

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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como um processo de revolta/resistência dos índios Terena ao estabelecimento do regime tutelar.

Esta revolta assumiria diferentes formas, e não cessaria nos anos seguintes, mesmo depois do

arquivamento da idéia de “emancipação”. Na verdade, esta política de resistência a relação tutelar,

seria dotada de diferentes formas em quase todas as reservas indígenas Terena, sendo o caso de

Bananal, um caso importante e elucidativo da dinâmica societária que estava em processo de

constituição.

Esta série de conflitos se devem a verdade à combinação de alguns fatores: 1) a formação

das “reservas ou povoações indígenas”, unidades administrativas do SPI, a constituição de um novo

sentido para o regime tutelar; 2) a transformação da relação grupo étnico/território e das condições

materiais de existência e reprodução social destes; 3) a organização social e revolta/resistência

indígena aos novos esquemas de distribuição de poder que estavam se estabelecendo.

Desta maneira, a experiência de “emancipação indígena”, levada a cabo pelo SPI no Posto

de Bananal a partir de 1927, deve ser entendida como o produto da combinação das transformações

materiais da vida nas reservas indígenas, do esquema de distribuição de poder vigente no campo

das relações interétnicas e da resistência indígena contra este esquema, sendo que a resistência

indígena contra o regime tutelar, neste contexto, teve uma função preponderante em relação aos

demais fatores. Assim, no início dos anos 1940, quando o SPI se consolidaria enquanto instituição

estatal em todo o território nacional, os PI´s do sul do Mato Grosso e a IR-6, haviam promovido e

suplantado as tentativas de “emancipação indígena”, garantindo assim a consolidação da tutela.

3.6 – Da nacionalização à crise do SPI (1940-1969).

A partir do momento que a IR-6 conseguiu sufocar a micro-revolta indígena contra o regime

tutelar em Bananal, a ação do SPI junto aos Terena e estabeleceu dentro dos parâmetros do

“indigenismo real”. Isto significa que os Postos Indígenas continuaram a ser administrados pelos

encarregados, através da polícia indígena e dos “capitães” indicados por ele. Ao final dos anos

1930, a mudança na conjuntura política nacional repercutiria na política indigenista, de maneira que

a própria localização institucional do SPI se transformaria, saindo este órgão do MAIC, e passando

sucessivamente para o Ministério do Trabalho (1930-1934) e depois para o Ministério da Guerra

(1934-1939). Esta mudança se deu dentro dos processos de transformação do Estado e do Mercado

Capitalistas, que passavam naquele momento por um duplo processo: o de centralização política no

plano político, e de passagem do capitalismo monopolista ao capitalismo monopolista de Estado, no

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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plano econômico, em meio a processos de Guerra Civil desencadeadas por lutas intra e inter-

classes67:

“Com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930, pelo decreto nº 19433, de 26 de novembro, responsável pela relação entre capital e trabalho - frente às necessidades que os tumultuados anos 20 imporiam, no sentido de se produzir legislação e serviços capazes de coibir as movimentações operárias e controlar a entrada de mão de obra estrangeira, notadamente ao crescimento do movimento operário internacional- seriam a ele transferidas todas as atribuições relativas a indústria, comércio e imigracão-colonizacão até então alocados no MAIC”.(Lima, 1992, p. 164).

Seria nesta conjuntura que as tarefas de edificação de uma “identidade nacional” seriam

postas com maior relevo, sendo o indigenismo concebido como um instrumento para tal política.

Desta maneira, a ação do SPI no período entre 1934-1939 (quando estava integrado no Ministério

da Guerra) foi marcada pela idéia de nacionalização68, e entre 1939-1955 (quando retornou para o

Ministério da Agricultura), pela de preservação e aculturação paulatina, não excludente com a

primeira:

“As idéias em torno das quais se organizaria o Serviço estariam claramente estabelecidas no regulamento aprovado pelo decreto nº 736, de 6 de abril de 1936 (...) O regulamento marcava-se pela preocupação com a nacionalização dos silvícolas, com o fim e incorporá-los à Nação (art1º)”. (Lima, 1992, p. 165)

“O discurso da nacionalização continua, porém assente sobre a idéia de grupos indígenas situados em estágios distintos da evolução humana, já que o decreto 5484, de 27/06/1928, responsável por uma categorização relativa ao grau de contato, cerne de ação protecionista, era ainda vigente. (...) Por exemplo, falando dos dois tipos de postos indígenas com os quais deveria contar o SPI à época, prevê para os Postos de Atração, Vigilância e Pacificação a tarefa de lidar com povos “imbeles, desarmados e na infância social, de modo a despertar-lhe o desejo de compartilhar conosco o progresso que atingimos. (...) O segundo tipo de posto, os de Assistência, Nacionalização e Educação, destinar-se-ia de acordo com o Regulamento, a uma ou mais tribos em relações pacificas e já sedentárias e capazes de se adaptarem à criação e à lavoura e a outras ocupações normais”. (Lima, 1992, p. 166)

A nacionalização era concebida como um processo pedagógico de educação e trabalho e

educação (técnica) para o trabalho. A partir da década de 1940, o organograma do SPI seria

reestruturado para dar conta das duas tarefas; seria incentivada a retomada da idéia do “índio como

guardião das fronteiras”. O curto período de permanência do SPI no Ministério da Guerra não

eliminaria a retomada desta estratégia, que continuaria a orientar a ação do SPI dentro do Ministério

da Agricultura e a política indigenista, durante o Estado Novo e depois de sua queda. Assim, os

67 Nos referimos aqui as 3 Guerras Civis do período: 1) a “Revolução de 1930”, que depois o presidente Arthur Bernardes; 2) A revolução Constitucionalista de 1932; 3) a Insurreição Comunista de 1935. Todos estes acontecimentos influenciaram no processo de reestruturação do Estado, tanto do ponto de vista ideológico-político, quanto administrativo. Estes fatos teriam repercussão na política indigenista, afetando diretamente os Terena, como veremos. 68 Um dos importantes acontecimentos, que afetam especificamente os índios de Mato Grosso, é a “Marcha para Oeste”. Este foi um movimento do colonialismo interno e expansão da fronteira agrícola para a região norte do Mato Grosso. Enquanto isso significou um maior investimento econômico na região norte,implicou uma maior estruturação do SPI no sul, que se caracterizou pelo esforço de consolidar as reservas indígenas como reserva demão-de-obra e intensificar os processos de transformação das tecnologias produtivas e referenciais culturais -simbólicos dos indígenas.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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Postos Indígenas e Inspetorias foram estruturados para atuar de acordo com estas duas orientações

gerais. Esta estrutura só sofreria propostas de alteração em 196069. Vejamos como era a distribuição

dos PI´s no sul de Mato Grosso:

Quadro 29 -Postos Indígenas da IR-5 (sul de Mato Grosso e São Paulo) PIF

Postos de Fronteira PIN

Postos de Assistência, Educação e

Nacionalização.

PIC Postos de Criação

PIA Postos de Alfabetização e

Tratamento

Vanuire (Tupã/SP) Posto Curt Nimuendajú (Ivaí/SP)

Nabileque (Ponta Porá/MT)

Ipegue (Aquidauana/MT)

Fransisco Horta (Dourados/MT)

Posto Icatú (Penápolis/SP) Capitão Vitorino (Nioaque/MT)

José Bonifácio (Ponta Porá/MT)

Posto Taunay (Aquidauana/MT)

Lalima (Mianda/MT)

Benjamin Constant (União/MT)

Buriti (Aquidauana/MT)

São João do Aquidavão (Miranda /MT)

Presidente Alves de Barros

(Miranda/MT)

Cachoeirinha (Miranda/MT)

Os dados permitem ver que as tarefas da política indigenista no sul de Mato Grosso eram

diferentes do Norte, já que na IR-6 (Norte de Mato Grosso), eram 6 os PI´s de “atração” (num total

de 11), enquanto que no sul não existia nenhum destes, e cinco postos de “nacionalização”,dos

quais a maioria eram de índios Terena. Isto significa que neste período, o regime tutelar e a política

indigenista foram veículos do processo de nacionalização, de construção e imposição de uma

identidade nacional aos povos indígenas.

É preciso observar que devido a própria idéia estruturante do regime tutelar, os povos

indígenas se diferenciavam em categorias: para o SPI existiam diferentes categorias de povos em

diferentes situações de contato interétnico e grau de civilização, o que significava que o regime

tutelar não incidia e se materializava da mesma maneira para todos os povos indígenas. Para alguns

povos indígenas, a política seria de “atração”, para outros seria de “nacionalização”. Isto significava

que simultaneamente ao impulso de preservar e garantir uma “aculturação paulatina”, se tentava

acelerar o processo de incorporação dos índios à Nação, como trabalhadores rurais. O regime tutelar

para os Terena deste período, assumiu uma função fundamentalmente cultural-ideológica, através

da política de resgate da “cultura tradicional” aplicada pelo SPI nos anos 1940-1950. A tutela se

confundiu com a pedagogia da nacionalização, e os conteúdos político e econômicos desta

(subordinação e centralização das lideranças indígenas ao encarregado de posto) complementavam

o processo.

Assim, entre as décadas de 1940 e 1950, as aldeias Terena (ou parte delas) estavam

vivenciando um momento especial; o Estado-Nacional, através do SPI, aplicava uma política que ao

mesmo tempo incentiva a mudança e a preservação da cultura e identidade indígena. Seria nesta 69 De acordo comum plano de acordo de reorganização do SPI (ver Lima, 1995).

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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situação histórica que os etnólogos da Escola de Sociologia e Política e do SPI encontrariam os

índios do Sul de Mato Grosso, em especial os Terena. As monografias clássicas sobre o grupo são

produzidos neste ambiente intelectual e institucional.

O antropólogo Altenfelder Silva registra assim a ação do SPI junto aos Terena de Bananal70:

“Por iniciativa do Serviço de Proteção aos Índios foi restabelecida a “festa dos padres”, o Oheokoti, celebrada agora no dia 19 de abril, Dia do Índio, juntamente com outras cerimônias cívicas brasílico-indígenas, tais como o hasteamento do Pavilhão Brasileiro, ao som do Hino Nacional entoado pelos índios, e a realização de danças Terena, agora reavivadas. (Altenfelder Silva, 1949, p. 359).

O Posto Indígena, a Escola, juntamente com as Missões Religiosas, seriam assim os pilares

do processo de nacionalização (sinônimo de aculturação e assimilação, indicando o destino destes

últimos) dos índios – concebido pelo SPI como a mudança de sua cultura, de seu modo de trabalho

e vida. Estas três instituições realizavam e materializavam toda a política e objetivos almejados pelo

Estado-Nacional; transformação global das sociedades indígenas em trabalhadores nacionais, em

brasileiros. Elas combinavam as funções político-econômicas (o Posto e o Encarregado, que

“encarnavam” diretamente perante os índios o regime tutelar), e também cultural- ideológicas (a

Escola e a Missão, que reproduziriam saberes/códigos culturais específicos), tal como as narrativas

acerca da nacionalidade e a cosmologia cristã. O Posto, a Escola e a Missão não somente

portavam e reproduziam as idéias e representações culturais- ideológicas fundantes do regime

tutelar, (tais como a distinção “índio selvagem”índio manso”, ou índio aculturado, numa linguagem

atualizada pelas narrativas sociológico-etnográficas), mas operacionalizavam e davam

materialidade para esta mesma relação, assim como seus conteúdos específicos, marcados por

formas de dominação, e rebaixamento dos índios perante os poderes de Estado, assim como de seus

status na sociedade. Estas instituições são, por assim dizer, a própria relação tutelar tal como ela se

manifestava perante os índios Terena.

Paralelamente a este processo de nacionalização, se deram outras transformações,

decorrentes da própria situação histórica e condição de classe dos índios Terena. Isto quer dizer que

a situação histórica de reserva, para os índios, seria marcada por algumas contradições que

desencadeariam processos sociais. A pesquisas realizadas por Roberto Cardoso de Oliveira nos anos

1950 iriam se deparar com tal situação, e chamar a atenção para as contradições e processos que se

chocavam diretamente com a expectativa do SPI de concentrar toda a população indígena dentro de

reservas economicamente auto-sustentáveis e relativamente fechadas à “sociedade nacional”.

Neste período as pesquisas antropológicas realizadas por universidades e pela seção de

estudos do SPI, indicariam com clareza como os Terena se destacavam como parte de um 70 Éinteressante ver que apesar de tais ritos serem sistematicamente registrados desde os anos 1920, fala-se aqui em “reavivamento”.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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campesinato pobre71, tendo em razão de sua situação de classe, de desenvolver novas estratégias

enquanto grupo étnico. Assim, a migração para o trabalho (labor migration), principalmente para a

cidade de Campo Grande, principal núcleo econômico do sul de Mato Grosso (depois da construção

das estradas de ferro, especialmente a Noroestes do Brasil), ou a “urbanização” dos índios deve ser

vista como conseqüência da situação histórica de reserva, que redefiniu a relação grupo

étnico/território, mas também da própria organização social e estratégia indígena, já que muitas das

famílias que saiam das aldeias, alegavam ter feito isso em razão dos conflitos político-religiosos

(Cardoso de Oliveira, 1968,p.129). O caráter camponês, ou de campesinato étnico dos Terena,

implicava necessariamente uma articulação orgânica campo-cidade, e se o processo de

industrialização e urbanização brasileiras naquele período já começavam a afetar o conjunto do

campesinato, não poderia deixar de afetar também o próprio campesinato étnico.

Assim, apesar de em meados dos anos 1950 uma parte significativa da população Terena se

encontrar aldeada, um número significativo se encontrava ainda em localizadas em fazendas e outro

em cidades – ou os núcleos urbanos de maior importância econômica – sendo que já existiam

grupos domésticos de segunda geração, o que prova que a migração era relativamente antiga. O

quadro abaixo permite ver a situação global dos Terena em meados dos anos 1950:

Quadro 30- PI´s Terena – 1954 – As Diferentes localizações sociais dos Terena. População Nos PI´s

População em Fazendas (grupos familiares)

População nas Cidades

Cachoeirinha 834 Do Negrão 4 Piqui 3 Campo Grande

88

Bananal Ipegue72

1060 Conceição 2 Anhuma 2 Aquidauana 330

Lalima 256 Alvorada 3 Vargem Alegre

6

Capitão Vitorino

202 Taboca 6 Bonito 15

Moreira 130 Ambrosio 3 Chácara do Salim

1

Passarinho 109 Mongolinho 1 Chácara do Frutuoso

1

Buriti 483 S Pedro 1 Granja Chico Antonio

1

Limão Verde 246 Leonel Correia

2 Leblon 7

Total (indivíduos)

3320 36473 418

Elaborado a partir dos dados de Roberto Cardoso de Oliveira, 1976.

71 Cardoso de Oliveira relembra que nos anos 1970 “ ...os Terena sempre puderam ser referidos como “índios camponeses” na medida em que eu conseguia recuperar minha etnografia como fonte de dados para meus alunos que fossem ilustrativos da condição camponesa no Brasil indígena.” (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 94) 72 Estes dados são estimativas criadas por Cardoso de Oliveira, a partir dos dados de Altenfelder Silva, ou seja, não se baseiam em dados diretos. 73 Estimativa obtida pela multiplicação do total de famílias pelo numero de membros médio encontrado por RCO entre os Terena no período.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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A localização social-geográfica dos Terena neste período mostra que um número pouco

superior a 20% da população aldeada vivia fora das reservas indígenas do SPI, ou seja, do controle

direto exercido pelo SPI. Um contingente que não deixa de ser expressivo. Note-se que apesar

disso, encontravam-se ainda redes sociais que articulavam os grupos domésticos através de

processos de interação e comunicação, baseados em relação de parentesco e vizinhança74. A

diferenciação da localização dos grupos domésticos Terena (reserva-fazenda-cidade), implicava

também uma diferença de situação econômico-ocupacional: existiam assim dentro das reservas, o

camponês; o camponês-proletário rural (que reveza as atividades de subsistência com o trabalho

assalariado); dentro das fazendas, o índios seriam o proletário rural (vaqueiro, capataz) ou

camponês sem-terra (agregado); nas cidades, diversas ocupações, desde o funcionalismo publico até

inúmeros ofícios manuais (ver Cardoso de Oliveira, 1968). Assim o regime tutelar, constituído e

estabilizado na situação de reserva, foi abalado por duas outras forças societárias: 1) as contradições

engendradas pela situação econômico-social da reserva (migração para o trabalho, conflitos

político-religiosos); 2) as estratégias e política de resistência dos próprios grupos indígenas

(oposição local ao SPI, apropriação de saberes e recursos materiais simbólicos para uso do grupo).

O diário de campo da pesquisa de Roberto Cardoso de Oliveira, então etnógrafo da seção de

estudos do SPI oferece uma visão interessante sobre a construção do regime tutelar, de sua

dimensão molecular e extensiva. É sobre sua etnografia que elaboraremos um quadro do regime

tutelar na situação de reserva, de suas características de operação e contradições que levaram a seu

processo de crise e transformação.

As nove reservas indígenas Terena existentes em meados dos anos 1950, diferentemente das

comunidades- locais de fazendas e cidades, tinham uma estrutura: o Encarregado de Posto,

representante local do SPI.era responsável pela administração política da aldeia, para a qual

indicava um Capitão e organizava uma polícia, que ficava sob as ordens de ambos. O Encarregado

do Posto possuía um poder amplo, pois em sua mão se concentrava a gestão do patrimônio indígena

(moinhos,ferramentas e a terra), determinando amplamente a forma da produção; também o poder

político, já que ele a mando da Inspetoria Regional, indicava o Capitão e a Polícia das aldeias, assim

como concedia “salvos-condutos” para entrada e saída de índios da reserva, e regulava por outro

lado a entrada de não- índios.

Com relação a extensão do poder do Encarregado de Posto (que obviamente se sustentava

sobre o poder da IR do SPI), e sobre o próprio contexto da política indigenista que marcava o

regime tutelar (Estado/Indios Terena), Cardoso de Oliveira tece algumas observações fundamentais,

de sua ação enquanto funcionário do SPI: 74 Cardoso de Oliveira observa isso com relação aos procedimentos adotados para sua pes quisa, quando conseguiu localizar quase todos os índios em fazendas e cidades através de índios que moravam nas aldeias (Cardoso de Oliveira, 1968).

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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“Recordo-me que cabia a nós (a Darcy e a mim) dar a autorização para a entrada de missionários nas áreas indígenas. O dossiê de cada missão era analisado, ouvia-se o encarregado de posto e só então os missionários eram nominalmente autorizados (ou não) a exercer a catequese. Naquele tempo não se ouvia as lideranças tribais. O índio não era considerado um interlocutor: os indigenistas (dentre eles os antropólogos) falavam pelo índio. Esse era o horizonte ideológico do indigenismo, não somente brasileiro, mas também latino-americano”. (Margem: Cardoso de Oliveira, 2002, p. 115).

Aqui temos um elemento fundamental da caracterização do regime tutelar na situação

histórica de reserva: a tutela era marcada por uma forte exclusão, por uma lógica “substituísta”; o

indigenista, representante do poder e das instituições do Estado-Nacional, por uma metaforização

política se tornava representante do índio; agia e falava em nome dele. O ato da substituição do

índio pelo indigenista era a essência da própria relação tutelar (já que a idéia de tutela supunha a

incapacidade do índio em se representar). Assim, a estrutura institucional do SPI se pautava nesta

relação ao mesmo tempo de exclusão, substituição e rebaixamento do índio. Isto é o regime tutelar.

Este poder se exercia assim quase sempre pela exclusão. Desta maneira, no ano de 1955,

Cardoso de Oliveira registra uma decisão do SPI que exemplifica bem esses procedimentos de

exclusão:

“Nestas eleições Tomásio foi um dos poucos índios a repudiar a ordem da IR-5 de não votar no pleito de 3 de outubro que, segundo a inspetoria, era em obediência a uma outra da diretoria do Rio de Janeiro. Contou-me Tomásio que enquanto os seus patrícios, entre decepcionados e revoltados, devolviam o titulo de leitor aos funcionários do SPI, ele e seu amigo Simão recusaram-se a fazê-lo. Ficaram com seus títulos e votaram. Bem. Isso me pareceu uma demonstração de que algo estava mudando (...) Seria uma visão moderna do Terena, voltada para o exercício de uma autonomia mínima que a política indigenista vigente procurava cercear?.(...) Procurei aprofundar-me sobre essa recente história das eleições a partir de Cachoeirinha. Segundo Tomásio três partidos políticos procuraram a aldeia para angariar eleitores: a UDN, o PSD e o PTB. Esses partidos atuaram com intensidade variável no proselitismo político junto aos índios. (...) A UDN prometeu conduzir por meio de automóvel a família do encarregado até Miranda e, para os índios, ofereceu um caminhão como meio de transporte; o mesmo caminhão que trouxe o seu candidato, Nelson Ferreira Candido, por duas vezes, a Cachoeirinha para persuadir o encarregado e os índios – esses por intermédio do Capitão Timóteo – a votar no candidato do partido. (...) (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 115).

Este exemplo é importante por duas razões:1) mostra claramente como a política do regime

tutelar, era uma política proibitória, de exclusão. O SPI dizia o que o índio poderia ou não fazer,

como no caso, se ele poderia ou não votar; 2) mostra também o esforço dos Terena de tentarem

burlar esta imposição, estabelecendo relações com outros atores sociais – no caso partidos e

lideranças políticas. Este é um processo que seria muito característico da posterior critica indígena

do regime tutelar.

O regime tutelar se configura na prática por mecanismos que possibilitam, através de

procedimentos político-administrativos, a substituição do índio; o controle de suas ações. Mas além

disso, significa também uma codificação precisa, que transforma a alteridade étnico-cultural em

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subalternidade político-social, muitas vezes com conotações racialistas. O regime tutelar, mesmo

frente aos índios com maior status dentro das comunidades locais, se apresentava, além do mais,

como forma de rebaixamento dos índios. É isto que Roberto Cardoso percebe, ao testemunhar a

relação entre Encarregado de Posto e o Capitão na aldeia Capitão Vitorino, no município de

Nioaque:

“E nesse sentido não posso deixar de fazer um comentário sobre o relacionamento que observei entre Enoch e o capitão Francisco Vitorino da Silva; apesar de ser amigável, não deixa de ser autoritário, próprio de um empregador com seu empregado. É certo que Vitorino é praticamente um capataz do SPI (ainda que esteja há anos a espera de sua nomeação...)mas ,ao mesmo tempo, não deixa de ser um capitão dos Terena da reserva; e é por isso que me surpreendo quando ouço as ordens de Enoch; “arrume meu cavalo”...”vá lá a Nioaque me comprar isso ou aquilo”....”arme minha rede na varanda”..e por aí vai... E não é só por sua posição virtual na hierarquia de funcionários do SPI. É também pelo fato de ser índio..”. (Cardoso de Oliveira, 2002, p.105)

Esta é uma observação fundamental; associado aos poderes do Encarregado – um

funcionário subalterno na hierarquia do SPI, mas com status superior ao do “Capitão Indígena” - de

gestão dos bens, de controle político, se encontrava fundamentalmente esta codificação molecular

das relações de poder, um dito relativamente não-dito, de que em qualquer circunstância, mesmo

um líder indígena está colocado sob o comando do funcionário subalterno do SPI. Esta relação

diádica, de pessoa-pessoa, poderia ser vista como uma metáfora dos papéis do “índio e do branco”,

da própria relação Estado/Índio. O Capitão Terena era assim visto e tratado pelo Encarregado do

SPI como um empregado. A analogia utilizada por Cardoso de Oliveira (capitão/encarregado com

empregador/empregado) ilustra bem o conteúdo prático e concreto do regime tutelar, tal como

constituído e consolidado na situação histórica de reserva.

A dominação política estatal constituída através do regime tutelar, e exercida pelo SPI por

meio do complexo Encarregado/Posto/Inspetoria/Diretoria, manteve como dimensão fundamental

a gestão do patrimônio e a administração da renda indígena dentro do contexto das reservas, o que

recebeu grande ênfase no período 1950-1960 (Lima, 1995). Vimos que nos anos 1920 a

administração da terra e bens indígenas era uma questão estratégica, estando na base dos conflitos e

revolta indígena de Bananal. Cardoso de Oliveira observou com propriedade nas diversas reservas

indígena, que o papel econômico do Posto Indígena tinha muito pouco a ver com a economia

comunitária indígena, de maneira que:

“Nas aldeias em que o SPI está localizado, a impressão que se tem é de que muito pouco se cuida da economia comunitária, i.é,dos próprios índios, preterindo-a favor do que chamaremos de economia do posto. (...) A verdade é que existe uma preocupação muito grande sobre a produção do Posto, i.é, daquela decorrente do trabalho financiado pelo SPI, seja no que se refere as roças, ao tratamento do gado ou a extração de madeira ou casca de angico. Este trabalho é normalmente realizado pelos próprios índios, especialmente pagos para isso (...) Explicam os Encarregados que essa produção é revertida em melhoramentos para o Posto e para a Aldeia (...) Poucas são as famílias que se beneficiam da produção do Posto, seja

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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recebendo sementes em quantidades apreciáveis, seja contando com reprodutores de boa raça para melhorar seu lote de reses. (Cardoso de Oliveira, 1976, p. 95).

Poderíamos pensar aqui que a “economia do posto” se configura como uma esfera

econômica (ver Barth), que tangencia a esfera da economia comunitária indígena, mas que não se

confundia com ela, tendo objetivos e lógica relativamente próprias: uma lógica produtivista voltada

para o atendimentos dos interesses das instituições de Estado e/ou seus funcionários em cada

ocasião. Esta dimensão econômica da ação do SPI é fundamental pra compreender o regime tutelar,

a política indigenista e apolítica indígena em seu conjunto. O regime tutelar desta maneira era

composta por três elementos fundamentais: 1) o substituísmo autoritário (o índio pelo indigenista);

2) o controle proibitório, quer dizer, a tutela, exercida pelo SPI, era para o índio fundamentalmente

um “não poder” (não ser autorizado a fazer); 3) o rebaixamento do índio, frente a categoria e status

genérica de “branco ou civilizado”, especialmente aos representantes do Estado-Nacional. Estes

elementos, combinados ainda com as tarefas de gestão política e econômica exercidas pelo SPI,

fazem do regime tutelar para os Terena nesta situação histórica, uma relação especialmente

marcada pela desigualdade. Nas outras situações históricas, a tutela orfanológica não tinha chegado

afetar significativamente nem sua economia, nem sua política (primeira fase da situação de

diretório, entre 1800-1850); antes disso, no Chaco, por mais que fossem tensas as relações

Guaicurú-Guaná, estes últimos mantinham, sua autonomia política; depois, já em meados do século

XIX , mesmo perdendo suas terras e capacidade econômica, os Terena conseguiram manter uma

organização política relativamente autônoma. Agora, na situação histórica de reserva, pela primeira

vez os Terena enquanto grupo, e seus lideres (os naati) enquanto segmento, se encontravam numa

relação em que sua organização política sofria uma intervenção direta e sistemática de

atores/instituições externos ao grupo.

Mas esta situação não se estabilizaria desta maneira. Como vimos, desde os anos 1920,

micro-revoltas movidas pelos Terena foram desencadeadas; a de Bananal, estudada por nós, chegou

a precipitar uma experiência de “emancipação indígena”, que se encerrou com uma revolta armada

em 1934 e com a repressão do exército. Nos anos 1950/60, tal situação de oposição e critica sub-

reptícias ao SPI e relação tutelar continuavam, mesmo que não se estabelecesse uma revolta aberta.

Durante uma festa de santo, realizada em Cachoeirinha em 1955, Roberto Cardoso

acompanhado do então capitão Timóteo e do Encarregado Lulu, registrou o seguinte acontecimento:

“Enquanto escrevo estas linhas ouço de Lulu (encarregado) um comentário sobre o discurso que o capitão Timóteo fez na abertura dos festejos da Santa, ocasião em que não deixou de me apresentar mais uma vez a comunidade. Enquanto discursava, alguém dentre os presentes teria falado em voz baixa, mas não tão baixa para que duas irmãs do capitão não deixassem de ouvir, que os Terena não precisavam nem do encarregado, nem do doutor. Sabedor disso, logo após o ocorrido, o capitão ficou indignado e quis punir o autor dessas impertinentes palavras que, afinal, iam contra sua própria autoridade. A intermediação de Lulu, porém, foi

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

153

providencial em convencer o capitão a não recorrer a polícia indígena para punir o pobre infrator”. (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 81)

Este registro etnográfico mostra que, também de forma molecular, através da manipulação

de fofoca e discursos, se construía entre os Terena formas cotidianas de resistência ao regime

tutelar. Assim como antes havíamos visto a insatisfação com as decisões do SPI no que tangem a

participação dos índios na política municipal. Numa festa/ritual, em que o capitão e membros de sua

rede de parentesco estavam presentes, manifestam-se oposições e hostilidade aos representantes do

SPI. O então capitão tenta utilizar os mecanismos disponibilizados pela própria estrutura

institucional: a polícia ind ígena. A repressão direta só não se realiza, em razão da intervenção do

Encarregado. A mecânica presente, de acionamento dos índios para a defesa do regime tutelar e

seus representantes, encenada nesta situação social, dá indícios importantes dos fundamentos

internos pelos quais a dominação do Estado se constitui, e sem os quais dificilmente conseguiria

operar satisfatoriamente75.

Observando os desdobramentos históricos podemos perceber que uma crise de gestão

política das reservas Terena se instala no final dos anos 1950, de maneira que a figura do capitão

passa a ser ao mesmo tempo questionada, e o posto de Capitão disputado, de maneira que as

indicações dos Encarregados muitas vezes não eram aceitas pelas comunidades-locais das diferentes

aldeias e reservas indígenas. Roberto Cardoso de Oliveira, enquanto etnógrafo e funcionário do

SPI, visitou todas a reservas indígenas Terena do sul de Mato Grosso, e dá um relato revelador:

“O esvaziamento da autoridade tribal,como fato corrente em todas as Reservas Terena, teria de deslocar a tônica política (...) A nova conjuntura, desmoralizando a chefia tribal, facultava ao Encarregado inclusive não reconhecê-lo, como soem ser atualmente as situações de Cachoeirinha, Francisco Horta, Lalima e caminhando para isso, Buriti. A primeira não tem capitão, mas a luta pelo poder está acesa, envolvendo algumas das personalidades indígenas mais influentes da comunidade (...)

Em Francisco Horta, Reserva Multi-tribal, os Kayowa-Guarani e os Terena possuíam até 1958, aproximadamente, um capitão para cada comunidade tribal (...) Nesse ano, devido a dificuldades administrativas internas, Encarregado do Posto decidiu fosse eleito apenas um capitão. Realizada a eleição, a vitória de um (infelizmente não conseguimos saber qual o vencedor, informados que fomos desses fato quando estávamos em Buriti) teria naturalmente de levar a um desequilíbrio na política interna da Reserva (...) O Candidato e ex-capitão perdedor foi ao que parece, amparado pela opinião publica citadina, cujo jornal empreendeu uma campanha contra o Encarregado do Posto,levando-o a licenciar-se até as coisas se acertarem (...) Na prática , Francisco Horta ficou sem Capitão, porquanto o seu Encarregado, pressionado pela campanha, acabou por não reconhecer o resultado da eleição. Entretanto esses acontecimentos não iriam servir de exemplo ao mencionado Encarregado de Buriti, que tencionava fazer igual eleição em sua Reserva, explicando que assim o desejava porque três capitães eram demais para uma população tão reduzida. (...) Tramava-se em 1958, a liquidação dessa chefia tríplice, com a centralização da autoridade numa só pessoa (ao que parece, no Capitão Figueiredo, do núcleo mais antigo) capaz de ser melhor manipulada pelo

75 A polícia indígena era um dispositivo fundamental da ação do SPI. Roberto Cardoso tem um relatório criticando este uso da policia indígena, e recomendando sua extinção.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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verdadeiro poder na Reserva,o Encarregado de Posto”. (Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110-112).

Os dados do autor citado acima indicam que no final dos anos 1950, sistematicamente se

verificavam conflitos políticos dentro das Reservas Terena, no que tange a escolha das lideranças

políticas indígenas. Ao mesmo tempo existia a política do SPI de impor os líderes e uma resistência

das comunidades indígenas em aceitar tal indicação; ou ainda, mediante a existência de uma

pluralidade de lideranças indígenas, o esforço do SPI se dava no sentido de centralizar o poder em

uma única liderança. Assim, em quase todas as reservas existia um problema político fundamental;

como escolher as lideranças indígenas e fazer tal escolha ser aceita pelas comunidades- locais? As

“eleições” para cacique surgem assim como uma fórmula encontrada pelo SPI para dar legitimidade

ao poder de indicação do Chefe de Posto. Logo, o regime tutelar passava por uma crise do exercício

da autoridade política no plano local, passava por mais uma crise, decorrente do choque da política

de centralização estatista do SPI e controle com a cultura/organização social indígena e seus

interesses políticos. Antes da adoção deste sistema eleitoral foi estabelecido um outro sistema: o do

conselho tribal, composto pelos homens mais idosos. Este sistema foi adotado antes das eleições,

também como forma de legitimar as indicações de capitães pelo SPI. As informações de Cardoso de

Oliveira remetem aproximadamente aos meados dos anos 1920, acerca de Cachoeirinha, quando da

sucessão do “Capitão Vitorino”:

“Nessa intervenção, o SPI parece haver tentado interpretar o processo sucessório tendo por base informações fragmentárias e discutíveis sobre a cultura tribal. Criou-se assim o Conselho de Aldeia, composto pelos anciões e seus mais antigos moradores, incumbido de escolher ou eleger o sucessor do Capitão Vitorino. (...) Contudo, não é sempre que esse conselho subsiste, depois de criado. Em Cachoeirinha – como nas demais aldeias Terena onde ele chegou a ser instituído –sua duração foi fugaz. Com a morte do capitão Timóteo, ocorrida em 1958, a comunidade de Cachoeirinha não conseguiu chegar a um acordo sobre a sucessão. Os remanescentes do Conselho que haviam elegido o falecido Timóteo para Capitão (seis indivíduos, dos dez que o compunham)não foram sequer convidados pelo Encarregado do Posto para reunidos deliberarem sobre a sucessão. Em 1960 iríamos assim, encontrar a comunidade em plena crise da autoridade tribal; e pudemos surpreender, então, uma luta surda em seu interior, voltada para reinstaurar, ao menos simbolicamente, o poder tribal. (Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110-112).

Assim, ao final da década de 1920 em Cachoeirinha teria se implantado o “Conselho”,

composto pelos homens mais velhos das aldeias (experiência estendida a outras reservas e aplicada

em outros grupos indígenas), ao mesmo tempo em que em Bananal, se teria tentado a “emancipação

indígena”. O Capitão indicado pelo Conselho teria sido o Timóteo (que pelos nossos cálculos, ficou

no cargo cerca de 30 anos, até 1958). Mas com a morte deste, teria se instaurado uma luta política

dentro de Cachoeirinha.

O que é fundamental a apreender é que a função de “capitão” era marcada por uma

instabilidade, gerada pelos conflitos políticos internos na aldeia e pela relação com o SPI; mas

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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também função de Encarregado de Posto dependia em grande parte da estabilidade do capitão, o

que faz com que existisse uma relação de inter-dependência entre Encarregado-Capitão na

distribuição do poder local dentro das reservas. Existia uma instabilidade recíproca nas relações e

posições do Encarregado-Capitão. O caso da aldeia Bananal é exemplar da dificuldade em se impor

a centralização política.

O processo de construção e consolidação do regime tutelar, dentro da “situação histórica de

reserva”, foi marcado pelo esforço do SPI em impor uma organização política centralizada e

unitária (com um único capitão para cada reserva), se valendo para isso primeiramente do

“Conselho” e depois das “Eleições”; ambos os sistemas passando por fases de aceitação e oposição

dos índios Terena. Mas nos anos 1950/60, todas as reservas indígenas encontravam conflitos e lutas

pelo controle do poder e da função de capitão.

O período que se segue, entre 1950 e 1969, foi marcado por uma dupla crise do regime

tutelar: 1) uma “crise local”, motivada mais uma vez por uma política de resistência cotidiana

desencadeadas pelos Terena, que provocariam uma alteração na forma pela qual o SPI impunha a

liderança centralizada em cada comunidade- local ou reserva indígena e nos processos concretos de

escolha dos capitães; 2) uma “crise global” do indigenismo brasileiro que se sobreporia anterior,

iniciada com as denúncias (de corrupção, genocídio contra o SPI), e que culminaram com a

extinção do órgão em 1967 e a implantação da FUNAI em 1969. Notemos que, antes da crise global

do indigenismo e do regime tutelar e seu questionamento por diferentes setores da sociedade, já

haviam oposições locais, desencadeadas de forma descentralizada e não planejada, mas freqüentes,

dos índios Terena a esta relação.

Podemos indicar aqui que no processo de constituição das reservas, a tentativa

“emancipação indígena” em Bananal, é o produto das formas cotidianas de resistência

implementadas pelos Terena e que culminaram inclusive em formas de resistência aberta (como a

revolta armada). As diferentes técnicas de resistência, como recusa e boicote ao trabalho,

desobediência, fofocas usadas como contra- informação, eram utilizadas como formas de oposição

ao regime tutelar.

3.7 - Mudanças no campo e arenas de relações interétnicas (1970-1990).

A partir dos anos 1970, certas mudanças sociais de caráter geral provocariam rearranjos

importantes no campo e nas arenas das relações interétnicas do Mato Grosso do Sul, e

conseqüentemente em Cachoeirinha. No plano internacional, no final dos anos 1960, denúncias de

etnocídio contra os governos latino-americanos começaram a ser publicizadas. A principio, as

pressões vinham de setores da sociedade civil e do campo acadêmico. Desse movimento inicial

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

156

resultou a realização em janeiro de 1971, de um simpósio, da qual foi produzida a carta conhecida

como “Declaração de Barbados”. O documento aponta a necessidade do pleno reconhecimento da

capacidade política indígena e faz uma denúncia da ação dos governos e das missões religiosas

(Batalla, 1979, p.10). Esse e outros movimentos levaram a redefinição de políticas das Igrejas

Católica e Protestantes bem como de outros atores sociais. Paralelamente a esse processo, entre

1971 e 1977 o número e a variedade das organizações indígenas ou étnicas cresceu

consideravelmente na América Latina, exemplos são o Conselho Nacional de Povos Indígena dos

México e o CRIC (Conselho Regional Indígena de Cauca) da Colômbia. Nas pautas e estratégias

de luta estavam presentes questões como a recuperação de terras, reconhecimento dos direitos

indígenas, defesa da história, língua e costumes indígenas (Batalla, 1979, p.24 e Morales, 1979, p.

46).

No Brasil um processo similar se desenvolve, a partir da critica a política indigenista do

Estado brasileiro que alguns efeitos importantes como a formação do Conselho Indigenista

Missionário/CIMI (1972) e a redefinição da ação missionária católica frente aos povos indígenas,

que levaria a posterior política de realização de assembléias indígenas como forma de mobilização;

a criação de organizações não governamentais e grupos de apoio diversos (como as Comissões Pró-

Índio).

A conseqüência desses processos é que surgiria e se ampliaria também uma critica política

do regime tutelar da parte de diversos atores sociais, levando a entrada no campo e nas arenas

interétnicas de novas possibilidades de relações políticas, de novos objetos de conflito e novas

formas de discurso e ação simbólica. Nesse sentido, algumas alterações importantes se passam no

período de 20 anos entre 1970 e 1990, que condicionariam em parte o desenvolvimento do

protagonismo étnico, e a consolidação de um novo padrão no campo de relações interétnicas.

É preciso levar em consideração também o contexto brasileiro de luta contra a ditadura

militar que desembocou no processo de democratização da sociedade brasileira, a formação dos

movimentos sociais e do movimento sindical no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. A

redemocratização levaria a transformações importantes dentro do aparelho de Estado e também

entre os atores sociais. Na realidade, a construção do ativismo político indígena e o fenômeno do

protagonismo étnico se desenvolvem em relação a essa dinâmica política nos demais atores e

emergência de movimentos sociais, que se combinam também com mudanças nos aparelhos de

Estado

Essas mudanças, associadas às transformações localizadas nas sociedades indígenas

(demografia, territorialização), fortaleceriam as oposições ao regime tutelar, internas e externas as

sociedades indígenas. O processo de redemocratização da sociedade brasileira, levaria por sua vez a

mudanças institucionais nos aparelhos do Estado-Nacional. As diretrizes da política indigenista, e a

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

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ação dos novos atores sociais (ONG`s, CIMI, Comissões, Movimentos Sociais) tomariam o debate

acerca dos direitos indígenas, especialmente os territoriais, como centrais, já que o problema da

defesa das sociedades indígenas caminhava passo a passo com a defesa dos seus territórios. Assim

os processos de territorialização em reservas e a situação histórica associada a ela, passou a ser

caracterizado por uma permanente luta pela efetividade das demarcações em curso naquele

momento (1970/80) e pela revisão das antigas demarcações (feitas pelo SPI) de acordo com as

necessidades dos índios e suas reivindicações.

Logo, além da antiga ação estatal e missionária, multiplicaram as organizações civis atuantes

juntos aos indígenas. Também outros organismos estatais, como o Ministério Público depois da

promulgação da constituição de 1988, que passou a intervir diretamente nas relações entre índios e

sociedade. O problema da demarcação de terras foi reativado ou readquiriu sua visibilidade, na

seqüência de uma política de colonialismo interno e expansão da fronteira Agrícola em direção a

Amazônia nos anos 1970.

As condições sociais e políticas modificaram-se profundamente nesse período, de maneira

que aquelas características da situação de reserva foram alteradas apesar do padrão de

territorialização de ser mantido. A política de oposição ao regime tutelar ganhou cada vez mais

força dentro e fora das sociedades indígenas, e nesse sentido nesse momento histórico (1970-1990),

configuram-se novas relações no campo e arenas interétnicas. Entram novos atores em interação

estratégica com os índios, complexificando as relações econômicas e políticas, e também os

discursos simbólicos que mediavam essas relações. Mais uma vez diferentes atores sociais e

institucionais entram em cena, possibilitando os processos de territorialização do final da década de

1990 no Mato Grosso do Sul (analisados no capitulo 2).

A atual configuração do campo e das arenas de relações de Cachoeirinha é o produto desse

processo histórico, bem como os conflitos e questões colocadas. Como vimos o campo é constituído

por um conjunto de atores inter-relacionados por conflitos, decorrentes da disputa política por

recursos de poder, materiais e simbólicos, e também por diferentes relações de cooperação e

conflito. A partir dos anos 1980 então a nova configuração do campo de atores sociais e

institucionais, levaria a entrada em cena de três novos conjuntos de atores sociais: 1) as

organizações indígenas; 2) as organizações da sociedade (no caso do Mato Grosso do Sul,

especialmente do CIMI e do CTI); 3) o Ministério Público. A figura abaixo apresenta uma

representação do campo e arenas de relações de Cachoeirinha no período 2001-2006.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

158

Figura 2- Campo e Arenas de Cachoeirinha.

Para além do conjunto de atores, que estão em relação direta com os Terena de

Cachoeirinha, existem outros atores que mantém relações indiretas com este campo social, seja

através de relações com alguns dos atores que integram o campo, seja por terem interesses ligados

aos elementos que são objetos de competição e conflito dentro dele. O campo (pelo menos entre

2001/2006, período da nossa pesquisa) era composto pelas comunidades indígenas de Miranda e

suas organizações; pelas organizações sociais, como o CIMI e o CTI (Centro de Trabalho

Indigenista), que tem uma atuação importante junto aos índios; pelo PI da FUNAI e demais

instituições estatais locais (Prefeitura, Câmara de Vereadores e etc), pelas Missões/Igrejas e pelo

conjunto da população e grupos sociais locais (produtores rurais, comerciantes).

Demais Comunidades Locais Terena e outras Etnias Indígenas (Guarani,

Kadiweu, etc)

A.E.R/FUNAI, Assembléia Legislativa Estadual, Governo Estadual e demais

instituições estatais

Produtores Rurais do estado, comerciantes e suas organizações como

(a FAMASUL)

Ministério Público Federal

Instituições estatais (PI/FUNAI, Prefeitura. Câmara de

Vereadores etc)

Missões/Igrejas (Católicas e Protestantes)

Grupos Sociais Locais (produtores rurais, comerciantes.,

trabalhadores rurais, sindicato rural e etc)

Indígenas de Miranda e suas organizações

Organizações Sociais (especialmente o CTI e o CIMI)

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

159

As arenas são compostas pela FUNAI (suas administrações executivas regionais),

Assembléia Legislativa e Governo Estadual e outras instituições estatais, com destaque para o

Ministério Público Federal; pelas demais comunidades indígenas Terena e de outras etnias e suas

organizações; pelo conjunto dos produtores rurais do estado e suas organizações sindicais. Estes

atores, organizações sociais, instituições estatais, grupos indígenas, possuem estrutura e formas de

ação bem diversificada, já que na verdade operam em diferentes níveis. Estes atores, não envolvidos

necessariamente nos conflitos do campo das relações interétnicas, estão relacionados a ele

indiretamente, podendo apoiar certos grupos sociais e conjuntos de ação local, ou mesmo

desenvolver uma intervenção situacional.

As comunidades- locais Terena têm cada uma sua história particular. Existe um fluxo de

interação entre as diversas comunidades, possibilitado tanto pelas relações étnicas e de parentesco,

já que muitos Terena se mudam de uma área para outra, quanto pelas atividades econômicas e

políticas da FUNAI quanto por atividades culturais. Os fóruns e organizações indígenas regionais

também possibilitam uma articulação entre as diversas etnias, incentivadas também por

organizações como CIMI. As etnias indígenas nas diversas regiões do estado, totalizando uma

população de cerca de 50.000 pessoas, constituem sempre um virtual circuito de interação,

mantendo conexões e comunicação com os conflitos locais. As Administrações Executivas da

FUNAI são a base regional de execução da política indigenista de Estado, sendo integradas na

estrutura federal do órgão.

A FAMASUL como outras, é uma organização de classe do empresariado; é a federação

regional dos sindicatos patronais, integrada na estrutura da CNA (Confederação Nacional da

Agricultura). O Conselho Indigenista Missionário-MS é uma organização eclesiástica, subordinada

ao CIMI/Nacional, que tem sua sede em Brasília, que por sua vez está ligada a Confederação

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O CTI é uma organização não governamental criada por

antropólogos e indigenistas em 1979, e que atua em diversas regiões do Brasil junto a diferentes

povos indígenas. Além destas agências, que operam fundamentalmente no campo das relações

interétnicas, existem ainda aquelas que atuam no plano do conflito fundiário em geral, como as

organizações dos trabalhadores rurais e seus sindicatos, o Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA), órgão federal, a Assembléia Legislativa do estado, e através dela os

diversos partidos políticos existentes. O Ministério Público Federal se apresenta como organismo

integrante do aparelho da União.

Vemos assim que as agências que compõem a arena indicam a verticalização dos processos

políticos; a distância hierárquica interna aos organismos (por exemplo, da Administração Regional

da FUNAI para a sua Presidência em Brasília) corresponde a uma distância espaço-temporal do

local concreto do conflito, revelando assim a articulação do nível local da política com a dinâmica

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

160

geral do país. A maior parte destas agências, no entanto, mantém somente relações indiretas com os

atores componentes do campo das relações interétnicas. A noção de arena nos ajuda assim a ver a

diferenciação interna das instituições e organizações políticas, determinando as diferentes instâncias

que operam em cada caso, mas sem perder de vista a totalidade e a hierarquia na qual estas

instâncias organizativas se integram. Existe uma dinâmica campo/arenas que é fundamental para o

estudo tanto das relações interétnicas. As relações existentes dentro do campo não operam por si só,

pois os próprios atores –inclusive os indígenas - são vinculados aos atores com ação trans- local que

compõem as arenas, correspondendo a escalas de articulação regional e nacional. A intervenção dos

atores que integram a arena de forma mais direta no campo depende de eventos e acontecimentos

específicos. Mas os acontecimentos do campo se desenvolvem sempre em função da dinâmica

campo-arena, sendo por isso necessário estar atento às escalas local, regional e nacional.

Dentro deste campo e arenas existem alguns fatores estruturantes das relações de

competição, cooperação e conflito entre os grupos étnicos e demais segmentos componentes do

campo: 1º) recursos materiais, como dinheiro, postos de trabalho, e financiamentos, existentes no

Mercado; 2º) posições políticas no aparelho de Estado (no legislativo e executivo) e cargos na

administração pública (secretarias e organismos públicos); 3º) recursos públicos, como orçamento

do Município, da FUNAI e investimentos do Governo Estadual; 4º) terras e recursos ambientais.

As mudanças processadas na dinâmica campo-arena, também levou no final da década de

1990 ao agravamento do conflito fundiário indígena no Mato Grosso do Sul. Anteriormente, a

negociação e os conflitos se davam prioritariamente por recursos materiais e espaços de

representação política. Mas de 1998 em diante, o movimento de ocupação de terras desencadeado

pelos Guaranis afetaria as demais comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul. No caso de

Cachoeirinha, a realização dos trabalhos do GT da FUNAI responsável pelos estudos de revisão de

terras em 1999-2001, são o marco do aprofundamento da importância de tal questão dentro daquela

comunidade indígena. Assim, as questões que perpassam as relações e conflitos inerentes ao

campo/arenas, remetem diretamente ao processo de colonização do sul de Mato Grosso e sua

especificidade. O padrão de territorialização estabelecido pelo SPI e mantido pela FUNAI, a

história indígena local, são fatores que perpassam as atuais relações e sem as quais não é possível

compreender plenamente a atual situação histórica.

As situações históricas descritas aqui permitiram a visualização do processo de

transformação do balanceamento de forças entre índios, Estado e grupos sociais. A análise da

cultura e organização social indígena é fundamental para compreender os processos verificados no

campo. Os próximos capítulos serão dedicados à descrição do funcionamento da dinâmica campo-

arena na atual situação histórica, dos grupos domésticos e sua forma de organização, assim como

suas estratégias de reprodução social e resistência contra as relações de dominação impostas pelos

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

161

Estados e outros grupos sociais, são fundamentais. Inicialmente faremos uma descrição das formas

de organização social dentro da aldeia, bem como das tradições culturais ou de conhecimento, para

depois analisar os processos políticos.

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Capítulo 3 – Tempos e Espaços Indígenas na formação do Estado-Nacional.

162

1543-1775 Situação do

Chaco

1776-1849 Situação de Diretoria –

O Cerco

1850-1870 Situação de Diretoria –

O Aniquilamento

1880-1904 Situação de “Cativeiro”

1905-1990 Situação de

Reserva

1990-2006 Situação de “Retomada”

Existência de um território “livre”

Redução do território indígena pela ocupação colonial através de fortes e presídios. Dissolução da aliança Paiaguá-Guaicuru.

Guerra do Paraguai. Início da fragmentação território indígena e subordinação econômica através das fazendas.

Extinção das aldeias e expropriação dos territórios indígenas pelas fazendas.

Criação das Reservas Federais e reorganização das aldeias em parcelas dos antigos territórios.

Criação de “acampamentos” Indígenas em fazendas, eclosão de conflitos fundiários.

Existência de um Sistema Social Indígena, baseado numa organização segmentar ou acéfala Mudanças Sociais de Tipo Cíclico ou Institucional.

Articulação e Absorção de unidades sociais indígenas (territórios e grupos) dentro do regime colonial Mudanças Estruturais somam-se às mudanças cíclicas e institucionais (os índios são encapsulados pelo Estado-Nacional).

Desarticulçação relativa da aliança Guaicuru-Gauná. Consolidação das Aldeias controladas pelo Estado. Manutenção de autonomia política relativa pelos grupos indígenas dentro das aldeias.

Aniquilamento das relações e autonomia política indígena. Os índios perdem o “status” de guardiões da fronteira em razão do fim das hostilidades com o Paraguai.

Intervenção direta do SPI/FUNAI na organização política indígena através dos caciques e chefes de posto.

Luta e oposição dos índios a estrutura centralizada da FUNAI no nível local e reprodução da sua autoridade no nível regional e nacional.

Relações de Produção Indígenas (baseado na caça-coleta e relações de troca-guerra) articulado com as forças coloniais.

Co-existência e articulação do modo de produção ameríndio com o modo de produção colonial-escravista. Índios são empregados nos empreendimentos militares, comerciais e agrícolas.

Co-existência e articulação das relações de produção indígenas com o modo de produção colonial-escravista. Índios são empregados nos empreendimentos militares, comerciais e agrícolas

Instauração de regime de repressão da força de trabalho com a escravidão indígena nas fazendas por meio de regime de barracão.

Formação de reservas de mão-de-obra barata para atendimento da demanda regional. Inserção dos índios na economia rural e urbana.

Aumento dos fluxos migratórios para cidade e retorno de migrantes de outras gerações para as aldeias.

Forças Coloniais ocupando a periferia do Sistema Indígena

Forças Coloniais tornam-se centrais no Sistema Indígena

Estabelecimento de a uma autoridade estatal controlando indiretamente os índios através dos chefes indígenas.

Formação do Capital Monopolista e da Plantation Agro-exportadora.

Consolidação definitiva e fechamento da “fronteira” no sul de Mato Grosso. Ocupação e povoamento.

Desenvolvimento de novas Plantations Agro-exportadoras (especialmente soja)

Hegemonia Mbayá-Guaicurú sobre os povos indígenas e sobre os europeus. Os Terena ocupam uma posição intermediária no Sistema Indígena.

Declínio da Hegemonia político-militar Mbayá-Guaicurú e disputa de hegemonia entre portugueses e espanhóis.

Acirramento da disputa pelo hegemonia e controle territorial da região entres brasileiros e paraguaios.

Eliminação da ameaça externa e consolidação do Estado brasileiro em Mato Grosso.

Estabelecimento de relações fragmentadas dos grupos locais Terena com o SPI/FUNAI.

Novas alianças políticas entre os Terena e outras comunidades indígenas, além de movimentos sociais e ONG´S.

Quadro 31 Mudanças Sociais e Situações Históricas.

Mudanças Sociais e Situações Históricas da Sociedade Terena.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku: organização social e tradições de conhecimento aldeãs.

“... encontramos um Terena Evangélico vindo da aldeia União, também conhecida no local por Aldeinha. Ia para Miranda e estava apenas passando por Moreira. Conversamos rapidamente e ele contou que havia feito um curso de evangelho em Minas Gerais, durante três anos! Deduzi que era mais do que um simples ´crente´, mas alguém preparado para se tornar um pastor.Para alimentar um bom dialogo, disse-lhe que com toda sinceridade o que pensava sobre a divisão deles entre católicos e protestantes. Que eles, os Terena, não eram responsáveis por isso, mas a própria civilização, que os fez esquecer a religião indígena. Olhou-me um pouco perplexo como a perguntar se eu estaria falando sério... Percebi que ele estava irremediavelmente enredado no mundo dos crentes e religião talvez fosse um termo não muito apropriado para se referir a entidades tais como ´koixomuneti´, Hoipihapati (espíritos), ou aos gêmeos míticos Yurikoyuvakai e Taipuyukê. Estaria havendo entre nós um semantical gap? Muito provavelmente ...”

Roberto Cardoso de Oliveira in Os Diários e suas Margens

Os índios Terena foram inseridos pelo trabalho dos intelectuais produtores da literatura

etnográfica e sociológica da primeira metade do século XX num esquema teórico determinado que

os colocava sempre em processo de “aculturação/assimilação”, de “perda” (identitária,

organizativa). Esta marca seria transformada pelos intercâmbios verificados entre o campo

intelectual e a política indigenista, numa linguagem social pela qual os Terena seriam concebidos e

percebidos, forma de desqualificação e estigmatização destes índios – que por serem imaginados

como em “processo de aculturação e assimilação”, em certos casos passaram a ter sua própria

condição indígena negada ou rebaixada em face da imagem do “índio” da consciência romântica76.

Isto, de forma sub-reptícia, permanece até hoje77. Nunca é demais ressaltar o quanto a problemática

da afirmação (ou negação) da identidade indígena, tem efeitos políticos importantes, principalmente

no sentido da exclusão de grupos e indivíduos do acesso a direitos, sociais e territoriais78.

76 É o tipo de consciência que se estrutura em torno de estereótipos sobre o índio, normalmente “bom, criança grande”, associada a uma postura paternalista, que identifica o índio em termos culturais e tecnológicos com o passado colonial, de maneira que é este passado invocado sempre com a função de distanciar o índio do “presente sociológico”. 77 No estudo de Maria Elisa Ladeira, fica nítida a preocupação em contrapor este imaginário que cerca os índios Terena: “Esta epígrafe se justifica pela inversão do senso comum que aponta os Terena, via de regra, como um dos grupos indígenas mais “aculturados” do país, sendo freqüente a citação de que eles não são mais falantes da língua Terena.” (Ladeira, 2001, p.1) 78 A FUNAI em 1978 e 1981 levantou a problemática da necessidade da “emancipação indígena”, e para isso começou a tentar desenvolver “critérios de indianidade: “O presidente da FUNAI vem manifestando há longos meses uma inquietação persistente de saber afinal quem é e quem não é índio (...) Como a modificação anunciada permite resolver por decreto ´quem é e quem não é´, dando a FUNAI a iniciativa (...) trata-se, isto sim, segundo tudo indica, da tentativa de eliminar índios incômodos ...” (ver Cunha, 1986, p.109-110). Este artifício, pensado para ser empregado em larga escala pela FUNAI, foi empregado nos anos 1920 em Bananal pela IR-5, quando se levantava a suspeição sobre a “indianidade” de um índio Terena: “De 1917, a esta parte teem se suscitado algumas questões entre estes índios e civilizados que os procuram explorar, mas com a intervenção amigável do encarregado do Posto, teem sido as mesmas quasi sempre resolvidas pacificamente. O pior elemento que ali tem, e que quase sempre é o autor, de todas as queixas que surgem, é o índio emancipado Adolpho Massi, que já por mais de uma vez tem sido posto para fora do aldeamento pelo Sr. Inspetor, como um individuo perigoso.” (filme 379; ft 1198).

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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O estudo da sociedade Terena, na etnografia brasileira clássica, então, foi marcada por dois

posicionamentos: um tipo de antropologia cultural, preocupada em determinar e reconstruir a

cultura e da sociedade Terena no passado colonial (nesta categoria se encontram os estudos de

Kalervo Oberg e Altenfelder Silva); os outros estudos (de Roberto Cardoso de Oliveira) se

enquadram num tipo antropologia social, em que a ênfase é dada não mais na cultura tradicional

(apesar desta ser também abordada), mas nas relações entre a “sociedade indígena” e a “sociedade

nacional”. Assim, temos duas abordagens com direções distintas mas com um traço comum, que é o

de tratar a “cultura Terena”, tal como configurada na “situação histórica de reserva”, de maneira

extremamente periférica79. Estes estudos levam as marcas da teleologia da ordem, no sentido que

vêem a mudança social e cultural como um distúrbio, contornado somente pela intervenção do

Estado.

Neste sentido, mesmo quando descritas as idéias e práticas culturais (ritos, mitos e festas

indígenas) não se analisou o significado disso em termos de processo social, nem se correlacionou à

cultura e organização social com a situação histórica e o sistema social global, de maneira que não

temos a análise da ação simbólica dos Terena em relação a sua situação política e social dentro do

Estado-Nacional. Para preencher as lacunas existentes nesse plano, dedicaremos esse capítulo à

descrição e análise das tradições culturais/de conhecimento e organização social Terena, tal como

se apresentam nos dias de hoje. O principal objetivo é mostrar as condições internas de

funcionamento da sociedade Terena, e como sua organização oferece condições singulares para as

formas de “ação/reação” entre a política indígena e a política indigenista e para a dinâmica

dominação/resistência.

4.1 – Organização Social e Territorial de Cachoeirinha.

Ao chegarmos na Terra Indígena de Cachoeirinha, pela entrada principal, podemos ver as

roças que se distribuem dos dois lados da estrada de terra, que conduz até a Sede (ou Mbokooti),

um dos cinco setores ou aldeias (forma pela qual a população local os denomina) que constituem a

terra indígena de Cachoeirinha. Os demais setores são Argola (ou Argulla), Capão/Babaçu,

Morrinho (Murrinho), e Lagoinha (ou Lauana).

Os setores têm dimensão muito variada e ficam localizados em diferentes pontos da reserva.

A Sede conta, segundo os dados da FUNASA, com 1.347 habitantes e 263 casas; Babaçu com 517 79 Roberto Cardoso lembrando criticamente os seus trabalho sobre os Terena, indicou o seu procedimento teórico: “E o conceito de cultura, minado na época pela hegemonia das teorias da aculturação, contra as quais alguns de nós nos rebelávamos, não deixava muito espaço para uma reflexão crítica que incluísse esse mesmo sociologismo. Para mim, a perspectiva aberta pela antropologia social, de origem britânica, a seu modo também reducionista, fornecia as bases para escapar as armadilhas da perspectiva culturalista.(...) Vejo com muita clareza que ao abandonar o conceito de cultura para não reproduzir o culturalismo então vigente na antropologia que se fazia no Brasil, cai em uma outra armadilha!” (Cardoso de Oliveira, 2002, p. 123)

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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pessoas e 88 casas, Morrinho com 243 pessoas e 49 casas e Argola com 500 pessoas e 110 casas,

Lagoinha com 22 casas.

Dentro do setor Sede ou Mbokooti, se destacam a primeira vista a composição e o padrão de

ocupação territorial. As casas se distribuem nos diversos setores em torno do centro da aldeia, onde

ficam as edificações das instituições sociais, como igrejas e escolas. A Sede é cortada por uma

longa rua de terra, chamada “vila ou avenida principal”. Nesta avenida principal ficam localizados

a Capela de Santa Cruz, a Escola Coronel Nicolau Horta Barbosa, a Igreja Católica Nossa

Senhora do Perpetuo Socorro, a Sede do Posto Indígena da FUNAI, uma quadra de esportes e um

campo de futebol, um Armazém que serve para estocagem da produção da lavoura, o Centro

Comunitário e ao final da avenida a sede da AITECA (uma das muitas associações indígenas

existentes em Cachoeirinha, mas a única que tem uma sede específica para suas atividades).

Existem quatro ruas paralelas e quatro perpendiculares que se entrecruzam e terminam de

configurar a organização territorial local. Observando o mapa nº 4 podemos ver como o território é

sub-dividido em quadras, cada quadra sendo entrecortada pelos arruamentos da aldeia e como cada

sub-divisão territorial é composta por uma série de pequenos aglomerados de unidades residenciais,

indicado por cada “quadrado” no mapa. Estas diversas divisões compreendem conjuntos

residenciais que são chamados pelos moradores de “vilas” (Vila Serradinho, Vila Cruzeiro, Vila

América, Vila Principal, Vila Santa Cruz, Vila Rio Branco, Vila Nova Zelândia, Vila Nova80,

Vila Terra Vermelha, Vila União São João ou RDE -Recanto dos Evangélicos-, Vila Sol

Nascente). No mapa as vilas são representadas pelos círculos e números em vermelho. O mesmo

padrão se encontra nas demais aldeias, apesar de não existirem “vilas” no sentido que existem na

Sede. Nas aldeias Argola, Babaçu e Morrinho, as unidades residenciais se concentram num ponto (a

área central) e raramente existem unidades residenciais isoladas, quase sempre são formados

conjuntos de três, quatro ou cinco casas, e os conjuntos fixados muitos próximos uns dos outros.

80 Uma estrada, na saída de Vila Nova leva ate o Distrito Rural de Agachi.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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Mapa 4 - Mapa da Aldeia Cachoeirinha - 2006.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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Autor: Quintino Pereira Mendes, morador da Cachoeirinha.

1 – Posto Indígena Cachoeirinha 2 – Escola Municipal – Pólo Indígena Coronel Nicolau Horta Barbosa 3 – Quadra Esportiva 4- Posto de Saúde 5- Escola Manuel José Caetano Pinto 6 –Igreja Católica Nossa Senhora do Perpetuo Socorro 7 – Sede da AITECA 8 – Igreja Evangélica Missão Indígena Uniedas 9 - Igreja Evangélica Assembléia de Deus Madureira 10 – Santa Cruz 11 – Depósito de Cereais 12 – Estádio Capitão Timóteo 13 – Estádio Alcides Elias 14 – Bomba d´água 15 – Estádio Vila Nova

16 – Sede da AMITECA 17 – Caixa d´água 18 - Caixa D´água 19 – Igreja Assembléia de Deus Emanoel 20 – Igreja Luterana 21 – Igreja Fonte de Água Viva 22 – Açude Água Salgada 23 - Açude Água Doce 24 – Estrada para o Setor/Aldeia Morrinho 25 – Estrada da São João para a Agrosul 26 – Estrada que vai para a roça da AITECA 27 – Estrada que vai para Setor/Aldeia Argola 28 – Estrada que vai para Setor/Aldeia Lagoinha 29 – Centro Comunitário/OCA 30 – Estrada que vai para a Cidade de Miranda 31 – Pé de Mangas 32 – Estrada para o Cemitério 33 – Bebedor de Cavalo

Limite das Vilas 1 – Vila Serradinho 2- Vila Cruzeiro 3- Vila Nova 4 – Vila Santa Cruz 5 - Vila União São João 6- Vila Rio Branco 7 – Vila América 8 – Amigos da Avenida 9 – Vila Nova Esperança 10 – Vila Nova Cachoeirinha

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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Os Terena distinguem algumas unidades sociais e territoriais básicas, a Ovokuti (casa) ou

Vovoku “nossa casa, lugar onde moramos”, no sentido que um indivíduo se refere à casa da sua

família nuclear, e que no mapa são representados pelos pequenos círculos. “Noneovokuti”, que é

mencionado por Oberg como sendo “as praças centrais”, pode ser traduzido como “frente da casa”,

sendo empregado com o sentido de “rua” pelos Terena. A outra unidade básica desta morfologia

social é Ipuxovoku, que é traduzido também por “comunidade”, conjunto de casas, ou Vipuxovoku,

“lugar onde moramos (no sentido de grupo de casas), “nossa comunidade ou aldeia”. O termo

Ipuxovoku designa assim a idéia de “aldeia” ou “comunidade”, em termos gerais, e é usado um por

índio para referir-se a uma outra aldeia especifica, que não a sua; o termo Vipuxovoku designa uma

relação de pertencimento, a idéia da “nossa aldeia”, “lugar onde moramos”. Ou seja, dentro das

terras indígenas Terena existem diversas “Ipuxovoku”, e estas correspondem às “aldeias”. As

“Vilas” correspondem a uma terceira unidade desta morfologia, e são muito enfatizadas pelos

Terena; elas são compostas por grupos de parentesco inter-relacionados, às vezes duas, três ou mais

famílias extensas que agregam outros indivíduos ou famílias. Não identificamos um termo

especifico para “vila” no idioma Terena/Aruak (as palavras encontradas para designá- la geralmente

tinham o sentido de “pedaço”, “parte”, por exemplo Ihaxákoku mas não são conceitos

convencionais, apenas associações realizadas mediante alguma indagação). Entretanto, segundo

algumas pessoas com quem conversamos, o termo Ipuxovoku ou Vipuxovoku poderia ser aplicado

também aos espaços dos grupos domésticos ou das vilas, quer dizer, Vipuxovoku seria aplicado

para qualquer grupo de casas, no sentido de uma comunidade residencial e parentesco. Uma última

e importante unidade desta morfologia é a “roça” ou “kavané”, as áreas de plantio dos Terena e que

constituem uma parte muito importante da sua identidade.

Podemos considerar estas “vilas” como denominações locais indígenas para aquilo que a

antropologia brasileira denominou de “grupos vicinais”, considerados aqui especialmente como

produtos da ação de um líder que consegue manter junto a ele, através da influência política e

prestigio, sua parentela (ver Oliveira Filho, 1977, p. 145-146). As aldeias Terena internamente são

compostas e divididas por esses grupos vicinais, que em certos momentos, assume essa expressão

territorial de vilas ou bairros e se apresentam como importantes conjuntos de ação política,

delimitando fronteiras internas e conexões externas. Esses grupos vicinais (padrão que as demais

aldeias de Cachoeirinha como Argola, Babaçu, Morrinho e Lagoinha também seguem) operam e

regulam quase todas as dimensões da vida do grupo, e se relacionam ao que parece, sempre a linhas

de descendência de tipo segmentar, ou seja, remetem a um antepassado comum, normalmente um

naati, um cacique ou líder importante, descendência em torno da qual tais grupos vicinais

estruturam suas identidades e regras de pertencimento. As terras indígenas ou reservas são

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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constituídas assim por redes de “grupos vicinais” que remetem a linhas de descendência de naatis

determinados.

O território “aldeão” é composto por diversas vilas, que agrupam por sua vez diversas

ovokuti, e que correspondem aos espaços de diferentes grupos domésticos, que se estruturam em

função de suas atividades nas kavané. Estas unidades territoriais e de parentesco é que caracterizam

a dinâmica social e política da vida do grupo.

Existe também um fluxo constante de famílias que se mudam para outras aldeias ou cidades

e pessoas que vem de fora para fixar residência em Cachoeirinha. As casas são construídas com

diferentes tipos de técnica, e muitas vezes combinam padrões diversos (alvenaria, sapê). As casas

possuem extensões (normalmente pequenas coberturas com palha que são usadas para receber

visitas, fazer rodas para tomar tereré, realizar festas), pequenos banheiros que ficam localizados a

certa distancia da casa. É incomum receber as visitas na parte interna. O espaço das visitas é

externo. Dentro das casas circulam sempre os moradores e seus parentes mais próximos ou co-

residentes. É comum a parte externa das casas serem ocupadas por árvores (usualmente frutíferas),

debaixo das quais se colocam bancos de madeira. A roupa é lavada na parte externa da casa,

algumas possuem maquinas de lavar, e existe abastecimento de água encanada na área.

Dentro da área, também existem residências que usam seus espaços para determinados tipos

de atividade econômica. Existem pelo menos duas “bicicletarias” (oficinas para bicicletas) na Vila

América (uma delas pertence ao então cacique Lourenço Muchacho). Existem também alguns

"bares" e mercearias (os chamados “bolichos”) dentro da área, que reúnem jovens, adolescentes e

também adultos que os freqüentam para beber, jogar sinuca e conversar.

Além da Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, existe a Capela de Santa

Cruz, integrantes de um complexo ritual local que mobiliza parcela expressiva da comunidade

indígena por ocasião das Festas de Santo. O Posto da FUNAI e a Escola representam, dentro do

contexto local, espaços de mobilidade social e espaços de poder, implicando formas de estatização

do território e também da identidade e cultura indígena.

Esta morfologia do espaço aldeão é um bom ponto de partida para a compreensão da

dinâmica das relações interétnicas. O Posto, a Escola e as Igrejas representam cada uma a sua

maneira, alternativas concretas de interação social-simbólica, assim como os diferentes grupos

domésticos e grupos vicinais. São estas instituições que integram o circuito concreto através do qual

diferentes tradições culturais operam. No centro da aldeia de Cachoeirinha, em torno do Posto da

FUNAI, da Escola e da Igreja Católica, residem alguns grupos domésticos. É preciso notar que a

presença destes grupos domésticos não é fortuita: muitos deles pertencem às redes familiares de

naati ou caciques, e estão fixadas em torno deste núcleo principal por um processo histórico-

político determinado.

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Além dos espaços dos grupos domésticos e das instituições estatais e religiosas, existem

também os espaços de uso comunitário, coletivo, como a mata, campos de futebol e centros

comunitários, e os espaços de trabalho e produção, as roças. Há diferenças na estruturação e

experiência deste espaço de produção.I sto porque a distribuição das roças pelo território de

Cachoeirinha como um todo é irregular. A Sede, por exemplo, que possui o maior numero de casas,

não tem em seus limites áreas apropriadas para lavoura. Assim, a Sede se constitui num espaço

residencial e administrativo, e seus moradores trabalham nas áreas de roça localizadas a alguns

quilômetros dali. Existem diversas áreas de roça, que tem também suas próprias denominações:

Chacrinha, Capão, Quarenta, Agrosul, AITECA e outras que não pude identificar os nomes.

Chacrinha, Agrosul e AITECA são nomes de associações, que dão nomes também as áreas de

roçado. Os moradores da Sede e também da Argola, desta maneira moram longe de suas roças,

enquanto que os moradores de Babaçu, Morrinho e Lagoinha, moram próxima delas, muitas vezes

as roças ficando ao lado das casas. Isto significa que existem diferentes tipos de territorialização dos

grupos domésticos dentro da terra indígena Cachoeirinha. Sobre isso falaremos mais à frente.

Para compreender o processo de construção do território de Cachoeirinha, é necessário

observar a forma de organização social do grupo étnico, como dimensão integrada numa rede

complexa de relações políticas, simbólicas e econômicas. A seguir, trataremos de abordar a temática

da construção social do território a partir de três diferentes ângulos: o da organização social, o da

cultura e da política-economia.

Família, Parentesco e Grupos Domésticos.

Pelos dados que levantamos (por entrevistas, questionários e genealogias), somados aqueles

advindos por meio de observação direta ou fontes informais, pudemos identificar que existem

alguns princípios que regem a territorialização dos grupos domésticos e unidades residenciais,

assim como para as redes familiares que constituem as relações comunitárias.

Segundo algumas etnografias (Cardoso de Oliveira, 1968, Ladeira, 2001) os Terena seguem

uma preferência matrilocal nos matrimônios. Pelos dados que levantamos, esta preferência é

parcialmente confirmada, tanto pelo discurso (eles comentam do costume dos homens irem residir

com os sogros) quanto pela prática dos Terena (o fa to disso acontecer em boa parte dos casos).

Claro que a dinâmica territorial não se reduz ou imobiliza nesta preferência, mas ela é um dos

fatores a operar na organização social do grupo. Além desta preferência matrilocal, existe também

uma regra patrilateral de transmissão de descendência e também de direitos sobre o território e

sobre a identidade. É fácil identificar esta regra patrilateral, por exemplo, pela transmissão dos

sobrenomes: na grande maioria dos casos, os filhos herdam o sobrenome do Pai e não da mãe. Isto

reflete em parte a forma pela qual os Terena concebem a descendência e a identidade étnica; os

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filhos de mãe Terena e Pai “Não Índio” (purutuye), tende- se a não reconhecê- los como índios (do

ponto de vista formal).

Conversando com Elias Antonio, morador da Vila América, um senhor de 73 anos, ele

explicou o que é “xumono” e o “sukrekeono”, dizendo:

“Era nação, era brincadeira, eu sou xumono, minha esposa é sukrekeono, é outro tipo. Quando a gente casa o meu contaram que eu sou xumono, o vô do meu esposa contaram que era sukrekeono. No dia do casamento é que eles falaram. Não pode casar xumono, xumono, é o contrário. Meus filhos é xumono, meu sangue, sangue da minha esposa não tem, nessa criança”.(Outubro/2004).

Esta frase indica de forma precisa que pela idéia de concepção e descendência Terena, o

“sangue” da esposa não está presente no filho, somente o “sangue” do pai. Desta maneira, a

descendência e identidade familiar é transmitida patrilateralmente, e também as características de

“personalidade e ritual”, como a identidade “xumono”, indicada por Elias. É interessante notar que

Valdecir Antonio, seu filho, que dança o bate-pau, ocupa um lugar na “coluna vermelha”, que

representa o xumono, marcando a operatividade desta distinção.

Podemos ainda adicionar outros elementos para demonstrar esta forma de construção das

relações sociais. Iremos analisar aqui a composição de uma das vilas existentes em Cachoeirinha,

para indicar estas tendências na atual situação histórica. Consideramos a atual “Vila Cruzeiro” que

compreende um conjunto de residências de famílias inter-relacionadas por parentesco, como as

famílias Pedro, Antonio, Turíbio e Júlio.

Matrilocal Patrilocal Neo-local Outros 12 (ou 40%)

5 (ou 19%)

0 13 (ou 41%)

(João Niceto Júlio e Leda Pedro, Ademar

Turíbio, Temiz Arruda; Rosa, Cecílio e

Bernardino, Luiz Antonio, Simão da

Silva, Tomás Balbino, Mariza Candelário, Tereza Salvador,

Ielmiro).

Nas 30 casas existentes na Vila Cruzeiro, como o quadro acima revela, em pelo menos 40%

dos casos os locais de residência após o primeiro casamento foram na casa dos sogros dos homens,

o que confirma esta preferência matrilocal. Os 19% de casos de patrilocalidade, compreendem os

filhos de Lino de Oliveira Metelo (Alírio, Alinor, sendo que a esposa do primeiro é da aldeia

Bananal) e de um de seus netos Elcio de Oliveira, que moram em lotes que pertenciam ao Lino

(sendo que o sogro do Élcio de Oliveira reside na casa vizinha à sua).

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Se analisarmos as diferentes famílias residentes no local, veremos que a transmissão da

descendência segue a orientação patrilinear. Iremos analisar aqui algumas genealogias para ilustrar

esta forma de transmissão da descendência e identidade familiar. Iremos considerar o caso da

família de Alírio de Oliveira Metelo, considerando as três gerações que abrange, perpassando cerca

de um século de história indígena. Seu pai é Lino de Oliveira Metelo e sua mãe é Benedita

Rodrigues; seus irmãos são Marcos de Oliveira Metelo, Adão de Oliveira Metelo, Alinor de

Oliveira Metelo, Ariano de Oliveira Metelo, Arino de Oliveira Metelo, Ari de Oliveira Metelo e sua

irmã (por parte de mãe é Agripina Júlio, filha de Benedita Rodrigues, num primeiro casamento, com

Ciriaco Júlio), seus filhos são Ginaldo de Oliveira Metelo, Evandir de Oliveira Metelo, Renaldo de

Oliveira Metelo, Wanda. de Oliveira Metelo, Regina de Oliveira Metelo, Creuza de Oliveira

Metelo, Cleide de Oliveira Metelo, Cleonice de Oliveira Metelo. Na primeira geração ascendente de

ego, o sobrenome transmitido é o “Oliveira Metelo”, que é passado para os filhos de Lino, um

grupo de siblings; a meia irmã de Alírio, Agripina Júlio, herdou o sobrenome de seu pai (Ciriaco

Júlio), a geração descendente de ego, seus filhos e também sobrinhos herdaram o sobrenome

Oliveira. Este padrão se reproduz nos demais casos; uma das sobrinhas de Alírio (Silvia Regina

Oliveira) que se casou com Élcio Albuquerque teve filhos e estes herdaram o sobrenome

Albuquerque e não Oliveira.

Os filhos de Agripina Júlio, casada com Gilberto Turíbio, herdam o sobrenome Turíbio:

Argemiro Turíbio, Ademir Turíbio, Milton Turíbio (falecido), Ademar Turíbio, Adirce Turíbio,

Maria Helenice Turíbio, Maria Darcy Turíbio. Argemiro Turíbio é casado com Marlene Lipú

Gonçalves, e seus filhos chama-se Vianey Gonçalves Lipú Turíbio; Argemiel Gonçalves Lipú

Turíbio; Narliene Gonçalves Lipú Turíbio; Jean Gonçalves Lipú Turíbio e Diego Gonçalves Lipú

Turíbio. Os pais de Marlene são Lúcio Gonçalves e Aracy Lipú, e é interessante observar que seu

avô paterno é Batista Gonçalves, um índio Kadiwéu; na transmissão dos nomes e descendência os o

dois nomes permaneceram, constituindo assim o sobrenome “Lipú Gonvalves”. O que parece estar

em jogo neste caso é o problema da transmissão da identidade Terena e da legitimidade o

pertencimento ao grupo. A incorporação dos dois sobrenomes pode ser uma maneira de manter a

linha de transmissão da identidade Terena, criando assim uma forma bilateral de transmissão da

descendência familiar. É interessante notar que segundo algumas informações que levantamos, a

família Lipú seria uma das mais antigas de Cachoeirinha 81. Uma situação similar encontra-se na

família de Alírio de Oliveira Metelo, já que seu avô paterno João Metelo, era Laiano. O seu pai,

Lino, herdou os sobrenomes paterno (Metelo) e ma terno (Oliveira). Assim, a transmissão

81 Segundo Adolfo Pedro, um ancião morador de Babaçu, ex-caacique daquele setor, dentre as “oito primeiras” famílias moradoras da Cachoeirinha (no imediato pós-guerra do Paraguai, estariam a família de Kiriú (seria antepassado da família Lipú).

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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patrilateral dos sobrenomes pode se combinar com formas bilaterais em certas situações, e ao que

parece, a ascendência étnica externa (Layana, Kadiwéu) do pai é uma destas situações.

Existe também uma regra de residência, que os Terena chamam de “Lei do Índio82”, pela

qual um homem Terena que casa com uma mulher não índia pode trazê- la para residir na aldeia,

enquanto que uma mulher Terena, se casar com um homem não índio, tem de ir morar fora da

aldeia. É importante notar que existem casos que contrariam esta regra, e os Terena muitas vezes

falam desta “Lei do Índio” quase sempre como uma alusão ao passado. Sabemos que existem casos

de casamentos interétnicos, mas o número destes que tomamos conhecimento é reduzido em relação

ao número de residentes na área. Identificamos por exemplo, na Sede, apenas uma mulher não

indígena residente, de nome Lola, esposa de um funcionário da escola. Na Argola tomamos

conhecimento de três casamentos interétnicos, entre mulheres Terena e homens não Terena, e

conversamos com um purutuye, nascido em Minas Gerais, que sendo casado com uma índia, mora

em Cachoeirinha, e que trabalha fazendo “marreta” (pequeno comércio de produtos das lavouras e

outros gêneros na cidade e vilas próximas de aldeia e dentro dela). O fato é que o número de

matrimônios interétnicos é reduzido e o acesso à identidade e ao território indígena, termina por se

fazer de forma muito controlada pelo grupo como um todo

Além desta dimensão, de acesso ao direito de residênc ia dentro da aldeia, esta regra

patrilateral também regula a transmissão dos direitos de exploração da terra, de uso desta para o

trabalho agrícola. A terra explorada por um homem, é transmitida e repartida entre seus filhos

homens, enquanto que as filhas mulheres não teriam este direito83. O grupo doméstico Terena desta

maneira se constituiria na seguinte dinâmica: o matrimônio tende a gerar duas forças contraditórias,

dentro da aldeia, nas relações internas, sobre o grupo doméstico : 1) a dispersão dos filhos homens,

que vão residir nas casas de seus sogros, passando a trabalhar com eles; 2) a concentração das filhas

e genros, que são incorporados no grupo doméstico. Desta maneira, a residência de um indivíduo

homem pode variar muito durante sua vida, enquanto mantém uma propensão a manutenção de uma

relação estável com sua roça, com sua terra de trabalho. As mulheres por sua vez, tendem a manter

uma relação mais estável com a unidade residencial, com a casa em que residiam seus pais. Assim,

os filhos de um casal Terena mantêm uma relação diferenciada com sua descendência e identidade

familiar. Estes padrões mudam para os segundos casamentos, que não podem ser desconsiderados

dentro da aldeia, e também quando consideramos as alianças matrimoniais realizadas com grupos

familiares (ver Ladeira, 2001).

82 Essa era uma norma informal imposta pelo SPI dentro das reservas indígenas. 83 O que também tem de ser relativizado, porque ao entrevistarmos o índio Lindomar Ferreira, presidente do Conselho da Aldeia Argola, ele informou que sua mãe adquiriu o direito de ter uma terra para residência e roçado, por ter sido esta terra de seu pai. É importante lembrar que o Posto Indígena também interfere nestes assuntos.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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Os grupos domésticos, como já afirmamos, se estruturam de formas diferentes dentro da

terra de Cachoeirinha; enquanto a Sede e também na Argola os grupos domésticos ocupam áreas

descontínuas em relação às roças, ficando distante às vezes um ou dois quilômetros das mesmas, no

Morrinho, na Lagoinha e no Babaçu, os grupos domésticos ocupam normalmente áreas contínuas

em relação as roças, ou ficam muito mais próximas do que nos outros casos citados.

O grupo doméstico básico pelo que observamos é composto por uma família extensa. Em

Cachoeirinha existem alguns agrupamentos de casas, às vezes duas, três ou mais, muito próximas

uma das outras. Em cada casa normalmente mora uma família nuclear, mas nas outras casas

moram os avós, pais e/ou filhos desta mesma família. Estes grupos domésticos se constituem como

uma unidade de produção/consumo e também de socialização. Isto porque o trabalho nas roças é

feito normalmente no âmbito da família nuclear, os filhos homens casados trabalham na sua própria

roça, mas normalmente em uma parcela da terra cedida ou pertencente a seu pai; eventualmente

trocam trabalho,compartilham sementes e óleo, parte da sua produção ou alimentos adquiridos por

outra maneira (caça, pesca, compra); as filhas casadas, tendem a fixar residência junto ao seu pai, e

desta maneira o genro passa a ajudar o sogro nos trabalhos da roça84 (ver para isso, Cardoso de

Oliveira, 1968). Além desta dimensão econômica, existe também uma dimensão simbólica, que dá

ao grupo doméstico uma importante função de socialização já que atividades religiosas (sejam

xamanísticas, sejam cristãs), são realizadas também no espaço destas unidades residenciais. Sobre

esta dimensão, falaremos mais à frente.

Esta organização interna do grupo étnico, com base em regras específicas, fornece um

contexto primário e indispensável para a dinâmica das relações interétnicas. Isto porque as relações

com as instituições estatais e religiosas se dão com base nesta organização social, combinando-se e

dando novos formatos e funções concretas para estas relações. As “associações” e igrejas existentes

dentro de Cachoeirinha funcionam normalmente em terrenos de residência de grupos domésticos,

de maneira que se encontram diretamente associados a eles. Mais à frente, falaremos deste aspecto.

São estes grupos domésticos que constituem também as bases primárias de mobilização política,

que se articulam de forma extremamente complexa por processos de fissão e fusão facciosa,

intervenção de forças estatais e econômicas.

Num certo sentido, um primeiro olhar sobre a aldeia, pode deixar a impressão de que as

comunidades- locais são extremamente “homogeneizadas” pelas tradições culturais ocidentais e que

a vida da aldeia gira quase que exclusivamente em torno da divisão entre “católicos e protestantes”,

como já foi sugerido pela literatura científica. Por isso é fundamental analisar com cuidado as

tradições culturais existentes e o significado de certas práticas, inclusive para compreender o

processo político e as relações interétnicas. Para visualizarmos a forma de articulação entre as

84 O “Pagamento da Noiva”, em que se indica este padrão de relações sociais.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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diferentes tradições culturais e sua relação com a organização social indígena, tomaremos como

ponto de partida a descrição e análise de um dos rituais praticados dentro da aldeia.

Em todas as aldeias indígenas Terena que conhecemos, o Dia do índio é indicado como um

importante evento na vida do grupo. E na realidade acaba sendo uma situação chave, que permite

que elucidemos algumas relações sociais e padrões culturais. Permite também a compreensão da

“história-memória” que este grupo construiu, e como sua cultura e sociedade se reproduz, sob

formas de oposição e composição às instituições estatais e tutelares, tanto do ponto de vista

simbólico quanto político.

4.2 – O Dia do Índio: nação e etnia, identidades em sobreposição.

A palavra “Mohikená” é traduzida por brincadeira no idioma Terena. E quando os índios

Terena falam sobre “brincadeiras” eles agrupam numa mesma categoria, uma série de atividades,

como rituais mágico-religiosos, danças e festas. Assim, fala-se da brincadeira do “bate-pau”, do

“oheokoti” e da “dança do cavalinho”. Também os “bailes” de música regional são todos

enquadrados na idéia de ‘brincadeiras”. Ou seja, a brincadeira designa uma forma de percepção

flexível dos fatos culturais. “Brincadeira” designa o ato de brincar, uma interação que visa

compartilhar laços de solidariedade de forma lúdica. E essa metáfora da brincadeira pode nos

auxiliar a compreender como são articuladas diferentes tradições culturais, e colocados em ação e

comunicação diferentes símbolos.

Poderíamos falar que esta caracterização das atividades rituais (sagradas e profanas) remonta

a própria cosmologia do grupo, já que segundo o mito de origem, o índio “Yurikoiuvakai” tinha

como característica ser “brincalhão”, de forma que segundo uma de suas versões, ele é dividido ao

meio, para dar origem a seu irmão. Além disso, as duas metades ou nações que aparecem nas

práticas rituais Terena, “gente brava e gente mansa”, são caracterizadas por disputas rituais

marcadas pelas “brincadeiras”, pelo “chiste”.

Iremos descrever aqui as situações sociais por nós vivenciadas na aldeia indígena

Cachoeirinha no ano de 2004, durante a “semana do índio”. Normalmente a semana do índio

começa sete dias antes do dia 19 de abril, “dia do índio”, e nela se realizam rituais políticos e rituais

de caráter e mágico-religioso, além de atividades diversas, organizadas principalmente em torno do

Posto Indígena e das Escolas. Os professores e alunos indígenas se dão a execução de tarefas,

trabalhos sobre a história indígena são realizados com as turmas e a comunidade, e seus diferentes

grupos domésticos se mobilizam para realizar o Dia do Índio. Nos dias que antecedem a festa,

podemos ver nas casas as famílias preparando as vestimentas dos filhos para participarem da “dança

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do bate-pau”, as mulheres preparando artesanato para a venda e os homens dedicados a preparação

do churrasco comunitário. Iremos descrever agora esta situação social.

Dia 19-04-2004, segunda-feira, às 5:30 h da manhã, uma banda composta de 3 rapazes e

quatro moças, faziam a “alvorada’, tocando marchas em tambores e se deslocando pela vila

principal de Cachoeirinha. As 6:30 h aproximadamente, um carro de som divulgava uma mensagem

gravada pela própria prefe ita Beth Almeida, revezando-a com a música “parabéns para você.”A

comunidade já estava começando a se mobilizar para as atividades do dia do índio, que se

iniciariam logo depois. O dia amanheceu nublado, mas sem chuva.

Às 7h já era possível ver os dançarinos do Bate-Pau fazendo os seus preparativos (vestindo

as “fantasias”, fazendo pinturas no corpo) em baixo de uma grande árvore, localizada num lote da

família Timóteo. Os alunos já se concentravam na escola, tomando o café por volta das 7:30h. As

mulheres realizam seus preparativos no centro comunitário. Os membros do bate-pau (pude ver a

distância, pois me encontrava neste momento em frente ao posto indígena), saíram realizando

alguns passos da dança, deram uma volta pela Vila América, e depois se concentram ao final da

Vila Principal, formando duas longas filas. A banda ou “fanfarra” ficou posicionada logo à frente

deles. As mulheres então saíram em direção aos homens. Três meninas seguravam uma faixa à

frente das duas equipes do bate-pau, com a frase “A mobilização dos Povos Indígenas não é caso de

polícia, mas é caso de consciência”. As mulheres, depois de se juntarem a eles, ficaram ao final das

longas filas.

Foto 1- Dia do Índio - 2004- Concentração

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Eram fundamentalmente os professores indígenas que coordenavam todo o processo.

Encontramos o professor Anésio, o professor Amarildo Julio, além de Cirilo Pinto, vice-cacique e

também coordenador da Dança do Bate-Pau. Estavam reunidos ali homens, mulheres, crianças e a

banda à frente de todos. As mulheres seguravam uma faixa da AMITECA (Associação das

Mulheres Indígenas Terena de Cachoeirinha), e cartazes em papel verde com a inscrição

“Sukrekeono” e em vermelho “Xumono”, que correspondiam cada uma as “equipes” de dança,

posicionados em filas separadas85.

Os índios saíram em passeata com a banda à frente tocando os tambores. Durante o trajeto

muitas brincadeiras eram realizadas, os indígenas, principalmente as mulheres ficavam trocando

provocações que resultavam sempre em gargalhadas e sorrisos de todos que estavam próximos. Os

professores ao lado das filas, auxiliavam e coordenavam. Isto se deu ao longo de todo o trajeto,

realizado através da longa avenida denominada Vila Principal, até a Escola Nicolau Horta

Barbosa86.

A composição chegou em frente à quadra poliesportiva, ao lado da Escola Nicolau Horta

Barbosa, local de realização da cerimônia do Dia do Índio. As faixas ficaram a frente dos grupos de

homens e mulheres. A banda ficou posicionada na lateral das equipes. Algumas faixas estavam

fixadas entre as vigas de sustentação. Uma faixa tinha a inscrição, “O Vereador Dr.Pedro Toledo

85 Neste ano é que ficou mais explicita a associação do bate-pau as categorias xumono/sukrekeono. Foi a festa com maior participação comunitária que as de 2002/2003 e maior ação da escola. 86 Nicolau Horta Barbosa é um a das figuras históricas do SPI, assim como Candido Mariano da Silva Rondon. As “Escolas” nas aldeias Terena quase sempre levam o nome desses personagens históricos, especialmente de militares; em Bananal, a escola Pólo leva o nome de Rondon, e entre outras aldeiqas de outros generais e militares.

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Filho saúda o Dia do Índio”. Outras faixas estavam fixadas nas cercas da escola e também na grade

de proteção da quadra. Numa destas faixas estava escrito “Quem luta por uma causa não tem tempo

de pensar em si, mas por seu povo. Marçal de Souza.”

Foto 2- Comunidade participa no Dia do Índio/2004.

Passou-se a realização da abertura oficial da cerimônia do Dia do Índio (com os alunos

tocando instrumentos, bumbo, surdo e pandeiros), coordenada pelo professor Amarildo Julio.

AMARILDO JULIO: “...representando a cultura. Preservando a cultura (trecho em idioma ...) alunos (trecho em idioma ...). (...) nós queremos dar o início as nossas festividades neste dia 19 de abril de 2004. E queríamos antes de cantar hino nacional (trecho em idioma ...) já contamos com a presença da excelentíssima prefeita Beth Paula de Almeida. (trecho em idioma...) Roberto, agradecemos a ele pela presença, e as demais autoridades presentes aqui de manhã. Queremos convidar a excelentíssima prefeita, dona Beth, para hastear bandeira do município, pode subir no palanque, também queremos convidar o chefe de posto da FUNAI senhor Argemiro Turíbio, para hastear a bandeira da Funai e também queremos convidar o cacique Lourenço para a bandeira do estado e também o professor Genésio (trecho em idioma ...) bandeira nacional. (trecho em idioma ...).

A cerimônia começou com o hasteamento da bandeira e a entoação simultânea do hino

nacional. A prefeita Beth Almeida hasteou a bandeira do município; Argemiro Turíbio, o chefe do

posto, a Bandeira da FUNAI.o cacique Lourenço Muchacho a bandeira do Mato Grosso do Sul e o

professor Genésio, diretor interino da escola, a bandeira do Brasil.

Depois de realizado o hasteamento da bandeira e entoamento do hino, a professora Lurdes

conduziu os alunos na interpretação da Canção do Índio. Primeiramente cantado no idioma Terena e

em seguida cantado em português. Terminada a interpretação, teve início o que os próprios índios

chamam de “palestras das autoridades”.

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O professor Celinho Belisário subiu ao palanque, muito aplaudido pelos alunos e pelos os

demais presentes. Existiam alguns visitantes, e também um índio pelo menos, Genival Muchacho,

com filmadora registrando o evento. Neste momento, alguns jovens indígenas erguem uma faixa

com o seguinte texto: “Queremos educação de qualidade, não politicagem na educação”, bem em

frente ao palanque em que estavam as autoridades.

