tumultúmulos , floriano martins, 1994, 2013 © fotografias ... · peregrino dentro de um quadro....

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© Tumultúmulos, Floriano Martins, 1994, 2013 © Fotografias, Floriano Martins, 2012 © ARC Edições, 2013 Abraxas | Biblioteca Virtual Floriano Martins, III Caixa Postal 52817 - Ag. Aldeota | Fortaleza CE 60150-970 BRASIL [email protected] | [email protected] | [email protected]

TUMULTÚMULOS

1994

À memória do velho Floriano, meu pai

I. SALAS DE RECONHECIMENTO

1.

Sou eu: o nome, as letras em que te arrastas, as perguntas que iniciam a travessia de tua dor. Noite inquieta sob escombros. Delicado tambor das tormentas. Tua sombra vem vindo ao ninho de minhas sílabas errantes. Tua sombra erguida. Intimidade de cinzas onde a dor o lábio toca. Formas ressurgidas do caos. Prolongas teu ser em tudo o que me falta. Noite submersa em tremores. Esplendor de infernos devassados. Pousa tua mão na esfera crepitante de meus sentidos. Uma prova: o livro que conduz ao templo. Missal de cinzas. Teu corpo soprado mil vezes, a queimar mais e mais longe de ti.

2.

Sou eu: a morte, as ruínas de tua história, lugar onde ninguém mais te escuta, onde as pedras de fogo são polidas. Tua sombra erguida, oculto fósforo no desmaio dos sentidos. Os delicados jogos da morte. Assim escavas sob os pilares do tempo.

A treva em ti atingirá a fonte de outra queda. Tumulto que eleva tua vida acima de toda ruína. Noite cerimonial do abismo. Tuas ruínas respiram em meu canto. Mil nomes segreda o ar, ao cruzar as entradas invisíveis. Aqui andei, entre as criaturas dementes do mundo. Peregrino dentro de um quadro. Escrituras folheando o vento.

3. Sou eu: o livro, as vozes de tua memória agitando os segredos do silêncio, tuas carnes devoradas pelo tempo. Ressurges em mim. Ávida sentença de meus dias nas trevas. Alma inacabada a sorrir das formas que engendro como portas ao absoluto. Uma prova: as últimas chamas evocadas. Braseiro confirmando a pele de teus dias, a suportar as figuras do vazio. Noite nascendo em outra noite. Por trás das colunas circulares, o fogo abriga o livro do invisível pranto de suas cinzas. Aqui andei. Fomos um e todos. Mascar o tempo é rito de alucinados. Os episódios virão dar todos nesta escura sala.

II. COLUNAS CIRCULARES

1.

Teu corpo se confunde com o ar. A voz tem origem nas entranhas de um sonho. Sombras projetam no corpo um denso mistério. A sala inteira se deixa tomar por esse mundo de seivas e mananciais da inquietude. Uma música de névoas nos invade. Percorremos as galerias de tua morte, meu pai. Como o próprio verbo, retornamos sempre de um abismo.

2.

E aqui estou, disforme e nu, abismado com a imensidão das sombras. As mil formas do vazio querem gozar de minha intimidade. O silêncio que me atravessa é a prova absoluta do amor. Mas quantos seremos? Quantas vezes nos tocamos uns aos outros? O desconhecido mascara seus rostos e através deles busco teu espírito imaginário. Abrigo onde a noite entra e sai. Na chama desse abismo silencioso arderão as gazes de nossos secretos nomes. O centro da linguagem que se inaugura além de toda espessura. Ali onde espalho as cinzas de nosso entendimento.

3.

Caminho sobre os ossos da terra. A quem julgam incriminar os tribunais da miséria? Que furiosas trevas se ramificam na tez dos condenados? Caminho sobre navalhas cegas. Revoada de espermas contamina todo ardor. Em que palácio de ódio se guarda a lua negra para o amor? Caminho sobre a ferrugem dos velhos fornos do inferno. Quantas fúrias sangrentas nos amaram sem medida? É uma loucura imaginar que tudo isto se tenha passado conosco. Caminho sobre trapos de sentidos. Terra ignota onde o horror multiplica seus rostos. Caminho sobre as dilatadas pupilas do vazio. Serão livros ou dias o que deixo para trás?