Celinho Primeiramente cumprimento a todos vocês que são meus patrícios. A excelentíssima prefeita bom dia e as demais autoridades. Neste dia eu gostaria de fazer um pequeno preleção a respeito do chamado vida do índio; para nós hoje o que fica é o começo de uma nova história em maneiras muito antagônicos as questão dos direitos do índio, porque eu queria fazer essa pequena questão principalmente nós que somos pessoas que lidam com educação indígena aqui na nossa comunidade . Eu quero me apresentar para quem não me conhece ainda eu trabalho aqui na escola pólo coronel Nicolau Horta Barbosa, eu sou professor de Miranda, eu sou também acadêmico da UEMS onde eu estudo com os demais patrícios. Eu creio que falta hoje falar da vida dos patrícios que começou a ser contada no século XV de 1500 para cá onde a partir dali nós começamos a ser em palavras mais martirizada ... nós começamos a ser manipulado, ou seja a partir do momento que o Brasil foi invadido pelos europeus, naquele dia perdemos a nossa vida, perdemos o nosso modo de viver, perdemos muitos coisas, perdemos as nossas terras, perdemos os nossos costumes, perdemos muitas tribos, porque segundo a historia na chegada dos portugueses em 1500 nós éramos entre 6 milhões a 10 milhões de indígenas se comparamos com o dia de hoje somos apenas em torno de 280, 300 mil índios. Se comparamos a quantidade que éramos em 1500 e nos dias de hoje faz com que nós professores e alunos também , que a gente faça uma reflexão sobre a convivência que agente tem, nessa sociedade em que agente está inserido neste século XX. A nossa sobrevivência, a nossa existência para o futuro depende muito da nossa iniciativa, da nossa luta, dia de amanhã depende muito de nós, nós os indígenas, os próprios moradores de cada comunidade, que somos as pessoas que vivem do dia a dia, em cada comunidade que está inseridos neste território nacional chamado Brasil. Hoje a gente dá pra falar, hoje as nossas escolas já começa a caminhar, apenas tá começando a caminhar com suas próprias pernas, que começou a ser concretizada de 1988 para cá com a formulação da LDB de 1993, 94 e 1996 que passou de 1999 para cá com a criação das escolas indígenas em território nacional. E em 1999 e 2000 nós professores daqui de Miranda começamos a participar do curso oferecido pela UEMS na gestão passada só que nós não conseguimos concluir naquela época, porque o político na época o adversário de vocês não fez com que a gente concluísse tanto é que no inicio da gestão da prefeita em 2000, 2001, no dia 2 de janeiro, no primeiro dia de gestão da prefeita sentamos com a secretaria Maria Célia em Miranda para gente conversar que tínhamos esse projeto na UEMS e hoje, hoje o sonho tá concretizado porque conseguimos um convenio com a prefeitura de Miranda para continuar esse curso que a gente tá concluindo neste momento. E esse contrapartida a gente cita que a prefeitura exerce na questão do professor, porque a lei fala claramente que a partir do momento que a escola indígena tão em funcionamento o professor indígena tem ter condição, pro professor se aperfeiçoar, e hoje eu digo com toda certeza que nós já começou esse trabalho com o executivo. Mas falta coisas, mas falta coisas ainda ser concretizado. Porque podemos dizer na frente da excelentíssima prefeita que hoje a Cachoeirinha e os demais setores atravessa um novo contexto para discutir sua política interna já deixou de ser responsabilidade do cacique, hoje os professores e os demais representantes locais estão se reunindo para a gente discutir essa questão, e hoje nós estamos passando por uma luta que aqui é chamado de a luta política. Hoje é (...) com a secretaria essa luta que a gente tem na questão da escola indígena. Porque nós tem preocupação o que pode acontecer amanhã. Então esse ano eu quero falar daqui da comunidade de Cachoeirinha demais comunidades um momento para gente parar para refletir, como é que a gente tá vivenciando hoje porque acredito eu que a partir do momento que a gente falar, manifestar, a partir do momento que a gente ter a nossa representatividade no município de Miranda teremos assim possibilidade de tocarmos esse trabalho para frente, ..., hoje na comunidade de cachoeirinha nos demais setores

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a gente pensa já em eleger um vereador cremos que é uma coisa assim que pode ser concretizado, há essas dificuldades que agente atravessa, mas acredito eu que nós estaremos trabalhando em cima isso para que a gente possa chegar a esse objetivo que diz respeito a nosso interesse. E outro mais que eu queria expressar com questão da educação escolar Indígena. Hoje nós temos alunos, em torno de 600 a 800 alunos, o trabalho do governo municipal hoje é batalhar para que seja construída mais escolas, ou seja, seja construída uma escola indígena aqui na unidade de Cachoeirinha. Porque hoje no momento a gente tem apenas salas de aula e as demais são emprestadas. A gente não pode falar que nós temos salas de aula porque são salas emprestadas e a gente não sabe o que pode acontecer amanhã.. E hoje aqui na comunidade de Cachoeirinha já começamos a trabalhar com ensino médio primeiro e segundo ano sabemos que são sala emprestada. Mas fica bem claro que a partir do momento que a escola indígena ta aqui na cachoeirinha porque não abranger o ensino médio?. E futuramente porque não uma universidade estadual ou talvez federal para atender os indígenas? São fatos assim que (...) Pensar o que pode acontecer amanhã.(...) Qual o acordo que agente pode fazer hoje para que amanhã (...) para nossa comunidade principalmente para as graves. São coisas assim que deixa agente motivado enfim para fazer algo (...) .E as minhas poucas palavras seria isso, seria isso. Eu quero que Deus dê um pouco de motivação. Eu queria fazer pequena leitura aqui nesta questão. “Caros amigos patrícios eu peço muita atenção. Porque a historia que se aprende a partir de 1500 que diz que foi nesse ano quando na verdade antes da chegada dos europeus no século XV aqui já existia o chamado ser indígena. E hoje continua..Porque que continua hoje? (...)Sempre estamos lutando, batalhando.A gente continua resistindo. Muito obrigado. (aplausos).

Depois da palestra do professor Celinho, sobe para falar o chefe de posto Argemiro Turíbio,

também aplaudido.

Argemiro - . Unati, nesta manhã de hoje 19 de abril quero saudar a prefeita municipal professora Beth Almeida, agente está muito contente pela sua presença participando junto conosco dessa festividade .Este dia de hoje ,meus parentes, esse dia é todo especial para nós porque hoje essa história da nossa comunidade indígena no Brasil desde 1500. E esse povo sofrido vem buscando conquista dos seus direitos. Em 1988 quando a comunidade indígena do Brasil fez um movimento pela garantia dos seus direitos na constituição. Os nossos direitos não foi conquistado por acaso mas é resultado de uma luta de uma união dos povos, dos nossos irmãos, (trecho em idioma) os Pataxó, os Gaviões, os Xucuramaes, todas essas nações a tribo Terena, fizemos um grande movimento lá em Brasília. Esse direito que agente tem (...) é pela força da união do povo indígena do Brasil. Não é porque deputado o senador quis colocar no papel para que nós pudéssemos ter esse direito, como foi falado aqui. O povo indígena lutou, acampou, pressionou o deputado, senador que fazem as leis para que nos fossem reconhecido. E temos essa liberdade, para que nosso direito, nossa vivência seja respeitado. Nós enfrentamos muitas coisas ainda, e o papel da FUNAI, desde a época do SPI de 1910, extinguiu-se o SPI e criou-se a FUNAI em 1967, a FUNAI continua acompanhando o desenvolvimento da comunidade indígena. (trecho em idioma). Porque nós continuamos sofrendo ainda. Talvez os Terena nós não sofremos tanto. Mas os nossos irmãos Caiuá-Guarani que estão lutando pelos seus direitos, lutando pelas suas terras, às vezes não são compreendidos, pelas terras que eles perderam. (trecho em idioma). Também hoje nós estamos passando nesta fase. (trecho em idioma) Às vezes as pessoas não tem consciência, não consegue entender a nossa vivencia, a nossa tradição, o nosso costume (trecho em idioma) e nós estamos partindo para resgatá -los (trecho em idioma) nós estamos caminhando, eu quero ressaltar para vocês esses dias eu fiquei muito, muito contente e muito esperançoso, porque eu vi nos jornais que fala de um índio Terena que está caminhando em busca de seus conhecimentos na defesa da causa indígena. Nosso irmão Rogério da Silva que começou desde pequenininho aqui nessa terra, ele está caminhando (trecho em idioma). Eu fico com esse orgulho tão grande de ver esse patrício hoje e amanhã estará sendo homenageado na ALEMS em Campo Grande, por isso que eu fico muito

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emocionado (trecho em idioma) É isso que nós queremos. Nós temos os professores que estão recebendo o apoio do executivo municipal, vamos aproveitar. E o indígena no caso do Rogério, (trecho em idioma), recebendo essa homenagem quase concluindo o doutorado. (trecho em idioma). É isso que nós queremos. (trecho em idioma) Queremos nossa escola, queremos outra escola porque nós somos deficientes, nós precisamos disso. (aplausos) Precisamos porque nós temos que aprender cada vez mais. Porque nós temos que caminhar. Precisamos de médico, precisamos de enfermeira, hoje nós não temos. Temos vários órgãos que os índios precisa avançar, precisa ocupar os espaço. Só falta as oportunidades (trecho em idioma). Também quero homenagear, falar em nome do Rogério, está aqui a copia do noticiário que está saindo em nosso estado. Um dia ele será alguém na comunidade, e a comunidade estará de braços abertos para recebê-lo na defesa de nossos direitos. (trecho em idioma). Este dia Terena, (trecho em idioma) com apoio de alguns aliado dentro do executivo que estão preocupado em nos ajudar. No caso da prefeita Beth está preocupada com a gente. Está nos permitindo ocupar os espaços. Ela quer ver o crescimento da comunidade. (trecho em idioma). Por outro lado ainda fica um pouco triste, porque a gente ainda assiste cenas (trecho em idioma), também quero lembrar (trecho em idioma) o que aconteceu com nosso irmão lá em Brasília, (trecho em idioma), o Galdino Pataxó, queimado. Como se fosse um animal. Como fizeram com Marco Veron, assassinado, como fizeram com Marçal de Souza, hoje tá na historia do povo Guarani. Como fizeram também com Chicão Pataxó quando ele estava lutando, gritando em nome de seu povo. E hoje nós temos essa fita gravada pela sua luta, parece que ele já adivinhava pela sua luta, pela sua batalha, que um dia ele teria que partir pela sua declaração, avisando seu povo. Nós estamos caminhando, a liderança caminha junto com os professores, junto com as nossas crianças. Nós temos um grande sonho ainda. (trecho em idioma).Caminha conosco porque nós queremos consciência, queremos respeito em nossa comunidade. E nós temos que voltar eleger nosso representante esse ano para ocupar a câmara de vereadores porque nós já tivemos e nós perdemos, temos que conquistar novamente (trecho em idioma), vamos conquistar novamente. (trecho em idioma). Mais uma vez quero agradecer a colaboração da prefeita Beth Almeida,(...) que a gente agradece como parceiro da gente, comunidade, ta sempre consciente daquilo que ela tá podendo fazer em nossa comunidade . Muito obrigado. (Aplausos e fogos).

Em seguida, sob ao palanque para discursar, o cacique Lourenço Muchacho. Muito

aplaudido antes de começar a falar. Ele toma a palavra, sempre usando da expressão gestual,

movimentando as mãos no ar. Durante sua fala, foi aplaudido em vários momentos.

Lourenço – (trecho em idioma). Bom primeiro lugar eu quero agradecer a excelentíssima Prefeita por sua presença na comunidade, o Paulinho Silvio, o Henrique, os demais presentes, o Roberto, muito obrigado por visitar nossa comunidade. Primeiro lugar eu queria complementar o que chefe de posto acabou de citar. (trecho em idioma). Mas a esperança que nós vamos ter que ter, a exigência que nós temos que ter, para buscar o que é nosso, o que é direito, nós temos direito como povo indígena. Hoje eu fico feliz por saber que hoje alguns de nossos parentes hoje estão trazendo faixa mobilizando que ele disse “nós queremos educação de qualidade”, nós queremos educação de qualidade para os nossos filhos e nosso futuro. Buscar também o que é direito, porque hoje temos, no mundo de globalização que nós estamos vivendo, é um grande desafio, é uma ameaça para esse povo sofrido, e eu enquanto cacique daqui da aldeia Cachoeirinha, eu não vou encurvar para ninguém não, porque eu vou buscar o direito do meu povo, esse eu vou buscar (aplausos) nós vamos buscar, pela educação, pela política, com grande respeito, com grande luta, porque nós temos grande preocupação, como representante desse povo. Eu quero repassar para os senhores o que um advogado, um grande advogado do Ministério em Brasília ele disse para mim porque eu estava fazendo discursos contra senadores, contra deputado federal, contra ministro da justiça. Ele disse cacique ‘você tem que pensar três coisas cacique, pense na sua família, pensa na sua comunidade e pense em você mesmo’.(...) Se você se tiver a oportunidade você pensa em si. Vocês sabem o que significam essa palavra? É uma ameaça, ameaça de um grande estudioso. Me ameaça com essa palavra. Mas eu não tenho medo.Porque nós vamos derramar esse sangue em busca de nossos direitos.(aplausos) Nós não

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queremos tirar nada de ninguém. Só queremos que nossos direitos seja devolvido para nós. Povo de aldeia Cachoeirinha, senhores visitantes. Eu vou fazer um desabafo novamente. Porque eu não seguro, porque o que meu povo sofre, o problema do meu povo também é meu problema, a dificuldade do meu povo, é a minha maior dificuldade, se meu povo morrer eu tenho que morrer por ele também. Porque hoje esse povo, eu gosto desse povo, eu amo esse povo por isso que hoje e daqui para frente (trecho em idioma). Hoje me sinto nessa oportunidade, nessa grande mobilização que nós fizemos (trecho em idioma) um diretor da FUNASA dizia, foi negociar com grandes advogados, ele disse no jornal. Eu cheguei na frente da FUNASA eu disse para funcionário acessa para mim Internet, eu quero resposta. Na mesma hora saiu. Foi escrito ‘Um Diretor da FUNASA negocia com Polícia Federal para que povo indígena que está acampado no prédio da FUNASA que seja retirado imediatamente’. Ele disse isso, veja bem como esse povo nos massacra, veja vem como esta entidade nos massacra. Eu disse para ele quando chegou o momento da gente discutir, eu disse senhor diretor, doutor Ricardo Rocha, a mobilização desse povo não é caso de policia é caso de consciência, senhor doutor (aplausos e gritos do público), é caso de consciência, eu falei para ele, senhor doutor Ricardo Rocha o senhor tem que lembrar, tem que respeitar por que todo o pão que está na sua mesa que o senhor tá comendo é em nome desse povo indígena. Porque todas as entidades, todos os órgãos é feito para o branco porque o índios não tem vez , (...) Nós temos que buscar, temos que ter espaço para poder construir algo para esse povo. Eu sempre cobrei isso. (trecho em idioma), ALEMS em Campo Grande quando nós fizemos reunião. E por outro lado (trecho em idioma) Senhores guerreiros, vocês têm coragem, senhoras guerreira vocês têm coragem. (trecho em idioma) Eu sei que vocês vão lutar por mim. Porque nós estamos ameaçado, com líder ameaçado. Porque?Já recebi várias ligações anônimas no meu celular, quatro ligação anônima, uma ameaça, ameaça de quem? Dos políticos porque a gente está brigando, buscando o que é nosso, a gente não quer entrar com a violência , a gente tem respeito, e ao mesmo tempo nós temos essa coragem de buscar o que é nosso. 4 ligações anônimas. Ele disse o seguinte, primeiro, você tem que tomar cuidado. Toma cuidado. (trecho em idioma) Se acontecer alguma coisa eu creio que vocês vão levantar e vocês vão a luta. (trecho em idioma), seja forte, seja corajoso. Queremos educação de qualidade e não politicagem na educação. Quem escreveu isso foi esses guerreiros, não é palavra de cacique. Mas é palavra é pedido de um povo. (trecho em idioma) Quero agradecer os professores mais uma vez, quero agradecer de todo o coração de a gente buscar essa parceria juntamente com o presidente da associação AITECA, com a presidente da associação AMITECA, hoje nós estamos unidos. (trecho em idioma). (Aplausos).

Depois a palavra foi passada para a prefeita Beth Almeida.

Beth Almeida – Excelentíssimo cacique, Excelentíssimo chefe de posto dessa área, demais autoridades presentes, lideranças, associação das mulheres indígenas, muito bom dia, senhores guerreiros, bom dia, crianças. Meus amigos, minhas amigas, primeiramente eu quero transmitir um recado antes que eu me esqueça no decorrer das minhas palavras. Estava entrando na área e recebi um telefonema do nosso governador que não pode se fazer presente.mas pedindo que eu enviasse um abraço ao cacique e as demais lideranças de todas áreas indígenas porque hoje ele está indo para Corumbá para fazer a assinatura do início dos trabalhos do trem do pantanal que beneficia muito a nossa área. Mas recebam do nosso governador o abraço carinhoso que ele envia a todos vocês. Primeiramente eu tenho de dar parabéns a todos, não pelo dia do índio, não por vocês estarem comemorando o Dia do Índio, mas por vocês estarem comemorando a união, a organização e as muitas vitórias conquistadas por vocês. Eu fiquei orgulhosa quando cheguei aqui e vi essa faixa “A mobilização dos povos indígenas não e caso de policia, mas sim caso de consciência”. Como disse o nosso cacique, conversando lá no gabinete, porque no dia do índio eu não espero que vocês venham até mim, nesses 4 anos eu chamei as lideranças para nós decidirmos como nós íamos fazer, e nesse dia ele me contava a historia que ele passou aqui dizendo desse caso de policia, e que ele muito inteligentemente colocou que o povo indígena não era caso de policia, mas caso de consciência. Falei cacique, isto tem que estar registrado numa faixa, por

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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que isso o povo indígena não pode perder de vista. Porque as lutas de vocês, é um caso consciência, de união de vocês e consciência do branco. A outra faixa ‘Queremos educação de qualidade não politicagem na educação’.(aplausos) Isso daí e de sentir muito orgulhosa porque eu vi que o trabalho desenvolvido nestes três anos resultou nesta consciência. Porque hoje vocês escolhem os diretores indígenas. Hoje a APROTEM faz a lotação dos professores. E Hoje falta às salas de aula, é porque está no orçamento de 2004 uma sala, uma escola com oito salas de aula, para que vocês tenham um atendimento digno da forma que vocês merecem. Lembrem bem desta faixa, pensem nela. Para que realmente a politicagem nunca mais volte para educação como era antigamente Porque hoje vocês têm liberdade, hoje vocês tem o direito na educação, hoje vocês escolhem os seus dirigentes, vocês escolhem os livros didáticos, vocês escolhem a matéria que vocês vão lecionar. Agora a escola sim, a escola é uma coisa que está realmente incomodando a todos nós, mas já está colocado no orçamento e vocês terão essa escola digna que vocês querem. Mas não deixem mesmo nunca mais a politicagem voltar para a educação, da mesma forma que o cacique Lourenço não tem deixado ingerir aqui na área, ele não tem deixado de lutar pelas causas indígenas. Juntamente com o Argemiro o chefe de posto. Queremos colocar representantes na câmara municipal. Tenham consciência que vocês precisam de um representante lá no legislativo. Quero deixar aqui um grande abraço, deixar meus parabéns a cada um de vocês. (...) Que Deus abençoe a todos vocês.

Depois de sua fala encerraram-se as palestras, mas foi concedido um tempo ao professor

Genésio Farias falar em nome da Escola:

Genésio Farias – E m nome da escola como diretor interino eu quero agradecer a excelentíssima prefeita Beth Almeida as demais autoridades que estão aqui conosco neste momento.. A nossa ... é a Escola indígena que nós temos hoje em 2002, está caminhando, a escola tem um ensino e diferenciado, de qualidade, intercultural. nós tamos vendo o resultado da nossa escola, fruto da organização (...) é um caminhar, nós tamos caminhando para organizar, tem muitas coisas... grandes avanços já foram conseguidos disso. O qual tem agora a associação de pais e mestres eu queria falar também um pouco desta associação, que o objetivo da associação de pais e mestres é ajudar o processo de aprendizado da escola Pólo. Este ano vai fazer um grande trabalho, o trabalho dessa associação de Pais e Mestres (...) evento do qual coordenador Amarildo Julio, a dona Lola, o Cirilo, que foi formado para coordenar este evento. Então nós podemos dizer que esta organização tem conseguido o objetivo da escola indígena, porque a escola indígena é gestão democrática, ela é participativa aonde a escola é aberta para a comunidade e nesta abertura nós estamos conseguindo nesse ano, com a liderança, com os caciques, com os pais, os valo res da comunidade, valores culturais. Porque isto aconteceu? Devido esta organização da escola. É essa a escola indígena. Eu creio que daqui para frente nós vamos caminhar. Porque a comunidade agora ensina as crianças, eles estão aprendendo, vendo estas manifestação...As mulheres, as meninas, os homens. Então esta é a escola indígena. Queria agradecer muita pela participação dos guerreiros, das mulheres, das crianças. Esta é nossa escola, esta é a escola indígena, administrada pela própria comunidade. É uma escola que vai caminhar, daqui para frente, junto com as lideranças. Aonde vai ser construído o projeto de futuro dessa comunidade, Nós ouvimos na fala das lideranças, da prefeita, isso é o projeto nosso de futuro. Nós vamos conseguir, nós vamos caminhar. Que Deus abençoe a todos.

Em seguida, por volta das 9h da manhã, teve início a apresentação cultural. Depois

AMARILDO JULIO convida a todos para formar um círculo, o que é feito. Ao se iniciar as danças

indígenas, havia um grande círculo de pessoas, e os participantes do evento estavam em cerca de

400 ou 500 pessoas. O professor Anésio Pinto, neste momento, começa a animar a festa, com

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microfone na mão, fica fazendo brincadeiras com o público. Uma de suas firmações foi “nós

estamos resgatando nossa cultura87”.

Foto 3- Siputrena -Dança das Mulheres.

Inicia-se então a dança das mulheres, chamada Siputrena. Duas filas são formadas, uma

composta pelas mulheres com vestimentas verdes (Sukrekeono) e outra formada pelas que vestiam

as vestimentas vermelhas (xumono), uma de frente para outra. O público, pelo menos grande parte

dele estava de posse de bandeirinhas verdes e vermelhas, compondo duas ‘torcidas” diferentes.

Estas bandeirinhas eram feitas com papel crepom e material escolar. Durante a execução dos

passos, as mulheres trocavam muitas provocações em seu idioma, o que fazia com que o público

risse bastante. Por volta das 9:30 h o céu ficou nublado e começou a chover. Mesmo assim

ninguém foi embora e a festa não foi interrompida.

A Siputrena seguiu os seguintes passos: as mulheres agitavam os lenços, na parte diagonal

inferior do lado direito, e depois da diagonal inferior esquerda, avançando primeiramente em

conjunto a fila de dançarinas, e depois recuando, fazendo o mesmo movimento. No meio da dança

os professores procuravam explicar o significado do que estava sendo feito. Falaram que Xumono é

gente mansa e calma e Sukrekeono é gente brava 88. Ao final da dança Siputrena, a chuva se

intensifica e o público e os dançarinos se concentram todos na quadra de futebol. Muitos fogos de

artifício eram detonados a todo o momento.

Foto 4- Grupo Xumono.

87 Anésio disse – “Mostrar para nosso torcida(Xumonó), vamos torcer, não é divisão, é apenas o resgate da nossa identidade”. 88 Éexatamente o significado inverso do que foi registrado na literatura. Esta inversão foi questionada por Elias Antonio, falando que os professores e responsáveis da escola fizeram errado a festa.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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Começa então a dança do bate-pau. Reproduz-se a mesma divisão entre xumono e

sukrekeono. Os “guerreiros” da dança, assim como as “guerreiras” tinham seu corpo pintado. Os

instrumentos musicais, a flauta e o tambor, eram tocados pelo mais velhos, como Elias Antonio. Os

guerreiros usavam pintura preta feita com Genipabu, e pintura colorida de verde, vermelho e às

vezes outras cores, com tinta escolar. Os homens tinham às vezes frases escritas em seu chapéu ou

mesmo pintadas no corpo, tais como “Deus é Fiel”, “100 % Terena”. Continuam as brincadeiras de

provocação na quadra. As mulheres que tinham acabado de dançar ficavam dando voltas em torno

da quadra, brincando e caçoando uma das outras. Simulam brigas.Os professores não indígenas do

local também tomam parte na brincadeira.

Depois de realizado os primeiros passos da dança do bate-pau, ela é interrompida para o

batismo, que o Cirilo Pinto diz ser “a introdução aos valores do homem”. O batismo consiste na

formação de duas filas, com os jovens a serem batizados posicionados a frente, que ouvem os

dizeres do cacique da dança e do organizador, e depois os outros guerreiros o “batizam” com

pipoca, doces e balas, despejadas sobre ele. O sukrekeono têm mais um guerreiro, diz alguém. O

público se agita, grita, assobia e aplaude muito e a dança é retomada.

Foto 5- Dança do Bate-Pau.

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Os bastões do bate-pau são trocados por pequenas réplicas de arco e flecha. Duas filas

paralelas se formam, caminham para frente e para trás, depois começam a “atirar” as flechas, que

amarradas com barbante quando batem no arco fazem um estalo, que compõe o conjunto da

coreografia. Fazem este movimento repetidas vezes, caminhando para frente atirando a flecha na

diagonal inferior direita e depois na diagonal inferior esquerda e para trás, repetindo esta seqüência.

Depois as filas foram formadas em círculo, caminhando em sentido contrário, e os guerreiros

provocavam as torcidas rivais quando passavam em frente delas. O público ovaciona seus

respectivos “times”. Algumas mulheres tomam o microfone para provocar as rivais (jovens e

senhoras). Chovia muito intensamente e ventava também, mas o grande publico se mantinha

concentrado na quadra poliesportiva que parecia pequena dada a quantidade de pessoas que

abrigava.

A dança do bate-pau entra em outro passo. Os bastões são retomados pelos guerreiros. Duas

filas, agora uma de frente para outra, os bastões são cruzados um por cima do outro, cada um

segurando em uma extremidade, e começam a bater os bastões, movendo-se em passos laterais

curtos para direita e para a esquerda. Depois os bastões são cruzados em cima, formado um tipo de

corredor e, em duplas, os guerreiros passam por dentro dele. Ao terminar este passo, passa-se a fase

final da dança, quando os participantes formam um círculo, os bastões são cruzados, e um guerreiro

é erguido, e este solta um grito. O primeiro guerreiro erguido, um jovem dos sukrekeono, tinha na

mão uma bandeira do Brasil. Descruzam os bastões, formam novamente as filas e voltam abater os

bastões. Vão depois para o lado contrário da quadra e levantam um jovem xumono, que portava um

lenço vermelho na mão. Cirilo, coordenador da dança, fala enquanto a dança é retomada.

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Novamente formam um círculo e cruzam os bastões, desta vez levantam uma jovem mulher,

Darlene, com um lenço verde na mão. Desfazem o círculo e voltam ao passo de bater os bastões.

Vão para o lado contrário, forma o círculo e levantam desta outra jovem, Marta Tânia, filha do vice-

cacique Cirilo, com lenço vermelho, desfazem o círculo e voltam ao bate-pau. Em seguida, os

homens e mulheres param e ouvem Cirilo falar. As brincadeiras continuam, com provocações de

lado a lado. Homens e mulheres então se misturam e dançam juntos, os homens pegando os lenços

das mulheres e acenam com eles em.

Neste momento o microfone servia as lideranças, que faziam comentários sobre a festa, a

importância da cultura e as “brincadeiras”. O público havia se dividido em dois blocos, xumono e

sukrekeono, e trocavam provocações e brincadeiras. Algumas senhoras bem idosas pegam o

microfone e começam a cantar com voz rouca e trêmula, músicas no idioma Terena, que alguns

afirmaram ser “hinos” do xumono e sukrekeono 89. Pelo menos três senhoras falaram e cantaram a

frente, muito aplaudidas pelos indígenas.

Ao final, o público se concentrou para ver a votação de quem havia ganhado a disputa da

festa. O chefe do posto, Argemiro, Genésio, Cirilo e outros coordenavam esta parte final. Até o

antropólogo foi intimado a votar, e o deu o voto de desempate. Neste momento o sukrekeono

comemorou bastante. Às 11:20, aproximadamente, a festa se encerrou. Ao meio dia o churrasco foi

servido, no centro comunitário, longas filas se formaram, algumas pessoas comiam ali mesmo no

local, outras levavam a carne para casa. As 14h um baile começou na quadra de esportes, reunindo

poucas pessoas. Apenas alguns jovens e crianças dançavam ou observavam. A chuva continuou

intermitentemente durante todo o dia. No campo, atrás da Igreja de Nossa Senhora do Perpetuo

Socorro, eram realizados os torneios de futebol do dia do índio, o que durou até o fim do dia.

Durante a noite, o baile continuava. Assim se encerra o dia e a semana do índio.

4.3 – Eventos, Significados: produção e reprodução de uma mito-história.

Iremos tratar aqui o Dia do Índio como uma situação social, como um conjunto de ritos que

encenam mitos, que servem como espaço para a enunciação de discursos políticos de lideranças

indígenas e grupos políticos regionais. Neste sentido, cabe fazer aqui algumas considerações com

relação à definição de rito e mito por nós, adotada. Podemos dizer que, fundamentalmente

consideramos a conversibilidade do rito e do mito, que “O mito, (...) é a contrapartida do ritual;

mito implica ritual, ritual implica mito, ambos são um só e a mesma coisa. (...) o mito encarado

como uma afirmação em palavras diz a mesma coisa que o ritual encarado como uma afirmação

em ação. Indagar sobre o conteúdo da crença que não está contido no conteúdo do ritual é um 89 Não conseguimos explorar mais detalhadamente tal informação, nem vimos na litaratura menção a existência de tais cantos, sendo assim uma lacuna a preencher.

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contra-senso”. (Leach, 1995, p. 76). O mito é uma tradução do significado do rito para o discurso, e

o rito é a transposição para o plano da ação, do significado contido no mito. Desta maneira, mito e

rito pela articulação de signos/símbolos, tem uma mesma função expressiva/comunicativa.

Entendemos que o conjunto rito (ação simbólico-expressiva) e mito (tipo de narrativa/discurso

sobre o passado), possui ainda outras dimensões, e especialmente “O ritual serve para expressar o

status do individuo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra

temporariamente. (Leach, op.cit, p.74) e “Em suma, portanto, minha opinião aqui é que a ação

ritual e crença devem ser entendidas como formas de afirmação simbólica sobre a ordem

social.(...) o ritual torna explicita a estrutura social”. (Leach, op.cit, p.77-78).

Assim, analisaremos o Dia do Índio, enquanto um ritual porque sua finalidade principal é de

caráter simbólico-cultural. Mas através desta ação simbólico-cultural, expressa-se o status dos

grupos sociais e muitas relações políticas entre estes as instituições de Estado. Poderíamos dizer

que, o ritual expressa a estrutura da “situação histórica”, o status dos grupos dentro desta, e ainda,

as formas pelas quais os grupos sociais atribuem significado a sua experiência, passada, presente e

futura90.

Uma história do Dia do Índio se faz necessária. É uma data oficial do Estado Brasileiro,

instituído por decreto presidencial no ano de 1943:

“Decreto-Lei Nº 5.540 – de 02 de Junho, Considera Dia do Índio a data de 19 de Abril. O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e tendo em vista que o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano reunido no México, em 1940, propôs aos países da América a adoção da data de 19 de abril para o Dia do Índio, decreta:Art. 1º É considerado –Dia do Índio – a data 19 de abril“ (CNPI, 1946, p.1).

O decreto foi assinado por Getúlio Vargas, Apolônio Sales e Osvaldo Aranha. A proposição

desta data como Dia do Índio foi realizada em um encontro indigenista inter-americano. Poderíamos

dizer que o Dia do Índio surgiu de um processo de internacionalização das ideologias e atividades

indigenistas no Sistema Mundial. A data de 19 de abril é, coincidentemente, no momento em que é

criada o “Dia do Exército” e também o Dia do Aniversário de Getúlio Vargas. Nos anos 1940, a

realização de grandes rituais estatais, estava na ordem do dia, como parte de um processo de

imposição/construção de uma identidade nacional (ver Gomes, 1994)91.

O ritual do Dia do Índio não foi inventado pelos próprios indígenas; ele procede de campos

sociais (nacionais e internacionais) outrora inacessíveis a eles, mas nos quais se tomavam decisões

que interferiam diretamente nas realidades das aldeias. O Dia do Índio foi utilizado pelo Estado-

Nacional, como ferramenta localizada da sua auto-construção. O projeto de “nacionalização do 90 Podemos ainda lembrar que Leach desvincula o sentido do conjunto mito/rito do elemento mágico-religioso, de maneira que o ritual expressa relações sociológicas (Leach, op.cit, p. 76). . 91 O livro “A Invenção do Trabalhismo” , especialmente o capitulo V, “O Redescobrimento do Brasil”, indica de maneira clara os processos ideológico-culturais na construção do Estado e o papel dos grandes rituais estatais.

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índio” (tal como concebido dentro do SPI e analisada no capítulo 3) se utilizou esta data para

implementar um ritual que encenasse o mito de origem da nação, de maneira que o indigenismo foi

também parte da política global nacional-desenvolvimentista utilizada pelo Estado Novo, para

construir uma identidade nacional. Em que consiste o ritual do Dia do Índio, do ponto de vista da

ação simbólica, ou melhor, político-simbólica, dos agentes representantes do Estado, através do

SPI/FUNAI? Para compreender o conteúdo de tal rito, é preciso descrever e analisar sua estrutura.

Poderíamos falar que o Dia do Índio se divide em duas partes inter-dependentes, em que

diversos símbolos/signos são acionados dentro de fluxos de narrativa/discurso. A primeira parte:

consiste na reunião de índios em torno da área central da aldeia (ou seja, próximo ao Posto

Indígena) e na apresentação dos indivíduos/representantes dos poderes do Estado-Nacional: o Chefe

de Posto, o diretor da Escola, o Cacique e eventualmente outras autoridades. Estas ficam

posicionadas num pequeno “palanque”, pouco acima do solo. A própria categoria “autoridades”,

usada pelos índios para se referir aos palestrantes (os que tomam a palavra, que tem o poder do

discurso neste ritual), designa com bastante propriedade o status diferencial destes. Neste momento,

os representantes do Posto, da Escola e o Cacique, cumprem os procedimentos básicos da

ritualização da identidade nacional: fazem o hasteamento das bandeiras (das unidades

administrativas estatais: município, estado e nação) e entoam o hino nacional; além disso, entoam

também a “canção do índio”, que enuncia um tipo de discurso que segue os parâmetros de um tipo

de consciência que poderíamos chamar de romântico-nacionalista92. A segunda parte: é feita a

abertura do discurso para os índios (sejam estes estudantes ou outros), que adicionam seu discurso a

este contexto; depois, os índios acrescentam o seu próprio ritual, através das danças ou da

manifestação de sua “cultura” (categoria hoje utilizada pelos próprios índios para designar os ritos

como a dança do bate-pau). Então, entram em ação os índios, que através do seu rito, constroem um

circuito de discurso que funciona de forma paralela ao discurso estatal, se entrecruzando com ele,

entretanto, em diversos aspectos, como poderemos ver adiante.

Logo, no centro do processo de ritualização do Dia do Índio, está a expressão do status dos

representantes dos poderes do Estado-Nacional e a apologia da identidade nacional, de outro, está a

enunciação do mito de origem deste mesmo Estado, que através do discurso, legitima e corrobora

aquele status. A função pedagógica e reguladora da tutela, e de seus agentes locais concretos, fica

manifesta. Agrega-se a estes elementos, um espaço que é previsto para a intervenção indígena,

através da expressão de sua “cultura”, que é assim “valorizada” dentro do ritual, mostrando o status

do “índio”, enquanto conceito genérico aplicado a realidade local Terena; a manifestação da

“cultura” seria assim o espaço específico reservado para os índios dentro deste ritual, como forma

92 Usamos aqui no sentido da fusão da imagem do “índio como bom selvagem” pelo discurso nacionalista, que passa a invocar o índio como brasileiro pretérito.

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de indicar a “sobrevivência” da “tradição indígena”, específica e distinta da própria cultura

nacional, com a qual “contribui”.

Faremos aqui a análise da “Canção do Índio”, tratada aqui enquanto uma versão do mito de

origem do Estado-Nacional. Esta se insere dentro de um conjunto de símbolos/signos que são o

resultado do processo de produção simbólico-cultural. Vejamos a estrutura deste mito:

Canção do Índio Versão Cantada em 2004

Nós somos os índios bravos De tribos velhas De nossa terra Quando for para defendê-la Com nosso ardor que o peito encerra Lutaremos destemidos A liberdade tão retumbante Do nosso Brasil amado Idolatrado, por ti gigante O índio luta sem temor Na paz trabalha com amor Lembrando a nossa historia Guardaremos a memória Somos índios de valor E o berço onde eu nasci Pois dizemos com orgulho Somos índios do Brasil E neste posto grande gentil No coração está o Brasil

Bravos índios Brasileiros

Grandes guerreiros honraram a história Cunhambebe Potiguara Araribóia na Guanabara

Para não sermos escravos, heróis batavos Venceu Potí,

Com sua gente valorosa Lutando orgulhosa –

Brasil – por ti!”

Podemos perceber claramente aqui uma formulação discursiva baseada num conjunto de

idéias/signos, que se articulam: a primeira é idéia é a da valorização da categoria “Índio”, e

conseqüentemente, dos grupos sociais assim categorizados. O Índio, enquanto conceito/signo

aparece sob forma positivada: a segunda idéia, meio pelo qual se justifica tal valorização, é a idéia

de “imemorialidade” dos índios (“tribus velhas de nossa terra”, o acionar constante da “história”); a

terceira idéia é da associação índio/nação, derivada das primeiras. Desta maneira surge a expressão

“índio brasileiro”, aquele valorizado pela nação, e que valoriza e luta por esta mesma nação (“com

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sua gente valorosa, lutando orgulhosa –Brasil – por ti!”). Desta maneira, existe uma associação

fundamental, entre índio e nação. Esta foi uma associação criada deliberadamente em diversos

momentos do debate acerca da identidade nacional, inc lusive dentro do SPI, o discurso que

colocava o índio como“cidadão da nação” anterior à mesma. A quarta idéia resume assim o “valor”

do índio brasileiro. O índio brasileiro é o “guardião da nação” (“quando for para defendê-la”), e é

nesta condição que é resumido o seu papel frente à nação. O valor do índio para a nação, não deixa

de ser um valor-de-uso, no sentido com que a economia política clássica empregou o termo. A idéia

a que é associada o conceito/signo “índio brasileiro” é a do soldado-aliado (em tempos de guerra,

tanto que os índios citados são índios que lutaram com os portugueses como Araribóia). De certa

maneira, o que este mito irá narrar, de forma resumida e unilateral, é a história das relações

interétnicas, ou a forma como o Estado concebeu e instrumentalizou, para sua política, os diferentes

grupos indígenas. Estas idéias/signos inseridas dentro do mito de origem do Estado-Nacional

brasileiro, sendo apenas uma variação e forma especifica de contá- lo para os povos indígenas. Na

versão cantada pelos índios de Cachoeirinha, pouco se altera, mas a estrutura interna de signos se

mantém, tal como acima indicado.

Vendo o “dia do índio” em seu conjunto, enquanto ritual estatal, e a mitologia que aciona,

acerca da história e origem dos povos indígenas, expresso na “canção do índio”, devemos chamar

atenção que esta estrutura está integrada na primeira parte; na segunda parte é dramatizado um rito

indígena, através da “dança do bate-pau”. Devemos analisar este rito para poder compreender todos

os significados expressos pelo ritual em seu conjunto. Isto porque, certos signos serão selecionados

do contexto da ideologia nacionalista implícita na política indigenista que gerou o ritual do dia do

índio, sendo inseridos e re-significados enquanto símbolos dentro do contexto da cultura local

Terena. E este processo de transformação de signos em símbolos indígenas, materializa um contra-

discurso indígena, que destoa em aspectos importantes, do discurso da mitologia do Estado-

Nacional.

Hiokixoti-Kipahê

Hiokixoti-Kipahê, é uma das designações em língua indígena para a “dança do bate-pau”.

Esta expressão é traduzida como “Dança da Ema”, (Kipahê = Ema93). O rito da “dança do bate-

pau” ou a “dança da ema”, consiste na execução de uma série de “peças” ou passos, executadas por

duas colunas de homens, uma delas designada Hononoiti, termo que designa verde ou azul, ou

também pelo termo Sukrekeono e a outra Harara-Íiti, vermelho ou Xumono. Cada uma das

“danças” ou etapas representa um significado dentro da lógica do rito. O número de homens em

93 Segundo Fernanda Carvalho (1996), a expressão seria traduzida como “aquele que vestem saias de pena de ema”.

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cada coluna pode variar, mas no ano de 2004, na situação acima descrita, existiam 32, 16 em cada

coluna. A dança reúne homens, jovens e crianças (que podem se juntar ao grupo a partir dos 8 anos

de idade). A dança do dia do índio normalmente é executada pelos homens e jovens (em outras

ocasiões podem ser formadas equipes somente de crianças). Cada uma das colunas tem um

“cacique” da dança, que coordena os passos. Os caciques da dança neste ano eram Leocádio

Antônio (Verde) Florêncio Muchacho (Vermelho). Veremos que na verdade estes caciques não

somente desempenham funções na execução do Hiokixoti-Kipahê, mas guardam a tarefa de

reproduzir os mitos/ritos do grupo e uma parte importante da cultura indígena local, acumulando

muitas vezes este papel, com outros, como o de curador ou rezador.

Foto 6- Dança do Bate-Pau.

O Hiokixoti-Kipahê pode ser dividido em três grandes etapas: 1º O início da dança do bate-

pau, que consiste numa aproximação lenta das duas colunas que se dispõem paralelamente,

realizado sob o toque do tambor e flauta, fazendo meia volta: outros passos são realizados, com os

membros de cada coluna realizando um toque com o bastão no solo e outro toque no bastão do

companheiro da coluna contrária. 2º depois dos primeiros passos, é realizado o “batismo” dos

jovens que estão se iniciando na dança do bate pau. 3º depois da paralisação para o batismo, a dança

do bate-pau é retomada, sendo realizados os passos finais. Na ultima etapa da dança, os bastões são

abandonados, sendo substituídos por lenços que são acenados, e neste momento as mulheres e

crianças se juntam ao grupo.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

193

Estas três etapas da dança têm significados específicos. Para indicar quais são estes

significados, iremos citar aqui algumas informações colhidas em entrevista. As informações usadas

abaixo foram fornecidas por Laurindo da Silva, morador da aldeia Argola, e um dos “condutores”

do bate-pau naquela aldeia (ele toca o tambor da dança). Ele é um “za´a”94 (pai de família, homem

de idade ou mais velho):

“ A historia dos mais antigos se originou durante a guerra do Paraguai. Depois da guerra do Paraguai começaram a dançar essa dança, depois conseguimos esse pequeno pedaço de terra. Depois do final das brigas dos povos mais antigos que surgiu a dança. Até os dias atuais agente não, nunca vai esquecer. E dos povos mais antigos que descobriu com a vovó e o vovô. (...) Antigamente, mas os meus avós e meus pais faleceram, acabaram somente nós três irmãos que ficou, que está vivo. Foi assim que os povos mais antigos relataram essa brincadeira. A Miranda se fosse tomada não teria onde agente fazer as compras. Durante as conquistas os povos foram de novo para as brigas, pois os Paraguaios já estavam tomando, conquistando Miranda... As pessoas que residiam na cidade são todos paraguaios. Durante a noite os povos foram atacar com flechas. Naquele tempo nossa arma era madeira da árvore onde eles atiravam, foi assim que os povos antigos falavam ou relatavam... Depois que os povos conquistaram Miranda, ai surgiu essa brincadeira, senão fosse o povo a cidade não existia. (Laurindo da Silva, Outubro/2004).

Ou seja, o relato indica que a dança (ou brincadeira, termo pelo qual os Terena designam

uma série de atividades, incluindo danças e outros), teria surgido após a Guerra do Paraguai. Dois

fatos importantes estão profundamente associados: a Guerra do Paraguai, o direito aos territórios

ocupados pelos Terena. A participação dos Terena na Guerra do Paraguai, e sua importância na

vitória militar na região, teria dado ou confirmado, segundo os índios, o direito dos Terena a terra

que ocupavam e que depois perderam. A dança do bate-pau teria surgido neste contexto, pelas

informações que são reproduzidas no âmbito da famílias extensas (o fato de serem os “avós” a

narrarem e reproduzirem a memória da guerra, indica este circuito). Isto nós podemos ver abaixo de

maneira mais nítida:

“Naquele tempo os povos era comandados por Kali Sini. Foi ele que comandava as pessoas dentro da mata. Ele foi longe, conseguia ver as coisas que o restante dos companheiros não conseguia enxergar. Esse Kali Sini era Pajé. Ele era grande Pajé (hanaiti koexomuneti). Observa os inimigos de longe e via os inimigos depois se retiravam, ficava mudando de lugar, para lugar onde eles conseguiam acabar com os inimigos. Por isso que existiu e ganhou os povos esses pedaços de terra aqui, na Cachoeirinha.por isso que existiu essa Aldeia (Ipoxuvoku Xane). Por isso que o povo ficou revoltado tentando recuperar as terras que os povos ganharam naqueles tempos. Onde nossa área está ficando pequena, cada vez menor. Nós estamos brigando um pelo outro para que pudesse plantar, por isso que surgiu a dança do bate-pau. Na dança do bate-pau o vermelho tem o exemplo de sangue. A cor verde existe no meio por causa dos purutuye. Pois eles estavam ganhando comemorando sua vitória. Foi por isso que tem essa cor verde e amarelo...a cor preta simboliza as pinturas dos povos antigos quando morre alguns parentes esse seria o significado da cor preta no meio do vestimento. (Laurindo da Silva, Outubro/2004).

94 É o termo equivalente a “Pai” na terminologia de parentesco Terena. Essa terminologia foi levantada por Oberg (1949) e Cardoso de Oliveira (1968), e os confirmados pelo nosso levantamento em Cachoeirinha.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

194

Vemos nitidamente no discurso de Laurindo a associação entre participação dos índios na

Guerra-Direito a Terra- Dança do Bate-Pau. Neste sentido, segundo a narrativa de Laurindo, os

significados do bate pau, são o seguinte:

“Se aproximando do inimigo. Depois que começa a dança, eles começam a bater com os paus e começam a brigar com seus inimigos. Quanto a peça dessa dança,são em sete peças. O início seria quando eles aproxima do inimigo.Outra peça dessa dança é quando um se encosta o pedaço dessa bambu um pelo outro que significa a acordar o inimigo. Outra peça é quando eles brigavam aqui e também eles davam paulada na cabeça do inimigo... Outra quando eles começa a brigar trocando porrada como diz os povos antigos. Outra quando eles começa a dar outra paulada na costa do inimigo, um tipo sinal da cruz. (kioxo´ihoti kuruhu vemouke) significa cruz no nosso idioma. Aí vem a flecha mais conhecida como Xekiye onde eles começam a atacar o inimigo. Procurando como matar, por isso que existe, relembrando como aconteceu o ataque, matando por isso que existe uma arma conhecido como “bodoke” pelos indígenas. Arma para matar. Quando eles começam a subir significa homenageia o Kali Sini. Ele subiu para poder observar o que está longe, por isso que ele subiu. Quando eles se aproximavam do inimigo ele pareciam está andando a costa, parecia que eles estavam se retirando. Assim que nossos patrícios e nossos anciãos contam essa história (yenoxapa voxunoêkene). Depois os inimigos buscaram outro caminho para alcançarem eles. Ai não conseguiram encontrar ou achar onde os inimigos perderam ele.Pois eles sabiam ou são esperto pois o pajé estava com eles.Pois ele era grande pajé. Laurindo da Silva, Outubro/2004).

A versão de Laurindo na sua estrutura fundamental, é a versão mais conhecida e difundida

entre os Terena: o Hiokixoti-Kipahê é um dança que ritualiza a participação dos Terena na Guerra

do Paraguai. Cada coluna representa as partes em Guerra, e ao mesmo tempo, a participação Terena

nesta Guerra. A última peça da dança (o acenar dos lenços representa o retorno para casa e o

reencontro dos índios com as famílias, por isso a participação das mulheres e crianças), pelo que

nos contaram diversos moradores de Cachoeirinha. Assim, segundo as narrativas entre os Terena,

existe uma simbologia específica inerente à dança do bate-pau, e também uma narrativa que ela

encena. Esta narrativa é sobre a participação dos Terena na Guerra do Paraguai, sobre o valor do

índio, sua relação com a terra e sua importância na história.

É interessante notar que esta narrativa é similar à reproduzida em outra terra indígena Terena

do Mato Grosso do Sul, o posto de Bananal,. Nos anos 1940: “Afirmam os Terena que um

koixomuneti, durante uma de suas invocações xamanísticas, caiu em transe e em sonhos visitou

uma floresta na qual assistiu ao hiokixoti-kipahe; ao acordar, recordando-se do que sonhara,

ensinou a dança aos Terena que desde então passaram a executá-la”. (Altenfelder Silva, 1949, p.

367). Informações similares sobre a origem mística foram recolhidas por Carvalho “Os Terena

dizem que elas lhes foi revelada pelos espíritos da floresta, através do sonho de um xamã, e foi

dançada pela primeira vez para celebrar o fim da guerra do Paraguai”. (Carvalho, 1996, p. 48).

Existem pontos fundamentais de articulação entre o rito indígena, que encena um mito sobre

a participação indígena na guerra do Paraguai, e o próprio “mito de origem do Estado-Nacional”

(baseado na narrativa das três raças formadoras). Na verdade, a própria simbologia nacionalista é

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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retirada de seu contexto original e resignificada dentro do espaço local das comunidades indígenas

Terena de acordo com suas próprias demandas identitárias e políticas. Vejamos a imagem abaixo, e

o que pode informar sobre tal contexto:

Foto 7- "100% Sukrekeono."

A imagem é uma foto registrada no dia do índio de 2004. Ao centro estão os membros do

“sukrekeono”, uma das colunas Hiokixoti-Kipahê. Ao centro o jovem Jean, filho do chefe do posto,

segurando uma bandeira com a inscrição “100% sukrekeono”95, e ao lado dele outro jovem, segura

a bandeira do Brasil. À direita na imagem, agachado vestido com a camisa social está o vice-

cacique Cirilo Pinto. Esta fotografia foi registrada na quadra poliesportiva de Cachoeirinha.

Podemos dizer que a imagem expressa o tipo associação de signos nacionais, transformados

em símbolos indígenas, e também de signos da cultura Terena de outras situações históricas,

convertidos em símbolos dentro de uma outra situação. As categorias “xumono” e “sukrekeono”

que segundo a literatura etnográfica estariam associadas no passado à divisão da sociedade Terena

em metades endogâmicas, e fundamentalmente a um ritual o Moótó em que os índios se dividiam

em metades para executar uma luta ritual (ver Cardoso de Oliveira, 1976). Na verdade, e veremos

isto abaixo, o uso das categorias “xumono/sukrekeono”96 hoje está relacionada a afirmação

identitária, dentro de uma dinâmica própria da situação histórica de reserva, em que a idéia de 95 Éimportante notar que boa parte da juventude Terena usa camisas com a expressão “100% Terena (que remonta a ideologia nacionalista do “100% americana”, depois utilizada pelos movimentos de ação afirmativa como 100% negro”), e que indicam o processo de construção de uma auto-imagem positivada. 96 Os termos são usados pelos Terena para descrever, pelo que presenciamos, traços de “personalidade”.

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“preservação da cultura indígena” sempre conviveu com elementos difusos da teoria da

“aculturação”. Desta maneira veremos que os Terena falam sempre da afirmação da sua cultura e

identidade, em certos momentos, e em outros, afirmam que esta cultura estaria “perdida” ou

“acabada”. A interação dos índios com a política indigenista se faz na base da apropriação e

reprodução de fragmentos dos discursos políticos e científicos, e sem considerá-los, é impossível

compreender o significado de certas práticas e discursos indígenas.

A bandeira do “Brasil” também não é um elemento secundário. Como vimos

anteriormente, Cachoeirinha foi durante os anos 1940/1980 um PI de “nacionalização”, e a

ideologia nacionalista, o esforço de transformação dos índ ios em “brasileiros” fazia parte da política

aplicada pelo Estado, localmente, através do SPI. A reativação “da cultura tradicional” em torno do

Dia do Índio, registrada por alguns antropólogos (Altenfelder Silva, Cardoso de Oliveira) não pode

ser considerada como um elemento periférico. Na verdade era parte de uma estratégia do Estado

para criar as bases internas da legitimação das relações de dominação, na qual a categoria “Nação”

se apresentaria como o centro articulador da lealdade indígena para com o Estado Capitalista.

Podemos dizer que esta estratégia no caso dos Terena teve uma eficácia relativa. Isto porque

os índios Terena se valeram de certas idéias/signo componentes desta política simbólica do Estado-

Nacional– que foi fundamental para a construção do regime tutelar tal como hoje existente - para

criar um espaço próprio de afirmação simbólico-cultural (através da ativação de uma memória

indígena, de uma versão indígena para a Guerra do Paraguai e para a construção da Nação, na qual

os Terena aparecem como protagonistas fundamentais) e política (em conseqüência desta narrativa

acerca da historia indígena, estes aparecem como sujeitos capazes politicamente, determinantes e

não somente determinados, como portadores de direitos, hoje interpretados fundamentalmente como

o direito a terra pela qual teriam lutado97).

Assim, a bandeira do Brasil e a simbologia que ela carrega, marca todo o rito do bate-pau.

Por exemplo, Inácio Faustino, morador da aldeia Argola, presidente da AITRE (Associação

Indígena Terena Reviver), que segundo outros moradores da aldeia é aprendiz de koixomuneti, e

além disso genro de um “ex-cacique do bate-pau” da Sede, falou que todas as cores usadas na dança

têm um significado. Na pintura corporal usada pelos índios, o vermelho representaria o “sangue”

dos mortos na guerra, e o preto o luto da comunidade indígena. O “verde e o amarelo”, o “azul e o

branco” empregados pelos sukrekeono ou hononoiti, representariam o “verde, a mata, o azul o céu,

o amarelo as riquezas e o branco as estrelas”. Segundo Inácio Faustino, estas informações lhe foram

passadas por Leocádio Antonio, “cacique da dança do bate-pau” na Sede e (segundo nos informou o

97 É interessante observar que desde 2003, depois que o GT da FUNAI fez o trabalho de identificação das terras indígenas de Cachoeirinha, a temática da terra, do território tradicional, tornou-se muito presente em todos os aspectos da vida do grupo, de maneira que isto se reflete de maneira especifica, na articulação e interpretação contextual que se faz do bate-pau, apesar de que este mesmo discurso, ser empregado pelas lideranças indígenas desde os anos 1950.

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cacique Lourenço Muchacho), também koixomuneti. A simbologia da dança do bate-pau, desta

versão de Inácio, que é a reprodução da versão de Leocádio, indicaria uma associação de símbolos

componentes do rito indígena com a simbologia da própria nação (já que o verde, o amarelo, o azul

e o branco são invenções do nacionalismo, em que o Brasil é representado de forma naturalista).

Não acreditamos ser útil e necessário fazer generalizações quanto a isto. O fato de uma rede de

parentesco e alguns dos homens envolvidos no rito e na reprodução dos conhecimentos associados a

ele já torna o fato importante. Até porque a bandeira do Brasil é um importante o símbolo usado em

diversos momentos do rito, como em um dos mais importantes, ilustrado pela imagem abaixo. A

imagem mostra uma das “peças” de encerramento do bate-pau, em que os homens são erguidos, em

que se dá um viva “ao chefe” (ver Carvalho, 1996).

Foto 8- Jovem ergue a bandeira do Brasil.

Fundamentalmente, podemos dizer que um elemento central da cultura Terena na situação

histórica atual, é a transformação de signos retirados da cultura produzida pelo Estado-Nacional em

símbolos do grupo étnico.

Num diálogo realizado em 2002, com um grupo de jovens indígenas, algumas informações

sobre suas estratégias pessoais e visão de mundo foram colhidas. Um destes jovens era Lauzequino

Elias Muchacho. Na conversa, discutindo a temática da cultura indígena, vemos o seguinte:

Ha muito tempo que você dança? Desde criança, desde a infância. Hoje você dançou? “Eu dancei. A gente não pode acabar nossa cultura. (...)

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O que você sente? Eu sinto orgulho de ser índio. É a cultura nossa que o índio não pode negar, não pode acabar aquilo lá. (Cachoeirinha, Abril/2002).

Ou seja, um discurso auto-afirmativo está associado diretamente aos rituais indígenas, tal

como hoje são encontrados.

Estes signos da nacionalização dos índios foram concebidos para servir como mecanismo de

controle político e ideológico dos grupos indígenas. De certa maneira, se acreditava que a

“nacionalização” implicava a disciplinarização dos grupos étnicos, e a eliminação de conflitos entre

índios e o Estado ou grupos sociais regionais. A tutela (que se pauta na afirmação da incapacidade

indígena) se valeu deste sistema simbólico-cultural para construir um lugar de subalternidade para

os povos indígenas, enquanto que o discurso ind igenista, através de uma narrativa romântico-

nacionalista, fazia a apologia do índio pelos critérios acima indicados, ao mesmo tempo em que

exercia o seu controle político e a gestão de sua mão-de-obra.

Mas este conjunto de signos seriam utilizados pelos Terena como símbolos para expressar

sua própria narrativa e criar sua interpretação alternativa para a experiência histórica,

principalmente para legitimar e traduzir em discurso a política de resistência cotidiana ao regime

tutelar. Os Terena interiorizaram a idéia de preservação cultural e identitária (e também da perda,

contra a qual se deveria opor a preservação), de valorização do “índio”, contida em parte do

discurso e política indigenista, e o inseriram dentro de seus próprios mitos/ritos, para servir como

legitimação cultural para sua estratégia política de “co-gestão”, de expandir seus espaços de

influência sobre as instituições estatais e outros espaços de poder. O “rebaixamento” imposto pela

tutela, foi transformado numa narrativa mito-histórica auto-afirmativa.

4.3- O Complexo Ritual e as Tradições Culturais.

Tendo em vista os dados oriundos de nosso trabalho de campo, pretendemos aqui traçar

algumas linhas de interpretação teórica do material etnográfico disponível. Em primeiro lugar

iremos definir o que chamamos aqui de “complexo ritual” como um conjunto de ritos procedentes

de diferentes tradições culturais (indígenas e nacionais) que são inter-relacionados e possuem

especial importância nas relações comunitárias étnicas dentro das aldeias Terena em Cachoeirinha

1) Festas de Santo; 2) Oheokoti (ou pajelança); 3) Dia do Índio; 4) Cultos Evangélicos. O Dia do

Índio, assim, não é um evento isolado, mas faz parte de um circuito regular de rituais, que guardam

várias articulações. O Oheokoti é realizado também na semana da do índio, e apesar de ser indicado

que isto se deve a uma intervenção do SPI, na realidade (ver Oberg, 1949, Cardoso de Oliveira,

1976) o Oheokoti era tradicionalmente realizado no mês de abril.

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Podemos distinguir aqui duas tradições culturais, no sentido que representam diferentes

interpretações da experiência indígena local, o xamanismo católico e o protestantismo indígena,

expressando ambas formas locais de combinação entre uma tradição e cosmologia indígena

Guaná/Terena e uma tradição religiosa ocidental . Realizaremos agora uma descrição da estrutura

interna e das formas das práticas de cada uma destas tradições culturais dentro de Cachoeirinha,

bem como sua história e seu conteúdo simbólico.

O Xamanismo

Uma tradição cultural existente em Cachoeirinha é o xamanismo. O correto é falar de um

«xamanismo católico» porque as formas de reprodução dos ritos e mitos xamânicos estão

associadas a ritos católicos e a organização social desta tradição cultural. Separar o catolicismo

enquanto sub-tradição cristã do xamanismo seria um movimento enganoso e superficial, como

poderemos ver pela descrição etnográfica.

Muitos dos atuais e antigos “dirigentes” das Igrejas Católicas, responsáveis pelas festas de

santo e atividades cristãs diversas, são aprendizes de koixomuneti ou benzedores, ou de famílias que

pertencem a elas. Na Igreja Católica da Sede, o a atual dirigente Nilo Pereira é conhecido como

benzedor, Lourenço Muchacho foi dirigente da Igreja e é filho de um curandor, assim como

Agripina Júlio, que durante muitos anos foi dirigente da Igreja Católica sendo neta de um dos mais

conhecidos curandores de Cachoeirinha, o Xuri (Antonio Júlio). Na aldeia Argola, o mesmo

acontece. Aldo da Silva, é dirigente da Igreja Nossa Senhora Aparecida, é sobrinho de Quintino

Pereira da Silva koixomuneti (irmão de Laurindo da Silva, nosso informante sobre a dança do bate-

pau). Um antigo dirigente desta mesma Igreja, João Felipe, é conhecido como koixomuneti, e um de

seus filhos, Felipe Neto, é dirigente da Igreja Católica da Lagoinha e aprendiz de “benzedor”,

segundo nos disse. Assim, o controle dos rituais cristão dentro da Igreja católica, é exercido também

por indivíduos ou redes familiares que estão inseridos diretamente na tradição cultural do

xamanismo

Algumas categorias são fundamentais para compreender o universo do xamanismo Terena.

A primeira delas é “koixomuneti”. Esta categoria às vezes é traduzida como “curandor” ou “pajé”

(no passado era comum a designação de “padre”), e designa a pessoa que realiza curas e tem

poderes mágico-religiosos. Em Cachoeirinha é muito comum que, ao perguntarmos para as pessoas

sobre os pajé ou koixomuneti, elas respondam que estes estão se acabando, que não tem “mais

nenhum” na área. Foi isto que ocorreu na nossa primeira visita em fevereiro de 2001, quando

perguntamos ao chefe do Posto da FUNAI, Argemiro Turíbio, sobre este tema e ao cacique, Sabino

Albuquerque. Naquela ocasião, conhecemos quem seria o “último” koixomuneti de Cachoeirinha,

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Mário Lemes, que na época que conversamos se mostrou completamente refratário em relação ao

pesquisador, o “purutuye”, de maneira que não nos falou absolutamente nada (numa situação de

total distanciamento do pesquisador para com o contexto local, momento da primeira visita). As

únicas informações que tivemos a respeito dele vieram do Terena, Antônio Lemes, seu parente que

trabalhava como nosso assistente.

Na nossa segunda visita, em abril-maio de 2003, Mário Lemes havia falecido há pouco.

Conversando com algumas outras pessoas, fiquei sabendo da existência de mais um ou dois

indivíduos que seriam Koixomuneti. Durante uma conversa informal com Antonio Lemes e

Argemiro Turíbio realizada no Posto Indígena, perguntamos sobre este tema, e eles me

responderam: “ah, mais o pessoal que tem hoje não é mais como antigamente, que levantava até

defunto. Estes já acabaram”.

Vejamos um outro trecho da entrevista que realizamos com Laurindo da Silva, que pode

ilustrar isso:

“Tem outro tipo de brincadeira que os povos tiveram além da dança do bate-pau conhecida como Oheokoti. Rodava, mexia purunga, praticava pajelança que os indígenas praticavam e estudavam durante a semana santa. Era lindo antigamente, o praticante se pintava e a mesma coisa que a dança do bate-pau. Eles pintava também durante ao amanhecer da semana santa. Hoje em dia já está se desaparecendo. Presenciei, observei e assisti. Também existe uma outra dança chamada Ikatakoti Kaino) onde também está se acabando quase ninguém faz. Também é lindo todos que dançavam também são enfeitados. Se chamava dança do cavalinho, não existe mais nós perdemos ela. Enquanto que a pajelança ainda existe. Aos poucos podemos falar que ainda existe, enquanto que a dança do cavalinho aos poucos está sumindo ou desaparecendo.”

Num certo sentido, isto reflete uma postura muito comum dos Terena com relação a esta

questão. É comum que os índios narrem alguma experiência relacionada a cura pelos koixomuneti,

ou que já teriam presenciado o “oheokoti”, mas isso não impede que quase sempre falam desse

assunto em termos de “desaparecimento dos pajés”, que estes estão “acabando”. Existe também

uma relativa política do segredo, em torno das práticas mágico-religiosas dos curadores, manejada

de acordo com as circunstâncias não se falando tão explicitamente disso para qualquer um.

No último período de pesquisa de campo (2004), pudemos identificar um conjunto de

pessoas que seriam ou “Koixomuneti/curandores” ou “benzedores/rezadores”, e que indicam, ao

contrário deste pretenso desaparecimento de práticas mágico-religiosas, uma ampla difusão delas

entre os Terena.

Dentre os “curandores”, existe uma diferença e uma hierarquia de saberes e poderes

mágicos/religiosos. Segundo o cacique Lourenço Muchacho, filho de um curador, o trabalho

xamanistico funciona da seguinte forma:

“Mas só que meu pai não é um curandor forte não, chacoalha purunga só para cantar mesmo. Tem alguns purungueiros que chama os espírito dos purungueiro antigo, falecido. E essas pessoas hoje é diferente. Agora os purungueiro forte mesmo já faleceram. Tem o Guilherme

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Antonio, o Quintino da Silva, o Afonso Pinto, Halita Polidório, Nilo Pereira, Margarida Gonçalves. Meu pai falava para mim, tudo que eu tenho eu não vou poder repassar para você. Ai eu fico perguntando. Porque. O que eu tenho você não sabe. Se eu puder repassar para você, tudo vai depender do seu comportamento. Se você tiver um bom comportamento eu vou repassar para você, se você não tiver eu não posso. A gente já começa a ver essa dificuldade é que eu não sei o que é esse bom comportamento, só ele que vai saber. Se eu chegar lá e ficar conversando, agora eu não sei o que é esse tipo de bom comportamento que eles fala. O que meu pai tem agora é desde o inicio, do pai dele, da mãe dele. Então antigamente essas família era forte. (...) Segundo ele só ele que vê. Agente não consegue ver, não consegue entender isso.”

O “Koixomuneti” aciona os espíritos dos mortos, que ele invoca para colocá- lo sob

possessão; tem conhecimentos sobre plantas e ervas medicinais e sabe também controlar os animais

e seus espíritos, tanto que os atrai durante suas atividades rituais. Os Benzedores utilizam-se

principalmente de imagens de santo, do penacho e orações para curar e também sabe administrar

“remédios do mato”. A distinção entre “purungueiros fortes” e os demais, como feita por Lourenço

é extremamente difícil de estabelecer, porque a própria aquisição de conhecimentos pode fazer com

que estes mudem de status. Por exemplo, em conversa com Marlene Lipú esta afirmou que existem

curandores que são procurados (como o Hilário Júlio, Arlindo Júlio e Afonso Pinto), e outros que

dançam e cantam mas não são procurados para realizarem cura (como o Antonio Muchacho).

O curandor, segundo os Terena, tem um conjunto de poderes, de cura, de morte, poderes

visionários (ele pode ver através do tempo e do espaço) e o poder de se transformar em outros

animais (urubu, onça, cobra e etc). Este poder é obtido através da relação que o curador estabelece

com um “guia”, ou seja, para designar uma entidade sobrenatural que auxilia o xamã nas suas

atividades de cura98, mas que por outro lado exige a realização de trabalhos (mágico-religiosos).. O

curador usa alguns objetos mágico-religiosos: 1) “Kipahê’ ou Penacho, 2) “Itaaká” ou purunga

(palavra de origem Quíchua designa um vaso de barro, mas entre os Terena indica o chocalho de

cabaça), tão importante que os curadores são chamados também de “purungueiros”. A purunga é

que serve como espaço de materialização da relação do “guia” com o “curandor”; o espírito entra na

“purunga”, fala para o curador o que ele quer saber, mostra o que ele quer ver; 3) imagens de santos

católicos. A relação do curador com seus pacientes, assim como do curador com o seu “guia”, é

uma relação de troca, simbólica e material. O paciente tem de levar alguns objetos para a consulta

(que é sempre realizada a noite), como velas e cigarros; tem de dar dinheiro para o curador; e por

fim, tem de dar festas para o santo ou participar delas como forma de “pagar” pelas curas recebidas.

O circuito das práticas mágico-religiosas se estrutura em torno do grupo doméstico, onde

reside o curador e/ou o benzedor. Ai ele recebe seus “pacientes”, promove os ritos de cura, “benze”

pessoas e animais. São nas unidades residenciais dos grupos domésticos também que são realizadas

98 Guia e Encosto são palavras empregadas respectivamente na umbanda e espiritismo ; a primeira designa uma entidade que através da possessão orienta um médium; a segundo espíritos bons ou maus que prejudicam ou protegem os vivos.

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as “festas de santo”, promovidas pelos curandores ou famílias. É importante destacar também que

os curandores atuam em grupo, de acordo com as formas de organização social e política. O

Oheokoti é um ritual que reúne diversos curandores dentro da aldeia. Só que a articulação destes

não é aleatória, mas segue e reforça do ponto de vista cultural, as clivagens políticas baseadas no

parentesco e residência. Por exemplo, o Oheokoti realizado na antiga vila Cruzeiro, era promovido

por um grupo especifico de curandores do qual faziam parte Lino de Oliveira Metelo, grande pajé e

o principal articulador político e ritual; Afonso Pinto, morador da Vila Cruzeiro, Guilherme

Antônio, morador da Vila Cruzeiro, Gilberto Turíbio, morador da vila Cruzeiro e Quintino da Silva,

morador do Babaçu. Os 4 primeiros estavam integrados em redes de parentesco e ação política que

estudaremos adiante. O ritual ou a brincadeira do Oheokoti não pode ser compreendida

isoladamente, seja porque se assenta na organização social e política, seja porque sua dinâmica

interna o exige. E a sua não realização, por exemplo, numa vila como a Cruzeiro em Cachoeirinha

pode se dar em razão da morte “do cabeça” do ritual, que ao mesmo tempo desestrutura a atividade

e pode desmotivar seus parceiros (como Afonso Pinto comentou, que depois da morte do Lino e

como ele, o Guilherme e o Gilberto estão velhos, não realizam mais o Oheokoti).

As práticas religiosas se estruturam fundamentalmente em torno das famílias extensas, que

participam das redes rituais e mágico-religiosas. Podemos citar por exemplo, um caso bem

concreto, o da família do Cacique da Sede Lourenço Muchacho. Ele reside num conjunto

residencial, em que moram seus pais, seus irmãos e os filhos de seus irmãos. O seu pai Antonio

Muchacho, é um curandor como vimos acima e tem um espaço reservado para seus trabalhos na sua

casa. É o caso também de Afonso Pinto, outro curador, e que também reside num conjunto de

unidades residenciais de uma família extensa (onde moram ele, dois de seus filhos e seus netos). Ele

possui também um espaço em sua casa (um cômodo) em que recebe seus pacientes, e que visitamos

uma vez, ocasião em que pudemos conversar sobre este tema.

Nós pudemos acompanhar as atividades de “benzedor” de Afonso Pinto, em sua casa. Mas

antes de descrevê- la é interessante ver a narrativa de como ele adquiriu seus conhecimentos para se

tornar um curandor/benzedor.

“nada me ensinou. deus que deu para mim. quando eu morava aqui no Morrinho ai nos estava sentado tomando cerveja cedo 8 horas assim. Aí apareceu a dona trazendo a criança que não tava mais viva tá querendo morrer, nós tava sentado tomando mate, chimarrão, aí apareceu a dona com a criança no braço. Aí nós perguntemos onde é que ela ia, ai ela falou, aqui mesmo. Ué, fazer o que, quem que falou pra senhora que sabe fazer trabalho? Não, cê podia fazer pra mim? De que jeito que faz livrar as crianças de doença ... (trecho não compreendido?).Ai fiquei pensando, meu pai disse que não dá. Que jeito que eu vou fazer trabalho com essas crianças? Não dá? Não procura outro? Não. Aí pensei. cê sabe rezar. Então tá. Ai fiquei rezando para ele, ai o pessoal já benzeu tudo as crianças que já tá morto. Acendeu vela em roda em cima da mesa. Ai a criança levantou e chamou a mãe dele e ai apagou as velas todinha, ai eu benzi e lembrar o nome de Deus se

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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podia me ajudar a livrar as crianças na vida. E eu não sei nada mas eu posso rezar. Ai levantou. Deu remédio, foi melhorando.Ai depois chegou outro. Nós conseguimos isso ai (...). ninguém me deu. deus que me deu aquilo. eu tava rezando só, tinha algumas crianças que ensinar para ele, mas pra frente e não aprendeu. Eu trabalho em conjunto com o velho aqui o Guilherme. Me chamou para ajudar a fazer trabalho. Pajé que agente fala. Então é isso que a gente faz. Apesar de que ... para benzer o corpo, tirar maldade, chega aqui em casa. Agora a gente que não agüenta mais andar me chama mas tem que me levar com o carro pra lá. Já fui pra... Morrinho, Argola, Campo Grande... aquele para chegar espírito na purunguinha. quando chega tempo de semana santa. Fizemos lá na casa do Guilherme. Cê sabe que nós comecemos 5 horas da tarde na casa do Guilherme ai nós paremos, porque ficamos com medo por que gurizada daqui um monte bêbado. (...) (Afonso Pinto. Abril/2003).

Nesta narrativa de como Afonso Pinto teria se tornado curandor, vemos que ele próprio

realiza uma descrição: a mãe levando uma criança quase morta para que ele rezasse e a benzesse; a

referência a utilização das velas, que sinalizam (quando se apagam, a transição da morte novamente

para a vida); também a descrição do “trabalho em conjunto” com o Guilherme Antonio, e a menção

a “semana santa”, ocasião em que fizeram descer espírito na “purunguinha”. Quer dizer, ele

enquanto “rezador” também atua nos trabalhos de “pajelança”, do Oheokoti. O penacho que Afonso

Pinto possui, inclusive, foi um presente dado por Lino de Oliveira Metelo.

Estes “benzedores” são freqüentemente procurados dentro de Cachoeirinha. Para ilustrar

isso, podemos citar uma situação vivenciada em março de 2006. Estávamos na casa de Argemiro

Turíbio conversando, no meio de nossa conversa um homem chegou e falou com Argemiro no

idioma Terena. Logo Depois ele interrompeu a conversa, dizendo que teria que levar uma mulher

num “curandor”. Perguntei qua l e ele disse, Afonso Pinto (depois saberia que a mulher era sua

prima). Foi então buscá- la de carro. Depois de seu retorno perguntei o que havia ocorrido, e ele

afirmou que era “encosto”, mas que a mulher já estava melhor que o “curandor” havia receitado

algumas ervas para ela. Durante uma noite, pudemos acompanhar os trabalhos de Afonso Pinto em

sua casa.

Às 17h aproximadamente fomos ver o trabalho de Afonso Pinto, realizado numa sala de sua

casa com um pequeno altar, Com a imagem de São Sebastião, com velas acesas em volta dela e um

Penacho sobre a mesa. Em trinta minutos menos vimos pelo menos 6 pessoas serem atendidas, a

maioria mulheres com crianças de colo e um adolescente. Afonso as recebia e as colocava em frente

ao altar; rezava em português em tom acelerado, passando o penacho sobre o corpo que era girado

(ficava de lado, de costas e de frente para Afonso Pinto). Todo o processo de benzeção demorava

certa de 5 minutos.

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Foto 9 - Daniel (esquerda) e Afonso Pinto, Curandor .

A seqüência do tratamento do rezador, a realização de orações e a benção dada no corpo do

paciente com o “penacho” são procedimentos sistemáticos desta forma de cura, como vemos pela

própria explicação de Afonso Pinto:

“Então, só abençoar, aí nos tiremos nome aí é abençoado. Tá certo melhorou bem aí procuramos remédio com azeite e raizinho do mato para sarar, ai tem que falar qual é o sentimento na vida dele. Ai nós procura raizinho do mato para curar com ele. (...) Abençoa primeiro depois procura remédio. Sem saber eu não posso dá remédio a toa. (...) Tem que fazer oração primeiro para ele para procurar qual o sentimento e qual a raiz do mato. Nós tá começando de fazer trabalho, por isso que cada pessoa tem que ter o penacho E eu fui fazer encontro, fazer trabalho para lá de ...Cuiabá. (Afonso Pinto. Abril/2003).

Quer dizer, a “oração” é uma forma de comunicação, uma forma de buscar a orientação para

a intervenção do curandor, que irá escolher qual a “raiz do mato” será adequada ao tratamento de

cada paciente. Foi esta seqüência de fatos verificadas nos casos citados acima (tanto da prima de

Argemiro quanto no das pessoas que pude ver serem benzidas por Afonso Pinto).

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A transmissão do conhecimento dos “benzedores” se dá por mecanismos similares aos dos

curandores em geral. Perguntamos para o Afonso:

Como o senhor ensina para outros? «Tem de descubrir, tem de vontade pra saber se gostava do trabalho ai tem de fazer parte no corpo dele, nós ensina. Ficar com nós saber como agente faz é muito trabalho. Xavante não é como nos, é outro raça (...) agente ensina outro como se trabalha não pode, tira todo o santo de quem faz o trabalho, mas se tem praticamente já ai tem que ensinar.

Podemos ver que na realidade, assim como o “pajé” tem a habilidade da possessão e passa

por um processo de “aprendizado” (ver Cardoso de Oliveira, 2002), o benzedor também passa por

um processo similar e também tem uma relação sobrenatural, já que é preciso identificar se o

candidato tem já o “santo” e aí um benzedor faz “parte no corpo dele”. Logo, a distinção entre um

benzedor e um curandor (e as categorias se misturam, os benzedores são chamados de curandores,

pajés e purungueiros em certas circunstâncias), indicando a fluidez destas distinções, apesar da

persistência de uma forma especifica de intervenção e cura, que se vale das imagens e da oração,

seguindo um ritual distinto daquele realizado pelos koixomuneti.

As informações colhidas com um filho de um curandor que “chacoalha a purunga” (como os

Terena dizem), Amarildo Júlio, dirigente da UNIEDAS e genro de Anésio Pinto podem esclarecer

bastante a diferença do ritual realizado pelos curandores daquele dos benzedores.

“Koipihapati, seria uma pessoa que morreu e voltou para assustar a pessoas. (...) A pessoa morreu e o espírito volta na aldeia e começa a se apresentar para uma pessoa. Na forma de uma pessoa. Meu irmão já morreu faz tempo. Mas se um dia ele aparecer na minha frente, seria um koipihapati. O curandor mexe com koipihapati, mas esse ai é outro assunto. Koipihapati seria um espírito de Diabo. Por exemplo, meu pai é curandor, um pajé. Ele invoca espírito de uma cobra. Quando uma criança vai na casa dele pra benzer ele começa a chacoalhar, concentrar, daqui a pouco começa a mudar a língua dele. Porque é espírito de cobra, koipihapati. Mas hoje ele não mexe mais com isso, porque ele não tem mais força. Porque para mexer tem que ter energia, saúde bem forte. Ai o meu pai começa a usar o seu aparelho de Chocalho. Vai lá três vezes, começa hoje, amanhã e no outro dia. Ai quando a criança não fica curado durante esses três dias, ai o trabalho tem que ser feito de madrugada. Ai só chacoalha esse coisa dele. Ai usa pinga para molhar assim na cabeça. Meu pai aprendeu com outro curandor que chama Xuri, só que eu não sei essa história. (...) Pode morrer, o médico não, se levar pro médico não vai achar que tipo de doença ele ta passando, só os pajé que pode ver”. (Amarildo Júlio, Março/2006).

No trabalho do pajé que chacoalha a purunga, este invoca seu koipihapati – no caso acima “a

cobra” – e é sob possessão que o pajé realiza as curas de seus pacientes. O xamã cuida das doenças

provocadas pelos koipihapati, que os médicos não tem poder para tratar. Este procedimento é

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similar ao descrito por Cardoso de Oliveira, quando o antropólogo se submeteu a uma sessão de

cura com o xamã Gonçalo Roberto nos anos 1950.

A descrição que Anésio Pinto realiza das atividades de seu pai, indicando de forma bem

nítida a combinação de símbolos cristãos com signos indígenas:

“É gozado por causa que os pajé ele tem muito respeito em Deus, apesar de que ele tem os guia dele. É um tipo de Santo que eles invocam. (...) Porque às vezes tem a guia dele como koipihapati, as vezes tem o santo aquele invoca dentro da casa, como São Sebastião. Dizem que é guia, e tem esse koipihapati. (...) Tanto como Deus, tanto como Santo, depois ai veio as guia. Ai eu ouvia ele dizer, que o Deus dele mesmo era Itukooviti, mas apesar de Itukooviti, tinha o santo dele que ficava dentro da casa. Mas quando ele começa a fazer trabalho ele invoca o guia dele, koipihapati. Acho que deve ser espírito das pessoas que ajudaram, deve ser parente dele, aquele mais amado. Por exemplo minha irmã mesmo quando faz trabalho, meu pai mesmo incorpora nela. (...) Ela faz aqui na casa dela. Ela, sua irmã, aprendeu com quem? Aprendeu com meu pai, antes de meu pai morrer passou tudo pra ela, ele queria que eu pegasse, mas eu acho que eu não tinha aquela dom de receber isso aí, apesar que eu sou favor, sou a favor, por que eu nasci num berço que praticava essa pajelança desde lá do Ipegue, isso daí é uma cultura que não deve acabar. Eu falo pra minha irmã, se quiser continuar, continua, só que eu não vou mais lá quando ela faz trabalho, a Igreja proíbe, a gente de se misturar. (..) Em mês de janeiro ela festa, reza, baile.... Aí a pessoa vai lá, faz promessa, Festa de Santo que tá dentro da casa dela. (...) É uma espécie de promessa, ou de vitória, eu sei que meu pai sempre fazia festa aqui no mês de janeiro, oferecia reza para o santo, depois dançava... Os promesseiros dava as coisas..”. (Anésio Pinto,Março/2006).

Assim, o guia pode ser um koipihapati (espírito de um parente falecido, como um pai) ou de

um animal (como uma cobra), ou ainda um “Santo Católico”. A Festa do Santo, reúne o festeiro que

muitas vezes é um xamã e os “promesseiros”, que são aqueles que estão buscando curas ou

agradecendo por elas. A transmissão dos conhecimentos se faz também dentro da linha familiar,

para os filhos do curandor que podem assumir os trabalhos de seu pai ou mãe.

Os “Koipihapati”: a cosmologia Terena e a “comunidade dos vivos e dos mortos”.

Uma outra categoria é fundamental para compreender a dinâmica social e simbólico-cultural

dentro das aldeias Terena é koipihapati. O termo é às vezes substituído pela palavra da língua

portuguesa “encosto”, como havia sido no caso da prima de Argemiro citado acima. Sem entender a

crença nos koipihapati, e que na realidade faz parte de uma cosmovisão Terena, é impossível

entender o real significado do complexo ritual, já que as Festas de Santo se relacionam diretamente

aos espíritos, e que mesmo os benzedores tem de saber cuidar de doenças provocadas por encosto

ou koipihapati.

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A crença nos koipihapati é fundamental, já que estes têm um poder próprio que incide sobre

o corpo e a saúde, explicando certos deslocamentos, a existência de redes sociais aldeia/metrópole,

conflitos internos e atividades (como festas de santo, rezas e cultos).

Iremos relatar as informações obtidas sobre a morte de um índio Terena, que teria falecido

em razão do koipihapati:

Fale sobre a morte de Leocádio Antonio? Segundo grande curandeiro falecido, ele sempre falava, porque antigamente os índios mais antigo, ele falava, ele conversava com os filhos, na boca de noite você não pode andar. De madrugada, 5 horas você não pode andar. Então as pessoas respeitava aquilo lá. Então porque que o curandeiro antigamente falava isso segundo ele tem curandeiro que mexe lá com pessoas morto e traz para poder ajudar ele no trabalho, tem o que sabe chamar e mandar embora, tem o que chama e não sabe mandar embora. O que se torna esse espírito, esses mau espírito que a gente fala. Quando um curandeiro não gosta daquilo, ele vai buscar o pessoal que morreu muito tempo, esse espírito dessa pessoa, entra no corpo daquela pessoa, e começa a se sentir mau, doente, se chama encosto Isso mata mais rápido, se não tiver tratamento e senão tiver também curandor que sabe mexer com isso, para poder tirar do corpo do próprio paciente dele. Então tem espírito bom e espírito mau, segundo informa eles que mau espírito mata. O encosto que a gente fala é isso aí. Tem que ser tirado por próprio outro curandeiro, pra poder se livrar de tudo. O que gera isso? Quando pega gente isso ai, cresce barriga, dor de cabeça, vômito, às vezes dá febre, ou então as vezes pessoa parece doido, corre... então dá tudo isso. Porque a gente já sabe como é que é. Quando o patrício morre, o pessoal fica em volta. Junta o povão. O corpo nunca é abandoado, até que saia de dentro da casa da família, ai que o povo deixa o corpo. Então as pessoas que tem prática, já sabe como é que é, quando as pessoas morre de doença o corpo é de outra forma, mas quando morre por outras coisa parece que aquele pessoal levou uma porrada, fica tudo inchado, então doença mata o corpo não acontece nada, mas quando é mau espírito começa a ficar muita coisa.(...) Segundo informação que eu recebi da família, foi mais pela noite, ele tinha sonho, mas sabe como é que o pessoal de idade, fala...ah... para ele não é problema. O importante é morrer, segundo eles. Aí, foi para apanhar lenha, a esposa dele mandou apanhar lenha mais ou menos cinco hora da tarde, Aí na ida pra lá ele já tava sentindo que pra ele não tava bem. Que alguma coisa pode acontecer. Porque ele também foi curandeiro. Ele é curandeiro também. Ele chacoalha a purunga.Ele sabia o que ia acontecer lá. Porque quando ele chegou lá, segundo ele, sentiu que ... no corpo, alguém teve alguém chamando ele, alguém bateu nele lá mas não via alguém. Então voltou para casa, ai noite tava tudo tranqüilo, só sentia dor de cabeça aquela coisa, e quando amanheceu, faleceu. Só dormiu na casa dele uma noite e no outro dia faleceu. Porque se tivesse tratamento na hora poderia se salvar ainda, mas passou mais de 24 horas não tem mais jeito. Porque eu acho que o que ele recebeu foi muito forte, se fosse mais uma coisa leve poderia até agüentar, eu acho que ele chegou de ver assim de perto... segundo curandeiro fala quando a gente vê espírito de perto, morre na hora, mas quando é longe... agente guenta, fala isso. Porque aparece mesmo, aparece assim na visão da pessoa. (Lourenço Muchacho, 2004).

Os sintomas das doenças e da morte provocadas por “koipihapati ou encosto” são distintos

dos de uma morte natural. Dor de cabeça, inchaço, deformação do corpo pós-morte, tais sintomas e

a doença só pode ser tratado pelo trabalho de um “curandeiro”, já que tais doenças são causadas

pelo seu trabalho, direto ou indireto. O caso acima relata isso. E a morte de Leocádio se deu,

segundo a versão acima, pelo fato dele não ter tido o “tratamento” adequado, ou seja, o auxílio de

outro curandeiro.

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Os espíritos circulam ou aparecem na aldeia nos horários em que os curandores estão

trabalhando. O encontro dos vivos com estes espíritos faz com que eles sofram de “encosto”. Logo,

o tempo entre o crepúsculo e a alvorada (de 5 da tarde a 5 da manhã) é o tempo em que os espíritos

têm maior liberdade e poder de ação sobre a comunidade indígena. As prescrições para as crianças e

as pessoas em geral não andarem nesse horário se dá em razão disso. Note-se que no caso de

Leocádio, ele foi “pegar lenha” exatamente neste horário.

Marlene Lipú, esposa de Argemiro, relatou-nos em março de 2006, um pouco da sua visão

experiência pessoal relativa a este tema. É interessante notar que ela gosta de freqüentar, com

alguns de seus filhos e irmãos, a Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. Quando perguntei de

koipihapati ela falou que esta palavra indica o “espírito dos mortos”, e que filho mais novo, Diego,

de 10 anos, quando era menor tinha muito medo deles. Quando morria uma pessoa na aldeia, ele

evitava sair de casa a noite para não encontrar o koipihapati; ela comentou que todo mundo na

aldeia acredita nisso (que especialmente seu marido Argemiro “acredita muito nisso”), e que

quando a pessoa fica doente, ao invés de ir ao médico procura “curandor” pensando que é encosto.

Ela falou que “não acredita, mas tem medo”. Falou também que seu tio Sabino Lipú teve um

derrame. Ele demorou para procurar auxilio médico porque acreditava ser “encosto” a causa de sua

enfermidade. Só foi ao médico quando uma de suas filhas o convenceu a fazer isso.

Marlene explicou ainda que as imagens de Santos que ficam nas salas das casas de muitos

moradores da aldeia, normalmente de frente para as portas principais, têm a função de “proteger a

casa dos maus espíritos” (Anésio Pinto disse: “Os Santos eles falam que é guarda da casa”). Esta é

uma prática generalizada dentro da aldeia, ter um altar com imagens de santos dentro da casa. Outra

prática explicada em razão da crença nos koipihapati, é da de “desmanchar” as casas de familiares

mortos. Uma vez quando fui realizar uma conversa na Argola, com Alcindo Faustino, seus filhos

estavam desmanchando a casa de um de seus parentes que falecera há pouco.

Desta maneira, podemos falar que a crença nos koipihapati é a crença de que os espíritos

fazem parte de uma mesma comunidade que reúne vivos e mortos, e além, os animais como onças,

cobras, aves e também seres míticos da cosmologia Guaná/Terena, como Voropi (Cobra d´Água) e

Yurikoyuvakai.

Por exemplo, na conversa com Anésio Pinto, morador da vila Rio Branco e membro da

Igreja UNIEDAS (que pelo sistema de parentesco Terena é sobrinho de Afonso Pinto), perguntei

sobre Yurikovakai, e depois de consultar sua esposa respondeu:

“É uma lenda dos povos Terena, agora eu não se essa lenda é real ou é inventada. Yurikovakai era um homem que puxava os Terenos, diz a lenda que os Terena vinha de um buraco. Ai um passarinho bem-te-vi, cantou vendo aquele monte de gente dentro do buraco, ai o bem-te-vi cantou, cantou,cantou, ai de repente o Yurikovakai tava andando no mundo e ele ouviu aquele

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passaro cantar e aí foi lá ver e viu a etnia Terena, e o que ele fez? Ele pegou esses Terena um por um, isso ai era lá no Chaco, lá no Paraguai. Era um homem, não sei como dizer. Como você aprendeu isso? É contado pelos antepassados, nós temos um livro sobre isso daí. É com meu pai, e depois colocamos isso no livro. Mas só que nossos pais já contava isso daí. Depois do Yurikovakai teve o Kali Sini. Kali Sini. Era um dos lideranças dos povos Terena e ele atravessou todos os Terena do Rio Paraguai para cá para o Brasil. Ai ele é um dos lideranças muito temível a ele, porque ele era um espírito, aliás dos pajelança que f azia mal a todos que eles odiavam. Ai esse Yurikovakai nasceu lá do lado do Paraguai e historia do Kali Sini .é para cá, dentro do Brasil já. Nós juntemos a história do Yurikovakai com Kali Sini . O pessoal conta essas histórias? Se você pergunta para as pessoas mais antigas, se vai ouvir a historia deles. Eu conto na minha sala de aula, eu conto, a história do Yurikovakai, a gurizada gosta, eu faço personagem dele, dos índios terena, do pássaro, os meninos assobia como bem-te-vi, eu não sei se era espírito Yurikovakai, eu sei que era uma pessoa ...

Neste sentido, podemos falar que dois elementos são importantes nesta afirmação e que

merecem destaque. Em primeiro lugar, vemos que existe uma lógica de reprodução, de transmissão

dos mitos a partir de uma cadeia especifica, dos “mais velhos” e dos koixomuneti, para os “mais

novos” (especialmente dentro de seu grupo de parentesco). Isto porque o pai de Anésio Pinto era

um curandor ou pajé, como veremos abaixo. Esta cadeia de transmissão oral dos mitos Terena,

intergeracional e de xamãs para a comunidade, na verdade hoje foi combinada com outras formas

de transmissão, baseadas na escrita. A produção de um livro de “lendas” e sua utilização no espaço

escolar, assim como a narração dos mitos dentro da escola diretamente pelos professores indígena,

adiciona o elemento da transmissão do mito e da cosmologia através da escrita. Assim, a “Escola”,

enquanto instituição social, é utilizada em parte para a reprodução de certos mitos indígenas, sendo

que os “professores indígenas” e os “textos” (ao invés do xamã e da narrativa oral) passam a

destacar-se como forma de transmissão e reprodução de mitos e aspectos da cosmologia indígena. É

importante lembrar que em Cachoeirinha, a Escola (compreendendo o ensino fundamental e médio,

atende mais de 800 crianças, numero que corresponde a cerca de 20% da população total de

Cachoeirinha). Diego Turíbio, filho de Argemiro, uma vez nos contou meio desconfiado, a “lenda

da mandioca” que aprendera na Escola com sua professora (que enfatizou que os “Purutuye” não

acreditam). Outro fator importante, a fusão do mito com a história indígena, já que Yurikoyuvakai é

colocado ao lado de um personagem histórico, kali Sini (um “cacique” que era um xamã) que

realizou uma das travessias do Rio Paraguai, conduzindo os Terena a sua margem ocidental. A

temática da Guerra do Paraguai, da experiência histórica indígena, se junta com os mitos de origem

Terena, como o de Yurikoyuvakai, que retirou os Terena de um “buraco” tempo em que estes se

encontravam no Chaco ou no Paraguai. Assim como a narrativa do “bate-pau” evoca em sua

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principal versão a “Guerra do Paraguai”, uma experiência histórica que dá o significado a uma série

de elementos da cosmologia Terena no atual contexto. A dança do bate-pau, o mito que ela

ritualiza, na verdade se articula com estas idéias sobre a origem dos Terena e também sobre Kali

Sini , que surge ao mesmo tempo como personagem histórico que torna-se um espírito e passa atuar,

a ser incorporado na própria cosmologia, ao lado de Yurikoyuvakai. Assim, os acontecimentos

relativos a Guerra do Paraguai e a experiência colonial do século XIX, se fundem em termos de

importância na memória Terena de Cachoeirinha, com o próprio mito de origem.

Oheokoti: uma “luta mágico-religiosa”

O Oheokoti é uma das “brincadeiras” citadas pelos Terena e consiste num ritual realizado na

semana santa. Segundo a literatura etnográfica no século XIX, era realizado em relação as plêiades

no mês de abril. Uma descrição do Oheokoti é feita por Carvalho (1996) em Bananal. Em

Cachoeirinha não conseguimos acompanhar a realização de um Oheokoti. Iremos tentar compor

aqui uma descrição a partir das experiências de alguns índios que participaram das atividades

xamanísticas e é importante lembrar que os participantes do ritual são uma parte tão importante

quanto os especialistas, como os xamãs (ver Lévi-Strauss).

Em março de 2006, em uma conversa informal com o professor Anésio Pinto, morador da

Vila Santa Cruz, e filho do falecido pajé, Ricardo Pinto (primo/irmão, como os índios dizem, ou

irmão classificatório de Afonso Pinto), ele falou um pouco sobre sua experiência pessoal e familiar

e explicou a relação dos koipihapati com os vivos. Ele me contou que seu pai morreu “devido a

outro pajé, que disputavam quem tinha mais força”, outros alegam que ele tinha diabetes. Ele disse

acreditar que foi um pouco de cada coisa. “Tinha um pajé que não gostava de nossa família e

ameaçava meu pai e que dizia que matou ele”. “Os pajés colocavam doença um no outro para ver

quem era capaz de curar, para ver quem tinha mais força”. Seu pai aprendeu seus conhecimentos

no Ipegue, com sua avó, lá eles tinham uma casa de pajelança. Disse que quando as pessoas

duvidam de seu poder, o “pajé faz o mal” para fazê-los acreditar nos seus poderes.