4.

Desapareceste da terra dias antes de nascer minha filha. Desde então pude invocar teu nome como o de insinuante mistério que me queima as vestes do tempo. Servo de uma indecifrável história, ouso invadir tua imagem, desvelar tua alma oculta no cenáculo dos sacrifícios. Deixo a vida impregnar-me de sobressaltos, o trovão das horas rabiscar linhas tensas em meus hábitos. Ao mesmo tempo minha filha cresce. Areias me assaltam e tua memória delicadamente ameaça transfigurar minhas quimeras. Julgo sermos o mesmo. Cenário obscuro de silhuetas de estátuas: atrevemos a nos encontrarmos, em meio às tristes imóveis formas que tomaram tantos queridos em nossa morada comum.

5.

Um pescador arriscou teu nome, um tanto incrédulo do mito que acabara de pescar. Em que terras mais insólitas o acaso desova suas crias? – imagino tenha se indagado. Soberano do inóspito, recolhi sua pérola marcada pela eternidade, teu nome guardado em seu íntimo. Teia de vestígios de nossa passagem pela terra, teu nome vindo do mar. Um Preto, um Proteu, um Adão. Ou mesmo um Mínias, um Megareu, um Íaco. As letras ondulam e minha inocência dá a elas vestes indevidas. Sombras assumem a forma do inferno. Os resíduos de tua existência são cinzas, invisíveis suas entradas. Assim as letras se transfiguraram e o pescador renegou sua ventura. O domínio, o clamor, a derrota – tudo isto os nomes trazem em sua lei. Medito então sobre as leis de tua pedra. Nossos nomes são um só: o que posso romper em mim que não seja essência de uma dilaceração de teus anseios?

6.

Tempo lento, água escura. Os corpos se tocam em seu murmúrio. Um jogo de letras invoca nossa perplexidade. Tu, que te ocultas nas distâncias. Eu, que percorro o fulgor das contradições. Água lenta, tempo escuro. Teus vultos são de cera. Uma túnica sinistra me quer pronto para tais fantasmas. Os lamentos tocam um obscuro instrumento. Em disforme sonoridade me interpretam, teu espírito avançando em desigual tumulto. Tempo e água, lenta escuridão. A solidão cumpre seus rituais de espera. Meu pai, meu pai. Ouço estalar teus murmúrios. Confessam-me a casa ferida, espirais de turvo aniquilamento. Um jogo de letras apenas insinua remissão: verbo e elemento nos arrastam por entre salas de reconhecimento.

7.

Fui um mago e a magia surpreendia em mim suas flores de cinzas. Cerimoniosos anéis de fumaça, círculos concêntricos da pólvora, o gesto vulgar das ilusões. Parte de mim, invisível sopra em tuas entranhas, dando vida a tantos mortos. Os ninhos estilhaçados de tuas visões contrastam com a imobilidade de nossos corpos. Os labirintos são um tributo à ressurreição. Um sábio sussurra: a realidade é uma erudição. Fui um mago impotente diante do fogo. Meu corpo passando através do anel. A plástica do abismo provocando risos. Diante de ti, rompe o dique meu torvelinho secreto. Fui um mago, um falcão, um andarilho. O movimento agora é nossa ruína. Permaneçamos mortos.

8.

Uma astúcia semelhante a Deus toca teu nome. As verdades são um tumulto sagaz. Um louco grita fogo e as chamas tomam a forma dos desassossegos. Um livro de deleites na simulada idade dos oráculos. O ouro lavrado da alma contagiada de divindades. Vibra em iras o vento: demônios fazem teu corpo durar mais que o inferno. As leis da vida são uma escala de evidências. Deixo-me envolver por meu próprio sopro. Meu horror confunde-se com a verdade das sombras. Que mistérios pregamos para que a vida se renda ante a custódia do barro? Que infâmia entenderá mais de nós que a própria carne do abismo que amamos todos os dias? Um palimpsesto outorga nossa idade sobre a terra. Estamos na lendarquivestante de nossa sagrada miséria: somos o espectro do homem.

9.