Em outubro de 2004, conversamos com Adelino José, morador da Aldeia Argola que falou

de diversos assuntos, política, religião e etc. Disse que muitas pessoas procuram ainda os curadores

existentes. Falou que estes não são mais tão poderosos como os de antigamente. Disse que assistiu

a um Oheokoti uma vez quando era pequeno, e que os pajés se reuniam e ficavam lançando desafios

um para o outro; um fechava a mão e aparecia um “peixe pequenininho” e desafia algum outro a

engoli- lo sem morrer, para “provar que tinha poder”. Falou que quando morre um pajé, aparece

uma estrela no céu, fica três dias e depois ele morre. Falou que no dia de São João, o João Felipe,

curandor, faz festa e toda a comunidade vai lá “pagar promessa” ao Santo. Ele contou que também

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os curandores “tem sua doutrina”: não podem dormir com mulher durante três dias quando vão

fazer cura; tem de fazer jejum. Ele disse que os Pajés invocam os espíritos de outros pajés mortos.

Falou que os curadores tratam doenças causadas por assombração, por exemplo, quando uma

pessoa está andando de noite e ouve um assobio, ou chamar seu nome sem ter ninguém. Tudo isso é

somente pajé que cuida.

Estes dois depoimentos indicam um fator que não se pode perder de vista; assim como existe

uma relação de poder entre os koipihapati e os vivos (que podem ser perseguidos, sofrer pela ação

dos primeiros), existe também uma relação de poder entre os koixomuneti/curandores entre si. Uma

luta se estabelece, uma luta, uma medição de força, de poder mágico-religioso e Oheokoti se

apresenta assim – ou se apresentou - como uma luta, uma disputa de poder entre os curandores. Este

ritual pode se inserir num contexto de lutas reais entre curandores, baseada em relações de

inimizade que podem começar ou se estender para o domínio mágico-religioso, como é o caso do

pai do professor Anésio Pinto, citado acima, que teria morrido “por trabalho” de outro pajé, inimigo

de sua família. O Oheokoti, que era realizado em grupo segundo as informações recolhidas na

antiga Vila Cruzeiro, poderia assumir o caráter de uma disputa de grupos “de curandores”

(constituídos na base de relações de parentesco e residência, como acima indicamos), já que os

grupos poderiam se visitar entre si para promoverem tal disputa. Esta dinâmica de oposição

koipihapati x vivos, xamã x xamã, é fundamental para compreender as relações comunitárias

étnicas.

O protestantismo indígena

Quando o cristianismo na forma de sub-tradição católica se estabeleceu definitivamente nas

comunidades Terena através dos missionários no século XIX , existia uma cosmologia indígena

específica, organizada através dos koixomuneti que eram também líderes políticos. A introdução de

ação missionária e da sub-tradição protestante se fez somente a partir do início do século XX, e

encontrou já um xamanismo articulado com o cristianismo católico. As disputas políticas analisadas

no capítulo 3, a luta entre Missão Protestante e SPI, e a oposição dos índios ao regime tutelar

ajudam a explicar a difusão do protestantismo enquanto sub-tradição cristã dentro das comunidades

Terena do ponto de vista político. Mas na realidade existem razões mágico-religiosas que precisam

ser consideradas para entender o fenômeno do protestantismo entre os Terena, seu lugar e

significado. É isto que tentaremos fazer agora.

Podemos falar de um “protestantismo indígena” porque a sub-tradição protestante se

desenvolveu sob uma forma organizativa indígena (hoje existem diferentes igrejas que se

autodenominam indígenas, como a Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS, talvez a mais importante

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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do tipo no Mato Grosso do Sul). Mas é uma tradição local, indígena, do cristianismo, não somente

do ponto de vista da organização social, mas também da dos significados simbólico-culturais

associados a práticas evangélicas, como veremos abaixo.

Em Cachoeirinha, uma das primeiras coisas a saltar aos olhos aos visitantes, são as Igrejas.

Nos centros de todas as aldeias, sempre existem Igrejas Católicas, e também distribuídas de forma

mais dispersa, as edificações das Igrejas Evangélicas. Descrever a diversidade destas instituições, é

um passo inicial necessário para a compreensão da experiência cultural do grupo como um todo.

Partiremos desta dimensão mais tangível da experiência religiosa, para fazer nossa descrição e

análise.

Foto 10- Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS.

Como já dissemos, em Cachoeirinha existe uma diversidade de Igrejas. Na Sede , por

exemplo existem cinco igrejas: a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a Igreja

UNIEDAS (União das Igrejas Evangélicas da América do Sul), a Assembléia de Deus do Mato

Grosso, Assembléia de Deus Emanoel e a Assembléia de Deus Missões. Na Argola, existe a Igreja

Católica Nossa Senhora Aparecida, a Igreja UNIEDAS, a Igreja Assembléia de Deus Indígena e

Assembléia de Deus -Missões. No Morrinho, existem duas Igrejas: a Igreja Católica Cristo

Redentor e a Assembléia de Deus -Emanoel. Na Babaçu, existem três Igrejas: a Católica Nossa

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Senhora da Conceição, a Igreja Presbiteriana Renovada; na Lagoinha existe apenas uma Igreja,

a Católica Santíssima Trindade.

O cristianismo é assim uma tradição cultural presente em Cachoeirinha, dividida em

catolicismo e protestantismo/evangelismo, e ainda diversificada e particularizada na multiplicidade

das denominações religiosas existentes. No entanto, devemos observar que existem algumas

diferenças significativas entre as igrejas católicas e evangélicas.

Com relação às Igrejas ainda é importante notar como elas surgem e ocupam diferentes

lugares territoriais. Normalmente as Igrejas aparecem como tendas anexas às casas das famílias, e

as que dispõem de construções, como a UNIEDAS, a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a

Assembléia de Deus, normalmente também estão estruturadas em torno de certas famílias e grupos

vicinais. Desta maneira existe a sobreposição da dimensão religiosa-ritual com o domínio do grupo

doméstico, no qual se situam as atividades religiosas.

Na Sede, por exemplo, a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, fica localizada

no centro da vila principal, em um espaço que poderíamos dizer comunitário, próximo do campo de

futebol. No Babaçu, no Morrinho e na Lagoinha o mesmo fato ocorre. Na Argola, isto acontece

tanto com a Igreja Católica quanto com a UNIEDAS.

Com a maioria das Igrejas Evangélicas, no entanto, isto não acontece. Por exemplo, na Sede

a Igreja Evangélica Assembléia de Deus - Mato Grosso, foi construída num terreno de uma família:

a do seu Pastor, Zacarias da Silva. A Igreja UNIEDAS foi construída num terreno do Posto da

FUNAI, cedido nos anos 1980. Mas a maior parte dos dirigentes da Igreja pertencem a uma rede de

grupos domésticos interligados por parentesco que residem em torno da Igreja; a Assembléia de

Deus Emanoel, tem sua sede na residência de Rafael Albuquerque, dirigente responsável pela

Igreja.

Desta maneira, podemos falar que existe uma diferenciação na acomodação das Igrejas, por

conta do próprio processo histórico de colonialismo interno na região do Pantanal do Mato Grosso

do Sul. As Missões Católicas foram as primeiras a se estabelecerem, e as primeiras a intervirem

diretamente junto aos Terena, em todo o estado do Mato Grosso ainda no século XIX, e com os

Terena em particular. O catolicismo foi à primeira tradição cultural cristã a se fixar dentro do

território Terena de Cachoeirinha, devido à relação Igreja-Estado.

Em Cachoeirinha, especificamente, a construção da primeira igreja data da década de 30 do

século XX. Vejamos o que um documento extraído das crônicas da Paróquia Nossa Senhora do

Carmo em Miranda:

“Dia 11 de Agosto de 1931, Padre Affonso e José (Branco) com o Arquiteto Dr.Arlindo Jorge foram para Cachoeirinha para ver o que podia ser feito quanto a uma capela para os índios. Eles tem um lugar muito lindo para a capela, diretamente em frente à casa do inspetor. Eles também já tem 15.000 tijolos para a capela e os índios são muito alegres e tem muito entusiasmo.

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Dia 20 de setembro de 1931: Domingo. Padres Affonso e João foram para Cachoeirinha para a colocação da pedra fundamental da capela nova. Padre João realizou a missa dentro das paredes da capela nova. 98 índios assistiram a missa. Dia 01 de novembro de 1931: Padres Affonso e Frederico foram para Cachoeirinha para a inauguração solene da nova capela. Esta é a primeira capela em Mato Grosso a ser dedicada a Nossa Senhora com o titulo Nossa Senhora do Perpetuo Socorro. Padre Affonso deu a benção solene da capela. Esta é a primeira capela. Padre Frederico celebrou a primeira missa na nova Capela. Durante houve recitação do terço com cânticos. Muitas pessoas vieram de Miranda, até de Bela Vista, Brasil. Três touros foram doados a festa com cerveja e vinho. Houve uma grande festa e todos gostaram imensamente. Os índios ofereceram também a musica e uma dança típicas. Houve 08 batismos e dois casamentos. Os índios contudo não foram beber as bebidas alcoólicas”.

A Igreja Católica de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro foi a primeira a ser construída em

Cachoeirinha. No dia da inauguração da Igreja, 98 índios estavam presentes. Isto corresponde a

aproximadamente, 25% da população de Cachoeirinha no início da década de 1930, que era de 507

pessoas. (Cardoso de Oliveira, 1976, p.72, citando censo do SPI de 1927, indica tal número). Pelo

que indica o documento, a Missa foi acompanhada também por uma festa e por “danças típicas”.

Esta estrutura ritual se mantém até hoje, como poderemos ver mais à frente.

Até os anos cinqüenta, os católicos seriam os únicos a estar organizados em Cachoeirinha.

Vejamos como Cardoso de Oliveira descreve a situação naquele momento: “A única Igreja de

Cachoeirinha é Católica, dos padres norte-americanos da Ordem dos Redentoristas e sediados em

Miranda e Aquidauana, donde percorrem as aldeias Terena. A comunidade é caracterizada por sua

resistência a entrada de missionários protestantes, e seus componentes se dizem católicos, mais por

auto-definição. Contam-se apenas duas famílias protestantes, ambas vindas do Bananal”. (Cardoso

de Oliveira, op.cit, p. 89).

A introdução de uma nova denominação religiosa em Cachoeirinha se daria através da

Inland South-American Missionary Union, que primeiro se fixaram na aldeia do Bananal, e como

indica Cardoso de Oliveira teria sua influência aberta por estas duas famílias. A União Missionária

protestante cresceria em Bananal através de um conflito político com o SPI, graças a figura de um

“capitão”, o Marcolino Wolilly. A difusão do protestantismo esteve desde o início diretamente

associada ao faccionalismo político. A sua difusão pelas demais aldeias Terena reproduziria esta

tendência.

Pelo que levantamos através de entrevistas e conversas informais, a formação de uma Igreja

Evangélica em Cachoeirinha somente se daria nos anos setenta, depois inclusive da retirada dos

missionários americanos, e a formação de uma Igreja Especificamente Indígena, a UNIEDAS, em

Bananal. Vejamos um pequeno histórico da UNIEDAS contido nos estatutos desta Igreja:

“No início do século XX, na providência de Deus, o Rev, Joseph A. Davis, chegou a entender a necessidade de uma efetiva distribuição do evangelho nos campos missionários da América do Sul. A fim de realizar sua visão, o jovem pastor adotou o seguinte programa: a) o cumprir

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literal da grande comissão do nosso senhor Jesus Cristo, na proclamação do evangelho, principalmente entre povos indígenas do vasto interior da América do Sul; b) estabelecer das igrejas evangélicas nacional; c) preparar um ministério nativo do país onde se encontra o obreiro missionário . (...) Em 1912, os primeiros missionários, revs. João Hay e Henrique Whittington, começaram seu trabalho no Brasil entre os índios Terena , na aldeia do Bananal, distrito de Taunay, Estado de Mato Grosso. Os primeiros crentes sendo Georgina Lili, Honório Massi, Henrique Pereira, eram batizados no dia 31 de dezembro de 1916. No mês de janeiro de 1971, o senhor diretor da South American Indian Mission Inc , enviou dos EUA, o seu representante Rev. Roberto Anderson que, acompanhado pelos Revs. David Snyder, então representante da “Missão” no Brasil, Raymond E. Rosse Gordon Dudley Kinsman, transmitiu aos representantes da Igreja reunidos em Taunay, a sugestão do senhor Diretor para nacionalizar o trabalho evangélico fundado pela missão, no propósito de estendê-lo a todo o território nacional. Em abril de 1972, no sul do Estado de Mato Grosso, as Igrejas Evangélicas criadas pela South American Indian Mission inc, decidiram fundar uma união, que toma o nome de União das Igrejas Evangélicas da América do Sul, com administração, governo e nome próprio”. (Estatutos. P. 2)

A primeira congregação da UNIEDAS em Cachoeirinha seria formada logo depois, em

meados dos anos setenta, na aldeia Argola. Uma das famílias que criou esta igreja é a do professor

Genésio Farias, que participou da fundação da UNIEDAS em 1972 em Bananal, e se mudou para

Cachoeirinha. A partir de então, ficaram estabelecidos o protestantismo e o catolicismo como

variações do cristianismo enquanto tradição cultural, dentro de Cachoeirinha.

Os fundadores da Uniedas na Sede foram Raul e Felix Antônio. Conseguiram o terreno para

construir a Igreja na época em que o cacique era Dionísio Antônio. O Félix Antônio era o presidente

do Conselho Tribal nesta mesma época. Félix e Raul se converteram em 1983 e a principio a Igreja

ficava no seu próprio lote. As demais Igrejas iriam surgir por processos de fissão faccional, sendo

difícil separar as questões religiosas das políticas. A maior parte dos dirigentes de igreja UNIEDAS

foram membros da Igreja Católica, e as demais Igrejas evangélicas tiveram um surgimento mais

recente, especialmente a partir dos anos 1990.

A igreja tem como dirigentes: Antônio Oliveira, vice-pastor: Martins Lemes, casado com

Eunice Elias e mora no Rio Branco; Missionário: Rogério Lemes, filho de Martins Lemes - mora no

rio branco; Diácono - Amarildo Júlio; secretário: Walter de Oliveira, irmão de Antônio, solteiro,

mora com seu pai, Secretário: Adilson Felipe, casado com Adenice Júlio, irmã do Amarildo e mora

na vila Serradinho. Ancião: Firmino Augusto, casado com Lídia Samuel (mora na vila Serradinho),

Celestino Gregório, casado com Brautília Antônio e morador da vila Rio Branco - do outro lado do

campo de futebol. O Pastor Antonio Oliveira é genro de Anésio Pinto, e faz parte do grupo vicinal

da “vila rio branco”, um das vilas que se formou dentro da antiga “Cruzeiro”, por meio da ação de

Felix Antonio, que atuava com Dionísio Antonio, um dos lideres políticos residente na vila santa

cruz, também pertencente a antiga cruzeiro. É uma Igreja que surgiu dentro de um conjunto de

grupos vicinais que se destacaram de uma antiga vila.

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Entretanto, por hora queremos registrar dois fatores fundamentais para os desdobramentos

da pesquisa: 1) a distribuição concreta do cristianismo enquanto tradição cultural entre os Terena se

dá tanto pelos canais específicos desta própria tradição (ou seja, pela instituição igreja), quanto pela

organização social do grupo. Ou seja, ao que nos parece, as igrejas existentes se superpõem as

famílias extensas e grupos domésticos, sendo na verdade atividades de socialização incorporadas

pelo grupo étnico através das suas unidades sociais específicas; 2) o aparecimento das diversas

igrejas, e a particularização da tradição cultural cristã em múltiplas igrejas, acompanha também

uma dinâmica política interna, sendo difícil separar a questão religiosa da questão política. Desta

maneira, as Igrejas se formam por processos de luta política, que envolvem freqüentemente disputa

por recursos e posições de poder (cargos políticos como o de cacique, empregos e etc.).

Mas a importância do estamos chamando de “protestantismo indígena” não deriva somente

do papel político das Igrejas e líderes religiosos, mas existe também uma luta mágico-religiosa, que

coloca no centro das questões, a eficácia da cura dos xamãs e dos benzedores em geral e luta contra

eles e seus poderes.

Com relação ao cristianismo das diferentes igrejas evangélicas, podemos dizer que existe

também uma disputa pelo poder da “cura”. Em conversa com Adelino (ex-pastor da Assembléia de

Deus Indígena Argola) e também com Ademar Polidório (Pastor da Assembléia de Deus Missões),

eles me falaram que em suas respectivas Igrejas muitas pessoas foram “curadas”, através das

sessões de oração.

As Igrejas Evangélicas se estruturam, em parte, no combate ao “espiritismo” (forma pela

qual os koixomuneti e o xamanismo são classificados), e também pela prescrição de um código de

conduta determinado (especialmente a proibição do consumo de álcool e participação em bailes e

jogos). Alguns outros casos nos foram relatados, por membros de outras Igrejas Evangélicas, como

a UNIEDAS.

Um desses casos foi relatado por Amarildo Júlio, diácono da UNIEDAS, quando

conversávamos sobre koipihapati e religião em Cachoeirinha.

E se acontecer com um membro de uma Igreja? Ai, é outra coisa, ai ele vai e procura o pastor ou o grupo de oração que agente chama, já aconteceu várias vezes ai, na Igreja. Tem uma menina que mora aqui na Vila Nova, mas não é que viu o koipihapati. De repente dentro da Igreja mesmo os irmãos começa a orar aquela oração bem forte, ai começa a manifestar esse tipo de koipihapati no corpo da menina, o espírito mau no corpo menina, dentro da própria Igreja, aí cai no chão começa a gritar palavras que a gente não entende. Ai o Pastor chama o grupo da oração e quando é uma menina aí que tem ser mulheres, quando é rapaz, aí é os homens. (...) Oração pedindo pra libertar. Nós que somos cristãos, segundo a bíblia, o espírito maligno está ao nosso redor. Por exemplo, aqui agente tá conversando, o diabo fica ao redor da pessoa, pra destruir, pra amaldiçoar essa pessoa. (...) Mais ou menos aconteceu com essa menina. Chama Jéssica Polidório. Aí o espírito mau com ela começou a manifestar. Aí as mulheres foram lá,

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levaram no púlpito, porque é como se fosse o altar de Deus, começaram a orar a favor dela, e ela começou a brigar, é forte e, a menina não é forte, mas quando o espírito mau começou manifestar na vida dela, começo chutar, bater... Ai quando as irmãs começaram a orar a favor dela, ai começou essa luta dela. Mais ou menos uns 15 ou 20 minutos de oração, aí começa a se libertar. Quando o espírito do Diabo manifesta na vida de uma pessoa ele pede mais a água, porque diz que aquele lugar onde levou o espírito daquela menina, diz que era bem quente, tipo inferno que a bíblia fala, ela finge que foi embora, finge que já saiu do corpo da menina, mas é mentira.... Só que o pastor foi lá pegar essa água, ai começou a ungir essa água através do espírito santo, ai esse diabo não bebeu, porque quando pastor ungiu é como se fosse um sangue de cristo, ai não conseguiu beber. Começou a falar que queria água de outro tipo. Ai oraram novamente, até que libertasse. Ai começou falar, vou embora não agüento mais vocês.Ai oraram, oraram, ai a menina ficou curada, ficou sã. Aí começaram a fazer pergunta pra ela. Ai começou testemunhar o que aconteceu com ela. Eu já vi vários ai na Igreja. Essa menina contou que tava num lugar bem longe daqui, e era um tipo um lugar bem quente, um sol bem quente, aí amarraram o braço dela, o perna, o cabelo assim amarrado99. (Amarildo Júlio, Março/2006).

Ou seja, o Diabo é associado ao koipihapati, a possessão; o “espírito mau” que possuiu a

jovem Jéssica Polidório e provocava certas doenças foi expulso graças a intervenção do grupo de

“oração” da Igreja e ao poder ritual do pastor (que administrou a água “ungida pelo espírito santo”).

Assim, as Igrejas Evangélicas atuam e disputam a cura com os “xamãs e benzedores”, através dos

cultos de oração, e o pastor da Igreja tem também um poder mágico-religioso que se exerce sobre os

koipihapati. A pauta de obrigações das igrejas evangélicas acaba sendo organizada em função da

disputa pela eficácia do “poder” de cura manifesto nela. As igrejas evangélicas entram no circuito

disputando “a cura” (pela oração), e o fato de ser “crente” não isenta um individuo ou família se ser

atacada por uma doença causada por um feitiço ou espírito, ou seja, ela continua sobre a esfera de

ação de um koixomuneti.

Quintino Mendes, que é tesoureiro da UNIEDAS da Argola, mas morador da SEDE,

também deu informações sobre os “maus espíritos”. Contou que iriam fazer campanha de oração

(na terça 28/03/2006), na Argola. Falou que as pessoas vão a Igreja, assistem aos cultos e palavras

de oração, e ao final fazem uma corrente e quem está com o “espírito mau” ali mesmo manifesta e o

pessoal tira o “bicho” do corpo da pessoa (analogia para indicar o diabo ou o mau espírito100). Falou

que os mais vulneráveis são as criancinhas principalmente as meninas de 11, 12 e 13 anos e falou

que o mau espírito entra e se instala no corpo das pessoas (também os velhos, são alvos destes

espíritos). É comum que as Igrejas Evangélicas se dediquem ao “culto de oração” com a finalidade

de combater os “maus espíritos”.

Esta é uma preocupação tão fundamental que em certa ocasião em março de 2006 estávamos

na aldeia Babaçu conversando e pudemos ouvir no programa de rádio, uma pregação realizada por

Eliseu Lindolfo Sebastião (da Igreja UNIEAS), que falava da necessidade de apoio ao

99 Esse caso se assemelha em muito aos casos de “roubo de alma”, descritos por Oberg como consitutivos da cosmnologia Terena, e que aparecem também nos relatos de Almeida Serra. 100 O pajé também retirava animais do corpo que seriam a causa das doenças.

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acampamento “mãe terra” e também sobre as “casas que eram afetadas por forças sobrenaturais e

que somente com oração era possível trazer a solução para esses problemas”.

Pudemos acompanhar um “culto de libertação” em 2006. Às 19 h fomos à tenda da Igreja

Missionária Tabernáculo de Jesus, localizada na Vila Nova Esperança. Com cerca de 30 m2, fraca

iluminação de lâmpadas, e ficando a tenda na parte da aldeia mais isolada da vila principal e muito

escura. O culto foi conduzido pelo pastor Atanásio, contando com a participação de um evangelista

de nome Álvaro, e o pastor Luis, seu pai, ambos de Campo Grande. Atanásio conduziu o culto,

sempre alternando o português e o Terena/Aruak. Mencionou a presença do purutuye e de outros

visitantes. Cerca de 30 pessoas estavam na tenda. Duas filas de banco de madeiras serviam como

assentos; os da esquerda eram ocupados pelos homens e meninos e os da direita pelas mulheres e

meninas. Depois da apresentação Atanásio chamou as mulheres para apresentarem “corinhos”

(cantarem hinos evangélicos), depois os homens e as crianças foram convidados a fazer o mesmo. A

música era sempre cantada em volume muito alto (um amplificador garantia isso, acompanhadas de

palmas, e gritos e murmúrios de aleluia. Então o evangelista Álvaro tomou a palavra e falou que

aquele era uma primeira noite de 3 dias de culto de cura e libertação “para livrar de macumba e

exu”. Depois o pasto Luis fez uma pregação abordando o tema da “cura dos cegos por Jesus”,

fazendo uma analogia com a cegueira para com a religião.

Ao final Lourenço Muchacho fez uma oração e o pastor Atanásio tomou a palavra e chamou

a frente aqueles que precisavam de oração e benção para as famílias, para recebê- las, pedindo que

levassem pedaço de “roupa ou foto”; seis mulheres, algumas delas chorando, foram a frente

segurando roupas e pedaços de toalha. Álvaro, sempre falando muito alto, foi caminhando e ficando

frente a frente com cada uma das mulheres colocava a mão em suas testas e pedia a cura e a

libertação e a benção de suas famílias. Depois disso o pastor deu mais algumas palavras e culto foi

encerrado.

O importante a observar neste culto é como os “objetos” de uso pessoal são utilizados de

forma “simpática” para realizar pedidos de “cura” neste culto. Assim, o “culto de libertação”, as

orações se apresentam como alternativa de “cura” para males de ordem sobrenatural. Cabe destacar

a presença no culto de Lourenço Muchacho, que serviu como nosso informante para diversas

questões. A sua história de vida é bem ilustrativa de como existe uma cosmologia indígena que

serve contexto simbólico-cultural na qual se inscreve a tradição do protestantismo indígena.

Vejamos a história de vida de Lourenço Muchacho. Ele nasceu em 10/08/1965 na aldeia

Cachoeirinha, sendo filho de Antonio Muchacho (conhecido também como Gato Preto) e Margarida

Candelário. Trabalhou na lavoura dentro de Cachoeirinha, e também como assalariado nas turmas

que iam para o canavial. Tornou-se cabeçante durante algum tempo, e também atuou nas

comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, chegando a participar de um Encontro das CEB´s

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no Rio de Janeiro no final dos anos 1980. Atuava dentro da Igreja Católica, sendo também seu

dirigente. Elegeu-se cacique em 2002, permanecendo no cargo até agosto de 2005

aproximadamente, quando renunciou sobre pressões dentro da comunidade. Neste mesmo contexto

ele abandonou a Igreja Católica e se integrou na Igreja Evangélica Tabernáculo de Jesus. Numa

conversa com Lourenço perguntamos:

Agora você ta atuando com o que? Eu estou na Igreja Missionária Tabernáculo de Jesus, Pentecostal. Agora é que chegou Ministério. (...) É o pastor Atanásio Valério. Você era da Igreja Católica? Porque você foi pra essa Igreja? Eu era da Católica.Ai passei para o Igreja Evangélica. Houve muita dificuldade, muito problema, muito perseguição. Muito perseguição. Também por outro lado eu pensei muito tempo, que na Igreja Católica eu fui coordenação, ai o pessoal me nomearam para ser primeiro dirigente da Igreja Católica, ai fiquei pensando, pensando bastante, estudando analisando o que eu fiz, Ai chegou na minha cabeça eu fui pregador, preguei bastante na Igreja Católica, mas só que eu não levava em prática, eu pensava comigo eu tô enganando pessoa e ao mesmo tempo eu tô enganando a mim, porque eu saia pra fora e se lá na frente se eu quisesse beber eu bebia. Então eu bebia com meu próprio irmão da Igreja, então dessa forma eu estou perdendo o respeito. Eu estou mentido para essa pessoa, quer dizer mentindo para mim mesmo. . Minha esposa passou por uma grande dificuldade, uma provação muito grande. Eu tenho um irmão lá em Campo Grande que trabalha no Centro. Aí levei minha esposa para lá, sabe que ele me chamou, “leva pra lá que eu vou tratar ela”, ai chego lá, fico lá uma semana, ele muda a versão das coisas. Trabalhou, trabalhou bastante, a minha esposa foi piorando, piorando, piorando, ai quando ele viu que não ia dar conta daquela enfermidade que ela sentia... Quando entrou esse 2005, ele falou para mim esse ano seu pai vai morrer. Ele falou pra mim. Eu fiquei meio chateado, porque ele chamou para tratar minha esposa e chego lá ele falou de outra coisa. Desse jeito aí você tá me ofendendo. Mas enquanto Deus existir, porque o mau desejo que você tem contra meu pai isso não vai acontecer. Hoje meu pai tem 92 anos. Passou 2005, entrou 2006 e vai continuar ainda. Aí dessa forma comecei a desacreditar tudo. Desacreditar de mim mesmo fui colocando esse defeito comigo mesmo. Ai falei sabe de uma coisa vou virar evangélico. Isso tem um ano.Ai por isso que eu deixei o cargo de cacique. Vou renunciar o cargo de Cacique e vou para Igreja, cheguei lá fiquei um mês, ai me deram um cargo e ocupei cargo de diácono lá agora. Hoje tô firme lá graças a Deus, eu acho que Deus fez um grande livramento na minha vida, porque passei uma fase muito difícil, muito difícil mesmo, eu já não conseguia ficar tranqüilo, porque era muito perseguição, perseguição do meu próprio patrício. Sua esposa melhorou? Ela fez tratamento, também fez muita oração. A gente tá na campanha toda noite. Melhorou bastante. Você levou ela em Campo Grande para tratar com quem? Com um macumbeiro, era o meu primo/irmão, que trabalha no Centro Espírita, Benjamim. Ele só mexe com Purunga e Centro. Aí comecei a perder a confiança que eu tinha com ele, se ele não falasse isso pra mim, o mau desejo dele não aconteceu. Por isso que eu sai fora. Depois que o tratamento dela não deu certo vocês fizeram o quê?

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Voltamos pra cá, Aí falei com ela, vamos parar com isso. Vamos logo para a Igreja. Ai melhorou, e o estado dela agora é normal. Só que ela é diabética. E o que ela tinha? É o seguinte, o povo indígena quando irmão do meu pai agente sempre seguia o que ele falava. Ele sempre explicava, esse aqui não presta, isso aqui serve, aquilo lá não presta, porque eles acreditava mais na natureza, acredita no espírito mau porque eles são purungeiro, eles entendem isso, eles conhece, crianças não pode brincar lá pras 5 horas. 6 horas porque o espírito mau começa andar. Então que acontecia com minha esposa, ela era muito perturbada, depois que o pai dela faleceu começou uma grande perturbação. Então começou essa perseguição, todo curandeiro que a gente ia, “foi o fulano que fez isso”, quem fez isso foi o fulano, foi o fulano, ele mostrava quem era pessoa mas ao mesmo tempo ele pedia, não mexe não, deixa ele”. Falei, como? Tá prejudicando minha esposa como é que eu posso deixar ele assim, livre à vontade. Deixa ele, porque quem sabe nesse mês ai ele vai morrer. Até agora o homem que eles fala que tá judiando da minha esposa o homem tá firme, tá saozinho (risos), bem firme, aí eu falei, isso que é desengano. Falei larga mão, vou para a Igreja. E a Igreja resolveu, como é que o pessoal faz? Porque na Igreja Evangélica, tem varias igrejas evangélicas aqui, tem um que tem doutrina, tem o que não tem doutrina. Então a nossa aqui nós temos a campanha de 7 noites. Essa campanha tem a tema dela na bíblia, quando é noite, ai quando é madrugada, a gente costuma orar 7 madrugada.Quando é meio dia, é meio dia. Ai todas a coisas que quer nos prejudicar a gente já percebe que aquela coisas não vai dar certo, a gente é avisado né. Hoje eu acredito muito na visão dos grandes pastores. Porque eles falaram para nós. (...) Me deram uma instrução. Para o cristão ser forte na presença de Deus tem que orar, têm que ofertar, tem que jejuar. Eu falei tá bom. Como é que é o trabalho que o pessoal faz? Essas coisas assim vêm através do sonho da pessoa. Quando a pessoa é fraca de espírito, quando o espírito sai fora de nós, ai vê a nossa fraqueza, vê aquele medo, aquele depressão muito grande. Quando esse fracasso do nosso próprio espírito, a gente começa a ficar ligado naquilo que a gente tá sonhando e o próprio sonho prejudica a gente. (Lourenço Muchacho,Março/2006).

A história de vida Lourenço Muchacho ilustra bastante bem o tipo de circuito que as crenças

xamanísticas estabelecem: a esposa de Lourenço, Luzia Albuquerque, começou a sofrer

“perturbação” após a morte de seu pai. Lembremos que um dos sintomas das doenças provocadas

pelos “koipihapati” é a “loucura” (“fica doido”, ele disse). A partir do momento que tais sintomas

foram identificados por ele e sua família, eles seguiram as orientações que as crenças associadas ao

xamanismo exigem:procuraram um “curandor” de renome em Campo Grande, Benjamim

Muchacho primo/irmão de Lourenço, e que mora na capital há mais de 50 anos, e que possui um

Centro Espírita na sua casa, onde trabalha com “umbanda” e “pajelança”. O tratamento da sua

esposa levou mais de uma semana e não teve resultados, e ainda, Lourenço se desentendeu com

Benjamim, por conta da previsão de morte de seu pai. Então outros “curandores” foram procurados,

e o tratamento não conseguiu dar resultados, apesar de vários deles terem identificado que na

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

221

verdade a doença da esposa de Lourenço foi causada pelo trabalho, pelo feitiço de um outro

“curandeiro”. A descrença de Lourenço para com o catolicismo e o xamanismo, se deram num

mesmo movimento, pois como vimos, sua participação no catolicismo em nenhum momento é vista

como entrando em contradição com o xamanismo. Na realidade, foi a incapacidade dos curandores

ou purungueiros em efetivar a cura, a persistência da doença e a necessidade de proteção contra o

trabalho de um curandor que estava tentando prejudicá-lo, que o levou a romper relativamente com

suas relações anteriores e aderir a Igreja Tabernáculo de Jesus. Esta Igreja fica localizada numa área

pertencente a antiga Vila Mangao, e próxima a residência de Lourenço.

Depois de sua entrada na Igreja Evangélica, a “oração e os cultos” fizeram algum efeito, e

sua permanência na Igreja está associada a eficácia mágico-religiosa encontrada nela. Assim, a

“conversão” para a Igreja Evangélica, a ruptura com Igreja Católica, não representa de forma

alguma a ruptura com as crenças indígenas e as práticas xamanísticas, ao contrário; é pela

reafirmação da crença nos koipihapati e no poder dos “curandores”, já que antes de ir para a Igreja,

Lourenço percorreu todos as etapas exigidas pela concepção do processo de cura Terena. A ação do

cristianismo evangélico indígena se dá para combater os males sobrenaturais provocados pelos

maus espíritos, mas se coloca dentro da mesma cosmologia, na mesma concepção simbólico-

cultural que distingue dois tipos de doença: aquelas que derivam dos espíritos e precisam ser

tratadas por mecanismos mágico-religiosos (seja a sessão de cura dos pajés, seja a sessões de oração

nas Igrejas), das que são de origem humana, e são tratadas por médicos.

As Festas de Santo: Nossa Senhora Aparecida.

As Festas de Santo são realizadas ao longo do ano. Existem festas de padroeiros de aldeia,

padroeiros de família, que fazem com que durante o ano, múltiplas festas sejam realizadas. Existem

diversas “Festas de Santo” na aldeia Cachoeirinha. Na Sede, são comemoradas as datas de “Santa

Cruz” (02/05) e Nossa “Senhora do Perpétuo Socorro” (27/06). Cada setor ou aldeia possui seu

“santo padroeiro ou padroeira”: Argola é Nossa Senhora Aparecida (12/12): Morrinho é Cristo

Redentor (23/11); de Lagoinha é a Santíssima Trindade (02/06) e de Babaçu é Imaculada Conceição

(08/12). Além das festas dos padroeiros das aldeias, existem também as festas promovidas pelos

diferentes grupos domésticos, que escolhem cada um os santos de sua preferência para a realização

de cultos. São estas festas que compõem o complexo ritual.

Iremos agora descrever uma situação social que auxiliará na composição da nossa

etnografia. É a descrição de uma festa de santo, realizada na aldeia Argola. A festa de santo

começou com uma novena, ou seja, um rito católico que dura, nove dias. A novena culmina com a

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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festa de santo, neste caso, realizada no dia 12/10, dia de Nossa Senhora Aparecida, santa padroeira

da aldeia Argola. No total, foram 11 dias de atividades rituais.

No dia 02, às 19:30h pude acompanhar o início da novena. Chovia nesta noite. Ela consistiu

na concentração na Capela de Nossa Senhora Aparecida. Quem conduzia a cerimônia, foi Aldo da

Silva, morador da Argola, dirigente da Igreja Católica. A princípio foi feita à leitura da bíblia;

depois foi realizada uma procissão até uma casa (de um irmão de Alcindo Faustino, pastor da Igreja

Assembléia de Deus Indígena). Na procissão, se cantavam algumas músicas cristãs e eram recitadas

algumas orações. A imagem da Santa era conduzida na frente, encabeçando a procissão. Ao se

chegar a casa, a imagem da Santa foi colocada na sala sobre uma mesa, e a algumas pessoas

entraram, outras ficaram pelo lado de fora. Lá foram rezadas algumas orações, as mesmas feitas

durante o trajeto da procissão (de aproximadamente 500 metros, da Igreja até aquela residência).

Depois da distribuição de pão e refrigerante, o grupo de cerca de 30 pessoas ficou ainda

conversando um pouco, e em seguida se dispersou.

Este primeiro dia de novena apresenta a lógica de funcionamento do evento como um todo.

A Festa do Santo começa com a circulação da imagem dos santos pelas casas, pelas unidades

residenciais familiares. A imagem da Santa, no primeiro dia, sai da Igreja em direção a uma casa;

depois a procissão tem início na casa em que imagem fica guardada e vai para outra casa, até

completarem-se nove dias.

Foto 11- Imagem sendo recebida por uma índia Terena.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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Ou seja, a procissão se repete nos demais dias da novena. Pudemos acompanhar também o quinto

dia da novena. Esta consistiu continuação da procissão, que iniciou-se na casa de Teresa Barbosa, e

terminou na casa de outro membro a igreja. A procissão teve inicio com a reza do terço, a leitura da

bíblia; depois as cerca de 35 pessoas, seguiram carregando as imagens e vela, e rezando e cantando

até chegar na casa. Lá a imagem foi levada para dentro, rezou-se uma ave Maria e Pai Nosso;

depois o grupo fez um círculo pelo lado de fora, foi servido pão e refrigerante e lida a bíblia, por

Nério José, um dos diretores da Igreja. Depois foi encerrada a atividade daquele dia.

No dia seguinte, às 19:30 h participamos da novena novamente. Ela teve inicio na casa de

Teresa (não consegui identificar o sobrenome), onde havia terminado no dia anterior; o rito foi o

mesmo, oração, leitura da bíblia e saída em procissão até a casa agora de Rufino Candelário (um ex-

cacique, membro de uma das famílias mais importantes da Argola). Chegando lá uma mulher pegou

a imagem da Santa e a colocou num pequeno altar dentro da casa; foram rezadas a ave Maria e Pai

Nosso, seguiu-se à leitura da bíblia e a palavra de alguns dirigentes da Igreja Católica. No dia

seguinte a procissão sairia dali, da casa de Rufino Candelário para a de Mauricio Candelário. No

último dia da novena, que não pudemos acompanhar (porque o horário foi mudado sem que

tomássemos conhecimento) a procissão sairia da casa de uma das famílias e retornaria a Capela de

Nossa Senhora Aparecida, um dia antes da festa da santa.

O Dia do Santo

O início da festa se deu logo pela manhã. Ao mesmo tempo em que se comemoraria a festa

da Santa, se comemorava a festa do “dia das crianças”, neste dia 12 de outubro. Por isso, na

programação da festa, a primeira atividade do dia seria a dança do bate-pau, mas com um grupo

exclusivamente composto por crianças. A concentração se deu na casa de Laurindo da Silva, pai de

Aldo da Silva, as 8:50h aproximadamente. Começaram a chegar às crianças que dançariam o bate-

pau. Eram 20 crianças, dez em cada coluna, azul e vermelha (xumono e sukrekeono). Saem

andando em formação pela aldeia: 2 colunas paralelas, cada um deles dava um toque no chão com

seu bastão e uma batida no bastão do companheiro da fila contrária. O destino seria também as

casas dos moradores locais. É feita uma primeira parada na casa do ex-cacique Tomás Martins, lá

eles dançam e recebem bolo e refrigerante. Depois saem e vão para a casa de outro ex-cacique, o

Rufino Candelário. Também dançam e é distribuído refrigerante e bolo para as crianças, em seguida

o grupo saiu e voltou para a Igreja Nossa Senhora Aparecida. O corpo de uma senhora, que morrera

no dia anterior, estava sendo velado e foi retirado para sepultamento naquela hora. Logo após teve

inicio o culto/missa, conduzidos por Estrogildo e sua Esposa, dirigentes da capela nossa senhora do

Perpétuo Socorro, da Sede.

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As crianças do bate-pau entraram e ficaram sentadas nas primeiras fileiras de bancos. Um

grupo de três jovens tocava musica e foi feita a leitura da bíblia e pregação. As 10:3h, mais ou

menos, foi encerrado o culto e reiniciado o bate-pau pela aldeia, o grupo retorna a casa de Rufino

Candelário, e ganham doces e refrigerantes. Saem e vão para a OCA (espaço do centro comunitário,

construído dias antes da festa), lá dançam os demais passos (o torneio de futebol já estava sendo

realizado paralelamente, com jogos acontecendo no campo ao lado da OCA). Cerca de 80 pessoas

assistiam a festa da Santa neste momento. O grupo sai novamente e vai para a casa de Carlito

Antonio, ao lado da Igreja Assembléia de Deus Missões. Dançam e recebem bolo e refrigerante e

doces. Voltam para a OCA e fazem alguns dos demais passos da dança do bate-pau; é feito o

batismo das crianças que dançam pela primeira vez. A dança se encerra com o "acenar dos lenços".

Ás 17:30h o grupo volta a casa de Laurindo da Silva, dançam, ouvem palestra dele (que tocava o

tambor) e é feito o encerramento.

Foto 12- Culto na Capela com o “Bate -Pau”.

Durante à tarde, foi realizado um torneio de futebol, reunindo times de Argola, dos demais

setores de Cachoeirinha e também de Campo Grande, vindo várias pessoas da Aldeia Urbana

Marçal de Souza para participarem da festa do Santo. Ás 19h, foi realizada uma procissão, sendo a

imagem da Santa Nossa Senhora Aparecida retirada da Capela, e levada até a “OCA”, que acabara

de ser construída. Cheguei por volta das 20h e a imagem de Nossa Senhora Aparecida já estava

fixada sobre uma mesa ao lado da OCA, numa casinha que faz parte do centro comunitário. Um

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grupo de cerca de 30 pessoas estava reunido em torno da imagem da Santa. Os coordenadores da

Igreja Católica, Nério José e Aldo da Silva falaram. Também falou o ex-cacique Rufino Candelário.

As pessoas se aproximaram e acenderam velas aos pés da imagem encerrando-se a cerimônia

religiosa.

A noite aconteceria ainda um baile, com dança de quadrilha e música regional. Os bailes são

atividades esperadas. Mais de 40 pessoas dançavam nos grupos de quadrilha, ao som de música de

uma banda contratada em Aquidauana. Cerca de 80 pessoas se reuniram para assistir a quadrilha

(pessoas de Igrejas Evangélicas também estavam presentes, como da Igreja Assembléia de Deus

Missões e Indígena) assistindo e participando da festa. Depois de encerrada a dança de quadrilha,

teve inicio o baile, que vai até às 5h da manhã.

A Estrutura do Ritual da Festa de Santo.

Estamos chamando aqui de estrutura do ritual, o ordenamento das atividades (partes

componentes e seqüência de execução) e as relações entre elas, realizadas ao longo de vários dias, e

que se encerrou no dia 12/10, com a festa de santo. Podemos dizer que as “festas de santo” em

Cachoeirinha (e isto é válido para todos os setores), são compostas por um núcleo mínimo, com

seguintes atividades/ações: 1) novena, conjunto de ritos cristãos, realizados na fase que antecede o

dia do santo; 2) dança do bate-pau (hyokixoti-kipahê), realizada na manhã do dia da santa padroeira;

3) culto, realizado na igreja; 4) torneio de futebol, realizado na parte da tarde do dia do santo; 5)

procissão, realizada na noite do dia do santo, e imediatamente antes da ultima atividade; 6) as

danças (incluindo dança de quadrilha e baile com música regional). Nas festas participam os

“festeiros” (que promovem a festa, pagando suas despesas) e os “promesseiros”, que são aqueles

que fazem as promessas ao santo.

Estas atividades integram, de acordo com entendimento que estamos fazendo dos dados, um

determinado complexo ritual. Elas não devem ser vistas isoladamente, mas sim em seu conjunto.

Podemos dizer que, seguindo o que foi indicado por Cardoso de Oliveira, os Terena tem uma

cultura que articula dinamicamente as dimensões do sagrado-profano. Mas para além desta

distinção, que tem também um valor analítico real no caso Terena, e que poderíamos dizer ajuda a

classificar as atividades do ritual da festa de santo, na verdade no interessa mais identificar a

articulação concreta possibilitada por estes ritos, entre diferentes tradições culturais, no caso o

cristianismo e o xamanismo, e também a articulação de redes sociais e de parentesco, que vinculam

a dimensão mágico-religiosa a dimensão política da vida do grupo.

No caso da Argola, é importante registrar a história da própria festa. Pelo que pudemos

levantar, a festa da padroeira local teria tido início em 1973, quando a imagem de Nossa Senhora

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Aparecida foi doada para a comunidade local. Nesta ocasião, o dirigente da Igreja Católica era João

Felipe, hoje um conhecido curandor/koixomuneti, que reside em Argola. As festas de Santo dos

Padroeiros da comunidade são festas tradicionais dos Terena. Mas não são somente as festas de

padroeiro que são realizadas ao longo do ano. Na verdade, a festa de santo da Comunidade,

acompanham festas dos santos preferidos das famílias, ou mesmo, dos curandores, que as

promovem com regularidade ao longo do ano. As festas de santo são promovidas como

“pagamento” pelas curas realizadas pelos koixomuneti, e como forma de manter a relação de troca

e proteção deste com o santo, e também com o curador/koixomuneti ou benzedor.

Ou seja, as festas de santo, não são apenas uma festa cristã, tal como vivenciadas na

experiência das relações comunitárias Terena. O rito, cristão-católico, se articula com as práticas e

crenças xamanísticas, especificas do grupo étnico. A incorporação das festas de santo se faz não

pela supressão automática das práticas e crenças mágico-religiosas relacionadas ao xamanismo, mas

ao contrário, se processam também através da mediação do xamã, o curandor/koixomuneti. Com

relação a este tópico, é interessante observar, por exemplo, a origem da festa de santa cruz.

Em certa ocasião, ouvimos uma narrativa de Elias Antonio, morador da vila América, ex-

diretor da Igreja Católica da Sede, que a festa de santa cruz teria sido motivada, por uma tragédia.

Uma epidemia atingiu Cachoeirinha, e várias pessoas teriam morrido.

E a data de Santa Cruz, por exemplo. Por que comemora Santa Cruz? A Santa Cruz, antigamente morre muita gente, né. Enquanto não tem a Santa Cruz, morre muito, criança, idoso. Aí tem um velho, pajé, então viram esse movimento daqui, aí entrou na igreja, aí ele viu que não nada aqui na igreja. Então saiu na rua, ele viu que tá faltando a Santa Cruz. Por isso que a juventude, os velhos, a gente morre. Porque não tem Santa Cruz, por isso. Então chegou, assim, em casa, conversou comigo. Eu morava lá em cima ainda, chegou lá e mandou fazer essa Santa Cruz. Aí levantei, conversei com comunidade, velho, idoso né, aí concordou. Então, por isso, levantei a Santa Cruz. Fui eu que levantei. Eu que mandei. Qual era o nome do pajé que procurou o sr lá na Igreja? Gonçalo, que chama.

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Foto 13- Festa de Santa Cruz/2003.

O koixomuneti era Gonçalo Roberto, reconhecido como maior pajé de Cachoeirinha nos

anos 1950. Ele teria feito um trabalho, “chacoalhando” a purunga para ver as causas daquela doença

ter atingido de forma tão trágica o grupo. Ele teria descoberto que aquela doença teria atingido o

grupo por eles terem “descuidado” de dar a festa de santa cruz. A solução apontada pelo

koixomuneti foi construir uma capela de santa cruz, como forma de retomar a relação com o santo e

eliminar a “causa” das doenças e mortes, que não estavam no mundo material, e não se deviam a

condições médico-sanitárias, mas sim mágico-religiosas. É importante observar que “Santa Cruz” é

uma festa importante para todo o município de Miranda, não somente Cachoeirinha, mas que é

assim re-significada dentro do espaço aldeão, a partir da mediação do xamã e da cosmologia

indígena.

Além desta articulação entre diferentes tradições culturais, através da festa de santos, temos

também a articulação de variações de uma mesma tradição cultural, no caso o protestantismo, com a

festa. Como afirmamos em outro momento, as Igrejas Evangélicas se localizam na maior parte dos

casos, nas unidades domésticas. E uma das casas em que o “bate-pau” fez passagem, foi a de Carlito

Antonio, um dos dirigentes da Igreja Assembléia de Deus Missões. Outro elemento importante é a

participação dos membros das igrejas evangélicas na festa, principalmente nas atividades profanas,

como baile e dança de quadrilha. Esta postura deve ser observada em contraste com a própria

construção das igrejas evangélicas; normalmente a sua identidade se marca por uma série de

proibições adotadas como regras de conduta, e que fixam um tabu em relação a estas atividades

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(tanto mágico-religiosas quanto profanas). Cremos que este é um ponto importante de se observar,

porque o recrutamento das Igrejas Evangélicas se faz a princípio com base nesta regras, mas depois

estas mesmas regras se tornam motivos para crises e rupturas dentro delas, e freqüentemente são

abandonadas pelas próprias Igrejas101. Cremos também que é preciso correlacionar este fenômeno

com o contexto sócio-cultural do grupo dentro da situação histórica, com o conjunto de

acontecimentos históricos e tradições culturais que se territorializam nos espaços de circulação do

grupo étnico.

As Festas de Santo possibilitam a visualização de uma articulação social, entre famílias e

indivíduos que residem fora das reservas, principalmente na capital do estado, Campo Grande, e as

relações comunitárias aldeãs e o complexo-ritual local. Esta participação é um fato regular, e tem de

ser observada com toda a atenção. Os indivíduos e famílias migrantes (ao contrário do que a visão

dos estudos de aculturação/assimilação indicavam), não perdem necessariamente seus laços e suas

obrigações para com o grupo. Isto porque a “distância concreta” destas famílias para com o

território do grupo, é muito reduzida (considerando a relação Campo Grande/Miranda ou Pantanal).

Desta maneira, se existem fluxos aldeia/metrópole, a princípio por motivação econômica, existem

também fluxos regulares metrópole/aldeia por motivação sócio-cultural, que são as visitas e a

participação regular no complexo-ritual local (como festas de santo, dia do índio e oheokoti).

Tivemos a oportunidade de conversar informalmente com uma mulher, nascida e criada em

Cachoeirinha, e que hoje mora em Campo Grande com seu marido, um purutuye (branco), e filhos.

Esta mulher é irmã de Luis Carlos Antonio, e foi na casa deste durante um jantar, que pudemos

conversar com ela e sua família. Ela disse que mora em Campo Grande há 30 anos, inicialmente

trabalhou como empregada doméstica. Disse ainda que não acostuma mais de morar na aldeia, que

só fica uns poucos dias, mas que sempre vai para lá com os filhos nos dias de festa, como aquele.

No meio da conversa, surgiu uma história sobre um “lobisomem” que estaria aterrorizando a aldeia

e sobre o perigo de circular a noite na aldeia e uma mulher, parente do seu marido (que é um

branco) que a estava acompanhando questionou “se isto existe mesmo”. A Terena afirmou com toda

a convicção a existência de tal ser, e que as estórias eram realmente verdadeiras.

Devemos observar que, de acordo com as crenças xamanísticas Terena, o

curandor/koixomuneti, tem o poder de se transformar em animais. Não foi a primeira vez que

ouvimos estórias sobre lobisomem em Cachoeirinha. Altenfelder Silva considerou isso como uma

demonstração da “mudança cultural”: “Os índios Terena de Bananal as suas antigas crenças 101 Isto é o caso da Assembléia de Deus Indígena. Conversando com Evanildo Faustino, músico da igreja, filho do Pastor Alcindo Faustino, ele comentava em tom irônico, sobre as regras indumentárias rígidas de usar calças longas e roupas largas para cobrir o corpo, e disse : “se deus quisesse que eu usasse calça, não mandava um esse calor de 40º”. Isto mostra como estas regras são manipuladas e subvertidas para este contexto local. Outro exemplo, é o de Fernando Pereira, vice-cacique da aldeia Morrinho, e que seria segundo informações um curador (ou benzdedor). Ele se converteu a Igreja Assembléia de Deus Emanoel, liderada por um primo e adversário do cacique Isidoro Pinto do Morrinho, mas apesar disso, nos disse Isidoro, continua atendendo e realizando “curas” quando procurado pela população local.

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substituídas em parte pelas crenças bíblicas e pelos mitos caboclos. Em Bananal poucos índios

serão capazes, de explicar quem eram Yurikoyuvakai, Voropi,Vanuno ou Hihiai-uné. Em

compensação quase a totalidade conhece casos de assombração causados pelo lobisomem ou pela

mula sem cabeça” (Altenfelder Silva, 1949, p. 359).

Durante esta etapa de campo, ouvimos várias vezes narrativas sobre isto. Podemos citar

uma, para marcar a relação desta narrativa em relação às crenças mágico-religiosas:

Morreu, o culpado, foi aquele que eu falei, um fulano da Cachoeirinha. Você não conhece o finado Belinho?. Morreu aquele rapaz, um homem forte, não tem nada para sentir, morreu, mas a família dele sabe que ele foi matado, quem que matou o curandor, O Leocádio foi isso também. Não sei por que não tem coragem aquele família, não sei porque, por isso que ele acostumou aquele cara, acostumou ninguém mexer ele (...) Ali no mata -burro de repente, apareceu um bicho, ali, lobisomem, diz que lobisomem eu não sei o que é, a noite né ...na primeira, ele veio assim oito hora, um bicho grande, para cerca ele na estrada, não quer passar, cercou um rapaz, voltou, não foi embora os que quando foi de dia ele falou para nos... no outro dia o meu filho ele trabalha para FUNASA, o meu filho encontrou o bicho...mas ele tem coragem, ele parou, parou para enfrentar ... ai o bicho ...quando ele tem coragem,pulou para fora de estrada... e dali acabou (...) ai aquele morador perto de mata-burro, viu ele ali no pé de caju ali.(...) E o bicho ali, o lobisomem,e quando ele buscou um pau e jogou, ai pulo no mato e aí acabou ...Aí outro meu filho aqui, meu pai vamos a no mata-burro ali a noite, vamos cuidar dele, vamos esperar.(...) Aquele fulano sabe o que você ta ideiando aqui (...) o meu filho queria esperar lá perto de Cachoeirinha, porque nós tamos sabendo vem de lá, de lá da Cachoeirinha, quando escurecer vamos lá, assim que ele falou . Mas aquele bicho já sabe o que nós tamos ideiando aqui. Diz que ele falou, óia aquele família eu não vou facilitar, eu não vou mais ir lá, é algum pessoal que fala para nós ... é verdade que parou mesmo...O meu filho falou para mim, se fosse a gente mesmo, eu não quero saber, eu ia atirar ele, mas diz que ele ta sabendo, o curandor ele sabe para olhar aquele frente ...(Isidoro Pinto, Morrinho, Setembro de 2004).

Vemos no depoimento, que o “lobisomem” é um curandor que age dentro da aldeia. Conversamos

filho de Laurindo da Silva, que também mora em Campo Grande onde trabalha como carregador, e

que estava ali para participar da festa do santo. Ele diz que sua família inteira morou em Campo

Grande. No entanto, sua família voltou para Cachoeirinha porque sua irmã ficou doente precisava se

tratar com um "curador". Segundo ele o tratamento deu certo, “pois ela está aí até hoje", disse.

Estes casos servem para ilustrar como se mantém uma participação importante de parte das

famílias migrantes para a metrópole Campo Grande, através disto que estamos chamando de

complexo ritual local. Este complexo seria composto por um conjunto de festas: as Festas de Santo

(incluindo os padroeiros das aldeias, e as festas de santo familiares), a Festa do Dia do Índio, e a

Festa do Oheokoti. Mesmo nas festas de santo, é ritualizado o hiokixoti kipahê, de maneira que o

mito da guerra do Paraguai está sempre presente.

Além destas duas articulações, devemos chamar a atenção também para a articulação ritual-

política. As atividades das festas de santo servem também para ilustrar esta relação. A presença de

um ex-cacique, e importante liderança política na condução do rito da festa, especialmente na

procissão final da festa de Nossa Senhora Aparecida, não é ocasiona l. Na verdade, ao que nos

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parece, tanto as atividades rituais religiosas podem ser uma base para a ascensão política das

lideranças (e são também uma forma de liderança política), quanto às atividades políticas se apóiam

ou exigem uma participação nestas atividades rituais. Além do caso de Rufino Candelário, ex-

cacique e líder de uma família extensa importante em Argola, a família Candelário. Podemos citar

também o caso de Argemiro Turíbio, que também conduziu uma festa de santo, a Festa de Santa

Cruz, no ano de 2003.

Argemiro é neto de Lino de Oliveira Metelo, um ex-cacique e “grande”

curador/koixomuneti, de Cachoeirinha, segundo o depoimento de diversas pessoas. Segundo as

informações que dispomos, e que abaixo poderemos sistematizar, os “caciques” são sempre

lideranças religiosas ou tem em suas redes de parentesco relações diretas com xamãs ou com as

igrejas. Existem indícios que nos levam a crer que o status religioso é um dos fatores, mas não o

único, a servir como base de legitimação política de um líder.

Desta atividade concreta, a festa de santo, podemos destacar estes três elementos: 1) a

articulação de diferentes tradições culturais (ritos e mitos), dentro da vida aldeã Terena; 2) a

articulação social entre os indivíduos e famílias em situação de “diáspora urbana”, com as relações

comunitárias étnicas, o que indica uma profunda vinculação sócio-cultural do grupo étnico em

diferentes situações de territorialização, através de redes de parentesco ; 3) a articulação ritual

(religião)/política, como uma das características fundamentais da organização social e cultura

Terena.

O complexo ritual cria um circuito de trocas permanente ao longo do ano: as festas de santo

em que são realizadas “trocas” entre os grupos domésticos e os santos, através da mediação das

igrejas e curadores (ou seja, há uma permanente troca de símbolos e signos); o Dia do Índio se

apresenta como outro destes momentos, mas não o único. Além disso, o rito do hiokixoti-kipahê é

encenado em todas as ocasiões importantes, o que faz que isto ocorra várias vezes no ano. Este

complexo ritual expressa também algumas das relações e características estruturais da atual situação

histórica, de forma que as ações expressivas e o discurso indígena só fazem sentido a luz desta

mesma situação.

4.4 - As Tradições Culturais, Experiência Histórica e Relações de Poder.

O funcionamento das tradições culturais e organização social Terena na atual conjuntura

histórica mostra que não podemos separar a sociedade Terena da experiência da mudança social e

histórica, pois essa sociedade é produto e soma de tais mudanças. Nesse sentido, a interpretação da

cultura e organização social, não pode ser dissociada da análise das relações de poder e das

condições materiais de experiência das coletividades.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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A reconstrução da “cultura Terena no tempo do Chaco”, feita a partir da ótica das teorias da

aculturação/assimilação, ignorou uma série de elementos importantes, e levou a uma interpretação

equivocada dessas relações. Supô-se que as relações entre sociedade indígenas e sociedade

nacional, desde que foram estabelecidas, iniciaram um ciclo de declínio sócio-cultural dos povos

indígenas, quando a análise da história Terena mostra que isso não é verdade. Na realidade,

devemos observar primeiramente que a cultura (certos rituais simbólico-expressivos e formas de

organização social) estavam associadas ao tipo de balanceamento de forças no sistema social

indígena, ao tipo de equilíbrio de poder estabelecidos entre índios e forças coloniais, o que

implicava em modos históricos de acesso aos territórios e recursos naturais. Ou seja, a cultura e

organização social eram interdependentes das relações de poder e condições materiais de existência.

Duas teses foram apresentadas para interpretar, por exemplo, a organização social Terena. A

de Altenfelder Silva, sugere uma organização dos Terena em “quatro classes”: os “naati”, os

“wharé-chané”, os “cauti” e os chuna-axeti (Altenfelder Silva,1949,p.286). Cardoso de Oliveira faz

uma crítica desta interpretação, levantando a hipótese de que na verdade a organização social

Terena teria uma divisão “tríplice e assimétrica” (naati”, os “wharé-chané”, os “cauti”) baseada no

status político, e uma “dual e simétrica” baseada em regras rituais; os chuna-axeti não constituiriam

uma camada de status, mas sim um segmento dos “naati”.

O que nos interessa é discutir os pressupostos sobre os quais são estabelecidas as

interpretações acima. Supõe-se, ou parece que supõe-se (mesmo que implicitamente) que esta

organização social se definiu por si própria, quando na verdade, não podemos compreender esta

organização social sem levar em conta todo sistema e dinâmica de relações existente dentro do

Chaco/Pantanal. Isto porque os “cauti” eram uma categoria do sistema do Chaco Pantanal, e não de

um grupo específico. “Cativo” era a designação que os Mbayá-Guaicurú atribuíam aos “Terena”, e

sua posição social e simbólica dentro do sistema do Chaco Pantanal. Outros povos também eram

periodicamente vitimas de ataques Mbayá que visavam adquirir “cativos”, seja para realizarem

trabalhos para eles, seja para serem negociados nas povoações espanholas e portuguesas.

Quando o sistema indígena é desarticulado e é estabelecido um maior controle sobre a sua

força de trabalho, inevitavelmente essa estrutura é modificada, mas isso se dá somente nas últimas

duas décadas do século XIX. Durante cerca de 80 anos, existiu um padrão de inter-dependência

entres os índios e as forças coloniais em que o Estado tolerava a autonomia relativa dos índios e

coexistia com a alteridade étnico-cultural. A figura dos “cativos” desaparecem progressivamente –

enquanto categoria social de trabalhadores agregados – com o desaparecimento do poder de guerra

dos índios. Com relação à divisão da sociedade e Terena em duas “metades” (xumono), as

evidências empíricas nunca foram suficientemente fortes para comprovar sua operatividade na

regulação do matrimônio e organização social. Os dados revelam sim que ela esteve associada a um

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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ritual, o “mootó”, que consistia numa briga coletiva perpetrada pelos Terena. Os relatos de Ricardo

Almeida Serra descrevem um ritual idêntico entre os Guaicurus, e que estaria associado as festas e

as atividades guerreiras. Nesse sentido, o ritual estava associado às “correrias”, à “captura”, às

“festas”, de maneira que a divisão “cerimonial” também expressava uma dinâmica e uma

experiência histórica particular. O desaparecimento desse ritual, já que o último teria acontecido em

1910 (ver Cardoso de Oliveira, 1976), se deu no momento de formação das reservas e na

consolidação da subjugação dos índios Terena, privados de qualquer possibilidade de práticas

guerreiras.

Ao mesmo tempo, no final do século XIX (no ano de 1898) o comerciante J Bach visitou

várias aldeias de Miranda, e descreveu a existência do Oheokoti (festa das plêiades que coincidia

com a “semana santa”) e também uma dança, realizada por homens e mulheres, comandada por

“dois caciques” e que consistia em “bater taquaras”. Também narra a figura do “koixomuneti ou

cacique”, como “chefe hereditário”. No final do século XIX, já existia uma “reelaboração da cultura

e organização social em curso, que se consolidaria na situação de reserva. Ao contrário da situação

de “eminente perda de cultura” – elemento do discurso indigenista e das teorias da

aculturação/assimilação – o que vemos é que na realidade, seria uma hipótese plausível indicar que

depois da destruição do sistema indígena do Chaco – com a mudança no balanceamento de forças

entre índios e Estado-Nacional, e das formas de acesso ao território e recursos naturais – a cultura e

organização social do grupo passou por um processo de mudança e adaptação aos novos padrões

históricos das estruturas de poder e condições materiais de existência. E mais, como essas condições

pouco se alteraram no último século, as mudanças culturais verificadas são muito reduzidas, de

maneira que expressam a combinação de tradições culturais e estratégias políticas indígenas

(através da difusão de sub-tradições como protestantismo indígena e a re- interpretação de símbolos

e signos nacionalistas).

A etnografia de Cachoeirinha na atual situação histórica permite ver a coexistência de duas

tradições culturais que se articulam a partir de uma cosmologia comum, que fornece os elementos

mínimos de significação e simbolização. A cosmologia Terena, centrada na concepção de que os

vivos e os mortos estão num mesmo plano, numa mesma comunidade, de que existem espíritos

(koipihapati) bons e maus, tanto de seres humanos quanto de animais, e que estes podem se

comunicar e interagir com índios, através de curandores, benzedores e pastores. A crença nestes

espíritos explica tanto certas atividades mágico-religiosas dos xamãs, quanto das Igrejas Católicas e

Evangélicas. Neste sentido, podemos falar que pela concepção Terena de cura e doença, existem

dois planos que não entram em contradição: o das doenças que são provocadas por espíritos

(encosto), e as doenças provocadas por causas naturais. Os tratamentos não se chocam, os saberes e

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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os poderes não se excluem (ver Carvalho, 1996)102. Assim é possível trabalhar simultaneamente

com uma pluralidade de referências culturais (cosmologia cristã, cosmologia Terena) e processos de

cura (mágicos, médicos) sem que isto implique em uma abdicação permanente de alguma das

referências. Existe uma crença comum, para católicos e evangélicos, de que os “espíritos”causam

doenças e que os “pajés” curam, de maneira que elas intervém oferecendo uma alternativa de

proteção e cura dentro da comunidade.

O elemento fundamental do modo de distribuição do conhecimento e materiais do

xamanismo, enquanto tradição cultural, é que ele se dá num circuito relativamente fechado,

marcado pelo segredo, e suas formas de transmissão obedecem a regras que o próprio koixomuneti

estabelece. Mas os parentes de um koixomuneti podem herdar tais conhecimentos e materiais, que

se adquire também pelo exercício como “ajudante”. Além disso, um espírito de um morto pode

exigir que seu familiar retome seu trabalho, e continue sua tradição, de maneira a perseguir os vivos

para realizar trabalhos com “a purunga”. Isto em tese significa que pode haver hiatos geracionais na

reprodução desta tradição, de maneira que uma geração pode ficar sem koixomuneti, e eles

ressurgirem, seja porque um descendente decide reativar estes conhecimentos e ritos invocando o

espírito de um morto, seja porque o próprio espírito obriga os vivos a fazerem isso. As

características do koixomuneti normalmente se manifestam nos homens e mulheres idosos, o que

significa também que ao longo da trajetória de um individuo, ele pode ser estudante, trabalhador

rural, evangélico e só manifestar as características de um xamã, depois de passar por estas

experiências diversificadas e multi-culturais. A inadequação da teoria da aculturação se mostra por

completo quando consideramos estes elementos.

Isto tem também uma outra conseqüência importante. Significa que o xamanismo Terena

tem uma organização estratificada: de um lado, estão os koixomuneti, que comandam o processo de

cura e realizam a comunicação com os espíritos; de outro estão os pacientes, que usam os saberes e

poderes destes. A diferença da distribuição do conhecimento destes é expressiva. Os conhecimentos

de um curador sobre o xamanismo são muito maiores do que o da média da população indígena.

Resulta disso também que a relação com curador, se dá pelo poder de cura que este detém.

As Igrejas Evangélicas se moldam em grande parte dentro da cosmologia Terena, das

crenças nos koipihapati, que implicam na aceitação de uma cosmovisão especifica, forjada pelos

ritos e praticas xamanísticas. O fato das Igrejas Evangélicas terem se constituído em grande parte

pela cisão faccional da Igreja Católica, faz com que muitos dos pastores ou dirigentes de Igrejas

Evangélicas tenham algum conhecimento do xamanismo, quando não são profundos conhecedores.

Como no caso de Anésio Pinto, mesmo sendo um dirigente da Igreja UNIEDAS, tem algum

102 A autora analisando as práticas de cura entre os Terena de Bananal, chega à conclusão de que eles operam em dois sistemas distintos, dois tipos de doença que demandam intervenções diferentes; as doenças naturais e sobrenaturais, sendo que os tratamentos podem ser mesmo complementares.

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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conhecimento sobre o xamanismo por ser filho de um pajé, e manifesta respeito para com estes. Ou

ainda o próprio Lourenço Muchacho, que recentemente aderiu a uma Igreja Evangélica, tornando-se

inclusive seu dirigente.

Entendemos que se por um lado não devemos entender a proliferação do protestantismo e do

cristianismo em geral, como uma forma de supressão do xamanismo, tão pouco correto seria

considerar o cristianismo como uma forma “externa” ao grupo. Na realidade estamos considerando

aqui tanto o xamanismo como o cristianismo, como formas simbólico-culturais que só existem por

processos concretos de combinação (de símbolos e significados). Os Terena estudam a bíblia,

ouvem durante quase todo o dia rádios com músicas e programas evangélicos, participam de

encontros, estudam em seminários e cursos de teologia, enfim, estão profundamente inseridos na

simbologia e nas práticas cristãs, tanto quanto qualquer comunidade do campo ou da cidade,

naquela região do Mato Grosso do Sul. Eles entram em choque em muitas vezes com os caciques

para poder ter o direito de construir tendas ou templos das Igrejas, dedicam-se a articulações

políticas que visam angariar recursos para melhorar as edificações destas igrejas (transformando-as

de tendas de palha em construções de alvenaria), e dedicam uma parte importante de seu tempo

semanal as atividades das igrejas (cultos, vigílias, grupos de oração e etc). Muitos inclusive já

viajaram para trabalhar como Missionários junto a outros povos indígenas, como é o caso de

Quintino Mendes, que morou alguns meses com os Xavante, em Mato Grosso, com o objetivo de

desenvolver o trabalho missionário da Igreja Evangélica Indígena UNIEDAS. Logo, os Terena são

efetivamente cristãos, já que eles adotam ritos e mitos oriundos desta cosmologia, e a empregam e

reproduzem. Entendemos que a interpretação que mais se aproxima da realidade empírica é aquela

que considera a coexistência de duas tradições culturais, o xamanismo católico – que é a forma que

a experiência histórica da conquista colonial e das reações político-culturais indígenas deram ao

xamanismo Terena- e o protestantismo indígena, já que tanto a organização social quanto os

significados simbólico-culturais dependem da prática indígena como se verifica no contexto local.

Poderíamos dizer que a “grande tradição” o cristianismo se implantou dentro de

Cachoeirinha, sob a forma de duas sub-tradições. Mas ambas as sub-tradições foram submetidas a

um processo de interiorização e resignificação dentro do contexto aldeão, de maneira que se

subordinam em aspectos muito importantes a conceitos/signos chave da “pequena tradição”. A

“pequena tradição” predomina no contexto local, no processo de construção social do significado da

experiência, já que mesmo as Igrejas Evangélicas precisam atuar no combate a doenças

sobrenaturais e aos espíritos dos mortos e da natureza. A grande e a pequena tradição não se

encontram separadas de forma nítida, ao contrário; tanto a organização social indígena é veículo de

transmissão e reprodução da “grande tradição”, quanto às instituições (como as Igrejas e seus

símbolos) podem ser meios de reprodução e comunicação das crenças xamanísticas. Essa

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Capítulo 4 - Mohikéna, Ipuxóvoku

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sobreposição de identidades e territórios (étnicos e nacionais), articulação experiências e estruturas

de poder, intercambio de símbolos e signos, tem um profundo impacto político.

Um outro elemento importante é a percepção da operatividade das unidades sociais (os

grupos domésticos e os grupos vicinais) na construção das relações sociais e culturais dentro da

aldeia. Os mesmos critérios de diferenciação irão operar dentro da dinâmica política como

poderemos ver, expressando-se inclusive sob formas simbólico-culturais, e explicando em parte a

articulação e conflito entre as diferentes tradições. Dessa maneira, vários pontos de conexão

estabelecem-se entre cultura e política, tradições de conhecimento e faccionalismo.

Estas questões são ainda mais importantes quando consideramos a dimensão política da ação

simbólica. Com relação aos significados e narrativas atribuídos pelos indígenas à dança do bate pau,

podemos dizer que realizam a articulação de duas expressões simbólicas, uma nacional-estatal e

outra indígena, dentro do ritual do Dia do Índio. A identidade étnica se sobrepõe à identidade

nacional, mas por meio de uma interpretação indígena, que estabelece um status privilegiado para

os Terena na construção da Nação. Ao mesmo tempo em que se afirma à idéia de “resistência” se

delineia um projeto de colaboração política com as agencias estatais. Ao mesmo tempo em que os

índios invertem a idéia de “incapacidade” estruturante da tutela, assimilam as narrativas triunfalistas

do Estado-Nacional. Essas contradições não somente expressam a dinâmica política, mas fazem

parte dela. Os discursos indígenas, do cacique, chefe de posto e professor (e notemos que antes o

papel de professor e de chefe eram a materialização da “sociedade nacional” frente aos índios como

elemento superior e exterior) apontam para a afirmação da capacidade política indígena, do

protagonismo étnico.

Essa noção de protagonismo étnico se desdobra em dois movimentos distintos; a formulação

de uma narrativa que toma a noção de “resistência” como um operador central para a construção da

memória e história indígena, mas vejamos, uma noção de resistência “romântica”, derivada da

concepção sertanista do antigo SPI; e a defesa de um projeto político, o da “ocupação de espaços” –

dentro dos órgãos de Estado - a transformação dos índios em funcionários, ou seja, uma das muitas

expressões locais para designar o que estamos chamando de “co-gestão” indígena. Ao mesmo

tempo, essa narrativa não se cristaliza somente nos discursos das lideranças, mas também na própria

organização do “bate-pau”, na mito-história interna da dança que evoca ao mesmo tempo elementos

históricos – a experiência indígena da colonização – e míticos – já que personagens como Kali Sini ,

representam não somente pessoas históricas, mas entidades sobrenaturais. É por isso que uma

análise etnográfica que não dê atenção devida para estes elementos, pode não conseguir superar o

“semantical gap”, que Roberto Cardoso de Oliveira detectou na sua comunicação pessoal com os

Terena nos anos 1950.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Capítulo 5 - Centralização estatal/descentralização faccional: a organização política Terena.

“Para concluir, quero deichar meu parecer: em resumo, de que ouvi durante a reunião e posterior na reunião em Campo Grande, na Delegacia Regional, FUNAI ficou bem claro/que os indígenas estão numa individualidade tensa e uma grande procura do poder e status, não se preocupando nem mesmo com seus compatriotas, e que teremos daqui pra frente uma dura batalha para terminar, ou melhor para acompanhar com muita habilidade, vista tentar não deichar estravasar os limites. Acho eu os indígenas, particularmente os nossos Terena, estão muito politisados, cada um fasendo seu jogo/disendo que está coesos, juntos, na realidade, isto só aparente/na verdade é um passando “seu” o outro para traz defendendo o seu interesse próprio, acredito piamente, não ser de sua própria cultura, mas sim de uma política divercificada de várias entidades política, religiosa e outras que vem causando esta individualidade como já disse; em outras palavras, o índio não sabe mais a quem acreditar, são tantos os donos da verdade?

Relatório do Encarregado do Posto Cachoeirinha, 1982.

Neste capítulo iremos focalizar a dinâmica da organização política Terena, e mostrar como

esta organização se moldou e transformou a partir da “oposição a” e “composição com” as

instituições estatais ao longo do processo histórico de formação do Estado-Nacional, e ao mesmo

tempo, como seu funcionamento hoje é profundamente interdependente dos contextos e processos

societários nacionais e mundiais. Pretendemos mostrar como, de um lado repressão/colaboração, e

de outro, as formas cotidianas de resistência, consistem em estratégias políticas componentes de

uma totalidade e que suas interações concretas constituem a dinâmica política básica inerente ao

regime tutelar.

Iremos isolar aqui dois conjuntos de processos sociais relativos à diferentes relações

políticas e sociais dentro de Cachoeirinha: 1º) os “dramas” ou conflitos de sucessão dos caciques

ou capitães Terena, num período de aproximadamente cinqüenta anos (1960-2006); 2º) os

empreendimentos indigenistas e dramas de cisão que levaram a formação de múltiplas aldeias

dentro de Cachoeirinha, e que expressam a tendência de descentralização e segmentação política

deste grupo indígena. A análise destes conjuntos de processos sociais, permitirá a visualização da

dinâmica política faccional e de como as formas da resistência contra a tutela expressam a fricção

da organização e política indígena com a política indigenista, ou seja, a adaptação de uma política

de um Sistema Estatal a realidade local das aldeias Terena.

No final dos anos 1950 em Cachoeirinha, a morte de um “capitão” deu início a uma “luta

pelo poder”, uma disputa para ver quem ocuparia o Posto de Cacique; isto estaria expressando “o

esvaziamento da autoridade tribal, que não mais seria levada em consideração pelo SPI (ver

Cardoso de Oliveira, 1968, p. 110). Mas esta luta pelo poder não se encerrou; ao contrário, se

institucionalizou, e demonstrou ser um fator estrutural componente do regime tutelar. Na verdade,

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

237

este conflito de sucessão se constituiu apenas num dos “atos” de “dramas sociais” de longa duração.

A luta pela “sucessão” do Cacique se mostra como um fator contínuo na história de Cachoeirinha e

outras reservas indígenas Terena, e expressam as disputas entre facções políticas e grupos

domésticos pelo poder local. Os conflitos entre algumas facções políticas existentes hoje em

Cachoeirinha, organizadas e lideradas por homens como Alírio de Oliveira Metelo, Sabino

Albuquerque e Esídio Albuquerque, remontam diretamente aos acontecimentos verificados nos

anos 1950.

Analisaremos os processos de luta pelo poder na aldeia Sede, tomada como caso exemplar

para análise das formas de ação/reação entre a política indigenista e política indígena.

Demonstraremos que o desaparecimento das antigas formas de organização política não foi

completo e o que se deu a partir dos anos 1950, com a consolidação da situação histórica de reserva,

foi à transformação das categorias sociais e da organização política indígena (em função do regime

tutelar e política indigenista, mas também das estratégias dos grupos domésticos, facções políticas e

lideranças indígenas), num processo dialético em que a centralização estatal combinou-se com a

lógica segmentar e transformando-a numa descentralização faccional.

Os principais conflitos políticos do presente etnográfico, bem como dos últimos 50 anos da

história local de Cachoeirinha só podem ser compreendidos a luz dessa dialética, da interação entre

política indigenista e política indígena e da dinâmica do campo e arenas das relações interétnicas. O

principal objetivo da política indigenista era a imposição da centralização política; os Terena, apesar

de serem sempre vistos como colaboradores do Estado, desenvolveram políticas de resistência

cotidiana a esta centralização.

5.1 – A “luta pelo poder”: dinâmica política de Cachoeirinha.

Em Cachoeirinha, no ano de 2004, existia também uma luta política pelo poder. O cacique

da Sede, Lourenço Muchacho estava enfrentando um movimento de oposição, encabeçado segundo

ele, por uma “associação” existente em Cachoeirinha. O Cacique Lourenço estava travando uma

luta surda com o Chefe do Posto, Argemiro Turíbio, e esse por sua vez fazia várias críticas ao

Cacique e seu desempenho político e administrativo. Cabe registrar que o ano de 2004 era um ano

de eleições municipais e para as câmaras de vereadores e prefeituras. As disputas políticas estavam

profundamente acirradas também por conta das situações sociais verificadas dentro dos campos e

arenas das relações interétnicas. As possíveis alianças com partidos e lideranças políticas do

município afetavam a vida dentro da aldeia.

Pudemos perceber esta situação de maneira indireta, pelos comentários que alguns índios

faziam sobre a necessidade de “tirar o cacique”, pelas conversas e movimentações dentro do Posto

Indígena, onde estávamos hospedados na ocasião. Em certos momentos alguns índios (como Tomás

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Balbino, morador da Vila Cruzeiro) nos chamavam para conversar e colocavam reclamações sobre

o cacique, sobre a possibilidade dele “sair do cargo” antes do fim do seu mandato. A crise estava

tão acentuada, que mesmo as reuniões do “conselho tribal” não estavam sendo realizadas.

Sabendo desse fato procuramos o cacique Lourenço Muchacho, na sua casa para conversar.

Ele narrou os acontecimentos daquele período. Perguntamos: “E com relação à política indígena

aqui na Cachoeirinha, como é que tem sido sua gestão, tem tido problema”?

“Tem, tem esse atrito, tem essa divisão, divisão da associação, não quer se aproximar com a liderança, às vezes tem uma Igreja ai não quer se aproximar com a liderança... tem uma comunidade ai que não são associado não quer se aproximar com a liderança... acho que no meio de tudo isso a gente não tem como se oferecer, isso dependeria mais dele para chegar mais perto, participar do reunião para saber o que tá acontecendo, as vezes as pessoas nos critica nessa parte o seguinte ...que a gente não tem feito nada, claro que eu vejo assim que eu não fiz nada assim de obra, reformar trator, reforma de viatura, a dificuldade é muito grande, isso ai que afastou a comunidade, associação, essas outras igreja, um pouco de comunidade, por isso que eles se afastou de mim, por não ter visto nada que eu fiz para eles poder trabalhar, então e por isso que eles se afastaram no meio de tudo isso a gente reivindica ...

FUNAI principalmente fala que não tem recurso, chega mais ou menos trinta reivindicações para esse conserto nunca foi executado nenhum .... Principalmente município, estado, segundo o estado, a gente tem reivindicado isso pra eles também, mas a gente reivindica esse trator que eles reconhece que é patrimônio do Governo Federal, da FUNAI, as viaturas eles sabe que é patrimônio da FUNAI... Só que a maior dificuldade para nós são essas Administração lá em Campo Grande, porque eles não tem aproximação com o Estado, segundo o pessoal do Governo do Estado eles fala isso ... se o ex-administrador tivesse um dialogo com o estado o Estado poderia ajudar FUNAI para poder levantar isso... Mas não tem como, o cara não tem essa aproximação então dificultou para nós também que somos comunidade ... Então para nós tem essa dificuldade. Então foi isso que afastou comunidade. (Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004).

As “associações”, as “igrejas”, são mencionadas diretamente como os vetores deste

“afastamento” das comunidades indígena da “liderança”. O conflito se daria entre os grupos

religiosos, associações, de um lado, e o cacique, de outro. A motivação seria o descontentamento

com a gestão dos recursos materiais que deveriam ser transmitidos pelo Estado (nas esferas federal,

estadual e municipal). O cacique, entretanto aponta como problema a escassez de recursos da

FUNAI, que não repassa verbas para investimento nas aldeias indígenas. Mas a responsabilidade

pela não obtenção de recursos, segundo a análise de Lourenço, é atribuída pela comunidade ao

cacique. Daí a crise política instaurada em Cachoeirinha.

Na verdade, isto constitui apenas um dos lados do problema. Na própria entrevista o cacique

Lourenço mencionou outros fatos importantes. Perguntamos:

“E por que isso aconteceu?

Pois é... Uma divisão muito grande, deixa eu me lembrar o que aconteceu daquela vez... quem criou mais essa cabeça daquela vez foi a Associação do Alírio, foi o Pastor Zacarias, o Vitorino Paulino, quem criou essa briga foi eles, eras as minhas lideranças. Eu chamei eles para trabalhar juntamente com agente na liderança.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Era a queixa de uma moça, uma mulher, que é a esposa do meu sobrinho, foi lá na casa do Zacarias, que na época era presidente do Conselho, inventou um montão de coisa, disse que eu tava perseguindo ela, aí me chamaram, ai o Presidente do Conselho me chamou para sentar com as lideranças e conversar sobre isso. De primeira eu não fui, eu mandei a comissão minha, ai a comissão foro lá, e a comissão diz mas eles não aceitaram, você tem que ir lá, ai num dia de sábado eu fui lá, cheguei lá tava uma dona, o esposo dela, sentado tudo junto, então quem primeiro começou a conversa foi presidente do conselho, ai passou para dona, ai a dona falou para mim que eu tava perseguindo ela, faz tempo... Ai eu tenho um irmão que mora aqui, que falou assim, eu acho que isso ai tá errado. Onde já se viu que uma mulher que tem caso com outra pessoa contar para o seu próprio marido. Isso é um papo furado. Ai eu vi que as coisas tava tudo errado mesmo e ai eu falei para ela no meio de todo mundo, eu nunca tive caso com você. Mas isso foi armação política deles porque eles queriam me tirar de todo o jeito”. (Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004).

O que havia acontecido, era a formulação de uma acusação contra o “cacique”, de estar

envolvido numa relação “extra-conjugal”, sendo tal queixa apresentada ao Conselho Tribal, e

poderia implicar diretamente na deposição de Lourenço do seu cargo de Cacique. Assim, o

presidente do Conselho, na ocasião Zacarias da Silva, Pastor da Igreja Assembléia de Deus, recebeu

a denúncia dirigida contra o Cacique, que foi apresentada pela esposa de um de seus sobrinhos e a

partir daí, as lideranças que integravam o conselho tribal começaram a fazer uma oposição

sistemática ao cacique.

Estes acontecimentos, na realidade, se inserem dentro de um processo, ou seja, de uma série

de acontecimentos ou situações sociais, que dizem respeito à luta pelo poder local dentro da aldeia.

O próprio Lourenço, em outro momento da resposta à pergunta que formulamos, comenta sobre o

conteúdo político da disputa e real causa das acusações em questão:

“Mas a questão daquela vez, o motivo mesmo, eu tava mexendo com o Chefe, então por isso que essas pessoas se cresceram, eu tava mexendo com o Chefe do Posto da FUNAI, eu queria trocar o Argemiro, porque é cargo de confiança, não é um funcionário eletivo não, então o motivo mesmo que eles cresceram é por causa disso. Hoje eu fico admirado, o cacique Ramão, o Cacique Zacarias são tudo contra o Argemiro agora. Agora eles vão procurar minha ajuda de novo, mas só que eu não vou entrar nesse papo, Agora eu tô ouvindo outra conversa aí de que eles vão querer eleição agora nesse mês de dezembro, nesse ano agora, eu tô disposto para ouvir, desde que eles venham de frente, se eles vir por detrás acho que eu não posso aceitar se eles vir por detrás, posso aceitar se eles opinar se eles vier pela porta bem certinha, ai agente pode ter um diálogo, dependendo da conversa eu posso até entregar no mês de dezembro, sair mais tranqüilo, do que agente ficar quebrando a cabeça. Então para mim esse aí não é a questão. Agora eu não vou permitir ser empurrado, ano passado porque eles vieram por detrás. Então como é que eu vou aceitar ser esfaqueado por detrás?Então eu fiquei pensando esses caras não tem organização, porque se eles tivesse organização eles teria que sentar comigo e conversar, tô sabendo disso, que os cabeça são Alírio, Dionísio, Tomás, então se eles passarem pela porta, pode haver eleição, porque meu mandato mesmo por escrito é até em dezembro de 2005, mas se eles quiserem, tranqüilo. Será entregue, de boa vontade, agente não tem nada que brigar. Então a posição, é isso.”. (Lourenço Muchacho, Cachoeirinha, Setembro 2004).

Quer dizer, na realidade, o que estava acontecendo era um processo de luta política: o

Cacique Lourenço havia realizado uma tentativa para “trocar” o Chefe de Posto da FUNAI,

Argemiro Turíbio. A “associação” do Alírio de Oliveira Metelo, somadas a algumas lideranças

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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políticas integrantes do Conselho Tribal, e contando com o apoio dos caciques dos setores, Ramão

Vieira e Zacarias Rodrigues responderam, tentando derrubar Lourenço do posto de Cacique. O

esforço de derrubar Argemiro Turíbio da posição de Chefe de Posto teve como contrapartida a

tentativa da derrubada do Cacique pela “Associação”. As duas posições de poder (profundamente

interdependentes no contexto local), foram o objeto da disputa: quem controlaria efetivamente estas

posições? Eis o problema

Porque a tentativa do Cacique Lourenço Muchacho de derrubar o chefe de posto, teve uma

reação forte da sua própria liderança do Conselho Tribal? Porque os demais caciques a princípio,

deram apoio político ao Chefe do Posto e depois (segundo Lourenço) iriam querer derrubá- lo?

Porque as lideranças políticas de Cachoeirinha questionam a gestão dos recursos econômicos da

aldeia pelo cacique? Qual o papel das Igrejas e Associações (mencionadas de forma enfática e

direta pelo Cacique ao narrar estes acontecimentos) na luta pelo poder local?

É interessante notar que os que tentavam derrubar o cacique Lourenço Muchacho, como ele

próprio observa, eram aqueles que até pouco tempo antes se constituíam na sua base de sustentação

política: a sua própria “liderança”. Um ano antes, o cacique Lourenço Muchacho e os demais

Caciques dos setores, viviam em um acordo político relativamente estável, atuando juntos

principalmente no que tange a reivindicação da demarcação de terras. Lourenço havia sido eleito

em 2002, derrotando cinco outros candidatos (Sabino Albuquerque, Mário Albuquerque, Vitorino

Paulino, Adilson Julio e Pedro Alcântara) sendo que Sabino Albuquerque havia sido cacique entre

1998 e 2002 e um dos lideres da mais importante “associação” de Cachoeirinha, a AITECA.

Lourenço já havia sido candidato nas eleições de 1998 e havia sido derrotado por Sabino

Albuquerque.

A história da ascensão de Lourenço até o posto de cacique é a seguinte:

Primeiro eu queria que você um falasse da sua história, até chegar a posição de cacique aqui na aldeia. Bom, de primeira eu, eu falava a idade mesmo, francamente, eu só comecei no meio de muitas amizades, trabalhar muito pra fora, canavial, depois eu tive essa vontade, o espírito de freqüentar a igreja católica, aí freqüentei, trabalhei, trabalhei como catequista da primeira eucaristia e da crisma, né. Aí, terminei sete anos, passei pra ser dirigente da igreja, depois eu fui coordenador da igreja. Aí essa luta foi indo, foi indo, foi indo... eu fui conversando com o pessoal, juventude, da maioria do patriciado conversando sobre a candidatura, né. .. E. Você foi coordenador de igreja em que ano? Foi em 89, parece. Aí conversamos com os amigos, primeiro com a tentativa de ser candidato a cacique eu concorria com três candidatos àquela época. Há uns quatro anos atrás, então foi três candidatos, quem ganhou foi o Sabino, àquela época foi com 412, o companheiro que era segundo candidato, ele ficou com 100 votos, eu fiquei com 400 votos naquela época. Então eu perdi por 12 naquela vez, né. Aí, hoje, eu me candidatei novamente, com seis candidatos, eu tive

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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voto maioria, 301 votos. Aí foi conversando muito, diálogo, no meio dos companheiros, e foi tocando isso também, né, aí cheguei de ser cacique. Hoje, eu estou aqui ainda, trabalhando pouco a pouco, se sabe que as dificuldades estão de mais, né. Não tem recurso, não tem nada. Então agente tá aí. L. Tá certo. Durante quatro anos atrás, eu tinha trabalhado pra ele. Foi a primeira campanha do... quatro anos atrás. Aí, esse ano trabalhei novamente, mas hoje, eu saí com peso ainda, né. Porque eu fiz documento de reivindicação a pessoa dele para que pudesse a gente conseguir alguma coisa através dessa luta. Então a gente tá aí, por enquanto tá meio parado ainda, a gente já conversou tanto com ele, mas eu já fiz o documento, já coloquei um tipo de projeto aí de pedido de um trator, complemento, tudo, né. No valor de mais ou menos R$40.000,00. Então esse documento vai entrar no mês de julho, por aí, na seção, pra ser debatido. Isso aí vai ser emenda do governo do Estado, então, se eu conseguir isso, pra mim eu acho que a comunidade vai ser tão satisfeita ainda, se eu conseguir isso. Mas creio que eu vou conseguir, vou ter que lutar em cima disso. Que você sabe como é que é política, né, política... Ele é bom, ele é um bom deputado, mas o quem estraga são os assessores, sabe. Se for conversar diretamente com ele você é atendido, mas se pegou conversar com assessor, aí é complicado, sempre para no meio. Sempre para um documento engavetado, aí não vai pra frente. Agora, se a gente cobrar diretamente da pessoa dele, eu acho que a gente pode conseguir alguma coisa. (Lourenço Muchacho, Maio/2003)

A trajetória de Lourenço é similar a de várias outras lideranças: atuou como “cabeçante” nas

turmas que iam realizar trabalho em fazendas ou usinas da região; atuou como líder em certas

atividades religiosas da Igreja Católica; estabeleceu relações com líderes de partidos políticos e

parlamentares, visando conseguir “benefícios” para seu grupo, ou seja, operando como um

mediador entre a comunidade indígena e as elites dirigentes locais e regionais. Em 1998 lançou-se

candidato a cacique e foi derrotado.

O processo de formação do seu grupo político dentro de Cachoeirinha em 2002 se deu da

seguinte maneira:

“Essa intenção de ser cacique foi formado por 35 pessoas, 35 pessoas iniciaram isso, e essas 35 pessoas se tornou comissão e eles andaram bastante, discutindo sobre isso e levando nosso nome pra a comunidade. (...) Quem fazia parte desta comissão? Felix Canali, Enilson Belisário e Edno da Silva. Era três cabeças que sempre discutia isso com a gente. Agente aceitou a proposta e nós saímos. Na primeira tentativa a gente tinha perdido, ai na segunda agente ganhou como cacique. Durante esses tempo faltou, faltou mais apoio político, fizemos projeto nenhum delas foi aprovado. Ai tava, mais pessoas; Quintino Mendes, Porfírio Martins e Florentino Martins (Vila Nova), Laércio Albuquerque (Vila Nova), Paulo Matias (União São João), Bartolino da Silva , João Miguel, Jorge Vitor, Sebastião Vitor (todos São João) Natalício Joaquim (Vila Principal), Hélio Albuquerque (sogro), Estrogildo Miguel, Valdecir Antonio (Vila América), Luis Martins, Felix Candido Antonio, Cecílio Lipú (Vila Nova). Então esse grupo ai foi formando, foi chegando outras pessoas. (Lourenço Muchacho, Março/2006)

Os membros da comissão eram todos eles das vilas que antigamente faziam parte do

“Mangao” (exceção importante é Enilson Belisário, morador da vila Santa Cruz. Dentre eles,

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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estavam o sogro e um cunhado de Lourenço (Hélio e Laércio Albuquerque, respectivamente), e

algumas lideranças da Igreja Católica, como Estrogildo Miguel.

Deste grupo inicial, é que foram indicados os primeiros “Conselheiros” de Lourenço

Muchacho, como podemos ver pelo quadro abaixo:

Quadro 32 - Membros do Conselho de Lourenço Muchacho.

Conselho Tribal Cachoeirinha - 2002 Adilson Júlio (vice-cacique)

Felix Candido Antonio Temiz Arruda (Anciãos)

Marcolino Joaquim e Quintino Mendes (1º e 2º tesoureiros).

Pedro Alcântara (Presidente do Conselho) Hélio Albuquerque (vice-presidente)

Membros: Jorge Vitor, Edno da Silva, Natalício Joaquim, Laudelino de Oliveira, Odir Antonio, Miguel Antonio, João Miguel Porfírio e Florentino Martins, Agnaldo Martins, Milton Raimundo,

O processo político interno levou entretanto a alterações desta composição. Vejamos como

isso se deu:

Quantas vezes esse conselho foi mudado? Esses conselhos foi mudado uma vez só. (mudei porque alguns não participava mais da reunião) e houve uma confusão também, política interna mesmo. Como cacique naquela vez eu tinha autonomia pra... Porque por exemplo, se agente chama a pessoa numa luta porque é nossa confiança. Ai quando acontece uma briga contra a nossa pessoa que nós indicamos.... A pessoa que foi chamado para fazer parte do Conselho são nomeado, digamos. Então quem nomeia se achar por bem que o membro do conselho não tá servindo como deveria servir a comunidade, ai o cacique tem como fazer novo emenda para fazer troca dos novo membro. Quem você substituiu, quem você indicou? Primeiro perguntei pras lideranças que permaneceu se caberia convocar pessoas pra preencher o cargo. Então quando eles deram o resultado que poderia, chamei as pessoas para preencher o cargo de novo. (...) Eu coloquei o Alírio de Oliveira Metelo, Tomás Balbino, Mário Albuquerque, Lírio Lemes, Milton Pires.