Faz bem estarmos aqui, o tempo ladeira acima. Os dias serão sempre propícios às cinzas. Um poeta tem que vencer esse tremor de ilhas, ser um habitante de suas vertigens. Ir com as jóias do absurdo, discípulo do acaso. A pedra arde e nos diz terra. A água luz e nos revela chamas. A poesia instaura um coração no vazio. Os ossos do dia são tocados pelo absurdo. Uma árvore bem alta prenuncia nosso declínio: regressamos à idade da luz que ilumina. Faz bem semear silêncio enquanto se fala.

10.

As chaves me foram entregues. Cada recôndita sombra vagando pelo mundo deveria passar por aqui. Façam silêncio. A linguagem busca um coro de insinuações. Os ardis do arbítrio cumulam o homem de desertos: o sacrário das tormentas, o soalho das visões, o verbo de tuas costelas, pai, a chaminé dos anseios, a casa e suas portas entranhadas em cada gesto. Moramos no abismo, rodeado de répteis e sombras aladas. Todos os deuses deveriam passar por aqui.

11.

Contudo, ainda tenho que morrer. O relâmpago caviloso do ser nos honrará com a súmula de suas ilusões. Páginas onde as sombras deslizam como répteis tomados por fervor estelar. As almas insidiosas percorrem a vastidão carnal dos telhados. A prece de ossos do abismo. Será o vento nosso único e grande escriba? Algumas últimas chamas nos conduzem sempre a uma cidade alheia. Assim os livros são escritos.

12.

Uma vez teus passos me cercam, outra o teu silêncio se aninha em minhas palavras. As entradas se mantêm invisíveis. Algumas cicatrizes esquecidas riem maliciosas. O tempo exala algum horror, ao desfocar as visões em que fomos entretecidos. Sinistras, as máscaras declinam os detalhes de suas formas. Diante de ti, meu pai, percebo o quanto somos de sombra e memória. Também nossos espíritos se desfiguram: uma linguagem de cinzas acalanta os homens.

13.

O que fazemos? Os invisíveis seres da poesia querem salvar o mundo. No entanto, meu pai me indaga se há no mundo algo a ser salvo. As feridas são a melhor página das provocações. As desgraças inundam a alma de firmezas. Nossas metáforas estão impregnadas de vertigens, mesmo que vagas noções do absurdo. Areias, por sobre as quais seguimos em busca de torpes mitos, um dia acabam por nos engolir. Contudo, meu pai, desfolhamos o obscuro a cada gesto: o eco de nossa sede de risos e espantos não nos abandona. Posso ser tua sombra, Deus, víbora, leitor. O mundo constantemente é salvo por essas terríveis contradições.

14.

Não tenho prática em morrer, suspirou a sombra recostada em uma das colunas circulares. Abafei o grito, reconhecendo nela a minha própria voz. Temos sonhado com isto durante toda nossa vida. Por que me afugenta agora este pequeno fogo aceso em meu espanto? Crescem-me asas disformes. Durante livros a vida espera em mim seu melhor momento: a sombra vindo recolher seus fragmentos, as páginas marcadas de encanto e discórdia. E ouço agora tão-somente o ranger dos dentes do infortúnio. Que louca faina nos reveste de lamentos? Jamais estamos livres de nossas verdades.

15.

Nos desfazemos do mundo a cada instante. As perdas em nós se iniciam muito antes de sua presença. Os corpos despojados de sua queda não são mais que um aquário da existência humana. O degredo essencial das formas é o que torna a poesia o mais errante dos sintomas do ser. Estamos sós, meu pai. A dor queima e move nosso amor. Quanto mais criamos, mais nos dissolvemos. Nenhum de nós está completo.

16.

Tua imagem desfeita, busco agora outra sombra, a mesma, desdobrada em mil mortes. Reino de vertigens da memória, o corpo procura por seu pai entre ossos e nomes. Selva de signos desgarrados do sentido, procura por uma iluminada falha entre dois mundos. Ainda pressinto a mesma catástrofe em teu sorriso, a mesma cela de aflições e sombras em ruínas, o mesmo estancado curso de um rio imaginário. Aberta a folhagem da noite, posso tocar tua imagem desfeita. Um mendigo, um ladrão, um poeta. Meu pai, arrasta tua alma pela terra sangrenta, até que as dores se exilem de tua memória.