Vejamos o quadro abaixo, com a indicação da composição dos membros do Conselho

Tribal.

Quadro 33 – Substitutos dos Membros do Conselho de Lourenço Muchacho.

Presidente do Conselho Vice-cacique Conselheiros Zacarias da Silva Cirilo Raimundo Alírio de Oliveira Metelo

Virotino Paulino Tomás Balbino, Mário Albuquerque, Lírio Lemes

Vemos que algumas mudanças são importantes: primeiramente, o Presidente do Conselho

Tribal e o Vice-Cacique foram mudados; saíram Adilson Júlio e Pedro Alcântara, e entraram

Zacarias da Silva e Cirilo Raimundo. No Conselho entraram Alírio, Vitorino, Tomás, Lírio e Mário

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Albuquerque (este na época presidente da AITECA). Assim, já existia um precedente de mudanças

no Conselho Tribal, quando o conflito eclodiu em 2004.

A situação que estava colocada, de luta entre o Cacique e a sua liderança, representava a

dissolução de uma aliança política que inclusive possibilitou a sua vitória nas eleições para cacique.

Mas como a acusação não foi à frente, e não ocorreu um movimento mais sistemático da

comunidade para derrubar o cacique, esta situação se resolveu com a “dissolução” do Conselho

Tribal, por ordem de Lourenço. Quando estávamos em Cachoeirinha no período de setembro-

novembro, o Conselho não se reunia, por estar em processo de reformulação. O cacique estava

então indicando novos membros para a composição deste Conselho. As antigas lideranças seriam

substituídas por novas.

Porque aconteceu a oposição da sua liderança? Houve um problema naquele época sobre a troca do Chefe do Posto, Argemiro... ai nasceu uma confusão no meio de tudo isso e eu fui chamado por liderança pra esclarecer se realmente eu tive caso com uma mulher assim. Ai eu fui lá, me presenciei, houve um discussão. Só que naquela vez ali não saiu mais na cabeça dos outros pessoal. Quando aconteceu isso já queria me tirar fora. Mas na verdade eu não tinha rela ção com essa pessoa. Então foi um política, essa dona foi usada para que pudesse me tirar desse cargo. Só que no momento eu não me entreguei, ai começaram uma política interna, conversaram daqui, começaram dali, até que chegaram num momento que queriam me tirar do cargo. Ai como não foi verdade aquela conversa, não me entreguei. Ai eu tive que afastar as pessoas, tive que afastar o Alírio, tive que afastar o Tomás, tive que afastar o seu Lírio, Sabino Lipú tive que afastar ele, que geraram confusão no meio da liderança, por isso que houve esse troca. Quando eu fiz essa troca eu não convoquei eles, deixei de fora. (...)

Entretanto, de fato, o Vice-Cacique e o Conselho não abdicaram do poder, criando uma

situação de dualidade. Podemos mencionar isso, por ocasião de uma reunião realizada com um

representante do Idaterra103, no dia 26/10/2004 às 15:30h,. Acompanhamos esta reunião, realizada

no centro comunitário. O representante do IDATERRA, de nome Paulo, que apresentou uma

proposta de comercialização de produtos, e também levantou as demandas locais – que foram

apresentadas especialmente como sendo de sementes, combustível e maquinário para o plantio.

Estavam presentes o vice-cacique Cirilo, o cacique Isidoro Pinto do Morrinho, o Cacique João

Candelário, da Argola, o vice-cacique João Leôncio do Babaçu, o chefe de Posto Argemiro Turíbio,

Alírio de Oliveira Metelo e algumas outras pessoas que não conhecíamos. Foram feitos acertos

relativos a distribuição de sementes e óleo diesel entre os diferentes setores, e todas as lideranças se

pronunciaram.

Esta reunião explicita que o cacique Lourenço se viu relativamente isolado de sua liderança,

e que esta assumiu as funções políticas de representação da comunidade- local Terena nas relações

103 Instituto estadual para de execução de política agrícola.

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com os representantes das ins tituições estatais e no controle efetivo dos recursos materiais e

produtivos destinado para as aldeias. A presença de Alírio de Oliveira Metelo, de Argemiro Turíbio

e do vice-cacique Cirilo Raimundo mostram que o esquema de poder local se manteve, e que na luta

entre Lourenço Muchacho e a “Associação do Alírio”, esta última, pelo menos num primeiro

momento, saiu fortalecida.

Porém, a situação ainda sofreria mais uma reviravolta. As disputas se acirraram tanto, que

quando um dos antigos candidatos e ex-vice cacique retornou, se aliou politicamente com os grupos

opositores e:

Ai naquela vez o Adilson, que abandou o cargo e foi pra destilaria, ai ele chegou no final do mês, achou essa briga, entrou no meio e foram para Campo Grande, e correu o risco de haver naquele época dois caciques. Mas também nós vencemos a luta, não foi pra briga, foi no conversa, a gente resolvemos a questão. Conseguimos derrubar lá no FUNAI a documentação... O que atrapalhou nossos companheiro naquela vez era essa confusão que teve, porque não teve diálogo entre as lideranças. Só houve conversa... lá fora. O pessoal foi levar documento pedindo o que? Pedindo que o Adilson entrasse no meu lugar como cacique. Só que naquele época nós tinha documento justificativo. Porque que ele não ficou. Porque se ele tivesse avisado agente quando ele saiu para destilaria fosse tudo por escrito daquela vez ele conseguiria ficar no meu lugar, mas como ele não avisou agente, não falou nada, pra nós não foi nada escrito, aí nós consideramos ele no documento como abandonou o cargo, nós colocamos na ata que ele abandonou o cargo. Ai ficou na cabeça do pessoal, “não ele abandonou o cargo, ele não pode permanecer, não pode ficar como cacique”. Por isso que não chegou de ser cacique. E hoje tentou novamente e não ganhou, ficou muito longe. Depois que a pessoa vê o nosso defeito aí a pessoa não confia mais. (Lourenço Muchacho, Março/2006).

Quando a força do movimento local não foi suficiente para derrubar o Cacique – que haviam

se dirigido as instancias locais, como o Conselho Tribal - os grupos opositores partiram para

“Campo Grande”, para a instância estatal hierarquicamente superior, solicitando sua intervenção

política no contexto dos conflitos aldeãos. A apresentação de uma “documentação” como indicada

por Lourenço, visava fundamentar a solicitação da sua substituição como Cacique da Cachoeirinha.

O início deste conflito estava, como o próprio Lourenço afirmou, na tentativa feita por ele de

derrubar o Chefe de Posto. Assim ele descreve suas razões:

Porque você queria trocar o chefe de posto? É o seguinte, a primeira luta que eu fiz pra querer tirar ele eu fui assim na força eu fiz documento com meu próprio punho, porque tava havendo muita conversa, muita pessoa reclamando por ele, só que essa pessoa não tinha coragem de chegar e cobrar ele, essas me cobrava, sempre cobrava a mim. Se eu tivesse naquele época uma visão política assim ampla, acho que eu poderia chamar ele e conversar, ó tem esse pessoal aqui reclamando. Eu não consegui tirar ele. Ai permaneceu mas tempo, ai quando entrou outro administrador, aí por competência dele retirou. Ele mesmo falou pra mim. Isso aqui é minha competência, como novo administrador, eu tenho como colocar a minha confiança lá dentro, ai todos os caciques concordaram.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Segundo outras versões, existiam ainda outras questões. Na Argola, conversarmos com

Inácio Faustino, presidente da AITRE. Perguntei a ele sobre a questão da tentativa de derrubada do

Lourenço, ocorrida naquele ano. Ele explicou que tudo foi motivado pela “questão dos contratos

com as Usinas. Disse que o pessoal não estava satisfeito com o fato de ter maquinário parado,

esperando concerto e o dinheiro que entra para o “Caixa Comunitário” não ser usado para isso”.

Disse que o negócio ferveu de vez quando o Lourenço “cantou” uma mulher e aí que eles quiseram

tirá- lo de vez. Depois o Lourenço tentou tirar o Argemiro, quando as acusações começaram e o

chefe não ficou do lado dele. Então, sozinho, fez um ofício para a administração regional em

Campo Grande, mas na época o Márcio Justino se recusou a exonerar o Argemiro, argumentando

que não faria isso sem haver o apoio de toda a “comunidade”.

No final das contas, o Cacique e o Chefe de Posto permaneceram em seus cargos naquele

momento. Mas como Lourenço indicou, o Chefe de Posto, Argemiro Turíbio, foi exonerado do seu

cargo no primeiro trimestre de 2005, por decisão do recém empossado Administrador Wanderley

(pelo soubemos existia uma diferença de alinhamento político partidário, já que Wanderlei era

alinhado com o PT e o Governo Estadual, enquanto que o chefe de Posto era aliado no município

com Ivan Paz Bossay, opositor da prefeita Beth Almeida, do PT. Além disso, um grupo de Terena

de Miranda tinha apoiado a candidatura de Wilson Jacobina, da aldeia Passarinho, e não Wanderlei,

nas eleições internas da FUNAI, que escolheram o administrador, meses antes).

Lourenço Muchacho,entretanto, também não chegou a concluir o seu mandato. Ele abdicou

da função, como nos disse:

Como foi o final da sua gestão e porque resolveu entregar o cargo? Fiquei mais ou menos 7 meses. Faltava mais ou menos 3 mês para o encerramento do cargo, ai entreguei o cargo para o pastor Zacarias. Ai o pastor Zacarias continuou. É porque eu tava vendo que não tinha mais saída, porque não tin ha mais projeto. Também o pessoal me perseguia muito. Porque eu cobrava muito sobre venda de bebida alcoólica, o pessoal já tava me ameaçando, então tá bom se o pessoal quer beber, então continua bebendo. Então eu pensei melhor, já tava sendo pior pro meu lado, falei antes que alguma coisa aconteça é melhor entregar. Ai continuou o trabalho. (Lourenço Muchacho, Março/2006).

As causas para sua renúncia estavam associadas tanto as questões acima indicadas, quanto a

outras que estão associadas diretamente aos poderes do cacique e a forma como a comunidade

indígena reage ao seu exercício. Lourenço narra assim a sua situação antes de abdicar do cargo:

“...eu já não conseguia ficar tranqüilo, porque era muito perseguição, perseguição do meu próprio patrício. (...) Ameaça, Porque durante o tempo que eu fiquei de cacique, eu mexia mais com esse venda de bebida, prendia o pessoal para Miranda, tomava arma, quando eu era cacique desarmei 10 pessoas de arma de fogo. Então esse pessoal ficava na mente dele “esse cara vai ter que me pagar”, um dia eu vou pegar ele.

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Acontece aqui, foi uma plena noite, parece que foi dia de Sábado, chegou oito pessoa aqui querendo me bater naquela noite, eu não clamei em alta voz, mas eu disse para Deus que podia me livrar naquele momento mas como Deus é grande. Eu não conseguia andar desarmado, Porque a minha intenção era muito...eu tava muito revoltado, se um dia algum patrício me encostar a mão eu vou matar. Então fiquei armado 6 meses. Olha aqui onde fui me meter. (...) Essa perseguição que eu tinha antigamente não tem mais”. (Lourenço Muchacho, Março/2006).

Lourenço também avalia que sua gestão sofreu tantas críticas e movimentos de oposição, por

conta das dificuldades encontradas em conseguir recursos para a comunidade, de maneira que o fato

de não ter sido feliz em estabelecer as alianças políticas (na FUNAI, na Prefeitura e Governo

Estadual) é que teria dado abertura para a insatisfação.

“Essas 35 pessoas tinham esperança, tinha, grande esperança de que a luta andasse bem. Mas como sempre falo, houve barreira e a gente, só que eu sempre falava, se a gente não dá o braço a torcer digamos para o político, ai agente não consegue nada, político tentava me manipular e eu não aceitava isso. E eu corria de outro para outro. Então por isso que eu não teve ajuda. Mas uma parte andou bem, foi a parte da demarcação da terra. Nós fomos para Brasília, fomos para Campo Grande pra discutir sobre isso. E teve um andamento maior Enquanto agora o processo tá parado. Acho que precisa remexer de novo. Conversar novamente com o pessoal da FUNAI. A gente então mexeu mais por esse lado.... A parte da lavoura não tinha recurso, a FUNAI não tinha recurso para tentar se consertar, agora que o trator saiu. Entrou no orçamento do ano passado, ficou mais ou menos 8 meses na oficina e agora que saiu nesse ano e tá começando a trabalhar. Então pra mim foi uma grande barreira na luta não conseguir nada”. (Lourenço Muchacho, Março/2006).

Ou seja, os conflitos e a luta pelo poder, envolvem diretamente a problemática dos recursos

materiais e das alianças políticas que os viabilizam, e que vão atender as pautas sócio-culturais dos

diferentes segmentos componentes das comunidades indígenas. A ascensão e queda do Cacique

Lourenço Muchacho se deu em razão destes fatores. A dinâmica política de Cachoeirinha se

estabelece em função dos diversos fatores e elementos descritos acima.

Em dezembro de 2005, foi realizada a eleição para o Cacique da Sede. Nesta eleição foram

candidatos seis homens: Cirilo Raimundo, Sabino Albuquerque, Vitorino Paulino, Mário

Albuquerque, Adilson Júlio e Antônio Gonçalves. Cirilo teria recebido 300 votos, Sabino (apoiado

por Lourenço) 150 votos e Antonio Gonçalves (apoiado por Argemiro) ficou em terceiro lugar na

disputa. Assim, o antigo vice-Cacique conseguiu tornar-se Cacique, e logo o início da sua gestão foi

marcado também por conflitos políticos, desta vez envolvendo os Caciques das aldeia Babaçu,

Lagoinha e as lideranças da aldeia Argola, em razão dos encaminhamentos relativos a luta pela

demarcação da terra. Por outro lado, muitas pessoas da aldeia elogiavam o trabalho do novo

Cacique por estar conseguindo trazer benefícios para a comunidade, como “cascalhamento das

estradas” (junto à prefeitura), reforma do trator da FUNAI (junto a Administração Regional da

FUNAI) e recursos como óleo e sementes.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Os contornos gerais da situação social descrita acima, e a luta pelo poder que ela expressam,

podem sugerir a confirmação das teses dos estudos de aculturação e assimilação; os conflitos

políticos derivariam das clivagens introduzidas pelo cristianismo e pelas igrejas, e pelas formas de

organização social nacional-ocidentais (como as associações formais, as eleições para Cacique e

etc), de maneira que a organização social indígena teria sido completamente desagregada. Na

realidade não é exatamente isto que acontece.

Esta “luta pelo poder” – que se expressou numa série de situações sociais como aquelas

descritas acima (denúncias apresentadas contra o Cacique no Conselho Tribal; requisição de

mudança do Chefe de Posto, por parte do Cacique e etc) – na realidade está ancorada numa

dinâmica estrutural, gerada pela consolidação do regime tutelar, dentro da situação histórica de

reserva, e que se tornou base de formação das novas situações históricas. Para interpretá- la e

compreendê- la corretamente, é necessário entender o funcionamento da atual organização política

Terena, dentro da situação histórica de “retomada”. É preciso compreender as unidades básicas da

organização político-territorial indígena, suas relações com as instituições estatais e a política

indigenista.

5.2 – As Unidades Básicas da Organização Política Terena.

A dinâmica estabelecida no contexto da aldeia pode ser qualificada da seguinte maneira: 1º)

a mobilização política faccional que toma por base múltiplos critérios de recrutamento (relações de

parentesco, co-residência, e alianças situacionais mesmo entre adversários), organizada

especialmente em torno da disputa do “cargo de cacique”; 2º) o Cacique se mantém em seu cargo,

graças a gestão que realiza dos recursos materiais e dos poderes de que dispõe, o que depende tanto

das alianças e composições internas com líderes das facções existentes, quanto externas, com

administradores e líderes políticos municipais e regionais; 3º) as facções políticas descontentes

mantém sempre uma luta contínua pelo poder, luta esta às vezes discreta, às vezes aberta, o que

confere uma grande instabilidade a dinâmica política aldeã; 4º) a resolução para os conflitos

políticos é quase sempre buscada no apelo a intervenção dos poderes estatais (soluções de cima pra

baixo), especialmente pela solicitação de intervenção da FUNAI, que exerce assim uma espécie de

“poder moderador” (legitimado e demandado pelos índios), que visa gerar um equilíbrio ou

desequilíbrio de poder favorável a esta ou aquela facção, a esta ou aquela liderança indígena que

não esteja satisfeita com os encaminhamentos adotados dentro da própria comunidade. Esta

dinâmica é gerada pela existência de um conjunto de papéis e instituições políticas inter-

relacionados, que constituem as unidades básicas da organização política Terena; 5º) em casos

limites, é possível que as disputas resultem numa “dualidade” local de poderes, com a consolidação

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de dois Caciques que disputam o poder legal e legitimo de representar os índios, situação que

“quase aconteceu” em 2004 (segundo as palavras de Lourenço Muchacho).

Precisamos descrever as unidades básicas desta organização. O caso da terra indígena

Cachoeirinha se apresenta como tipo exemplar desta organização. A organização e dinâmica das

relações políticas entre os Terena, se dá por meio de uma série de instituições e papéis sociais que

se distribuem de maneira hierárquica. A descrição das unidades básicas da organização política

Terena permitirá demonstrar isso.

Dentro da organização política entre os Terena, nós podemos distinguir uma estrutura

piramidal: o topo é uma posição de poder individual, representada pelo papel social e posto político

do Cacique. Abaixo, tanto do ponto de vista do poder decisório, quanto no sentido de ser a “base”

de sustentação estão o Vice-Cacique e o “Conselho Tribal”, que é escolhido pelo próprio Cacique.

O Conselho pode variar de dimensão em cada setor/aldeia, mas ele tem uma distribuição

interna de papéis que é relativamente constante. O Conselho é composto pelo Vice-Cacique , pelo

Presidente do Conselho, pelo Ancião, 1º e 2º Secretários, 1º e 2º Tesoureiros e pelos

Conselheiros.

Do ponto de vista formal, o Cacique Centraliza o pode decisório, na sua presença o que vale

é sua decisão. O Vice-Cacique e o Presidente do Conselho substituem o Cacique quando este não

se encontra na Aldeia, tendo as funções de regular a entrada e saída de pessoas, negociar com

autoridades e etc. Além disso, o Conselho tem a função de regular e fiscalizar a ação do Cacique,

tendo também o poder de destituir o Cacique do cargo. Desta maneira, as relações entre Cacique e

Conselho são baseadas nesta tensão estrutural, em que o cacique tem o poder de indicar e destituir o

Conselho, e por outro lado, o Conselho tem autoridade formal de fiscalizar e destituir o Cacique.

Veremos que esta tensão se manifesta em diferentes ocasiões através da luta entre facções políticas.

Em tese, existem reuniões regulares do Conselho com Cacique para administrar as atividades da

aldeia.

Atualmente, o Cacique é escolhido por eleições. Há um prazo de 4 anos para cada mandato

de Cacique. Antes de cada eleição para cacique, existe um período para “campanha” eleitoral em

que os candidatos a Cacique fazem suas articulações. As regras válidas para a eleição dentro das

áreas indígenas é similar as existentes no processo eleitoral democrático-burguês, definidas pela

Justiça Eleitoral.

A autoridade formal do Cacique pode ser classificada em três áreas de incidência: 1) as

relações pessoais e familiares dentro da aldeia. Quer dizer, o poder do cacique é uma forma de

controle sobre as atividades dos indivíduos com relação especialmente ao uso de bebidas alcoólicas,

fixação de residência (quando indígenas vêem de fora, de outra aldeia) e conduta “criminal” dos

indivíduos, se eles cumprem ou não a lei; 2) as relações interétnicas, é uma forma de controle das

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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relações entre os membros do grupo com indivíduos e grupos não indígenas ou outros grupos

étnicos, implicando controle do acesso (entrada/saída) da área indígena e ao poder de representação

formal do grupo perante as instituições e grupos sociais; 3) é uma forma de controle das relações

econômicas e bens “coletivos” do grupo, que dizem respeito ao controle exercido pelo Cacique

sobre os contratos de trabalho assinados pelos índios com empresas, atualmente, com as Usinas de

Cana de Açúcar, sobre os veículos (trator, caminhonetes, caminhões) que porventura existam, e

também os armazéns e recursos e implementos agrícolas que o grupo receba, seja do Governo

Federal, seja do Governo Estadual ou Municipal, ou ainda, por meio de projetos de organizações

não governamentais.

Neste sentido, o poder do Cacique é um poder ao mesmo tempo de controle social,

representação política e gestão econômica. A figura do Cacique se apresenta como vértice de uma

estrutura centralizadora, que no plano local abrange praticamente todos os domínios da vida social.

No entanto, esta estrutura só pode ser compreendida a luz da estrutura global de poder na qual está

integrado, que é o Sistema Político Estatal .

Em vários grupos indígenas já se indicou que tanto a categoria discursiva quanto a função

concreta do “Cacique” são produtos da situação colonial, são imposições do Estado aos diferentes

grupos étnicos, implicando uma primeira forma de homogeneização (ver Oliveira Filho, 1988).

Com os Terena não aconteceu nada de diferente. O Cacique foi a princípio um representante do

Chefe do Posto perante aos índios, um papel social integrante do sistema estatal, vinculado mais

diretamente ao SPI/FUNAI. Mas tornou-se também uma categoria integrante e fundamental da

organização e relações políticas do grupo étnico considerado104. A figura do Cacique ou Capitão,

juntamente com a figura do Chefe do Posto, comporá o conjunto de papéis individuais e locais

manejados para a aplicação/execução da política indigenista e de controle do Estado sobre os

índios.

Entretanto, a distinção entre Chefe de Posto e Cacique foi fundamentada na concepção de

uma dualidade básica: o Cacique seria um “aliado” interno, um membro do próprio grupo indígena

e atuaria em conjunto com o Chefe de Posto, funcionário público e representante da “sociedade

nacional”. Esta distinção hoje pode parecer sem sentido, devido à inversão de papeis produzida

pelas próprias estratégias indígenas, mas é preciso tê- la em mente para dimensionar corretamente a

correlação de forças existente entre índios e Estado. Porque apesar de “relaxada”, tal dualidade

ainda se mantém.

Chefe de Posto e Cacique são dois papéis sociais determinantes para as relações políticas no

espaço aldeão Terena. O Chefe de Posto, assim como o Cacique, possui uma série de atribuições

104 Como a categoria “Tuxaua” - gerada pelas relações com o “barracão” – tornou-se estruturante da organização social e política dos Macuxi.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

250

formais que conferem também um poder determinado sobre o grupo. O Chefe de Posto compartilha

em certa medida o poder com Cacique. Em outras situações históricas, o Chefe de Posto era a

autoridade máxima da área indígena, tendo o poder de indicar o Cacique e comandar as relações de

trabalho dos índios. Hoje, seu poder é mais restrito, equilibrando-se em certa medida com o poder

do Cacique. Existe um poder de controle social, um poder de representação, e um poder de gestão

econômica, mas também burocrática. O Chefe do Posto faz a intermediação entre o Posto e a

Administração Regional da FUNAI. Ele controla os requerimentos encaminhados ao órgão, e

também controla, junto com o Cacique, os contratos de trabalho. Ele controla também os bens da

FUNAI juntamente com o Cacique. Desta maneira, da mesma forma que existe uma tensão

potencial estrutural entre o Cacique e o Conselho, existe uma tensão entre o Cacique o Chefe de

Posto.

Entretanto, existem diferenças substanciais entre a função de Cacique e a função de Chefe

de Posto. Primeiramente, o cargo de Chefe é, em última instancia, um emprego público, com

remuneração fixa, bem acima da média de renda que os lavradores Terena têm. Além disso, existe

pelo menos idealmente, um conjunto de saberes técnicos que o Chefe domina, que são distintos dos

saberes da média da população indígena, sendo exigido uma formação escolar determinada105.

Desta maneira, o Chefe de Posto enquanto funcionário público possui um status diferenciado, que

implica um diferencial de prestigio e saber, que está associado também à renda. O Chefe de Posto,

por mais que tenha tido sua força reduzida frente à ascensão dos caciques e comunidades indígenas,

manteve estes elementos como importantes de sua atribuição.

Dessa maneira, podemos falar que a luta pelo poder dentro das aldeias, é uma luta pela

exercício da “co-gestão” dentro do regime tutelar; isso significa, a luta pela legitimidade, autoridade

e força para gerir tanto os contratos de trabalho, quanto as decisões relativas a alocação de recursos

materiais e relações de mediação política. As posições de Cacique e de Chefe de Posto concentram

os poderes, estruturados pelo regime tutelar, de exercer o controle da “mão-de-obra indígena” e do

“fundo” gerado pelas relações de trabalho gerenciadas pela FUNAI com as Usinas do Mato Grosso

do Sul. A estrutura de poder se estende assim, desde as plantations agroexportadoras até as

comunidades indígenas, sendo o órgão tutelar um instrumento de mediação e gestão dessas

relações. A co-gestão indígena no plano local se apresenta antes de tudo, como a gestão da mão-de-

obra indígena, do “fundo” gerado por ela, e de sua aplicação. Mas vejamos, os índios lutam para

compartilhar o poder com as estruturais estatais e gerenciá- las de acordo com seus interesses. Ao

mesmo tempo lutam para combater os efeitos da dominação imposta por esta estrutura política.

Esta estrutura organizacional opera em todas as aldeias dentro de Cachoeirinha. Existem

então cinco caciques dentro da terra indígena Cachoeirinha, cinco conselhos tribais, um para cada

105 No caso, a conclusão do ensino médio.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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aldeia. Entretanto, existe uma hierarquia de poder entre as aldeias Terena, ou melhor dizendo, entre

os caciques das diferentes aldeias. A aldeia Sede funciona na verdade como centro político e

administrativo da terra indígena Cachoeirinha. Assim, os Caciques dos setores ficam subordinados

ao Cacique Geral, que é o Cacique da Sede. Quais as bases desta hierarquia de poder entre os

caciques, e quais suas conseqüências para a dinâmica política nas comunidades- indígenas? Qual a

razão da “Sede” ser este centro político-administrativo?

O nível local da dominação: política indígena e economia regional

A hierarquia de poder entre os Caciques dentro das aldeias tem como base o sistema político

e econômico dos quais os territórios indígenas, enquanto unidades sociais fazem parte. Ou seja, a

base da diferenciação está na localização destas instituições locais dentro do campo e arenas das

relações interétnicas, e é através destas relações, que se define tal diferenciação dentro das

comunidades- locais indígenas.

A organização política dos Terena tem uma base econômica que é fundamental: é o

chamado “Caixa Comunitário”. Este Caixa Comunitário é um fundo composto por recursos

advindos da taxação dos contratos de trabalho. Este dinheiro é da “comunidade indígena”, mas

quem tem o poder, na prática, de administrá- lo, é o “Cacique Geral”. O percentual cobrado é de

10% sobre o valor do rendimento de cada trabalhador que sai para as Usinas, sendo 5% descontado

do salário do trabalhador e 5% pago pelas Usinas de Cana de Açúcar.

Esta é uma base fundamental do poder do Cacique Geral. Esta é uma das bases da hierarquia

e conflito político local. Apesar dos trabalhadores serem recrutados dentro de cada uma das aldeias

existentes, o dinheiro do Caixa Comunitário é destinado a Sede, onde fica sob o controle do

Cacique Geral e só é repassado para estas aldeias caso seja decidido pelo Cacique.

Além desta diferenciação, existe uma outra que é fundamental: a investidura estatal. Os

caciques das aldeias Terena tem uma legitimidade própria, se reúnem inclusive num grande

encontro para indicarem o Administrador Regional da FUNAI, e decidirem questões de grande

importância para o grupo106. Cada aldeia/setor, como dissemos, possui uma estrutura de liderança

própria, seu Cacique e seu Conselho. Mas existe uma hierarquia interna entre os próprios Caciques.

Ao mesmo tempo em que o Cacique de cada setor tem um poder real de mobilização, ele não tem o

mesmo poder de representação, já que esta depende de uma investidura estatal e do

reconhecimento externo para se validar. Conseqüentemente, o poder do cacique local se vê

106 Por exemplo, na ocasião da construção do Gasoduto Brasil-Bolívia, que passou na região do Pantanal, as lideranças Terena se reuniram para discutir o que fazer com o dinheiro de indenização pago pela Petrobrás as comunidades indígenas.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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inferiorizado em face da existência do Cacique Geral, que em casos de disputa, pode suprimir

temporariamente, mas em questões fundamentais, o poder dos demais Caciques.

Logo, podemos dizer que a organização política Terena de Cachoeirinha, em forma

piramidal, na base é composta pelos Caciques e Conselhos das comunidades- locais e se fecha no

topo com o Cacique Geral e o Conselho Tribal da Sede. Existem os Caciques Locais (de Morrinho,

Argola, Babaçu e Lagoinha), que tem um certo poder sobre suas comunidades locais, mas que tem

seu poder limitado nas relações supra-aldeãs que são partes constitutivas da função de Cacique.

Somente o Cacique Geral tem poder sobre o “Caixa Comunitário”, e este poder marca uma

diferença crucial para os demais Caciques.

A organização política dos Terena em Cachoeirinha revela dois aspectos antinômicos: uma

tendência descentralizadora expressa pela existência de uma pluralidade de lideranças políticas

locais, e uma tendência centralizadora, dada pela hierarquização entre os Caciques Locais e o

Cacique Geral.

Esta tendência contraditória da organização política Terena é fruto dos fundamentos

materiais desta organização, que faz com que sua organização e relações políticas sejam um nível

local do sistema capitalista de dominação, não no sentido que seja uma parte em coerência

funcional com tal sistema, mas que as relações ali constituídas são interdependentes de outras

instituições e atores sociais.

O Caixa Comunitário, que como veremos é um fator fundamental para a compreensão dos

conflitos faccionais entre os Terena é um “fundo” gerado pela articulação entre Estado (através da

política e instituições indigenistas) e Empresários e Unidades Produtivas Capitalistas, para a

exploração do trabalho indígena. Num certo sentido, é uma técnica de governamentalização dos

índios, já que trata-se de um dispositivo ao mesmo tempo voltado para uma racionalidade

econômica (de exploração do trabalho e geração de riquezas) e que prevê uma medida de “retorno”,

de reciprocidade em relação aos governados – a geração de fundo para o beneficio “coletivo”,

“comunitário”. Os contratos coletivos são o meio principal dessa governamentalização dos índios.

Ao mesmo tempo, é a base fundamental para a constituição do poder do Cacique Geral, e a

utilização destes recursos abaliza e dá legitimidade para as lideranças. Assim, mesmo existindo um

movimento local e autônomo que descentralizou a posição do Cacique, o reconhecimento da

legitimidade deste pela FUNAI,enquanto instituição estatal é fundamental. A FUNAI tem o poder

de reconhecer, não reconhecer e às vezes indicar ou retirar Caciques.

O poder dos Caciques, Locais e Geral, compartilhado e rivalizado como Chefe de Posto, se

dá assim sobre a mediação das relações de trabalho e administração da propriedade indígena, e está

fundamentado nas relações existentes entre estes instituições do Estado e Mercado Capitalistas e as

instituições indígenas. Se não considerarmos as relações e situação de classe dos índios Terena, é

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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impossível entender a exata configuração de sua organização política. A política indígena se

encontra diretamente subordinada à dinâmica da economia regional e nacional, e ainda, ao Estado,

através do regime tutelar.

Além das instituições estatais locais, existe a Administração Regional da FUNAI, que na

prática empreende uma função de arbitragem dos conflitos e da vida política dentro de cada terra e

comunidade indígena existente, apesar de que sua intervenção quase sempre depende da solicitação

ou demanda local. A FUNAI assim funciona como instancia decisória final para os processos e

conflitos políticos desencadeados no âmbito da aldeia.

Naati e Tuuti: organização política em processo

A organização política indígena se baseia também nas formas de organização social e

cultural. É importante compreender que o ponto de partida histórico da atual forma de organização

política Terena. A etnografia brasileira se ateve muito pouco as características desta organização

política, dando maior ênfase às distinções “estruturais” entre os “naati” (camada dos chefes) e os

“wharê-xané”, sem se preocupar com descrição da formação das comunidades/aldeias indígenas,

seus princípios e com os padrões de ação política e territorialização dentro das aldeias. Quando

falamos com os Terena e perguntamos o significado da palavra naati, ela é traduzida como

sinônimo de “Cacique”. Na descrição que J.Bach realizou das comunidades Terena de Miranda no

final do século XIX, ele descreve “koixomuneti” como sendo o cacique, o líder político das aldeias

Terena. Assim, existem divergências na etnografia quanto à caracterização do líder ou chefe Terena,

e conseqüentemente, acerca de sua organização política, de maneira que é preciso aprofundar tal

discussão e esclarecer certos aspectos.

É preciso compreender a organização política Terena nas situações históricas do Chaco e do

Diretório, para podermos caracterizar de forma mais precisa a sua atual dinâmica e organização

política. É preciso compreender a diferenciação entre os “naati” e “wharê-chané”, e as formas de

ação política dos “chefes ind ígenas”, assim como os padrões de distribuição e transmissão do poder

dentro das diferentes comunidades indígenas Terena existentes . Iremos agora tentar delinear os

traços fundamentais da organização política Terena nas situações históricas que antecederam a

situação histórica de reserva, pois estes trações são fundamentais para compreender o caráter das

transformações decorrentes do processo de formação do Estado-Nacional, bem como do regime

tutelar e do campo das relações interétnicas.

As informações levantadas por Baldus, Altenfelder Silva e Cardoso de Oliveira, tem pontos

comum. Primeiramente, concordam com a hierarquização na organização social dos Terena, seja na

Situação do Chaco, em que mantinham relações de aliança e simbiose com Mbaya-Guaicuru no

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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século XVIII, seja na Situação de Diretório, ou seja, aquela dada pela localização dos Terena em

territórios administrados pelo Império do Brasil, no século XIX.

O problema é que as informações reconstituídas pela memória dos informantes Terena, não

foram submetidas a uma maior contextualização dos informantes (se lugar interno), e nem se

especificou a que momento da vida do grupo elas se aplicavam. Neste sentido, uma reconstrução

histórica da organização social e política Terena tem de ser considerada com muito cuidado.

As principais fontes para o século XIX são de Francis Castelneau (anos 1840) e Affonso E.

Taunay (anos 1860), que forneceram descrições relativas a organização dos Terena. Bach fornece

algumas informações ainda sobre o final deste (anos 1890). Estes autores fornecem algumas

descrições sobre a organização e vida dos índios Terena, de maneira que se constituíram em

algumas das bases importantes para escrever a história indígena da região.

Duas teses foram formuladas para interpretar a organização política Terena: a de Altenfelder

Silva, que classificou esta organização em quatro “classes”: “Unati-aché, os chefes do povo ou do

conselho; os wharê-chané, “gente feia”; cauti, cativos; e chuna-axeti, chefes guerreiros (Altenfelder

Silva, 1949, p. 319); e a tese de Cardoso de Oliveira, que distingue três “camadas”: naati, wharê-

chané e cauti (para ele, os guerreiros não constituíam uma camada, mas eram uma posição

especifica da organização militar). Entretanto, na elaboração deste esquema, não se leva em

consideração dois fatores fundamentais: 1) a situação histórica em que, em tese, esta organização

social “tradicional” operou; 2) as relações interétnicas como fator determinante para a definição

desta organização social e política, de maneira que não se pode considerá- la em “separado” das

relações com outros grupos e instituições sociais.

Quer dizer, é preciso considerar os dois tipos de sistema social no qual os Terena, enquanto

sub-grupo Guaná/Chané, estiveram inseridos em cada situação histórica para poder compreender

esta organização e suas posteriores transformações sociais. Dois eventos históricos iriam alterar

profundamente as condições sociais sob as quais vivia a população Terena e sob as quais esta

organização social existiu e se desenvolveu. Primeiramente, a conquista e partilha dos territórios do

Chaco (como era denominada a região no Império Espanhol) ou Pantanal (no Império Português e

depois do Brasil), ou ainda Exiwa, como é chamada pelos índios Guaná e Terena (ver Azanha,

2002). Esta conquista implicou uma série de deslocamentos dos grupos étnicos ali existentes,

provocando novos processos de territorialização indígena, afetando conseqüentemente as relações

sociais entre os Mbya-Guaicuru e os Guaná e todos os povos indígenas da região.

No entanto, os Terena no século XIX seriam inseridos numa situação histórica distinta

daquela na qual a sua organização social “tradicional” (segundo a literatura existente) havia

prevalecido. A colonização da região sudoeste da então Província de Mato Grosso foi uma das

principais preocupações do Governo Imperial do Brasil. A relação entre os aparelhos de Estado

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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imperiais e os diversos grupos indígenas passaram a se intensificar. Neste sentido, uma certa

autonomia territorial e organizativa indígena correspondia a um período de transição entre

diferentes situações históricas.

A aliança com os Guaicurus, aos quais os Terena prestavam tributos em uma relação

comparada com a “vassalagem”, foi rompida. No século XIX, a autonomia de movimentação

territorial e capacidade bélica dos Guaicurus foi desmantelada, de maneira que as condições sobre

as quais se assentava a “relação de simbiose” foram desfeitas devido ao avanço do colonialismo

português e espanhol.

Os “Oquilidi-Naati” e os “Bairros-Cacicatos”.

Em primeiro lugar devemos indicar que a organização política dos Guaná/Chané, e seus sub-

grupos como os Terena, era definida pela sua posição concreta e variável, no sistema social

indígena do Chaco Pantanal. Neste sentido, não podemos falar da “organização política tradicional

Terena”, somente considerando os fatores internos (cultura modo de vida agricultor, tecnologia

neolítica), mas também os fatores externos, como o padrão de suas relações com e as formas de

ação dos outros grupos indígenas sobre os Guaná, e também do colonialismo português e espanhol

na região do Chaco/Pantanal.

Assim sendo, quando se fala de uma categoria como os “cativos” (cauti) na organização

política Terena, não se pode esquecer que esta era uma categoria do sistema social indígena. Os

grupos agiam e se organizavam em função da captura destes cativos, que poderiam tanto ser

absorvidos na sua economia e grupo, quanto comercializados nas cidades coloniais, como Assunção

no Paraguai. Os “cativos” incluíam uma ampla gama de povos indígenas da região, o que revela o

caráter estrutural da sua posição. Os próprios Guanás eram chamados de “cativos” ou “cativeiros”

pelos Guaicurus e marca a existência de relações estruturais entre estes dois povos indígenas, dentro

desta situação histórica. Além disso, a existência de “cativos” enquanto categoria social se dava

dentro de uma Economia colonial-escravista, encontrando paralelos na organização do Estado-

Nacional. A categoria social de “cativos” era assim não uma categoria de um ou outro grupo

indígena tomado isoladamente, mas sim uma categoria do sistema social indígena do

Chaco/Pantanal. Logo, o desaparecimento deste sistema deveria provocar necessariamente, o

desaparecimento de tal categoria social.

Com relação às demais categorias sociais, é preciso indicar as suas características

fundamentais, e demonstrar como não se pode considerá- las isoladamente, mas sim dentro do

sistema total de relações existente no Chaco/Pantanal. As descrições dos anos 1760, do Padre

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Sanchez Labrador, que atuou como missionário junto aos Guaná, fornecem alguns destes

elementos:

“.. tem os Guaicurus, de uma a outra margem do rio Paraguai, criados ou tributários que há tempo lhes fazem pequenos oferecimentos. Até onde pude indagar sobre a origem deste seu direito sobre os Nyololas, como eles chamam a toda a nação, tudo vai baseado no parentesco, sem que pelas armas ou conquistas pretendam este domínio (...) Alguns caciques ou grupos Eyguaeyegis se casaram a seu modo com cacicas ou capitãs Guanás. Os vassalos destas, mortas elas permaneceram num perpétuo feudo aos descendentes do maridos de suas senhoras. (...)

Visitam-nos cada ano e recebem - o preito-homenagem de seus criados. Quando vão a suas povoações, se detém em cada uma no máximo três dias, seja por não lhes permitir mais tempo a falta de pastos para seus cavalos, seja pelo costumes de muitos anos. A particularidade que existe neste ponto é que cada capitão Eyguaeyegi se aloja em casa de seus criados, sem que outro Mbayá se hospede na mesma casa. Observam esta prática com tantas precisão que, se a capitã Mbayá tem distintos criados que o de seu marido, se separam aqueles dias e cada um vive com os seus, sem o menor sentimento”. (Sanchez Labrador, apund in Cardoso de Oliveira, 1976 p. 32-33)

A organização política dos Mbayá-Guaicuru distinguia os Oquilidi, os chefes denominados

nas formas de comunicação do sistema colonial de “capitães”. Este grupo é que mantinha relações

diretas com os Guaná/Chané e seus subgrupos, através de outra categoria social, os naati/ unati107,

chefes ou capitães. A relações sociais Guaciuru-Guaná se davam pela cúpula, baseadas em relações

econômicas e de parentesco. Na realidade, os grupos de naati e oquilidi, tinham profundas

características exogâmicas, pelo que os dados dos relatos de militares e missionários permitem

indicar. Como vimos anteriormente, os Mbayá-Guaicurus eram um grupo profundamente mestiçado

do ponto de vista étnico-cultural no final do século XVIII, tanto na “base”, pela incorporação de

cativos Xamacocos, Guatós e Guanás, quanto cúpula pelas, alianças matrimoniais com sub-grupos

Guaná através da categoria dos chefes.

As visitas dos Oquilidis Guaicuru nas aldeias Guaná, como indicam os dados acima, eram

direcionadas para os grupos domésticos específicos, aqueles diretamente relacionados por trocas ou

alianças matrimoniais. Estas visitas obedeciam, em tese a certas regras, e seu descumprimento

poderia ser a causa de tensões inter- indígenas.

Os naati ou chefes Guaná e dentre eles os Terena, tinham assim a possibilidade de

estabelecer relações de aliança com um grupo indígena dominante dentro do sistema social do

Chaco/Pantanal, e a forma de interação entre cada sub-grupo poderia variar, mas em termos gerais,

esta aliança política baseada em trocas matrimoniais, econômicas e acordos militares, se colocou

como um padrão de interação entre os dois povos indígenas. Os Layana e os Chavaraná teriam

mantido uma relação mais conflituosa com os Guaicurus, enquanto os Terena – por terem adotado o 107 Unati, é a designação indicada por Altenfelder Silva e por Susnik, enquanto que naati é a designação utilizada por Cardoso de Oliveira, que indica que esta palavra é derivada etimologicamente de “unati” que quer dizer “bom” em Trena-Aruak.

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cavalo e se lançado a práticas guerreiras, conseguiram uma relação de maior equilíbrio de forças

com os Guaicurus, de forma a serem tratados mais como aliados do que como “cativos”.

De toda maneira, existia a possibilidade de uma aliança vertical, ou seja, dos Terena (que

enquanto Guanás eram “nyololas”ou cativos, e por isso com status inferior em relação aos

Guaicuru e devedores de tributos) para com o grupo dominante. Os naati/unati, capitães ou chefes

Terena, eram uma categoria social que se formou sob a marca da aliança política com grupos

sociais dominantes, de status e poder relativamente superior, e que em conseqüência disso, podiam

compartilhar a tradição cultural destes grupos, se desvinculando da lealdade para com a totalidade

dos grupos locais Terena, que poderiam se apresentar não do ponto de vista da divisão “étnica”

(Guaicuru X Guaná), mas sim “chefes” (oquilidi/naati) e cativos ou “comuns”.

A “exogamia étnica” da categoria social dos naati ou chefes, dentro da situação histórica do

Chaco/Pantanal e também do Diretório, pelo menos na sua primeira fase, faz com que a experiência

da “chefia” e organização política Terena fosse extremamente complexa, caracterizada pela

dispersão das mulheres “naati” e a vinculação de diferentes grupos- locais Terena a grupos de alta

mobilidade territorial Guaicurus, aos quais muitas vezes se aliavam em empreendimentos diversos,

como ações militares e migrações.

É preciso dizer que, o padrão de territorialização e organização política Guaná era muito

distinto dos Guaicuru; enquanto os primeiros eram preferencialmente sedentários e agricultores, os

segundos eram nômades e caçadores-coletores. As aldeias (no sentido indígena, e não estatal

administrativo) podiam variar em sua composição demográfico-social entre 500 e 1500 pessoas (ver

Susnik). Estas unidades sociais e territoriais, entretanto, não coincidiam com as unidades de ação

política, de maneira que não se pode imputar formas extremamente totalizadoras a elas. As aldeias

mantinham uma unidade cerimonial e simbólico-cultural, sendo um espaço de socialização e

conflito, eventuais relações de cooperação e concorrência econômica, mas não constituíam, por

conseqüência automática, unidades políticas. As informações que dispomos acerca da organização

social dos Terena na situação do Chaco, são principalmente dadas por Felix Azara e Sanchez

Labrador, e segundo este, as aldeias Terena eram formadas: “em ruas divididas em quadras e no

meio, uma praça grande...”, e dividiam-se também “em bairros capitanias, podendo cada um

compor-se de 15 ou mais casas comunais..”. (Sanchez Labrador apud in Susnik, op.cit, p. 112).

Isto pode ser demonstrado através das próprias formas de interação Oquilidi-Naati, como

indica Susnik:

“A dependência se fundamentava nas relações matrimoniais. (...) Desta maneira, diferentes bairros-cacicatos que compunham as aldeias Chanés, podiam reconhecer a um determinado capitão Mbayá, quem era o verdadeiro “oquilidi’ do respectivo bairro. Em virtude deste status, o oquilidi tinha o direito de usufruir da produção agrícola do bairro e exigir o serviço da plebe integrada, sempre na mesma medida que o próprio chefe chané do bairro, recebia os atuais regalos –segundo a etiqueta Chané -, seja mantas de algodão ou bolos de ‘nibadená-urucu’

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para pintura corporal, devendo corresponder na qualidade de oquilidi com objetos de ferro, sempre uma necessidade básica dos cultivadores. A dependência Chané era estruturada através da integração cacical de um Mbayá dentro da classe dominante; o integrado oquilidi obteve assim o direito próprio de um senhor Chané do bairro, o que significava o poder sobre a plebe integrada, mas não sobre a classe cacical, com a qual tinha que cumprir as pautas de reciprocidade. A vassalagem não implicava uma subordinação tribal como conjunto sóciopolítico, mas uma dependência econômica por unidades fragmentadas, estas representadas nos ‘bairros’ das aldeias”. (Susnik, op.cit, p.115).

Ou seja, as unidades sociais e territoriais amplas dos Terena, os grandes aglomerados

populacionais, eram parte de uma tendência sócio-cultural, mas estas unidades eram fragmentadas

politicamente, em um tipo de organização segmentar baseada na exogamia étnica e alianças

matrimoniais verticais, na camada dos “chefes”. Esta forma de organização, inclusive, criaria

dificuldades para os Terena no território administrado pelo Império Espanhol. Ao contrário do lado

da fronteira brasileira, ocorreu já no início aquele século uma colonização criolla nos território na

margem ocidental do Rio Paraguai, e a demanda por terras melhor cultiváveis criou uma tensão

entre as comunidades locais Terena e os colonos criollos. Enquanto no lado brasileiro, os Terena

eram sempre associados a representações de índios “pacíficos” e potenciais aliados do “Império”,

no lado espanhol, na mesma época, eles era acusados de ser um grupo incontrolável, dado a roubos,

saques e raptos, tratado então como um grupo “bravio” e guerreiro108.

Os contornos gerais desta organização política permanecerão na primeira fase da situação de

diretório. A inserção num sistema político estatal não afetaria a transmissão hereditária da liderança

dentro da camada dos naati, e mais especificamente, de pai para filho ou dentro do grupo de

siblings, mecanismo que continuou operando durante o “cativeiro” no início do século XX (ver

Altenfelder Silva, 1949, Cardoso de Oliveira, 1968).

5.3 - Empreendimentos Indigenistas e descentralização político-territorial.

O processo de formação das aldeias deve ser compreendido a luz da organização social e

dinâmica política Terena (especialmente as formas de segmentação) e sua interação com as

instituições estatais. As primeiras reservas indígenas Terena foram estabelecidas em 1904, as de

Cachoeirinha e Bananal. Mas em todas as reservas ao longo do século XX foram formadas

diferentes aldeias, com organização política própria. E a origem dessas aldeias remonta aos

empreendimentos indigenistas, assim como a formação das reservas remetem a empreendimentos

108 “Mas não eram as únicas causas o roubo e o rapto de mulheres a que motivavam o pedidos dos colonos de desalojar os Terenos de Naranjaty: havia certa preocupação pelo rápido crescimento demográfico deste grupo indígena”...: (Susnik, 1981,p. 220). Éinteressante observar que o último núcleo Terena no território paraguaio é desalojado em 1840,data próxima a que Oberg diz ter sido a migração dos Terena de Bananal. Épossível que ele tenha registrado exatamente a história deste grupo.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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governamentais e militares. É uma história da formação das aldeias por meio de empreendimentos

indigenistas dentro da reserva que iremos narrar agora.

Cachoeirinha/Sede.

As denominações dos cinco setores ou aldeias hoje existentes na Terra Indígena

Cachoeirinha remetem a natureza. Os nomes dados pelos Terena as aldeias representam a

incorporação de elementos da natureza na criação de categorias de classificação do espaço e

território. Bookoti ou Cachoeirinha, é um nome dado devida a existência de uma pequena cachoeira

no local onde hoje se localiza a aldeia. Morrinho, é devido a existência de um Morro, que seria o

antigo limite da terra de Cachoeirinha. Babaçu é um tipo de árvore, existente na área que hoje é a

aldeia; Argola, é um nome dado em razão de os primeiros moradores do local terem construído as

suas casas de maneira circular, em torno de um rio (informações dadas por Inácio Faustino, Aldeia

Argola, Setembro/2004).

No século XIX, existia uma aldeia Terena denominada Cachoeirinha, mas não é possível

que sua localização não corresponda a da atual Cachoeirinha. E esta aldeia atual, teria sido formada

depois da Guerra do Paraguai, quando o líder Kali Sini (pequena onça ou oncinha) conduziu um

grupo de Terena para as margens ocidentais do rio Paraguai. Antes da formação da reserva,

Cachoeirinha passou por uma situação de grande instabilidade populacional. Segundo Roberto

Cardoso de Oliveira, ao final do século XIX, um fazendeiro o “Coronel Zózimo Filho”, dono da

Fazenda Santana (hoje fazenda Petrópolis, de propriedade de Pedro Predrossian, ex-governador do

Estado do Mato Grosso do Sul, que faz limites com Cachoeirinha), acusou os Terena de roubo e

saque nas fazendas. Como conseqüência deste processo, o Coronel passou a considerar os Terena

como devedores, obrigando-os a trabalhar de graça na sua fazenda. Alguns índios se rebelaram e

fugiram para Bananal e serra de Maracajú, não retornando mais. Porém outras famílias chegariam

de Lalima, e da Fazenda Salobra. Assim, a demarcação da reserva de Cachoeirinha em 1905 pela

Comissão Rondon encontra esta situação, de reagrupação de famílias no local.

Cachoeirinha é a mais antiga das áreas residenciais. Na realidade, a localização da área da

Cachoeirinha mudou várias vezes ao longo do tempo. A princípio, a ocupação teria se dado na área

que hoje é conhecida como Morrinho, e somente depois este nome teria ficado associado ao local

que hoje é a “Sede”. Cachoeirinha é a primeira das aldeias hoje existentes a ter sido formada.

Adolfo Pedro, hoje morador do Babaçu, falou que segundo sua mãe, “eram 8 as famílias

“fundadoras” da Cachoeirinha: “Na historia da mamãe, eram 8 famílias, tudo veio daquele lado,

Chaco. Ai vinha vindo, disse que tinha homens corajosos, que atravessaram Rio Paraguai, e os

índios bravos mataram gente lá, e esse primeiro índio que veio investigar aqui chamava Kaly Siny

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

260

(pequena onça), e foi feito por Deus”. Citou os nomes dos primeiros moradores: Handi; Hitu´tui;

Soporoke´e; Miexou; Kiriu; Heovoloukê; Pe´pelô. Disse que só conhece os nomes no “idioma”

porque antigamente os índios não tinham nome em português, que eles “pegaram trabalhando com

o patrão”. Das famílias identificadas como fundadoras Adolfo identificou as relações genealógicas

de algumas delas: Handi seria antepassado da família Canali; Kiriu seria da família Lipú; Pe´pelô

seria bisavô de Adolfo Pedro; Heovoloukê da família Gonçalves (o que é interessante é que o

Gonçalves que nós conhecemos era um índio Kadiwéu) que moram nas vilas Serradinho e Morrinho

principalmente. A aldeia Cachoeirinha se compunha assim no início do século XX, de alguns

grupos domésticos, os quais possuem ainda descendentes – e famílias importantes – em

Cachoeirinha.

Argola

Vejamos à história da ocupação das terras que hoje fazem parte da aldeia Argola. Segundo

Fernando Antonio da Silva, um ex-cacique da Argola:

“Assim conforme conta o histórico desta aldeia Argola o inicio da vinda dos lavouristas lá aldeia da Cachoeirinha começou o povoado desta aldeia, aonde foi deixado os moradores desta aldeia Argola, mais ou menos no período de 1935 por ai. Eu fiquei já sabendo no período de 1960, eu já existia aqui na aldeia e comecei acompanhar o movimento.(...) Fomos trabalhando, expandindo esta aldeia, começou chegar gente da Cachoeirinha, mudando para cá. Onde foi a historia desta aldeia Argola. Começou a juntar a população onde foi formada uma aldeia até no presente momento. (...)

Segundo Fernando Antonio da Silva, foram cinco as famílias a se fixarem inicialmente em

Argola: uma delas é a de Felipe Antonio, seu avô, outra é a de Pedro Candelário (parente) de Rufino

Candelário. A família Candelário e a família Antonio da Silva são duas das maiores e mais

importantes do setor no atual momento histórico. O atual cacique de Argola é João Candelário, e o

primeiro cacique foi Rufino Candelário, ainda morador da Argola. Fernando Antonio da Silva

também já foi cacique, por duas vezes, entre (1995-2003). A formação da Argola deriva em parte da

ocupação das antigas áreas de roça.

Conversamos também com Januário Candelário, e cruzando as informações genealógicas

com as fornecidas por Fernando é possível concluir o seguinte: os irmãos Candelário (Antônio

Candelário - pai de Januário - João, Pedro e José) se mudaram para Argola por volta de 1950

(quando Januário tinha 18 anos); ele, seu pai e seus irmãos (Jerônimo, Cândido, Lázaro, Marilza e

Margarida Candelário). Existiam 4 famílias na Argola no início de sua formação, sendo que Felipe

Antônio seria sogro do Pedro Candelário, porém não conseguimos determinar com que filha ele foi

casado, possivelmente Guilhermina Antônio.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

261

O grupo teria se deslocado para tocar roças o que confirma a formação de aldeias a partir de

núcleos de famílias extensas inter-relacionadas por parentesco, a família Candelário se juntaria à

família de Felipe Antônio, que seria sogro de um dos filhos de Antonio Candelário. Na realidade

estas trocas matrimoniais é que gerariam as novas famílias extensas, que seriam à base da formação

das novas aldeias. Em 1935, aproximadamente começa a ocupação de diferentes áreas de roça em

Cachoeirinha.

Morrinho

Vejamos a história de Morrinho, outro dos setores da terra indígena de Cachoeirinha.

Conversando com Isidoro Pinto, ele me passou algumas informações sobre a história de Morrinho.

Vejamos como o cacique Isidoro Pinto, conta à história local:

“Quando e quem criou esse setor? Foi, parece que começaram 1961. Foi finado Luiz Raimundo. Mas eu tava 15 anos ainda. ( ) Mas quando fundou aqui tinha quatro famílias. Não, cinco famílias. Era todo mundo da família do Luiz Raimundo? É, era família dele mesmo. Porque a minha mãe era da família do Luiz Raimundo. Só que tem finado Luiz Raimundo, finado meu pai, e tem Firmino Augusto, é outra família. Firmino Augusto, ele está aí na Cachoeirinha, não sei se você viu, ele é irmão. Aí tem o Renato, ele está aí ainda. (...) Os primeiros que começaram nesse Morrinho. (...). Por que essas famílias vieram para cá? De primeiro aqui é roça, primeiro era roça. Finado Luiz Raimundo, ele morava em Cachoeirinha, finado meu pai morava lá. Mas só que aonde que ele toca roça era aqui. Foi indo, foi indo, tocando roça nessa parte, vai embora pra Cachoeirinha, cedo já tava aqui na roça. Depois ele fez um barraquinho aqui na roça. Aí outro veio fazendo barraquinho também, dentro da roça. Aí depois ele acostumou de morar, depois ele mudou, mas não tinha ainda essa tal de Morrinho, trabalhava na roça, ainda. Aí, depois aquele chefe do posto, apareceu aquele chefe do posto, chama Vitorino. Não sei se ele é finado ou está aí ainda... Ele é branco, mas eu não sabia que ele tá aí ainda. Mora em Campo Grande. Aí, apareceu aquele chefe do posto, aí já inventaram pra levantar a comunidade aqui no Morrinho. Aí falou pro Luiz Raimundo pra ele ser cacique, ele que comanda aqui. (...). É. Depois, foi indo, levantando aquele outro também, né, o Babaçu. Quem mais primeiro cacique lá, chama Faustino, do Babaçu. Do tempo do finado Luiz Raimundo. Faustino já é finado também. Aí foi indo, levantaram. Aí já tem outro aldeia, Morrinho, Babaçu, Argola, Lagoinha, se tiver muitos anos, é dez anos, por aí. Por que colocaram o nome de Morrinho? Agora sim, rapaz... Esse aí, quando já conheci nesse mundo, já estou com aquela idade, já conheci, aquele que nome do Morrinho, tem um açude pra cá nesses rumos. Um açude, né. Um índio antigo que fez descer aquele açude. Tinha aquela pedra ali, aquela pedra (...) até hoje tá ali. Aí quando era, já conheci mundo, eu sei que o nome daquele morrinho e lá, aquele açude. Sempre a indiada veio pra lavar roupa ali. Não tinha açude, aquele perto ali. Não era como hoje. Antigamente, aí, a minha mãe sempre falava – Eu vou lá no morrinho lavar roupa, aí eu bem acompanhando, era ali. E aquela pedra toda ali rodando aquele morro ali. E eu que falo,

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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pode ser por causa daquele, o açude. Mas tem aquele morro, agora, que fala aquele Morrinho lá, aquele grandão lá. Mas não é. Não é. Esse é enganado. Eu sei que o Morrinho é aquele ali. Aí quando levantou aqui, pegou nome aqui. Já escutei o que ele falou – Morrinho, aqui, ele pegou o nome daquele morro lá. Mas não esse. Esse aí, ele criou agora essa conversa, mas pra mim não é. (08/05/2003).

O que hoje é aldeia Morrinho, era até os anos cinqüenta aproximadamente uma área de

roçado. As residências foram construídas depois, e cinco famílias se deslocaram para ali, na época

do “capitão Timóteo”: as famílias de Otávio Pereira, Luis Raimundo, Pereira Pinto, Renato

Barbosa e Firmino Augusto.

A genealogia do Cacique Isidoro é interessante para descrever a história local. Seu Pai é

Pereira Pinto. O pai de seu pai e a mãe de seu pai ele não soube informar os nomes. Seu pai tinha

dois irmãos, Firmino Pinto e Antonio Pinto, e duas irmãs que morreram e ele não soube informar o

nome. Sua Mãe é Cristina Domingo.O pai de sua mãe é José Raimundo e mãe de Sua mãe é

Domingas, não soube informar o sobrenome. Os irmãos de sua mãe são Luis Raimundo, João

Raimundo e Armando Raimundo, suas irmãs, Lúcia Raimundo e Rosa Raimundo.

Eu recolhi também a genealogia da esposa de Luis Raimundo, a senhora Zenaide

Gonçalves, nascida em 1935. O Pai dela é Batista Gonçalves e sua Mãe Anita Heloi. O pai de seu

pai é Brigito Gonçalves (índio Kadiwéu) e a mãe de seu pai é Cirina. Seu pai tinha como irmãos

Lino Gonçalves, Artério Gonçalves e Pascoal Gonçalves. Sobre sua mãe não consegui maiores

informações. Ela tem como irmãos : Aldo Gonçalves, Lucio Gonçalves, João Gonçalves, Heitor

Gonçalves (com quem peguei informações genealógicas também) e Margarida Gonçalves (que

alguns dizem ser “benzedora/rezadora”). Seus filhos são: Milton Raimundo (que me ajudou a fazer

as entrevistas), Ramão Raimundo, Jorge Raimundo (diretor da Igreja Assembléia de Deus

Emanoel), Lúcio Raimundo, Getulio Raimundo, Edenir Raimundo, e Sebastiana Raimundo e ... (ver

nome Raimundo).

Ou seja, as famílias que se deslocaram para a área que hoje é a aldeia Morrinho, duas delas

pelo menos, eram previamente inter-relacionadas por parentesco. Luis Raimundo era cunhado de

Pereira Pinto e tio de Isidoro Pinto. Atualmente, as residências do cacique Isidoro, e dos

descendentes das demais famílias,seguem o padrão da co-residência da família extensa.

Destas famílias fundadoras do Morrinho, saíram às primeiras lideranças locais,

especialmente o “cacique Luis Raimundo”, que ficou no seu cargo durante cerca de 15 anos, até o

início dos anos “80”, pelo que nos informamos. Depois da morte de Luis Raimundo, outros dois

homens ocuparam os cargos de caciques (Roberto Júlio, que teria abandonado o cargo por ter

“fugido” com uma mulher, e (...) que teria sido removido da função por pressão da comunidade).

Isidoro foi escolhido em 1988 para cacique (temos um documento que confirma isso).

Campão/Babaçu

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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O setor que hoje é conhecido como “Campão/Babaçu” existe pelo menos desde os anos 50,

pois já era mencionado nos estudos de Cardoso de Oliveira, inclusive como área de maior

“produtividade econômica” naquele contexto. Na realidade, Campão e Babaçu consistem em duas

áreas diferentes, ocupadas por conjuntos de distintos grupos familiares. O Campão fica do lado

oeste da estrada, próximo a uma área de serrado, e foi ocupada por famílias de origem Laiano,

especialmente as de Gonçalo Roberto e Faustino Salvador .

O Babaçu é uma área mais central, próxima a estrada da Cachoeirinha. Uma das primeiras

famílias a se fixar no local, é a família “Balbino”, hoje responsável pela Igreja Presbteriana

Renovada, e que foi protagonista de um conflito político-religioso nos meados dos anos 90. Seu

pastor, Emenegildo Balbino, nos contou que em certa ocasião que a tenda da sua Igreja foi

incendiada pelos Católicos, com a ajuda da Associação Mãos Unidas (presidida pelo hoje Cacique

Zacarias da Silva). O Cacique Zacarias é morador do Campão e não do Babaçu.

Conversamos com Saturnina Rodrigues, nascida em Campão em 04/06/1955. Sua mãe

nasceu no Lalima, de nome Calixta Roberto e filha do Xamã Gonçalo Roberto, e seu pai Demétrio

Rodrigues, nasceu no Bananal. Indicou (junto com dois de seus irmãos que os primeiros moradores

do setor foram Faustino Salvador, Irene Salvador e Marcelino Salvador). Na sua genealogia vimos

que há uma mulher (Firmina Salvador) que indica a troca matrimonial, ou a absorção de indivíduos

migrantes – no caso Gonçalo – nas famílias existentes, no caso a Salvador.

Depois entrevistamos Justo Salvador (filho de Faustino Salvador) e sua esposa Maria

Belizário (irmã de Celinho). Eles informaram que Faustino era nascido na Cachoeirinha e foi para

Lalima onde residiu 12 anos e depois retornou. Lá ele se casou com “Camila Roberto” e foram

morar no Campão. Indicam que ele Faustino se deslocou com sua esposa, sua irmã Marcelina

Salvador (casada com Miguel Batista). Depois a segunda família a se deslocar para o que hoje é

Babaçu, foi a de José Balbino, que morava e trabalhava na região de Albuquerque.

Faustino (seu apelido era Xovoti, que em Laiano significa “filho único”) teria se tornado

cacique em 1962, ficando 5 anos. O primeiro cacique do Babaçu foi Adolfo Pedro, indicado por

Lino em 1979. Assim segundo estes dados, Campão teria sido formado por um grupo de siblings (os

“Salvador”) a quem se juntariam depois os membros da família Roberto, também vindos de Lalima.

A parentela Rodrigues teria início com a absorção de Demétrio neste grupo.

No Campão entrevistamos Calixta Roberto e Demétrio Rodrigues (o cacique Zacarias

Rodrigues é um de seus filhos). Ela reside na mesma área que seu pai e sua mãe moravam, e ali

foram construídas as casas de dois de seus filhos. Calixta Roberto é nascida na Lalima, em 14-10-

1936 e foi para o Campão aos 10 anos, aproximadamente. Ela é filha de Gonçalo (que tinha dois

nomes, também o de Valeriano Roberto) e Firmina Salvador. Disse que Camila Roberto que se

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casou com Faustino Salvador, era tia de Gonçalo. Foi então um grupo de siblings Laiano vindos de

Lalima que fundaram a área chamada Campão – até então um serrado desabitado.

Depois conversamos com Adolfo Pedro, primeiro cacique do Babaçu. Ele é nascido em

11/09/1933, e começou a construir seu rancho com 16 anos naquele local. Seu pai era Geraldo

Pedro e sua mãe Dionísia Balbino (filha de José Balbino). Foi morar ali, depois da morte do pai.

Isto significa que a família Balbino, era uma família extensa, e que a filha se reintegrou na casa do

pai depois da morte do marido.

Disse que os primeiros moradores foram: José Balbino e sua esposa Maria Carolina; seus

irmãos Antonio, Mário e Augusta Balbino (casada com Leôncio da Silva); José Vaquero (genro de

Balbino). Citou também como moradores antigos (Seranio Sebastião, Gonçalo Roberto, Faustino

Salvador Francisco da Silva e João Lemes, do lado do Campão). Ou seja, o Babaçu foi também

formada por famílias extensas inter-relacionadas por parentesco; José Balbino, com seus irmãos,

filhos e genros.

Lagoinha

Lagoinha é a aldeia de criação mais recente em Cachoeirinha. Ela começou a ser formada

nos meados dos anos 1970, com a chegada de algumas famílias vindas da aldeia Lalima. O atual

Cacique da Lagoinha é Ramão Vieira, de uma destas famílias vinda da Lagoinha. Conversamos

com Felipe Neto, nascido em 23/09/1952, e atual presidente do Conselho da Aldeia. Ele nasceu na

aldeia Argola, onde o pai e a mãe moravam e se mudou para a Lagoinha aos 28 anos, ainda solteiro

(acompanhando sua mãe Vitoriana Ferreira, que havia se separado de seu pai). Antes dele já

residiam na área da Lagoinha, Osvaldo Vieira (que se tornaria seu sogro) e Benedito Ferreira com

sua esposa Joana da Silva (seus avós, pais de sua mãe). Ou seja, o retorno de Felipe e sua mãe

indicam a reconstituição de uma “família extensa”, depois de um divorcio. A família de Osvaldo

Vieira, casado com Adelaide Arruda, foi morar lá mais ou menos na mesma época (1980), vindos

de Lalima com seus nove filhos. 3 filhos de Osvaldo Vieira casaram-se com as irmãs de Felipe

Neto: Alípio Vieira com Pedrosa Felipe; Lilio Vieira com Dionísia Felipe; Virgilio Vieira com

Petronia Felipe. A comunidade de Lagoinha se constituiu na base de trocas matrimoniais, e destas

duas famílias inter-relacionadas é que sairiam as lideranças políticas. Uma outra família residente

na Lagoinha era a do xamã Mário Lemes.

Na Lagoinha o padrão é o mesmo: co-residência dos ovokuti com famílias nucleares,

agrupadas em lotes e que funcionam como unidades de produção/consumo e também de ação

política. Felipe Neto falou que foi ele que brigou para colocar o cacique, “lutei, lutei e coloquei o

Alípio, porque era o mais velho de todos, e eu era vice dele. Alípio Vieira é seu cunhado (irmão de

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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sua esposa). O segundo cacique foi Joãozinho Felipe e Jorge Felipe seu vice (seus irmãos), e neste

momento construíram um Conselho Tribal. O terceiro Cacique é Ramão Vieira, pelo que disse, os

caciques são escolhidos na comunidade, ainda não há eleições.

A formação das comunidades- locais Terena obedece certas características comuns. A

história de Cachoeirinha, de seus cinco setores, da territorialização interna dos grupos domésticos,

revela alguns padrões 1) Argola, Morrinho, Campão/Babaçu e Lagoinha foram criadas pela

ocupação inicial de 3 ou 4 famílias. Em todo os casos, as famílias que se fixaram, eram famílias

extensas previamente relacionadas, ou terminariam por se inter-relacionar através de matrimônios, e

a forma de ocupação que elas hoje fazem do território, indica que desde o início estas famílias

extensas eram a forma de organização social das unidades familiares; 2) a fixação da residência

nestas novas áreas (e isto é igualmente válido para Babaçu, Lagoinha, Morrinho e Argola), se deu a

princípio por uma motivação econômica, para facilitar o trabalho e a exploração das roças que se

localizavam nestas áreas; 3) os setores hoje existentes foram sendo construídos a partir das décadas

de 1930/40 (Argola e Campão/Babaçu), década de 1950 (Morrinho), e década de 1970 (Lagoinha).

Os três setores (Argola, Babaçu, Morrinho), foram construídas sob o período de existência do SPI,

por ordem ou orientação do Encarregado do Posto, ou seja, pela intervenção da política indigenista,

de maneira que os objetivos de índios e encarregado do Posto eram coincidentes neste aspecto. Pelo

que a memória dos moradores do local indica, os deslocamentos destas famílias para as roças

muitas vezes era feito por incentivo ou ordem direta dos Chefes de Posto, que visavam aumentar a

produção econômica da reserva indígena 109. 4) Como vimos pelas informações dadas por Isidoro

Pinto, o primeiro cacique de Morrinho foi indicado pelo Chefe de Posto. Os primeiros caciques de

cada setor saíram das famílias que inicialmente ocuparam as áreas de roça. Isto significa que, em

todos os setores, as famílias extensas que se fixavam, se já não tinham uma relação privilegiada

com o Estado, através do Chefe de Posto do SPI antes de se deslocarem para as áreas de roça,

terminaram por estabelecer tal relação no processo de ocupação das roças. Como algumas pessoas

nos falaram, o Cacique em Cachoeirinha era escolhido por “indicação”. Segundo estas pessoas, os

“mais velhos” se reuniam para indicar o nome do Cacique. Mas este processo era regulado pelo

Chefe de Posto do SPI, que indicava também o cacique. A “indicação” era um sistema em que se

conciliava a indicação do Chefe de Posto com a indicação feita por alguns indígenas. Assim, o

Cacique Lino de Oliveira Metelo teria sido indicado por um Conselho de Anciãos e pelo Chefe de

Posto. O Cacique Lino por sua vez teria indicado seus auxiliares, que deveriam trabalhar segundo

sua orientação, todos se subordinando ao poder do Chefe de Posto. Criou-se uma rede determinada

de famílias que compartilhavam, em certa medida o poder de certas instituições de Estado, ou

109 Lembremos que Roberto Cardoso de Oliveira, fala de uma “economia do posto”, quando analisa as relações interétnicas entre os Terena e o SPI.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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melhor, o poder concedido pelo Estado sob certos objetos específicos. Veremos mais a frente que

hoje a maior parte das lutas políticas faccionais se dão entre membros destas famílias e grupos

vicinais que inicialmente se integraram nas redes de Estado e outros que com elas iriam disputar

poder e recursos materiais e simbólicos.

No conjunto deste processo, em que empreendimentos indigenistas conciliavam os

interesses do Estado com os dos grupos familiares Terena e possibilitaram a expansão das roças e a

formação de novas aldeias, ocorreu simultaneamente uma tendência ao crescimento demográfico do

conjunto da reserva combinada com a da descentralização política. Ou seja, ao longo de um século,

entre 1900 e 2000, houve uma tendência à descentralização política relativa. Mas mesmo sendo

estes processos de formação gerados por processos de “empreendimentos”, eles terminaram por

acumular uma série de questões e efeitos que levariam a emergência de dramas sociais. Neste

sentido, podemos falar de que num primeiro momento, os empreendimentos sociais prevaleceram,

e que a ocupação das áreas de roça tinha as características deste tipo de processo social.

Este processo de formação de novas aldeias, e depois sua transformação em unidades

políticas relativamente autônomas – ou que buscam ter autonomia – se deu a princípio, pela

estratégia deliberada do SPI, através dos encarregados de Posto, de expandir a área plantada,

aumentar a produção e gerar o “desenvolvimento” da aldeia, de acordo com os parâmetros do

indigenismo do século XX - criar arruamentos, construir casas com o padrão “brasileiro”. Além da

ação do Encarregado de Posto do SPI, era fundamental também para o estabelecimento destes

“ranchos” nas áreas de “roça”, a ação do Cacique, pois ele gerenciava as ordens do Encarregado e

deveria aplicá- las e supervisioná- las.

A princípio, não existiam “caciques” nestas novas áreas, nem elas eram consideradas como

“aldeias”, mas eram vistas apenas como grupos domésticos residentes em novos ranchos. A origem

dos “caciques” e a posterior transformação destas unidades em aldeias, se relaciona diretamente ao

próprio processo de centralização política dentro da aldeia. Pelo que levantamos o Cacique da sede

Lino de Oliveira Metelo indicou “auxiliares” dentro das novas áreas de residência, conforme estas

áreas foram crescendo em importância e demografia. Com o tempo, estas lideranças locais teriam

começado a reivindicar autonomia política local, transformando-se os antigos conglomerados de

ranchos ou “bairros” em novas “aldeias” (no sentido estatal e indígena) das quais estes teriam se

tornado os caciques. A formação das aldeias por meio de empreendimentos conjuntos dos índios e

o Estado, através da ação do Encarregado de Posto que incentivava a exploração econômica das

terras da aldeia, teve como efeito de longo prazo um processo de descentralização política que

assumiria contornos faccionais.

Esta descentralização inicial teria como resultado a transformação destas antigas áreas de

roça, em “aldeias”, cada uma com um Cacique e uma estrutura de liderança própria. Sabemos que

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uma disputa política existe entre os caciques dos setores e o Cacique da Sede, e que a transformação

das antigas “roças” e “auxiliares de cacique” respectivamente em “aldeias” e “caciques”, expressam

a reivindicação de autonomia das novas comunidades locais e a disputa de poder dentro do grupo.

Ouvimos em uma ocasião o seguinte “cacique da Sede manda na Sede, aqui quem manda é o

cacique daqui” (palavras de Adelino José, secretário da liderança da Argola, em conversa informal

sobre os assuntos de Cachoeirinha).

A atual organização política e territorial Terena hoje é o produto desta história e experiência

local. As forças advindas da organização social e das relações político-econômicas combinaram-se

e produziram o que hoje é a realidade social do grupo. Hoje as cinco aldeias existentes, sua

organização social e política, só são plenamente compreensíveis à luz desta história. Somente assim

compreendemos o real significado de certos acontecimentos. Veremos mais a frente que a luta

política dentro do grupo étnico, e a forma das relações interétnicas, acompanham esta dinâmica

histórica.

Estas aldeias são unidades básicas da organização política Terena. Elas são hoje uma

interseção entre as instituições administrativas de Estado e a organização indígena. Do ponto de

vista estatal, consistem em unidades territoriais na qual se aplica a política indigenista, do ponto de

vista indígena, consistem em unidades societárias compostas pela articulação de grupos domésticos

inter-relacionados por parentesco, e que participam em relações de sociabilidade, cooperação e

conflito. Mas estas unidades, como produtos das relações interétnicas, não podem ser vistas apenas

como resultado da imposição da política indigenista, mas tem de ser compreendidas como produtos

das estratégias políticas indígenas.

Esta organização do território indígena em diferentes aldeias é o resultado de um processo

verificado dentro da situação histórica de reserva. A construção do território indígena expressa

exatamente os processos de centralização/descentralização verificados dentro da organização

política Terena, por meio da combinação de empreendimentos indigenistas e lutas faccionais.

5.4 – As facções e a política do óleo e da semente.

O processo de descentralização político-territorial não foi gerado exclusivamente por

empreendimentos indigenistas. Na realidade, paralelamente aos empreendimentos, desenvolveram-

se dramas de sucessão que foram fatores determinantes para a organização política Terena. Isto

porque dentro das próprias aldeias se deram processos de segmentação que resultaram na

construção de diversas “vilas”. Essas unidades têm um profundo significado e importância e seu

surgimento está associado aos dramas de sucessão.

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A multiplicação de aldeias dentro das reservas na realidade é apenas o desdobramento de um

processo que já existia, de diferenciação interna. Cachoeirinha era historicamente dividida em

“bairros”. Nos anos 1950 eram 53 ranchos na área que hoje é a Sede, Argola com 23 ranchos e

Capão, com 18 ranchos. Mas na “Sede”, “... poder-se ia ainda dizer que esse núcleo estaria

dividido em dois “bairros”, Cachoeirinha propriamente dita e Cruzeiro, atualmente muito pouco

diferenciados mas que tempos atrás chegaram a representar dois grupos até certo ponto rivais e

com equipes de futebol próprias”. (Cardoso de Oliveira,1976, p.72). Quer dizer, o processo de

localização dos grupos domésticos dentro do espaço aldeão tinha levado a diferenciação em

“bairros”. No caso da antiga área central da Cachoeirinha, dent re os 53 ranchos existia uma

subdivisão entre “Cachoeirinha” e “Cruzeiro”.

Essa configuração territorial só pode ser compreendida em relação a dois fatores: o regime

de escolha dos caciques e a organização política indígena, e historia das facções e líderes locais. Em

Cachoeirinha e nas demais aldeias, a partir dos anos 1920, serão aplicadas diferentes fórmulas de

organização política. Primeiramente a indicação do Cacique pelo Chefe de Posto. Depois a criação

de um “Conselho Tribal” (aparentemente, nos anos 1930), que indicaria o cacique, e finalmente as

“eleições”. As eleições para Cacique foram implantadas a princípio nos anos 1960, mas seu uso se

generalizou entre os Terena apenas nos anos 1980. A implantação das eleições emergiu como uma

“solução” à mera indicação do Cacique pelo Chefe de Posto, como forma de dar maior legitimidade

à ação o Estado, criando bases internas ou o “consentimento” do grupo para as ordens dadas pelo

Encarregado do Posto. Isto se fez necessário devido às dificuldades encontradas em impor uma

liderança única centralizada ao conjunto do grupo. Mas na realidade o seu emprego foi logo

descartado e só voltaria a ser acionado em razão da política de resistência dos índios. O quadro

abaixo permite visualizar a evolução da organização política de Cachoeirinha:

Quadro 34 - Organização Política Terena em Cachoeirinha – 1850-2005.

1850-1903 1904-1927 1928-1979 1980-2005

“Regime da Transmissão Hereditária

da Chefia”. (dentro da camada naati). Controle total dos índios sobre o processo político

aldeão.

“Regime de Indicação Unilateral” (pelo SPI).

Controle total do Estado sobre o

processo político aldeão.

“Regime de Indicação Bilateral”

Os “índios” representados pelo“Conselho Tribal”, em

conjunto com o SPI, escolhiam o Cacique. Em tal

regime havia o predomínio do Estado no controle do

processo político aldeão.

“Regime de Eleições Diretas” (organizadas pelo

SPI/FUNAI). Os “índios”, tomados em seu conjunto, escolhem o Cacique. Em tal regime há um relativo equilíbrio entre Índios e Estado no controle do processo político aldeão.

Conseguimos algumas informações para tentar compor uma “linha de sucessão” dos

caciques Terena. Esta linha não está completa. Segundo estas informações entre meados da década

de 1950 e o atual momento, sucederam-se 11 caciques.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

269

Quadro 35 - Linha de Sucessão dos Caciques Terena de Cachoeirinha (as datas são aproximadas). Até 1904 1904-1918 1919-1928 1928-1958 Década 1960

Polidório

Benedito Polidório. Capitão Vitorino

Pereira da Silva Capitão José Timóteo

Ciriaco Júlio (foi derrubado do cargo) Faustino Salvador Lino de Oliveira Metelo

Década de 1970 1976-1979

1979-1982

1982-1985 1985-1988 1988-1991

Lino de Oliveira

Metelo

Mario Pedro

(teria abandonado o

cargo)

João Niceto Júlio

João Niceto

(renunciou)

Dionísio Antônio

(renunciou) Alírio de

Oliveira Metelo.

Sabino de

Albuquerque

Sabino de

Alburquerque

X

Dionisio Antonio

1991-1994 1994-1998 1998- 2002

2002-2005 2006

Argemiro Turíbio

(teria sido

derrubado do cargo)

Assumiu Cirilo

Raimundo

Esídio Albuquerque Sabino de

Albuquerque

Lourenço Muchacho

(abandonou o cargo) e

assumiu Zacarias da

Silva.

Cirilo Raimundo

Pelas informações etnográficas disponíveis (ver Cardoso de Oliveira,1968) podemos dizer

que os conflitos de sucessão no Caso de Cachoeirinha, são tão antigos quanto a situação de reserva.

Enquanto a “Comissão de Linhas Telegráficas” demarcava a reserva de Cachoeirinha, um processo

de luta pelo poder se verificava. A princípio esta luta de sucessão se dá entre os membros de uma

mesma parentela, entre dois irmãos classificatórios. O Capitão Polidoro, foi assassinado por meio

de feitiçaria, por Benedito Polidoro e este último seria assassinado poeteiormente numa vingança,

por seus atos de feitiçaria.

O quadro 35 permite fazer algumas afirmações: 1) a partir dos anos 1960 até 1986, existe

uma linha de sucessão do poder político do cacique, por uma determinada linha de grupos

familiares e vicinais, por um conjunto determinado de famílias relacionadas por parentesco. Se

observarmos o período que vai 1986-1990, poderemos notar a existência de “dois caciques” em

Cachoeirinha, um deles sendo Sabino Albuquerque. E depois ocorreria uma alternância de facções.

Dos 11 caciques, seis pertenciam a um mesmo conjunto de famílias extensas e grupos vicinais

(Lino, Dionísio Antonio, Mario Pedro, João Niceto, Alírio, Argemiro) e dois de uma de outras

famílias e outras “vilas” (os irmãos Albuquerque e Lorenço).

Nos anos 1980, a quebra da linha de sucessão se dá paralelamente a mudança na forma de

escolha do cacique (do regime de indicação para as eleições), por conseqüência de uma série de

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

270

conflitos internos que marcou a vida em Cachoeirinha. A própria aldeia Sede ficou dividida em

duas; uma era comandada por Sabino, outra por Dionísio Antônio. As facções rivais segundo nos

informamos chegavam a ter alguns enfrentamentos físicos, com ameaças de parte a parte. Os

moradores dos diferentes “territórios” não podiam cruzar de um lado para outro. Esta situação de

tensão foi gerada por uma série de questões. A principal é a “monopolização” de recursos realizados

pelos “caciques”, que com o poder de representar o grupo étnico terminaram sendo acusados de

utilizar sua posição em favor próprio, apropriando-se dos “recursos da comunidade”. Soma-se a

isto, o fato de os recursos disponibilizados pela FUNAI para investimento nas áreas indígenas

estarem sendo reduzidos a partir do final dos anos 1980 e início dos 1990.

Iremos analisar agora o processo de formação destes “bairros” como parte de uma luta

política pela sucessão dos caciques. Estes conflitos de sucessão, expressão da luta pelo poder na

aldeia, alcançaram um clímax importantíssimo nos anos 1980, quando a ascensão de novas

lideranças e facções indígenas explicitaria as contradições do regime tutelar e as estratégias de

resistência indígena.

5.5 – A Cisão Cruzeiro X Mangao: os conflitos de sucessão como dramas sociais.

O drama socia l de sucessão que levou a cisão de Cachoeirinha, e que de certa maneira ainda

condiciona a vida na aldeia, teve início mais exatamente no final dos anos 1970. O clímax seria a

“cisão” da aldeia Cachoeirinha em dois “bairros”, Cruzeiro e Mangao, cada um com seu respectivo

“Cacique”, que era líder de uma certa facção local. Por outro lado, este conflito político entre

facções expressa também a luta não entre indivíduos, mas entre grupos vicinais: um que remonta

diretamente ao antigo capitão Benedito Polidório e outra ao antigo capitão Vitorino Pereira da

Silva. A divisão faccional e político-territorial traz em seu interior uma luta entre famílias

descendentes de antigos “naati”, e que expressa também as formas de resistência ao regime tutelar e

seus colaboradores/executores dentro da aldeia, as facções políticas indígenas.

Na década de 1970 três nomes passaram pelo cargo de Cacique (ver quadro 40): Lino de

Oliveira Metelo, Mário Pedro e João Niceto Júlio. De acordo com relatórios da FUNAI, João Niceto

Júlio já era cacique em 1979. Pelas informações dadas por Dionísio Antonio, que na época era o seu

vice-cacique, antes deles assumirem o Cacique era Mário Pedro, que teria ficado três anos no cargo.

Desta maneira, pelas informações disponíveis, parece que Lino de Oliveira ficou como Cacique

entre 1964 e 1976, aproximadamente. É neste período que alterações na política indigenista, com a

implementação dos projetos agrícolas orientados por uma ótica produtivista teriam forte

repercussão no contexto local de Cachoeirinha.

Segundo o relatório do Chefe de Posto de Cachoeirinha, a situação naqueles anos era a

seguinte:

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

271

“O presente instrumento tem a finalidade de tentar mostrar a VSA, a situação do PI, tanto com dados positivos como fatos e até mesmo boatos os quais fazem parte do exposto abaixo discriminado: em outubro do ano de 1979, esta chefia chegava no PI Cachoeirinha,já como servidor no mesmo e deparando com um projeto agrícola; por sinal primeiro a ser desenvolvido nesse PI; de primeira mão observei todas as particularidades da área, notei pouco ou quase nada de investimento agrícola. Era dotado de uma Casa-Sede, mais duas casas circunvizinhas próxima à da Sede, ambas acervo da FUNAI, onde uma morava a professora da FUNAI a outra em estado precário, funcionava a enfermaria da FUNAI”. (Relatório FUNAI, 1983, p.1)

Cachoeirinha teria como estrutura administrativa e de serviços indigenistas, 3 auxiliares de

ensino e 3 atendentes de enfermagem, com uma população residente de 1209 pessoas.

O Chefe de Posto designado para Cachoeirinha e autor do relatório era Manoel Nunes de

Freitas, que narra assim a sua chegada na aldeia:

“Encontrei na época o índio João Niceto Júlio, atual capitão naquela época, junto seu vice-cap. Dionísio Antonio; conheci o referido Cacique, dias antes de estar designado oficialmente a esse PI da 9º DR, a qual estamos informando-a, nesta mesma, junto ao referido representante do PI, acompanhei a reformulação do Projeto Agrícola acima mencionado; reformulação esta que queria trocar 10 Juntas de Bois contidas no referido por Trator MF, o que foi difícil, mas aconteceu”. (Relatório FUNAI, 1983110, p. 1)

A introdução do “Projeto Agrícola” em 1979, seria bem recebida pelos índios, que

formulariam uma pauta de reivindicações. Essa pauta apontava para a introdução de novas

tecnologias produtivas (o trator e a mecanização, substituindo os “carros de boi”), visando a

expansão da produção. Pelo relato do Chefe Manoel, foi a própria liderança da comunidade

indígena Cachoeirinha que exigiu da FUNAI a introdução das novas tecnologias, encontrando

resistência dos representantes desta:

“O delegado naquela época, era Joel Oliveira (índio Terena) tiveram um longo debate para convencê-lo, mas saindo, como queria o trator; só que ouve uma promessa por parte do cacique de que, poderia isentar os Bois – mas só isto não daria para cobrir o preço da máquina, argumentou senhor Delegado Joel – o Cacique pediu que retirasse também uma mimi-máquina de beneficiar Arroz – argumentou senhor delegado que não daria –novamente pediu que retirasse tudo e enfatizou, dizendo que queria condições de trabalho. O senhor delegado, ai quis pegar no pé novamente do líder, argumentando que ainda teria gastos com manutenção e outros – o líder novamente assumiu por sua conta, que estava falando em nome de seu povo, os quais estava informado de sua intenção. E foi assim que no final do mesmo ano enviaram um trator MF 290 equipado de uma grade (...) niveladora e um Arado 4 discos, já como parte integrante do projeto agrícola 83/digo 79/80 junto mais CR$ 150.000,00 de Cantina Reembolsável, um ralador de mandioca, um motor elétrico, 60 há de desmatamento através de AGROSUL-MS, em resumo o valor do referido projeto foi no montante de CR$1.000.000, 00”. (Relatório FUNAI, 1983, p.1-2).

Por um acordo com a FUNAI, a prefeitura manteria “200 litros de óleo diesel” para o

maquinário obtido, sendo a complementação feita pela comunidade. O dinheiro era obtido com a

changa, e segundo o Chefe de Posto, os índios conseguiram mesmo realizar a compra de uma

“trilhadeira” e um Trator MF50X com estes recursos. Um técnico agrícola foi enviado para atender

110 Relatório da Situação do P.I.Cachoeirinha nos anos 1979-1983 (16/11/1983, por Manoel Nunes de Freitas).

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272

os grupos dedicados à produção, familiar e coletiva (são citados os grupos de Gilberto Augusto com

25 pessoas e Dionísio Antonio, 19 pessoas, mais dois grupos com menos de 9 pessoas - Relatório

FUNAI, op.cit).

Porém, o Chefe de Posto acrescenta que o “trabalho estaria começando a fracassar”, e reflete

sobre suas possíveis causas:

“Por outro lado não sabemos se existe a influência de Políticos, Religiosos, Centro de Trabalho Indígena (CTI), onde como exemplo citamos em nossa área (entre Sabino Albuquerque – anterior ou através do índio Calixto Francelino) que até agora está em vigor, em fim outros e até mesmo acreditamos de funcionários, interferindo (Professora Benedita Fonseca Prado, Enfermeira do Estado, D. Dolores Pereira Dorval) mesmo os próprios índios, evidente, o mais aculturado, como por exemplo Adão de Oliveira, e outros, isto também poderá estar trazendo semente infrutífera para nosso trabalho (AMBOS NO DISQUE=DISQUE FOFOCA) quando da reunião realizada neste PI dia 04/05/83 com presença do delegado Amauri Mota Azevedo contidos na reunião conhecida, Reunião do Posto Indígena da Região Norte, onde esta chefia já acreditava que a situação que ora propalamos, particular do PI, já era sentida por VSA.” (Relatório FUNAI, p.3)

Num relatório de 1982, já haviam sido relatados problemas do Chefe de Posto com o CTI:

“6 (Agricultura- o projeto agrícola desenvolvido no Posto Indígena Cachoeirinha, embora com boas perspectivas de desenvolvimento (área de 280 hectares cultivada/arroz e milho ano/81/82) com mais adesão de interessados particulares e mesmo em forma coletiva mas, mesmo assim esta chefia teme dissabores, tendo em vista a intromissão de outras entidades ou melhor entidade (Gilberto Azanha) e suas digo seus comparsas) adentrando na área deste PI ocultamente e fornecendo dinheiro gratuitamente, para alguns elementos sem que haja qualquer critério de trabalho junto à FUNAI e comunidade com um todo, como é de conhecimento da DR, através de relatórios. 6-1 ( - está sendo concluído um desmatamento com o trator de esteira de propriedade do senhor José Carlos, residente nas proximidades digo de propriedade, em tempo, na Cidade de Miranda-MS/ o qual nos informou que o desmatamento feito por eles seria para beneficiar o Sr. Sabino de Albuquerque, Rafael de Albuquerque e Alberto de Albuquerque, e outros ainda não identificados. A origem dos recursos para este trabalho, não sabemos ainda de onde/parte achamos que os recursos são oriundos da entidade da qual participa o conhecido Gilberto Azanha, cremos nós que este tipo de trabalho poderá prejudicar futuramente o andamento do projeto do Órgão Tutelar na área111” (Relatório FUNAI, 1982).

No período 1982/83, começam a aparecer no contexto regional, novos atores políticos, que

rivalizavam com a FUNAI. Além das Missões Religiosas e dos “Políticos”, começaria a atuação do

CTI (Centro de Trabalho Indigenista), especialmente no que tange aos Projetos Agr ícolas. Fica

visível a existência de dois “projetos rivais”, o Projeto Agrícola da FUNAI e o Projeto do CTI,

sendo que este último teria alguns aliados dentro de Cachoeirinha, como Sabino Albuquerque. Em

conseqüência desta rivalidade a FUNAI enviaria um engenheiro agrônomo (José Resina) para

trabalhar no seu projeto agrícola.

111 Relatório de Ocorrência (por Manoel Nunes de Freitas) – 08/01/1982.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

273

A atuação deste engenheiro detecta os conflitos latentes dentro da Cachoeirinha, entre estes

“grupos” envolvidos com o Projeto Agrícola da FUNAI e aqueles voltados para a aliança com o

CTI. A visita do Engenheiro agrônomo é assim relatada:

“No mês seguinte tivemos a visita de nosso Engenheiro Agrônomo José Resina (..) ele me revelou que estava percebendo haver um pouco de falta de entrosamento, mútuo de funcionários e indígenas, pois até mesmo uma palestra com o índio Sabino Albuquerque, ele realizou, no sentido de unir os trabalhos agrícolas, nos moldes da FUNAI mas que não esquecesse o trabalho oposto, também está beneficiando índios, isto na minha ausência, mas posterior levou ao meu conhecimento como também ao Cacique e ao Técnico; o que ocasionou novamente com meu propósito pois dias anteriores, esta chefia tentava esta junção, que na verdade não é fácil, tendo em vista que este tipo de tentativa sempre por esta chefia foi tentado, mas ora sempre oportuna e sempre rejeitadas por parte do Sabino, sempre foi contra a FUNAI e a favor do CTI, disendo que neste teria melhores indigenistas, antropólogos, enfim uma equipe melhor (...) quero com isto tentar mostrar estar tentando em todos os ângulos estarmos nos preparando a paz”. (Relatório FUNAI, p.4)

Em 1983, já existia um conflito entre os executores da política indigenista, como o Chefe de

Posto, os Engenheiros e Funcionários da FUNAI e o nascente trabalho do CTI. O projeto agrícola,

que havia sido introduzido na comunidade e a implantação de novas máquinas e processos

produtivos criou uma demanda específica por matéria prima, que irá condicionar a própria vida

política dentro de Cachoeirinha.

O conflito FUNAI X CTI daria-se em diversas dimensões e em todas as aldeias do

município de Miranda. A documentação da FUNAI da época indica que o CTI procurava fornecer

uma assessoria alternativa para os índios em diversos domínios, não somente o da produção

agrícola. Um relatório do Chefe de Posto de Passarinho narra à visita de Gilberto Azanha e

Advogados do CTI, que procuravam dar assistência jurídica a um índio acusado de homicídio:

“Disseram que só queriam ajudar e que não estavam de maneira nenhuma interessados em fazer política contra a FUNAI e que em resposta a minha pergunta se possuíam autorização da FUNAI para atuar na área, disseram que já estavam providenciando a documentação para tal. (...) Os referidos senhores se retiraram depois de uma hora de palestra, sendo que cumpre-nos esclarecer que não pudemos escorraçar as pessoas que vêm ao posto, por isto fomos cordiais, sem sermos servis ou ter traído a confiança que em nós deposita o órgão”. (Relatório FUNAI, 1982)112

Vemos claramente que existia uma profunda desconfiança da Administração Regional da

FUNAI, para com a ação do CTI dentro das reservas indígenas, de maneira que o mero diálogo do

Chefe de Posto com os membros do CTI, tinha de ser justificado por este, para que não parecesse

uma “traição” deste funcionário aos seus superiores no órgão tutelar. Logo, o CTI apresentava-se

como uma organização que oferecia uma alternativa à política de assistência oficial do órgão tutelar

(oferecendo assistência jurídica, educacional e agropecuária), criando um canal diferente de

112 Relatório de ocorrência de Visita de Pessoas Extra-FUNAI (08/12/1982, por Luiz Pereira).

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

274

diálogo, de fornecimento de recursos e alianças políticas. A implantação do indigenismo não estatal,

colocaria uma nova gama de questões e conflitos no primeiro plano da vida de Cachoeirinha.

O relatório do engenheiro agrônomo José Resina, descreve assim o projeto agrícola de

Cachoeirinha, depois de dar um “histórico” da aldeia (em que indica as características básicas da

terra indígena e a ocupação imemorial Terena), descreve da seguinte maneira o projeto agrícola:

“Mas foi no ano de 1979 que esta Comunidade Indígena – começou a receber efetivamente o que mais desejava, qual seja, a implantação de Projeto Agrícola, para o seu desenvolvimento comunitário. O difícil de tudo isso foi à execução do trabalho de base realizado. A escolha de um lote padrão de índios, estes com ambições moderadas, porém entusiastas e dedicados, foi a parte principal, refletido hoje em dia de modos a ser o PI Cachoeirinha, o mais unido, que possui um desenvolvimento em ritmo acelerado, mais equilibrado e finalmente que possui a maior perspectiva de desenvolvimento, em termos de 9º Delegacia Regional”113 (Relatório FUNAI, 1982).

De acordo com os dados do relatório, montamos o seguinte quadro, sobre a produtividade agrícola:

Quadro 36 -- Produtividade do “Projeto A grícola de Cachoeirinha” – em HA cultivados.

1979 1980/1981 1982 1982/83 53 hectares 200 hectares arroz

47 hectares de milho 60 hectares feijão

278 hectares

350/400 hectares (meta)

O relatório de José Resina ainda diz o seguinte:

“Com uma produção significativa a ser colhida, a comunidade entrou do PI Cachoeirinha realizou a aquisição por conta própria de uma trilhadeira de arroz (nova), pois observaram que tinham ingressado em um ciclo produtivo de grande porte. Vale ressaltar também, que desde a chegada do trator, o tratorista é pago pela comunidade. Desse ponto em diante, passaram a receber visitas constantes de comerciantes, cooperativas e até mesmo dos agentes do Banco do Brasil, com a finalidade de realizar a compra da produção. Os indígenas passaram a ser olhados com outros olhos na cidade de Miranda, pois a antiga concepção era de que os índios em geral não passavam de vagabundos e Cachaceiros”. (Relatório FUNAI, 1982)

Ou seja, a introdução do projeto agrícola possibilitou simultaneamente um incremento da

produção agrícola e a formação de um capital que era reinvestido na produção, de maneira que as

relações comerciais e mesmo a imagem do “índio” teria sido mudada dentro do município de

Miranda, em razão do “desenvolvimento” alcançado com tais projetos. Com os recursos realizaram

a aquisição de um trator e “aguardaram a chegada de um trator da FUNAI, para elevar a área

cultivada para 400 hectares”. A lógica “desenvolvimentista” da política indigenista encontrava

assim entre os Terena um espaço exemplar de realização. A própria comunidade local absorvia

como seus objetivos este mesmo desenvolvimento (basta ver que é a própria comunidade que exige

a introdução de máquina e tecnologias; é a comunidade que paga os tratoristas, que consegue o

combustível e etc).

113 Projeto Agrícola do Posto Indígena Cachoeirinha (José Resina Fernandes Jr., 1982).

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275

A FUNAI implementava estes projetos com o apoio político interno dentro da Cachoeirinha,

especialmente na figura do então Cacique, como indica José Resina:

“Todo este trabalho desempenhado, não seria possível sem a ajuda constante e permanente do Capitão do P.I. Sr. João Aniceto. Pessoa digna e honesta, merecedora de toda nossa confiança, pois durante todo este período (3 anos), a cantina do P.I. está sob seus auspícios e até hoje a mesma dá suporte para os novos iniciantes do Projeto. É comum esta Delegacia, especificamente o Setor Agrícola receber informações dos funcionários do P.I., que o Sr. João Aniceto tenha passado a noite inteira em cima do trator, ajudando o preparo de solo para o plantio, para não atrasar os trabalhos. Certa vez, o referido capitão chegou até mim, e disse que não estava suportando a carga de serviços que recaia sobre ele, e que suas intenções era de abandonar o cargo de capitão. Diplomaticamente solicitei a ele que não deixasse o cargo, e que seu trabalho era de muita importância para sua comunidade. E, realmente ocorreria uma interrupção natural, se sua saída fosse efetuada. Por fim este permaneceu, e os resultados estão para ser vistos, apesar das interferências: externas que tentam criar uma ala dissidente entre a Comunidade, contra o Sr João Aniceto. Porém seu trabalho, sua dignidade, sua moral e sua força de espírito, supera todas estas dificuldades encontradas, e os trabalhos por nós desenvolvidos geralmente apresentam alta rentabilidade em conotação social significativa”. (Relatório FUNAI, 1982, p. 2)

Por este relato, vemos que já se apresenta uma análise por parte dos técnicos e funcionários

da FUNAI e o delineamento de um quadro bem preciso. No contexto da implementação dos

projetos agrícolas - e do surgimento de novos atores históricos como o CTI, que apresentam como

canais alternativos de recursos e aliança política e rivalizavam com a estrutura político-

administrativa da FUNAI - se estabelecerá uma conexão entre os grupos ou facções indígenas locais

(organizados em torno de certas lideranças emergentes) e o CTI. De um lado, temos a figura de

João Niceto Júlio, como aliado da FUNAI e executor da sua política através do “projeto agrícola”.

De outro, temos a emergência da figura de Sabino Albuquerque, como líder de um grupo que se

articulava com o CTI e era combatido pela FUNAI tanto no contexto da aldeia Cachoeirinha quanto

das demais aldeias Terena do Mato Grosso do Sul. É neste contexto que ressurgem os conflitos de

sucessão, envolvendo o posto do Cacique.

O projeto agrícola da FUNAI estava apresentando certos resultados dentro do contexto da

aldeia; a expansão da produção, a circulação de dinheiro e novas tecnologias e ferramentas, que

ficavam de acordo com a estrutura da FUNAI, sob o controle centralizado do cacique da aldeia.

Este monopólio dos recursos motivava a disputa pelo cargo de cacique, principalmente num

contexto de aumento da oferta de recursos materiais, como estava acontecendo, durante o período

de vigência do “projeto agrícola”.

O que começa com uma disputa de grupos ou facções locais, que a principio faziam criticas

ao projeto da FUNAI e buscavam novas alianças políticas (com o CTI, por exemplo), irá se

manifestar também na luta política pelo controle do cargo de Cacique, tornando-se-um conflito de

sucessão. Segundo as informações de diversas pessoas dentro da aldeia Cachoeirinha, quem

“inventou” a idéia das eleições foi o “Sabino”. Isto é parcialmente verdade. Na realidade, o SPI

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tinha implementado tal sistema nos anos 1960, porém ele não perdurou e voltou a realizar um

processo de indicação. As eleições seriam retomadas como solução por Sabino Albuquerque e por

pressão de sua facção. Numa conversa que tivemos com ele em sua casa ele disse: “Se um grupo

indicava, era válido, porque era pouco índio, depois do Lino batemo o pé, batemos o pé, vamos

eleger, vamos eleger, então daí pra cá foi eleição já...”. (Sabino Albuquerque/ 2004). A

implantação do atual regime de eleições em Cachoeirinha, a mudança na forma de atuação da

FUNAI, é conseqüência das lutas faccionais.

Um documento manuscrito (uma ata de reunião da Comunidade da Cachoeirinha) anexo a

um memorando encaminhando a 9º DR da FUNAI em 14/05/1982, relata os seguintes

acontecimentos:

“Dia 08/05/1982. As 16 horas. Recebemos uma antropóloga, um estudante e um motorista da FUNAI dentro da Reserva do PI da Cachoeirinha. Finalidade:Forçando de fazer uma reunião com a comunidade afim de fazer pesquisa não realizada de acordo com liderança. A reunião foi liberada para o dia 10/05. Início da reunião foi as 9 horas. Assunto: consultar com a liderança: não aceitaram. Pediram reunião da comunidade: foi aceito reunião. Sabino de Albuquerque forçando comunidade para trocar de capitão. Ai ouve a eleição: início: as 16 horas, encerro: as 17 horas. Candidato: João Niceto Júlio 120 votos. Sabino de Albuquerque, 86 votos. Tendo voto de 4 mulheres. De acordo com os voto da Comunidade não aceita outro projeto sem ser da FUNAI de acordo com a decizão do grupo. Conselho Tribal pede máxima providencia para a transferência do Sabino Albuquerque da área indígena. Motivo: dando problema para a comunidade, para a FUNAI.”

Vemos a confirmação de que as eleições de 1982 se realizaram sobre pressão direta de

Sabino de Albuquerque, que tentava garantir o acesso de um antropólogo a área indígena, sendo o

pedido negado pela liderança – Cacique e Conselho Tribal. O exercício do poder de controle sobre

o acesso ao território indígena, e que limitava assim as alianças e a assistência que outras facções

políticas não dominantes podiam obter através delas. Sabino concorreu com João Niceto Júlio que

venceu com uma diferença de 34 votos. Mas a realização das “eleições” para Cacique em 1982 não

solucionou o problema da “luta pelo poder”, que então se reabria. A retaliação contra Sabino

Albuquerque (a solicitação da transferência dele para outra aldeia, por estar “dando problema para a

comunidade, para a FUNAI”, é ilustrativo de como as facções políticas indígenas colaboradoras do

Estado dentro do regime tutelar, se valiam dos poderes e técnicas, utilizadas pelo SPI e FUNAI,

para combater e reprimir outros indígenas dentro das suas lutas internas). A técnica da “remoção”

era muito comum, e foi acionada pela facção então no poder em Cachoeirinha.

Na realidade, o cacique eleito João Niceto Júlio não terminaria o seu mandato. O “Relatório

de Ocorrência” do Chefe do Posto de Cachoeirinha, Manoel Nunes de Freitas, de 04/11/1983,

menciona como Cacique Dionísio Antônio. Isto confirma as informações de que João Niceto Júlio

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

277

teria renunciado ao cargo (devemos lembrar que um dos relatórios acima citados menciona a

vontade de João Niceto abandonar o cargo de cacique). O seu vice-cacique, Dionísio, assumiu.

O “regime de indicação” pelo Chefe de Posto com a anuência do Conselho Tribal, começou

a ser contestado por esta nova liderança indígena e pela facção política que ele conseguiu organizar

em torno de si. Assim, as “Eleições para Cacique” tiveram dois momentos dentro de Cachoeirinha;

um primeiro, no final dos anos 1960, por iniciativa direta do SPI, que visava dar maior legitimidade

aos Caciques, e um segundo momento, quando são as facções indígenas que exigem a implantação

deste modelo estatal, por questões de disputa política interna, permitiria uma maior rotatividade nas

posições de poder local e ainda a quebra do monopólio que certas “facções” exerciam (por sua

política de colaboração com os poderes estatais).

Podemos dizer que na “política indígena” Terena, as lutas faccionais se estruturam em

função do controle das instituições da aldeia: a função de Cacique e o Caixa Comunitário, o Posto

da FUNAI, a Escola. As tentativas de derrubar caciques e chefes de posto passam sempre por estas

questões de poder local na aldeia, sem as quais não se compreende a organização social e as

relações políticas do grupo. Por outro lado, sem fixarmos atenção na política local municipal, e no

contexto econômico e político regional e nacional, não é possível compreender plenamente esta

situação. Já que as próprias bases do poder local do grupo étnico se assentam nas relações com o

Estado-Nacional e o Mercado Capitalista.

Depois da implantação do projeto agrícola, a dinâmica política da Cachoeirinha se viu

relativamente alterada: inaugurou-se a era da política do “óleo e da semente”, ou seja, a introdução

do trator e da mecanização da lavoura criou uma demanda permanente por combustível e por

sementes que viabilizassem o ciclo de expansão e re-investimento gerado. A política dos conflitos

de sucessão e das lutas faccionais se organizariam em torno desta política; as lideranças locais iriam

ascender e cair em função da sua capacidade de buscar e gerenciar eficazmente tais recursos, que

tem um significado tanto econômico quanto simbólico-cultural para os índios, já que possibilitam

uma maior produtividade da lavoura, a conseqüente comercialização do excedente e diminuição da

demanda de mão de obra, liberando assim os filhos e filhas para as atividades mais valorizadas e

vistas como estratégicas para os índios como as atividades educacionais e políticas – e a preparação

de quadros “gestores” capazes de “ocupar espaços”.

A emergência de Sabino Albuquerque durante os anos 1980 se deu no quadro da getsação

desta política do óleo e da semente. O monopólio exercido pelas facções associadas e colaboradoras

da FUNAI, obrigavam em certa medida as demais facções existentes a buscarem canais alternativos

de realização destas mesmas demandas, assim como a desencadearem uma “luta pelo poder”, pelo

controle do cargo de Cacique. Entretanto uma outra questão possibilitou a ascensão de Sabino

Albuquerque enquanto liderança: a revisão e ampliação dos limites da reserva de Cachoeirinha.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

278

As informações passadas por Élcio Albuquerque, nascido em 08/02/1961, na própria Sede,

filho Hélio Albuquerque (um irmão de Sabino Albuquerque), e que participava das lutas internas da

aldeia acompanhando seu pai e tios, indicam isso. Ele nos disse que quando era novo fugiu de casa

para trabalhar em fazendas; trabalhou também no corte de cana, sendo cabeçante em algumas

turmas. Entre 1993 e 2001 foi secretário da AITECA. Disse que o Sabino se lançou como

“liderança” batendo na questão da demarcação da terra e que ele tinha um grupo que o apoiava nas

lutas internas. Mesmo certos rivais de Sabino concordam com a importância dele para a luta pela

terra.

Sabino narra assim o processo de reivindicação para demarcação:

Como começou a movimentação da comunidade para solicitar o GT da FUNAI? Faz ano que vem, desde 1980, nós vem lutando, nós vem mexendo aí... nós organizando, todos os caciques da Argola, Morrinho, mas de apoio, né... Nós tá apertado aqui, nós fizemos levantamento (...) e a população aumentando (...) Começamos reivindicar para a FUNAI fazer a demarcação na área e nós fomos lutando, FUNAI contra, até o dia que nós conseguimos, Governador, esse Barbosa, deu uma mão também, fomos localizando documento, vestígios, da área, os velhos indicava os pontos para nós antigamente, e fomos percorrendo a região escondido porque os fazendeiro não deixava nós olhar. E fomos indo e cada trabalho as vezes demorava um ano...Pra gente olhar os pontos que os velhos falava para nós antigamente.... Até que conseguimos agora Fernando Henrique fomos a Brasília e aí obrigamos a FUNAI a fazer um GT para fazer a pesquisa da área. Onde veio Gilberto Azanha, fazer a pesquisa nos pontos reivindicados dos índios, aí tá aí, alcançamos os documentos no cartório, Terrasul, também o Zeca deu uma força grande para nós... Aí conseguimos localizar o documento Terrasul, no cartório de Miranda... Tudo isso aí é os ponto, que os velhos falava para nós.... Aí começamos assustar, comover que realmente nossas crianças ia precisar da área. Tá faltando só isso aí, Ministro analisar, Zeca reconheceu que o Estado errou.... Quais foram às pessoas que começaram a mobilização? “Foi a comunidade toda, mas quem mais deu força para nós foi a Argola, capitão Rufino, que assumiu mesmo, juntamente com nós, grupo nosso aqui da Sede, primeira batalha foi isso aí, Dionísio era cacique na época, mais João Niceto, foi contra, foi a favor da FUNAI, mas só ele de cacique, e a comunidade falando. Então Dionísio e João Niceto foi contra na época, mas hoje graças a Deus reconheceu. Tá reconhecendo. Uma vez aí veio, mandado pela FUNAI, o funcionário da FUNAI, que é índio, que é irmão do Marcos Terena, que tem o apelido de Maninho, o nome eu não lembrando como é que ele chama.... Veio fazer demarcação queria fazer essa documentação aqui onde tá nós com 2.600ha, e aí comunidade nós não deixamos, o cacique Rufino. E esse João Niceto, e o Dionísio o Guilherme ainda brigou com o Rufino que queria fazer demarcação aqui... Ai nós falamos para eles, isso aí tá seguro, ninguém toma mais de nós, isso aí não é demarcação, não é por aí que nossos pais falava, porque meu pai era campeiro, Alexandre Albuquerque. Ele sabia todos os ponto,ele falava para nós, e falava eu vou marcar os pontos para vocês, e o velhos faleceu novo, setenta e poucos anos... Porque a FUNAI mandou ele demarcar... Até o próprio Rondon não deixou nos limites certos. O pessoal do Carrapatinho recebeu terra do Rondon... Na época o Valdir Neves, veio aí, pressionou muito o delegado, falou que nós estava invadindo... Vinha aqui em casa... As vezes o índio tava pescando na Bahia, e falava que nós tava ocupando... Achava que eu era cabeça.... (Sabino Albuquerque/ 2004)

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

279

O início do processo de demarcação de terras em Cachoeirinha, também se tornou motivo de

conflito de posicionamentos entre as diferentes facções políticas. A facção de João Niceto e

Dionísio se colocaram na época a favor da demarcação das terras com os limites de 1904 (2600

hectares) enquanto que a facção de Sabino queria iniciar um processo de revisão dos limites, o que

aconteceria cerca de 20 anos depois com o envio do GT da FUNAI coordenado pelo antropólogo

Gilberto Azanha. A demarcação só não feita no inicio dos anos 1980 pela oposição encontrada.

É interessante notar que a política fundiária da FUNAI encontrava executores e

colaboradores em facções locais e nos próprios índios Terena. Segundo moradores da Cahcoeirinha,

foi um irmão de Marcos Terena (funcionário da FUNAI) que foi enviado para tentar convencer os

índios a aceitarem a demarcação tal como proposta pela FUNAI, as facções locais que atuavam em

aliança/colaboração política com a FUNAI, apoiaram tal proposta, entrando em choque mais uma

vez com as facções e lideranças políticas emergentes.

Neste sentido, o regime tutelar e a política fundiária a que ele sempre atendeu, dependia da

divisão política das comunidades indígenas, do apoio e colaboração política das facções locais

existentes. A reafirmação dos limites da reserva de Cachoeirinha pela FUNAI, era a reafirmação

histórica da política de redução das terras indígenas, visando liberá- las para o Mercado Regional.

Tal política só se implantou (assim como no século XIX, a redução das terras Terena), em razão da

política de colaboração que diversas e importantes lideranças indígenas estabeleceram com as

agências de Estado. O caso relato acima se insere dentro destes precedentes históricos.

No período que vai de 1983-1985, mas uma mudança ocorreria na liderança de

Cachoeirinha. Dionísio Antonio daria lugar a Alírio de Oliveira Metelo, que assumiria o cargo de

Cacique. Segundo algumas informações dadas pelo próprio Alírio, ele teria assumido por que

Dionísio sofreu um acidente, segundo outras versões ele teria renunciado em razão das lutas e

conflitos políticos internos. Um ofício encaminhado a FUNAI em 1985, contém o nome de Alírio

como cacique, e este teria ficado no cargo até 1986. Uma nova eleição teria sido realizada, e Sabino

Albuquerque foi escolhido como Cacique, permanecendo três anos na função.

A partir de então as relações políticas dentro de Cachoeirinha vão caminhar para um

acirramento cada vez maior. A antiga facção do cruzeiro, liderada agora por Dionísio Antonio,

passa a fazer uma política de oposição sistemática a Sabino. As acusações contra ele e sua liderança

eram do mesmo tipo das que este lançava contra Dionísio: de monopolizar os bens da comunidade

somente em proveito próprio, de usar o trator, caminhonete e poder somente para favorecer o seu

próprio “grupo”. Algumas das pessoas que na época apoiavam o Sabino, hoje o acusam de “querer

comandar a aldeia como se comandasse uma fazenda particular”, de centralizar as decisões

políticas e recursos.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Mas na época, a força de Sabino Albuquerque junto à comunidade indígena era grande.

Tanto que nas eleições de 1988, ele concorreu novamente e se elegeu. Entretanto, neste ano a

facção “derrotada” não aceitou o resultado das “eleições” e se acirrou assim o conflito de sucessão e

reacendeu a luta pelo poder dentro da aldeia. Numa conversa com Sabino, ele relembra dos

acontecimentos deste momento, do final dos anos 1980:

“Eu não sei se foi segundo mandato meu, parece (...) Que a FUNAI começou me enxergar contra eles aqui, eu fui, eu fazia porque o pessoal mandava, eu batia naquela fase, onde era autorizado do Conselho, e não onde peitava. Na época o Chefe de Posto da FUNAI, o delegado que eles falava antigamente, e tinha o Chefe de Posto, o Juracy, foi mandado pelo Delegado, eu não sei se era cabo, se era tenente, se era major, ele era policial capitão, não sei o que ele era, onde ele foi mandado aqui. A comunidade queria, que queria, que queria brigar... E aí o Dionísio quis assumir tinha caixa comunitário que influía muito o cacique antigamente, o cacique brigava muito pelo caixa comunitário que a Usina pagava. Aí eu falei para a turma, deixa que ele assume, Dionísio, se ele quer caixa comunitário, deixa pra ele, eu não quero, nós queremos trabalho. Então ele ficou lá, fazedor de contrato, mas ele não resolvia nada na comunidade. Ninguém ouvia ele, ele só pegava caixa comunitário, que ele era interessado na caixa comunitário na época, tinha renda, eu não me interessei. Ai eu deixei a caixa comunitário ele recebendo, ai ficou tudo pouco né, era interessado naquilo mesmo e eu fiquei dominando a comunidade. O que eu lembro que ficou dividido foi isso ai, AITECA, a divisa, rua, tudo aqui eu que resolvia. Ele mesmo era pegar dinheiro do caixa comunitário, ele ficou gostando, eu num ligava, num fazia contrato pra ir para as Usinas, não me importei, falei para turma, deixa eles, brigar com Chefe de Posto, que dividiu nós, o Juracy, nós não vamos brigar por causa disso aí, deixa que eles quere isso ai, deixa ficar pra eles. Aí nós ficamos tocando até o final do mandato, nós fizemos eleição eu não lembro se eu concorri de novo. Essa divisão ficou por causa disso aí, por causa do caixa comunitário. Tem ata, mas essa ata o Juracy queimou. Invadiu e queimou nossa documentação todinha nessa época. (...) Eles se interessava no caixa comunitário. Eles só fazia grupinho, não era grupo grande”. (Sabino Albuquerque/ 2004)

A partir do ano de 1988 a comunidade de Cachoeirinha se viu cindida em duas: Cruzeiro,

que abrangia todos os grupos domésticos fixados do Posto da FUNAI para o Leste; Mangao,

abrangendo os grupos domésticos do Posto para Oeste. A cisão entre “Cruzeiro e Mangao” aparece

assim como o resultado das lutas faccionais dos anos 1980, da luta de resistência movida por certas

facções locais contra o regime tutelar, mas é também o produto da experiência histórica local, das

formas de organização social e política dos Terena.

O contexto da vida dentro da aldeia foi profundamente alterado por esses conflitos. A

violência e as hostilidades entre os grupos se reproduziam no cotidiano, de maneira que se tentava

mesmo impedir a circulação de moradores do Cruzeiro pelo Mangao e vice-versa, pelos relatos de

alguns moradores. Dionísio Antonio era o Cacique do Cruzeiro, e Sabino Albuquerque do Mangao.

Élcio Albuquerque nos falou em certa ocasião: "existia a briga de duas facções de caciques, uma

era amparada pela FUNAI, tinha maquinário, semente, óleo e outra não. (...) Era conflitado, se

pegavam na reunião, se pegavam muito. Tinha um chefe de posto que dormia com duas carabinas e

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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as janelas pregadas." Élcio mora com sua esposa, que é filha de uma das lideranças do Dionísio

Antonio, na área do Cruzeiro, mas apoiava a facção do Sabino.

O caso de Zacarias da Silva, um pastor da Assembléia de Deus, é o contrário. Ele era

membro da liderança de Dionísio Antonio, e morava no lado do Mangao, e narra assim os

acontecimentos:

“Que eu entendo que morava na Cruzeiro era Quiniquinau, então dois raça não combinava com outro. Já mudaram tudo daí. Mas eles moravam desse lado assim. São raça meio resolvido, não combina com outro....

Em 1958 mudaram...

A divisão do Sabino X Dionísio.Você chegou acompanhar?

“O motivo é de administração, o divisão quando começou, falava que não sabe dirigir, não sabe conduzir o povo, um quer ser mais do que o outro, onde ele queria caçar o mandato do Dionísio, isso foi mais ou menos 1980. (...)

O Dionísio queria caçar, caçou sim, a comunidade se reuniu, caçar o mandato do Sabino quando ele foi eleito pelo povo, só que ele não conseguiu e o Sabino continuou, e o Dionísio continuou como Cacique. Aí que o índio perdeu a direção, quando havia algum problema, quando vai lá no Sabino, manda lá no Dionísio, ai o Dionísio manda lá no Sabino, ai é assim. Foi quatro anos de luta, ai teve outra eleição, ai outro partido ganhou, aí melhorou”.

“Eu comecei com Dionísio, ai quando foi no tempo, eu fui escolhido para ser presidente do Conselho.

“Eu sei que o Sabino e o Dionísio não combina até agora, continua aquela separação. Essa pergunta foi bom, porque a maioria do juventude já começa a levantar contra o outro lado da ala, deu problema juventude”. (Zacarias da Silva, Março/2006).

As palavras de Zacarias da Silva são importantes porque quando perguntamos da divisão

“cruzeiro/mangao” ele mencionou a antiga divisão entre os moradores do lado oeste do Posto que

seriam “Terena” e os do lado Oeste que seriam Quiniquinau. Isto reforça que esta divisão era mais

antiga, e precedia os conflitos faccionais dos anos 1980. As pessoas envolvidas mais diretamente

nos conflitos indicam que esta cisão provocou uma profunda ruptura nas relações sociais dentro da

aldeia.

Conversando com outro morador da antiga Mangao, o ex-cacique Lourenço ele que não

chegou a se envolver diretamente no conflito, disse, ao responder nossa pergunta:

“Mas porque que aconteceu essa divisão, porque que o chefe de posto fez isso? “Política dele. Para dividir o povo mesmo, não tinha intenção de trabalhar como ele tinha que trabalhar. Eu acho que antigamente o chefe do Posto da FUNAI ele queria ser mais do que o cacique. Mas não é que acontece isso. Quem manda realmente é o cacique. Que começa a liderar a comunidade. Então o que os caciques decidia antigamente, era aquilo, o chefe do posto não poderia mudar aquilo, se foi decidido isso, foi decidido. Se for decidido isso, então foi decidido. Então naquele época o FUNAI era forte ainda, tinha recurso, tinha recurso de todo lado, naquele época o índio era recebido no Estado, Município, Governo Federal, FUNAI, o povo naquela época tinha recurso, os cacique naquele época tinha conseguido muita coisa, hoje mudou muito. Hoje a gente não consegue nada senão pressionar mesmo. Eu acho que o pessoal

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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queria tomar o cargo dos outro acho que por isso mesmo. Tinha muito recurso aquele época. Hoje não tem mais recurso não. A pessoa pensar assim eu vou entrar, vou tirar esse cacique e vamos entrar e vamos conseguir aquilo, é muita mentira, o pessoal é muito enganado se falar isso. Hoje eu vou lá no estado e vou trazer isso. Antigamente você ia lá e você trazia na mão, hoje você vai lá, três mês, quatro mês, cinco mês, aí é que você recebe. Hoje não. Hoje o político tem mais desconfiança, dos políticos das lideranças indígenas. Mas porque que isso acontece? Eu vejo que as maiorias das lideranças, de outros aldeia, sempre ouve conversa ali, o fulano tirou aquilo, o fulano desviou óleo diesel, o fulano desviou recurso. Eu acho que o que tem mais aqui é desvio de verba, desvio de tudo. Antigamente nem ligava isso. O povo ia na FUNAI se precisava de 10, 20 rolos de arame, ia lá e trazia, hoje não é uma burocracia desgraçada. Hoje você vai lá reivindica, dois mês, três mês, ai que vem, as vezes vem com resultado as vezes não. O que eu vejo naquela época é por isso que o povo brigava muito. Os caciques antigamente, se saia daqui,o FUNAI pagava diária para ele, se ia para Brasília ele tinha diária, ele recebia diária, ele tinha recurso de alimentação e de passagem. Hoje não tem, o cacique não tem diária. Hoje se a pessoa pensar assim eu vou para Brasília vou passar no FUNAI porque FUNAI vai me pagar diária, se ele pensar assim, tá enganado. FUNAI hoje não dá mais isso, foi cortado. Então o povo via isso mais essa parte de recurso naquele época. Hoje não tem mais isso. Senão me engano, acho que mudou tudo isso, mais ou menos de 85. Ai veio esse clima de política, já veio essas confusão, aí foi mudando. Até que 2002, 2001, ainda tinha recurso do pessoal que ia para canavial, Cacique recebia e trabalhava com aquilo, hoje não tem, não tem mais desse pessoal de usineiro que vem para contratar pessoal. Tem mais é pouco, não era como antigamente. Se vinha de lá pra cá pegava cinco grupo ...Completava trinta dias mandava caixa comunitário. Hoje se não vencer o contrato não manda o caixa comunitário.Mas só que o taxa comunitário hoje é 500,600, um grupo naquele época era 1000 real, se saia 5 grupo de 40 homens, pô era cinco paus na mão, era dinheiro.É engano do pessoal que fala isso vou entrar, vou fazer aquilo, aquilo... Hoje o que eu vejo que a comunidade mudou muito é que o pessoal era brigueiro mas as vezes era unido no trabalho ... O pessoal chamava pro mutirão ia todo mundo ...e essas pessoas que fazia limpeza aqui na divisa ... A comunidade tinha gado, o cacique carneava e dava pedacinho para todos aqueles pessoas que estão no trabalho... hoje não tem mais, não tem cavalo nem gado para comunidade, hoje acabou tudo. Tem muita pessoa que fica lembrando. Poxa mas naquele tempo era isso, era aquilo, nós ia para limpar o divisa no mutirão, nos tinha pedacinho de carne... Hoje para você fazer esse compromisso com ele, pra você comprar duas vacas para carnear você vai gastar 2 mil e quinhentos. Cachoeirinha cresceu muito. Mas o que brigava antigamente era pessoa de idade, homem forte, hoje é juventude que briga, hoje 12, 13, 14... uma baderna aí hoje. O que era a situação mais ruim antigamente hoje se tornou a juventude. Porque que eu vejo isso agora? Hoje tem pai aposentado, tem mãe que recebe auxilio maternidade, auxilio da doença, cesta básica, bolsa escola, agente jovem, agente de saúde, tem tudo hoje... essas pessoas tem emprego hoje. Mas quanto mais a liberdade que os pai tem hoje para seus filhos ... Antigamente eu, meu pai falava pra mim, hoje de manhã você vai estudar, de tarde você vai para roça, se você não for vai apanhar. Hoje se a família vê filho, o pai vai para roça e o filho fica dormindo, na mo rdomia ...Então tem essa mudança. Antigamente não era assim, porque se o povo furasse um dia, era necessidade. Hoje se um fulano tá dormindo hoje, levantou tá comendo, tá bebendo água. Antigamente se tinha que buscar água era longe, sete quilômetro, cinco quilometro, com lata na cabeça. Hoje ate na cabeceira da cama do fulano tem água..Então a gente pensa que vai acontece para o futuro? Então é isso”. (Lourenço Muchacho, Setembro de 2004).

A disputa política dentro da aldeia, pelo poder do posto de cacique e a outras posições, se

vincula intima e diretamente as alianças externas e a disputa por outros postos de poder dentro das

instituições de Estado. Desta maneira, o faccionalismo político Terena não pode ser pensado fora

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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das redes de relações que este grupo étnico constitui no contexto local e regional, que por sua vez se

inserem em redes nacionais de dominação.

Um outro depoimento importante é o de Anésio Pinto, que morava no lado do Cruzeiro, mas

que na época ficou do lado da facção de Sabino Albuquerque. Perguntamos:

Você chegou a pegar a época em que Cachoeirinha ficou dividida? Sim, esse aí se eu não em engano foi na década de 1980, me parece, quando a Cachoeirinha dividiu-se a ala do Dionísio mais a ala do Sabino. Isto ai foi o resultado da política interna e da política lá de fora. E também eu como professor naquela época um dos prefeito não queria que eu falasse idioma Terena na sala de aula, e fui até ameaçado por isso, lembro que daquela vez.... Eu tava na ala do pessoal daqui ... eu me senti muito assim, não gostei daquela divisão, onde teve muito entrada de políticos, foi muito difícil de resolver... Naquele tempo eu apoiei porque as pessoas mais forte em relação ao Estado ou Município, estava em poder do Sabino. O prefeito mesmo estava ao lado do Sabino e o pessoal contra queria fazer dele também. O prefeito apoiava ele, só que eles não tinha aquele grande poder como o Sabino tinha. Eu achei de estar ao lado do Sabino devido a esses grupos de pessoas que tem poder como o Governador do Estado de Mato Grosso de Sul o próprio CTI já vinha agindo neste sentido, a Prefeitura, onde naquela época o Sabino desentendeu com o Prefeito, aí o Prefeito deixou o Sabino e procurou ajudar o Dionísio. Mas só que o Dionísio não tinha aquele grande conhecimento através do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul, somente com o prefeito, aí o Sabino cortou a parceria com o Prefeito aonde eu sofri a conseqüência disso daí, durante seis anos, onde eu me desliguei da prefeitura, naquela época eu já era professor, e a prefeitura não queria mais auxiliar os alunos aqui, aonde o Sabino levou esses alunos a ser reconhecido como escola Estadual, ai teve a parceira do CTI aonde o CTI arcou com os uniformes, foi muito difícil naquele tempo. Quem tava do lado do Sabino e quem tava do lado do Dionísio? O Sabino tava com maioria, e o Dionísio tava com minoria. O Sabino era reforçado através do Cacique da Argola e do Morrinho. Adolfo Pedro apoiou muito o Sabino. O pessoal do Lino tava apoiando o Dionísio, Alírio, o Mário Pedro apoiava o Dionísio. (Anésio Pinto,Março/2006).

No período entre 1988 e 1991 a cisão entre Cruzeiro e Mangao na Cachoeirinha, marcou a

ascensão de uma facção política local. Através de alianças externas com o CTI, e pela inserção de

suas lideranças nas redes políticas regionais, essa facção conseguiu fortalecer suas bases de

mobilização política interna e ao mesmo tempo fazer uma política de oposição a FUNAI e a facção

política que nela se amparava. A ascensão da facção que chamamos de facção do “Mangao”,

liderada por Sabino Albuquerque, se relaciona a um conjunto de processos e fatores. Primeiro lugar,

a luta pelo poder, que diferenciava as duas facções; uma atuava como força de apoio da FUNAI,

através dos empreendimentos indigenistas, sob forma de “projetos agrícolas”, e controlando de

forma relativamente monopólica, os recursos e relações políticas com o Estado através da FUNAI.

A outra facção, começou a questionar os métodos de organização política, o “regime de indicação

do cacique”, exigindo eleições e a transferência do poder de decisão para a “comunidade indígena”.

Ao mesmo tempo, começou a articular a demanda de revisão e ampliação das terras indígenas, e

nesse momento, entrou em choque com a facção do cruzeiro que atendendo as orientações da

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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FUNAI, tentou impedir o processo e a reivindicação de terras. O envio do “índio funcionário” para

realizar a “demarcação” nos limites de 2600 hectares, sem nenhuma revisão, mostra o compromisso

em transmitir ordens do Estado para a comunidade e manter os padrões de territorialização e

inserção na estrutura de classes estabelecido ao longo do século XX. A técnica da “desobediência”

política e do “boicote” aos empreendimentos agrícolas e o trabalho comunitário foram as principais

formas da resistência cotidiana. Dessa maneira, a política de resistência cotidiana expressa-se nesse

momento pelo choque com os índios funcionários e o projeto de “co-gestão indígena” – que se

apresenta antes de tudo, como meio de garantir que certas facções indígenas atuem como forças de

apoio do Estado dentro do regime tutelar.

Isto significava que as bases locais do regime tutelar estavam sendo transformadas:

primeiramente, quebrava-se o poder de uma facção aliada à FUNAI, e abria-se espaço para outras

facções; em segundo lugar, o próprio poder da FUNAI nesse processo se via contestado, já que

juntamente com o declínio do poder da antiga facção dominante, declinava relativamente a

capacidade da FUNAI de impor decisões às aldeias como um todo, de se fazer obedecer e de

monopolizar a representação e as decisões em nome das comunidades indígenas. Como vimos pelo

depoimento do Anésio, muitas estratégias individuais e de grupos familiares contabilizavam o poder

que estas facções não alinhadas com a FUNAI (e que minavam as bases do regime tutelar) como

um fator para aderirem ou não as diferentes facções políticas.

Estes conflitos ganharam grande repercussão na sociedade sul-mato-grossense, de maneira

que alguns jornais chegaram a noticiar os conflitos ocorridos no dia do índio: “Nem tudo foi festa

ontem durante a comemoração do Dia nacional do Índio. Na aldeia Cachoeirinha em Miranda, os

dois caciques promoveram duas festividades, dividindo os índios. Uma das comemorações foi

financiada pelo prefeito de Miranda, Roberto Paulo de Almeida, do PTB. Há denúncias de que ele

está procurando dividir as lideranças do local114”.

O conflito e a divisão durou até 1991, quando uma nova eleição foi realizada e mudanças na

política local possibilitaram uma reconciliação entre as duas facções, que foi simbolicamente

promovida no “Dia do Índio”, como vemos pela descrição abaixo:

“Em comemoração no dia 19 de abril fizemos uma festa, onde no dia 19 de Abril os dois entraram em paz e pediram aquele união, aliança de novo com eles, desde aquela época 1989, eu me lembro que foi no dia 19 de abril eles entraram em paz, entraram aliança entre eles para acabar aquele conflito entre eles, entre nós aqui, eu mesmo eu sofri a conseqüência daquele divisão naquele tempo. (...) Aí no final de 1991, a prefeitura voltou e contratou todos os professores, depois que o Sabino se entendeu com o Ivan. (Anésio Pinto,Março/2006).

Neste mesmo ano, foi realizada uma nova eleição para Cacique, e o vencedor foi Argemiro

Turíbio (que na época já era vereador, eleito em 1988), morador do “Cruzeiro”. Também ele não 114 “Dia do índio Provoca Divisão entre os Terena”.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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conseguiria “terminar” o seu mandato, segundo informações dadas por alguns moradores do local e

confirmadas por alguns documentos da FUNAI.

Assim, podemos identificar todas as fases características do drama social: primeiramente, a

eclosão de um conflito entre diferentes facções políticas indígenas, que tinha como objeto a disputa

de recursos materiais e poder local; depois, a transformação de um conflito latente em um conflito

aberto que levou inclusive a cisão política da aldeia Cachoeirinha durante 3 anos aproximadamente;

por fim a fase da reconciliação, quando as facções em luta repactuam certos elementos e voltam a

um convívio relativamente normal, o que aconteceu no Dia do Índio. O relato de Argemiro, um dos

personagens dessa história indica o seguinte:

“Porque aconteceu a divisão entre cruzeiro e mangao? Eu não sei bem dizer isso, porque antigamente isso já existia, antes de eu nascer isso já existia, mas a gente acompanhou através das conversas. Porque a Cachoeirin ha sempre assim dividido em uma família, antigamente tinha aquele Cruzeiro... Uma parte o pessoal considerava uma família morava em Cruzeiro, então tinha uma certa divisão, outro o pessoal falava de Mangao, então são duas divisões que era fortíssima, que era difícil se juntarem naquela época, inclusive fizeram até dois times, do lado do Mangao que chamava estrelinha e aqui permaneceu Cruzeiro, por causa da implantação de Santa Cruz que fizeram. Então chamou esse nome ai e ficou, nesta fase antigamente. E hoje naturalmente tem esse nome mas vários divisão de localidades que já foram inventadas. Historicamente na Cachoeirinha tinha essas duas divisões. E a luta entre Sabino e o Dionísio? Aquela divisão é mais assim desconfiança da própria comunidade, como tinha duas alas, era difícil bater e o pessoal acusou muito o pessoal do Sabino, porque tava fazendo isso, desviando aquilo da comunidade, então criou-se aquela impasse, a comunidade querendo destituir do cargo dele naquela época. (...) Qual o cacique reconhecido pela FUNAI? Incentivava as duas alas. A liderança do Dionísio, era sempre o turma mesmo, Alírio, Adolfo, uma turma que vinha pra apoiar para resolve o problema. O do Sabino era o Sabino Lipú Gaudêncio Henrique. O do Dionísio era Zacarias da Silva. (Argemiro Turíbio, Março/2006).

Mas como explicar em termos sociais e históricos os conflitos de sucessão? Seriam apenas o

resultado da luta pelo poder e expressariam como sugerem os indigenistas, o resultado de uma

“influência” externa e estranha aos índios, que os dividiria e manipularia? Na realidade, o drama da

cisão se relaciona aos outros dramas de sucessão. É isto que analisaremos abaixo, através dos dados

levantados sobre a facção do cruzeiro.

5.6 - A Facção do Cruzeiro: genealogia e história dos “tuuti.” A facção do Cruzeiro era organizada a princípio em torno de uma liderança: João Niceto

Júlio. Outros indivíduos como Dionísio Antonio e depois Alírio de Oliveira Metelo, jogariam um

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

286

papel importante na construção desta facção, e conseqüentemente nos conflitos políticos de

Cachoeirinha analisados anteriormente. A análise da biografia destes indivíduos e também das suas

relações genealógicas se torna fundamental para a real compreensão dos dramas de sucessão, que

redundaram inclusive numa cisão temporária da aldeia Cachoeirinha.

Iremos começar analisando primeiramente as genealogias e relações de parentesco-

residência de quatro caciques da facção do Cruzeiro: João Niceto Júlio, Dionísio Antônio, Alírio de

Oliveira Metelo e Argemiro Turíbio.

Figura 3- Esquema Genealógico de João Niceto Júlio.

João Niceto Júlio é filho de Ciriaco Júlio, um antigo “tenente” da polícia indígena, que se

tornou cacique de Cachoeirinha logo após a morte do “Capitão Timóteo”, no final dos anos 1950.

Por sua vez, Ciriaco era filho do mais “odiado” curandor da Cachoeirinha, Antônio Júlio. João

Niceto, na época em que foi Cacique, final dos anos 1970 e início dos anos 1980, era casado com

Leda Pedro e ambos residem hoje na vila “Cruzeiro”.

1 – Antônio Júlio 4 – Hilário Júlio 7 – Abertino Júlio 10 – João Niceto Júlio 2 – Justina Maria 5 – Luiza Francelino 8 – Alcides Júlio 11 – Nancy Jùlio 3 – Ciriaco Júlio 6 – Arlindo Júlio 9 – Ailton Júlio 12 – Elida Júlio

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

287

Figura 4– Esquema Genealógico de Dionísio Antônio.

1 – Francolino Antonio

5 – Vitorino Pereira da Silva

9 – Àguida Antonio 13 – Doracy Francisco

17 – Maurício Antônio

2 – Não soube informar

6 – Joana da Silva 10 – Laurentina Antonio

14- Laércio Antonio 18 – Adilson Antonio

3 – Guilherme Antonio

7 – Dalva da Silva 11 - Ernesto Antonio (falecido)

15 – Sildo Antonio 19 – Guilherme Antonio

4 – Otílio Antonio 8 – Dionísio Antonio

12 - Silvia Antonio 16 – Pedro Dionísio 20 – Marlisa Antonio 21- Dalva Antonio 22 – Maisa Antonio

Os dados genealógicos de Dionísio Antonio mostram o seguinte: ele é descendente do

Vitorino Pereira da Silva, que foi “capitão” da Cachoeirinha no início do século XX. Vitorino é seu

avô materno (Onjú); seguindo a linha patrilateral de descendência, Dionísio herdou o sobrenome de

seu pai (Antonio) e não de sua mãe (Pereira da Silva).

Dionísio nasceu na Cachoeirinha, mas sua família morava numa área de roça chamada

“Pindó”. Sua família teria se mudado para a área do Cruzeiro por convite de Lino de Oliveiro

Metelo (que convidou também Eusébio Antonio), “em 1958 mais ou menos”, segundo o próprio

Dionísio.

“Eu na minha vida como qualidade de morador daqui de Cachoeirinha quando fui cacique em 1982, fui convidado através desse capitão Lino de Oliveira. E assim eu tomei posse em 1986 eu sai, em 1988 eu voltei três anos de novo na minha vida de cacique. (...) Eu entrei como vice, primeiro ano em 1979, era João Niceto, afastou, eu assumi, membro do conselho fez avaliação e eu assumi. Foi assim. (...) Em 1982 foi eleito pelos membros do Conselho”. (Dionísio Antonio, março/2006)

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Dionísio Antonio aparece primeiramente como vice-cacique em 1979, acompanhando o

grupo de João Niceto. Ele passa a ser Cacique pelo convite de “Lino de Oliveira Metelo”, nos anos

1980 um ex-cacique da Cachoeirinha e membro do Conselho de João Niceto Júlio.

Analisando a genealogia de Alírio de Oliveira Metelo, o cacique que sucedeu Dionísio no

seu primeiro mandato, veremos o seguinte.

Figura 5– Esquema Genealógico de Alírio de Oliveira Metelo.

1 - João Metelo 7 – Felix da Silva 13 – Alírio de

Oliveira Metelo 19 – Ari de Oliveira 25 – Wanda de

Oliveira (falecida) 2 – Maria Rita de Oliveira

8 – Marcolina Rodrigues

14 – Marcos de Oliveira

20 – Agripina Júlio 26 – Cleonice de Oliveira

3 – Lino de Oliveira Metelo

9 – Benedita Rodrigues

15 –Adão de Oliveira 21 – Maria Joaquim Pio

27 – Regina de Oliveira

4 – Amâncio de Oliveira Metelo

10 – João Guilherme 16 – Alinor de Oliveira

22- Ginaldo de Oliveira

28 – Creuza de Oliveira

5 – Idalina de Oliveira Metelo

11 – não soube informar

17 – Ariano de Oliveira

23 – Evandir de Oliveira

29 – Cleide de Oliveira

6 – Deolinda de Oliveira Metelo

12 – Maria Rodrigues

18 – Arino de Oliveira

24 – Renaldo de Oliveira

Alírio é filho de Lino, o antigo líder que convidou o Dionísio Antonio para ocupar o cargo

de Cacique. Sua esposa é originária da aldeia do Bananal. Agripina Júlio é sua meia “irmã”, ela é

filha de um outro casamento de sua mãe, Benedita Rodrigues com Ciriaco Júlio. O seu irmão

Marcos é casado com Nancy Júlio (uma das irmãs de João Niceto Júlio), o seu irmão Ariano é

casado com Ramona da Silva, Adão com Margarida Belisário e Alinor com Marisa Candelário

(sendo que todos atualmente residem em Campo Grande), sua irmã Agripina Júlio é casada com

Gilberto Turíbio.

Pelo que levantamos de informações junto ao próprio Alírio, ele começou sua atuação

política como presidente do Conselho de João Niceto Júlio. Depois foi vice-cacique de Dionísio

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289

Antonio e tornou-se cacique em 1984, ficando um ano na função. Alírio serviu ao exército, morou

em Campo Grande vários anos, e trabalho em Mato Grosso e São Paulo, sendo cabeçante durante

certo tempo. Assim, antes de se tornar-se um líder político, Alírio tinha tido experiência de

organizar e liderar grupos de trabalhadores e suas relações nas fazendas da região.

Figura 6- Esquema Genealógico de Argemiro Turíbio

1– Pereira da Silva 6 – Idalina Pedro 11 – não conseguimos identificar

16 - Ademar Turíbio 21 –Vianey Lipú Gonçalves Turíbio

2–Helena Joaquim 7 – Ciriaco Júlio 12 – Agripina Júlio 17 – Adirce Turíbio 22- Jean Lipú Gonçalves Turíbio

3– Turíbio Pereira da Silva

8 – Benedita Rodrigues

13 – Argemiro Turíbio

18 – Maria Helenice Turíbio

23- Argemiel Lipú Gonçalves Turíbio

4 – Vitorino Pereira da Silva

9 – Gilberto Turíbio 14 – Ademir Turíbio 19 – Maria Darcy Turíbio

24 – Narliene Lipú Gonçalves Turíbio

5 – José Timóteo 10 – Cláudia Timóteo

15- Milton Turíbio (falecido)

20 – Marlene Lipú Gonçalves

25- Diego Lipú Gonçalves Turíbio

Argemiro Turíbio é filho de Gilberto Turíbio (nascido em 1911). Gilberto é filho de Turíbio

Pereira da Silva, e herdou o primeiro nome do pai, ao invés do sobrenome (como foi comum em

certas épocas). Turíbio, avô de Argemiro é por sua vez filho de Pereira da Silva, que seria irmão do

pai de Vitorino Pereira da Silva, o “capitão” que antecedeu José Timóteo no Comando de

Cachoeirinha, entre 1918 e 1928 aproximadamente. Dentro do sistema de parentesco Terena,

Vitorino Pereira da Silva e Turíbio Pereira da Silva são “primos/irmãos”, e logo, Gilberto, é

sobrinho do antigo capitão (ou filho classificatório). Turíbio Pereira da Silva faleceu quando

Gilberto ainda era pequeno, e sua mãe teve um segundo casamento, com José Timóteo. Gilberto por

sua vez casou-se com uma das filhas de Ciriaco Júlio, Agripina irmã de João Niceto Júlio.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

290

Na realidade, a “facção do cruzeiro”, se constituiu sobre a base das alianças matrimoniais

entre algumas famílias: a família Oliveira Metelo, família Antonio, a família Pereira da Silva

(Turíbio) e a família Pedro. Mas os membros desta facção são recrutados dentro do “cruzeiro”, que

como vimos é um antigo “bairro” dentro da Cachoeirinha. Na realidade, para compreender

efetivamente a formação das facções com base nos bairros ou vilas, temos de olhar os conflitos de

sucessão como dramas sociais.

Um primeiro drama de sucessão – possivelmente ocorrido entre 1900-1905 - é caracterizado

pela luta interna entre irmãos classificatórios, ou seja, entre dois membros de um grupo de siblings,

dentro de uma mesma geração, pelo controle do poder político no espaço aldeão. Esta luta teria sido

marcada pela utilização de “técnicas indígenas” como a feitiçaria, empregada por Benedito

Polidoro para eliminar o Capitão Polidoro, e assumir seu lugar de chefe da comunidade- local. Este

ato teria sido bem sucedido, mas o Capitão Benedito Polidoro terminaria assassinado numa vendeta,

por índios de Bananal.

Depois do assassinato de Benedito Polidoro teria ascendido à posição de “Capitão” o índio

Vitorino Pereira da Silva, que teria sido indicado pelo SPI. Segundo as informações “A ascensão do

capitão Vitorino é um tema controvertido na aldeia. As versões variam. Umas mostram-no como

um autêntico líder indígena: outros um preposto do Inspetor de Índios da época” (Cardoso de

Oliveira, 1968, p.108).

As relações de colaboração do capitão Vitorino com Rondon e o SPI são corroboradas pelos

depoimentos de alguns de sues descendentes:

“Quando ele chegou aqui, esse Vitorino Pereira da Silva, assim que o finado capitão Timóteo falou pra mim, que o primeiro capitão aqui na Cachoeirinha é ele, porque tempo de Rondon, tava trabalhando junto com ele em serviço até Cuiabá, Rio de Janeiro pra lá, na linha telégrafa, porque quando chegou aqui e acabou o serviço, aí deixou, ficou como capitão, tomar conta de terra. O primeiro capitão, diz que sabia falar português, e respeitava tudo. Assim que me contou. (...) Porque ele sabia, homem que já tem idade. Tempo de Coronel quando recebeu a terra. Então é por isso que cada aldeia recebeu a terra, por causa desse general, por que quem guentava serviço era só índio Terena (Gilberto Turíbio – 26/03/2006)

Vemos pelo depoimento de Gilberto que Vitorino Pereira da Silva teria acompanhado

Rondon nos trabalhos das linhas telegráficas, sendo indicado como capitão da aldeia Cachoeirinha

quando retornou dos trabalhos para a reserva. O que importa marcar é que com a indicação de

Vitorino Pereira da Silva, consolidou-se o deslocamento do poder político de uma família – os

Polidório – para outros grupos familiares.

No final dos anos 1920, entrou na função de Capitão José Timóteo, em substituição ao

Capitão Vitorino Pereira da Silva, “. As razões da substituição de Vitorino foram assim narradas

por José Timóteo:

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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“O Capitão Vitorino inventou de beber e tinha quatro mulheres e queria mais uma mulher. O pai da mulher não queria dar a filha. Daí o finado Capitão Vitorino mandou o José Polidoro bater no velho, enquanto ficava em casa. O seu Werneck mandou buscar o Capitão Vitorino que estava bêbado e dizia nada saber. Aí, o Coronel Horta Barbosa mandou ele embora. Ele pediu, e deixaram ele ficar na roça, doente, tubercoloso, até morrer. Quando ele morreu, eu já era capitão.” (Timóteo Turíbio, apud in Oliveira, 1968, p. 109).

José Timóteo que foi indicado para “Capitão” casou-se com Idalina Pedro, viúva de um

irmão classificatório de Vitorino, Turíbio Pereira da Silva. O Capitão Timóteo foi quem mais tempo

ficou a frente da Cachoeirinha, cerca de trinta anos, até sua morte, que abrirá um segundo drama de

sucessão.

A morte de José Timóteo abriu um período de luta política e um conflito de sucessão dentro

de Cachoeirinha, que não se resolveu até 1960. Cardoso de Oliveira indica que três homens

disputaram o posto de Cacique naquele momento: Ciriaco Júlio (“tenente” da polícia indígena),

Faustino Salvador (migrante de Lalima, Koixomuneti) e Emílio Polidório (da parentela dos

Polidório, casado com uma sobrinha do capitão Timóteo). Cardoso de Oliveira notara a preferência

da comunidade- local Terena por Emílio Polidoro, pelo fato deste pertencer a uma família

tradicional. Mas quem ficou com o cargo foi o então “tenente” da polícia indígena, Ciriaco Júlio.

Este permaneceria à frente da comunidade cerca de 3 anos, e depois seria substituído por Faustino

Salvador. Segundo as informações dadas por uma de suas filhas, Agripina Júlio, a comunidade teria

brigado e batido nele, e por isso ele deixou o cargo de capitão.

Na seqüência teria assumido Faustino Salvador (koixomuneti, assistente de Gonçalo

Roberto, maior xamã de Cachoeirinha na época e relacionado a ele por parentesco), que também

ficaria no comando da Cachoeirinha cerca de 4 anos. Segundo informações de algumas pessoas, foi

afastado por ser muito “violento” (além de ser de origem Laiano e identificado como de “fora da

aldeia” por ter migrado de Lalima, apesar de seus descendentes afirmarem que ele era nascido na

Cachoeirinha e ter ido pequeno para Lalima e depois retornado). Seria somente Lino de Oliveira

Metelo, antigo membro da polícia indígena, que ao ser indicado para a função de capitão,

permaneceria mais de 10 anos no cargo, dando maior estabilidade e fazendo cessar temporariamente

as lutas de sucessão. Lino por sua vez se casaria com uma ex-esposa de Ciriaco, a Benedita

Rodrigues (que abandonou Ciriaco para casar com Lino). Assim, Lino de Oliveira Metelo teria sido

o Cacique indicado pelo Encarregado do Posto do SPI com anuência do Conselho Tribal, logo após

a experiência das “eleições” promovidas pelo SPI terem “fracassado” diante das continuas disputas

estabelecidas nas aldeias como Cachoeirinha. Mas Lino de Oliveira Metelo não teria sumido do

cenário político local, como veremos adiante.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Depois da saída de Lino de Oliveira Metelo o homem a assumir a posição de Cacique foi

Mário Pedro. Este teria abandonado o cargo de Cacique e ido morar em São Paulo (segundo

algumas versões relatadas em Cachoeirinha).

Na realidade, podemos dizer que um grupo de famílias estabeleceram um conjunto de

alianças matrimoniais, especialmente as famílias dos líderes indígenas que tornaram-se

caciques/capitães. As famílias dos caciques Vitorino Pereira da Silva estabeleceram trocas

matrimoniais com os membros das famílias Pedro e Antônio (no caso, Idalina Pedro que foi casada

com Turíbio Pereira da Silva) e Dalva da Silva, uma das filhas de Vitorino, que casou-se com

Guilherme Antonio. Idalina Pedro tinha dois irmãos, Geraldo Pedro e Antonio Pedro, sendo os pais

destes Pedro Elói e Aninha Joaquim. Mário Pedro casou-se com Rosalina Antonio, e João Niceto

foi casado com Leda Pedro.

Estas famílias é que ocupam a área que ficou conhecida como Cruzeiro. A facção política do

Cruzeiro é conseqüentemente aquela que reúne os líderes indígenas e grupos familiares locais que

conseguiram estabelecer com maior eficácia uma relação de colaboração/aliança com o SPI. Ao que

parece, as famílias que estabeleceram estas trocas matrimoniais, absorveram dois indivíduos que

tornaram-se “caciques” durante o segundo “drama de sucessão”; Ciriaco Júlio e Lino de Oliveira

Metelo; e é graças ao trabalho político e as relações de parentesco e aliança que este último soube

construir, que ele conseguiu agrupar no lado “leste” do Posto, um conjunto de grupos familiares,

que poderiam ter ascendência comum. A facção do “Cruzeiro”, tal como se apresenta nos anos

1980, e a organização política e cultural de Cachoeirinha indicam que este antigo líder e membro da

policia indígena, continuou exercendo forte influência na vida política da comunidade mesmo

depois de ter deixado a função de cacique em meados dos anos 1970. A vila Cruzeiro reuniria assim

os grupos familiares mais vinculados ao SPI/FUNAI, e aqueles que por mais tempo tinham exercido

o controle político da aldeia graças a essa relação.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

293

Para compreender a real importância da figura de Lino, construtor tanto de uma política de

alianças com o Estado quanto de um agrupamento residencial entre diferentes grupos familiares de

uma ou duas linhagens, em torno da sua atividade e liderança, é preciso observar a atual

composição (os grupos domésticos residentes) da antiga “Cruzeiro”. Os mapas 5 e 6 ilustram isso:

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Mapa 5– Vila Santa Cruz.

Mapa 6 –Vila Cruzeiro.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

295

1) Luiza Francelino (viúva de Ciriaco Júlio) 16) Airton Júlio e Vaneide Turíbio (filha de Ademir Turíbio)

2) Elenilda Antonio (neta de Luiza Francelino) e Enilson Albuquerque

17) Mário Albuquerque e sua esposa Maria Darci Turíbio (irmã de Argemiro)

3) Hélcio Albuquerque e sua esposa Silvia Regina Oliveira (filha de Marcos de Oliveira)

17-A) Simão da Silva e Lucila Brás

4) Marcos Oliveira e sua esposa Nancy Júlio 18) Ademir Turíbio e sua esposa Lucília Pedro 5) Jailce Oliveira filha de Marcos de Oliveira e seu esposo Sebastião de Oliveira Costa (branco)

19) Tomás Balbino e sua esposa Paulina Barbosa.

6) Maria Helenice e sua filha, Ednara 20) Alírio de Oliveira e sua esposa Maria Joaquim Pio.

7) Gilberto Turíbio e Agripina Júlio (filha de Ciriaco Júlio)

21) Ariano de Oliveira e sua esposa Ramona da Silva (estão em Campo Grande – é o lote que pertenceu a Lino Oliveira).

8) Ademar Turíbio 22) Elcio de Oliveira (filho de Alinor Oliveira) e sua esposa Daniela Paiva)

9) Argemiro Turíbio, sua esposa Marlene Lipú Gonçalves.

23) Danilo Paiva e sua esposa Nelsinha Vitor (sogro e sogras de Élcio)

10) Venâncio Barbosa (viúvo de Dirce Turíbio, irmã de Argemiro)

24) Dionísio Martins e sua esposa Cleide Oliveira (filha de Alírio)

11) Leda Pedro (ex-esposa de João Niceto Júlio, mãe de Airton Júlio)

25) Basílio Martins (irmão de Dionísio) e sua esposa Regina Oliveira (filha de Alírio). Estão em Campo Grande, sua filha mora no local.

11-A) Rosa Antônio (ex-mulher de Mário Pedro, com seu filho Edílson Pedro, Nora e Netos.

26) José Antonio e sua esposa Marlene Oliveira (filha de Alinor)

12) Cecílio Antonio com esposa e filhos. 27) Mariza Candelário (viúva de Alinor e Mãe de Marlene Oliveira).

13) Bernardina Antonio 28) Tereza Salvador, filha de José Vaqueiro (falecido)

14) Temiz Arruda e sua esposa Ruth Lemes 29) Ielmiro José (neto de Vaqueiro), com sua esposa Cileide Vitor

15) Luiz Antonio e sua esposa e filhos. 30) João Niceto Júlio e filhos.

A antiga “Cruzeiro” compreendia as atuais vilas Cruzeiro, Santa Cruz e Rio Branco dos

mapas acima. Os lotes em que hoje estão Alírio de Oliveira e os lotes vizinhos dos seus irmãos

eram do seu pai, Lino. Algumas das famílias extensas que hoje se encontram nestas vilas, foram

reunidas por Lino, como por exemplo, a própria família de Dionísio Antonio. Segundo o

depoimento deste último, ele e seu pai moravam na roça até os anos 1950, quando o Lino convidou-

os para ir residir na Sede, que facilitaria a “escola” para as crianças. Guilherme Antonio e um

primo/irmão Eusébio Antonio transferiram-se com suas famílias para a Sede.

O grupo doméstico de Dionísio Antonio hoje é composto por uma família extensa de 4

gerações. Residem na mesma vila, em casas vizinhas, seu pai Guilherme Antônio com sua irmã (ex-

esposa do cacique do Babaçu, Zacarias Rodrigues) e os filhos e netos de Dionísio. Na mesma vila

moram também alguns cunhados como Horto Belizário, e genros, como Joelino Pereira. Os

membros da família Belizário, estão integrados no grupo de Dionísio. Guilherme e Eusébio Antonio

eram companheiros de Lino de Oliveira na realização do ritual Oheokoti.

Outra família que se mudou para aquela vila por convite de Lino, foi a família de Afonso

Pinto. Afonso Pinto é chefe de uma família extensa, residindo no seu lote ele, dois de seus filhos

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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com suas esposas e 3 filhas com seus maridos. A família de Afonso residia no Morrinho até os anos

1970, quando foi morar na Sede, por convite de Lino. Afonso Pinto tornou-se também companheiro

de Lino, Eusébio e Guilherme Antonio no Oheokoti.

Uma parte dos filhos de Lino de Oliveira se mantém residindo no mesmo “lote” que

pertencera a seu pai. Gilberto Turíbio e Agripina Júlio foram convidados para fixar residência ali,

depois de morar um tempo junto do capitão Timóteo, mas saíram e foram morar num lote ao lado

da casa do pai de Agripina, Ciriaco Júlio, que morava num lote vizinho ao de Lino Oliveira.

É interessante ver que os homens que ocuparam o cargo de cacique foram escolhidos quase

todos por Lino de Oliveira ou sua liderança:

“Eu na minha vida como qualidade de morador daqui de Cachoeirinha quando fui cacique em 1982, fui convidado através desse capitão Lino de Oliveira. E assim eu tomei posse em 1986 eu sai, em 1988 eu voltei três anos de novo na minha vida de cacique. A comunidade eu vi que tava precisando, eu fiz muito projeto grande, quando eu fui cacique, nós colhemos arroz, feijão, essa máquina 290 que ta aí, foi do nosso projeto, teve um F4000 e acabou noutro mão, e foi assim a minha vida e eu fiquei aqui até agora”. (Dionísio Antonio, Março/2006)

Lino de Oliveira era membro do Conselho Tribal de João Niceto Júlio, e uma das figuras

que organizava o processo político e ao que parece, dava unidade para estas diferentes parentelas de

naati/caciques e que foram política e residencialmente agrupadas por sua iniciativa.

Outras lideranças foram preparadas por esta facção e seus principais “cabeças”, como

Argemiro Turíbio nos anos 1980, e como parece hoje em dia, um dos filho do Dionísio Antonio,

Adilson Antonio que tornou-se vice-cacique e um filho do ex-cacique Mário Pedro, que reside na

vila Cruzeiro, Edílson Pedro.

A própria análise da trajetória individual de Argemiro Turíbio, o último cacique do

Cruzeiro, mostra isso também:

“Primeiro quando comecei a entrar no movimento, eu comecei na Igreja, desde jovem, participando do trabalho na Igreja, ai comecei a aprender ali, a participar de todos os encontros, discussão dentro da Igreja, falando da palavra de Deus. Ai depois eu fui entrando, aproximando das lideranças, quando tinha reunião, eu ia, participava... Depois mais tarde comecei a organizar esporte (...) evento, danças nas festas eu fazia tudo isso... Qualquer movimento assim social eu tava no meio, ajudando a organizar....

Quando você começou a acompanhar a liderança?

Isso foi demorado. (...) Ai depois fui crescendo, ai comecei participar, eu comecei sair, estudei para fora, me formei, voltei pra cá... Quando sai daqui, eu já fazia tudo isso, ai sai 84, 85, 86, pra fora, voltei, retornei para cá, aí comecei a trabalhar na educação, três anos como professor, ai depois disso o pessoal me indicou para concorrer a eleição em 1988 ...

Quem o indicou para concorrer?

Mais os parentes, como o Dionísio, Alírio, Adolfo Pedro, algumas pessoas ligadas a gente. Ai eu sai vitorioso em 1988, e fiquei até 1990.Em 1991 eu concorri para cacique, eu já era vereador, eu ganhei mais quatro anos, ai comecei a trabalhar desse jeito.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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Quem fazia parte da sua liderança?

Cirilo Raimundo, Zacarias da Silva, Alírio Oliveira, Dionísio, Adolfo Pedro

Ai eu tentei eleição para vereador, e não consegui. Ai eu fiquei um ano lá no Morrinho implantando um projeto de agricultura, horta na escola, lá no Morrinho, trabalhando lá, ai depois disso eu tentei mais uma vez vê se conseguia eleger para vereador e não consegui, e depois disso eu comecei a organizar uma associação, o nome dele hoje é ACIC..”. (Argemiro Turíbio, Março/2006)

O grupo que se articulava em torno de Argemiro Turíbio, era composto pelos chefes das

famílias moradoras do “cruzeiro”, especialmente os líderes da comunidade nos anos anteriores.

Assim, entre 1910 e 1985, os caciques da Cachoeirinha foram recrutados entre um limitado grupo

de famílias, sendo que aqueles que não eram das famílias que antes forneciam os “caciques”, se

integraram em suas redes de parentesco e afinidade através de torças matrimoniais, como vimos

acima. Este grupo conseguiu manter-se no poder local durante um tempo importante, especialmente

depois da ascensão de Lino de Oliveira.

Os dramas de sucessão, aqui analisados, o primeiro passado no início do século, o segundo

em final dos anos 1950, e o drama da cisão e suecessão dos anos 1980 estavam inter-relacionados.

No início do século, a substituição de Benedito Polidório por Vitorino Pereira da Silva, marcou um

deslocamento de poder importante dentro da reserva – também ocasionado pela mudança do regime

da transmissão hereditária da chefia para o regime de indicação unilateral. Nos anos 1950, depois

da morte do capitão Timóteo, outro drama de sucessão de desenvolveria. Emílio Polidório,

descendente da parentela derrocada do poder na Cachoeirinha disputaria a posição de Cacique com

lideranças emergentes. Ciriaco Julio e Lino Metelo participaram de um mesmo grupo vicinal e foi

este ultimo que conseguiu manter-se de forma estável na liderança. O terceiro drama de sucessão,

que resultou na cisão da Cachoeirinha, traz a tona conflitos que remontam a estes outros dramas e

lutas entre diferentes parentelas e grupos vicinais.

No terceiro “drama de sucessão dos anos 1970/80, descendentes dos Polidório e de Vitorino

Pereira da Silva se defrontaram politicamente, agrupados em diferentes facções: uma liderada por

Sabino Albuquerque e outra por João Niceto Júlio. De um lado um grupo de famílias que já estava

controlando o poder local há bastante tempo, de outro, um conjunto de grupos familiares que estava

disputando este poder.

Na realidade, a facção liderada por Sabino Albuquerque, era composta na sua grande

maioria por moradores da área da aldeia conhecida como “Mangao”, por sua vez da parentela do

capitão Polidorio. As famílias que ocupam esta área e que serviram de base para sua mobilização

política, foram especialmente as famílias Albuquerque, Polidório e Muchacho. As relações

genealógicas dos líderes que passaram a combater a facção do cruzeiro nos anos 1980 e disputar o

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

298

poder e controle dos recursos dentro da aldeia, remontam aos Polidorio. Além disso, existia também

uma rixa entre a família Albuquerque e certas famílias da facção do cruzeiro.

Uma análise da história da família Albuquerque e informações genealógicas são encontradas

no trabalho de Ladeira (2001). Podemos perceber o seguinte:

Figura 7– Esquema Genealógico de Sabino Albuquerque.

1 – Lili Albuquerque 6 – Xavier Polidório 11 – Cecilia

Muchacho 16 – Esídio Albuquerque

21 – Genilda

2 –Maria Angelina Antonio

7 – Leonardo Polidório

12 – Sabino Albuquerque

17 – Mário Albuquerque

22 – Genimara

3- José Polidório 8 – Floriza Polidório 13 – Rafael Albuquerque

18 – Almerinda Albuquerque

23 - Salmir

4 – Alexandre Albuquerque

9 - 14 – Alberto Albuquerque

19 – Marina Albuquerque

24 Geni

5 – Carlos Polidório 10 15 – Hélio Albuquerque

20 – Genésia Pinto 25 – Saulo 26 – Samir

Sabino é filho de Alexandre Albuquerque, que é filho de Lili Albuquerque, um branco que

foi o primeiro marido de Maria Angelina Antonio, avó de Sabino. Este separou-se de Maria

Angelina em 1930-31. Maria Angelina Antonio casou-se novamente, com José Polidório (que é,

pelas informações de Roberto Cardoso, filho do capitão Polidório, o primeiro capitão de

Cachoeirinha). Alexandre é assim o fundador de um novo grupo familiar, os Albuquerque.

Alexandre casou-se com Cecília Muchacho, e teve oito filhos (6 homens e 2 mulheres). Hélio

casou-se com Idalina Polidório; Sabino casou-se com Genésia Pinto; Alberto casou-se com Maria

Aparecida Pedro; Esídio casou-se com Eulógia (uma branca); Rafael casou-se com Dominga

Américo; Mário casou-se com Maria Darci Turíbio; Almerinda e Marina casaram-se com homens

de fora da aldeia, não indígenas e residem em Campo Grande.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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A história da família Albuquerque indica que Alexandre era um índio dedicado ao trabalho e

comércio, criador de gado e empreendedor. Pelo que conseguimos levantar junto aos moradores de

Cachoeirinha, existia uma certa antipatia de alguns frente a figura de Alexandre, tanto pela sua

capacidade comercial quanto pela sua estratégia individual, que levava – segundo alguns – a não

participar em mutirões dentro da aldeia e atender a convocação para o trabalho feita pelo Capitão

Timóteo. Em 1954 aproximadamente Alexandre recebeu um convite para ir morar em uma fazenda

da região do rio Salobra, onde conseguiu uma criação de gado. Desta maneira, existia já um atrito

entre Alexandre alguns indígenas. Eles “Voltaram para aldeia em 1961. Uma volta conturbada, já

que o chefe da aldeia na época, capitão Julio Siriaco, recusava permissão para Alexandre

estabelecer novamente moradia na aldeia de Cachoeirinha” (Ladeira,2001, p. 47).

De acordo com as memórias dos filhos de Alexandre:

“ele alegava que por ter passado um tempo para fora ele não era mais índio, foi quando meu pai falou com o compadre dele que era Chefe de Posto na época, sr. Américo. O chefe de Posto teve que conversar muito com o cacique e mostrar todos os documentos do finado meu pai, que era analfabeto.....se não fosse o Chefe de Posto o cacique atual na época não estava aceitando ele .... Eu já não lembro muito bem dessa história, meu pai contava para mim: meu filho, foi difícil de nós voltar novamente para a nossa área...então meu filho não sai daqui, fica aqui, aqui você constrói a sua vida.”. ( Alberto Albuquerque, apud in Ladeira, p. 47)

Existiu um conflito entre Alexandre Albuquerque e o então Capitão Ciriaco Júlio, que tentou

proibir a entrada de Alexandre na área, o que só foi conseguido graças à intervenção do

Encarregado do Posto. Retornando para Cachoeirinha, ele conseguiu ainda acumular alguns bens,

que ficaram para seus filhos:

“Quando o velho faleceu, vendemos as terras , meus irmãos se reuniu para vender essas terras, aí teve a herança, aí ficou até hoje a gente tem um gadinho e aí que a turma fica com inveja com o que a gente tem, sei que meu pai foi perseguido por causa de gado, então até hoje a turma tem coragem de falar que a gente não é índio, minha mãe é índia e meu pai filho de índia... meu pai não condeno que ele é brasileiro, não sei o que ele é, mas o pessoal de Albuquerque de Miranda, coitado, todo mundo xinga ele de índio, de bugre.... acho que é mais inveja né, ninguém pode ter nada aqui que a turma fica de olho em pé” (Sabino, apud in Ladeira, 2001, p. 48).

Desta maneira, a ascendência “purutuye” de Sabino foi (e na verdade ainda é) utilizada para

desqualificá- lo dentro da política aldeia. A experiência de enfrentamento com certos grupos

familiares, que dominavam a vida política em Cachoeirinha, por questões especificamente

individuais ou familiares, juntou-se ao fato de o pai de Sabino, Alexandre, ser enteado de José

Polidório, descendente de um antigo cacique e um naati.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

300

A ação política de Sabino foi motivada tanto pela sua vontade de auto-afirmação da família

Albuquerque dentro da aldeia115, quanto pela sua localização social e territorial, dentro de um

conjunto de famílias que residia no lado oeste do Posto, especialmente os Polidório e os Muchacho.

A ascensão política de Sabino coincidiu com o seu deslocamento para o “centro” da aldeia, já que

ele construiu uma grande casa com uma enorme varanda ao final da “vila principal”. Ele conseguiu

alcançar um padrão de vida econômico muito superior ao da média da população de Cachoeirinha,

tendo gado, carros, ônibus e caminhões e “terras” fora da aldeia. É como ele próprio descreve:

"Então é isso aí, é minha luta sempre adquirir as coisas pra deixar meu nome, pra não apagar pros meus netos, essa é que é minha preocupação né, deixar a família Albuquerque desprotegida né, quero que o meu filho seja considerado, por isso que eu luto pra adquirir alguma coisa, por causa do começo da vida do meu pai aqui, disso eu tenho sentimento e graças a Deus, eu tenho correspondido, e eu acho que daqui pra frente vai ser respeitado meu nome ..a gente taí lutando pra adquirir mais terra pra comunidade, essa é a minha luta". (Sabino, apud in Ladeira, p. 50).

Neste sentido, podemos falar que a parentela dos Albuquerque, iniciada com Alexandre, e

hoje composta por algumas dezenas de pessoas, foi integrada numa rede troca matrimoniais e

alianças políticas com as famílias que tradicionalmente ocupavam a área do Mangao, especialmente

os Muchacho e os Polidório.

As facções do Cruzeiro e do Mangao eram compostas por grupos domésticos que

integravam unidades político-territoriais mais amplas, os grupos vicinais que se constituíram em

conjuntos de ação política, seguindo certos critérios, especialmente as relações de parentesco dentro

de determinadas parentelas de naati. Estas facções foram construídas por um longo processo

político de alianças matrimoniais entre certas famílias da reserva de Cachoeirinha. Para entender o

funcionamento destas facções políticas, é preciso entender a constituição das “vilas” ou “bairros”

dentro de Cachoeirinha, que são esses grupos vicinais. Hoje em dia estes antigos “bairros” se

“fragmentaram” em diferentes “vilas”, indicando talvez uma tendência ainda maior a um tipo de

descentralização faccional, e uma composição de alianças altamente móvel, tanto entre as facções e

lideranças indígenas, quanto entre estas e grupos políticos e elites dirigentes locais e regionais.

Depois de 1986, o monopólio exercido pela facção do Cruzeiro foi quebrado; a facção do

Mangao, liderada por Sabino e aliada ao CTI, conseguiu eleger o “cacique” por duas vezes

consecutivas. A cisão “Cruzeiro X Mangao” entre 1988 e 1991, que eclodiu por conta do controle

dos recursos do “caixa comunitário”, especialmente, foi um momento de crise provocada pela 115 “Em todos os depoimentos gravados e em todas as conversas mantidas os filhos fizeram questão de manifestar sua mágoa pela marginalidade de seu pai, Alexandre Albuquerque, na comunidade terena. Na verdade, seu pai, por ser filho de branco, não poderia ser enquadrado em nenhuma das camadas sociais, já que a descendência, como vimos é patrilinear. E, consequentemente, seus filhos também não. Mas, paradoxalmente, todos, com exceção do Ezídio, procuram reforçar sua identidade terena lutando para fazer o nome Albuquerque, nos padrões atuais de pertencimento de um grupo, como dos Xuna Xati, de onde saiam os "chefes de guerra". Daí o empenho de Sabino em ser eleito como chefe e lutar para conseguir um grande feito para a comunidade:a ampliação do território indígena.” (Ladeira, op.cit, p. 51).

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

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quebra desta linha de sucessão dos caciques dentro da mesma facção e grupo vicinal. Nos anos

1990, a antiga facção do Cruzeiro só conseguiu eleger um Cacique, Argemiro Turíbio. Mesmo

assim ele foi tirado do cargo, sob circunstâncias que nós não conseguimos esclarecer, ficando em

seu lugar o vice-cacique, Cirilo Raimundo Pinto, casado com Nilza Júlio, uma das filhas de Hilário

Júlio, irmão de Ciriaco Júlio. Cirilo é filho de Pereira Pinto e Cristina Raimundo, que residiam na

antiga Cruzeiro (no lugar em que hoje reside Afonso Pinto), antes de mudar-se para o Morrinho.

Depois os caciques eleitos foram Esídio Albuquerque (1994-1998) e Sabino Albuquerque (1998-

2002) e Lourenço Muchacho (2002-2006), todos moradores da antiga área do Mangao. Somente em

2006 seria eleito Cirilo Raimundo, que apesar de residir do lado “oeste” do Posto, é relacionado por

parentesco e aliança política tradicionalmente a Dionísio Antonio, tanto que Adilson Antonio, filho

de Dionísio, tornou-se vice-Cacique e o próprio Dionísio faz parte da liderança, como membro do

conselho tribal.

Na realidade um processo de fragmentação da facção do cruzeiro se verificou,

principalmente após a morte de Lino de Oliveira, que ao que parece, era quem dava coesão ao

conjunto de famílias, permitindo sua constituição em conjuntos de ação política. Houveram

dissidências entre Dionísio Antonio que passou a liderar as famílias da Vila Santa Cruz, e Alírio de

Oliveira, que passou a liderar os moradores da Vila Cruzeiro. Outras crises entre estes grupos

familiares iriam se verificar em diferentes momentos, e muitos indivíduos iriam buscar alianças

com antigos adversários, como o Sabino, além do fato de que várias trocas matrimoniais se deram

entre os Albuquerque e os Turíbio, Antonio e Pedro.

Também na facção do Mangao um processo similar se verificou. Os irmãos, Esídio, Sabino

e Rafael Albuquerque entraram em conflito. Durante a nossa pesquisa de campo vimos depoimentos

sobre os conflitos entre Sabino e Esídio: “Sabino e seu irmão Esídio Albuquerque não se dão. Por

exemplo, na época que o Sabino era vereador, Inácio perguntou ao Sabino porque não fazia

projeto para a comunidade, e ele respondeu “o cacique não trabalha junto comigo”. (Inácio

Faustino, 2004), o que é corroborado (ver Ladeira 2001), que diz que Esídio é “o maior desafeto

político de Sabino”. Também continua existindo uma rixa entre Dionísio e Sabino, apesar de um

filho de Dionísio ser casado com uma filha de Sabino. Antigas lideranças de Sabino, como Sabino

Lipú, que foi vice-cacique, passaram a atuar com o grupo de Alírio e Argemiro. Assim, a

mobilidade dos indivíduos e grupos familiares, característico da organização faccional, se encontra

em Cachoeirinha. A disputa pelo controle dos recursos – econômicos e políticos – precipitou este

processo e seu desenvolvimento.

Os conflitos de sucessão dos anos 1980, quando uma facção liderada por Sabino

Albuquerque começou a desencadear uma política de oposição à facção dominante e à FUNAI, na

realidade não eclodiram somente em razão da política do “óleo e da semente”. No fundo deste

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

302

processo, estava uma outra questão: a da substituição de uma facção (composta por grupos

familiares que controlaram a política de Cachoeirinha por anos, através da colaboração direta com o

SPI/FUNAI) por outra, que incluía grupos familiares de uma parentela que foi deslocada da posição

política dominante, no processo de construção da reserva em 1904-1910. Além disso, existiam rixas

e rivalidades entre as famílias, em razão de diversos fatores, como o “exercício monopólico do

poder” – que ia desde a exclusão do acesso a recursos, até a repressão política e imposição de

situações vexatórias e formas de exclusão ideológica, como as fofocas e o não reconhecimento da

identidade indígena (como é o caso de Sabino). Esta rivalidade ganhou expressão territorial. A cisão

Cruzeiro X Mangao deve ser vista como um parte de um drama social, que na realidade reativa e

explicita conflitos e contradições históricas dentro da aldeia, que remontam aos primeiros dramas de

sucessão. É importante notar que durante muito tempo, esta forma de organização territorial dos

Terena em “bairros” ou grupos vicinais, de onde surgiam os tuuti, líderes políticos e religiosos, foi

ignorada. Estes bairros expressam a descentralização da autoridade política, e conseqüentemente

produzem uma grande instabilidade, levando aos contínuos conflitos de sucessão.

No cerne de todo este processo está à problemática do regime tutelar. O exercício do poder

tutelar dependia de uma colaboração continua do SPI/FUNAI com segmentos dos grupos indígenas.

O poder monopólico e centralizado era compartilhado com facções indígenas que exerciam este

poder, em nome de seus interesses e do Estado, excluindo outras facções locais. Os poderes

inerentes ao regime tutelar – controlar o acesso ao território e movimentos dos indígenas, realizar a

gestão dos bens, e exercer a representação política – tornaram-se objeto de contestação e disputa; as

facções contestavam os poderes e o regime tutelar porque contestavam o domínio das facções

rivais; assim, as forma de resistência contra a tutela são também formas de luta política interna, de

maneira que não faz nenhum sentido considerar a centralização política como um fator acessório ou

externo. Diferentemente das representações do discurso indigenista, que são reforçadas por certas

teses sociológicas, os conflitos entre os próprios indígenas não são a conseqüência de uma mera

intervenção externa. Na realidade a centralização estatal não eliminou a descentralização segmentar

(que compreendia conflitos entre os próprios indígenas), ao contrário, atuou sobre ela acentuou e

transformou numa descentralização segmentar- faccional.

O processo de imposição de uma estrutura de poder e chefia centralizada, assimilada em

parte pelos Terena, teve como contrapartida um processo de descentralização faccional. A

centralização levou ao faccionalismo; o favorecimento de um grupo de famílias recrutadas dentro

de certo grupo vicinal produziu uma cristalização do poder em uma “aristocracia indígena”; um

grupo que detinha privilégios e poderes especiais concedidos pelo Estado em razão de (e em quanto

durasse) sua colaboração para com as agências estatais, no caso, as instituições tutelares.

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Capítulo 5- Centralização Estatal e Descentralização Faccional

303

Esta descentralização surgiu também da própria política produtivista de formação de “novas

roças”, que era incentivada pelo SPI e FUNAI – especialmente através da nova modalidade de

empreendimentos indigenistas, os projetos agrícolas. Os grupos domésticos deslocados para as

áreas de roça levavam consigo o modelo de organização social, e rapidamente as famílias se

transformaram em agrupamentos residenciais e conjuntos de ação política. A partir deste momento,

ocorreu uma pluralização das chefias, relativamente tolerada, mas não totalmente sancionada pela

FUNAI – o que possibilitou o aparecimento de novas aldeias e caciques. Esta centralização política

coexiste assim com uma descentralização administrativa, que se tornaria também faccional, e ambas

são na realidade, causa e efeito uma da outra. O faccionalismo, conseqüência direta do regime

tutelar e também das estratégias de resistência e formas de organização social e cultural do grupo,

levaram a transformações significativas no regime tutelar, com a mudança em aspectos importantes

de sua configuração, ao mesmo tempo garantindo sua reprodução.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

304

Capítulo 6 – A Co-gestão indígena e as micropolíticas de colaboração e a resistência cotidiana.

“Meus povos temos que aprender a dirigir o barco, para nós possamos ser acreditado e respeitado por “PURUTUYE”, por que um dia nós veremos a realização dos nossos trabalhos, para que as nossas comunidades possam ver nos próprios olhos o que eu sonhei, porque eu sinto muito quando eu vejo minha comunidade esquecida pelos projetos de nosso município. As muitas vezes nós elegemos os “PURUTUYE”, que nunca teve retorno para os nossos povos, porque eles não sabem o que nossas comunidades precisam, mas eu sei o que meu povo lamenta, eu nasci e cresci nesta comunidade dos Terenas da aldeia Argola e grande Cachoeirinha. É por isso que eu estou nesta luta, para ser candidato a vereador dos “COPENÓTI”, para ser representante”.

Proposta Política do Candidato a Vereador Aldo da Silva para todos os povos indígenas Terena , 2004.

O processo de construção das facções indígenas e de resistência ao regime tutelar em

Cachoeirinha, não se esgotou na disputa pelo posto de cacique. Na realidade, este processo se

estende para diversos domínios: a política local, a política indigenista, o cotidiano das relações

sociais dentro e fora da aldeia. Iremos analisar agora alguns dos processos sociais mais importantes

ocorridos em Cachoeirinha: a formação das “associações” indígenas; a luta pela autonomia dos

“setores” contra o cacique geral; o novo processo de territorialização desencadeado pela “retomada”

de terras tradicionais.

As idéias sintetizadas no lema “vamos dirigir o barco” do candidato indígena Aldo da Silva

mostram essa vontade política dos índios de “ocuparem espaços”, de “gerirem” instituições e

recursos – materiais e simbólicos. Iremos descrever e analisar como as transformações nas relações

entre Índios e Estado e no próprio regime tutelar, são marcadas por múltiplas contradições – que

levam ao aprofundamento das tensões entre as formas de resistência e o projeto de co-gestão

indígena, e ao mesmo tempo como esta última tem exigido um fortalecimento das “dominações

horizontais” no contexto das aldeias de Cachoeirinha.

6.1 - A formação das Associações Indígenas

Iremos descrever abaixo a história de duas associações indígenas (AITECA e ACIC)

formadas nos anos 1980/1990 como produtos da luta verificada entre duas grandes facções

indígenas.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

305

AITECA

Atualmente Cachoeirinha possui praticamente uma dezena das chamadas “Associações”.

Mas a maior parte destas associações indígenas tem existência efêmera; algumas se formam e logo

desaparecem, muitas vezes sequer conseguem obter registro legal e realizar sua principal função –

possibilitar a representação dos grupos indígenas perante organismos estatais e outras organizações

e instituições sociais e obter “recursos” e “projetos” para a “comunidade”. A mais sólida é a

AITECA (Associação Indígena Terena da Cachoeirinha), que dispõe de Sede própria, 2 tratores e

maquinário. Algumas outras Associações existem na Sede, como a ACIC (Associação da

Comunidade Indígena Terena de Cachoeirinha).

A AITECA foi constituída em outubro de 1989, na mesma conjuntura em que Cachoeirinha

apresentava a cisão entre “Cruzeiro e Mangao”, lutas faccionais e conflitos de sucessão. A facção

de Sabino Albuquerque, que já havia estabelecido uma aliança política com o CTI, consolida esta

relação e o processo de “ruptura política” com a FUNAI, ao implementar o processo de constituição

desta nova organização:

“Ata da Assembléia Geral de Constituição da Associação Indígena Terena de Cachoeirinha. Aos 12 (doze) dias do mês de Outubro, do ano de 1989 no local da reunião, sito na Aldeia Cachoeirinha município de Miranda, estado do Mato Grosso do Sul, reuniram-se as pessoas a seguir indicadas, com o propósito de constituírem uma associação de produtores rurais indígenas, sob a forma de uma sociedade civil sem fins lucrativos. Para coordenar os trabalhos, a Assembléia escolheu, por aclamação, o senhor Gaudêncio Henrique que convidou a mim Luís Cláudio Bona, para lavrar esta ata. Seguidamente se procedeu a leitura, discussão e esclarecimentos finais do estatuto social, o que foi feito artigo por artigo. O Estatuto foi aprovado pelo voto de todas as pessoas anteriormente identificadas no prosseguimento dos trabalhos. A assembléia procedeu à eleição dos primeiros membros da Diretoria: Diretor Presidente: Sabino Albuquerque; Diretor Vice-Presidente: Alberto Albuquerque; 1 e 2 Diretores Secretários: respectivamente Elcio Albuquerque e Gilberto Augusto;1 e 2 Diretores Tesoureiros, respectivamente Gaudêncio Henrique e Aliana Alfredo Pinto; para membros efetivos do conselho fiscal Hélio Albuquerque, Bento Silvério e Maria Aparecida; como suplentes do Conselho Fiscal, Cecílio Lipú, Milton Pires e Sabino Lipú. Todos os membros já eleitos já se encontram devidamente identificados nesta ata. Após a eleição e tomada a posse de todos os membros, o presidente da mesa declarou definitivamente constituída a Associação Indígena Terena da Cachoeirinha – AITECA com administração e Sede na aldeia da Cachoeirinha, município de Miranda, Estado do Mato Grosso do Sul, sociedade civil sem fins lucrativos, criada ao abrigo do Código Civil brasileiro que terá como objetivo a prestação de quaisquer serviços que possam contribuir para o fomento e racionalização das explorações agropecuárias e artesanais em geral e para melhorar as condições de vida de seus associados”. (Ata de Fundação da AITECA, 1989).

A escolha de Sabino Albuquerque para presidente, seu irmão Alberto para vice, seu sobrinho

Élcio para secretário, e seu irmão Hélio para Conselho Fiscal, marcam a proeminência da família

Albuquerque na fundação desta associação. Gaudêncio Henrique era um antigo companheiro de

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Sabino, sendo presidente do seu Conselho Tribal e também articulador importante dentro da facção

em meados dos anos 1980.

Nos documentos de fundação da AITECA (ata e estatuto) estão os nomes de 47 pessoas (28

homens e 19 mulheres). Destes indivíduos destacam-se 8 da família Polidório (7 mulheres e 1

homem) e 8 da família Albuquerque (7 homens e 1 mulher). Abaixo podemos ver o quadro

completo dos fundadores:

Gaudêncio Henrique, 39 anos

Antonio da Silva, 44 anos

Ricardo Pinto, 56 anos

Feliana Lemes, 34 anos

Maria Aparecida Pedro, 38 anos

Laurindo José Muchacho, 43 anos

Elias Antonio, 42 anos

Rafael Albuquerque, 58 anos

Eniá Polidório, 43 anos

Letícia Polidório, 54 anos

Antonio Muchacho, 74 anos

Hélio Albuquerque, 52 anos

Milton Pires, 39 anos Sebastiana Polidório, 30 anos

Cláudia Timóteo, 60 anos.

Camilo Henrique, 62 anos

Sabino Albuquerque, 40 anos

Aleixo Lemes, 59 anos

Dilma da Silva, 27 anos

Maria Fátima Canale 15 anos

Cecílio Lipú Alberto Albuquerque, 37 anos

Assunção Pedro, 38 anos.

Lucia Pereira, 69 anos.

Valdelina Pereira 17 anos

Cesário Canali Barbosa, 64 anos

Gilberto Augusto, 37 anos

Esídio Albuquerque, 43 anos

Soeli Polidório, 29 anos

Eusinda Albuquerque, 17 anos.

João Lipú, 74 anos

Elcio Albuquerque, 28 anos.

Mário Albuquerque, 39 anos.

Cândida da Silva, 39 anos

Aliana Alfredo Pinto, 30 anos

Ramão Vitor, 31 anos

Sabino Lipú, 45 anos Alberto Polidório, 75 anos

Emiliana da Silva, 56 anos

Otacílio Canali, 49 anos

Bento Silvério, 33 anos

Genésia Pinto, 36 anos

Feliciana Polidório, 39 anos.

Marcelino da Silva, 44 anos

Jacinto Samuel, 37 anos

Idalina Polidório, 44 anos

Donalita Polidório, 54 anos

Na realidade tratam-se de algumas famílias inter-relacionadas por parentesco e que seguem

também um padrão de co-residência. Além dos membros das famílias Albuquerque e Polidório,

estavam entre os fundadores 5 membros da família “Silva”, 2 membros da família “Muchacho”, 2

membros da família “Henrique” e 3 membros das famílias “Lipú”, “Pinto” e “Canali” (e indivíduos

de sobrenome Lemes, Pires, Pereira, Vitor, Pedro e Timóteo). Os indivíduos acima citados nos

documentos são oriundos de famílias que mantêm trocas matrimoniais e estão inter-relacionadas por

parentesco há algumas gerações, além de manterem formas de cooperação econômica e ação

política comuns. Enquanto os irmãos e a família Albuquerque se destacam como articuladores

políticos das facções e da iniciativa de formação da nova associação, a família Polidório (de um

antigo naati), figura como uma parentela extensa na qual os diferentes indivíduos e famílias buscam

esposas e alianças políticas e matrimoniais. A análise interna da composição deste grupo irá revelar

exatamente isto.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Essas famílias estão fixadas, praticamente todas elas, na área ou nas vilas da antiga

“Mangao”, e algumas delas são da aldeia Morrinho. Os irmãos Laurindo José Muchacho e Antonio

Muchacho, por exemplo, residiam no que hoje é a “Vila América”. Os irmãos Albuquerque

residiam a princípio no Morrinho e alguns deles ainda moram numa área mais retirada (como Esídio

Albuquerque que mora na área conhecida como Carrapatinho e Rafael Albuquerque, que mora nos

limites da Sede com o Morrinho, sendo que Sabino se transferiu para a Sede, vindo a construir sua

casa no centro da aldeia). Uma exceção importante é a de Ricardo Pinto. Ele residia com sua família

na antiga área do “Cruzeiro”. Mas é importante indicar que ele e sua família nuclear se tornaram

uma base de apoio político de Sabino Albuquerque, que casou-se com Genésia Pinto, uma das filhas

de Ricardo sendo assim “genro” deste último. Genésia é também uma das fundadoras da AITECA,

assim como sua irmã, Aliana Alfredo Pinto que foi inclusive indicada para a tesouraria da AITECA

nesta primeira gestão.