17.

A mesma voz sempre indaga se tudo está escrito. Um ruído estendido à tua porta. Outro foco de fagulhas insiste em saber quantas são as colunas circulares. Rumores surgem da terra, erguem abismos por toda a noite. Uma furiosa atração por estrondos nos atormenta. Oh velho murmúrio, velha lei de escombros! Que me dirá o pai desconhecido anunciando a taça de seus enigmas? As raízes se perdem em portas carcomidas por ressurreições. A alma se multiplica em vermes que celebram seu degredo. Por vezes o homem se sente feliz em não ser nada. Ignoro lugar e instante em que me encontro contigo, o que se segue ao som de nosso impossível diálogo. Ouçamos o que diz a morte. Abre o talismã de teus lamentos. Mostra em teu peito onde está escrito que tudo se repetirá. Ouço a pancada seca do tempo em nossas vértebras. A última palavra nos fará a todos mendigos.

18.

Há ossos por toda a terra. Me inunda este abrigo de ossos. A flauta de rumores de tua estirpe. Atrevo-me a percorrer os limos de tua dor. Espíritos se divertem em criar ilusões. Um asno se multiplica em sábios. Uma esfinge confessa seus artifícios. O rosto selvagem de tua pobre estirpe. A raiz ensangüentada de teus delírios. Meu pai, tua árvore se estende sobre o vazio. Cessa o poderio de tua queda flamejante. O mundo se desdobra em tragédias e enigmas. As brancas ruínas de tua estirpe. Somos os imortais ilhados em tua memória. Que dure a eternidade cravada no seio de tuas formas. A pedra pálida de teu reino refeita em mistérios sagazes. Um povo guardado em martírios. O domínio de cinzas de tua miserável estirpe. Meu pai, como possuirmos o fogo, a sagração dos elementos?, a língua arrastar-se por tempestades, testemunha dos diálogos entre vida e morte? Os imortais te odeiam, dementes que mascam a flor dos temporais. Os ossos entulhados de tantos homens não aplacam a ira das cinzas. Falas do filho e selas o abismo de tua voz. Aqui estou e os seres indagam por mim antes de morrer. Entramos em ti pelo portal dos degredos. As negras formas da terra sofrem de teu nome. Somos tua estirpe corroída. Meu pai, os fugitivos de Deus também te odeiam. Temo igualmente desaparecer debaixo da terra.

19.

Os mortos caem do nada. Seus corpos são restos de sombras. Uma pele de cinzas se desdobra em aparições. Os mortos doem em palavras. Uma dama espantosa nos inicia em máscaras e feridas. Tudo em nós se transtorna. Temos as entranhas açoitadas pelo sangue de nossas palavras. Aos borbotões os sonhos se revelam emissários de nossos destinos. As vozes nadam em ânsias. Que obscuro lodo nos rememora? Que intangível surto de lamentos orienta nossos despojos? O fundamento do ser é sua máscara. Caímos de tantas evidências. Um cadáver é uma escultura da ausência. Tenho a dor em meu corpo. Tenho meu próprio canto. Nada dói mais que a memória dissidente. Os mortos estão por chegar.

20.

Pai, os vagabundos descrevem as dores do firmamento com sua própria carne. Apodrecem invisíveis. Os deuses se encantam com o inferno. Nossa memória da terra entrega-se a sacrifícios. Queremos o livro que nos descreva antes do tempo. Estamos morrendo. Represento teu fim. Representas minha glória. O fim ressoa em tremores. A glória mendiga entre tumbas. Rastejamos entre escombros. Como explicar isto em versos consagrados à eternidade?

21.

Este é um velho livro que o pranto escreve. Todo homem quer saber onde se distingue do pai. Pressente as pisadas do passado, as inundações da alma, os declínios sutis da memória, o lento desfigurar das imagens. Um livro se diverte em cruzar os canais do esquecimento. Um livro prolonga os tremores da plenitude. Somos os sombrios escribas. Os que buscam reencontrar no vazio um instante de afago com a carne de seus limites. Necessitamos de um céu, de ossos, de estados mortais. Tudo isto estará disposto em livro, em sangrenta descendência de presságios. A palavra é a única maneira de tocar o espírito, quando a chaga se instala em nossas entranhas. Este é um velho livro, escrito muitas vezes. A dor dissimula seu pranto, não seu conjuro.