Já Hélio Albuquerque, um dos irmãos de Sabino era casado com Idalina Polidório, filha de

Alberto Polidório e Júlia Pereira. Tanto Alberto como Idalina Polidório (e suas irmãs, Feliciana,

Sebastiana, Donalita e Soeli Polidório) estão entre os fundadores da AITECA. A parentela de

Alberto Polidório, sogro de Hélio Albuquerque, reforçou assim a base de mobilização desta

associação. Antonio Muchacho, um dos fundadores da AITECA, é pai de Mariana Muchacho

casada com Assunção Pedro, outro dos fundadores da AITECA, ou seja, mais uma vez a relação

“sogro-genro” sustenta a ação política e organização indígena. Lourenço Muchacho, que viria a ser

cacique de Cachoeirinha 13 anos depois é também filho de Antonio Muchacho, e por sua vez é

casado com Luzia Albuquerque, uma das filhas de Hélio Albuquerque, irmão de Sabino.

A criação desta Associação deu expressão formal para as bases da mobilização política

Terena (relações de parentesco e vizinhança), de forma que as facções políticas constituídas para a

luta pelo poder local dentro da aldeia, se valeram da formação deste tipo de organização como uma

tática de resistência contra os esquemas de distribuição de poder impostos pela FUNAI e pelo

regime tutelar. A formação da Associação visava garantir a auto-representação indígena perante a

sociedade e o Estado em meio à cisão da aldeia indica isto.

Elcio Albuquerque, que foi secretário da AITECA por mais de 10 anos, disse sobre a

história desta associação: “existia a briga de duas facções de caciques, uma era amparada pela

FUNAI, tinha maquinário, semente, óleo e outra não. (...) Era conflitado, se pegavam na reunião,

se pegavam muito. Tinha um chefe de posto que dormia com duas carabinas e as janelas pregadas.

(... )O clima era tenso, era muito perigoso, o Dionísio tinha o apoio da FUNAI, que não apoiava

quem ficava do lado do Sabino, não tinha recurso para lavoura, nem, trator nem semente, por isso

que fundou a AITECA, por causa desse conflito”. " (Elcio Albuquerque, 2004, 2006).

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Quer dizer, a monopolização dos recursos e poderes garantida a certas facções indígenas

através de uma relação de colaboração/aliança com a FUNAI, e que somava-se a rixas existentes

entre grupos familiares de diferentes vilas, é que levou não somente a cisão entre “Cruzeiro e

Mangao”, mas também a formação de associações como parte de uma política de oposição às

facções indígenas dominantes na política aldeã e também de oposição a FUNAI, como vemos pelo

depoimento de Sabino Albuquerque:

Como foi a construção da AITECA? “A AITECA foi nós que iniciou o Governo queria que fizesse, tem até uma emenda, depois falaram assim nós tem que fazer associação pro Governador, pro Estado, pra poder atender o grupo, vai mudar a FUNAI e ai FUNAI não queria ouvir nós, queria bater pé, fazer o que quer, dominar o cacique, dominar a comunidade. Pra fazer a demarcação, onde foi a primeira associação que existiu aqui foi a AITECA. Ai foi isso. Trabalhando, compramos trator. O que eu queria mesmo é essa regulamentação que tá na mão do ministro que a gente tá ficando velho, o que eu queria mais era deixar um histórico para minha família, o que eu queria realizar esse trabalho até agora, tem muitas pessoas brancos... Isso que eu queria, pra comunidade branca ver que o índio tem condição de trabalhar sozinho. (Sabino Albuquerque, Outubro/2004).

Vemos pelo discurso de Sabino, que a criação da AITECA estava associada a diversos

elementos: 1) a oposição a “dominação da FUNAI sobre o Cacique”;2) a vontade política de

encaminhar a luta pela redefinição dos limites de Cachoeirinha, a luta pela terra; 3) a compra de

maquinário, especialmente de tratores; 4) deixar um “histórico” para a família e ao mesmo tempo

garantir a auto-afirmação da capacidade indígena perante a sociedade regional “branca”. Este

discurso sintetiza grande parte das idéias, símbolos, interesses, práticas e questões implicadas nas

formações das associações indígenas.

A AITECA surgiu assim tendo por base um conjunto de famílias integrantes de certos

grupos vicinais, algumas delas muito antigas e importantes dentro de Cachoeirinha; na realidade, foi

a facção do Mangao que através da aliança estabelecida com o CTI (num contexto em que a disputa

com a facção rival aliada a FUNAI estava extremamente acirrada) construiu a AITECA. A

AITECA é fruto desta aliança política com um – naquele momento - novo ator histórico, que

possibilitava outros canais de recursos materiais e espaços políticos. Ao longo dos anos 1990,

AITECA desenvolveria ainda outros projetos voltados para Agricultura, e hoje ela continua em

atividade.

Analisando o livro ata da AITECA, pudemos ver que ela manteve suas atividades e reuniões

regularmente ao longo de 15 anos. Foram pelo menos 24 assembléias entre 1992 e 2003 e ainda 6

reuniões de diretoria. O número de presentes nas assembléias oscila bastante ao longo dos anos. O

quadro abaixo permite uma visualização das atividades da AITECA registradas em seu livro ata,

constando os temários e o número de presentes (quando foi possível contabilizar esta informação).

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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1992 1993 1994 1996 Assembléia 17/04/1992 – admissão de novos membros. : Sabino Lipú, Elias Antonio e Antonio da Silva demitiram-se da AITECA.

Assembléia 25/04/1993 – assembléia de eleição de diretoria. Foi eleito para presidente Esídio Albuquerque, vice Cecílio Lipú; Assembléia 07/07/1993 – emenda de admissão de novos membros,

Assembléia 01/05/1994 – a pauta do dia. Sendo o ponto principal a renovação do mandato da atual diretoria e discussão sobre alteração do artigo 27 parágrafo 18 dos estatutos. 46 presentes. Assembléia 01/05/1994 – às 11:45h, para deliberar sobre prorrogação de prazo de mandato da Diretoria. Aprovada mudança de mandato para 4 anos.

Assembléia 08/10/1996 – reunião com representantes do Governo Estadual. 22 presentes.

1997 1998 2000 2001 Assembléia 09/05/1997 – discute o trabalho na lavoura e o repasse de recursos 31 presentes Assembléia 28/01/1997 – Debate a dificuldade da AITECA na gestão do prefeito. Assembléia 24/05/1997 – discute a adesão de novos membros. 9 Presentes. Assembléia 30/06/1997 – discute a adesão de novos membros e prioridade no atendimento com o maquinário da AITECA. 30 presentes Assembléia 07/07/1997 – informe do presidente Esídio sobre obtenção de recursos como Cacique e Presidente para a AITECA. 41 presentes Assembléia 04/08/1997 - reunião extraordinária da diretoria/troca de 4 touros por tanque de combustível de 5.000 litros (Cecílio Lipú,Antonio Muchacho e outros) Assembléia 06/08/1997 – assembléia geral aprova troca do tanque de combustível. 20 presentes (Sem Sabino) Assembléia 15/09/1997 – na Gleba da AITECA, 13 presentes. Assembléia 17/09/1997 – filiação de novos sócios.

Assembléia 13/03/1998 – discute a sucessão do presidente da AITECA. Informa dos “projetos”. 32 presentes Assembléia 23/04/1998 – debate sobre a sucessão na AITECA:candidatos: Mario, Esidio, Alberto Albuquerque. 42 presentes Assembléia 26/04/1998 – eleição da AITECA. É eleito o Alberto Albuquerque com 35 votos; Mario tem 20 e Esídio tem 13 (2 votos nulos). Assembléia 27/0/1998 – posse da nova diretoria da AITECA. Fala da necessidade de integrar efetivamente as mulheres na AITECA, por estarem ausentes das assembléias e etc. 40 presentes.

26/07/2000 – reunião extraordinária da Diretoria, devido ao falecimento de Alberto Albuquerque. Criticas da diretoria ao antigo presidente.

Assembléia 21/03/2001 – pauta, eleição do presidente da AITECA. Eleito Mário Albuquerque por unanimidade. 49 presentes. Assembléia 25/03/2001 – posse da nova diretoria. 37 presentes Assembléia 04/06/2001 – reunião com representante do CTI para discutir projeto agrícola (viveiro de mudas de arvores de lei e frutíferas). 24 presentes

2002 2003 06/05/2002 – reunião de diretoria. Coloca que o Mário Albuquerque para se candidatar a Cacique deverá deixar o cargo de presidente da AITECA. 15/11/2002 – reunião de diretoria.

05/01/2003 – reunião de diretoria. Assembléia 07/01/2003 –, assuntos relativos a trator. 36 presentes. 27/01/2003 – reunião de diretoria com o CTI, para analisar os projetos em comum. Rogério Resende reclama das fofocas e discute-se a parceria com o CTI irá continuar ou não. Projeto com ceramistas a ser desenvolvido pela antropóloga Bernadete. 28/01/2003 – reunião de diretoria, conflito da câmera com Elcio Albuquerque, que diz estar sendo tratado como “ladrão” pela atual d iretoria. Assembléia Geral – discute projetos com o CTI. Elcio defende aliança com o Governo Estadual através da parceria com, o CTI. 34 presentes.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Com relação ao quadro de associados, verifica-se tanto a admissão de novos membros

quanto a demissão de fundadores, como acontece na assembléia de 1992, quando Sabino Lipú e

Elias Antonio – o primeiro foi vice-cacique de Sabino Albuquerque, mas mudaria de “facção”.

Sabino Lipú é irmão de Aracy Gonçalves Lipú, mãe de Marlene Lipú, que viria a casar-se com

Argemiro Turíbio (morador e membro da facção do “Cruzeiro”), e aderiu à Associação fundada

naquele mesmo ano pelo grupo do Cruzeiro. Elias Antonio, que foi presidente do Conselho Tribal

do Morrinho, também entraria para tal associação.

Com relação ao temário das assembléias é interessante observar que estes são referidos

exclusivamente a assuntos que envolvem a produção agropecuária; são dois projetos discutidos no

ano de 2001, um relativo a formação de um viveiro de mudas de árvores frutíferas e madeiras de lei

e outras envolvendo as mulheres ceramistas, ambos do CTI. Discussões sobre a aquisição de

tratores, maquinários, óleo e semente também são feitas. Os únicos pontos que não dizem respeito a

tais questões, são relativos à política e negociação com Governos e FUNAI ou então a sucessão do

presidente da associação.

O quadro permite ver que foram os irmãos Albuquerque que se revezaram na presidência da

AITECA entre 1989 e 2003; primeiramente Sabino, depois Esídio, Alberto e Mário Albuquerque. E

neste aspecto (da sucessão do presidente da associação) que é interessante ver que mesmo dentro

das associações os conflitos políticos apareceram, com relação a definição do presidente.

Os irmãos Albuquerque entraram numa dura disputa pelo controle da Associação. Na

assembléia da AITECA de 01/05/1994, vemos este debate.

“Em seguida foi apresentada a pauta do dia. Sendo o ponto principal a renovação do mandato da atual diretoria e discussão sobre alteração do artigo 27 parágrafo 18 dos estatutos, o que só poderá ser feito em Assembléia Geral extraordinária com um mínimo de 2/3 dos sócios presentes. Abriu-se a discussão com a argumentação de Sabino que falou ser contrário a prorrogação do mandato do Esídio por ele estar se candidatando também à capitania da aldeia, Sabino reclamou que sendo ele o representante da AITECA, eleito vereador, ficou isolado pelo Grupo. Surgiram protestos de alguns presentes e do atual presidente, que argumentou que o assunto em pauta não tem nada a ver com a vereança do Sabino e com a disputa da capitania. O Coordenador garantiu a palavra ao Sabino para que se manifestasse. A discussão desse tema ficaria para a diretoria decidir com encaminhá-lo. Sabino argumentou que seus objetivos são os de garantir os direitos dos associados. Ele acha que acumular dois cargos seria prejudicial a AITECA. Houve nova discussão, sem ordem de falação. (...) Sabino ainda falou que não está sendo convidado para as reuniões, nem sua mulher, que é associada e do grupo de ceramistas. Novamente foi interrompido e o coordenador pediu para garantirem a palavra a quem está falando. Rafael rebateu falando que o Sabino já teve dois cargos antes e que agora ele não quer que o Esídio tenha e que isto foi uma escolha da comunidade. Sabino reclamou que não foi chamado para a escolha de capitão dizendo que fizeram uma escolha fechada e que Esídio tinha oferecido o cargo de cabeçante para outros. Foi contestado mas disse ter provas.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Teve manifestação garantindo que a escolha do Esídio para os dois cargos foi do povo, assim como fizeram para o Sabino. Novo tumulto e o Esídio disse que já esperava esta manifestação do Sabino. Apesar de que deixaram ele falar e ele mesmo está demonstrando ser o agitador. Sabino argumentou que no mínimo devia assumir o cargo de vice da Aiteca para não haver acúmulo de cargos e que agora já se mostra que não estão dando conta de preparar as áreas de roças, que ficam atendendo outra aldeia, deixando pra trás os associados. Rafael contestou e mais outros, dizendo que no tempo dele é que não podiam fazer roça direito porque Sabino não administrava as máquinas e que várias vezes usava só para seu benefício. Hélio comentou que a escolha do Conselho da capitania será feita à parte da associação para que não tenha mistura com o conselho da Aiteca. Falou também de que é uma pessoa bem aceita pelos adversários e que o Sabino não é: o pessoal tem desconfiança.”

Sabino entra em choque direto com seu irmão Esídio, que é escolhido tanto para a

presidência da AITECA quanto para ser candidato a “capitania”, ou seja, para disputar as eleições

para cacique (que acabaria vencendo em 1994). A assembléia de 01/05 transcorreria em clima

acirrado, com interrupções das intervenções dos diferentes grupos em disputa, Sabino denuncia que

a diretoria marca as reuniões no dia das sessões da câmara (às segunda-feira), impossibilitando-o de

participar. Rafael Albuquerque e Esídio rebatem as acusações de Sabino. Uma assembléia

extraordinária é convocada para o mesmo dia, 15 minutos após o termino da primeira, que contou

com 46 associados presentes. Ao fim, é mudado o mandato do presidente da associação, que deixa

de ser de 1 ano para ser de 4 anos. Sabino e Esídio passam a estar em lados políticos opostos. A

AITECA por sua vez, e os diversos grupos familiares que compõem os seus quadros conseguem

garantir mais uma vez a eleição do seu candidato a cacique.

Assim, ao longo da década de 1990, as associações passam a desempenhar um papel cada

vez mais importante: a princípio, elas surgem como uma forma de escapar ao controle exercido pela

FUNAI sobre o Cacique (através das trocas de “óleo e semente” por “obediência e lealdade

política” ); num segundo momento, a AITECA torna-se um espaço de articulação para a conquista

da poder político local e de interação com a FUNAI, já que é no âmbito da associação, que se

decide quem será o candidato a Cacique, por exemplo. Entretanto, as estratégias individuais não

são diluídas nesta associação. Os conflitos entre os irmãos Albuquerque revelam isso; as facções

políticas se multiplicam e os conflitos eclodem dentro da própria associação. A vontade de um líder

de ocupar um cargo ou posição de poder (posto de presidente da associação, cargo de vereador ou

cacique) criaram cisões no interior mesmo das associações. Além disso, o estabelecimento de novas

relações de parentesco e afinidade, possibilitaram também a mudança de facções e associações de

alguns indivíduos, como Sabino Lipú, que havia sido vice-cacique de Sabino Albuquerque entre

1988-1991, ou seja, como membro da facção do “Mangao”. Entre os anos de 2000 e 2006, a

AITECA continuaria como as outras associações, a desempenhar um papel importante, tanto nas

questões relativas a produção quanto a política local. A formação desta Associação abriu caminho

para o desenvolvimento de outras associações similares, como veremos abaixo.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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“O caminho a ser seguido”: a criação da ACIC

A Associação da Comunidade Indígena Cachoeirinha foi criada em 23/09/1992. A

assembléia foi realizada na Sede do Posto Indígena da FUNAI. Assim é descrita a assembléia na ata

de fundação da organização:

“As oitos horas e trinta minutos do dia 23 de setembro de um mil novecentos e noventa e dois, na Sede do Posto Indígena Cachoeirinha realizou-se a reunião das lideranças da comunidade de Cachoeirinha pra assembléia geral para discutirem quanto a criação de uma associação por motivo de dificuldade que as lideranças vinham enfrentando nas suas reivindicações, assim sendo analisado e discutido e resolveram criar a associação para facilitar qualquer trabalho a serem realizado na Comunidade, assim criou-se a associação denominado “A.C.I.C.”, Associação da Comunidade Indígena de Cachoeirinha e para definição da sua composição esta mesma reunião foi presidida pelo Cacique Geral sr. Argemiro Turíbio, iniciando que a mesma fora convocada para escolher a composição da diretoria da associação, salientem-se que os que forem se associar não poderão sair para trabalhar fora da aldeia, para não complicar a situação. E na mesma pauta frisou-se ainda que futuramente os associados terão que colaborar para a compra de um trator, através da união de todos e todos os líderes da Comunidade Argola, Babaçu, Morrinho e Sede decidiram pela criação dessa associação. (...) (Livro Ata da ACIC, p. 2)

Os documentos da entidade indicam que assembléia foi realizada com a presença dos

caciques da Argola, Babaçu, Morrinho e Sede. O nome do indicado para presidir a assembléia de

fundação foi o então Cacique Geral, Argemiro Turíbio. Podemos ver também que as motivações

para a formação da “associação” se relacionam à percepção que os índios estavam tendo sobre a

dificuldade de obter recursos e implementos agrícolas. Na definição dos objetivos/atividades da

associação consta apenas a seguinte indicação: “...e uma das principais atividades da associação

será de garantir o aumento da produção e de boa qualidade de vida e aquisição de implementos

agrícolas”. (Livro Ata da ACIC, p. 2).

A ACIC se forma com o objetivo de reunir os indígenas para organização do trabalho e

produção, para obtenção de recursos externos e para a aquisição de tecnologia que permitisse o

aumento da capacidade das forças produtivas locais. A presença dos 4 caciques de Cachoeirinha,

indica que esta associação era pensada como “representativa” da comunidade indígena como um

todo.

Mas analisando a composição dos associados, e os nomes indicados pela assembléia para os

órgãos diretivos da entidade, veremos que esta associação se produz no seio de uma rede particular

de grupos de parentesco, que formaram num certo contexto, conjuntos de ação, com objetivos

determinados. A ação continuada destes conjuntos estruturados em tornos destes grupos de

parentesco e certas lideranças é que podemos chamar de uma facção política local.

Na estrutura organizacional da ACIC foi indicado um “Conselho Consultivo”, composto

pelos seguintes membros: Alírio de Oliveira Metelo (presidente), Isidoro Lemes, Luis Martins da

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Silva, João Miguel, João Niceto e Temiz Arruda. Como membros do Conselho Fiscal, Félix

Cândido Antonio, Elias Antonio, Dionísio Antonio, Cecílio Antonio e Venâncio Barbosa. Na

diretoria executiva Mamédio Pedro, Raul Félix Antônio, Daniel Pinto e Sabino Lipú. Na assembléia

de fundação 53 homens assinaram o livro ata, sendo assim os associados fundadores, como

podemos ver abaixo.

Danilo Paiva Zacarias da Silva Sebastião Miguel Lírio Lemes Porfírio Martins Cecílio Antonio Isidoro Lemes Basílio Martins Bartolino da Silva Isidoro Lemes Venâncio Barbosa Sabino Lipú

Maurílio Pedro Ariano Rodrigues Metello

Albertino Júlio Antonio Lemes

Temiz de Arruda Egídio Barbosa Dorival Antonio Ramão da Silva Júlio Martins Felix Antonio Simão da Silva Odenir Barbosa Acácio Muchacho Florentino Martins Adão de Oliveira Marcos de Oliveira Alírio de Oliveira João Martins Sebastião Vieira Raul Antonio Daniel Pinto

Afonso Pinto Reinaldo de Oliveira João Miguel Gilberto Augusto

Pedro Manoel Cirilo Raimundo Alinor de Oliveira Mário Lemes Adailton Júlio Luis Martins da Silva

Robson Júlio Antonio Júlio Dionísio Antonio Varmedir Antonio

Elias Antonio Admir Turíbio Adão Joaquim Maurício Antonio Gilberto Turíbio

Mas se observamos atentamente a sua composição, veremos que elas fornecem informações

importantes. No seu conselho consultivo estão Alírio de Oliveira Metelo e João Niceto, os membros

da facção do cruzeiro. No Conselho Fiscal estavam Félix Cândio Antonio, um dos fundadores da

Igreja Uniedas e presidente do Conselho Tribal de Dionísio Antonio, Elias Antonio, velho dirigente

da Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e Dionísio Antonio, ex-cacique de

Cachoeirinha, também nos anos 1980, e principal líder da facção do cruzeiro.

Podemos perceber que entre os associados fundadores da ACIC, se destacam algumas

famílias: a família Antonio (com seis membros), a família Oliveira Metelo (com seis membros), a

família Lemes com 5 membros, a família Pinto com 4 membros, a família Júlio com 3 membros, e a

família Turíbio com 3 membros.

Na verdade, estes indivíduos estão inter-relacionados por parentesco, além de

compartilharem atividades mágico-religiosas e políticas. Argemiro Turíbio, que então era o Cacique

Geral, e presidiu a assembléia de fundação da ACIC, é filho de uma das irmãs de Alírio, e

conseqüentemente, neto de Lino de Oliveira Metelo. Dionísio Antonio, é outro ex-cacique, e foi ele

quem disputou no final dos anos 1980, com Sabino Albuquerque, a posição de Cacique Geral,

durante o período em que a Sede ficou “cindida” e com dois “Caciques”.

Ao longo dos anos 1990, a ACIC manteve também suas atividades. O quadro abaixo mostra

as atividades registradas em ata, num total de 6 assembléias num período de 4 anos:

1993 1994 Assembléia de 31/0/1993 – reunião realizada na escola Nicolau Horta Barbosa. Delibera sobre roça coletiva dos associados. 30 membros presentes

Assembléia 23/04/1994 – eleição de nova diretoria, 73 membros presentes na assembléia Assembléia 23/06/1994, na casa de Dionísio, que

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Assembléia de 02/02/1993, em assembléia realizada no PI Cachoeirinha, sob presidência de Adailton Júlio. Desligaram-se da associação Cirilo Raimundo, Antonio Joaquim e Isidoro Lemes, por não estarem cumprindo o item do estatuto de não fazer “changa” Assembléia 21/03/1993 – realizada na quadra esportiva da aldeia Cachoeirinha, discutiram solicitação de Anésio Pinto para ajudar o mutirão: 38 membros presentes na assembléia

informa do registro da associação. Estabelecido critério para requisição de “sementes” na associação (quem pega paga com a colheita). A Sede da associação seria construída nas imediações da casa de Gilberto Turíbio. 21 presentes

1995 1997 Assembléia 12/02/1995- Dionísio Antonio pede demissão da função de presidente da associação, e assume o cargo Pedro Alcântara. 25 membros presentes.

Nova solicitação de registro da entidade, desta vez encaminhada por Argemiro Turíbio.

É interessante que o temário das assembléias da ACIC tratam quase que exclusivamente da

produção agropecuária e mencionam questões políticas internas. Estas atividades reuniam

principalmente os membros da antiga facção do cruzeiro.

Foi a antiga facção do “cruzeiro” que se constituiu em associação, sendo primeiramente

presidida por Alírio de Oliveira Metelo e João Niceto Júlio; depois assumiria a presidência da

entidade Dionísio Antonio, que se demitiu da função em 1995. É importante observar que Dionísio

rompeu politicamente com Argemiro Turíbio e Alírio de Oliveira (os moradores da atual “vila

cruzeiro”), por conta das alianças com diferentes lideranças políticas do município. Esta cisão no

interior da associação representou um distanciamento relativo das antigas lideranças da facção do

cruzeiro, que passaram a ter estratégias próprias e diferenciadas de relacionamento político e de

trabalho.

Por outro lado também esta associação iria se tornar a base de articulação dos grupos que

almejavam controlar o posto do Cacique. Na realidade é emblemático que o presidente da

assembléia de fundação desta associação seja o então cacique geral Argemiro Turíbio, e que esta

assembléia tenha sido realizada no Posto Indígena da FUNAI; além disso, o então vice-cacique

Cirilo Raimundo (que tornaria-se Cacique), também fazia parte desta associação no momento de

sua fundação. Pedro Alcântara seria candidato a Cacique nas eleições de 2002 e seria derrotado.

Também este espaço da associação – construída sobre as bases da organização política indígena, as

“vilas” compostos por grupos familiares de certas linhagens – seria utilizado para construir a

disputa política pelo cargo de Cacique.

Num das atas vemos como estas associações eram acionadas para cumprir certas demandas

dentro da comunidade, e como elas ao mesmo tempo apontavam para uma fragmentação da

autoridade política local:

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“Na pauta mencionou-se que os professores através da pessoa do professor Anésio Pinto, solicitou uma colaboração da associação uma vez que os pais dos alunos não participam do mutirão. Os associados por sua vez deram a sua posição neste termo achando injusto que outras associações existentes dentro desta comunidade ou até membro da comunidade não venha a participar do mutirão uma vez que é benefício da comunidade. Eles alegaram ainda que todos os mutirões a exemplo da limpeza somente os membros da associação vem prestando sua colaboração. Diante de tantas discussões decidiu -se que os professores tem que tentar novamente com os pais dos alunos e se não derem conta de fazer em um dia de trabalho os membros do ACIC irão auxiliar no dia seguinte”. (Livro Ata ACIC, Assembléia 21/03/2003)

O caso acima é interessante porque mostra a fissão política na aldeia; ao chamado para os

trabalhos em regime de mutirão, só respondia a “associação” da qual o Cacique e o vice-Cacique

eram os membros. É comum que a desobediência se expresse desta forma: como uma das principais

bases da autoridade do Cacique é o comando do trabalho coletivo na aldeia, a desobediência ao

chamado expressa uma forma de oposição política velada. No caso acima, o professor Anésio

tentou articular um mutirão para a escola e convocou a associação, mas esta se recusou a fazer um

trabalho para toda a comunidade sem que outras “associações” tomassem parte nele.

Entre 1997 e 2004, a ACIC continuou sua atuação, mesmo que esta – como da grande parte

das associações existentes – não cumpra seus objetivos formais, mas continuam sendo uma

referência interna e externa; os moradores identificam os lideres e os membros da associação, assim

como as lideranças de partidos políticos e os representantes da FUNAI, que falam diretamente com

estas lideranças. O papel na política local destas associações é decisivo (compreendendo tanto os

conflitos dentro da aldeia quanto a inserção nos campos e arenas regionais).

A ACIC se apresenta como o produto da ação de um conjunto de grupos de parentesco,

articulados por relações de aliança, e que compunham a antiga facção do cruzeiro. As famílias

Oliveira Metelo, Antônio, Lemes, Pinto, Júlio e Turíbio se articulam politicamente e por meio de

relações parentesco há algumas gerações. A formação da ACIC visa tentar buscar re-estabelecer o

poder de um conjunto de grupos de parentesco, que estavam perdendo espaço político desde os anos

1980, e também dar viabilidade para o projeto de gestão indígena das atividades produtivas. O

surgimento de novas lideranças políticas locais, que conseguiram acumular dinheiro, bens, status e

poder político, ameaçava seriamente o poder destes grupos. A facão rival era liderada por um grupo

de siblings, da família Albuquerque, que estava conseguindo ser bem sucedida num novo

empreendimento, num novo campo de alianças, composto por instituições estatais, ONG´s e

lideranças políticas locais. No novo cenário criado pela globalização, pela “redemocratização”, os

esquemas de distribuição do poder local estavam sendo afetados seriamente. A formação da

AITECA, e o seu “sucesso” inicial indicou o caminho a ser seguido pelos Terena. Por isso a

formação de inúmeras associações, como a ACIC, cada uma delas composta por membros das

antigas facções do Mangao e Cruzeiro.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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A formação das associações indígenas se dá como um resultado direto dos dramas de

sucessão verificados ao longo dos anos 1980, e da luta entre facções compostas por diferentes

grupos vicinais. A criação da AITECA pelos principais líderes da facção do Mangao e da ACIC

pelas lideranças da facção do Cruzeiro revela isso. As associações se apresentam como ma is uma

tática para viabilizar o ideal de “gestão indígena”, que é concebido a partir das unidades

segmentadas em que se encontram organizados os Terena do que o grupo como um todo

“homogêneo’ em oposição “a sociedade regional”. A formação da AITECA e da ACIC (e das

diversas organizações/associações indígenas), apresentam-se assim como resultado da combinação

de três forças: 1º) da crise de um esquema de poder produzido pela situação histórica de reserva, em

que a “governabilidade” das aldeias indígenas foi baseada na centralização do poder nas mãos do

Chefe do Posto do SPI/FUNAI, que para melhor exercer sua ação política construiu uma relação de

aliança com grupos de parentescos locais, que partilhavam o poder, através do controle da posição

de Cacique; 2º) as estratégias indígenas, especialmente dos grupos de parentesco-vizinhança que se

apresentam como importantes unidades de ação política no plano local; 3º) ao novo cenário

econômico e institucional imposto pelo liberalismo, que reduziu os orçamentos de assistência às

áreas indígenas, de um lado, e de outro, criou uma retórica de incentivo ao “associativismo”, pela

criação de um mercado de financiamentos no chamado “terceiro setor”.

Desta maneira, a formação das primeiras associações indígenas pode ser entendida como

uma expressão da reação local a centralização política imposta pelas estruturas estatais e

estatizantes. Um efeito direto e contraditório, já que em última instância, representa uma

descentralização faccional que dinamiza e reproduz as mesmas estruturas e esquemas de

distribuição de poder contra as quais se coloca, a princípio.

As disputas de sucessão travadas ao longo dos anos 1990, na realidade expressavam a luta

entre duas antigas facções (Cruzeiro e Mangao), só que agora organizadas também sob formas de

associações; as cisões dentro das facções permitiram também uma recombinação das alianças de

maneira que muitos membros das facções mudaram de lado ou começaram a investir em sua própria

liderança pessoal, rompendo com os antigos líderes como aconteceu no caso da AITECA com os

irmãos Albuquerque, e também dentro da ACIC, com Dionísio Antonio. Sabino Albuquerque iria

estabelecer relações de aliança política de curta duração com antigos membros da facção do

Mangao, como por exemplo, com Argemiro Turíbio, que teria sido indicado para Chefe de Posto

por Sabino em 2000. Também a candidatura de Lourenço Muchacho com o apoio de alguns

membros da família Belisário que são moradores da vila Santa Cruz, e relacionados por parentesco

a Dionísio Antonio. Assim, o processo de segmentação dentro da aldeia Cachoeirinha é marcado

por uma grande instabilidade, de maneira que estratégias individuais e familiares podem levar a

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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rupturas dentro de grupos de parentesco e co-residência, de forma que antigos aliados se tornam

adversários e vice-versa, como é característico da dinâmica da organização faccional em geral.

O importante a observar é que estas associações criaram um novo espaço de articulação

política; o Cacique não seria o único representante das “comunidades indígenas”; também agora as

facções indígenas constituídas sobre as bases das unidades políticas segmentadas em “vilas” com

seus respectivos cabeçantes, poderiam se representar e articular diretamente com as instituições

estatais, lideranças políticas locais e regionais e ONG´s. E é isto que aconteceu. O processo de

descentralização faccional se acentuou, no sentido que emergiram cada vez mais as lideranças

destas unidades segmentadas.

Mas se de um lado as bases simbólicas e políticas da relação e regime tutelar eram

relativamente abaladas pelas estratégias indígenas – e mais a frente veremos porque relativamente -,

a configuração do campo e das arenas das relações interétnicas coloca o clientelismo como relação

de dominação preponderante, de maneira que as condições econômico-sociais da vida dos Terena

se torna um fator determinante para a construção de limites para o ideal de “controlar a própria

vida”, gerado pela política de resistência indígena contra o regime tutelar. Além disso, o próprio

processo de segmentação e as formas de tradicionais de constituição das facções indígenas –

baseadas nos “cabeçantes de bairros” – faz com que as alianças entre estas e outros grupos políticos

reative mecanismos e técnicas de poder característicos do regime tutelar. Para entender como

funcionam estes processos, iremos descrever algumas situações sociais desenroladas dentro de

Cachoeirinha.

6.2 - As Facções e a “Ocupação dos Espaços”: política indígena e clientelismo.

O ano de 2004 foi um ano de eleições para as câmaras de vereadores e prefeituras

municipais. No mês de setembro, a campanha já tinha atingido um certo clímax no Município de

Miranda, e a disputa estava muito acirrada, entre Ivan Paz Bossay (PDT) e Beth Almeida (PT). Ivan

é um médico e fazendeiro que já havia sido prefeito da cidade algumas vezes. Ele estava novamente

concorrendo às eleições a Prefeitura pelo PDT, e sua principal adversária naquele ano era Beth

Almeida, professora, esposa de Roberto Almeida que também já havia sido Prefeito da cidade de

Miranda. O terceiro candidato era João Pedro Pedrossian Neto, do PSDB, ex-prefeito, sobrinho do

ex-governador e Senador do Mato Grosso do Sul, Pedro Pedrossian, e fazendeiro (era o candidato

apoiado pelo Sindicato Rural). Beth Almeida se candidatava a reeleição pelo PT, e batalhas

judiciais estavam sendo travadas, com tentativas de impugnação das candidaturas de ambos.

Beth Almeida havia sido eleita prefeita em 2000 pelo PPS (Partido Popular Socialista), e

mudou de partido em 2003, sendo o anuncio de sua filiação ao PT realizado numa cerimônia

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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ocorrida durante um evento esportivo na aldeia de Cachoeirinha (1º Campeonato Inter-tribal de

Miranda), mediante o “convite feito pelo índio “Carlos Jacobina”, liderança indígena do Posto Pilad

Rebuá. As situações sociais que iremos descrever estão todas elas relacionadas às eleições de 2004,

para apresentar em termos etnográficos como se dá a ralização dessa ocupção de espaços e tentativa

de construção de co-gestão indígena na política local.

Nas eleições de 2004¸ várias redes políticas foram estabelecidas dentro das aldeias. Os

candidatos que estavam em maiores condições de disputa, pelas pesquisas divulgadas na cidade

eram Ivan Paz Bossay e Beth Almeida. Obras de “cascalhamento” da avenida principal e das

estradas de acesso a Cachoeirinha estavam sendo realizadas, para receber a visita do Governador do

estado José Orcírio Miranda, o Zeca do PT. Comícios eram promovidos dentro da aldeia. Enfim,

diversas atividades se desenrolavam.

A primeira atividade que vimos foi a chegada de um ônibus trazendo indígenas das aldeias

Passarinho e Moreira com cerca de 60 pessoas, para fazer campanha eleitoral em Cachoeirinha, do

candidato Terena Carlos Jacobina. O cacique e outras pessoas que estavam conversando no PIN

torceram o nariz, mas nada fizeram. Depois de cerca de 2 horas de campanha em Cachoeirinha o

grupo de 60 cabos eleitorais de Carlos Jacobina se reuniu no centro comunitário e ele falou da

importância de estarem ali, que convidaram a comunidade para uma reunião, e que mesmo que

aparecessem poucas pessoas estava bom. Isto se deu por volta das 16h.

Às 17:45h teve inicio a reunião. Com poucas pessoas além dos cabos eleitorais, um homem

Terena falando em idioma começou a reunião, fez menção a Lula, a Zeca e a prefeita Beth Almeida

(parecia estar apresentando os mesmos argumentos que Wilson Jacobina, irmão de Carlos, tinha

apresentado para mim pouco antes (de que mesmo estando a Beth desgastada, ela era representante

do PT, de Lula e Zeca no município) e que por isso eles estavam com ela.

Carlos Jacobina tomou a palavra e disse: "a gente está aqui no fortalecer as candidaturas

indígenas. E o Celinho vai tá falando como tá sendo a política aqui, se tá tendo reunião grande, se

tá sendo de casa em casa .... O índio precisa ter seu representante no legislativo. Nós vamos estar

implementando aqui em Cachoeirinha o programa habitacional. Aqui na Cachoeirinha vamos

começar com 20. Lagoinha tá recebendo 20. Isso é uma realidade. Nós já temos casa em Buriti,

Nioaque”. Celinho disse: “Vou tentar explicar como é que a política aqui em Cachoeirinha.

Cachoeirinha hoje no cenário municipal, eu espero que os nossos patrícios estejam valorizando o

voto em prol dos próprios patrícios. Os trabalhos estão sendo por vila, por família, por Igreja

(explicando que não haviam reuniões maiores para esta questão). Nós fizemos um trabalho de

conscientizar os patrícios de votar nos próprios patrícios”. Carlos Jacobina: "Nosso lema é resistir

e transformar (resistir aos 500 anos ...) e transformar a realidade de nossas aldeias (cita como sua

realização o campeonato intertribal). O pessoal precisa tá preparando para receber o governador

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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que é um chefe de estado e tem compromisso com as aldeias (falou para os índios levarem suas

reivindicações, das associações, da terra, no papel para entregarem ao governador)”. Às 18:40 h

chegou o ônibus para levar os indígenas de volta. Wilson Jacobina toma a palavra para fazer o

encerramento e autoriza os cabos eleitorais a irem para o ônibus (o que alguns já estavam fazendo

antes dele falar).

Naqueles dias, a aldeia viva uma grande movimentação e agitação por conta da expectativa

de visita do Governador do Estado, o Zeca do PT. Esta visita aconteceu no dia 15/09/2004. O clima

estava instável, alternando-se o frio e o calor intenso, mas sem chuva; a seca já durava quarenta

dias, segundo as informações dos moradores. Neste dia seria realizada visita do Governador em

Cachoeirinha e também, na cidade, o comício da prefeita.

Foto 14 - Governador Zeca ladeado pelo Cacique Lourenço e "Guerreiros" do Bate -Pau.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Foto 15 - Público do Comício de Zeca.

O comício da candidata Beth Almeida do PT, com a presença do governador José Orcírio, o

Zeca do PT, seria iniciado às 16h. No fim da tarde o clima estava limpo, apesar do pouco sol. As

16h o povo já se aglomerava na vila principal, próximo a um caminhão que seria utilizado como

palanque, enquanto esperavam a chegada da prefeita e do governador. Mas a esta altura o número

ainda era reduzido. Um grupo de dançarinos do bate-pau esperava, caracterizado, organizado em

duas filas paralelas - formação tradicional da dança - em frente ao centro comunitário. O cacique

Lourenço aguardava próximo a eles. O governador e a prefeita chegaram com suas comitivas e

seguranças. Juntaram-se ao cacique Lourenço e ao grupo do bate-pau que os esperavam. O

governador tomou posição ao centro das duas filas e a frente, os indígenas carregavam uma faixa

em homenagem a presença do Governador, e caminharam até o caminhão que seria usado como

palanque (estacionado em frente ao campo de futebol Capitão Timóteo, na vila principal). Neste

momento um público numeroso já estava no local e cabos eleitorais, indígenas e não indígenas

seguravam as bandeiras vermelhas do PT e portavam camisas e faixas. No trajeto até o caminhão

(de cerca de 30 metros) foi tocada a música do bate-pau. Nas cercas das casas da vila principal,

próximas ao local do comício, foram colocadas 7 faixas. Em duas delas lia-se “A comunidade [de

Babaçu, de Argola] tem o orgulho de receber nossos amigos, Zeca, Beth e Neder" Em outra estava

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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escrito: "Amigo Zeca do PT. Amiga Beth Almeida. Obrigada por ajudar a resgatar nossa

dignidade". Nas demais faixas, mensagens de agradecimento à presença do governador em nome

das comunidades indígenas. O mestre de cerimônias anuncia a presença da prefeita, do deputado

Arroyo, do presidente da câmara e vice na chapa de Beth, Neder, dos candidatos indígenas e não

indígenas a vereador. À esquerda do palanque havia um galhardete do candidato indígena Carlos

Jacobina. No palanque Zeca ao centro, à sua direita a prefeita e o deputado Arroyo, rodeados por

lideranças e candidatos indígenas. A boléia do caminhão estava cheia. À frente do caminhão

ficaram postados os índios caracterizados, juntamente com algumas jovens que seguravam faixas e

bandeiras. Neste momento estavam na avenida principal, por nossas estimativas, cerca de 1000

pessoas. Depois das apresentações iniciais começaram as intervenções.

Foto 16- Zeca discursa aos indígenas.

Primeiramente falou o cacique Lourenço Muchacho que agradeceu a presença do

governador e elogiou-o, falando o seguinte.

"... A vinda do governador do estado zeca do PT, com muito orgulho, pela primeira vez que governador do estado visitou a nossa comunidade aqui na Cachoeirinha e o senhor ta de parabéns. Quero cumprimentar a prefeita de Miranda, Elizabeth, bem vinda a nossa comunidade, muito obrigado. o deputado Arroyo, deputado estadual, pela primeira vez também, ele vai nos ouvir ao nosso desabafo dentro de nossa comunidade.Nós agradecemos sua vinda aqui também. Muito obrigado. Queremos agradecer a presença do Neder, candidato a vice-prefeito Os demais companheiros, candidatos indígenas aqui presentes, o Otto, o (...) Jacobina. Os demais companheiro presentes nesta ocasião, o meu agradecimento é isso ai, queremos mais ouvir o futuro senador, futuro senador, esse aqui é o senador do povo, presidente da república, se o Lula deixar, se o Lula não deixar depois de Lula ele pode até se candidatar como presidente da república. A esperança do indígena hoje, senador, governador, senador porque o senhor já tá lá profetizando, o meu agradecimento é esse ai. Meu agradecimento a todos

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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indígenas presentes. De Lagoinha, Campão/Babaçu, Argola Morrinho, e da comunidade da Sede. Muito obrigado o nosso agradecimento é esse ai."

Depois falou o cacique da aldeia Argola, João Candelário, falando da necessidade de

construção de casas do programa habitacional do governo no seu setor.

"Quero cumprimentar a toda população da aldeia Cachoeirinha, e também quero cumprimentar o nosso excelentíssimo governador doutor José Orcírio Miranda, o nosso grande governador do estado, e também cumprimentando a nossa excelentíssima prefeita Elizabeth de Paula Almeida, quero cumprimentar o deputado Arroyo, que é deputado estadual, cumprimentando também nosso futuro vice-prefeito ilustre Neder Vedovato. E aproveitando também cumprimentar todos os vereadores que fazem parte da nossa caravana, que fazem parte da coligação de nosso partido. Primeiramente eu quero dizer ao nosso governador Zeca do PT, seja bem vindo em nossa aldeia Cachoeirinha. Eu quero dizer de todo o coração, zeca do PT, o nosso grande governador, que eu tenho grande orgulho da sua pessoa. Porque o senhor é um governador que tem compromisso com os pobres e tem compromisso também com a comunidade indígena. E nunca houve um governo passado que teve compromisso com nosso povo. É por isso com toda convicção eu subo aqui no palanque pra dizer ao nosso povo o que nosso governador tem feito em nossa comunidade. E acredito também que a comunidade indígena sabe disso, está consciente de tudo isso, e elogio o nosso governador também pelos grandes programas sociais, trabalhos sociais, que tem realizado no estado do Mato Grosso do Sul, em todos os municípios, como no Município de Miranda, nós reconhecemos o seu grande trabalho governador. Gostaria também de pedir ao governador do estado que como liderança da aldeia Argola, setor da Cachoeirinha, que também nós precisamos do seu grande apoio sobre construção de habitação para aldeia Argola e nos pedimos que o governador não esqueça como nós temos em Morrinho isso e nós temos certeza que estas aldeias circunvizinhas da Cachoeirinha será beneficiado. Também está conosco a excelentíssima prefeita Beth Almeida. Eu quero agradecer a presença da nossa prefeita que tem também dado grande apoio ao nosso povo, a comunidade indígena. E agradecendo também o deputado Arroyo, que é um dos nossos parceiros e parceiro da prefeita também, que juntando seus esforços traz recursos, traz projetos para o município de Miranda. E é isso que eu quero dizer para comunidade.

O terceiro a falar foi o cacique Isidoro Pinto, de Morrinho.

Isidoro: "Primeiramente eu agradeço a esse horário que nesse dia de hoje, porque nós precisa dele, e precisa das cinco comunidade daqui da Cachoeirinha governador, porque nós precisamos dele para toda comunidade, deputado Arroyo, tudo companheiro. Porque o cacique tem muito que ele precisa para comunidade, então eu queria isso para Zeca, para atender nossa comunidade, Morrinho é pequena ainda, mas precisa de construção, de tudo, nós tamos precisando de escola, lá no Morrinho nós não temos, escola é de tauba ainda, e nós tamos aumentando aluno, isso que eu quero passar para vocês. E também eu queria a viatura, nós tamos precisando. Nós não temos nada lá na nossa aldeia. A nossa esperança para ajudar nossa comunidade , temos quem para dar a mão. Mas esse ano é uma esperança. E esse é nosso companheiro, nossa companheira, dona Beth, então é isso aí que eu quero agradecer, nosso amigo candidato. É isso que eu quero passar para nossos companheiros. E só isso que eu quero falar. Muito Obrigado.

O quarto a fazer o uso da palavra foi Wilson Jacobina, cacique de Passarinho:

"Boa tarde para todos os nossos patrícios daqui da aldeia cachoeirinha. Boa tarde governador, seja bem vindo aqui dentro da nossa reserva indígena, prefeita Beth Almeida, futura prefeita do município de Miranda , seja bem vinda aqui no meio do nosso povo. Quero agradecer também a presença das pessoas que não são indígenas que tá aqui na nossa comunidade. Seja bem vindo. É com muito carinho que nós recebemos vocês aqui. Juntamente com essa caravana da vitória, caravana a da Beth Almeida. E é por isso que nós tamos aqui hoje para tá conscientizando o

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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nosso povo do projeto que Beth também representa. E eu enquanto cacique da aldeia Passarinho quero deixar bem claro pros nossos patrícios aqui. No dia 3 de outubro nós da aldeia Passarinho vamos eleger Beth Almeida. E tenho certeza que nas outras aldeias vão fazer o mesmo. Porque uma pessoa que tem o aval do Governador, do deputado estadual, o Arroyo aqui, nenhum candidato pode perder. E a Beth não vai perder, e num vai perder nem o sono, quem vai perder é o nosso adversário. Porque ele está desesperado com essa política de inclusão social que o PT tem feito no nosso estado. No dia 11 recebemos 30 casas do programa novo habitar na aldeia Passarinho e na Aldeia Moreira e lá o Governo do estado, PT fez a revolução em termos de habitação nas áreas indígenas, com a parceria da prefeita e do governo federal e do governo estadual. E com esse time, no dia 3 de outubro tudo vai estar a nosso favor. Eu acho que é o momento das comunidades indígenas prestar atenção na inclusão social. Prestar atenção de 10 anos atrás de como era o abandono da nossa comunidade, como era o abandono de nossas lideranças. E hoje nós temos uma prefeita voltada para as áreas indígenas, um governador voltado para área indígena. na questão da inclusão social. Então é isto que meu povo tem que acordar, tem que prestar atenção que inclusão social e só o PT e essa caravana que vai fazer.Outro nenhum vai fazer. Então presta atenção. ...Aqui também no nosso município veio com muita firmeza esse projeto. Porque? Diminuiu o índice de mortalidade infantil aqui nas nossas áreas indígenas. Onde que nós vemos que nossos jovens, crianças que antes passavam necessidade, agora tão passando com fartura aqui dentro. E graças a esse governo voltado para minoria. Eu quero deixar aqui meu abraço governador, meu abraço dona Gilda. Beth tem certeza que nós vamos aqui chegar lá juntamente com Carlos Jacobina na câmara municipal e os demais companheiros que aqui se encontram nessa caravana da vitória. Meu muito obrigado que deus abençoe todos.

Em quinto na seqüência falou Neder Vedovato, que o mestre de cerimônia frisou ser "primo

do governador". Em sexto falou Arroyo. Depois dele falaram a prefeita Beth Almeida e o

governador Zeca do PT. O governador citou a inauguração do hospital em Miranda também do

“Memorial da Cultura Terena”, a serem realizadas no dia seguinte (16/09), como exemplo das

realizações da administração da Beth Almeida. Depois de encerrada sua intervenção, o Governador

e sua comitiva retiraram-se pela parte traseira do caminhão e neste momento as lideranças foram

atrás dela entregar "documentos". Ainda foram distribuídos picolés, para o que se formaram

imensas filas ao redor do caminhão.

A visita do Governador movimentou toda a cidade e as aldeias; os adversários políticos da

prefeita também realizariam atividades dentro de Cachoeirinha, e uma delas aconteceu no dia

seguinte, dezesseis de setembro de 2004. Ao fim da tarde, para ser mais preciso, Às 17:30h, notava-

se uma movimentação em uma das casas da “vila cruzeiro”. Uma reunião política estava

começando no quintal da casa de Alírio de Oliveira Metelo (que reside próximo ao Posto Indígena e

a Igreja Católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro). Era uma reunião de campanha do candidato

a prefeito pelo PDT “Ivan Paz Bossay” e do candidato indígena pelo PL (que estava coligado com o

PDT) Edílson Pedro (apelido Bebe). Estavam presentes cerca de 40 pessoas, que fizeram um

círculo para a realização da discussão. Primeiramente falou Alírio de Oliveira Metelo. Ele declarou

seu apoio ao candidato Ivan e disse palavras próximas a estas: "que o doutor prometeu trator e o

trator para nós é tudo". Depois dele ter terminado sua fala, quem tomou a palavra foi o candidato

indígena Edílson Pedro: "Precisamos eleger candidato índio. Vote candidato índio" Falou da

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Associação do Alírio, que está precisando disso, precisando daquilo e ajudá- la é o “papel do

vereador”. Disse ainda, ao comentar as dificuldades da associação: "Agora tendo vereador é

diferente, vocês não vão precisar gastar nada, por isso a gente tá pedindo o apoio’. Na seqüência

falou um homem, ao que parece de nome Donato. Depois deste homem, falou Adílson Júlio. Sua

intervenção enfatizou também o apoio para as atividades econômico-produtivas. Ele perguntou: "eu

não sei onde está nosso trator", disse reclamando da falta de apoio da prefeita e candidata Beth

Almeida, do PT e da falta de recursos. Falando sobre o candidato disse " porque nós temos

deputados para apoiar. Porque ele vai pedir apoio no governador do estado”. Frisou ao final que

seriam promessas do Ivan a reforma das duas viaturas e a reforma do trator.

Levantou-se então para falar um homem de nome Milton Pires, " Tá aqui a presença de

nosso candidato, o dr. Ivan, e Bebê nosso vereador. Já teve elemento lá em casa cutucando,

cutucando, e eu falei, já te ajudei e nada você fez por mim. Ele disse quinta-feira o Ivan tá preso,

hoje nosso candidato tá aí... e ele não fez nada por nós. Deus está vendo todo o sofrimento que nós

estamos passando com essa mulher aí." Depois ele comentou sobre a visita do governador Zeca do

PT a Cachoeirinha, realizada no dia anterior. "Não falo mal do Zeca, do presidente Lula, mas o

problema é aquela mulher ai. Você vai na prefeitura e cadê a prefeita, nunca tá, tá viajando. É

mentira (...)" E fala olhando para o Edílson Pedro: "E Bebe, eu vou cobrar você, não só eu, a

comunidade vai cobrar."

Seu Alírio, que estava atuando como um coordenador da reunião, pergunta se mais alguém

queria falar, e então dona Agripina Júlio, sua meia irmã, vai até o centro da roda e canta e dança em

homenagem ao dr. Ivan (grita “viva o doutor Ivan”). Depois de sua manifestação, toma a palavra

Ramão (um “branco”, assessor de campanha do candidato a prefeito), e diz: "O Ivan foi o único

candidato que colocou um branco para trabalhar para o índio, para pedir voto para o índio”. Olha

então para o Ivan e diz: “O senhor é um mito entre os indígenas”. Depois de tecer mais elogios a

ele e falar que a vitória já estava garantida, de acordo com as pesquisas, ele encerrou.

Então o próprio Ivan tomou a palavra. Começa agradecendo ao senhor Alírio por fazer a

reunião na casa dele. "O objetivo de chegar na prefeitura é trabalhar pelo nosso povo". Comenta

sobre o comício da prefeita realizado na noite anterior, acontecido na cidade de Miranda, citando o

fato de um índio de Argola ter sido esfaqueado numa briga, ironizando a “falta de urgência no

atendimento” dispensado a ele (já que não se liberou uma ambulância que estava à disposição do

Governador, presente no local, para fazer o atendimento). Fala da disputa pela prefeitura municipal,

afirmando que está vencendo as eleições e para os índios trabalharem como cabos eleitorais de

outros candidatos, “mas peguem o dinheiro e não votem neles”. Declara seu apoio ao governador,

fala que seu partido apóia o Zeca na ALEMS, e que o Zeca só apoiou a Beth Almeida por obrigação

partidária. "Além disso eu queria falar para vocês da lavoura, citando projetos de fomento, apoio e

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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fornecimento de maquinário, que pretendemos criar uma indústria de farinha.", Afirmou que vai

criar uma secretaria indígena e que será comandada e composta por índios, para atender suas

reivindicações, para que eles não tenham que ficar sempre esperando para falar com o prefeito.

Falou ainda que a comunidade indígena deveria votar no índio. “Nós temos que votar no patrício.

Eu quero agradecer a todos vocês. Mas a associação tem um peso na administração, para que nós

mandemos máquinas, semente, ela é unida. Muito obrigado". A reunião se encerrou por volta das

19h, e as pessoas presentes ficaram ainda no local conversando e tomando refrigerante distribuído

pelo candidato.

Poucos dias depois, a candidata à prefeita Beth Almeida e vice na sua chapa, Neder

Vedovato (vereador), voltariam a Cachoeirinha, desta vez na aldeia Argola. No dia vinte de

setembro, fomos até a Argola e lá encontramos Inácio Faustino, por volta das 15:30h e ficamos

sabendo da reunião que ele estava preparando com a prefeita e o candidato a vice, Neder, para as

16h. No caminho ele foi explicando as razões da reunião e suas expectativas. Falou que eles ficaram

“afastados da prefeita nesta última gestão” e que “as outras associações tinham espaço”, e que eles

estavam querendo reverter esta situação. Por isso ele tinha pedido a reunião com a prefeita, para o

Neder. Fomos para um terreno, que depois saberia ser da AITRE (Associação Indígena Terena

Reviver, da qual Inácio é presidente) e ficamos embaixo de uma mangueira.

Ficamos esperando um tempo o inicio da reunião e neste meio tempo chegou o candidato

indígena Aldemir Soares, da aldeia Moreira. Ele falou, ao considerar o seminário de capacitação de

professores realizado na Sede: "Porque para mim educação é tudo. A comunidade mesma

administra isso aí. Nós temos idéia, capacidade. Nós temos já pessoas capacitadas para

administrar qualquer coisa, inclusive uma secretaria de educação.”

Às 17h a reunião teve inicio, com a chegada da Prefeita Beth, do Vice Neder e de uma

assessora, de nome Juliana. Sentaram-se Juliana, Beth, Neder e Waldemir, de frente para o grupo de

pessoas que estavam esperando (que fizeram um semi-círculo). Conteamos cerca de 20 pessoas no

local. Quem primeiro tomou a palavra para falar foi Inácio Faustino, presidente da AITRE. Ele

falou, “quem tá aqui, a maioria é da diretoria da AITRE, a maioria tá cadastrado para fazer

campanha. Nós tivemos dificuldade com a senhora prefeita, a gente ficou distanciado, não teve

acesso depois da campanha. Não sei se a senhora lembra, nós fizemos campanha voluntariamente.

Mas nós não tivemos acesso na prefeitura. Nesse período eu não tive respaldo na comunidade

porque não tive acesso. Eu queria garantir de não ficar mais distanciado. Eu dirijo uma associação

de quase 40 famílias. O que nós estamos esperando é uma Sede para a associação. Um projeto tá

nas mãos do deputado. Essas são as dificuldades que a gente tem”. A prefeita respondeu, dizendo

para ele passar na prefeitura para ver isso. “Nesse galpão tá funcionando o Mova”, disse Inácio.

Ele pede uma caixa d´água, a extensão da rede e luz. Falou que nunca a associação recebeu

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maquinário. A prefeita contestou, diz que a prefeitura mandava as máquinas. Ela citou uma

ocasião em que falou com o Tomás, marcou uma reunião com os presidentes das 3

associações, mas o Inácio não foi. O Inácio retrucou, “Às vezes a senhora fala com um e pensa

que tá falando com todos. Quando uma pessoa quer dominar, então fica só ele sabendo”.

Falou então o cacique da Argola João Candelário: "Eu lembro que nos recebemos o ofício de

recebimento de um trator, a senhora vai dizer como e que ta isso ai. A gente queria amarrar o

atendimento da senhora” e fala de um rapaz, do secretario de esportes da comunidade, dizendo que

esperava muito dele. A prefeita fala, diz que vai mandar o padrão (para resolver a questão da

energia elétrica), a caixa de água, mas que só não pode fazer isso imediatamente por causa da

fiscalização. A prefeita reclamou porque ele não a procurou mais. Inácio respondeu : "Eu sou

sistemático. Uma vez eu fui na prefeitura com a liderança, mas ligaram para que nós não fossemos

atendidos, eu e o Fernando batemos com a cara na porta. O Esídio e o Celinho Segato, eu sei

porque depois eles me cercaram na rua e disseram que na prefeitura nós não íamos arrumar nada.

Creio que nós vamos acertar essas coisas. Daqui por diante pode confiar em nós.”

Terminada a intervenção do Inácio, a palavra foi passada a João Candelário. "Só queria

fazer uma pergunta para a senhora, da emenda que o deputado Arroyo fez”. A prefeita responde.

Ao final volta a tomar a palavra Inácio, para combinar a contratação e conversa com Neder, que dá

os valores: sessenta reais por pessoa. Inácio pediu para que adicionassem mais cinco pessoas na

lista, mas não foi atendido. Antes do fim da reunião se pronunciou ainda “Baixinho”, secretario de

esportes, e reclamou de uma série de coisas. Em seguida a reunião foi encerrada..

No dia vinte e seis de setembro, à noite assistimos o comício do candidato João Pedro

Pedrossian. O comício teve início as 20:40h minutos aproximadamente, sendo realizado ao lado da

AITECA, em um caminhão que serviu de palanque. Antes do início, uma banda tocava xamamé

para atrair o publico. Aglomeraram-se no local cerca de 100 pessoas, ou um pouco mais, porém

número bem inferior ao que aglutinou o comício do Ivan. As pessoas, mulheres, crianças, sentavam-

se em bancos e cadeiras trazidas das casas, ou ficavam paradas em pequenos grupos ao redor do

local do comício. Algumas dezenas de cabos eleitorais com camisas e bandeiras aguardavam no

local, e outros chegaram em ônibus e caminhões. Chegou o candidato, e o mestre de cerimônias

começou a chamar os convidados para o palanque: Vacílio Elias, Edílson Pedro, Airton Vitor da

Igreja Católica, Rafael Albuquerque, Nicola Pedro da Assembléia de Deus, Quintino Pereira

Mendes da Vila União São João, Evandro Antonio, representante da Vila Nova, Arlene Julio, da

Associação de Ceramistas, Mario de Albuquerque da AITECA, Leôncio Belisário da Vila Santa

Cruz e os coordenadores Felix Canali, do Morrinho e Esidio Albuquerque; o Pastor Zacarias a

futura “primeira dama”, o João Pedro e vice na sua chapa, Henrique. Chamou também os

candidatos a vereador Celma Iranda, Luiz Meneses e Kátia.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

327

A primeira pessoa a se pronunciar no palanque foi Arlene Julio, ceramista. “Nós somos

lutadoras, somos trabalhadeira, principalmente dentro das nossas casas”. Diz que precisam de

oportunidade para fazer feira em Miranda. Fala da organização das mulheres, a AMITECA. Lê

então um discurso: "Precisamos de apoio das autoridades. Esta associação não é legalizada." "Nós

mulheres somos lembradas só na época de eleição, de campanha. Em reunião da comunidade nós

não somos convidadas. Nós temos a mesma autoridade e autonomia que os homens”.

Na seqüência falou Mario Albuquerque, presidente da AITECA, vestindo a camisa da

campanha: "Eu vou fazer um pedido aos meus companheiros. Nós temos esse companheiro que é

candidato. Ele me procurou na minha casa pedindo meu apoio. Então eu fiz reunião com os

associados porque eu não faço nada sozinho, e confirmamos ao João Pedro Pedrossian. Na

eleição passada nós trabalhamos para essa prefeita. Mas resolvi sair fora dela. Em tudo ela

enganou nós. Ela não merece nosso voto. Ela prometeu ônibus para as ceramistas...Beth é

mentirosa. Nós tamos com um homem que tem compromisso com nós. Ele trabalhou muito bem

para a AITECA”.

Na seqüência falaram o pastor Zacarias, Vacilio Elias, que falou da criação da secretaria

indígena, Felix Canali, Rosana Canali, Edílson Antonio (locutor da rádio), Cilsa da Passarinho, e os

candidatos a vereador, Nica, Luis Meneses e Davi. e Carlinhos da Lalima. Por fim falou a esposa de

João Pedro: "Amigos de Cachoeirinha, vocês terão semente e óleo diesel. As mulheres serão

valorizadas sim. Nós teremos o maior prazer em apoiar a associação das ceramistas. Henrique e

João Pedro falaram para encerrar: “Amigos. Queridos. A alegria de estar aqui é muito grande, nos

emociona, toca o coração. Vocês podem em 2005 contar com o total apoio do 45, do João Pedro.

Felizmente conseguimos reunir liderança expressivas de Cachoeirinha, Argola, Babaçu, Lagoinha

e Morrinho e através dessas lideranças chegamos na comunidade, em vocês." Fala da sua proposta:

“Secretaria do Índio sim, faremos com que ela tenha toda a estrutura, para receber projetos", e

promete que serão os índios que irão comandá-la. “É preciso que vocês tenham o apoio necessário

para produzir e produzir bem. Semente, óleo diesel e estrada cascalhada vocês já tiveram. Teremos

um cerimonial comandado por esse povo ordeiro, por esse povo Terena”. Depois das palavras de

Pedrossian, o comício foi encerrado, a banda tocou músicas ainda, mas grande parte do público foi

se dispersando lentamente.

Até o dia três de outubro, vários outros comícios foram realizados dentro da aldeia, inúmeras

reuniões de articulação política. O dia das eleições foi tranqüilo, a maior parte dos índios votam na

própria aldeia, nas urnas instaladas nas seções eleitorais das escolas. Os mesários e fiscais eram os

próprios moradores das aldeias. Depois da divulgação do resultado da apuração das eleições para

prefeito e vereador, 5 carros, 2 motos e 1 caminhão e algumas bicicletas percorreram a avenida

principal com algumas dezenas de pessoas acompanhando, carregando bandeiras e portando

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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camisas e bonés do PT e da Beth Almeida, soltando fogos de artifício e gritando muito. Os veículos

formaram um círculo em frente ao PIN e ficaram dando voltas, fazendo muito barulho durante

alguns minutos. Depois saíram em disparada percorrendo as demais vilas. Ao conversar com um

dos ciclistas que acompanhava o grupo, ele amostrou a marca de uma pedrada e disse “o pessoal

não sabe perder”. O resultado das eleições era provisório, já que estava em curso um processo

judicial contra a candidata Beth Almeida (sua candidatura seria cassada e depois a cassação seria

suspensa por decisão do STF, garantindo sua posse).

Nos dias que se seguiram as eleições de 2004, houve uma grande movimentação na aldeia.

A expectativa em torno da indefinição de quem seria o prefeito era muito grande. No município são

11 sessões de votação dentro das aldeias, totalizando 3118 votos de indígenas (num total de 16.769

eleitores, o que representa cerca de 18% do eleitorado municipal). Abaixo segue um mapa do

resultado das eleições para prefeito dentro das aldeias do município:

Quadro 37- TRE-MS-2004 (CD-ROM)

Aldeias Total de Votos

Beth Almeida

Ivan Paz Bossay

João Pedro Pedrossian

Paulo Rebuá Siufi

Seção 92 147 37 38 23 20

Seção 36 355 75 87 62 41 Seção 35 297 69 81 51 31

Aldeia Cachoeirinha

Seção 67 305 58 90 46 25

Aldeia Argola Seção 34 353 83 126 17 58 Seção 88 224 58 51 45 22 Aldeia Lalima Seção 63 318 89 75 65 34

Seção 77 277 87 86 27 25 Aldeia Passarinho Seção 43 285 102 70 27 29

Seção 70 279 87 83 30 36 Aldeia Moreira Seção 44 278 88 59 50 27

Total 11 3118 833 846 443 348

O resultado das eleições foi o seguinte: Beth Almeida, 5641 votos; Ivan Paz Bossay, 5077

votos; João Pedro Pedrossian 1664 votos; Paulo Rebuá Siufi, 1341 votos. Nas áreas indígenas foram

2470 votos nos candidatos e mais 648 votos brancos e nulos; Ivan (846 votos) foi ligeiramente mais

votado nas áreas indígenas consideradas em seu conjunto que a Beth Almeida (833 votos). Foram

89 candidatos a vereador no município, sendo 7 eleitos para a câmara.

A busca pelo poder: os líderes indígenas na política local

O “tempo da política” se apresenta como uma conjuntura muito propícia para a descrição e

análise da ação das facções políticas dentro do campo e das arenas das relações interétnicas. As

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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eleições 2004 permitem mostrar os pontos de constituição de redes sociais que articulam o universo

das aldeias com diversas ins tituições e atores dos campos e arenas políticas descritos inicialmente.

Primeiramente, podemos analisar cada uma das situações sociais, e indicar as relações e

questões implicadas nelas:

1) A primeira situação é a atividade de campanha de um dos muitos candidatos indígenas de

Miranda, Carlos Jacobina. Aliado da Prefeita Beth Almeida, ele promoveu atividades de apoio a

Beth desde 2003, tendo sido também candidato a Administração Regional da FUNAI, mas foi

derrotado por poucos votos, por Wanderley de Limão Verde; a “reunião de campanha” e o discurso

de Carlos e seu irmão Wilson Jacobina explicitam o discurso hegemônico entre os índios Terena, da

necessidade de um “voto étnico” (como por exemplo "a gente está aqui no fortalecer as

candidaturas indígenas”). Por outro lado a descrição da campanha coordenada por Celinho

Belisário mostra que “Os trabalhos estão sendo por vila, por família, por Igreja” (explicando que

não haviam reuniões maiores para esta questão). Este tipo de discurso volta a ser acionado, por

exemplo, na outra reunião, na Argola, por outro candidato indígena, Aldemir Soares, que afirmou:

“Porque para mim educação é tudo. A comunidade mesma administra isso aí. Nós temos idéia,

capacidade. Nós temos já pessoas capacitadas para administrar qualquer coisa, inclusive uma

secretaria de educação.”Ou seja, é a expressão do ideal de controlar a própria vida/gestão indígena,

da afirmação da “capacidade política indígena” de se representar, de gerir atividades, inclusive de

organismos estatais. Este discurso era reproduzido por todos os candidatos a prefeito e se

cristalizava na proposta da formação de uma “secretaria indígena” na Prefeitura, que seria ocupada

por um índio. Assim, o discurso produzido pelos Terena, e corresponde práticas e políticas

desenvolvidas pelos índios dentro das aldeias, no sentido de garantir seus espaços políticos; os

discurso realizados pelo Chefe de Posto, Argemiro, e pelos professores e outros indígenas no Dia do

Índio de 2004 (ver capítulo 3), também apontam na mesma direção. O trabalho dos líderes

indígenas dentro das aldeias expressa a busca “espaços de poder”, de maneira que as alianças com

as elites dirigentes locais e autoridades de Estado, aumentam o capital político destas mesmas

lideranças.

2) Um aspecto organizativo é também fundamental; nas diversas situações sociais descritas, vemos

que as facções e as associações criadas por elas, são instrumentos fundamentais de constituição das

relações políticas dentro do campo e arenas das relações interétnicas. Na reunião de campanha

ocorrida na Vila Cruzeiro fica explícito que Alírio, líder da antiga facção do cruzeiro e da ACIC,

atua como coordenador de campanha e mediador político, sendo o ponto numa rede social que

articula grupos familiares de certas linhagens em torno de uma aliança situacional com um líder

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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político local (Ivan Paz Bossay); o candidato a vereador lançado e apoiado pela ACIC (por Alírio de

Oliveira, Argemiro Turíbio, João Niceto Júlio) foi Edílson Antonio Pedro, filho de Mario Pedro e

Rosalina Antonio, e morador da Vila Cruzeiro. O seu discurso mostra como na realidade o

“candidato a vereador” indígena está mais associado a um “bairro”, sua associação e seus líderes do

que a aldeia considerada como um todo homogêneo: (Associação do Alírio, que está precisando

disso, precisando daquilo e ajudá-la é o “papel do vereador”. Disse ainda, ao comentar as

dificuldades da associação: "Agora tendo vereador é diferente, vocês não vão precisar gastar nada,

por isso a gente tá pedindo o apoio”. Ou seja, o espaço buscado na política local, é para os

diferentes segmentos em que se organizam os Terena, e não para os índios considerados como um

agregado de indivíduos. É a busca de poder individual e para o grupo de parentesco e vizinhança

que se busca, não para o grupo Terena como um todo; isto ainda é confirmado pelo comício

realizado próximo a AITECA, com a presença de Mario e Esídio Albuquerque, além do presidente

do Conselho Tribal pastor Zacarias da Silva, o que marca a importância das formas de liderança e

organização política dentro da aldeia; também na reunião da Argola, o líder Inácio Faustino e o

cacique João Candelário se apresentam diante da prefeitura como representantes de uma associação

de 40 famílias, para negociar com a candidata a prefeita Beth Almeida;

3) A outra dimensão a ser destacada, é como certos recursos materiais entram diretamente no

circuito de trocas entre as facções indígenas e as lideranças políticas do município. Na primeira

situação descrita, temos as obras de “cascalhamento” das estradas e ruas das aldeias de

Cachoeirinha que são uma das “moedas” de troca utilizadas na política local; as estradas

cascalhadas facilitam o trânsito de veículos, principalmente em tempos de chuva, de forma que os

índios levam em consideração este tipo de ação; durante o comício do Governador do Estado, os

“agradecimentos” para o Governador realizados pelo Cacique Lourenço em seu discurso, ou então o

pedido de projetos e recursos feito pelo cacique da Argola João Candelário; Wilson Jacobina

agradece a construção de “casas” pelo programa habitacional do Governo do Estado, realizado em

Passarinho/Moreira; na reunião realizada na casa de Alírio na Sede, na AITRE na Argola e também

no comício de Pedrossian na Sede, vemos certos fatores serem colocados em negociação: 1º) trator

e maquinário (esteiras, estrados e etc) da prefeitura são prometidos por Ivan a Alírio de Oliveira e

sua associação; 2º) no comício de João Pedro Pedrossian, são prometidos “óleo, semente e estrada

cascalhada”; 3º) na reunião da AITRE, vemos que outros recursos de infra-estrutura (“padrão” para

instalação elétrica e caixas d´água compõem os elementos a serem negociados em torno de apoio

político, além da própria remuneração em dinheiro para os cabos eleitorais que realizam as

campanhas políticas).

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

331

4) Outro fator fundamental é ver como as alianças políticas se dão entre os diferentes atores

componentes do campo, e as unidades segmentadas nas quais os Terena se organizam; neste sentido

a reunião na Argola entre as lideranças indígenas e lideranças políticas do município são

emblemáticas; Inácio coloca a necessidade de uma “aproximação” com a prefeita, o que não tinha

acontecido nos 4 anos anteriores. Ele fala de como ele enquanto líder tinha ido várias vezes

diretamente ao Gabinete da Prefeita, sem ser atendido (é interessante que Alírio de Oliveira falou a

mesma coisa); a Prefeita Beth tinha um contato estreito com Tomás Martins, uma das lideranças

políticas da Argola, ex-cacique e presidente de uma das associações, a APRAA (Associação dos

produtores Rurais da Aldeia Argola). Inácio reclama que Tomás manipulava as informações,

impedindo o dialogo entre ele e a prefeita, e que muitas vezes “a prefeita fala com um e pensa que

está falando com todos mas não está”. Ou seja, as máquinas (tratores) que eram enviadas para

aldeia Argola, eram gerenciadas por Tomás Martins, que monopolizava o acesso e definia os

critérios de sua utilização, assim como de outros recursos. Ou seja, a aliança com uma facção

indígena leva a exclusão das outras da comunicação e da participação na distribuição dos recursos

que circulam nas relações dentro do campo de relações entre índios, instituições de Estado e grupos

políticos locais; é o mesmo tipo de relação de exclusão que Alírio de Oliveira denuncia na Sede

com relação a ele e sua associação; “A política sempre traz a proposta, mas nunca é cumprida a

proposta. Então toda política, todo ano tem sido assim. Principalmente essa prefeita que tá agora

ai nunca fez nada para nós. No dia que falou lá, dia que o Zeca do PT veio, que ele tem ajudado a

associação, pelo menos a minha associação não tem ajudado não, pelo menos se abrisse a porta

para mim para conseguir conversar com ela a gente ficava satisfeito. Quando eu vou procurar na

prefeitura, fala que ta viajando, reunião e quando procura o marido dela, fala que tá na obra. Ia

várias vezes, só falava com um tal de Serginho, então ele me passava que a prefeita tava em

reunião, tava viajando. É desse jeito. Até que nos desistimos da prefeitura. Questão de Zeca a gente

não tem anda a ver com o Zeca, fizemos nossa parte, votamos já para ele, se for preciso nós

estamos em peso do lado dele de novo. Agora a questão é dessa mulher, da prefeita”. (Alírio de

Oliveira Metelo/2004); o mesmo foi falado por Mário de Albuquerque, no comício, em que

questiona a política da prefeita para a AITECA. O poder compartilhado pelas elites locais com

determinadas facções indígenas leva diretamente a exclusão das outras facções, e implica sempre

numa política de rebaixamento e de repressão de uma em relação às outras.

As trocas de recursos materiais e poder político (cedido pelas lideranças das elites dirigentes

e grupos políticos locais, pelas autoridades representantes do Estado) por apoio político na forma de

voto e obediência das lideranças indígenas, reproduz em grande medida as formas de

colaboração/aliança desenvolvidas pelo SPI/FUNAI. Na realidade, como vimos, existe uma

profunda e intensa disputa política entre as facções indígenas Terena, para acumular bens e poder

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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para sobrepujar as facções rivais, o que parece ser o grande objetivo dos líderes Terena. Neste

sentido, as alianças com as elites e líderes políticos municipais e estaduais, são uma forma de

aumentar o poder político destas facções indígenas, para reforçar uma dominação horizontal,

através de políticas de colaboração com agências do Estado e grupos dominantes na política local. E

nesta direção, se valem inclusive dos próprios dispositivos do regime tutelar, do acionar constante

das suas técnicas e dispositivos de poder, para garantir seus interesses.

Na realidade o que o Terena chama de líder, o “Tuuti” ou “Cabeçante” em português, na

realidade é avaliado por sua capacidade de construir e manter estas relações de aliança. A

capacidade de manter “boas relações” com as autoridades políticas (prefeito, governador,

vereadores, representantes da FUNAI) é talvez o grande critério que torna uma liderança aceita, e

ao mesmo tempo, a incapacidade de manter esta comunicação regular e eficaz com os “donos do

poder’ o que leva a sua rejeição e derrocada política. A capacidade de conseguir bens materiais e

recursos para si e para seu grupo é uma conseqüência desta capacidade de comunicação e

relacionamento. Um bom líder é “bem relacionado”, e por ser bem relacionado ele consegue ter

acesso a recursos; esta é a equação que avalia o líder.

O papel da FUNAI não deixa de ser importante dentro desta configuração; por mais que

tenha perdido recursos e competências (educação para as prefeituras, saúde para a FUNASA), ela

ainda se apresenta como um espaço de poder para os índios, o qual é sempre procurado. Desta

maneira, o que não se consegue na Prefeitura ou Câmara de Vereadores, busca-se na FUNAI e vice-

versa.

Nas eleições de 2004, estas relações de aliança estavam sendo refeitas, seja para confirmar

as alianças estabelecidas nos anos anteriores, seja para desfazê- las e construir novas alianças. Neste

sentido, vejamos algumas das alianças: Ivan, do PDT, conseguiu estabelecer alianças com a ACIC

na Sede tendo o apoio de lideranças como Alírio de Oliveira, Argemiro Turíbio em troca de

fornecimento de tratores e implementos agrícolas, e também do apoio a candidatura de Edílson

Antonio Pedro; na Argola ele estabeleceu uma aliança importante com Adelino José e Aldo da

Silva, também candidato a vereador; João Pedro, do PSDB, estabeleceu sua rede de apoio através de

Esídio e Mário Albuquerque.

No Morrinho conversamos com um dos “coordenadores de campanha” de João Pedro, Felix

da Silva Canali. Disse que o candidato o procurou na casa dele, através do seu tio, Esídio

Albuquerque. Ele nos disse que é através da política que consegue semente, trator. Afirmou estar

coordenando uma equipe de 11 cabos eleitorais no Morrinho116.

116 Ele citou os nomes de Zilo Muchacho, Mateu Antonio, Robson Julio, Bento Silverio, Aparecida Raimundo, Argemiro Polidoro e Miguel Barbosa, que teriam participado da sua equipe.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Em uma conversa com Vitorino Paulino, nascido em 05/05/1948, morador da Sede, falou

sobre as eleições e que coordenou uma equipe de 26 pessoas, sendo que os cabos eleitorais

ganhavam 60 por quinzena e os coordenadores 130,00. Pessoas com que trabalhou: esposa, filhos e

filhas; Valdirene Pedro, Dionísia Belisário (irmã da esposa), Emilio Polidório, Maria José

(esposa do irmão), Marilza Matias, Valentino Lemes, Zenildo Batista (nora), os demais disse

não se lembrar. O quadro abaixo mostra a existência de um mercado temporário de trabalho na

politica local.

Quadro 38 – Mercado Temporário de Trabalho na Política Local.

Candidatos João Pedro Pedrossian PSDB

Ivan Paz Bossay PDT

Beth Almeida PT

Total

Valor Pago R$100, 00 por quinzena (60 dias) R$ 40.000, 00

R$ 130 reais por quinzena por coordenador R$ 60 reais por quinzena por cabo cabo eleitoral R$ 42.240.

R$ 60 reais por quinzena por cabo cabo eleitoral R$ 12.000

R$ 94.000

Coordenadores Felix da Silva Canali Esídio Albuquerque Deodato Lipú Vacilio Elias, Quintino Mendes Ailson Vitor Evandro Antonio Gordo Nelinho Cutia, Francisco Neito João Leiteiro. Joazinho, Antonio de Arruda Rogério

Coordenadores: Alírio (40) Adilson Júlio (60) Vitorino Paulino (26) Lírio Lemes (20) Sabino Loto

Sabino Albuquerque

Quantidade de Cabos Eleitorais

100 cabos eleitorais

176

50

326

Este quadro indica a importância econômica e social de tais alianças políticas; as estimativas

de circulação de dinheiro dentro da aldeia nos dois últimos meses do processo eleitoral, chegam a

R$ 94 mil, com pelo menos 326 cabos eleitorais que conseguimos identificar. Somente três

candidatos constam da tabela, porque somente para eles conseguimos informações sistemáticas. O

“tempo da política” possibilita a formação de um mercado de trabalho temporário, em que são

agenciadas as lideranças indígenas que funcionam como intermediários (como os “cabeçantes” das

Usinas); devem recrutar, organizar e executar o trabalho, receber o dinheiro e fazer o pagamento

dos “cabos eleitorais”.

As principais lideranças políticas é que articulam os acordos e normalmente acionam seus

parentes ou pessoas de confiança para assumirem a coordenação do trabalho; é o caso de Esídio

Albuquerque, Sábio e Alírio. Estes líderes normalmente atuam de forma mais discreta (por

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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exemplo, Sabino não assumiu que trabalhava com Beth Almeida, mas no comício do Zeca em

Cachoeirinha foram seus ônibus que transportaram grande quantidade de pessoas até a Sede para

participar do evento). Além de Sabino, também Dionísio Antonio coordenou equipes e apoiou a

candidatura de Beth Almeida.

Este “mercado de trabalho temporário”, no qual muitos índios participam, é fundamental

para entender as relações de poder no contexto da política local. Enquanto que as lideranças buscam

efetuar “trocas” com lideres das elites locais, grande parte da população encara esta atividade como

uma “changa”. O volume de dinheiro total consiste de uma soma importante, e o percentual da

população indígena empregada nas eleições chega a mais de 10% - somente considerando os 326

cabos eleitorais identificados acima, mas deve ser maior.

Podemos dizer que durante as eleições de 2004 ocorreu a seguinte configuração: na Sede,

um líder de facção estabeleceu uma relação de aliança política com Ivan, foi Alírio de Oliveira

Metelo; Esídio e Mário de Albuquerque estabeleceram relações de aliança com João Pedro

Pedrossian; Sabino de Albuquerque e Dionísio Antonio, estabeleceram uma relação de aliança

política com a Prefeita Beth Almeida do PT. Na realidade, estas relações também tem precedentes

históricos; Sabino por exemplo tinha no início dos anos 1990, uma relação de aliança com Roberto

Almeida (marido e do mesmo grupo de interesses que Beth Almeida), mas brigou com ele e ficou

com o apoio do Governo do Estado; ele também já trabalhou com Ivan Paz Bossay durante um

certo tempo, e passou a se articular com Beth Almeida possivelmente a partir de 2000, quando ela

foi eleita; Alírio e os grupos do “Cruzeiro” apóiam Ivan desde 2000 e mantiveram esta posição em

2004; Mário Albuquerque trabalhou com Beth Almeida em 2000, mas tendo suas expectativas

frustradas, mudou sua aliança para João Pedro Pedrossian. Assim, cada facção indígena, cada grupo

de parentesco e vizinhança, constrói sua própria rede de alianças políticas de forma autônoma e

muitas vezes concorrente com as outras; da mesma forma que estabelecem relações comerciais e de

trabalho enquanto famílias extensas ou indivíduos. Assim, as facções organizadas também em

associações, impulsionam a dinâmica política sob a forma de conflitos por recursos e poder político.

Os líderes de bairros que conseguem ser mais eficazes na comunicação e relação com os líderes

políticos locais, são aqueles que tendem a manter sua própria liderança e poder pessoal e faccional.

A descentralização faccional, num contexto de escassez (socialmente produzida e relativa)

de recursos abre espaço para uma dinâmica de concorrência entre as facções, que termina com o

estabelecimento de um “monopólio” sobre certos recursos e poderes locais – possibilitado graças à

aliança/colaboração com os membros das elites locais, que atuam como patrões na relação

clientelista. Esta descentralização faccional, que provocou em parte mudanças no regime tutelar, e

abriu espaços de poder aos índios, é a mesma que garante a reprodução da dominação centralizada.

Mas esta relação clientelista, que aparece sob formas de colaboração voluntária e reciprocidade, se

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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assenta também sempre sobre a possibilidade da repressão – garantida especialmente através das

relações de trabalho formais que podem derivar das trocas (empregos em instituições públicas, por

exemplo), além da exclusão do acesso a recursos públicos.

No contexto da aldeia, a Escola e o Posto de Saúde da FUNASA, assim como o Posto da

FUNAI, apresentam-se não somente como instituições políticas, ou difusoras e reprodutoras de

mensagens simbólico-culturais, mas se apresentam como espaços de trabalho acessíveis aos índios,

e com uma remuneração regular e estável (o que o trabalho da lavoura não oferece) e com um

trabalho mais leve (por serem atividades de cunho intelectual, ou mesmo manual, mas sem muito

desgaste) que aquele das Usinas. Assim, as instituições locais e os postos de trabalho são também

integrantes do circuito de trocas clientelistas (emprego de professor ou merendeira na escola; de

servidor do posto de saúde; e mesmo de chefe ou zelador do Posto da FUNAI). A indicação para

estes cargos assim tem múltiplas dimensões. Iremos analisar abaixo como dentro da política

faccional e do regime clientelista, se dão os processos de dominação política.

A Escola Indígena: a experiência da co-gestão e da coerção.

No início do século XXI, as comunidades da Cachoeirinha desenvolveram uma política para

alcançar a “gestão” da Escola dentro das aldeias. Nesse sentido, a criação da “Escola Indígena”

pode ser tomada como um caso para o aprofundamento da análise do projeto político de “co-gestão

indígena”, de “ocupação de espaços” de representação política.

Devemos registrar aqui a importância que a Escola enquanto instituição adquiriu na vida e

na organização social dos Terena. Podemos dizer que a Escola se constitui não só num mecanismo

de mobilidade profissional individual e familiar, mas é também depositária de uma expectativa

coletiva relacionada ao grupo étnico como um todo. As percepções simbólicas do grupo atribuem

uma valorização expressiva à educação, escolarização, incorporando-os mesmo como valores do

grupo. A educação é vista como um instrumento político e como símbolo de uma melhor posição de

poder na sociedade brasileira. Podemos ilustrar isso por algumas informações colhidas junto aos

indígenas.

Numa conversa informal ocorrida entre o chefe de Posto de Cachoeirinha, o Cacique e

etnógrafo em Campo Grande, logo após uma audiência pública sobre a questão indígena, o chefe

comentou: “ os nossos parentes foram enganados na questão da terra, perderam muita terra

porque não tinham estudo.”

O índio Terena Wanderley, na ocasião membro de uma comissão especial de educação

escolar indígena da secretaria estadual de educação do mato Grosso do Sul e depois administrador

da FUNAI, afirmou na Audiência Pública “A Dívida de Mato Grosso do Sul com os

Índios”,afirmou:

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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“A educação joga um papel muito importante na questão da afirmação identitária,por que?. Porque é na escola que nós vamos estudar muito da nossa história que foi negada (..). Aí as pessoas vão ter orgulho de ser índio, vão saber de onde vieram,e porque estamos hoje numa situação dessas, de conflito,queiramos ou não, de animosidade,de insegurança, de incerteza e de aflição. (...) E quero fazer um apelo aqui a toda liderança indígena, discutam no mesmo teor,no mesmo nível, com o mesma ênfase que se discute o óleo, semente, trator,discutam também o papel da educação para as nossas comunidades”. (fl 157-159).

O antropólogo Kalervo Oberg, nos anos quarenta do século XX, já registrava mesmo que de

maneira superficial esta valorização da escolarização por parte dos Terena:

“The attitude of the local Brazilian toward the Terena is one of tolerant disdain. Like other Indians they are sometimes called bugres, a term o abuse associated with sodomy and heresy. (…) A Terena, on other rand, accepts Brazilians in general as superiors but adds that if he were better educated he could compete with a Brazilian on equal terms. (OBERG, 1948, p.38).

Esta importância simbólica e identitária atribuídas pelos Terena a Escola pode ser percebida

também no fato da classificação das Escolas existentes dentro de Cachoeirinha; com exceção da

escola Pólo que leva o nome de Coronel Nicolau Horta Barbosa, todas as extensões levam os nomes

de lideranças indígenas, caciques ou líderes de famílias extensas. Cada extensão existente em cada

setor leva um nome: Sala Luís Raimundo, em Morrinho; sala Alexandre Albuquerque, na aldeia

Lagoinha; sala Felipe Antonio, na aldeia Argola; sala José Balbino, na aldeia Babaçu; sala José

Caetano, na Sede (todos fundadores ou antigos moradores das respectivas aldeias). Nestas escolas

trabalham cerca de 20 professores indígenas, de um total de 25 que conseguimos identificar,

estando duas professoras já aposentadas.

A Escola é parte do espaço da aldeia construído simbolicamente, em que a percepção

indígena se objetiva em instituições materiais, que para além das funções específicas, operam como

espaços de referência e memória coletiva. Esta importância simbólica se associa conseqüentemente

a uma diferença social e política, que faz com que os professores se destaquem como agentes

políticos dentro das aldeias e dentro da política local como um todo.

As Escolas ocupam um lugar importante na vida e na cultura dos Terena. Mas devemos

observar, no entanto, como a instituição se insere na dinâmica da política local, e como estas se

entrecruzam com as relações de trabalho e poder, configurando assim uma complexa configuração

na qual se desenvolve a vida do povo Terena. Debateremos esta temática ao analisar as relações e

restrições que se impõem as ações dos professores indígenas.

A Escola serviu também como um importante espaço de formação das lideranças políticas

Terena. As trajetórias individuais mostram que muitas vezes elas podem servir para preparar futuros

candidatos a “caciques” – especialmente os mais jovens – dentro de determinadas facções, ou então

administradores para a FUNAI e outros cargos. Dois casos ilustrativos disso são os de duas

lideranças da vila Cruzeiro: Argemiro Turíbio e Edílson Pedro.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Argemiro, em sua trajetória individual, começa sua atuação – ele mesmo o lembra – na

Igreja Católica. Depois, investe em seus estudos, sai para estudar um curso técnico em agropecuária

e retorna a aldeia em meados dos anos 1980, onde começa a atuar como professor. Participa, assim

como sua esposa, Marlene, da experiência de mobilização dos professores indígenas, e depois seria

candidato a vereador e eleito em 1998. Seria eleito cacique em 1991, e depois de deixar o cargo

passaria a ser presidente da ACIC.

Edílson Pedro, filho do ex-cacique Mário Pedro, tornou-se professor. Como vimos, foi

também candidato a vereador em 2004, com o apoio da ACIC e dos lideres e parentela residente na

vila cruzeiro, estando sendo preparado para assumir tarefas de “gestão” e administração dentro da

aldeia. A Escola e atuação enquanto professor auxilia na formação de lideranças e na construção de

redes de comunicação dentro da política local.

Os dados quantitativos reproduzem essa tendência a busca da escolairazação pelo povo

Terena. Obtivemos acesso a informações da Administração Regional da FUNAI117 sobre educação

indígena para os anos de 1998, 1999 e 2000. Os dados relativos à escolarização da população

indígena também são significativos. Em 1999 eram 3.684 os alunos que estudavam dentro das

próprias áreas indígenas (3629 no ensino fundamental e 55 no ensino médio). Estudando fora das

áreas indígenas existiam 240 alunos (152 no ensino médio, 88 no ensino superior público

federal118). Eram 33 escolas em áreas indígenas, destas 28 ficam localizadas em aldeias Terena

(dessas escolas, muitas são extensões de escolas que ficam localizadas fora das aldeias).

Do total de alunos, 3.377 estavams nas áreas Terena (mais de 90% do total na FUNAI/AER

Campo Grande). Em 2000 o total de alunos subiu para 3.975. Destes, 3.577 estão em áreas Terena.

O volume de alunos cresceu e os Terena mantiveram a proporção de 90% do total de alunos.

É interessante registrar que nos documentos relativos ao ano de 1998 o número de alunos no

ensino médio dentro das aldeias é 0 enquanto que em 1999 é de 55. Isto revela que foi

implementado o ensino médio dentro de algumas aldeias apesar dos documentos não apontarem

quais.

Dados de outubro de 2000 apontam à existência de 4.065 estudantes nas aldeias distribuídos

em 38 escolas (26 escolas de 1º à 4º, 8 escolas de 5º à 8º e 4 escolas de ensino médio). Do total de

alunos 309 estão na educação infantil, 3.666 no ensino fundamental e 90 no ensino médio. Fora das

aldeias o número era de 345 (dos quais 78 estavam cur sando o nível superior).

O total de professores no ano de 1999 é de 152. Destes 105 são indígenas (96 do órgão

Municipal e 9 do Federal) e 47 “não índios” (em 1998 eram 78 os professores indígenas e 47 os

“não índios”. Dessa maneira, em um ano, houve um crescimento na contratação de professores

117 Estes dados referem-se às populações das áreas discriminadas nas tabelas. 118 FUNAI/AER-Campo Grande, seção de educação 1999.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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indígenas da ordem de aproximadamente 15% (27 professores contratados). Em 2000 são 116 os

professores índios e 55 os não índios).

Entre 1998 e 2000 o número de estudantes cresceu tanto dentro quanto fora das aldeias, no

ensino infantil, médio e superior. Cresceu também o número de professores indígenas dentro das

áreas indígenas (foram contratados 38 professores indígenas para 8 não índios) entre 1998 e 2000.

Existem alguns dados sobre as áreas de trabalho deste quadro de professores. Não consta, no

entanto no documento o ano de sua produção e muitas das suas informações não batem com as

anteriores. Caso os dados sejam precisos, num universo de 79 professores indígenas, 1 está em área

Guató/Corumbá, outros 8 em área Kadiwéu em Porto Murtinho e todos os demais em áreas Terena.

A presença Terena no ensino superior na FUNAI/AER - Campo Grande também é

majoritária. Dados de 2001119 apontam a existência de 110 alunos matriculados em cursos

universitários. Destes dois são Caiuás e um Kadiwéu. Todos os demais são da etnia Terena.

Em Cachoeirinha existem cinco Escolas, sendo uma delas a Escola pólo “Coronel Nicolau

Horta Barbosa”, localizada na Sede, que tem cinco extensões, uma em cada setor: Babaçu,

Morrinho, Lagoinha, Argola. Esta Escola foi transformada em Escola Municipal Indígena pelo

decreto municipal nº 1224 de 12 de novembro de 2001, que transformou a Escola Pólo Coronel

Nicolau Horta Barbosa e instituiu as demais como extensões suas. O decreto municipal 1262 de 26

de agosto de 2002 substitui a designação “escola” atribuída às extensões no decreto 1224 por

“salas”.

As extensões são construções pequenas, com duas salas de aula, que se localizam

normalmente nas áreas centrais das respectivas aldeias. Do ponto de vista administrativo, as escolas

dos setores são subordinas a Escola Pólo, seguindo uma mesma organização pedagógica. O caráter

de Pólo atribuído a Escola lhe dá autonomia administrativa dão poder de escolha de um diretor.

A história da construção da “Escola Indígena” remete a processos locais e também

nacionais. Um desses processos é a desvinculação da educação indígena da FUNAI, e sua

transformação em atribuição dos poderes municipais. Parece que em Cachoeirinha a escola foi

administrada pela FUNAI até 1985.

A Escola teria passado ainda por período na rede estadual. Segundo os moradores, isso teria

se dado num momento em que Sabino Albuquerque era cacique. Ele tinha uma aliança com o então

prefeito, que foi rompida por desentendimentos políticos. Sabino teria conseguido o apoio do

Governo do Estado e teria, com o apoio do CTI, reivindicado e conseguido estadualização da escola

– exatamente para fugir ao controle que a prefeitura exercia, através dos mecanismos de contratação

temporária de pessoal.

119 FUNAI/AER-Campo Grande. Diretoria de Assistência – Departamento de Educação.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Nos anos 1990, o CTI desenvolve ações de incentivo a formação de uma associação de

professores indígenas em Miranda. A formação da APROTEM (Associação dos Professores

Indígenas Terena de Miranda) em 1994 indica o amadurecimento deste processo na região de

Miranda. Out ros esforços de organização dos professores Terena teriam se dado também nos anos

1980.

Mas o impulso final na direção da formação da Escola Indígena se daria no período 2000-

2001, quando lideranças indígenas negociaram tal questão junto a Prefeitura, durante o primeiro

Governo de Beth Almeida. As narrativas de alguns professores mostram como algumas questões

estavam colocadas: como autonomia administrativa e pedagógica e relação da escola com a

secretaria de educação e prefeitura.

O professor Genésio Farias, que foi diretor interino da Escola Indígena, narra assim a

historia da escola:

“Aí fizeram um convênio, contratando professores, né, pagos pelo Estado. Aí, com essa documentação do pedido, aí que transformou a escola, a escola indígena. Quer dizer, tem uma diferença de entendimento. Esse documento aí, nunca foi referido pelo Município. Nunca aparece no discurso, dizer assim – Ah, esse documento, que a gente começou a pensar isso... Elas nunca falam isso.

Nunca falam que foram vocês que tomaram a iniciativa.

Não, não, nunca. A idéia foi nós, né. Foi nós que fizemos a escola indígena. Agora, na verdade, foi assim, essa escola indígena que aconteceu... Nós pedimos pólo, mas pra começar ela teve uma reunião. Interessante que a gente não comentou, com medo de problematizar o assunto. Desde que, quando a liderança entrou pediram pra liderança que querem a escola indígena, nós não problematizamos pra não atrapalhar. Essa é nossa idéia. Aí o que a liderança falou – Isso é um pedido nosso há muito tempo. Nós queremos a escola indígena. Então, muito bem. Nós vamos fazer essa escola aí pela prefeita, dizendo que a gente vai fazer, mas quando que a gente não sabe. A gente não tem equipamento, a gente não tem teoria pra isso. Mas, vamos fazer, e der o que der. Vocês serão responsáveis, os professores. E ela disse uma frase, assim, interessante, falou assim – Se a gente não souber levar essa escola, a gente pega nosso violãozinho, põe no ombro, e a gente volta novamente começar a fazer o que era antes. Ela usou essa frase. Ela falando da inexperiência, porque ninguém tem experiência. E justamente era aquela argumento nosso quando dizemos que a gente não quer ir na frente da liderança, pedindo a escola indígena, porque sabemos que é complicado. Como é complicado até agora, não é fácil essa questão.

Como é que foi o papel da APROTEM em relação a isso?

Essa história, da... nós tivemos também relacionamento com ONG, né. Nós tivemos relacionamento, por exemplo, a CTI de São Paulo... Então, nós tivemos um... o cacique Sabino, ele teve uma aproximação com essa ONG. Me parece que foi em 80, eu não lembro quando que é, não. Então essa ONG fazia um projeto em nome do lugar onde eles trabalhavam eles conseguiam recurso, e entravam em contato com a liderança. E a liderança quando pensava na educação, o que ele pedia? Pedia uniforme... Porque a educação é uma questão muito

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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complicada. Falar dela, o líder falar da educação. Então, quando a Maria Luiza que era coordenadora da educação do CTI chegava, tinha mais conversa com ele, e eu como professor, eu não concordava. E não concordava. Primeira vez a Maria Luiza sabia que eu tinha um pensamento diferente, primeira vez que eu tive contato com ela, sentamos bem na frente daquela escola da... Porque nós não concordamos também como o Sabino fazia. (...) E naquele momento a proposta dela era justamente a APROTEM. Ela entendia que os professores devem se organizar para poder fazer frente a essa questão do problema aí, do Município. Tinha muito problema de evasão, naquela época, né. Muito problema de evasão. O problema era sério na escola. E a proposta dela era a criação dessa organização de professores, e nós concordamos, fizemos essa organização. Primeiro foi aqui em Cachoeirinha, depois nós puxamos para os outros. Aí, na fundação dela mesmo, foi com todos os professores de Miranda. Então, acho que, mais ou menos, é isso, a história da... Porque, na verdade a gente tem relação com essa entidade até agora, né, ainda tá esperando, depende da gente conversar. Porque a comunidade convidou ela para ser acessor dessa briga, só que a gente não está abrindo a porta, convidando ela, né, porque a gente vê muito problemática aqui, né. Ou seja, trazer ela, porque o Município, uma vez ela veio, fez reunião, né, nós fizemos reunião, tivemos muita briga com ela, então a secretária, ela não tem boa relação com ela. Então, com isso, a gente não puxa ela, mas de vez em quando tá mandando umas cartas aí, né – Como é que é, a gente vai trabalhar? Tudo bem, nós estamos aí pra trabalhar, né.

Quer dizer, a APROTEM surgiu desse diálogo com o CTI?

É, a questão da APROTEM. E às vezes ela reclamava que a gente não fala o nosso discurso, o CTI, né. Que a gente não fala. (Riso) Agora eu faço questão do trabalho ser, né... A gente apresentar o nome dele. Que na verdade fizeram um trabalho de incentivo, só, incentivo. E muitas brigas... E o problema maior, eu acho, não sei, acho que vem contra nossa cultura, umas coisas assim, né. A gente faz confronto com município, e ela sempre fazia essa proposta – Não pode abaixar a cabeça. Tem que enfrentar. E a gente nunca cedeu, até agora. Não sei se você está percebendo esse nosso posicionamento, em relação nós mandar carta, que essa nossa carta, a gente não cria essa briga assim, de frente a frente, né. Não sei se é cultura, alguma coisa assim... uma questão de verificar e saber, né.” (Genésio Farias, Abril-Maio/2003)

Ou seja, a discussão acerca da escola indígena é remetida iniciativa indígena dos caciques de

reivindicar o projeto de formação de uma escola “pólo” – independente das escolas rurais ou das

escolas municipais urbanas. A adoção dessa proposta pela prefeitura se deu através do dialogo das

lideranças indígenas, APROTEM e a prefeita Beth Almeida. A criação da Escola Indígena

possibilitaria a criação das eleições para a diretoria da escola, tornando-se mais um espaço de

disputa política dentro da aldeia. É importante observar os atritos em relação ao CTI e a diferença

de estratégia política, que não visava o enfrentamento mas a colaboração e o dialogo com a

prefeitura.

Outro professor indígena, Eliseu Lindolfo Sebastião, que foi o primeiro diretor eleito da

escola comentou:

“Olha, a construção, se bem que na verdade nós continuamos nessa batalha, nessa luta de conquistar realmente a escola indígena. Que, na verdade, o que está funcionando é uma experiência da prefeita, dona Bete, também da secretária, a professora Célia. Que na verdade ainda não é a escola indígena, não é essa a escola que a gente tá batalhando por ela. Continua sendo municipal – escola municipal indígena – mas comparando com a gestão anterior, já dá

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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pra perceber diferença. Que antigamente era considerado como se fosse uma escola rural... da fazenda. Não tinha essa diferença. Que a questão indígena é super diferente. Comparando a escola que fica na área indígena é diferente da que fica na área rural... nas fazendas, por exemplo. É superdiferente. E com essa administração da dona Bete, logicamente com a luta dos caciques e da APROTEM, que fizeram essa reunião, onde foi feita essa proposta de criar a escola indígena, aqui dos três povos. Aqui em Cachoeirinha, La Lima, Pílade Reboá. Onde a prefeita entendeu que é um pedido da comunidade, não é de uma pessoa. Onde a prefeita decidiu, teve essa ousadia, e até ela falou – Vamos fazer essa experiência, vamos juntos fazer essa experiência, se eu errar, todos vão errar, não vou errar sozinha. Então foi uma ousadia através da prefeita, e com isso foi criada a escola indígena e onde eu trabalhava também a portaria do reconhecimento junto ao conselho estadual de educação, e graças a Deus foi reconhecida à escola. Tanto a escola daqui, da La Lima, e da Pílade. Mas que não foi fácil não. Foi uma luta grande mesmo.

Qual a diferença do que vocês pedem em relação a escola indígena, com o que vocês têm hoje?

Hoje, o que dificulta, bom, não tanto agora. Mas pensando comparando a escola sendo considerada como escola rural, é uma escola onde acaba sendo manipulada, e essa manipulação, a gente tá querendo colocar um ponto final, a escola não ter liberdade de decidir sua própria política, o seu próprio plano político pedagógico. Isso é uma coisa que se a escola não tem, é praticamente uma escola sem objetivo. E o que nós queremos com isso? A escola que tenha autonomia e seja uma escola que tenha o seu objetivo, qual é a sua meta enquanto um estabelecimento de ensino, de educação. (Eliseu Lindolfo Sebastião, Abril-Maio/2003).

Nesse sentido, a autonomia administrativa e pedagógica reivindicada e a independência em

relação às lutas políticas locais era um dos objetivos da “Escola Indígena”. Entretanto o depoimento

do próprio Eliseu mostra que na realidade na gestão do primeiro diretor eleito existiam restrições a

essa autonomia. Tal problemática remte a própria historia da construção da Escola Indígena e

também as relações políticas dentro do município. No período 2004-2006 alguns acontecimentos

irão marcar mudanças nessas relações (especialmente as eleições municipais 2004 e o processo de

luta pelo poder dentro da Cachoeirinha).

A análise de algumas trajetórias individuais e situações de conflito (envolvendo professores

indígenas e poderes locais) permitirá uma compreensão do funcionamento da “co-gestão” indígenas

no nível local da política. O projeto da gestão indígena parece esbarrar nas relações de poder dentro

da Escola tomada enquanto espaço de trabalho. As relações entre trabalho e política serão aqui

consideradas do ponto de vista das práticas que as equacionam numa totalidade complexa e

dinâmica. Entendemos que esta vinculação é tão estreita que nos permite pensar na necessidade de

formular o problema das relações interétnicas, pelo menos em parte, em função delas. È preciso

considerar que a Escola é não somente um espaço simbólico e político, mas também um espaço de

trabalho, em que os índios buscam empregos assalariados. Sem considerar essa dimensão, é

impossível compreender o funcionamento da co-gestão indígena.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Iremos delimitar inicialmente o universo de pessoas consideradas, ou seja, de professores

indígenas Terena com quem conversamos e interagimos.

Professores Professores Professores

Marlene Lipú Maria Rosário Gonçalves Rui Sebastião Anésio Alfredo Pinto Nerci Julio Raimundo Sebastião Rodrigues

Celinho Belizário Luzinete Julio Aldenira Pinto Julio Josefina Muchacho Edílson Antonio Pedro Eduardo Candelário

Nilza Júlio Anilson Julio Marlene Rodrigues

Amarildo Julio Helena Antonio da Silva Isidoro Pereira Pinto

Maiza Antonio Aronaldo Júlio Olavo Pinto Silviana Augusto Vania Antonio da Silva Eulógia Aguiller Albuquerque 120

Temos aqui um número total de vinte e três professores indígenas. Selecionaremos algumas

entrevistas e informações levantadas junto a eles sobre esta a questão da relação entre trabalho e

política, que mostram as formas concretas pelas qualis a co-gestão se estabelece. No entanto cabe

antes caracterizar a própria forma de inserção destes indígenas nas relações de trabalho, o que acaba

condicionando e influenciando a própria dinâmica política indígena dentro das aldeias, a ação dos

professores e também a própria política local.

Pelo que conseguimos apurar, apenas 3 dos 23 professores indígenas são funcionários

públicos concursados, o que lhes garante do ponto de vista jurídico-trabalhista, estabilidade no

emprego, sendo que dois destes se encontravam aposentados em 2006 e um em atividade. Os outros

professores são “convocados”, ou seja, tem vínculo empregatício com a prefeitura regulado por um

contrato temporário, renovado anualmente mediante a convocação da prefeitura.

Iremos analisar três casos diferentes em que se coloca o entrecruzamento das relações de

trabalho, do seu lugar na vida indígena e as relações de poder. Todos os três professores são

membros de parentelas importantes e grandes dentro da Cachoeirinha. Começaremos relatando o

caso do professor Anésio Pinto, um dos três mais antigos da Cachoeirinha, que começou a atuar na

década de setenta como professor. Ao descrever sua história de vida ele fala:

Primeiramente, diga seus dados pessoais. Nome, nome dos pais, escolaridade.

“Meu nome é Anésio Alfred Pinto, tenho 45 anos, etnia Terena, professor há 25 anos. Meus pais são naturais de Aquidauana e eu também sou natural de Aquidauana, mas atualmente tô morando aqui no município de Miranda, meus pais chama Ricardo Pinto, falecido, e minha mãe Mariana Alfredo Pinto, falecida também. Meu pai teve só 4ª série primária, agora eu como filho dele terminei o magistério e cursei um ano de faculdade mas não terminei.(...)

Queríamos que você falasse da sua trajetória como professor.

120 Esta professora é uma Purutuye casada com um Esídio Albuququerque e mora em Cachoeirinha há muitos anos.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Em 1973 me fizeram um convite, a aldeia Argola me fez um convite para dar aula para os adultos. Antigo Mobral, onde qual eu dei aula 1 ano e 6 meses. Ai depois eu vi, eu casei com minha esposa, eu vi que tava meio difícil já de sustentar os meus filhos, depois eu desistir, depois de 1 ano e 6 meses, ai eu tive que sair para poder sustentar os meus filhos, por causa que o pagamento naquele tempo era muito atrasado, o Mobral num pagava assim mensalmente, então ai eu tive que sair. Foi quando eu sai para fazenda onde qual me procuraram, onde eles me localizaram, né, então eles me localizaram eu tava numa fazenda trabalhando, e ai eles mandaram me chamar...

Quem chamou?

Foi a secretaria de educação porque naquele tempo o Mobral era vinculado através da secretaria de educação. Ai eu voltei e passei lá depois, ai chegando lá em Miranda eles deram a oportunidade novamente para mim, ai eu comecei novamente. Ai eles tinham falado para mim que o meu pagamento já estava em ordem. Ta bom eu vou voltar, vou terminar mais estes 4 meses, para poder ter o fechamento dos meus diários essas coisas, né. Tá bom.

Ai depois de 2 anos eu parei, ai onde qual as pessoas viram o meu serviço, os próprios pais e mães dos alunos viram o meu trabalho, que estava bem assim progredindo através dele, porque os adultos já estavam aprendendo a escrever os nomes, ai eles pediram para mim trocar. Ai onde em 1978 me convidaram pra dar aula de primário até a 4ª serie, isso lá na Argola, onde eu comecei a dar aula pelo Mobral. Ai eu comecei, fiquei lá um ano na Argola na escola Felipe Antonio, ai onde esse pessoal daqui da aldeia Cachoeirinha onde eu moro viu o meu empenho, os meus alunos tava já bem já adiantado, desenvolvido, aí eles pediram a minha mudança para cá, isso foi já no ano de 1979. Aí eu comecei a dar aula aqui na Cachoeirinha, no ano de 1979. Aí eu peguei o multiseriado que era muito difícil naquele tempo,num existia professores que poderia dar aula para isso. Onde eu tenho a experiência de uma sala que é a multiseriada. Eu apanhei um pouquinho, mas eu coloquei em ordem. Eu tive que ser um artista, porque 40 alunos numa sala era muito aluno pra mim.

Ai comecei, comecei e fui embora, e nunca mais fui transferido para outro lugar. (...)

De 1978 a minha ficha funcional já estava já em andamento, e quando foi em meados de 1978 a minha carteira já foi assinada como professor, como professor efetivo no quadro permanente da secretaria de educação. Aí continuei, aí quando foi no ano de 2000, não, me engano, foi antes, na década de 80 o pessoal de Morrinho me pediram que desse aula lá também. Vendo o meu desenvolvimento, e eu tive que atendê-los eles lá também, ai eu fiquei dois anos lá no Morrinho, depois eu pedi a transferência novamente para Cachoeirinha onde qual eu fiquei até o ano de 2000.

Aí no ano de 2000, sabe que a política do setor branco, ela quando a gente não está na ala, no barco deles, ainda mais que eu era funcionário naquele tempo naquele ano, aí eles perceberam que eu era contra eles, e o que eles fizeram comigo? Eles pediram minha transferência, eles não pediram minha exoneração mas pediram minha transferência, e eu naquele tempo eu já estava doente de diabete, sem motivo nenhum, porque a minha transferência? E ai no ano de 2000 eu fui mandado para a José Balbino, Babaçu, a três km daqui da aldeia central. Eu fui, porque eu sou subordinado a eles, eu tive que aceitar essa mudança.

Aí fiquei um ano lá, na José Balbino, ai veio onde qual foi implantada a escola indígena no ano de 2001, fizemos eleição, todas as pessoas votaram que moram nesta extensão de Morrinho, Argola, Babaçu, Cachoeirinha, aonde foi lavrada uma ata, setecentos e poucos pessoas votando naquele dia a escolha da direção da escola, daqui do Pólo Coronel Nicolau Horta Barbosa. Isso ai já foi em 2001. Ai no 2001 eu concorri mas o professor Eliseu, mas a professora Josefina, mas o professor Edvaldo, mas o professor Genésio, então tinha 5 candidato a concorrência, para ser diretor dessa escola pólo Coronel Nicolau Horta Barbosa onde eu tive e 281 votos, o Eliseu teve 284 votos, então eu perdi por três pessoas a ele. E onde qual o Eliseu atualmente agora ele está sendo como diretor, e eu deixei de ser professor e eu continuei na secretaria, ainda estou na secretaria agora consecutivamente, estou indo para três anos já, então. (Anésio Pinto, 21/04/2003).

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O caso de Anésio é interessante. No contexto da cisão Cruzeiro X Mangao nos anos 1990, o

fato dele ter sido vinculado a facção de Sabino Albuquerque, teve algumas conseqüências. A

primeira delas foi que quando Sabino rompeu sua aliança com a Prefeitura, esta cancelou os

contratos de trabalho dos professores em represália e como forma de coerção. A articulação política

com o CTI possibilitou que a escola fosse transformada em Escola Estadual e dessa maneira

voltasse ao âmbito de influência da facção liderada por Sabino. Vemos aqui pela experiência

pessoal de Anésio, como o status ocupado pelo professor indígena dentro das relações de trabalho

se coloca como instrumento de poder de grupos político locais. O envolvimento de Anésio em

atividades políticas, nas eleições municipais, ou seja, no âmbito da política local, o colocou dentro

de uma dinâmica de poder em que os cargos políticos de Estado instrumentalizam a própria

administração no sentido de fazer valer seus interesses. E é o trabalho o ponto de articulação e de

incidência do próprio exercício do poder. A demissão, ou seja, a eliminação do sujeito do seu posto

de trabalho se constitui como um recurso de poder eventual a ser empregado para subordinar os

professores indígenas aos interesses de determinados grupos políticos. No caso de Anésio Pinto,

como este instrumento não estava disponível, foi empregado outro recurso de coação/punição pelo

não alinhamento político: a criação de dificuldades dentro do seu próprio trabalho.

Outro caso interessante é o do professor Edílson Pedro. Diferentemente de Anésio, ele é um

jovem que começou a trabalhar como professor há poucos anos. Sua experiência é distinta, como

podemos ver pelas suas palavras:

“Eu comecei estudando aqui em Cachoeirinha mesmo. Eu comecei a trabalhar aqui em 1998, antes de concluir o magistério, e eu estava estudando ainda, onde as lideranças chegaram em casa, disse que tava faltando professor aqui na aldeia, onde eu aceitei, sem ter formado ainda.

E como é que você vê a relação com a prefeitura?

Bom se eu falar individualmente da minha pessoa, eu não tenho esse conflito com a prefeitura... Quando a gente é funcionário contratado, cada um dos professores tem que ter a política. Os professores não podem se envolver muito na política, principalmente nos tempos de eleição. Esse é o nosso problema. Nós não temos aquela autonomia para seguir um determinado político, então devido ao trabalho. Se os professores contrariar a prefeita atualmente, ano que vem, no ano mesmo ele é demitido. Nos professores andemos conversado sobre isso, tem que tomar muito cuidado. (...)

Fique agora a vontade para fazer um comentário final ...

“Eu queria concluir com a questão da política. Eu tenho uns parente muito grande. E devido aos problemas que a gente tem, a gente tem que cuidar. E eu não deixo minha família se envolver, nem coordenar, as vezes político vai na casa da minha mãe, vai na casa dos meus irmãos para trabalhar, para ser coordenador. E onde meus irmãos primeiro consulta eu, porque eu sou dos irmãos deles que tem mais estudo, nenhum dos irmãos tem estudo, e consulta se pode ou não,onde eu falo que não deve. Porque no caso se ele ta trabalhando de repente perde, a oposição ganha, aí fica chato para mim, ai alguém fala “pô, aquele professor lá o irmão dele tava trabalhando para oposição. Por isso que eu evito a minha trabalhar na parte política”.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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O depoimento de Edílson é ilustrativo das formas das conexões existentes entre trabalho e

política. Vemos que a virtualidade do uso de mecanismos repressivos se dá não somente por conta

da ação do próprio professor na política, mas também devido a ação de suas redes de parentesco.

Destaca-se também o fato de no seu depoimento ele, pelo fato de ser professor, servir como uma

referência determinante para toda a sua família, quando esta queria se posicionar na política. Mas

não podemos perder de vista o fato que Edílson Pedro é filho de Mário Pedro, ex-cacique da

Cachoeirinha, e também morador da “vila cruzeiro”.

O alvo da “repressão” seria o próprio Edílson, que poderia perder o seu emprego na escola

da prefeitura caso seus familiares tomassem parte na política. Pelo menos este era o seu receio.

Aqui o mecanismo repressivo não operou, mas a sua existência foi suficiente para determinar o

comportamento político do professor indígena e de parte de sua família.

O último caso que analisamos é um pouco distinto dos dois primeiros. É o depoimento de

Aronaldo Julio, professor na Aldeia Argola:

Fala um pouco dessa situação que você comentou há pouco e que tipo de barreira vocês enfrentam com a prefeitura.

Esses tipos de problema a gente já havia enfrentado muito tempo e como foi aumentando os professores, as pessoas que terminaram e concluíram seu estudo, as própria liderança luta para que possa assim lançar essas pessoas. Então nós enfrentamos muito problema,muita barreira, a própria prefeitura faz com que nós aqui na área pudesse ter esse atrito. Porque era aquele negócio de política. Era assim por exemplo. Se a professora Helena não votar nesse prefeito na eleição dele ele é praticamente excluído. Não tem chance nesta gestão.

Então aconteceu isso. Ela é minha cunhada. Praticamente quem abriu essa oportunidade para ela fui eu, porque os próprios brancos da cidade, vereadores, já me conhecem, porque eu tenho assim trabalhado há muito tempo. Então lutamos assim, conversando, procurando chegar, fazer com que ela tivesse oportunidade de trabalhar, conversei, ai já partir para a política, né, tive que conversar com a família, com os pais, convencer a votar no tal prefeito para que ela tivesse uma vaga, e deu certinho.

E neste mesmo processo de trabalho que aconteceu, o próprio prefeito na época me deu essa confiança. Ele me perguntava, agora quem que vai ser o próximo professor, quem a gente vai colocar nessas escolas?, ele falava pra mim. E eu vi que essa situação que ele me deixou, foi uma situação assim muito difícil para mim, porque as próprias pessoas me apontavam como um politiqueiro, vamos dizer como politicagem. Só que é difícil a gente, né ... por exemplo, ele queria cortar o Celinho, mas ele não conseguiu, de acordo com a nossa inteligência,de acordo com nosso talento,

Porque eles queriam cortar esses professores?

Porque esses professores não votavam nele.(...) Então eu convencia ele, senão ele mandava pessoas de fora para trabalhar aqui. Então nessa situação que ele coloca a gente, a gente acaba sendo filmado pelos nossos próprios patrícios.

A própria professora ali a Nilza, que é minha madrinha, o próprio prefeito na época num queria dar oportunidade para eles, mas como é da mesma família a gente foi conversando, foi formando assim para que a gente possa conseguir convencer ele para agente poder assim trabalhar.

E depois foi criado esse grupo de professores, nós fomos aproximando cada vez mais, mas mesmo com essa criação, com esse grupo que a gente tem agente sofre muito problema, muita perseguição, muita política. Mas hoje eu posso dizer que nós temos conquistado muitas coisas.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

346

Nós temos uma vitória muito grande nesses dois anos. O próprio prefeito na época num dava oportunidade.”(Aronaldo, Março/2006)

O caso de Aronaldo Júlio revela como a posição pessoal de poder coloca o índio que a ocupa numa

situação em que tem de conciliar dois padrões de interesses e lealdade; para com o seu “patrão” na

política, no caso o prefeito, ou para com os seus parentes. É ilustrativo também de como certos

professores são recrutados como espécies de “cabeçantes”, ou agenciadores de trabalhadores

mediante as ordens do patrão político local. Inserido nas redes faccionais locais, os certos

professores ou lideres indígenas tem um poder grande sobre a escola e os professores que nela

trabalham, através da sua relação com a prefeitura.

Logo, a experiência da “co-gestão”, da “ocupação de espaços”, também se dá por meio da

concentração de poderes nas mãos de indivíduos e facções indígenas. Observemos que Aronaldo

Júlio é de uma das maiores famílias da Cachoeirinha, e irmão de Adílson Júlio, um dos líderes que

se envolveu na luta contra Lourenço pelo posto de cacique. A família Júlio também é relacionada

por alianças à família de Dionísio Antonio, lembremos que professora Nilza Júlio é casada com o

atual cacique Cirilo Raimundo Pinto e que grande parte dos professores são dessa família, mesmo

que seus membros atuem em diferentes facções políticas, mas nas duas principais, ligadas a

Dionísio Antonio e Sabino Albuquerque.

Os acontecimentos que se desenrolaram depois das eleições 2004 mostram exatamente a

evolução dessas contradições. No ano de 2004, às 19h, encontramos o professor Anésio Pinto numa

das ruas da aldeia e conversamos um tempo com ele. Eles nos falou das movimentações que

estavam acontecendo. Disse que estava para ser mudada a “direção da escola”, mas ao invés de

serem realizadas eleições o “diretor seria indicado pela prefeita”. Falou também que o Sabino

queria mudar o Chefe de Posto. Disse que o Sabino está com muita influência política, por estar

junto com a prefeita Beth Almeida. E que foi ele que indicou o nome do Eliseu para Chefe e que

também a prefeitura quer influenciar a FUNAI. Afirmou que o Sabino o sondou (ele, Anésio) para

assumir a direção da escola, mas que ele não sabia se ia aceitar, pois não queria ser indicado pela

minoria e sim pela maioria. Falou que a comunidade estava dividida, que ela até quer que mude o

chefe, mas o pessoal não quer o Eliseu, porque não “tem autoridade e pulso firme”. Falou também

que existiria um acerto para o Lourenço entregar o cargo e o Sabino assumir. Mas por outro lado à

comunidade quer outra eleição para cacique, pois uma boa parte dela não quer o Sabino

(perguntamos por que e ele falou que o pessoal acusa o Sabino de se apropriar de bens da

comunidade). Perguntamos por que queriam tirar o Argemiro do PIN e ele falou que o pessoal acha

que ele “não tem autoridade, não contem a venda de bebida alcoólica, não controla a violência”.

Ao final ele disse que apóia o Sabino para cacique e que o final do ano vai ser movimentado pela

mudança do chefe, do cacique e do diretor da escola.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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No início de 2005 e depois em 2006 tais processos se consolidaram. Lourenço, Argemiro e

Eliseu deixaram seus respectivos postos (de cacique, chefe de posto e diretor da escola). Cirilo

Raimundo foi eleito para o posto de Cacique e Edílson Pedro assumiu a direção da Escola Indígena

e um não indígena, indicado pela FUNAI, a função de Chefe de Posto. Esta configuração indica

uma mudança em relação a 2004: Edílson se articulava com Argemiro e Alírio e se lançou

candidato com o apoio de Ivan Paz Bossay, mas agora estava se articulando com a prefeita Beth

Almeida do PT. Ele falou: “eu sou político, já fui candidato e vou me candidatar de novo a

vereador”. Edílson teria sido indicado para a direção da escola por Sabino Albuquerque, em razão

de sua influência política junto a prefeitura, em troca do apoio de Edílson nas eleições para cacique.

Entretanto, Edílson deixou de apoiar Sabino no meio do processo e passou a apoiar o grupo de

Cirilo. De toda maneira, o alinhamento dentro da aldeia está atrelado ao bloco do PT no município,

já que tanto Sabino quanto Dionísio estão vinculados por alianças a prefeita Beth Almeida.

A indicação de Edílson Pedro por intermédio de Sabino para a Direção da Escola retoma

procedimentos os políticos típicos das facções dominantes, que exercem o poder de forma

monopólica dentro do contexto local. O fato de só haver uma eleição para a direção da escola

mostra a instabilidade do projeto de autonomia diante do contexo local. Dessa maneira, nos período

2005-2006, a experiência da “co-gestão” na Escola Indígena reativou os conflitos, e mudanças nos

cilcos de exercício do poder dentro de instituições expressam exatamente a luta entre facções

políticas pelo poder.

A criação da “Escola Indígena” por decreto municipal em 2001, foi a culminância dos

processos políticos, de colaboração e conflito, entre facções indígenas, elites locais e o CTI. A

criação da Escola Indígena expressa, num certo sentido, a extensão da co-gestão indígena no nível

local da política – das unidades base do órgão indigenista, como o PI, para instituições integrantes e

subordinadas aos poderes municipais, como a Escola. A análise da experiência da Escola Indígena

serve para pensarmos o funcionamento do projeto de “co-gestão indígena” dentro do contexto da

política local, marcado por relações de clientelismo. Mostra também as diferenças e similaridades

entre os padrões de funcionamento dessa co-gestão indígenas nas instituições federais (FUNAI)

para as instituições municipais (como a Escola e Secretaria Municipal de Educação).

A “co-gestão indígena”, uma estratégia política e projeto de futuro do grupo étnico, se vê

atrelado e limitado diretamente ao campo de forças e formas de dominação que se cristalizam no

aparelho de Estado, que finciona como empregador, como uma imensa máquina de administração

pública. E é exatamente esta vinculação orgânica entre relações de trabalho e política, entre a

condição de sujeição do indígena e a de situação de classe, que produz a complexidade das relações

interétnicas que os Terena vivenciam.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Além do mais o controle dos índios sobre a Escola, assim como no caso controle sobre a

FUNAI, é exercido pelas facções e seus líderes de acordo com seus interesses e de seus aliados nos

campos e arenas políticas. A luta pelo poder entre as facções se estende para a disputa pelo controle

e gestão das instituições locais e pelas relações clientelistas com as elites do município, que podem

servir para fazer uma política de oposição dentro da aldeia a uma facção dominante – como

aconteceu nos anos 1980/90.

6.3 - As formas de resistência: a Luta contra o Cacique Geral

Simultaneamente a inserção cada vez mais profunda e sistemática das facções indígenas na

política local, e a viabilização da co-gestão indígena, deram-se desdobramentos do processo de

resistência ao regime tutelar, que se alimentam e realimentam o faccionalismo Terena e o regime

clientelista; iremos agora estudar alguns desses desdobramentos. O primeiro deles é a luta contra o

Cacique Geral; o segundo é a Cisão na aldeia Argola; o terceiro é a “Retomada” de uma Fazenda

(que abrange territórios tradicionais) realizada pelos índios. Todos eles se encontram articulados

entre si, e os eventos mais dramáticos relativos a isto se deram entre 2003-2006, durante o período

que concentramos grande parte de nossa pesquisa de campo.

O processo de descentralização desencadeado pelos empreendimentos de formação das

novas aldeias e pelos conflitos de sucessão teriam uma outra expressão: a da luta das lideranças das

aldeias contra o poder do Cacique Geral. Neste sentido, o caso da Argola, e de certas lideranças

daquela aldeia, é emblemático, já que é lá que se verifica esta vontade de “autonomia” com maior

persistência.

Inácio Faustino, morador da Argola e uma das lideranças locais, uma vez nos falou também

que o Sabino na sua época de cacique queria mandar em tudo; controlava os recursos só para ele.

Inácio disse que ele tem uma casa boa e bastante gado lá na gleba da AITECA (que teria sido

construída com o dinheiro da comunidade). Também teria “acabado” com a caminhonete da

comunidade, retirando suas peças assim que sua gestão acabou (por isso ela teria ficado inutilizada);

a biciletaria do Lourenço também teria sido construída com dinheiro desviado do “Caixa

Comunitário”.Falou que as lideranças não são mais respeitadas pelos jovens que trabalham nas

usinas por conta disso, que eles ficam revoltados, que eles não podem se meter se tiver uma briga

porque não tem mais moral. Quer dizer, a figura do “Cacique Geral”, é normalmente associada a

este uso particularista dos “bens coletivos da comunidade”. Sabino é especialmente acusado de se

“beneficiar” dos recursos da comunidade, tanto na Sede quanto em outras aldeias. Adelino José

afirmou que Sabino, na época em que era Cacique Geral, queria comandar Cachoeirinha “como se

fosse sua fazenda, e ele o fazendeiro”.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Acusações de autoritarismo, abuso de poder e monopolização de recursos coletivos são

comuns contra os caciques ou ex-caciques entre os Terena. Na realidade, as acusações dirigidas

contra os caciques são muito comuns, e elas se aplicam normalmente a quase todos os caciques. É

difícil encontrar uma situação em que uma facção não faça acusações do mesmo teor contra a

facção dominante na ocasião.

Entretanto, a consolidação das novas aldeias e suas lideranças entre 1930 e 1970, foi

acompanhada de um processo de formação de uma política de resistência sistemática que resultou

em ações concretas contra o regime tutelar e a centralização política imposta através dele.

Na Argola ocorreu um debate sobre a questão do cacique geral e da necessidade de

formação de um PIN exclusivo para a Argola. Numa entrevista com Odir Antonio e Inácio no

acampamento Mãe Terra em 2006, Inácio nos disse:

Porque teve essa idéia de pedir esse posto?

“Eu era presidente do Conselho Tribal, ele era membro do Conselho, seu Odir, falando nesse ai, o pedido foi o seguinte, a comunidade da aldeia Argola já tinha em tamanho bom, já era suficiente para construir o Posto da FUNAI dentro da comunidade. E agente viu que sempre nós tava dependendo da Cachoeirinha, muitas vezes mesmo com o projeto da FUNAI, tinha que ser dependente da Cachoeirinha. (...) Quando chega um projeto da FUNAI, quem é mais beneficiado é a Cachoeirinha, pela quantidade das pessoas da comunidade, enquanto nós da Argola as vez não era beneficiado com o programa da FUNAI, isso aí que fez nós ter essa idéia, de querer construir um Posto da FUNAI dentro da comunidade. (Inácio Faustino, Mãe Terra, Março/2006).

Um grupo de lideres do qual Inácio fazia parte fez um documento solicitando que a FUNAI

extinguisse a figura do “cacique geral”, mas segundo Inácio “acabou que um pessoal (o Grupo do

Tomás), foi para a Sede votar nas eleições”, contrariando a vontade deste grupo. Desta maneira,

todos os setores ficam subordinados a Sede e votam nas eleições dela. Mas é somente o Cacique

Geral que controla o Caixa Comunitário, os recursos que entram (15 reais por trabalhador que vai

para a Usina, sendo R$ 7, 50 retirados do salário deste e R$ 7, 50 do lucro da USINA). Todo o

dinheiro que entra, fica na Sede, não sendo retornado nada para os demais setores. Os recursos da

FUNAI (trator, carro, grade, sementes e óleo) são controlados pelo chefe do Posto, juntamente com

o Cacique Geral. Inácio contou que o Sabino Albuquerque uma vez lhe disse: “Se vocês ficarem

independentes, não vão ter máquina nem recurso”. Sabino foi defensor da manutenção do Cacique

Geral, assim como o Argemiro, segundo o Inácio. Desta maneira, continua valendo a hierarquia de

poder entre os caciques dentro de Cachoeirinha.

Em 2001-2002, houve uma confluência de interesses de certas lideranças Terena de

Cachoeirinha, tanto as que tinham tentado criar um PIN na aldeia Argola, quanto as dos outros

setores.Numa conversa com Ramão Vieira, Cacique da Lagoinha, ele nos conta sobre o contexto

interno que motivou esta articulação:

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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“Que mais tarde, a gente tá percebendo que hoje a política tá avançada em tudo, aonde você vai é política, você quer fazer um projeto até mesmo dentro da área, existe política. Existe a política interna do índio. Hoje, existe as outras comunidades eles têm a política deles, mas não é uma política construtiva, é uma política que eles pega aquela visão lá do branco e quer trazer pra dentro da área, aonde não serve, porque a política do branco é organizada, e quando o índio, ele pensa que tá se organizando, ele tá criando um conflito dentro da área, então a gente presta bem atenção é nas associações. Antes não existia associações na área indígena, era só o cacique, existia o cacique que no tempo passado se chamava capitão. Então, esse cacique, ele fazia o projeto, ele elaborava tudo dentro da área, eu acho que naquela época existia menos política. Hoje, já existe várias associações dentro da área, onde cada um quer a sua parte do bolo, e onde envolve mais, também, a política do branco dentro da área, e onde acaba criando um tipo de um confronto dentro da área, e a gente percebe que hoje o governo tá dando mais prioridade para as associações, convênio, coisa e tal, tá certo. Só que pra nós uma associação, uma sociedade civil, como se chama, sem fins lucrativos, pra nós, ela é muito importante, mas só que por um lado, nós temos que saber trabalhar com ela pra não virar política dentro da área. Hoje, a gente percebe que aqui em Cachoeirinha existe um pouco de política, mas uma política interna dos índios. Isso aí dificultou a gente bastante também...”. (Ramão Vieira/2003)

Em certa ocasião Ramão reclamou do fato de a escola da Lagoinha levar o nome de

“Alexandre Albuquerque (nome dado por Esídio quando era cacique, em homenagem a seu pai),

dizendo que quem deveria ter escolhido o nome da escola era a própria comunidade. Estes

elementos reforçam a antipatia e a rivalidade com que os demais caciques e lideranças locais

encaram o Cacique Geral, muitas vezes.

A partir deste momento, os caciques da Lagoinha, Argola, Babaçu e Morrinho se articularam

para tentar eliminar a hie rarquia entre o Cacique Geral e os demais Caciques dentro de

Cachoeirinha, fizeram viagens até Campo Grande para negociar com o Administrador Regional da

FUNAI, e produziram um documento sintetizando as posições e vontade política destes líderes

quanto a esta questão. Um documento datado de 03/01/2002, na Administração Regional da

FUNAI, encaminha a solicitação da liquidação do Cacique Geral (no sentido de suspender os

poderes de representação das demais aldeias de Cachoeirinha). O documento foi protocolado em

11/04/2002. Ele diz o seguinte:

Aldeia Argola – PIN Cachoeirinha – Janeiro de 2002 Estamos informando a V.SA que nesta data referida,aconteceu reunião de quatro lideranças ou caciques: Zacarias Rodrigues da Aldeia Campão/Babaçu, Fernando Antonio da Silva cacique da Aldeia Argola, Ramão Vieira de Souza Cacique da Aldeia Lagoinha, Isidoro Pereira Pinto Cacique da aldeia Morrinho.Onde foi decidido e aprovado pelas lideranças a necessidade de cada Cacique trabalhar independente do Cacique Geral PIN Cachoeirinha. Cada uma dessas aldeias e suas comunidades participarão somente na eleição do seu respectivo Cacique. O maior argumento dos Caciques nesta reunião é com relação ao trabalho centralizado do Cacique Geral, respondendo por todos, tornando muito prejudicial às atividades dos caciques. Porém vale dizer e afirmar o respeito e a consideração com o Cacique de Cachoeirinha nas situações que envolvem as aldeias do PIN Cachoeirinha, continua sendo observada e sendo jurisdicionada pelo Posto Indígena Cachoeirinha. Porém salientada a decisão que cada Cacique de Campão Babaçu, Argola, Lagoinha e Morrinho, terão o poder e autonomia em responder toda as questões em respeito ao interesse destas respectivas aldeias junto a suas comunidades. Para afirmação e fins de efeito, abaixo assinamos: Fernando Antonio da Silva

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(Cacique Aldeia Argola); Zacarias Rodrigues (Cacique Aldeia Babaçu); Inácio Faustino (Presidente Conselho Argola); Ramão Vieira de Souza (Cacique Aldeia Lagoinha); Isidorio Pereira Pinto (Cacique Aldeia Morrinho), Fernandes Pereira (Presidente Conselho Morrinho), Jesuíno José (Presidente Conselho Babaçu); Aguinaldo Vieira Leite (Presidente Conselho Lagoinha).

Ou seja, o documento firmado pelos quatro caciques da aldeia Cachoeirinha e os Presidentes

dos Conselhos Tribais, solicitavam a extinção ou a diminuição drástica dos poderes do Cacique

Geral. Assim, o “trabalho centralizado do Cacique Geral” é apontado como um grande problema

para as lideranças locais. A implicação seria a realização de processos eleitorais independentes em

cada setor.

Na época em que aconteceu esta movimentação para a extinção do Cacique Geral, o então

Cacique Geral era Sabino Albuquerque, mas os efeitos do debate se estenderam até o início da

gestão de Lourenço Muchacho. Ele falou sobre as eleições de Cacique Geral de 2002:

Alguém dos outros setores veio votar na Sede? Alguns pessoal vieram. (...) Pouca gente. Mas eu acho que não é por esse lado não. Como indígena tem que ajudar o próprio indígena, porque é um Cachoeirinha só, Lagoinha, Morrinho, Argola Babaçu, tá dentro da Cachoeirinha, e não são aldeia assim particular, são o mesmo Terena... E porque o pessoal não vem votar? Parece que em 2001 cada setor fizeram documento e enviaram para FUNAI de Campo Grande pedindo independência de Sede de Cachoeirinha. Argola queria construir o Posto da FUNAI lá; Campão queria construir o Posto da FUNAI lá. Mas a FUNAI não tinha como fazer outros postos. Então ficou aquilo lá. Eles ficaram independente, então até agora ficaram na cabeça daquilo lá, “porque nós não precisamos da Cachoeirinha”, Campão fala isso, Argola falou isso, Lagoinha tá passando por essa tipo de fase agora, “não precisamos da Cachoeirinha”. Mas na realidade de todo jeito ele precisa. Porque Posto da FUNAI só aqui na Sede. FUNAI não tem competência de fazer na Lagoinha. Porque lá Lagoinha tem 40 famílias. Campão se tiver bastante tem famílias. Tão tudo incluindo para cá, na Sede. O único que ainda ficou ainda do nosso lado, da Sede, foi o pessoal do Morrinho. Mas qual foi à posição da FUNAI? A posição da FUNAI naquela época era Márcio que era administrador, aceitou a proposta, aceitou a proposta da Argola de ser independente da Cachoeirinha, mas porque que ele aceitou isso? Porque ele tinha a política dele por cima disso. A preocupação dele caso rejeitasse aquele documento, caso um dia se fosse mexido naquele cargo que ele ocupava, então essas pessoas apoiaria ele. Então a intenção dele era isso, não tinha intenção de trabalhar para a comunidade, a intenção dele era permanecer, sempre permanecer nesse cargo, como administrador. Mas houve momento que não conseguiu. Isso não aconteceu só na Cachoeirinha não, aconteceu isso no Bananal, Ipegue, então tinha essa jogada dele, ele apóia para ser apoiado depois na política das lideranças. Porque o pessoal tava querendo ser independente? O governo do estado pediu para comunidade que fizesse um projeto, um projeto único, mas na realidade cada setor fizeram seu projeto. Morrinho pediu um trator, Lagoinha, pediu um trator,

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Argola pediu um trator, Campão pediu um trator, Sede pediu um trator. Ai onde Governo do Estado avaliou essa questão do projeto, “Mas porque que a Lagoinha vai precisar de trator, porque que a Cachoeirinha? Então ele queria fazer a parte dele, mas a partir do momento que eles não conseguiram prejudicou todo mundo, eu não sei qual a intenção deles, eu acho que queria ser mais do que outro. Porque o pouco que nós temos agora o pouco que a FUNAI tem hoje, se a FUNAI não abrir as portas para o Governo do Estado, se o Governo do Estado não tem comunicação com o Município e tanto com as lideranças dos povo indígenas, essa porta vai ser sempre fechada. Agora se agente fizesse um projeto único voltado para esse comunidade geral, acho que o nosso projeto poderia ser aprovado, mas se continuar dessa forma o fulano tem um projeto, o fulano tem outro, o fulano tem outro, nos nunca vamos chegar e esse projeto foi aprovado. Mas isso não foi colocado ainda na cabeça da liderança do setor. E a FUNAI trabalha o seguinte, se o FUNAI vai mandar 10 mil litros de combustível, não vai mandar 10 para o Lagoinha, nem para o Morrinho, nem para o tal fulano ali, é 10 mil único, para todos. Ai vai 1500 pro Lagoinha, 1500 pra cá, 1500 pra cá, a sobra fica para Sede, ai o Cacique do Sede, do Cachoeirinha chama o presidente das associação e ele distribui. Mas se for assim, se continuar dessa forma, toda a comunidade vai ser atendido nesta questão, nenhum das pessoal que mora nas aldeia vai ser prejudicado, mas se continuar dessa forma, alguns vai ser beneficiado, alguns não será, então por isso que houve esse confusão, pedido de independência da Sede de Cachoeirinha. Os recursos que vem da FUNAI vão para o cacique geral? Então já vem no documento, tanto para Lagoinha, vem tudo discriminado. Quando chegar repassa.Semente por exemplo, quando vem semente de feijão, desce tudo para cá na Sede.. Então aconteceu assim de lá pra cá no nosso mandato. Aí fizeram um projeto de 40 rolos de arame. Vem discriminação no documento, é tanto pro fulano, tanto pro fulano, vai ficar para Sede tanto. (...) E o Caixa Comunitário? No meu tempo o destilaria veio muito pouco. A gente não consegue reformar o trator por exemplo. Não consegue reformar nada, Porque quando desce esse dinheiro, desce no valor de 500, 550, 600 reais.Quando vai dois grupos daqui, vai dar mil e pouco. Eu faço campeonato pro pessoal, assim no mês de dezembro, no mês de abril, ano passado, eu comprei dois vacas com caixa comunitário. Porque o prefeita naquela vez tinha dado cinco, e costume era dar 6, aí chegou naquela vez no final do meu mandado ela deu só cinco. Comprei dois vacas do Dionísio Antonio. Antigamente era muito dinheiro, aqui saia oito grupo. Hoje a destilaria passa por um grande exigência. Ai já não vai mais pra frente. Se a gente não fizer um documento para os Usineiros exigindo que eles cobrem do trabalhador, eles não cobram não. (Lourenço Muchacho, Março/2006)

As palavras do Lourenço mostram como agregada a demanda por autonomia, estava a

problemática do controle dos recursos (óleo diesel, semente, arame), de como ao mesmo tempo em

que se solicitava a “independência” em relação ao Cacique, se reivindicava a expansão do Estado,

através da multiplicação dos números de PIN´s dentro de uma mesma terra indígena.

É solicitada total “autonomia” aos caciques de cada um dos setores para responder por todas

as questões relativas as suas respectivas aldeias. Mas entretanto, tal documento solicita uma

intervenção de verdadeiro poder central – a FUNAI – no contexto da aldeia. Da mesma maneira que

a luta das facções normalmente terminava pela requisição da intervenção de “cima e de fora” (de

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cima porque é ao poder superior do Estado que se apela, de fora, porque se apela as instâncias

situadas fora do contexto local aldeão).

Mas tal problemática não seria resolvida naquele momento; de um lado, porque a

reivindicação e atendimento da FUNAI em relação a tal “autonomia” teve muito mais um caráter

formal do que prático. Em segundo lugar porque no final de 2002, o CIMI começou a desenvolver

um trabalho político dentro das aldeias Terena, visando agilizar o processo de demarcação de terra,

organizando seminários indígenas e incentivando o dialogo entre as diversas lideranças dos setores,

o que efetivamente aconteceu. Este processo duraria alguns meses, somente seria revertido no ano

de 2004, quando as questões da política local (especialmente as eleições municipais, mas também as

lutas faccionais, dissolveriam as alianças entre os Caciques). Na realidade algumas outras situações

sociais se colocariam – direta ou indiretamente – como desdobramento do processo mais geral de

descentralização faccional.

6.4 - As formas de resistência: Cisão na Argola

No início de setembro de 2004, estávamos percorrendo a aldeia Cachoeirinha, e fomos até a

Argola, no caminho encontramos Inácio Faustino, da AITRE, ele nos convidou para ir até sua casa

para tomar tereré e conversar. Ele relatou a principal novidade: a luta interna em Argola para retirar

o cacique João Candelário (sob acusação de desvio de combustíve l). Esta luta ainda estava em curso

naquele momento.

Em 21/11/2004, fomos novamente a aldeia Argola, desta vez fomos de carona com o

Argemiro que enquanto chefe de PIN acompanharia uma reunião da liderança da comunidade local.

A reunião estava em andamento. Quando chegamos, Adelino José fazia o trabalho de secretaria e

coordenação. Percebemos que se tratava de uma reunião para discutir as acusações contra o cacique

João Candelário, acusação de “desvio de combustível da comunidade”. O João Candelário falou e

se defendeu, dizendo para os presentes que estes faziam as acusações mas sem ter provas. Falou

bastante em idioma. O Adelino tomou a palavra então. Criticou as lideranças que se afastaram do

João por causa dos conflitos. Disse que “ter essas brigas era normal, que na outra gestão teve isso

também”. Falou que era preciso que as lideranças trabalhem mais com o cacique e que a

comunidade apoiasse mais a liderança. Falou que quando tinha limpeza somente os Candelário

participavam do trabalho. E falou: “eu estou com o João”. Falou também que a outra turma (a das

associações) queria tirar o João na base da violência, mas que eles não iam conseguir. Disse que

eles eram bons mas que se fosse preciso seria “wharê”, ruins e iriam pegar o pessoal. Depois falou

o vice-cacique Armando Antonio. Pudemos perceber que o João estava sendo afastado

temporariamente do seu cargo e que o Armando o substituiria. Esta foi a decisão da liderança ali

reunida. O chefe do posto também se pronunciou. Falando em idioma ele citou como funciona entre

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os “purutuye”, afirmando que depois do afastamento temporário, no caso de um prefeito p.ex, se

não forem provadas as acusações, ele volta ao cargo. E que assim deveria ser no caso do João, ao

final do prazo de quarenta dias. Estavam presentes na reunião o Rufino Candelário, Lindomar

Ferreira, Mauricio Candelário, Germano da Silva o Jânio de Arruda, e mais algumas pessoas, cerca

de quinze. Conversando com o Germano ao final da reunião ficamos sabendo que o administrador

regional da FUNAI esteve na Argola na terça-feira anterior, para discutir o assunto, e que a reunião

foi muito tumultuada. Mas acabou tendo efeito, já que o João Candelário foi afastado, como

queriam seus opositores, liderados por Tomás Martins, Eugênio Santana e Inácio.

Depois fomos à casa do Maurício Candelário e conversamos com ele e o Adelino que estava

por lá. Eles me falaram do caso do João, mas me contaram que estava ocorrendo uma

movimentação também para tirar o chefe do posto. Disseram que o Sabino Albuquerque e o

Lourenço estavam articulando isso, junto com o Ramão da Lagoinha. Eles teriam procurado a

FUNAI para pedir isso. Eles em resposta estariam indo a Campo Grande para exigir a permanência

do Chefe. O Lourenço e o Sabino estariam indicando o Eliseu, atual diretor da escola, para o cargo.

O Adelino falou também que chegou um recurso da FUNAI para Argola, mas que foi tudo para as

mãos do Lourenço. Disse que “ele quer ser cacique geral, que pegou os recursos, mas na Argola

ele não ia mandar, que ali tem cacique e ele tem que reconhecer”. Disse que as lideranças iriam

para Campo Grande também para falar com o Wanderley sobre isso, para ele reconhecer o cacique

da Argola. Os caciques Zacarias, Isidoro e Armando estão apoiando Argemiro e sua permanência

no PIN.

A situação social descrita acima mostra uma etapa de um conflito político estabelecido na

Argola em razão da vitória de uma facção nas eleições para cacique em 2005. O grupo de João

Candelário ascendeu politicamente acusando o grupo de Tomás Martins de monopolizar para seu

próprio benefício os recursos de toda a comunidade, especialmente “óleo e sementes”. Foi assim

que encontramos a aldeia Argola no ano de 2003, e que nos narraram os acontecimentos numa

conversa, o próprio João Candelário, Adelino José e Lindomar Ferreira. Eles falaram de diversos

assuntos, a necessidade da ampliação das terras de Cachoeirinha, política e conflitos na aldeia. João

Candelário afirmou: “As associações não tem trazido nada para a comunidade, os presidentes de

associação não tem essa responsabilidade”. Lindomar: “Os presidentes de associação estão

querendo passar por cima da liderança. As associação disputam os recursos que chegam”. Eles

afirmaram que o Tomás Martins, líder da APRAA teria vendido um trator da comunidade e mesmo

o óleo era revendido dentro da comunidade local, ao invés de ser repassado”.

Só voltaríamos à Cachoeirinha e à Argola em março de 2006. Mas encontramos ainda

desdobramentos desta situação social. Na Argola, em 2004 e 2006 uma “luta pelo poder” também

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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se realizava. A sua facção, entretanto, mantinha a luta com as facções encabeçadas por Tomás

Martins e Eugênio Santana, antigas lideranças da Argola.

João Candelário nos narrou o processo de luta política dentro de Argola. Ele começou

narrando como se tornou cacique: existia uma disputa interna na comunidade, entre o grupo da

AITRE, liderado por Inácio Faustino e a APRAA, liderado por Tomás Martins. Assim, Lindomar o

teria convidado para realizar uma articulação política (Lindomar é filho de Maria de Lurdes

Ferreira, que é filha de Lázaro Candelário, irmão de Januário Candelário) e chegaram à conclusão

que deveriam se lançar como candidatos, porque o Inácio perderia. Em entrevista realizada na sua

casa, com presença de seu pai, ele falou da sua história enquanto liderança.

“Primeiramente eu não tinha interesse de ser cacique, porque eu sabia que era um serviço voluntário, primeiro lugar porque eu tinha família, tinha filho pra tratar. E quem trabalha como cacique não ganha nada, somente assim pra comunidade, , não tem horário, a hora que o pessoal precisar, não tem feriado, não tem domingo e você tem que atender essa comunidade. Mas aí teve essa política, política interna aqui, e aí o pessoal tava procurando candidato para ser cacique mas ninguém queria não. (...)

Assim, João concorreu e venceu a Tomás Martins, que era acusado de monopolizar recursos

e atuar em proveito de seu próprio grupo. Contou também que ele João, durante o período inicial

em que era cacique, foi muito perseguido pelo grupo do Tomás Martins e do Eugênio Santana.

Estes teriam arrumado uma acusação de “corrupção” contra ele. É exatamente o processo que

conseguimos acompanhar. As “reuniões” da liderança com o Chefe de Posto e o Administrador da

FUNAI, são parte deste processo de luta pelo poder na Aldeia Argola que levaria a uma cisão em

2005-2006.

Mas novos acontecimentos mudariam as posições e as partes em luta. A disputa entre

Lindomar e João Candelário surgiu por conseqüência da disputa de 2004, quando João Candelário

foi acusado, pelo grupo liderado por Tomás e Eugênio, de desviar combustível do Idaterra destinado

à comunidade de Argola e vendê- la. Este grupo reuniu uma denúncia, com notas e documentos, e

protocolou na FUNAI um pedido de intervenção do Administrador. Foi feita uma reunião na aldeia

Argola com a presença de Wanderley. Nela o grupo de Eugênio e Tomás acusou João e suas

lideranças de ladrões de combustível, “que bebem combustível como quem bebe água”. Desta

reunião saiu a decisão de afastar o cacique João Candelário por 40 dias.

João falou que depois que o grupo do Tomás produziu um documento e encaminhou para a

FUNAI denunciando o “desvio de combustível”, sua reação foi a seguinte:

“Aí eu pedi pro Wanderley, administrador da FUNAI viesse aqui para fazer esse acordo par ver se o combustível foi desviado ou não, ai o Administrador falou ´a liderança do João vai pegar dois presidente de associação, pra fazer procuração, se ele desviou esse combustível ele vai ser afastado do cargo, eu dou prazo de trinta dias para vocês procurar, agora se vocês não achar, se não for justificado esse acusação, aí ele vai continuar assumindo o cargo. Como não

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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tem provas que ele desviou o combustível, e aí juntaram o presidente da associação, a minha liderança... Ai eu me afasto 30 dias. Vai procurar se eu desviei ou não...

Aí então ficaram quieto, quieto, quieto ninguém me falou nada mais.... Aí falaram o João saiu, agora quem vai assumir é o Lindomar. Pois é, eu aceito que o Lindomar vai assumir, mas agora eu quero que comprova que eu roubei, que eu desviei esses 3 mil litros de combustível. Eu voltei para minha liderança, e falei puxa vida, tem justificativa pro meu afastamento? Eu estou pronto de me afastar se tiver prova concreta que eu desviei combustível, eu deixo meu cargo, e falou, não tem. Se não tem esse prova eu tô sabendo que só tem política nesse meio. Então eu não vou entregar não, eu falei. Porque o Eugenio e o Tomás tava fazendo jogo política, me considerando que eu sou adversário da prefeita municipal. E junto com vocês também, eu falei para eles.

Aí a FUNAI aguardou resposta, venceu trinta dias, e num tinha, aí eu fui lá. Tem prova concreta, então se não tem eu vou continuar. Se eu não continuar, vão falar que os comentários são verídicos. Porque não é verdade, não teve prova concreta. Aí depois que eu afastei essas pessoas, meu companheiros mesmo que me acusou também, não apresentaram prova concreta. Eu ajudei, beneficiei ele, assim né (risos), nesta questão de combustível, tá aí, pode levar, tá precisando pode levar, só que eu não anotava o nome, por isso que eu caí do cavalo. Quando eles me acusaram também porque fizeram política do município, “não João taí com prefeita, vamos tirar ele”. Ai eu não deixei barato não, porque não era verdade (João Candelário, Março/2006).

Pelo que vemos pelas palavras de João, depois das acusações da facção rival, o seu grupo de

apoio entendeu que seria melhor afastá-lo do cargo, só que ele não aceitou esta decisão,

argumentando que se ele saísse estaria assumindo a culpa pelas acusações. Isto levaria a uma cisão

entre João e seu grupo de apoio. Mas observemos que João Candelário estabeleceu uma aliança com

a prefeita Beth Almeida do PT (sua participação e discurso no comício do Zeca do PT descrito

anteriormente mostra isso), contrariando parte de sua liderança. Em março de 2006 ficamos

sabendo que na Argola rivalizavam agora dois “líderes”, João Candelário como cacique e Lindomar

Ferreira,como líder respaldado por um grande número de famílias. Depois do desentendimento

entre João Candelário e seus líderes, os seus antigos oponentes o procuraram, como ele descreve

abaixo:

“Ai depois disso, o grupo que tava querendo me arrebentar, falou, João o negocio é o seguinte, nós não tamos querendo tirar você. Nós queremos fazer apuração de prestação de conta do óleo. Nós te respeitamos. Sua liderança que tá te afastando definitivamente. Ai eles falou, eu não vou aceitar não, ele falou. Nós te damos esse apoio e você vai. Nós não tamos querendo te tirar. E aconteceu muita coisa, sua liderança não teve competência pra apurar essa questão.

Porque nos não vamos tirar você, porque não tem justificativa pro seu afastamento. Ai começou aquela briga interna de Lindomar e Eu, Lindomar e Eu... A minha liderança reconhecia Lindomar, e o que era meu adversário me fortaleceu, porque eles sabia que se me afastasse acabava tudo. Ai eu troquei minha liderança. (...)

Ali depois desse grande luta que eu tive, ai eu troquei minha liderança, ai ficaram assim, eu continuei como liderança, a liderança que era minha antes começaram a se afastar de mim, começaram a não gostar de mim, a fazer política interna, houve uma maior divisão interna aqui, ai teve questão de retomada, que eu vinha fazendo trabalhando com Ramão, com Zacarias, como cacique., Ai depois disso, eu tava com ele, eu fui lá, o próprio meu companheiro não aceitava não de ser cabeça lá, pra não complicar eu vou embora pra a

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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aldeia. (...) Não era assim que eu queria, porque nossa luta como indígena é muito grande, é como eu falei pra você a nossa luta é muito grande.

A nossa luta pela autonomia não é fácil, a comunidade não vai chegar lá se não unir, a terra não vai ser conquistada, a demarcação não vai acontecer, a autonomia não vai acontecer... (João Candelário, Março/2006)

Este conflito aconteceu por conta de alguns milhares de litros de óleo Diesel destinados a

Comunidade pelo IDATERRA, e que ele, João Candelário, foi acusado de vender. No meio da

disputa, a sua facção retirou o apoio, tentou convencê- lo a abdicar do posto de cacique, mas ele não

aceitou tal decisão. Então o grupo que lhe fazia oposição passou a apoiá- lo. Na luta que se

estabeleceu entre João Candelário e sua antiga liderança, prevaleceu à força de João que substituiu o

Conselho Tribal, já que a FUNAI não interveio para retirá- lo do cargo “por falta de provas”. Não

podemos perder de vista também que a FUNAI em Campo Grande está sendo liderada por aliado do

PT, o índio Wanderley Cardoso, e que existem esquemas e redes que vinculam FUNAI e Prefeitura

Municipal. Logo, a permanência de João Candelário estava de acordo com os interesses das elites

locais e das facões indígenas que controlavam a FUNAI naquele momento.

Para perceber as mudanças nas bases de sustentação política, vejamos a compração da

composição do Conselho Tribal antes e depois da luta entre João e Lindomar. O seu primeiro

Conselho Tribal era composto da seguinte forma: Armando Antonio (vice-cacique); Lindomar

Ferreira (Presidente do conselho); Hilário Candelário 1º Tesoureiro (filho de Maximiano

Candelário); 2º Tesoureiro: Mauro Barbosa (filho de Paulo Barbosa); 1º Secretário: Adelino José; 2º

Secretário: Aldo da Silva; Membros: Mamédio Candelário, Mauricio Candelário, Nelson de

Oliveira e Anésio Lemes. Esta liderança foi substituída por outra, como conseqüência da luta

interna que se abriu entre Lindomar e João: Novo Conselho: Presidente: Miguel Antonio (tio de

Tomás e seu co-residente); Vice-Cacique: Fernando Antonio; 1º Secretario: Aguinaldo Martins; 2º

Secretario: Renato Farias: 1º tesoureiro: Reinaldo Bernardino; 2º tesoureiro: Jerônimo de Arruda.

Membros: Jânio de Arruda; Esídio Candelário; Antonio e Bernardo Santana (irmãos de Eugenio);

Isidoro Antonio, Marco de Arruda e Laurindo de Arruda.

Pudemos conversar com Inácio Faustino, que também apoiou João Candelário em certos

momentos, só que desta vez na tenda em que estava morando no “Acampamento mãe Terra”, na

Fazenda Santa Vitória. Ele falou sobre a situação política de Argola, de Cachoeirinha e do

Município e indicou que: “Quem comanda lá de cima e o PT, na administração da FUNAI em

Campo Grande é o PT, e na aldeia agora o chefe do Posto é do PT».

Mas agora a situação e diferente. João Candelário teria sido chamado para uma reunião com

a prefeitura, com Eugênio e Tomás, ali teria sido acertada sua permanência no posto de cacique,

recebendo um salário de 450,00 pela prefeitura com a condição de afastar sua liderança. (inclusive o

próprio João Candelário admitiu que ele foi chamado na prefeitura para discutir com Eugenio e

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Tomás). Foi o que aconteceu. João indicou novos membros para compor o Conselho Tribal. Inácio

concluiu que por isso «quem manda na Argola é a Prefeitura, é o PT.»

O conflito e a luta pelo poder na Argola levou a cisão na aldeia, com o deslocamento de uma

grande parte das famílias que estavam seguindo o líder Lindomar Ferreira para o “acampamento” na

Fazenda Santa Vitória e a permanência de João Candelário como Cacique com um outro grupo na

Argola, só teve este desdobramento pela intervenção dos grupos de interesse que atuam dentro das

instituições estatais, como a FUNAI e a Prefeitura, ou seja, pelos diferentes atores componentes do

campo e das arenas das relações interétnicas, e pela recomposição de alianças e oposições entre as

diversas facções indígenas. A própria “retomada” se deu como desdobramento destas lutas políticas

entre facções indígenas e suas diferentes estratégias, de maneira que o novo processo de

territorialização pode ser considerado como parte do processo mais geral de “descentralização”

faccional que envolve a “luta pelo” poder entre os caciques e facções e as oposições entre os

caciques de aldeia e o cacique geral, e estes e a FUNAI, como forma de resistência ao regime

tutelar.

6.5 - As formas de resistência: a ocupação da Fazenda Santa Vitória.

A cisão da Arolga se desdobrou no novo processo de territorialização, o da “retomada” da

Fazenda Santa Vitória, que compreende terras indígenas tradicionais identificadas pelo GT da

FUNAI. Lindomar, que era o presidente do Conselho Tribal, se juntou aos Caciques Ramão da

Lagoinha e Zacarias, que são reconhecidos como os três líderes do acampamento Mãe Terra.

Grande parte das famílias da Argola (cerca de 70% estão residindo no acampamento, seguindo a

liderança de Lindomar e apenas 30% permaneceu na Argola). Logo, a cisão política entre os dois

líderes implicou na formação de uma nova “aldeia”, dentro do acampamento, composta

praticamente pelos adeptos de liderança de Lindomar Ferreira (iremos retomar esta discussão mais

abaixo).

A “retomada” consiste num processo de mobilização política organizada por lideranças

indígenas com o apoio de certos atores que compõem o campo das relações interétnicas,

especialmente o CIMI, para ocupar parte das terras tradicionais Terena identificadas pelo GT da

FUNAI em 2001. O processo de mobilização foi desencadeado a partir do ano de abril de 2003,

quando o processo de identificação da terra indígena Cachoeirinha foi paralisado no Ministério da

Justiça. Em abril de 2003, o CIMI começou a promover uma articulação no município de Miranda,

visitando as diversas aldeias (Passarinho, Moreira, Cachoeirinha e Lalima), visando colocar em

discussão a organização das comunidades indígenas para realizarem pressão no sentido da

demarcação das terras.

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O Primeiro Seminário da Cachoeirinha foi realizado no dia 17/04/2003 na quadra

poliesportiva, que foi ocupada com cadeiras escolares dispostas em filas e a sua frente foi feita uma

fila de cadeiras destinadas a receber os palestrantes. Foi colocado um microfone e um amplificador

para facilitar o discurso dos presentes. As pessoas que iam chegando se acomodavam nas cadeiras

ou se sentavam nas arquibancadas da quadra, onde normalmente fica a torcida nos dias de jogo de

futebol de salão.Cabe comentar, que como em toda atividade do gênero realizada em Cachoeirinha,

os índios se valem do seu bilingüismo, usando alternadamente o Português e o Terena/Aruak.

Na mesa estavam os caciques, o representante do CIMI e algumas lideranças indígenas.

Coordenava a reunião Argemiro Turíbio, chefe do Posto, e alguns índios faziam o trabalho de

secretaria. Lideranças Terena da Aldeia Buritis, que haviam sido convidadas a participar do

seminário, não haviam chegado até o momento do seu início. Jorge do CIMI fez uma intervenção

inicial, descrevendo a “história” daquele acontecimento, falando que houve uma reunião com o

CIMI a convite dos caciques no dia 30/03 para discutir o apoio para a luta pela terra. Comentou a

história da luta dos povos indígenas, desde a conquista até a constituição de 1988. Depois de sua

exposição, alguns indígenas fizeram perguntas.

Falaram na seqüência Daniel Pinto, o Pastor Faustino, o ex-cacique de Argola Fernando,

fazendo questões de esclarecimento de trechos da intervenção de Jorge, e perguntando sobre o

processo de demarcação, sobre como ficaria a questão da propriedade da terra, se ela seria de cada

aldeia ou de todas, do porque da demora já que o GT da FUNAI já havia feito o relatório sobre

Cachoeirinha. Depois o chefe do PIN e o professor Rui fizeram intervenções, este último indagou

sobre a situação dos Terena do Município de Dois Irmãos do Buriti, que também estavam se

mobilizando pela terra. Às 13:00 h a plenária se subdividiu em grupos, correspondendo estes a cada

setor/aldeia existente em Cachoeirinha, para que formulassem propostas relativas a questão da terra.

O Plenário foi reconstituído as 14: 30 h, e agora com a presença dos índios de Dois Irmãos

do Buriti, que haviam se atrasado devido a problemas mecânicos do seu transporte. Falou

inicialmente Perverino Rodrigues, vereador, e disse que com ele estavam mais o professor Alberto,

o Cacique e mais”dois guerreiros”. Depois dele falou o presidente do Conselho de Buritis, que

comentou como eles se organizaram para fazer a “retomada das terras”, ou seja, a ocupação. Disse

que fizeram reuniões com os mais velhos para saber a extensão de suas terras, e depois optaram pela

retomada. O GT da FUNAI que realizou posteriormente os estudos, confirmou a expectativa dos

índios. Falou também da dificuldade, e de como eles operacionalizaram a ocupação, fazendo um

“alistamento” voluntário daqueles que concordavam em partir para a ação de retomada, através da

assinatura em dois livros ata: um com os nomes dos que concordavam com esta decisão e queriam

ir para ocupação e outro com os que não queriam. Na seqüência falou Alberto, professor, que

ressaltou que “não adianta esperar os órgãos, que devemos fazer por nós mesmos”. Fez alusão

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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também aos “guerreiros” da luta pela terra, incluindo aí o cacique e os professores, e também as

guerreiras, as mulheres.

Terminada a exposição dos índios Terena de Buritis (que era esperada com ansiedade e foi

muito bem recebida pelos Terena de Cachoeirinha, isto nós vimos pelos comentários e pela

expressão dos rostos atentos durante o discurso das lideranças de Buritis), o chefe do PIN,

Argemiro, tomou a palavra e conduziu a reunião para que fosse feita a exposição dos relatos dos

grupos. As 15: 00h foi exposto o relato do grupo do Setor Cachoeirinha (Sede), pelo cacique

Lourenço e Quintino Mendes. O grupo propôs a realização de outro seminário no dia 04/05/03, para

aprofundar a discussão e mobilizar um número maior de indígenas, pois acreditavam que o número

ali presente era ainda pequeno em relação ao que poderiam efetivamente reunir. Depois os relatores

do Setor Argola, as 15:13 h e Babaçu 15: 20 h deram prosseguimento ao seminário. Estes

apresentaram a proposta de, seguindo o exemplo de Buritis, ocuparem as fazendas, buscando

alianças fora da Aldeia e reunindo os indígenas de Cachoeirinha num movimento comum. Por fim,

Lagoinha fez a exposição de sua avaliação, e assim terminou a exposição dos grupos dos setores, já

que não havia no dia representantes da aldeia/setor de Morrinho. Terminada a exposição dos

relatores dos grupos, falou um representante da APROTEM, relacionando a questão da terra no

plano político pedagógico do universo escolar e do impacto que tal mobilização teria sobre as

crianças e seu estudo.

Por fim, o coordenador do Seminário, Argemiro Turíbio retomou a palavra para realizar o

encerramento da reunião, falou da necessidade da “ação de cada um”, de lideranças, presidentes de

associação, professores, estarem discutindo junto a seus colaboradores, irmãos de igreja e

comunidade, a questão da terra. Tal proposta foi acatada pelos presentes. Depois se deu a indicação

de uma delegação indígena para ir a Brasília, e foram indicados o cacíque Lourenço Muchacho e

Ramão Vieira. Foi constituída também uma comissão para organizar o II Seminário e encaminhar

as propostas, composta pelos caciques dos cinco setores e pelo CIMI. Enquanto os primeiros

ficaram com a responsabilidade de fazer a mobilização dentro das aldeias, o último ficaria com a

função de coordenar as alianças externas. O II Seminário ficou marcado para o dia 25/05. O evento

terminou por volta das 17 h, e nele estiveram presentes 80 pessoas, segundo as informações dos

próprios organizadores, tendo por base as assinaturas da lista de presença.

É importante observar que durante e depois do evento, os Terena comentaram um pouco

criticamente a reduzida presença dos moradores da Sede no seminário. A isto somam-se os apelos a

necessidade de união, de “esquecer as diferenças para caminhar junto para um mesmo objetivo”,

como em certo momento disse Argemiro, Chefe do Posto. Também o clima de tensão era visível, e

em diversos momentos se comentava o que representava aquela reunião na cidade, da pressão dos

fazendeiros, comerciantes e políticos locais sobre os índios, que em toda ocasião possível os

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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pressionavam na cidade para saber se eles iam “ocupar as terras”. Os índios alertavam para a

necessidade do sigilo, de não se comentar o que fora ali discutido. As lideranças lembravam que às

vezes os índios “se vendiam” por qualquer trocado, passando informações para os fazendeiros. Em

diversos momentos foi dado o conselho aos presentes de negar a existência de qualquer mobilização

interna se perguntados por alguém na cidade. Os indígenas notaram também com certa preocupação

a ausência de certas lideranças importantes, o que poderia indicar uma certa resistência à

mobilização e dificultá- la. Mas de toda forma os presentes, e boa parte moradores da aldeia Argola,

demonstraram grande disposição e entusiasmo para tal ação.

Depois deste seminário, foi realizada uma assembléia indígena em 2003, e mais três outros

seminários indígenas ao longo de 2004. Em certa ocasião, conversamos com o professor Genésio

Farias (na ocasião diretor interino da Escola Indígena) e ficamos sabendo por exemplo que a

reunião do final de 2003 teve o caráter de uma assembléia indígena e que houve, segundo Genésio,

um movimento na comunidade, que definiu um programa com objetivos para serem alcançados na

saúde, na educação, na terra. Genésio afirmou que houve um desentendimento entre as próprias

lideranças, o que teria paralisado os esforços, mesmo que momentaneamente. Ficamos sabendo

também que havia ocorrido um outro seminário indígena, no dia 05/09, e que reuniu dezenas de

pessoas. Ele afirmou que a política tinha atraído a atenção de todos e por isso o movimento estava

um pouco “parado”.

Na realidade, o primeiro seminário tinha sido possibilitado uma aliança entre os caciques do

cinco setores de Cachoeirinha na ocasião (Ramão, Lourenço, João, Isidoro, Zacarias). Estes

começaram a viajar em conjunto, realizar discussões antes e depois dos seminários. A intervenção

do CIMI no sentido de promover tal entendimento foi fundamental. Os “seminários indígenas”

deliberaram também pela formulação de uma política indígena que abrangesse não somente

questões relativas à demarcação da terra, mas também participação na política local (como por

exemplo, a indicação de poucos candidatos indígenas, com apoio geral da comunidade, para

garantir sua eleição).

Porém, esta aliança entre as diversas facções indígenas não subsistiu. No ano de 2004,

especialmente no segundo semestre, as alianças políticas com as elites locais, assim como a luta

pelo poder dentro da aldeia entre diferentes facções (a luta entre o cacique Lourenço e o chefe de

PIN Argemiro; a luta entre o cacique geral e os caciques dos setores, envolvendo questões relativas

o controle dos recursos e poder de representação política) ajudaram a desfazer as alianças. O

processo político dos campos e arenas terminou por dissolver as alianças estabelecidas e paralisar o

movimento da retomada.

Ao longo de 2005 a idéia de realizar uma “retomada” foi recuperada por algumas das

lideranças. Segundo informações colhidas em março de 2006, o processo de ocupação das terras

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teria sido desencadeado da seguinte maneira: algumas lideranças de Cachoeirinha (Argemiro, Mário

Albuquerque, Lindomar e outros, Edvaldo do Morrinho e Julião, Babaçu) que foram a Brasília

realizar uma audiência com o Presidente da FUNAI, para solicitar a intervenção na FUNAI “AR-

Campo Grande”, no sentido da deposição de Wanderley, por denuncia de “corrupção”; nesta

ocasião, a delegação (composta ainda por indígenas de outras aldeias do Mato Grosso do Sul), fo i

acompanhar o lançamento de um livro, e o presidente da FUNAI, Mércio Gomes, sabendo da

presença de índios de Cachoeirinha, mencionou que as negociações para a publicação da portaria

demarcatória estavam avançadas (entre lideranças indígenas, fazendeiros e FUNAI). Os membros

da delegação de Cachoeirinha protestaram, dizendo que a comunidade não estava sabendo, que era

negociação de “meia dúzia”. Questionaram, querendo saber quem estava à frente desta negociação.

Descobriram que quem estava realizando a negociação seria Sabino e Esídio Albuquerque, e que

Ramão de Souza estava envolvido (e ainda um corretor de terras de Miranda), que estaria sendo

articulado pelo CTI (Gilberto Azanha teria elaborado um projeto para levantar recursos no exterior

para “pagar os fazendeiros”). Com tais informações, o grupo retornou e denunciou tal negociação

feita sem o conhecimento da liderança e da comunidade. Isto teria precipitado a decisão de fazer a

retomada, liderada por Zacarias Rodrigues e Ramão de Souza. Sabino teria se manifestado contra a

“ocupação”, argumentando que o povo “correria riscos desnecessariamente”.

Em 28/11/2005, tal processo se consolidou: os índios Terena de Cachoeirinha realizaram a

retomada que haviam tanto discutido e idealizado. A retomada se deu em 1 das 53 propriedades

atingidas pela identificação de terras, na Fazenda Santa Vitória, que faz limites com a aldeia de

Babaçu. A área foi batizada de “Acampamento Mãe Terra”. O assentamento começou com vinte

famílias (do Babaçu) e a princípio os funcionários da fazenda realizaram ameaças e intimidações,

inclusive disparando armas de fogo contra os acampados. Depois da ocupação, começou uma

batalha judicial e política para a permanência dos índios na terra.

Em março de 2006, cerca de 10 famílias eram de Babaçu, outras 10 da Lagoinha e as

demais, cerca de 130, da Argola. Encontram-se inclusive agrupadas em locais diferentes do

acampamento, em frente à Sede da Fazenda, onde foram construídas as tendas de palha,

reproduzindo o mesmo padrão de concentração dos grupos domésticos encontrados nas demais

aldeias. Foi construída uma tenda para reuniões e uma OCA (que será o Centro Comunitário) está

sendo levantada. A casa da Sede da Fazenda e as casas dos capataze s estão sendo usadas pelos

índios: o cacique Ramão está morando em uma, e Lindomar em outra. O Galpão é utilizado para

guardar o caminhão de Zacarias Rodrigues e as sementes: alguns animais ficam amarrados ali.

O acampamento conta com a Coordenação Geral (Ramão, Lindomar e Zacarias).Existem

ainda 11 coordenações (agricultura, formação política e etc) responsáveis pela gestão dos animais,

atividades, ferramentas e recursos do acampamento. Pudemos presenciar inclusive um choque entre

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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as decisões dos coordenadores e os caciques. Um homem chegou solicitando o uso de um cavalo

para pegar um touro. O coordenador não autorizou, e o homem reclamou muito e falou com o

cacique Ramão; este com o apoio do Lindomar, autorizou a utilização do cavalo, dizendo que o

animal está ali para ser usado. Os líderes do acampamento decidiram investir numa roça coletiva

que será o principal empreendimento local.

Em entrevista com Zacarias, Lindomar e Ramão. Eles falaram da história da luta pela

demarcação das terras:

“Não é de hoje que nós o povo Terena de Cachoeirinha vem lutando de muito tempo. Vem lutando, todos aqueles que foram cacique, sempre lutaram, desde anos 1980, é que sentiram cada vez povo tava aumentando, que nós sempre vivia numa terra de 2600 hectares e o pessoal aumentando, nós sempre reivindicando. Ai chegou e nós pedimos o grupo técnico vim fazer levantamento . Aí veio em 1999, e de lá para cá fizeram estudo antropológico, foi levantado, 36 mil hectares que foi identificado, reconhecido pela FUNAI, aí foi publicado no diário oficial da União, no diário oficial do Estado, reconhecido pela FUNAI. A gente fazia seminário, mais seminário, assembléia, e fomos incentivando a comunidade de Cachoeirinha para lutar, para ter essa demarcação dessa terra de 36 mil hectares que foi levantado pelo antropólogo, pelo GT. Então em 2000, 2001, 2003, 2004, esperando esse resultado que vinha, e nós ficamos lá fazendo assembléia, e reunião, só que ficava só no papel. Até que um dia nós não esperamos mais pelo Governo lá de cima pra resolv er por nós ai nos decidimos por índio Terena mesmo para fazer essa retomada, para fazer pressão, para dar continuidade, para sair do papel. Ai foi ano passado dia 28 de novembro, a comunidade não acreditava mais reunião, só queria saber na prática, nós queremos ver na prática, vamos fazer retomada para acelerar o processo que tá parado na FUNAI. Então nós fizemos retomada e tamos aqui, (..) Hoje nós tamos com 175 famílias no acampamento e cada dia chega mais gente. Nosso objetivo é de acelerar o processo que tá parado lá em Brasília, E esse processo administrativo já foi na mão do Ministro da Justiça, depois voltou para FUNAI e agora tá parado. Fazendeiro entrou com recurso e tá na FUNAI por enquanto. Apesar de que nós já tivemos duas ações de reintegração de posse e nos conseguimos derrubar essas liminar... (Zacarias Rodrigues, Março/2006)

Em dezembro de 2005 a justiça concedeu liminar de reintegração de posse para o

proprietário da fazenda, João Proêncio de Queiroz, e a polícia federal realizou uma operação de

despejo dos índios. Estes decidiram realizar uma ação de resistência ao despejo, e conseguiram

concentrar cerca de 1000 indígenas para tentar impedir a ação policial. Em razão disso, a polícia

federal foi ao local, entregou o documento com a decisão judicial aos índios na porta da fazenda e

se retiraram sem tentar empregar a força para retirar os Terena do local. Tal fato é contado e

lembrado com muita satisfação e orgulho por todos com quem conversamos sobre o assunto no

acampamento.

Outro acontecimento importante e que os líderes contam com orgulho, é da manifestação e

ocupação da Delegacia de Polícia da cidade Miranda, por ocasião de um conflito que resultou na

apreensão de um veículo do acampamento.

“Cerca de 80 índios Terena, vestidos para a Guerra, portando inclusive lanças, cercaram o Comando da Polícia Militar em Miranda, na manhã de quarta-feira 01/02. Os indígenas queriam pressionar a PM a devolver o veículo FIAT Fire 2002 que estava em poder deles e foi apreendido. Segundo um dos líderes da manifestação, Ramão Vieira, Cacique da Lagoinha, o

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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carro apreendido havia sido liberado pela FUNAI para atender os Terena que invadiram a fazenda (...) Já a FUNAI alega que nunca cedeu nenhum automóvel e que o veiculo foi tomado por indígenas numa manif estação na aldeia. A movimentação de índios pintados para a Guerra portando lanças e cercando o Comando da Polícia Militar em Miranda causou medo em muitos mirandenses. Os menos otimistas chegam a acreditar que este é um perigoso precedente e que, se alguma atitude não for tomada, as conseqüências dos conflitos entre índios e produtores rurais podem ser graves”. (Índios se Vestem para Guerra e Assustam Miranda, jornal Guaicuru, 07 a 13/02/2006, Ano IV, nº 136121).

Desta maneira, a luta política desencadeada pela “retomada” teve uma profunda repercussão

no contexto municipal e regional; o antigo “medo do índio” foi reativado, como a manchete do

Jornal explicita. Os Terena passaram de “índios mansos” a “índios bravos”, para utilizar as

categorias do antigo discurso colonial.

Entretanto, o processo de “retomada” foi marcado por uma série de conflitos internos, que se

relacionam diretamente a problemática da descentralização faccional e suas formas. Muitos

indígenas de Cachoeirinha se colocaram contra a “retomada”,inclusive lideranças importantes. Na

entrevista realizada com Zacarias, Ramão e Lindomar eles comentaram:

Como é posição do resto da comunidade, o Rui falou que tem gente contra? “Quando nós tava fazendo reunião aldeia por aldeia, nós tava preparando para fazer essa retomada, Lagoinha, Babaçu e Argola, quem decidiu mesmo para fazer esse retomada foi esse três aldeia. Então até hoje tá esses três aldeias junto, três caciques junto, apesar que dois caciques, eu e Ramão, Lindomar é um líder que lidera as pessoa que veio da Argola. Não esperou cacique de lá, cacique de Argola por enquanto tá indeciso. (...) Esse contra que a gente fala é porque não tá entendendo como é o direito... Quando entender acho que eles vem.... Até hoje ele entende que a FUNAI é um órgão que vai incentivar eles. Mas do contrário, quando nós viemos para cá nós não dependemos da FUNAI orientar, se nós depender da FUNAI orientar nós, não orienta não. Ele fica naquela idéia de que o Governo vai orientar, vai depender da FUNAI, agora nós não, nós decidimos por conta própria, nós como índio decidimos que nós vamos e vamos. O que fez nós vim pra cá? Eu e Ramão nós fomos em vários encontro, encontro nacional em Brasília, trocando experiência com outro povo de outro estado, isso que fez nós aprender o que é nosso direito. Agora nós tamos aqui, e não temos dúvida, e não é qualquer pessoa que vem fazer nossa cabeça, nós sabemos quem é companheiro e quem não é companheiro.(...) O pessoal fala que o próprio índio é contra, juntaram ai foram na delegacia para fazer BO, mas só que nós resistimos. Policia Civil não podia entrar aqui, houve vários ligações para nós falando que polícia ia vim pegar nós aqui. (...) Foi os próprios índio, mas só que delegado telefonou para mim, delegado de policia civil, tem uns índio aqui pressionando para tirar vocês daí. (Zacarias Rodrigues e Lindomar Ferreira Março/2006)

Vemos o seguinte: algumas lideranças indígenas foram não somente contra a ação de

retomada, como acionaram a polícia civil para fazer a denúncia da ação e solicitar a retirada à força

dos índios Terena que acampara na Fazenda Santa Vitória. Alguns informantes disseram que quem 121 Esta e outras reportagens nos foram mostradas pelos líderes do acampamento, que mantém um arquivo com documentos sobre as ações indígenas.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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solicitou a ação policial contra o assentamento foi o chefe de PI Pilad Rebuá com apoio de Sabino

Albuquerque, Cirilo Raimundo e Zacarias da Silva (então ainda Cacique interino na Sede).

Na realidade, o “Acampamento Mãe Terra” pode ser entendido ao mesmo tempo como uma

das formas de resistência ao regime tutelar, como parte do processo de descentralização faccional

analisado anteriormente. Os conflitos que surgem durante o processo de retomada – que ainda está

em curso – são o resultado das diferentes estratégias políticas e questões colocadas em prática pelas

diferentes facções.

Em primeiro lugar, devemos remeter aqui ao “I Seminário Indígena” realizado em 2003.

Duas lideranças importantes não se colocaram a frente do processo, Sabino de Albuquerque e

Dionísio Antonio. Os dois na verdade se colocam contra a ação de retomada. Em certa ocasião

Sabino nos falou numa entrevista, quando perguntamos “O sr. Tem acompanhado os seminários?

“Não. Eu não fui mais porque o CIMI tá querendo fazer uma política. (...) então o CIMI ficou

baseado nisso aí, o trabalho já tá feito já, então é só cobrar do Ministro. (...) Eu não participei

dessa reunião porque não me avisa, não me comunica, só avisa pelo rádio... Eu não tenho

participado... O CIMI faz muita reunião porque quer ocupa, e o índio não quer, nossa idéia não é

brigar, nós deixamos pro autoridade resolver, nós ta aguardando, agora se não tiver jeito..”.

(Sabino Albuquerque, 2004). Dionísio Antonio também se pronunciou com um posicionamento

similar:

“Agora o grande sonho meu durante aquele tempo quando foi cacique era conquistar, trazer aquele área que tem aí pra fora, agora como morador, então agora, a partir desse ano nós tamos com 6 mil índios, nós temos que correr atrás, negociar com fazendeiro, com INCRA, Ministério pra ver se agente consegue essa área sem briga com vizinho, na negociação, assim que a gente tava querendo fazer agora a gestão do Cacique Cirilo com meu filho vice-cacique (...) Nós tá querendo não assim acampar, o que nós queria fazer, nós vamos fazer, sentar com fazendeiro, fazer uma mesa redonda, de lado de lá fazendeiro, negociação, pra INCRA, Ministério, assim que nós tá formando” (Dionísio Antonio, Março/2006).

Na realidade, o cacique Cirilo Raimundo atua dentro da facção de Dionísio Antonio, que

tem alianças políticas estabelecidas e de longa data tanto com a FUNAI como com certas elites

políticas locais no município (e que são proprietários de terra). Estas facções estão contra, e através

da suas conexões com a FUNAI e grupos políticos de Miranda, tentaram inviabilizar a “retomada”

da fazenda.

Além disso, existem outras questões relativas à dinâmica política interna de Cachoeirinha.

Analisando a composição do acampamento, vemos que apesar dela ser liderada pelos caciques da

aldeia Babaçu e Lagoinha, a “massa” de acampados é da aldeia Argola. Conversando com alguns

dos acampados, vimos que o plano deles era que a Sede da Fazenda fosse transformada num PIN, e

que esta seria a reivindicação da comunidade-local diante da FUNAI. Quem está liderando o grupo

da Argola, é Lindomar, que dentro da disputa na aldeia, rompeu com o Cacique João Candelário,

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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levando consigo as demais lideranças do antigo Conselho Tribal, como Adelino José e outros

conselheiros – o grupo que hoje apóia o João Candelário e ele inclusive, não estão participando do

acampamento. É emblemático que nenhum morador da Sede tenha ido para o acampamento.

Usa-se a retomada para reativar a luta contra o cacique geral. Foi no processo de luta contra

o cacique geral e de “cisão na Argola” que se produziram às forças políticas, alianças e estratégias

que possibilitaria a ação de “retomada”. Ramão e Zacarias, enquanto caciques participaram da

reivindicação de “autonomia” local das aldeias; as lideranças da Argola já haviam solicitado a

formação de um PIN na Argola. E são estas as questões que voltaram a ser colocadas pela

“retomada”.

O depoimento do cacique Ramão é bem ilustrativo e resume de maneira muito enfática e

rica a situação política de Cachoeirinha e do acampamento:

“A gente passou por aquele processo dos seminário em que os cinco caciques estavam junto, só que ai houve uma paralisação dentro da liderança da nossa área de Cachoeirinha, que parou o movimento nosso. Aconteceu seminário, foi delegado uma comissão e ai parou. Eu e o cacique Zacarias achamos que não devia parar, devia continuar com resultado, porque nosso povo, a gente conversava com várias lideranças, várias pessoas de idade, senhora, e eles comentavam que não queriam mais reunião, eles queriam ver acontecer na prática. E nós viemos a fazer a partir do ano passado, tomamos essa decisão, na expectativa das nossas lideranças entenderem aquele processo que já vinha acontecendo, do seminário para cá. Só que agente encontrou essa dificuldade dos outros caciques entenderem esse movimento, por causa que de inicio a gente veio eu e o cacique Zacarias, pra fazer a ponte, não querer ser assim o dono da história ... Mas apenas ser ponta de um processo que vinha sendo paralisado há muito tempo. Isto fez que a nossa liderança não entendesse esse processo... Eles acharam que nós estávamos querendo ser o dono. Só que nossa intenção não é essa. Eu vou falar um pouco da FUNAI porque ela tem sido o foco principal do debate do nosso povo aqui. (...) A FUNAI ela pouco tem feito visita aqui para nós. A gente acredita que a FUNAI sempre trabalhou numa política, qual é essa política, a da pessoa que fica em frente da FUNAI, no caso do administrador da FUNAI. Ele trabalha na política para ele permanecer no cargo. O que acontece, ele pega o cacique, manipula o cacique e o cacique tem que falar a língua dele. E isso tem acontecido na FUNAI. O que agente acredita é que o cacique da Sede da Cachoeirinha ele tem sido muito manipulado pela FUNAI, muitas vezes manipulado de certa forma de não acompanhar esse movimento porque a FUNAI trata de movimento ilegal. Que o movimento traz risco, que não é assim, que tem que esperar o processo rolar na justiça... Então existe uma política da FUNAI muito forte em cima da nossa liderança. E a gente como tem um pouco de experiência (...) em relação a essas coisas que rola dentro da FUNAI, a gente ficou ciente que nosso movimento é legal, desde que nós tamos brigando por uma coisa que é nossa. Comprovado que é nossa. A gente acredita que FUNAI tem manipulado nossas liderança, e não só as liderança de Cachoeirinha, como existe várias outras lideranças do Mato Grosso do Sul que tem sido manipulado até mesmo para dar o apoio a ele permanecer no seu cargo. Isso tem acontecido e não há duvida que tá acontecendo isso com o nosso cacique da Sede de Cachoeirinha. Falando um pouco do visita do Cacique da Sede aqui no acampamento, quando ele foi candidato a cacique ele teve aqui várias vezes, trabalhando aquela campanha dele para cacique, a gente até achou muito esquisito por causa que ele chegou prometendo que ia fazer tanta coisa aqui para o pessoal, como se fosse um político branco, como se fosse um vereador, um deputado. Eu mesmo fiquei surpreso...

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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O que aconteceu também que a gente acha que o Cirilo não gostou é que o nosso pessoal não ir votar lá na Sede. Nós não fora votar, essa decisão foi do acampamento. O acampamento fez sua assembléia, trabalhou a assembléia e fez a ata, dizendo que acampamento não ia participar da política interna, que era eleger o cacique. Então a própria comunidade da Sede já teria bagagem para eleger seu cacique. Agora sempre eles trabalha de querer o Cacique da Sede ser o Ditador, da coisa, falar bem claro, “Ah eu que sou o Cacique Geral, eu que mando em tudo”. Então a nossa comunidade não acredita nisso. Hoje nós temos uma luta, uma luta com nosso povo, que tá firme, buscando o nosso direito, e a gente vem perguntando cadê o Geral? O “Geralzão” era pra tá nessa hora na frente, aqui junto com o pessoal lutando. Então, a gente vem mais acreditar que tanto faz a política da FUNAI, a política dos brancos, infiltrado nesse meio, e até mesmo os próprios fazendeiros. Porque não os fazendeiros não investir por fora e falar “Ó você tem que ser dono da Cachoeirinha, você tem que mandar naquele Posto, você tem que mandar na Cachoeirinha, você tem que mandar naquele povo, tomar a decisão por aquele povo, para o que você falar, eles ouvir”. O fazendeiro pode bem fazer isso. Talvez do pessoal do acampamento não ir votar lá seja o motivo dele não estar aqui no nosso meio. Isso pode ser uma das causas. Mas a segunda ... é a política da FUNAI também que pode tá por trás disso, de não tá deixando participar junto conosco, se até mesmo que próprio administrador que é índio, eu teve uma conversa com o administrador que é índio e falei assim pra ele se porque não vai fazer uma visita ao acampamento, se não quiser vir como FUNAI vem como índio porque ele é índio, ele levo assim como se eu tivesse alguma coisa pessoal com ele .Hoje ele me nega até conversa, mas a gente não ta nem aí (Ramão Vieira, março/2006).

O “Acampamento” tomou a decisão de não participar das eleições para o “Cacique Geral”,

em uma assembléia realizada no dia 19/01/2006, registrada em ata. Lá é possível ver a

reivindicação de “autonomia” daquela comunidade local, formulada explicitamente. O “boicote” as

eleições para Cacique Geral foi um dos motivos e a resposta a oposição do Cacique e seu grupo a

ação da retomada.