III. ENTRADAS INVISÍVEIS 1.

Uma noite para ti, meu pai. O abismo descreve seus mitos. Pedras e plumas causam igual dano ao amor. Um encanto deve te guardar a alma da queda. Apenas uma noite, meu pai. O submerso reino de teus dias se reflete em minha fronte. A língua desfia suas palavras secretas. Um homem lendo um livro e acendendo os jardins do sol, estalando as vozes febris, o terno som dos olhares e o enigmático encontro com a morte. O abismo unido ao teu corpo. Pássaros de fogo soletrando o equilíbrio de tua ausência. Uma noite, pai, e tua sombra guardada por um raio. 2.

Um largo estrondo e o corpo se desfaz. Os rigores do som devoram mito e ruínas. A própria essência do esquecimento se esvai em ecos. O homem não resiste à treva da memória. Dura em si apenas o que não pode destruir: a queda, o fogo semelhante à inacessível noite, as vozes reconhecidas apenas à distância. Fezes de luzes, o lamento de teu sangue. O relâmpago abre sua porta, invade o cego destino que irradia o homem submerso em sua dor. Desfaz-se o tempo. A terra é removida de cada corpo. Tudo é propício a uma fome de ossos. O homem apenas cai.

3.

Sinto o peso de teu coração. Deuses respiram em todas as portas de meu ser. Guardo-me no corpo de cada um, onde ressoam as palavras do fogo: Aclamado pelo silêncio tornei-me um deus. Agora, meu filho, vago por entre as tábuas de um mistério sem fim. Fulgor de trevas! Por trás dessas colunas circulares cada um de nós arrasta sua pesada urna lacrada em agonia. O homem se alimenta dos laços fatais de seus delírios, oh viajante das chamas eternas! Por entre as vértebras agitadas da noite, um homem segue os passos de sua própria sombra. Um homem e sua taça de intempéries. 4.

A sombra é um secreto orgulho do sol. Todo homem acusa a sua própria de conspiração. Um rosto voraz revela um anjo furioso. Meu pai, erras glorificado e cego. Ouve o rumor das vertigens: estamos cercados por sombras afeitas ao puro azeite de nossas relíquias. Os brancos despojos do vazio circundam as raízes do morto. A terra profere seus presságios: O pai está guardado em ti. Outra a treva de teus dons. Recolho o ramo de sua voz, o espírito tomado por uma febre de vidros. Que deuses amar senão os perdidos? O tempo se gasta em oferendas. Os mitos não superam jamais suas alucinações.

5.

Meu pai envelhecido diante do fogo, árvore não mais guardada em tremores. Oh doce treva, tua idade se extingue para sempre? Que obscuro cântico afasta o homem do júbilo de sua morte? Terra e homem diante do fogo, névoa a voz das cinzas. A língua não pode conter sua imagem derramada em cal. Meu pai, com seu pesado corpo alheio ao tempo, parece haver desnudado o inferno, aprendido as palavras com que se faz o abismo descarnar. Rodeado por ávida quietude, o fogo, eterno súdito de impiedades, rege o olhar do morto.

CODA

Cruzamos aqui a tórrida zona da memória, áspera e impura em sua degeneração, arrastados por uma antiga noção do tempo. Tribo errante de solitários fantasmas. Volta ao teu mundo imperfeito, pai. Devemos odiar a moral de tua queda. O futuro que inventas, mas que te negas a habitar. Recuso-me a ser tua intolerável referência. Diante da morte, devo abraçar em mim o golpe de meu próprio infortúnio. Tu és tão-somente os destroços de uma velha catedral. Reina o silêncio quando ecoa o mistério de teu nome. Conserva-se ainda o mistério de tais sílabas? Ruínas do movimento, de tuas ideias sangrando em meu corpo. Somos uma tribo agônica no flamejante curso da história. Tudo está apenas começando.