O Cacique Cirilo Raimundo sofreu então uma forte oposição dentro do acampamento

(segundo Quintino Mendes, morador da Sede, quando os representantes da Funai e o Cacique Cirilo

foram no assentamento enfrentaram um bate-boca e chegaram a ser agredidos. Segundo os

comentários Cirilo teria dito: “Agora vocês me conhece, agora nós vamos administrar, eu sou o

cacique geral”, e o pessoal respondeu “aqui você não manda”). Assim, agregada a demanda de

formação de um novo PIN (demanda dos moradores da Argola) apareceu à reivindicação da

eliminação da figura do “Cacique Geral”, o seu não reconhecimento.

Desta forma, a luta contra o “Cacique Geral”, foi recolocada dentro da ação de “retomada”,

expressando mais uma vez, uma tendência à descentralização político-territorial dentro de

Cachoeirinha. A cisão faccional na aldeia Argola, por sua vez, também possibilitou a “massa” que

mobilizar- ia-se para realizar a ocupação da fazenda, e o assentamento pode ser visto também como

uma aldeia (ou embrião de aldeia) formado pelas lutas faccionais, pela “luta pelo poder” e disputa

entre diferentes estratégias políticas adotadas pelos indígenas. A retomada então foi desencadeada

por lutas internas entre facções indígenas pelo controle do poder local dentro da aldeia. A retomada

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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se deu num contexto de cisões políticas dentro da aldeia Argola e também de disputas políticas

entre os Caciques das Aldeias Babaçu e Lagoinha com o Cacique Geral.

6.6 – Co-Gestão Indígena e Poder Local: mudança e reprodução das relações de dominação.

Fazendo um balanço geral, podemos dizer que a formação de associações, a inserção na

política local e a experiência da co-gestão, bem como os processos de cisão e a retomada, fazem

parte de uma mesma dinâmica política.

A criação das “associações indígenas” expressava um jogo de posicionamentos dentro da

dinâmica de luta pelo poder local, e visavam dar forma as duas estratégias: a da co-gestão indígena

e a da resistência, dependendo da situação histórica. A formação da AITECA fazia parte de um

processo de luta de uma das facções indígenas contra a FUNAI, contando com o apoio do CTI; a

criação da ACIC foi uma resposta de outra facção, a nova conjuntura que se colocava, e é

sintomática que sua fundação tenha se dado dentro Posto da FUNAI. A formação das “associações”

dentro de Cachoeirinha foi um dos meios encontrados pelas facções subordinadas de fugir ao

monopólio e centralização impostos pelo Estado através da política indigenista implementada pelo

SPI/FUNAI. Num certo sentido, a formação das “Igrejas” (e o caso da UNIEDAS e da aldeia

“União” em Miranda, pelos índios expulsos do Bananal por conta da revolta dos anos 1930)

representa um movimento similar. As “associações” e “igrejas”, cada qual em seu contexto, assim

como a reivindicação da “extinção do cacique geral”, expressam uma estratégia de resistência

política indígena, que queriam fugir a centralização política imposta e buscar a afirmação da

“capacidade política indígena” – contra toda estrutura simbólico-cultural da idéia tutela - dando

aspecto formal ao ideal do protagonismo étnico. Mas também pode ser um eficaz meio de viabilizar

a gestão indígena, que é concebida sempre a partir dos grupos vicinais compostos dentro de certas

parentelas. A criação das associações poderia estar a serviço da co-gestão ou da resistência

indígena. O principal objetivo dessas associações era criar condições para a gestão indígena da

produção(dos recursos naturais e maquinário, antes comandado pelo PIN da FUNAI) e políticos,

como a Escola – através da indicação de administradores indígenas. A busca de espaços de

representação política na câmara de vereadores segue também esse projeto de criar uma co-gestão

indígena no nível local. As técnicas de resistência cotidiana – especialmente o boicote e a

desobediência - foram empregadas sistematicamente como meios de escapar ou confrontar

sutilmente os poderes exercidos pela FUNAI ou por seus colaboradores em facções indígenas e

elites locais. E assim, podiam estar também a serviço de um projeto de co-gestão.

Todos os acontecimentos apresentados na etnografia do processo político, se inter-

relacionam; a formação da associações indígenas é um produto da luta entre facções indígenas e um

meio de viabilizar o projeto de gestão indígena; a inserção na política local, se dá através tanto da

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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participação nas eleições municipais quanto na administração pública, como é o caso da gestão da

Escola Indígena. E os demais acontecimentos (a luta contra o Cacique Geral, a cisão na aldeia

Argola e a Ocupação da Fazenda Santa Vitória), expressam em termos etnográficos mudanças

importantes nas relações de poder e nos modos de dominação. Expressam também a evolução das

formas cotidianas de resistência contra o regime tutelar para formas de resistência aberta, e ao

mesmo tempo as tensões e contradições entre essas política de resistência e o projeto de co-gestão

indígena que muitos setores da sociedade Terena sustentam. Assim podemos considerar que:

1) A vontade de conseguir a autonomia, da parte das comunidades locais e caciques das aldeias

Babaçu, Lagoinha, Argola e Morrinho, expresso pelo movimento de reivindicar a “extinção do

cacique geral”, é uma ação contra uma das principais bases do regime tutelar tal como constituído

na situação histórica de reserva. Lembremos que a centralização foi imposta pelo SPI/FUNAI,

através do reconhecimento (e investidura) de uma única “liderança política” para cada território

indígena. Esta forma de centralização estatal, que se sobrepôs a organização social e política

indígena levava necessariamente a formação de uma “aristocracia indígena”, que monopolizava o

controle dos recursos, do patrimônio e dos poderes dentro da aldeia, mesmo que a duração de tal

aristocracia fosse efêmera. Ao questionarem o Cacique Geral, os Terena de Cachoeirinha estavam

atacando a centralização e o monopólio da representação política, do controle social e da gestão

econômica, que consistem nos poderes outorgados pelo Estado ao Cacique. Os recursos que são

colocados à disposição do Cacique também são decisivos: a gestão dos veículos, tratores e

maquinários; do óleo diesel, semente e outros implementos agrícolas; do armazém da comunidade;

dos projetos que são aprovados e etc. Tudo isso faz com que os interesses das demais aldeias entrem

em contradição com a política monopolista de gestão do patrimônio indígena por uma aristocracia

local.

2) A cisão na aldeia Argola mostra, por outro lado, as contradições que marcam este processo. Ao

mesmo tempo em que se coloca uma demanda por autonomia se reivindica a expansão da

estatização do território indígena pela multiplicação dos PIN´s. A vontade de criar um “posto da

FUNAI” (o que implica a extensão de estrutura burocrático-administrativa estatal), mostra como a

autonomia reivindicada pelos Terena não exclui a demanda pela própria estrutura de “proteção e

controle” do órgão tutelar; quer dizer, como a FUNAI reúne as duas dimensões, proteção e controle,

poderíamos pensar que na verdade a demanda é apenas pela “estrutura assistencial”, mas na verdade

não é isto que acontece, pelas próprias situações sociais analisadas. A “proteção” é indissociável do

“controle” estatal, e na realidade, a demanda por uma implica na aceitação – tácita ou não – da

outra.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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3) Vimos também que apesar dos Terena realizarem uma crítica prática e discursiva da

centralização política e da lógica monopolista imposta, esta crítica é muito mais direcionada para os

modos de distribuição do poder dentro do campo de atividades em que estão localizados do que ao

regime tutelar em si. O projeto de co-gestão indígena não exclui a demanda pela intervenção estatal

e sua contínua legitimação, nem a colaboração com os poderes estatais e elites locais e regionais,

nem a subjugação de outras facções indígenas. Na realidade, esta intervenção estatal é associada

diretamente à realização de tal “ideal”, no sentido que os poderes e a intervenção do Estado são

“manipulados” para desequilibrar a correlação de forças entre as diferentes facções que lutam pelo

poder dentro da aldeia. Em todos os casos estudados ao longo desta tese nós podemos ver

exatamente isso; quando analisamos a luta pelo poder entre o cacique Lourenço Muchacho e o

chefe de PIN Argemiro Turíbio, vemos que é realizada uma solicitação a FUNAI para “mudar o

chefe”; quando o contra-golpe é dado, os grupos que se opõem a Lourenço e apóiam Argemiro

encaminham um “documento” à FUNAI solicitando a intervenção na aldeia e mudança do cacique.

Nos anos 1980, o conflito entre as facções do Cruzeiro e Mangao, vemos que são utilizadas pelos

índios as mesmas técnicas que a FUNAI: expulsão da aldeia, prisão de opositores e etc. O grupo de

João Niceto Júlio e Dionísio Antonio solicitam a FUNAI e remoção de Sabino da aldeia, e são feitas

diversas solicitações de intervenção no contexto da política aldeã; vimos que nos casos estudados

acima (a luta contra o cacique geral, a cisão na Argola, e a ocupação da fazenda Santa Vitória)

existe uma contínua demanda pela intervenção estatal; apesar de se oporem à centralização, é na

FUNAI que se solicita a “extinção do cacique geral”, quer dizer, não se questiona a investidura

estatal, nem a intervenção da FUNAI como um organismo central em relação à aldeia, ao contrário,

ela é naturalizada; no caso da Argola, quando surge a luta pelo posto de cacique, uma das facções

solicita a intervenção da FUNAI para derrubar João Candelário, e este solicita a FUNAI a fixação

de regras para resolver os conflitos locais. As reuniões na aldeia com Wanderley, o Administrador

Regional mostram isso; no caso do Acampamento Mãe Terra, a demanda pela intervenção do

Estado da parte das facções que se opunham à realização da “retomada”, aparece no acionamento da

polícia civil para prender os líderes e despejar os acampados (o que se somou as ameaças de

incendiarem o acampamento).

4) Isto significa duas coisas: em primeiro, lugar, o imaginário do “índio modelo” (dócil e

subserviente) aplicado aos Terena pelos discurso engendrado pela política indigenista, na realidade

se transpôs tanto para as relações sociais quanto para o discurso acadêmico.Este imaginário precisa

ser analisado criticamente e é refutada pela experiência etnográfica. Os índios Terena na realidade,

assim como inúmeros outros grupos indígenas, inclusive os “guerreiros” Guaicurus, sempre

oscilaram entre uma política de aliança/colaboração e guerra/resistência contra os poderes estatais.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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E esta colaboração não exclui as formas cotidianas de resistência, assim como uma política de

“guerra” não excluía formas cotidianas de colaboração. Esta dinâmica, dentro da situação histórica

de reserva, não foi extinta, mas re-configurada. Depois da formação do Estado-Nacional brasileiro,

com a incorporação dos territórios do interior, a guerra passou a ser um recurso distante do acesso

dos índios; mas “revoltas armadas” não foram completamente abolidas, como vimos, por exemplo,

em Bananal nos anos 1930. Dentro da reserva de Cachoeirinha, vimos que as formas cotidianas de

resistência tem como alvo central os modos de distribuição de poder, e não o regime tutelar em si,

mesmo que o discurso por meio do qual tal resistência é formulada, aponte para a crítica de tal

regime. Como a política de controle do regime tutelar depende da colaboração de

segmentos/facções indígenas (alimentando a formação de uma aristocracia indígena), a resistência

Terena, termina com a derrubada da aristocracia indígena e sua substituição por uma outra, que irá

cumprir um papel estruturalmente similar (mas que pode ser historicamente diferente122) e utilizar

as mesmas técnicas empregadas pelas outras facções. Es ta dinâmica de “luta pelo poder” entre as

facções indígenas permite que ao mesmo tempo ocorram mudanças importantes nos arranjos

administrativos e balanceamento de forças dentro do regime tutelar, mas que este seja reproduzido,

tanto do ponto de vista das interações sociais quanto formas simbólico-culturais. Mas surge uma

contradição entre a estratégia indígena de co-gestão e as formas cotidianas de resistência, já que a

primeira leva a manutenção da ideologia e política que constituem o regime tutelar. As mudanças

sociais nos modos de distribuição do poder somam para a reprodução do sistema de poder, numa

dialética de mudança/reprodução social.

5) A política de resistência ao regime tutelar expressou em seu interior a lógica segmentar

encontrada na organização política Terena desde o período colonial: a da constituição de “bairros”

que reconheciam seus próprios “líderes ou chefes”. E da mesma maneira que na “situação de

diretoria” os índios Terena se relacionavam a partir destas unidades segmentares com outros grupos

indígenas e com os colonos e poderes estatais, as facções constituídas dentro da situação atual

operam de maneira similar. Vimos que a estratégia das facções na sua política de resistência ao

regime tutelar se expressou de diferentes maneiras: a aliança com as Missões/Igrejas, a aliança com

ONG´s, a aliança com elites, lideranças e grupos políticos locais e regionais. Estas alianças abriram

o leque de possibilidades políticas dentro do campo e arenas das relações interétnicas. Ao mesmo

tempo, abriu-se espaço para a introdução e/ou generalização de novos modos de dominação no

contexto da política das aldeias. As alianças permitiram a formação de relações clientelistas dentro

da política local, que sendo à base das alianças entre índios e instituições estatais, elites políticas e

122 É o caso da facção do Sabino, que nos anos a 1980/1990, utilizando de técnicas e formas de organização similares as outras facções, cupriram um papel importante na oposição ao regime tutelar e na reivindicação de terras.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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etc, permitia o fortalecimento de determinadas facções na sua luta pelo poder dentro da aldeia. A

“Prefeitura” e a “Câmara” (e o conjunto das instituições de Governo na esfera local) passaram a

ocupar um lugar tão importante quanto à “FUNAI”. Assim se de um lado o regime tutelar fo i

modificado pela estratégia de resistência indígena, obrigando o Estado-Nacional a reconhecer a

capacidade política indígena, emergiu uma relação e um modo de dominação clientelista

paralelamente àquele. Esta é mais uma das antinomias que compõem o processo de mudança e

reprodução das relações de poder entre os Terena e o Estado brasileiro.

6) Ao mesmo tempo, as formas cotidianas de resistência se materializaram numa política de

resistência aberta ao regime tutelar, quando os Terena lançaram um processo de territorialização

dirigido por eles mesmos, com a ocupação de terras. Essa técnica de luta política combinada com

outras (ocupação de prédios públicos, retenção de viaturas pela força e etc), se deu pela evolução

dos conflitos faccionais e da luta contra a centralização política dentro de Cachoeirinha. O processo

de “retomada” apresenta outras variáveis: a do aprofundamento das formas de resistência, com o

acirramento dos conflitos entre “índios e FUNAI” e “índios e elites locais”. O conflito colocou em

oposição direta facções indígenas, FUNAI e o Estado (através de diversas agências, como o

Ministério da Justiça, a Polícias Federal e Civil e etc). A aliança com o CIMI e entre os líderes de

diferentes comunidades e facções, as ações de ocupação de fazenda, ocupação da delegacia de

polícia, bloqueio de rodovias e etc, marcam como o “protagonismo étnico” se expressa também

através de tais técnicas e pela política de resistência aberta (as palavras de Zacarias Rodrigues, de

que índios resolveram fazer por si próprios sem esperar o Governo, mostram o tipo de imagem

associada ao conflito político). A ação coletiva dos índios Terena de Cachoeirinha permitiu a

reativação da imagem do “índio bravo” (como no artigo jornalístico “Índios se Vestem para a

Guerra e Assustam Miranda”), e a articulação de “campanhas ideológicas” contra os índios. A

análise do cacique Ramão, indica etnograficamente, que a “estrutura de poder centralizada” (um

cacique geral) pode servir aos interesses dos fazendeiros e elites locais na sua luta contra as

ocupações de terra pelos Terena, da mesma maneira que serve aos interesses das facções que atuam

dentro da FUNAI, no sentido de manterem-se no poder dentro do órgão tutelar. Esta centralização,

manipulada por elites burguesas e burocracias estatais, somam para a manutenção das condições

econômico-sociais dos índios, sua condição de subalternidade (através do controle dos contratos de

trabalho e dos padrões de acesso ao território e recursos naturais). Logo, serve aos interesses da

burguesia rural e da política fundiária do Estado brasileiro. É interessante observar que o deputado

Arroyo,que visitou Cachoeirinha nas eleições 2004 (ver situações descritas), foi um dos principais

articuladores da campanha contra a demarcação de terras no Mato Grosso do Sul, e ele tem diversas

conexões dentro das aldeias do estado. Mas dentro do acampamento as relações clientelistas

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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operam, especialmente em torno da Prefeitura (já que Ramão e Zacarias) são aliados políticos de

Beth Almeida.Ou seja, as formas cotidianas de resistência e a resistência aberta coexistem com

formas cotidianas de colaboração, inclusive são promovidas pelos mesmos atores que dependem do

manejo eficaz das duas para manterem-se como líderes políticos.

O projeto de “co-gestão indígena” se manifesta nos esquemas de poder local (e estamos

compreendendo por isso, as relações no campo e arenas de Cachoeirinha e seus componentes). A

idéia dos Terena é que os índios possam ocupar espaços – tornarem-se funcionários nas posições

hierárquicas mais diversas – de diversas instituições estatais, como a Escola e mesmo a “Secretaria

de Educação”, Câmaras Municipais e Prefeituras, estendendo e ampliando assim os “espaços de

poder” acessíveis e eles. Um elemento de destaque nas situações descritas acima, foi à proposta da

formação de uma “Secretaria do Índio” dentro da Prefeitura. Praticamente todos os lideres políticos

locais que disputaram as eleições para a prefeitura, apresentaram tal proposta, ou seja, todos os

candidatos assimilaram e falam dessa possibilidade (além de colocarem candidatos indígenas nas

suas coligações). Um documento do PT de 1988 já mencionava na proposta de programa de

governo para a Prefeitura a criação de uma Secretaria do Índio.

O caso das lutas entre as facções da Argola mostra como a conexão e a possibilidade de “co-

gestão” aberta a uma das facções exige de outro lado, o fortalecimento da dominação do Estado

sobre o grupo indígena, materializado especialmente na relação de dominação horizontal de uma

facção sobre a outra, através da exclusão do acesso a recursos, tratores, empregos e etc. O

depoimento de Aronaldo Júlio, no que diz respeito à gestão dos empregos para os professores, e

também a situação do grupo liderado por Tomás Martins, mostra como os grupos que tem acesso ao

poder de gestão empregam uma forma monopólica, tanto por interesse próprio quanto de seus

aliados nas elites locais.

Nesse sentido, todo o conjunto de processos sociais difusos, os diferentes dramas de

sucessão e cisão, as estratégias de assembléias e organizações indígenas, de ocupação de espaços

nos organismos estatais, a política de resistência cotidiana, e também os diferentes

empreendimentos indigenistas, governamentais, missionários e militares nos quais os índios tomam

parte contribuem ao mesmo tempo para mudanças nas relações e esquemas de distribuição de

poder123 (entre facções indígenas dentro das aldeias e nas instituições estatais, nos “espaços de

poder” que eventualmente ocupem; e também no nível local da política, entre elites e frações de

classe em luta pelo poder) e para a reprodução do sistema de poder, ou seja, das estruturas de longa

duração e larga escala que operam tanto no campo quanto na arena das relações interétnicas. 123 Estamos falando de reprodução do poder no sentido de reprodução: 1) da autoridade, do poder decisório e legalidade de uma decisão ou gestão; 2) da força, das bases materiais do exercício e da imposição de decisões e ações políticas. As técnicas de luta política que expressam essa reprodução das relações de dominação são a) requisições administrativas; b) abaixo assinados reivindicando intervenção de organismos superiores.

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Capítulo 6 – Co-gestão indígena.

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Podemos ver em todos os casos e situações analisadas neste capítulo, que experiência da co-

gestão indígena não anula o exercício do poder centralizado (seja pelo FUNAI, pela Prefeitura ou

mesmo por facções indígenas), mas pode coexistir com essa centralização. Lembremos que quando

narramos o processo da ocupação, vemos que lideranças indígenas foram em Brasília solicitar a

deposição do Administrador Regional. Também no caso da “Cisão na aldeia Argola”, a intervenção

da FUNAI é que definiu a resolução do conflito entre as facções locais, aliadas do PT, da prefeitura

e da própria FUNAI. Assim, mesmo as técnicas de resistência cotidiana se combinam com formas

de colaboração, e a etapa final das lutas faccionais é a legitimação da intervenção e do poder da

FUNAI, ou seja, do próprio regime tutelar.

Mas é a imprevisibilidade relativa das ações e eventos, e seus efeitos, que compõem a

dinâmica dominação-resistência, especialmente naquelas situações em que as técnicas de resistência

agudizam os conflitos, que residem os fatores que podem provocar – por combinação com outros

fatores – mudanças mais profundas no sistema de poder.

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

375

Capítulo 7 -Paradoxos do protagonismo étnico

“O controle político só pode efetuar-se através dos Chefes e, numa certa medida, pela intermediação das instituições nativas. Os chefes tiveram que ser integrados no conjunto do sistema administrativo, direta ou indiretamente. Mas esta ´integração´ nem sempre foi fácil: seja porque a sociedade colonizada, por uma submissão inteiramente fictícia, escondesse os chefes reais por detrás de “chefes de palha”, seja porque a administração colonial, ao não penetrar na realidade do Sistema Político nativo, criasse a chefia ao mesmo tempo que o chefe ou que chamasse à chefia um homem que chamais deveria ou poderia pretendê-la”.

Georges Balandier, in A Noção de Situação Colonial.

Ao longo dessa tese descrevemos uma série de situações, empreendimentos, dramas sociais,

processos históricos e apresentamos interpretações especificas para explicar cada um desses fatos

sociais. Esses fatos heterogêneos e difusos integram o processo contemporâneo de emergência do

“protagonismo étnico”, noção que busca apreender uma mudança no balanceamento de forças entre

os índios e Estado. Demonstramos que esse processo manifesta-se de forma molecular em inúmeros

acontecimentos – como ocupações de terras, bloqueios de rodovias, ocupações de prédios públicos,

tomada de reféns, atos de desobediência às ordens e boicote aos projetos dos poderes de Estado e

seus representantes (como a FUNAI). Ao mesmo tempo, esse processo prático de resistência

cotidiana e aberta foi acompanhado pela produção de formas de consciência e discursividade

étnica que delineiam diferentes e contraditórios projetos políticos do grupo Terena.

Demonstramos que os Terena ocuparam uma posição histórica singular: integravam até o

século XVIII, um sistema social indígena com características específicas e devido a uma

combinação de fatores (resistência e supremacia militar dos índios Guaicurus em amplos territórios

na região do Chaco/Pantanal; competição entre aos Impérios de Portugal e Espanha; situação

econômica, ecológica e demográfica desfavorável os Impérios na fronteira) tornou-se durante um

certo tempo um grupo social estratégico para a política colonial e imperial. Isso possibilitou uma

articulação histórica entre dois modos de organização política, de maneira que um modo dominante

(estatal) se impôs sobre um modo subordinado (o segmentar indígena).

Conseguimos também identificar a dinâmica e os “significados” da política e tradições

nativas, os sentidos e racionalidade das formas de organização social e política indígena nas

situação de reserva e depois durante as “retomadas”.

Vimos que a organização política Terena segue uma lógica de luta pelo poder entre as

facções, que opõe diferentes grupos vicinais e de descendência, e que essa luta pelo poder engendra

tanto formas de resistência quanto de colaboração para com os poderes estatais. Uma luta por bens

materiais e pela elevação do status das famílias. Vimos também à articulação entre tradições

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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culturais, indígenas e nacionais, através da produção de uma mito-história que sintetiza a

experiência histórica do grupo com concepções mágico-religiosas.

Mas inevitavelmente certas questões permanecem em aberto. Qual o significado sociológico

da resistência cotidiana indígena, do processo de centralização estatal e descentralização faccional,

da luta pelo poder e da afirmação do protagonismo indígena, da co-gestão e colaboração? Qual o

significado do fato de as tradições culturais indígenas adotarem signos e símbolos nacionais e

estatais? Qual o significado de todos esses elementos dentro do processo histórico e dentro do

contexto de luta política de hoje?

Determinar as percepções, representações e estratégias indígenas é apenas parte da tarefa da

etnografia e sociologia; é preciso indicar o significado sociológico do significado “nativo”, ou seja,

que efeitos a existência de certas práticas políticas e representações simbólicas provocam na

realidade concreta, nos contextos de poder locais e gerais. Já que as sociedades colonizadas são o

produto de uma dupla história (Balandier, 1993, p.110) e porque dificilmente os significados do

pensamento e das práticas indígenas adquirirem pleno sentido exclusivamente dentro da fronteiras

da própria sociedade indígena, mas ao contrário, se realizam nas suas relações de oposição e/ou

composição com outros grupos e contextos sociais124.

A atual situação histórica só pode ser plenamente compreendida quando temos em mente os

elementos principais do processo histórico e as condições materiais que moldaram e moldam ainda

hoje seu desenvolvimento. É preciso também ter um modelo teórico que apresente possibilidades de

interpretação do conjunto de eventos e processos sociais em curso. Dessa maneira poderemos

entender como os processos de mudança social e reprodução das relações de poder, se dão através

da complexa dinâmica entre dominação e resistência.

7.1 - Os sentidos da conquista colonial: formação do Estado-Nacional e Transição Capitalista.

O regime tutelar é um produto da história colonial e uma forma de gestão dos grupos

subalternizados pelo processo de formação do Estado-Nacional. Logo, é preciso interpretar o

processo histórico da conquista colonial e seus desdobramentos: a formação de um Estado e uma

Sociedade Nacional que absorveu as sociedades indígenas, política e territorialmente. É nesse

processo que se encontram às respostas para condição de subalternidade dos índios e para o

funcionamento da estrutura de dominação política engendrada desde o século XVIII, e também para

a compreensão do real significado de fatos cotidianos como a contratação de turmas de trabalho por 124 “Ora, dar primazia ao ameríndio e não ao ocidental apenas inverte os termos do debate, em vez de deslocá-lo ou renová-lo.” (Gruzinski, 2001,p. 57) Nesse sentido, a idéia de compreensão do “ponto de vista do nativo” pode ao invés de ser um caminho para a superação do etnocentrismo, um meio de reforçá-lo ou de dar-lhe uma roupagem aceitável, exatamente quando não se reconhece o elemento dialético ou de “mistura” que serve de base de constituição daquele ponto de vista (Gruzinski, idem).

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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representantes de Usina agro-exportadoras. Na realidade, uma compreensão das teses sobre esses

processos gerais é fundamental para a análise de situações etnográficas e processos históricos

específicos. Isto porque as mudanças sociais desencadeadas nas relações e sistemas de poder pela

conquista colonial, afetaram as sociedades indígenas, mas estas enquanto protagonistas históricos,

determinaram também (pelo menos relativamente) tanto as suas respectivas histórias quanto a

história do Estado-Nacional.

Para compreender os sentidos da conquista colonial podemos utilizar a tipologia de

Gluckman, que classificou sistemas os sistemas sociais com relação à mudança social, em sistemas

repetitivos e dinâmicos. Mas é preciso compreender que essa oposição não implica a anulação das

mudanças sociais, como a idéia de um sistema repetitivo pode sugerir. Poderíamos adicionar que o

que diferencia o sistema repetitivo do sistema dinâmico, é o balanceamento de forças que determina

a estrutura de classes e os grupos sociais dominantes dentro do sistema e os tipos de mudança

social verificadas nele.

Apresentamos aqui uma tipologia de mudanças sociais para dar maior nitidez à distinção

entre sistema repetitivo e sistema dinâmico: 1º) Mudanças Cíclicas – mudanças nos grupos que

exercem o poder ou funções dentro das instituições e sistemas, provocadas por dirigismo estatal ou

por efeito da luta de classes, mas que não questionam as bases do sistema de dominação, apenas

trocam os indivíduos e grupos concretos que exercem certos poderes e mudam os esquemas de

distribuição dos poderes. Elas são relativamente previsíveis de acordo com as próprias regras de

formação dos modos de dominação, consistindo de ciclos mais ou menos regulares e tendentes a

operar no curtíssimo prazo; 2º) Mudanças Institucionais – em que as instituições e/ou os tipos de

relações ordenadoras do funcionamento social são transformadas, também por dirigismo estatal ou

por efeito da luta política entre grupos sociais, classes e frações, mas relaciona-se a forma do Estado

a organização ou sistemas políticos, e tendem a se realizar no curto e médio e prazo; 3º) Mudanças

Estruturais – mudanças nos fundamentos das relações de poder e estrutura de classes, basicamente

na relação grupos sociais-território-meios de produção – ou seja, nas partes e formas de organização

dos grupos (posições de classe dominante e subalterna, ou dos componentes do bloco no poder) e

tendem a operar no médio e longo prazo, como produto da acumulação de outras mudanças e

conflitos sociais.

Podemos dizer que as mudanças sociais cíclicas e institucionais são comuns aos dois tipos

de sistema e que a única diferença efetiva dos sistemas repetitivos para os sistemas dinâmicos é que

nos primeiros inexistem mudanças estruturais. O principal significado da classificação de um

sistema como repetitivo ou dinâmico, da forma aqui empregada, é a qualificação do tipo de

mudanças sociais e balanceamento estrutural de forças e relações de poder que fundam e organizam

a dinâmica societária. Isto permite também estudar a dinâmica dominação/resistência enquanto um

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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processo contínuo com efeitos distintos, de pequena e larga escala, curta e longa duração, e

relativamente imprevisíveis.

A principal característica do processo de conquista colonial na região sul de Mato Grosso, é

que ele se deu numa situação específica de fronteira em que determinados grupos indígenas, como

os Guaicurus e os Guanás, tinham um status especial frente aos europeus (espanhóis e portugueses)

em função da sua posição política e militar na região. A “Situação do Chaco” marca exatamente a

existência de um sistema social no qual a hegemonia político-militar cabia ao grupo Mabyá-

Guaicuru, na região da bacia do rio Paraguai, Sistema este articulado com o Sistema Mundial já a

partir de meados do século XVI. Tal conjuntura histórica implicava também um padrão de

distribuição do poder ou balanceamento de forças naqueles territórios e entres grupos sociais

concretos. A conquista colonial iniciada no século XVI desencadeou uma redefinição da dinâmica

interna do Sistema Social Indígena.

A existência da disputa com o Império Espanhol e depois a República do Paraguai pelo

território do Mato Grosso, e também a importância dos índios enquanto mão de obra e força militar

(numa região de em que o custo dos escravos negros era alto e a ocupação de colonos incipiente)

faziam com que os Guaicurus e os Guanás fossem cortejados pela política colonial portuguesa e

depois do Império Brasileiro. Os registros documentais e a etnografia dos militares mostram que a

representação dos índios Guanás e Guaicurus não eram pejorativas. Eles eram equiparados aos

“europeus” em certos momentos, e supunha-se que suas culturas possivelmente jamais

desapareceriam.

Tomando o processo de conquista colonial no sul de Mato Grosso, podemos dizer que o

Sistema Social Indígena entre 1540-1776, era um sistema repetitivo que conheceu diversas

transformações de tipo cíclico ou institucional. Diferentes grupos indígenas podiam se revezar em

posições dominantes; concretamente a aliança Guaicuru com os Paiaguás e com os Guanás revela

isso. Eles podiam ocupar posições de poder diferentes no sistema social indígena, mas as formas de

seu exercício, as técnicas políticas e militares, as formas de organização social, eram relativamente

estáveis. Por exemplo, a introdução do “cavalo e do aço”, garantiu a consolidação da hegemonia

política e militar Guaicuru, criando uma nova forma de guerra e mudança na organização das

instituições indígenas, possibilitando a ampliação da mobilidade das práticas de guerra, coleta e a

extensão do território em que eram praticadas. Mas as formas de produção e atividades principais

continuavam dentro do esquema de caça-coleta e guerra/saque no caso Guaicuru.

Devemos considerar que esse Sistema Social Indígena já era integrante ou articulado com

um Sistema Mundial e com as forças coloniais espanholas e portuguesas. E aqui a caracterização do

Sistema Indígena como Repetitivo nesse período mostra sua validade teórica, como contraponto as

teses da aculturação. Contrariamente as teses dos estudos de aculturação/assimilação, e mesmo as

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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idéias estruturantes da tutela indígena, os grupos indígenas como os Terena não eram um grupo

“isolado” e não foi o “contato” com a sociedade colonial que deu início a um processo de

“transformação” que resultaria na “extinção” das sociedades indígenas (caso o Estado não tivesse se

colocado como “protetor” dos índios). Durante esse período as relações interétnicas com as forças

coloniais e com Sistema Mundial já eram plenamente consolidados, mas o tipo de balanceamento

de forças fazia com que o sistema social indígena conseguisse se reproduzir na história com sua

singularidade e alteridade. Diversas mudanças se processaram, mas elas não afetaram

estruturalmente o sistema indígena.

Foi somente a partir de 1776 que certas mudanças sociais aparentemente cíclicas

aconteceram, mas que analisadas retrospectivamente, tiverem efeitos de mudanças estruturais: a

quebra da aliança dos Guaicurus com os Paiaguás, a expansão de fazendas sobre territórios

indígenas e a construção de fortes e presídios. Vejamos, várias vezes os colonizadores tinham

avançado fazendas e os índios as tinham destruído e massacrado os colonos. Mas outros fatores se

combinaram para dar a estes processos uma função relativamente nova e imprevisível (alguns deles

nós analisamos no capitulo 3). A partir desse momento nós podemos falar que o Sistema Indígena

passa a ser um Sistema em Transformação, pois o balanceamento de forças entre os diferentes

grupos sociais se altera, e conseqüentemente as relações entre estes e o território, os meios de

produção e de poder, surgindo uma outra estrutura de classes. Os colonizadores espanhóis e

portugueses alcançam progressivamente uma posição de poder cada vez mais superior ao antigo

poder dos Guaicurus.

Entre 1780 e 1850 o mais correto é falar da coexistência e articulação de um Sistema Social

Indígena com um Sistema Estatal, Colonial-Escravista, de teor “Para-Capitalista” (Velho, 1979),

mas uma articulação que tendia para a absorção das unidades societárias indígenas no Estado-

Nacional em formação. Porém, mais uma vez, esse processo não estava pré-determinado; ele se

consolidaria através de uma série de acontecimentos, de pequena e larga escala, como a atração dos

Guaná para a área de influência portuguesa, a dificuldade de reprodução de certas sociedades

indígenas por diversos fatores (como a prática do infanticídio) e a dissolução da aliança Guaicuru-

Guaná. A formação dos aldeamentos e a participação dos índios nos empreendimentos coloniais

(militares, religiosos e comerciais) criaram uma vinculação cada vez mais estreita entre os índios e

o Estado e os diferentes segmentos da sociedade colonial na fronteira.

Na realidade, havia se levantado um “cerco” contra o Sistema Indígena do Chaco/Pantanal.

Somente depois de 1860, com a Guerra do Paraguai e a vitória brasileira, e conseqüentemente com

a eliminação da ameaça “externa”, a criação de vias de comunicação, a expansão da fronteira

agrícola e com ela do capitalismo monopolista, é que se colocaria uma contradição direta entre a

existência de um Sistema Social Indígena, marcado por uma profunda alteridade étnico-cultural e

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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autonomia indígena, e de um Estado-Nacional. Mas essa contradição está associada especialmente à

expansão da fronteira agrícola sob a direção do capital monopolista (que levou a formação dos

latifúndios no sul de Mato Grosso) e ao fortalecimento do Estado-Nacional. Dessa maneira, a

conquista colonial evoluiu para a formação de um Estado Capitalista, que destrói e aniquila

definitivamente o Sistema Indígena nesse período.

Mas não devemos confundir a destruição do Sistema Social Indígena com a destruição das

sociedades indígenas. Na realidade, será sob as condições do capitalismo monopolista na situação

de cativeiro que muitos grupos étnicos e aldeias irão desaparecer. Os dados do censo de 1862

estimam a população indígena no intervalo de 10.000 a 15.000 pessoas, e o comerciante J.Bach fala

que em 1897 os Terena consistiam de 12 a 14 mil índios em “inúmeras aldeias”, das quais visitou 8.

O censo de 1926 composto por Roberto Cardoso a partir de informações do SPI, a apontou a

existência de 2.995 indígenas Terena em oito aldeias. Sabemos que os dados não refletem nem

dizem tudo sobre os processos sociais (pois muitos índios vivam em fazendas e cidades e podem

não ter sido recenseados), mas é certo que o final do século XIX no de Mato Grosso foi marcado

pelo etnocídio, com desaparecimento de povos como os Xamacocos, Guaxis, e sub-grupos Mabyá e

Guaná, de maneira ainda mais dramática que no período do final do século XVIII, quando as

circunstâncias históricas davam as sociedades indígenas da região uma importância estratégica.

Dessa maneira, no período de 1776 a 1850, o Sistema Social Indígena passa de Sistema

Repetitivo a Sistema Dinâmico, sendo que a causa da liquidação desse Sistema Indígena não foi o

estabelecimento de relações (ou o “contato”) das sociedades indígenas com as forças coloniais, mas

sim o tipo de direcionamento que as mudanças sociais tomaram com os novos esquemas de poder e

balanceamento de forças de longo prazo. Duzentos anos de interação, guerra, comércio e

colaboração política se deram sem que o Sistema Indígena tivesse sua existência ameaçada, e para

garantir a mudança estrutural foi necessária a violência e a guerra, como fatores determinantes

desse tipo de mudança social.

Pudemos ver que na realidade o Estado Colonial se articulou e manipulou tanto as relações

quanto as contradições do Sistema Indígena em seu favor. As alianças com os Guaicurus e com os

Guanás, o seu recrutamento para os principais empreendimentos coloniais mostram que não é

exatamente a impossibilidade de “administração” através de formas segmentares que levou a

extinção do Sistema Indígena, mas uma determinada configuração histórica e uma contradição

especialmente no que diz respeito à “estrutura territorial” dos dois sistemas e a disputa pelo controle

dos territórios e recursos naturais e econômicos existentes neles, e logo, as posições de poder dos

grupos indígenas125. Quando o Estado assume feições tipicamente Capitalistas e elimina a “ameaça

125 Em todas as sociedades des critas no livro o sistema político tem uma estrutura territorial, porém tem uma função diferente nos dois tipos de sistema político. (Fortes & Evans-Pritchard, op.cit, p. 10)

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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externa” representada por um outro Estado é que a existência do Sistema Ind ígena torna-se

dispensável e ao mesmo tempo sua destruição possível.

Não podemos pensar a transição das “sociedades sem estado” para as sociedades estatais

sem pensar a história concreta desse processo. E no caso do Sul de Mato Grosso, essa transição se

deu através da transição de uma Sociedade Segmentar para um Estado Capitalista, como em quase

todos os contextos coloniais modernos e o sistema indígena que foi transformado, não se enquadra

nos parâmetro de uma “sociedade primitiva”, já que mesmo sendo um sistema repetitivo até o

século XVIII ele passou por profundas mudanças cíclicas e institucionais em razão do “encontro ou

confronto colonial”.

Outro equivoco a evitar é a elevação da dicotomia “índios/brancos” a um patamar

explicativo e a descontextualização dessas categorias. A sociedade colonial em termos étnicos se

aproxima mais de um mosaico ou de formas multidimensionais, sendo composta por europeus

(brancos), índios, africanos (negros) e mestiços, inseridos numa estrutura de classes que opunha

“senhores, escravos e livres”, definida pelas diferentes posições de controle dos meios de produção

e de poder. Nesse sentido, não somente o índio, mas branco, negro e mestiço são todas categorias da

situação colonial (Batalha, 1972). Mas é preciso lembrar que tanto estas categorias recobriam

grupos heterogêneos internamente, quanto às posições na estrutura da sociedade não derivam dessas

classificações, mas antes, tais classificações derivavam da estrutura da sociedade colonial-

escravista.

Podemos dizer que os Guaicurus e os Guanás durante o período de 1540 até 1776, e mesmo

entre 1780 e 1850, estavam na condição de “livres” (participavam de uma estrutura de estratificação

relativamente autônoma frente à estrutura colonial) por conta da sua posição especifica na fronteira,

livres em relação à classe de escravos (composta por negros, mestiços e índios) e a classe

dominante de senhores (composta por brancos europeus colonizadores). Mas as mudanças sociais

que levaram a dissolução da situação colonial não transformaram apenas as sociedades indígenas,

mas o conjunto dos grupos da classe dominada e a própria classe dominante senhorial-escravista.

Os “brancos” deixaram de se confundir com a classe dominante já que a política de imigração e

miscigenação levou a formação de um proletariado heterogêneo étnico e nacionalmente. Os

colonizados mudaram também seu perfil étnico e social, já que os índios do Sistema do

Chaco/Pantanal perderam sua condição de “livres”, e no final do século XIX a população mestiça e

branca superou a população indígena no Mato Grosso. Assim rapidamente a oposição

colonizados/colizadores, ou índios e brancos, deu lugar a uma mais complexa trama de

contradições.

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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A coexistência de diferentes modos de organização política – indígena e estatal – a

articulação de classes ou estratos dominantes em diferentes sistemas e a formação de novas

clivagens – como colonizador/colonizado – e sua transformação (na oposição patrão/empregado ou

fazendeiro/camponês) e o seu papel na formação do Estado-Nacional exige uma interpretação do

significado das múltiplas formas de colaboração e resistência encontradas.

Nesse sentido algumas formulações de Nicos Poulantzas são muito pertinentes para a

interpretação do processo de mudança social nas estruturas de poder, sendo um conceito chave o de

Bloco no Poder.

“Em primeiro lugar, devemos ainda recordar-nos que a linha de demarcação política de dominação-subordinação não pode ser traçada, como o desejaria uma concepção instrumentalista e historicista do Estado, segundo a perspectiva dualista de uma luta “dualista” das classes – dominantes/dominada – isto é a partir de uma relação entre o Estado e uma classe dominante. Sabemos que uma formação social é constituída de uma superposição de vários modos de produção , implicando assim a coexistência, no campo da luta de classe, de várias classes e frações de classe, e eventualmente, de várias classes e frações dominantes”. (Poulantzas, 1977, p. 224)

A primeira indicação teórica importante é a da possibilidade de coexistência de grupos dominantes

em diferentes sistemas sociais (pelos termos marxistas, “modos de produção”). É essa possibilidade

que faz com que mais de uma classe ou fração de classe exerçam a dominação de forma conjunta,

sob a forma de “bloco no poder”. Num certo sentido, é um problema associado à transição do

feudalismo para o capitalismo (ver Poulantzas, op.cit, p. 229).

Mas a idéia de Bloco no Poder diz respeito a uma região delimitada do universo social. O

“Bloco”, que é efetivamente quem detém o poder, se relaciona por duas grandes modalidades, aos

demais setores da sociedade que não integram o bloco no poder: 1) a aliança; 2) o apoio. Segundo

Poulantzas:

“O apoio distingue-se do bloco no poder, do mesmo modo que a aliança, pela natureza das contradições entre o bloco no poder e as classes aliadas..”. (p. 238)

1) Que o seu apoio a uma dominação de classe determinada não é em geral baseado em qualquer sacrifício político real dos interesses do bloco no poder e das classes aliadas em seu favor. Esse apoio, indispensável a essa dominação de classe, é em primeiro lugar, baseado em um processo de ilusões ideológicas. (...)

“Esta unidade não se manifesta, regra geral, nas relações imediatas de classe, mas realiza-se por intermédio do Estado. A relação das classes-apoios com o bloco no poder e com as classes aliadas manifesta -se menos como relação de unidade política de classe que apoio a uma forma de Estado determinada”. (Poulantzas, 1977, p. 239).

Dessa maneira, podemos perceber que o “Bloco no Poder”, e as formas de extensão de suas

relações, a “Aliança” e o “Apoio” baseiam-se na unidade contraditória de interesses. Entretanto a

aliança é baseada numa identidade de interesses dentro de uma “instância” especifica (por exemplo

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

383

à economia), ficando aberta a possibilidade de conflitos em outras (como a política); o Apoio é um

modo de relação de poder em que não existe uma identificação de interesses, ou pelo menos uma

reciprocidade ou equivalência entre as trocas. Além disso, a aliança e o apoio ampliam o arco de

articulação do bloco no poder para fora de si mesmo, já que outras frações da classe dominante ou

setores da classe dominada são mobilizados. Assim, há um delineamento claro de uma relação entre

a estrutura de classes da sociedade e o Estado Capitalista (já que a noção de bloco no poder se

aplicaria segundo o autor somente no capitalismo).

De uma maneira geral, poderíamos dizer que o conceito de Bloco no Poder se inscreve

dentro de uma “macrofísica do poder”. As características principais do Bloco no Poder recortam

um espaço que abrange a sociedade como um todo; o Bloco existe, se expressa numa forma de

Estado e determina, em parte, a dinâmica social global. O Bloco no Poder compreende as altas

posições na Sociedade e no Estado, os grandes capitais e poderes monopolistas, sendo um espaço

circunscrito e fechado a todos os setores não hegemônicos da classe dominante e especialmente, aos

setores e frações da classe dominada.

Podemos pensar o processo de formação do Estado Capitalista, da passagem das sociedades

sem estado à sociedade estatal no caso de Mato Grosso também a partir da transformação das

relações de classe num momento de expansão da fronteira agrícola e formação de uma economia

capitalista. Quando falamos de um momento histórico de coexistência e articulação de sistemas

sociais e políticos (período compreendido entre 1780-1850, aproximadamente), falamos da

coexistência de dois grupos/classes dominantes: os Guaicurus, enquanto estrato guerreiro dentro do

Sistema Indígena e os “militares e comerciantes” portugueses dentro do Sistema Colonial. Existia

uma interação e diálogo entre os dois setores dominantes nos respectivos sistemas sociais. Vimos

que os Guaicurus eram tratados com honras de Chefe de Estado. Mas desde os primeiros momentos,

como pelas formulações do governador da capitania de Mato Grosso Caetano Pinto de Miranda

Montenegro, tinha-se o projeto de utilizar os índios nos empreendimentos militares, produtivos e

comerciais (agricultura e mineração). Não se cogitava a possibilidade de compartilhar o poder em

Bloco com os setores dominantes da sociedade colonizada. Contrariamente a política adotada em

relação aos senhores feudais, a coexistência de dois sistemas sociais e classes dominantes não levou

a formação de uma identidade de interesses.

Conforme o Estado-Nacional se construiu e a economia capitalista se desenvolveu, o Bloco

no Poder se formou. E aqui nos interessa mais a exclusão dos grupos indígenas desse Bloco que a

composição do Bloco propriamente dito – pois na realidade a exc lusão é apenas uma dimensão da

sua composição. E também o processo de vinculação dos grupos dominados ao Bloco no Poder e

elites locais e sues interesses, como forças de apoio em empreendimentos coloniais diversos.

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

384

Os índios Guaicurus e Guanás foram articulados enquanto forças de apoio dentro do

universo da classe senhorial-escravista, especialmente através da fração militar. Essa fração militar

senhorial integraria o futuro Bloco no Poder quando da transformação capitalista da sociedade

brasileira. A idéia de forças de apoio indica uma relação diferenciada com a classe dominante. Os

índios foram empregados como força de apoio, mas com garantias e tratamento de forças aliadas,

em razão de uma combinação de fatores, sendo uma das principais foi a sua capacidade de

resistência político-militar diante da debilidade relativa do Estado-Colonial. Por isso as terras e a

autonomia política garantida aos índios dentro das primeiras fases da formação do Estado-Nacional

brasileiro (1800-1860), e também o acesso direto as mais altas autoridades imperiais (como as

negociações diretas dos Capitães com os Presidentes de Província ao longo do Império).

Um dos meios de viabilizar a utilização dos índios Guaicurus e Guanás como forças de

apoio, foi o loteamento de postos inferiores dentro da estrutura administrativa do Estado. A

concessão de patentes militares, o recrutamento de índios para empreendimentos missionários e

comerciais, como bandeiras e obras públicas, a concessão de terras para uso particular, viabilizavam

a adesão dos índios e sua íntima articulação com as instituições de Estado e as frações dominantes

da sociedade colonial. Além disso, num certo momento, opunha os Guaná e Guaicurus aos demais

grupos indígenas e população negra e mestiça escravizada. A autonomia relativa dos índios

coexistiu com sua colaboração na dominação, sendo utilizados às vezes no extermínio de quilombos

e outras comunidades indígenas. Podemos falar num modelo histórico de colaboração entre

colonizadores e colonizados através de empreendimentos governamentais, implicando a concessão

de postos administrativos e pela sua participação dentro das instituições estatais, consolidando este

grupo como parte das forças de apoio.

Contraditoriamente, estas formas concretas de colaboração minaram as bases de poder que

levavam o Estado Colonial a ter a necessidade de coexistir com a autonomia territorial e política das

sociedades indígenas. Ao estabelecer relações com a Classe Dominante os Guaicurus e Guanás

minaram progressivamente os fundamentos político-militares de seu poder. Com a destruição do

sistema social indígena, os índios Guaicurus e Guanás, antes ocupantes de uma posição dominante

em relação aos índios e mesmo a espanhóis e portugueses, são inseridos numa posição subordinada

na estrutura de classes da nova sociedade que se formava. Isso aconteceria depois da Guerra do

Paraguai, quando a eliminação da disputa de fronteiras e o desenvolvimento das vias de

comunicação possibilitaram o avanço do capitalismo monopolista em Mato Grosso, com a

formação de um mercado de terras e a consolidação do povoamento.

A principal mudança social se deu nas estruturas de poder e de classes, nas formas de

relação das sociedades indígenas com o território e os meios de produção e autoridade política.

Podemos dizer que ao final do século XIX, o principal sentido da conquista colonial tinha sido o da

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

385

incorporação definitiva das sociedades indígenas na dinâmica do Estado-Capitalista: numa condição

de grupo dominado, subalterno na estrutura de classes, ocupando as posições inferiores de poder e

de status na sociedade nacional que se formava.

7.2 - Etnocentrismo e sub-proletarização: os fundamentos da sobre -exploração.

O regime tutelar tal como estabelecido pelo SPI se apresenta como um modo de dominação

associado a essa situação de declínio relativo de poder dos índios, na seqüência de uma série de

guerras durantes o período colonial e também um período de “colaboração” entre os Terena e o

Estado-Nacional. A tutela consolida esse processo de subalternização. O SPI impôs a lógica da

centralização política baseada numa dominação de classe e étnica, dentro dos territórios das

reservas. Essa centralização não conseguiu se estabilizar nas primeiras décadas de existência do

SPI. Ao mesmo tempo, as reservas pelas suas características devem ser pensadas como “reservas

de mão-de-obra” (ver Cardoso de Oliveira, 1976). Isto significa que os índios eram empregados em

empreendimentos indigenistas, governamentais e produtivos, como campeiros, trabalhadores

rurais, trabalhadores manuais em obras públicas, ofícios rurais e urbanos. A maior parte dos índios

passou a se dedicar – de forma temporária ou permanente – ao trabalho assalariado. Nesse sentido, a

noção de reserva de mão-de-obra tem de adquirir uma maior precisão sociológica. Ela deve indicar

a nova posição na estrutura de classes, e a elucidação de mais um dos sentidos das mudanças sociais

de longo prazo.

A situação econômica atual dos índios se relaciona ao tipo de inserção na estrutura de

classes, efeito simultaneamente político e econômico da colonização, da sua exclusão do Bloco no

Poder e do projeto que este tinha para os índios. A situação de classe e ocupacional dos índios

Terena de Cachoeirinha e que se reproduz em todo o Mato Grosso do Sul, como descrita no capítulo

2, mostra que eles estão localizados em um município com alta taxa de concentração de renda e

posicionados nos estratos de rendimentos mais baixos. Isso em razão da baixa produtividade e

pouco valor da sua mão-de-obra no mercado regional.

A questão a colocar é: quais são as condições particulares da reprodução da força de

trabalho que permitem praticar esses baixos salários? Quais são as condições da sobreexploração do

trabalho nos países “colonizados”? (Meillasoux, 1976, p.152). A problemática da inserção numa

nova estrutura de classes engendrada pela passagem das sociedades “sem estado” as “sociedades

estatais”, implica obviamente no aparecimento de novas posições nas relações de produção e

economia. E implica também no peso do legado histórico da situação colonial na formação dos

Estados capitalistas. É preciso perceber a importância do etnocentrismo e das teses sobre

superioridade racial como parte de uma política de construção da sobre-exploração do trabalho da

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

386

classe trabalhadora composta nos contextos pós-coloniais como o brasileiro, por uma massa

heterogênea de mestiços, negros e indígenas.

E do ponto de vista da história indígena, é a explicação para sua localização na estrutura de

classes e agrária, sob diversas formas possíveis. Isso relaciona diretamente à contradição da

agricultura doméstica nos países da periferia: apesar de demandar mais tempo de trabalho e ter

pouca produtividade, os produtos e a força de trabalho proveniente desse setor são baratos.

(Meillasoux, 1976,p.155), O que Meillasoux indica é que na realidade o capitalismo não leva

necessariamente a destruição da economia doméstica enquanto modo de produção, mas ao

contrário, pode levar a uma articulação entre capitalismo e economia doméstica:

“As relações entre os dois setores, capitalista e doméstico, não podem ser consideradas como relações entre dois ramos do capitalismo como basta fazer para explicar a troca desigual: a relação estabelece-se entre setores em que predominam relações de produção diferentes. É por intermédio das relações orgânicas que estabelece entre economias capitalistas e domésticas que o imperialismo põe em cena os meios de reprodução de uma força de trabalho barata em proveito do capital; processo de reprodução que é, na fase atual, a causa essencial do subdesenvolvimento e simultaneamente da prosperidade do setor capitalista. Social e politicamente, está também na origem das divisões da classe operária internacional”. (Meillasoux, 1976, p.156)

Mas ainda assim a economia doméstica pertence à esfera de circulação do capitalismo, na

medida em que os aprisiona em termos de força de trabalho e de produtos enquanto permanece fora

da esfera da produção capitalista. (Meillasoux, 1976, p.156). Dessa maneira, a preservação das

relações de produção domésticas e do acesso de certos grupos sociais a parcelas de terra, são

fundamentais para viabilizar a realização de um sobre-trabalho, mecanismo de exploração que

aumenta a lucratividade do setor capitalista.

Nesse sentido, Meillasoux busca uma definição para o conceito de modo de produção que

foi utilizado por Marx para descrever a sucessão histórica de sistemas baseados em diferentes

relações de produção. “Outra coisa é opor modos de produção como o fazemos aqui, pelo seu

encontro contemporâneo, pela sua articulação ou dominação eventual de um por outro”.

(Meillasoux, 1976, p.156-157). Dessa maneira “... não é portanto a destruição de um modo de

produção por outro, mas a organização contraditória das relações econômicas entre os dois

setores, capitalista e doméstico, um preservando o outro para lhe subtrair a sua subsistência, e, ao

fazê-lo, destruindo-o”. (Meillasoux, 1976, p.159).

Meillasoux irá retomar a noção de “acumulação primitiva” de Marx dando um outro

significado. A noção de acumulação primitiva em Marx estava ligada a um contexto histórico

preciso: a emergência de um capitalismo das ruínas da feudalidade. Neste fenômeno Marx

considera alguns processos: 1) a transferência da terra; 2) a transferência da força de trabalho para

as cidades pelas migrações; 3) a transformação do trabalhador de produtor independente em

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

387

“trabalhador livre”. (Meillasoux, 1976, p.172). O que Meillasoux faz é falar de um modelo de

acumulação baseado nas características da “acumulação primitiva”. Seriam diferentes modos de

garant ir a “acumulação” baseada em taxas de mais valia absoluta.

Essa situação especifica de articulação de “modos de produção” capitalista e doméstico –

entendidos enquanto arranjos mais ou menos abertos entre força de trabalho, meios de produção e

relações de propriedade - se dá para viabilizar a sobre-exploração do “trabalho” desse campesinato.

Essa sobre-exploração se dá pelos seguintes mecanismos: o duplo mercado de trabalho que divide

organicamente o proletariado entre: 1) trabalhadores integrados (que se reproduzem totalmente no

setor capitalista); 2) trabalhadores migrantes (reproduzem-se apenas parcialmente) e ao quais a) são

recusados ou dados menores salários indiretos; b) e setores da economia buscam impor salários

baixos e instabilidade para afastar o trabalhador “integrado”. O papel do racismo é fazer funcionar e

legitimar o duplo mercado de trabalho; introduzindo clivagens dentro o proletariado super-

explorado, retardando a emergência da consciência de classe. Esses mecanismos garantem a rotação

da mão-de-obra que obrigam permanentemente os trabalhadores a voltarem a seus lugares de

origem. (Meillasoux, 1976, p.198).

“O mecanismo das migrações temporárias funciona não só no meio de um mesmo país, entre zonas rurais e zonas urbanizadas, como à escala internacional entre os países com dominância rural e o paises industrializados. Está na origem dos imensos movimentos de populações que não pararam de surgir, depois do fim da segunda guerra mundial, entre África e Europa, migrações que certos sociólogos atrasados, cegos ou cúmplices continuam a atribuir a mentalidade indígena ou à sua tradição”. (Meillasoux, op.cit,, p.199).

A exploração se dá sobre toda a célula familiar a que pertence o trabalhador. Ela também produz

um sobretrabalho equivalente à duração do tempo livre (para o senhor feudal esse sobretrabalho

aparecia como “renda em trabalho” ou “trabalho gratuito” prestado pelo camponês).

(Meillasoux, op.cit,p.181).

A renda está presente porque o trabalhador divide seu tempo de trabalho entre sua produção

e a produção para o patrão. A extração da renda em trabalho exige as migrações temporárias, o

estabelecimento de um mercado duplo e uma ideologia discriminatória (Meillasoux, 1976, p.188).

Por isso é necessária uma política preservacionista que coexiste com o racismo, e que leva criação

de reservas de terra que são na realidade reservas de mão-de-obra.

“Nestas colônias de povoamento, uma fração do território colonizado é subtraído à apropriação privada dos colonos. São as“reservas” nas quais se confinam a as populações africanas. Reservas ditas terras, mas sobretudo de mão-de-obra, que foram até o presente momento i trunfo da política econômica dos Estados racistas. Sob o pretexto de preservar as condições de vida tribal, as autoridades tentam ai conter, por leis apropriadas, a emergência de uma propriedade privada da terra e a constituição de relações de produção capitalistas”. (Meillasoux,1976, p.192).

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

388

Outro sentido da conquista colonial, que a “situação de reserva” em Mato Grosso

consolidaria, seria um padrão determinado de exploração do trabalho indígena, desta vez pela

inserção dos índios enquanto segmento do campesinato e dos trabalhadores nacionais localizados no

setor agrícola. Os traços fundamentais do regime tutelar, naquilo que tem de pragmático, apontam

nesse sentido. O que a análise Meillasoux tem de valorosa é nos levar a perceber como o padrão de

“acumulação” estabelecido exigia a articulação do modo de produção “doméstico” do campesinato

indígena com o setor capitalista. Essa articulação possibilita a extração de uma “renda” em forma de

trabalho. As “reservas” de mão-de-obra indígena têm uma relação também especifica com a

situação colonial de que é produto e com a economia capitalista da qual se apresenta como

engrenagem.

Podemos dizer que o etnocentrismo e sua forma superior, o racismo, é um fator

fundamental; a concepção de que os povos colonizados são inferiores (racial, cultural e

socialmente) levou a um profundo abismo nas relações entre e colonizados e colonizadores que

delinearam um projeto político de inserção dos primeiros enquanto força de trabalho barata na

sociedade nacional em formação. Entretanto, essa ideologia da superioridade, o etnocentrismo e as

necessidades econômicas, levaram ao mesmo tempo a necessidade da preservação de sua economia

doméstica e sua inserção na esfera inferior do duplo mercado de trabalho. Dessa maneira, a linha

étnica e o etnocentrismo característicos da situação colonial, foram transformados em engrenagens

da exploração capitalista pela organização das migrações temporárias e expropriação de terras que

reedita enquanto modelo de acumulação, as principais características da acumulação colonial de

poderes e capitais enquanto etapa histórica (simultaneamente da história indígena e do Estado-

Nacional). E este modelo de acumulação baseado na sobre-exploração da comunidade doméstica e

trabalho indígena, também levou este campesinato indígena a ser absorvido na esfera subalterna do

duplo mercado de trabalho (em que são praticados menores salários diretos e indiretos).

Nesse sentido, elucidamos um outro sentido fundamental da conquista colonial: a formação

de uma economia e de uma estrutura de classes capitalista baseada num duplo mercado. Torna-se

compreensível o porque da atual situação econômico-social dos índios Terena, como descrita no

capitulo 2.

Assim, o colonialismo e o etnocentrismo são fatores fundamentais para entender o lugar do

índio dentro das sociedades capitalistas: o capitalismo foi capaz de articular diferentes sistemas

sociais e de produção; foi capaz de fazer coexistir classes dominantes em diferentes sistemas; foi

capaz de absorver essas antigas classes enquanto frações dentro do capitalismo; mas o capitalismo

nos países colonizados assumiu a característica de levar a sub-proletarização dos povos colonizados

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

389

dentro do duplo mercado de trabalho. A “proteção e preservação” engendrada pelo regime tutelar

estão associadas a esse modelo de acumulação colonial e de sobre-exploração126.

Podemos falar de um “Modelo de Acumulação Colonial”, que pode ser tanto uma etapa

histórica e aí considerado como um tipo de acumulação primitiva (ver capítulo 3), quanto um

modelo de processo de articulação e funcionamento de diferentes modos de produção e

expansão do capitalismo. Este modelo tem algumas características que podem se apresentar de

forma simultânea ou alternada: 1º) articulação de “alianças políticas com os setores “colonizados”

ou “setores” da classe dominada; 2º) incentivo e manipulação dos seus conflitos internos; 3)

formação de uma aristocracia indígena através do recrutamento de nativos como forças de apoio em

empreendimentos sociais e cargos na administração estatal; 4º) expropriação generalizada de terras;

5º) extração de “renda” pelo trabalho forçado; 6º) organização de migrações temporárias.

Esse modelo de acumulação pode se aplicar dentro de uma situação colonial clássica (com

um “regime político colonial”) ou dentro de contextos diversos (democracias) através do

colonialismo interno em regiões de fronteira agrícola ou de frentes de expansão. Depois da

incorporação das novas terras e fechamento da fronteira, muitas dessas características tendem a

persistir (como duplo mercado de trabalho, coexistência de modos de produção articulados, e

mesmo o trabalho forçado), através de tipo de relação “centro-periferia” – em que o setor

doméstico e a esfera inferior do mercado de trabalho são a periferia, dependente e subordinada ao

“centro”, composto pelo “setor capitalista” e pela esfera superior do mercado de trabalho. E este

modelo de acumulação tende a ser historicamente reeditado sob certas condições de expansão

imperialista e colonialista.

O sentido da conquista colonial e logo da construção do regime tutelar é, ao estabelecer um

determinado processo de territorialização, sacramentar o resultado da guerra de conquista colonial,

pela imposição de padrões políticos centralizados e certas relações territoriais que ao mesmo tempo

produziam uma inserção na estrutura de classes e institucionalizavam as relações de poder entre

dominantes e dominados. Garantindo também que o resultado da transição capitalista para os índios

fosse seu aproveitamento como mão de obra barata, dentro de um modelo de acumulação altamente

lucrativo. Tudo isso foi recoberto pela ideologia da preservação e proteção que assegurava a

dominação política e a exploração do trabalho indígena.

7.3- Os múltiplos usos e faces da tutela: colonialismo interno e imperialismo.

126 “Nestas colônias de povoamento, uma fração do território colonizado é subtraído à apropriação privada dos colonos. São as “reservas” nas quais se confinam a as populações africanas. Reservas ditas terras, mas sobretudo de mão-de-obra, que foram até o presente momento i trunfo da política econômica dos Estados racistas. Sob o pretext o de preservar as condições de vida tribal, as autoridades tentam ai conter, por leis apropriadas, a emergência de uma propriedade privada da terra e a constituição de relações de produção capitalistas.” (Meillasoux, 1976, p.192).

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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A articulação da etnografia em pequenas comunidades com a análise teórica de processos de

larga escala e longa duração, nos obriga a terminar nossas reflexões por onde começamos: pela

experiência de participação em certas situações sociais na aldeia Cachoeirinha no Mato Grosso do

Sul. A função da teoria é exatamente iluminar a percepção do profundo significado sociológico de

eventos cotidianos.

Uma das primeiras situações sociais descritas neste trabalho, foi o evento da contratação de

turmas de trabalhadores indígenas dentro da aldeia Cachoeirinha. Pudemos ver que as negociações

envolviam diretamente os indígenas: o cacique, o chefe de posto – enquanto funcionário da FUNAI

- os “cabeçantes” e os representantes das Usinas. O representante da Usina Santa Olinda comentou

que os índios trabalhavam em regime do contrato temporário e que os não indígenas eram

empregados em outros regimes de trabalho. Na realidade, esta é uma situação chave para a

apreciação e compreensão da atual situação histórica, porque ela elucida tanto a situação de classe

dos índios quanto os esquemas de dominação e distribuição do poder local.

Em primeiro lugar, trata-se de que os fluxos organizados de trabalho, as migrações

temporárias, constituem uma das principais engrenagens do regime tutelar. Como vimos, a

consagração dos contratos coletivos instituídos pelo Estatuto do Índio de 1973, implicam na

organização de migrações temporárias dos índios. No caso do Mato Grosso do Sul e da industria

canavieira, as mesmas turmas saem várias vezes ao ano, ficando de 60 a 70 dias no corte da cana –

que vai de março até novembro. A situação dos trabalhadores indígenas mostra as formas de

combinação do trabalho na agricultura doméstica, camponesa, com o trabalho assalariado. As

“plantations” exportadoras de cana-de-açúcar e seus derivados, empregam assim formas de extração

de mais-valia e “renda em trabalho” garantida pela existência das reservas indígenas no Mato

Grosso do Sul, o que pode explicar em parte sua lucratividade (ver capítulo 2).

Os dados disponíveis, levantados tanto em campo por meio de entrevistas quanto em

pesquisas em arquivos da FUNAI e jornais, mostra como esta articulação do trabalho indígena se

dava no final da década de 1990 e ainda se dá nos primeiros anos do século XXI:

“A recusa dos índios em assinar carteira de trabalho e contribuir com a Previdência Social está emperrando as negociações em torno do trabalho indígena nas usinas e destilarias do Mato Grosso do Sul. Atualmente, de acordo com o levantamento feito pela “Comissão de Fiscalização das Condições de Trabalho das Carvoarias e Destilarias” e Carvoarias, 2.400 índios trabalham no corte de cana no Estado. Conforme a FUNAI, esses trabalhadores recebem um adiantamento de R$ 100,00 e recebem até R$ 300,00 no final do contrato de trabalho que dura até 60 dias. O valor final depende da produção de cada um”. (Diário da Serra. 17/06/1997).

Em julho de 1997, a Delegacia Regional do Trabalho e a FUNAI percorreram as aldeias do

sul de Mato Grosso do Sul para emitir carteiras de trabalho e previdência social para os índios que

trabalhavam no corte de cana. Tal medida foi estabelecida por acordo entre o MPT (Ministério

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

391

Público do Trabalho) e duas Usinas depois de uma ação civil pública. As estimativas indicam que

cerca de 4.000 índios trabalhavam nas Usinas de Mato Grosso do Sul, sendo que seu vinculo

empregatício se resumia a um “contrato”. Tivemos também acesso a relatórios da FUNAI, que por

diversas vezes anos 1980 e 1990 realizou viagens de fiscalização nas Usinas.

A “Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho no

Estado do Mato Grosso do Sul”, criada pelo Governo Estadual para investigar as denúncias

referentes às condições insalubres e irregulares vividas pelos trabalhadores em carvoarias”,

composta por órgãos públicos e representantes da sociedade civil organizada, foi criada em junho

de 1993. Essa comissão teve suas funções estendidas abrangendo também as Usinas e outros setores

de atividade econômica. Do trabalho dessa comissão resultou que: “Nas destilarias houve uma

melhoria nas condições dos alojamentos, e foi proposto o contrato coletivo para os índios. O

trabalho infantil não-indígena foi praticamente eliminado. O mesmo não aconteceu em relação à

mão-de-obra infantil indígena: por questões culturais, as crianças acompanham seus pais no

trabalho127.”A explicação “culturalista” não esconde o fato de que as condições exploração de

trabalho infantil para os índios perduraram ainda depois do trabalho da comissão.

Da pressão realizada pelo MPT, resultou a princípio uma resistência das Usinas, que se

recusaram a contratar mão-de-obra indígena e ameaçaram levar trabalhadores da Bahia para

substituir os locais. Disso resultou que os próprios indígenas pressionaram a DRT e o MPT, no

sentido de acelerar a resolução do impasse (Correio do Estado, 28/04/1998). Depois de algum

período de pressão, as Usinas aceitaram conceder algumas melhorias e garantias como carteira de

trabalho aos índios. Somente por isso, na situação da contratação em que o “Gato” representante da

Usina Santa Olinda e os o Cacique e o Chefe de Posto procederam da maneira como descrevemos.

Quadro 39 - Mão de Obra Empregada nos setores Fiscalizados pela Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho/SCJT – Governo/MS (1996).

Carvoarias 8.000 Destilarias 12.000 Braquearia 2.000 Algodão 6.000

Erva-mate 800 Total 30.000

Os dados acima mostram que o setor que mais se vale de mão-de-obra é o das Usinas e

Destilarias de açúcar, e pelos dados disponíveis a mão-de-obra indígena corresponderia a 1/3 do

total (4 mil trabalhadores), um número mais do que significativo. E isto porque estamos

considerando apenas as Destilarias de Cana-de-Açúcar. O baixo nível de remuneração salarial e a

127 Comissão de investigação e fiscalização, em 19/05/2006. Autor: Marco Antônio de Almeida a partir do relatório de Jean Rocha para o Programa Gestão Pública e Cidadania. Publicado originalmente como DICAS nº 69 em 1996. Acessado em 07/12/2006. http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=2653

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

392

inexistência de formas de salário indireto e mesmo de garantias formais de contratação, que

caracterizam os fluxos de trabalho indígena no Mato Grosso do Sul, mostra como se dá sua inserção

nesse duplo mercado de trabalho.

A instituição do “duplo mercado de trabalho” no caso da economia agrária do Mato Grosso

do Sul, insere os índios dentro de pesados esquemas de dominação e exploração que se vinculam

diretamente a organização dentro das aldeias e comunidades indígenas. Por isso, as situações

descritas representam a exploração e dominação – herdeira do colonialismo – em processo de

funcionamento. O regime tutelar, mesmo com suas transformações contemporâneas e sua

liberalização, continua mantendo seus principais objetivos– e talvez graças a essa liberalização, sua

função e eficácia enquanto modo de dominação tenha recebido um novo fôlego.

O regime tutelar é uma das engrenagens de um modo de dominação/exploração do trabalho

indígena e as transformações nele tem de ser contrastadas com as transformações em outras

instituições como o duplo mercado de trabalho e com forças econômicas como as migrações

temporárias e relações de produção doméstica. E mais que isso, o regime tutelar historicamente se

estabeleceu na seqüência de políticas de colonialismo interno, e como é o caso de Mato Grosso em

áreas de “fronteira fechada”. Mas na realidade, este próprio modo de dominação/exploração

“regional” está integrado num circuito mundial, numa cadeia imperialista. Uma vez que as

plantations agro-exportadoras, nas quais se colocam as Usinas e Destilarias, fazem parte de cadeias

mercantis internacionais e orienta seus modos de organização pela lógica de competição e pelas

relações centro-periferia da economia mundial. Nesse sentido, o próprio regime tutelar está a

serviço de uma cadeia mais ampla de relações do imperialismo que visa extrair mais valia dos

países da periferia do capitalismo.

Ao mesmo tempo, a participação indígena na negociação de contratos de trabalho dentro da

aldeia abre campo para a reflexão acerca da dominação política e dos diferentes projetos políticos

do grupo étnico. A presença de funcionário indígena representando a FUNAI e do cacique, não

afetam em nenhum momento a estruturação da relação consagrada pelo regime tutelar. Apenas

possibilita que as facções indígenas controlem meios de poder como o “caixa comunitário” e as

relações com o “Gato” e os “Cabeçantes”.

Em outra situação social, igualmente verificada no PI da FUNAI, vimos como os índios

reivindicavam posições na estrutura administrativa do “Estado’, querendo indicar o “gestor” do

“Projeto Pantanal”. Além da idéia de formação de uma “secretaria indígena” na prefeitura

municipal. Essa perspectiva de construção de uma “co-gestão indígena” na realidade deve ser vista

em relação ao conjunto de elementos que compõem o regime tutelar. Observado a partir da ótica da

“governamentalização do Estado”, a co-gestão se apresenta como forma de estender a racionalidade

administrativa, no sentido do aproveitamento dos índios como “forças de apoio” dentro dos quadros

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

393

da administração pública, enviando para trabalhos em regiões que normalmente outros funcionários

não teriam interesse, por meio de contratos temporários e criando formas de relação clientelista

dentro do próprio Estado. A governamentalização representa no sentido de Foucault, a introdução

do principio da “economia política” (racionalidade que visa extrair o máximo das forças

disponíveis) na gestão das atividades regionais do Estado; a criação do “Caixa Comunitário”

enquanto fundo para investimento na “Comunidade Indígena” recobre essa função de

“reciprocidade” e “economicismo” que caracteriza a governamentalização.

No que tange a FUNAI enquanto órgão da administração pública, a idéia da co-gestão tem

um duplo efeito: 1) resolve o problema do recrutamento de funcionários, muitas vezes contratados

de forma precarizada, temporária, que os coloca sob domínio direto da burocracia superior do

órgão, como o caso dos Chefes de Posto; 2) assegura a criação de um interesse indígena na forma

de organização do Estado-Nacional, já que possibilita que facções monopolizem recursos e tenham

asseguradas vantagens pela sua colaboração com os empreendimentos da administração através dos

espaços criados na instituição (secretarias, comissões, cargos e etc).

Para entendermos o sentidos sociológicos das mudanças sociais em curso, de uma tutela

baseada na “gestão branca” para uma tutela baseada na “co-gestão indígena”, temos de observar que

na o instituto da tutela foi empregado em diversos contextos para responder a uma única e decisiva

questão: o que fazer com os colonizados?

Dessa maneira, o fim da primeira Guerra Mundial em 1918 levou a formulação do sistema

de mandatos para avaliar os destinos das colônias da Alemanha e do Império Otomano. No final da

Segunda Guerra Mundial um problema similar foi colocado. As conferências internacionais do

Cairo (Egito) em 1943 e de Hot Springs, no estado da Virgínia, EUA, em janeiro de 1945,

abordaram o problema colonial. “O mais debatido problema foi o destino das colônias européias

no sudeste asiático" (Dilner, 1952, p. 35) “Os primeiros projetos relativos a um sistema de tutela

internacional foram elaborados na Conferencia de Hot Springs” (Dilner, op.cit). Os EUA

apresentaram uma proposta de carta de administração colonial (charter of trusteeship), baseada em

alguns princípios, como a formação de “governo próprio” e formação de “comissões coloniais

internacionais”.

A Conferência de Yalta, 1945, atribuiu a ONU alguma jurisdição sobre a questão colonial.

Delineia-se que o “sistema de tutela internacional” aplicaria-se aos territórios sob o “mandato” da

Liga das Nações, os territórios desmembrados dos inimigos depois da guerra, a qualquer “território

colocado voluntariamente sob tutela”. Na Conferência de São Francisco várias propostas para

regulamentar o sistema de tutela foram apresentadas pela Austrália, China, EUA, França e URSSS.

“Finalmente, o regime de tutela internacional ficou consubstanciado nos capítulos XII e XIII,

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

394

artigos 75 a 91, das Cartas das Nações Unidas” (Dilner, op.cit, p.40). A carta das Nações Unidas

previa o seguinte:

“Art.76: Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo com os propósitos das Nações Unidas enumerados no art. 1 da presente carta serão: a) favorecer a paz e a segurança internacionais; b) fomentar o progresso político, econômico, social e educacional dos habitantes dos territórios tutelados e o seu desenvolvimento progressivo para alcançar governo próprio ou independência, como mais convenha as circunstancias particulares de cada território e de seus habitantes e aos desejos livremente expressos dos povos interessados, e como for previsto nos termos de acordo de tutela..”. (apud Dilner, op.cit, p.43).

O artigo 76 estava relacionado, segundo Dilner, diretamente ao artigo 84, devendo ser lido

conjuntamente para que ficasse claro o regime de tutela internacional:

“Art. 84:“A autoridade administradora terá o dever de assegurar que o território tutelado preste sua colaboração à manutenção da paz e segurança internacionais. Para tal fim, a Autoridade Administradora poderá fazer uso de forças voluntárias de facilidades e de ajuda do território tutelado para o desempenho das obrigações por ele assumidas a este respeito perante o Conselho de Segurança, assim como para a defesa local e para a manutenção da lei e da ordem dentro do território tutelado” (apud Dilner, op.cit, p. 44).

Os objetivos do regime de tutela internacional se relacionavam a “manutenção da paz” e a

“formação de governos locais ou da independência dos territórios tutelados”. Os “acordos de tutela”

começaram a ser firmados a partir de 1946. Os territórios de Camarões, Togo e as Ilhas do Pacífico

foram alguns dos primeiros aprovados pela ONU. Alguns acordos mencionam a proibição do

trabalho forçado, mas o autorizam à Administração Colonial em caso de necessidades públicas

(Dilner, 1952, p.47).

Dilner notou em sua análise do sistema de tutela internacional que ao mesmo tempo em que

a manutenção da paz dava a Autoridade Colonial ou Tutor o direito de movimentar forças militares

nas colônias, para manutenção da “paz e da ordem”, a idéia de um “Governo Próprio” não

implicava necessariamente em independência política. O poder de “dissolução” do acordo de Tutela

dependia do consentimento da ONU e o tutor, investido dos poderes necessários a sua manutenção

(Dilner,op.cit, p. 48). Houve muita resistência dos países tutores (Inglaterra, França, Bélgica) em

aceitar a idéia do governo próprio nos primeiros acordos de tutela e a mais ainda a independência.

Em contrapartida “O acordo de tutela para a Nova Guiné assegurava aos habitantes do

território – ex-vi do artigo 8, alínea “e” – um aumento progressivo na administração do território

e em outros serviços públicos, conforme as circunstancias particulares” e ainda “Os acordos de

tutela para Camerum e o Togo franceses estatuem, no artigo 5, que a Autoridade Administradora

tomará medidas no sentido de “assegurar a população local” a administração no território através

do desenvolvimento de corpos representativos democráticos e a promover as consultas necessárias

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

395

para capacitar os habitantes a desenvolverem livremente suas opiniões a ser alcançada a

finalidade prevista no artigo 76, letra `b´”. (Dilner,op.cit, p.50)

Nesse sentido, assim como no “regime de tutela” do caso brasileiro a idéia de

“emancipação”, o regime de tutela internacional reconhece a constituição de “governo próprio” e/ou

a “independência” como objetivos da tutela. Ao mesmo tempo, os acordos de tutela firmados na

prática apontavam para a subordinação dos territórios tutelados ao Tutor e a ONU, os quais

guardavam o poder de conceder a independência e determinar o ritmo de formação dos “governos

próprios”. Tais poderes foram denunciados nas assembléias da ONU por delegados dos territórios

tutelados.

Aqui o nexo entre a forma nacional e internacional não é ocasional. Podemos dizer que os

parâmetros do Estatuto do Índio assemelham-se aos do “regime de tutela internacional da ONU”, no

que diz respeito à absorção dos povos colonizados na administração colonial. Essa é uma mudança

institucional dirigida de acordo com os interesses dos colonizadores e do imperialismo

internacional. Uma das principais políticas foi o incentivo à utilização dos povos nativos ou

indígenas dentro do pessoal da administração estatal e serviços públicos, e ao mesmo tempo

garantir formação de instituições políticas e a participação dos colonizados dentro delas. A

antinomia inerente ao “regime de tutelar”, é exatamente prolongar as formas de dominação sob o

argumento de preparação da “emancipação” ou “independência”. Entretanto, é preciso considerar

que a formação de “governos próprios” apresenta-se como solução barata e como forma de

cooptação, tornando-se engrenagem da cadeia imperialista. Alguns “Estados” foram declarados

independentes, como a Líbia em 1951, de uma certa maneira resolvendo o problema da “soberania”,

mas não da dependência externa.

Ao mesmo tempo, é possível que a formação desse regime de tutela internacional esteja

diretamente relacionado à expansão capitalista do pós-segunda guerra mundial. Entre 1800 e 1930

as migrações atingiram 40 milhões de indivíduos. Depois da Segunda Guerra Mundial o

“deslocamento dos refugiados está na origem de um certo número de milagres econômicos. Nos

anos 1970, o capitalismo internacional beneficiava-se com 40 bilhões de dólares anuais pela

imigração. Todos os movimentos migratórios coincidem com uma expansão da economia

capitalista, que representam essa transferência para as zonas de emprego”. (Meillasoux, 1976,

p.178).

O regime tutelar, tanto na sua forma nacional no caso brasileiro, como internacional, se

apresenta como nexo entre uma etapa histórica de acumulação primitiva colonial e um modelo de

sobre-exploração numa cadeia imperialista, se inserindo dentro de um modo de acumulação e

dominação. É a racionalização da exploração que o regime tutelar visa garantir, pela reprodução de

uma lógica de centro-periferia entre um setor capitalista e outro doméstico e pelo duplo mercado de

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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trabalho. Dessa maneira, as características principais da exploração sob regime tutelar não são as da

“situação colonial”, mas sim as formas mais complexas e contraditórias do imperialismo, que se

realiza por cadeias produtivas e comerciais, ideologias etnocêntricas e/ou racistas, e técnicas de

governamentalização política.

Mas como essas informações podem nos auxiliar a entender a mudanças sociais verificadas

no regime tutelar e sociedades indígenas no caso brasileiro?

7.4 - Os destinos do regime tutelar e da resistência indígena.

Pensar as mudanças sociais verificadas atualmente nas relações de poder entre os índios

Terena é pensar nos destinos da tutela e da própria resistência indígena. Como vimos, o regime

tutelar passa por um processo de transformação e num certo sentido de questionamento. Porém, o

fato de certas atribuições estarem sendo questionadas (como a substituição das ações dos índios

pelo órgão, e as representações acerca da incapacidade relativa dos índios) não implica no

desaparecimento do regime tutelar. E ainda, mesmo que tal regime seja desmantelado – o que é

possível – não significa que as bases da dominação e exploração indígena sejam destruídas, já que o

regime tutelar é apenas uma engrenagem e forma histórica dessa dominação.

A principal mudança que se coloca hoje é a passagem de uma “gestão branca” – que

caracterizou o SPI - para um modelo de “co-gestão indígena”. Nesse aspecto, a situação Terena

antecipa muitos dos efeitos e contradições que tal modelo pode suscitar nacionalmente. Em

primeiro lugar, cabe indicar que tal modelo se baseia numa política dirigida pelo Estado, através do

Estatuto do Índio de 1973. Porém outras mudanças na arquitetura legal foram decisivas (como as

mudanças na constituição de 1988) e de maneira mais significativa, as mudanças nos arranjos locais

de poder dentro das aldeias, que são o produto das formas cotidianas e abertas de resistência

movidas pelos índios.

Basta considerar o próprio caso dos Terena. A situação da povoação do Bananal, em que a

resistência indígena fez com que o SPI adotasse fórmulas de administração “sem chefe de Posto”,

baseadas em “três caciques” com vistas a “emancipação” da comunidade local. O processo de

instabilidade da administração nas aldeias Terena, em que conflitos de sucessão afetavam não

somente os caciques mas também os chefes de posto em todo o estado. É importante lembrar que

isso se dava no grupo indígena tomado como “colaboradores modelo” do SPI. Isto pode indicar uma

extrema dificuldade de viabilizar a dominação tal como ela existia naquele momento, e uma

insuficiência geral do regime tutelar. Sem os conflito e as lutas políticas, o regime tutelar não se

transformaria da maneira que se transformou. Isso revela em termos gerais a dificuldade do

exercício da dominação e a dependência dialética do dominador da “colaboração” dos dominados.

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

397

A colaboração é o ponto forte e o ponto fraco da estrutura de dominação. Quando ela falha, a

estrutura como um todo se torna vulnerável.

Mas se a figura do “índio funcionário” é uma criação do regime tutelar, não podemos perder

de vista que essa medida encontrou uma base de interesses objetivos nas próprias lideranças e

comunidades Terena. Daí resulta que essa medida de Estado ao mesmo tempo expressa uma

redefinição da estratégia de dominação, redefinição esta imposta em parte pela política de

resistência cotidiana e pelas estratégias indígenas.

As mudanças sociais verificadas no balanceamento de forças, nas relações de poder, podem

ser descritas em seu paradoxo. De um lado, as formas cotidianas de resistência dinamizam e dão

funcionalidade a uma estrutura de dominação, através da descentralização faccional e do

desenvolvimento de um projeto político de “co-gestão indígena” – já realizado no Mato Grosso do

Sul em grande medida, em nível local e regional pelos Terena (que o principal setor de

recrutamento de funcionários da FUNAI). A co-gestão no plano local, como vimos, representa a

colaboração de facções locais transformadas em “aristocracias indígenas”, nos esquemas de

recrutamento de trabalhadores, nas redes clientelistas que exigem o fortalecimento das dominações

horizontais – dos líderes sobre a comunidade, de uma facção indígena sobre outra, de uma

comunidade local em relação à outra e etc. Ao mesmo tempo essas lideranças apresentam o projeto

de formação de uma Co-gestão Indígena Nacional, através da proposta de criação de Secretarias

Indígenas, Parlamento Indígena, da indicação de um índio para a presidência da FUNAI e etc.

Nesse sentido, precisamos mais uma vez recorrer a uma classificação tipológica do sistema

social na atual situação histórica. Em primeiro lugar, o sistema social em que os índios estão

inseridos é um “sistema repetitivo”, e as mudanças sociais verificadas são de tipo cíclico ou

institucional. Ou seja, o fato da dominação global, da existência de um Bloco no Poder, que

mobiliza os índios como forças de apoio em empreendimentos locais, não entra em contradição com

essas mudanças cíclicas e institucionais, locais ou regionais. Na verdade, tais mudanças podem ser

de interesse de tal bloco, ignoradas ou irrelevantes.

A co-gestão indígena implica nos dois tipos de mudança (cíclica e institucional) e como tal

envolve a circulação, substituição ou derrocada de grupos que participam em esquemas de poder

local, se torna igualmente dramática. E por isso interessa aos diretamente envolvidos. As formas de

resistência indígena cotidiana, associadas ao projeto de co-gestão, na realidade representam para

utilizar a linguagem clássica da antropologia política, mudanças nos modos de distribuição do

poder, não no sistema de poder. E nesse sentido, são mudanças “regionais” que levam a uma

reprodução global do sistema.

Mas ao mesmo tempo, “a luta pelo caixa comunitário”, a luta pela “eleição do cacique” e

não sua indicação, a “luta pela extinção do cacique geral”, a luta pela “emancipação de bananal” e o

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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“governo” de três caciques, a luta pelo controle dos bens e da “polícia indígena”, atacam alguns

dos principais efeitos da estrutura básica do regime tutelar: o poder da gestão de mão-de-obra. De

outro lado, a “criação” das associações como parte da luta pelo “controle dos recursos” e escape ao

controle e domínio das facções rivais, e o uso de certa técnicas de luta política (bloqueio de

rodovias, ocupação de terras, tomada de reféns) marcam a passagem às formas de resistência aberta,

e que atingem a dois dos pilares básico do regime tutelar: 1) o padrão de territorialização e de

inserção na estrutura de classes; 2) a estrutura simbólica e política da “incapacidade indígena”.

Nesse sentido, são formas de luta contra os mecanismos de exploração, mesmo que se apresentem

como disputas entre facções indígenas. Por mais que, do ponto de vista de longo prazo, possa

contribuir para a reprodução da dominação do Estado sobre os Índios ao garantir a reprodução do

modo de vida camponês. As associações indígenas, surgindo com caráter de associações produtivas,

com objetivos de aumentar a produção e qua lidade de vida dos membros, e ao mesmo tempo

garantir canais de recursos autônomos e diversificados em relação à FUNAI, contrariam um dos

pilares do regime tutelar. Dessa maneira, as associações indígenas expressam antes de tudo, uma

forma de disputar com a FUNAI o poder de gestão da “economia local”, das terras e dos recursos e

transferi- las aos índios.

O paradoxo do protagonismo étnico, ou da atual situação histórica, está no fato de que as

formas cotidianas de resistência alimentam ao mesmo tempo a estratégia da co-gestão indígena e

também a estratégia da resistência aberta; dinamizam a estrutura do regime tutelar e podem mesmo

reforçar o poder das facções indígenas, e contraditoriamente, o poder de Estado através disso. Essa

resistência pode levar tanto a mudanças – cíclicas e institucionais – quanto à reprodução da

estrutura de dominação. Por outro lado, as formas cotidianas de resistência e de resistência aberta,

mostram os limites da estrutura de dominação, que em última instância depende não somente da

colaboração dos dominados, no caso os índios, mas da neutralização das suas formas de luta política

ou pelo menos de sua discplinarização dentro de certas regras128. O que acontece através do

fortalecimento da dominação vertical (do Bloco no Poder e classe Dominante) e da centralização

(do poder nas instâncias estatais) através da multiplicação das dominações horizontais e da

descentralização faccional (dentro da classe trabalhadora e suas frações e camadas étnicas, como os

Terena). Nesse sentido, o funcionamento da estrutura de dominação dentro das comunidades

128 Estamos entendendo aqui a reprodução do poder e/ou da dominação como: 1) reprodução da autoridade ou força investida; 2) ampliação dos poderes e mecanismos concretos; 3) ampliação dos espaços e grupos submetidos a ela; ou que reconhecem sua legitimidade; ou a tomam como modelo ideal e fazem uso dos seus mecanismos. Retomar discussão sobre oposição aos efeitos da dominação e a dominação em si; entre os tipos de conflito (entre poder central e local e segmentos territoriais e os tipos de mudança social). A reprodução da dominação em uso se dá pela estratégia “do dividir para conquistar” que converteu-se na situação pós-colonial em “dividir para governar”, que é a lógica imposta pelo regime tutelar e pelas relações clientelistas .

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Capítulo 7 – Os Paradoxos do protagonismo étnico.

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indígenas do Mato Grosso do Sul pode ensinar algo sobre o funcionamento da estrutura de

dominação em outros contextos e sobre a estrutura global na qual está inserida.

Na realidade, tanto o processo histórico de acumulação colonial de poderes e capitais em

Mato Grosso, quanto a atual dinâmica de balanceamento forças entre os índios e o Estado, podem

servir como um “modelo de processo de dominação”, que serve para pensar os desdobramentos dos

processos em curso, no sentido que as formas de colaboração, a criação de aristocracias indígenas

e recrutamento dos índios como forças de apoio em larga escala (fato que também aconteceu no

século XIX, com os Guaicurus e Guanás), pode estar relacionado com a necessidade de preparar

condições para outra fase de expansão da fronteira agrícola e de acumulação colonial em outras

regiões e territórios de “fronteira aberta”. Nada na história torna essa hipótese absurda. A própria

experiência da tutela internacional, indica que esses procedimentos constituem saberes

sistematizados pela política imperialista. Logo, o regime tutelar pode passar por mudanças cíclicas e

institucionais, e mesmo desaparecer, mas se não se modificarem as condições gerais nas outras

instâncias – o duplo mercado de trabalho, estrutura de classes, padrão de territorialização, relações

de aliança política entre frações da classe dominada – um eventual desaparecimento do regime

tutelar poderá representar apenas uma mudança secundária na arquitetura da dominação política.

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1926 Relatório IR-6; faz uma descrição das inspeções realizadas nos PI’s durante o ano e menciona o impacto da invasão dos “revoltosos” (1342). Afirma que o PI Bananal foi invadido pelos revoltosos que roubaram 17 cavalos. Há um relatório Anexo sobre as áreas Terena (1454-72). Em um dos anexos (1493) menciona-se a harmonia em que vivia o PI Bananal na relação entre SPI, católicos e protestantes. Microfilme. 341. Fotograma. 1339. 1927. Relatório. IR-6; faz uma descrição as inspeções e trabalhos realizados no ano de 1927. Dá uma lista com os estabelecimentos sob jurisdição da IR (999). PI Terenos: Bananal; Cachoeirinha; Capitão Vitorino (Lalima consta como dos Guaicurus e Francisco Horta como Caiuás). Buriti, Passarinho e Moreira constam como sub-postos. Há em anexo um re latório do auxiliar Roberto Vieira dos Santos Werneck .(1011). Menciona a situação de conflito com os índios de Bananal encabeçados por Marcolino Lili. Fala do bom relacionamento dos missionários com o SPI, e diz que são dois ou três os índios que geram desunião. O Anexo II (1126) consiste em um relatório do auxiliar Roberto Vieira dos Santos Werneck, o Anexo III e IV contém documentos referentes à Bananal (1172). Microfilme 341. Fotograma. 989-1336. 1929. Relatório. IR-6; dá conta de todos os PI’s de MT. Sobre os Terena ver (0900). Microfilme 379. Fotograma. 0823-0907 1930. Relatório. IR-6; quadro demonstrativo de despesas da Inspetoria, e contratação de índios (1659); lista dos PI’s do MT. Microfilme 379. Fotograma. 1656. 1935. Relatório. IR-6; há referências à Lalima, Cachoeirinha e Bananal; conta um conflito ocorrido entre índios liderados por Marcolino Lili e José Francisco (Japonês) e homens que haviam entrado em área indígena com autorização do SPI. O encarregado solicitou a prisão e desarmamento do grupo. Diz o relatório que em consequência disso muitos índios dispersaram p/ Aquidauana para onde foram enviados presos Lili e Japonês. O conflito se encerrou com a intervenção do chefe da IR e a substituição do Chefe do Posto. Lili e Japonês foram transferidos para Cachoeirinha. Microfilme. 380. Fotograma. 1661.

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Agropecuário 1995-1996. Numero 23 – Mato Grosso do Sul. Estatísticas do Cadastro Nacional de Empresas. Contas Nacionais. Número 11. Contas Regionais do Brasil. 2001.

T.R.E. (Tribunal Regional Eleitoral - MS) Locais de Votação.Zona: 015. Município: 91111 – Miranda. SAE204/RE, Miranda/MS. SDR – Sistema de Divulgação de Resultados. Secretaria de Informática. Eleições 2004. Dados da Capital e Interior. Versão 1.1 (CD-Rom).

Relatórios dos Presidentes de Província (in Center for Research Libraries: http://www.crl.edu/content)

Relatório de 1837. José Antonio Pimenta Bueno, 01/03/1838 Relatório de 1838 - José Antonio Pimenta Bueno, 01/03/1838 Relatório de 1840 - Estevão Ribeiro de Rezende Relatório de 1849, 3 de Maio – Pelo Major Doutor João de Oliveira. Relatório de 1851, 10 de Maio de 1851 – Pelo Capitão de Fragata Augusto Leverger Relatório de 1857,– Albano de Souza Osório. Relatório de 1858 – Albano de Souza Osório. Relatório de 1859 – Joaquim Raimundo de Lamare

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Relatório de 1862 – Herculano Ferreira Penna Relatório de 1863 – Herculano Ferreira Penna Relatório de 1864 – Alexandre Manoel Albino de Carvalho Relatório de 1865, 17 de outubro – Augusto Leverger Relatório de 1869. 20 de Setembro - Barão de Melgaço. Relatório de 1872 - Cardozo Junior Relatório de 1877 - 03/05/1877. General Hermes Ernesto da Fonseca Relatório de 1879 - 05/12. João José Pedrosa. Relatório de 1893. Relatório de 1895.

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