tudo tende ao tédio demonstrativo do livro

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VERSÃO DEMONSTRATIVA – COMPARTILHE LIVREMENTE

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Amostra do livro TUDO TENDE AO TÉDIO do autor brasileiro Felipe Lacerda Bicalho. A venda desse arquivo é proibida completamente, ele é apenas um material de divulgação. Edit

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VERSÃO DEMONSTRATIVA – COMPARTILHE LIVREMENTE

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1º edição – Setembro de 2014

© Copyright – todos os direitos reservados a Felipe Lacerda Bicalho, reprodução integral ou parcial completamente proibida sem a autorização do autor.

[email protected]

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Sobre o Livro, o Autor e Todas as Coisas:

Primeiramente, obrigado por ter adquirido esse livro. Como deve ter notado o perspicaz leitor, esse é o primeiro volume de uma

trilogia épica sobre o infinito. E como irá perceber, temos ainda uma gigantesca viagem pela frente.

Portanto não deixe de acompanhar os próximos dois volumes. O livro que tem em mãos chegou até você por esforço do próprio autor, o que

significa que essa é uma produção independente realizada com investimentos privados. Quando se fala em produção independente, a primeira coisa que nos vem à mente talvez seja a palavra amadorismo. Mas não se permita enganar. Essa obra demandou bastante tempo e pesquisa para ser escrita e representa, dentre várias outras coisas, um amadurecimento literário. Além de um movimento de releitura dentro do próprio mercado editorial brasileiro, sendo que nossa realidade hoje permite produções como essa, que antes precisaria passar pelo crivo editorial e aprovação de editoras nem sempre comprometidas com a boa literatura. Ou que sequer apostariam em obras pouco ortodoxas e com propostas inovadoras, como é caso.

O que significa também que adquirir esse livro é beneficiar e apoiar o escritor diretamente, sem nenhum intermediário.

Trata-se de um romance ficcional que traz ao leitor uma aventura fantástica – acima de tudo – sem um pingo de realidade comprovável. Mas que se encaixa perfeitamente aos questionamentos filosóficos propostos. Estudante de filosofia e pessoa particularmente bem humorada, Felipe Lacerda nos brinda com um humor e ironia bastante sutil, raro de ser encontrado atualmente. Um cinismo fino e elegante que acompanha a narrativa do início ao fim, obrigando você, leitor, a pensar de forma não linear a respeito da história que está sendo contada. Com o uso de metalinguagem e sem poupar comentários jocosos, o autor nos pega pela mão e conduz ao raciocínio – sem o menor pudor de nos abandonar pedalando sozinhos, como um pai ensinando o filho a andar de bicicleta.

Entretanto não é um livro de filosofia. É uma obra de ficção que, eventualmente, filosofa. E como tal, se permite toda inventividade necessária. A criatividade transborda a cada página, nos enchendo daquela sensação gostosa que só a fantasia permite plenamente, deixando claro a cada cena que tudo – qualquer coisa – é perfeitamente possível.

Você irá rir bastante, chorar, se aventurar, torcer e se emocionar. Muitas vezes poderá sentir até raiva. Mas, sobretudo, irá pensar.

Um livro indicado para pessoas curiosas e inteligentes, que sabem que é bem melhor ter senso de humor do que senso comum. Desaconselhado sistematicamente para quem não gosta de coisas muito profundas.

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INTRODUÇÃO AO OUTRO LADO Tudo o que você precisa saber e mais algumas coisas não tão relevantes

O Universo irá desaparecer e todos sabem disso. Qualquer mente racional

capaz de calcular uma matemática pueril sabe que o Universo se expandirá como uma mola lançada em direção do vazio, atingindo tensão máxima, e então vai se retrair totalmente ao ponto inicial, assim que chegar ao limite de seu movimento. Esse movimento de expansão e retração é chamado por uns simplesmente de ciência aplicada e raciocínio lógico, enquanto outros chamam de Vontade de Uma Entidade Superior (Entidade Superior essa que alguns chamam de Deus, enquanto alguns outros são menos específicos e preferem manter-se em cima do muro – afinal, no desespero que sobrevir, salta-se para a segurança de um dos lados). Alguns acham, ainda, que é uma constatação tão óbvia quem sequer deveria ser chamada de alguma coisa.

Em outras palavras, os habitantes desse Universo não sabem ainda se esse ponto inicial foi uma simples e banal condensação de partículas aleatórias ou se foi a vontade deste Deus – ou outro deus - num movimento todo-poderoso de Criação. Embora os habitantes deste universo não consigam chegar a um ponto de entendimento – ou sequer um diálogo construtivo a respeito – todos eles concordam com a constatação óbvia de que o universo irá desaparecer. Isso é verdade indiscutível e matemática acerca de um dos universos possíveis: No caso, este.

É sensato supor, entretanto, que a mesma verdade não se aplique a todos os universos possíveis. Na verdade, segundo alguns pensadores de Alsa Maior e até mesmo alguns dos pedantes acadêmicos de Juno Calixto, essa talvez seja uma condição existencial degradante demais para ser eleita como regra para tudo o que existe, e só se aplica aos seres mais abaixo da intricada cadeia de existências. Ou formas de vida mais bregas. Como é o caso aqui, veja bem:

Existe, nos confins da periferia da existência, num ponto ainda em desenvolvimento do próprio Universo, uma galáxia menor, que é uma dentre outras talvez 3 bilhões de galáxias daquele mesmo setor específico do Universo, em um dos Universos possíveis. E que irá desaparecer.

Nessa galáxia existem cerca de 200 milhões de estrelas. Uma delas é o nosso Sol. E ao redor deste Sol, existem 8 planetas orbitando contínua e imutavelmente, ao redor do Sol e de si mesmos. Um desses planetas é a Terra.

Terra é um planeta, dentre 7 outros planetas, orbitando um Sol, que é uma estrela entre outras 200 milhões de estrelas, em uma das talvez 3 bilhões

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de galáxias desse setor específico do Universo, que é um dos Universos possíveis, e que irá desaparecer.

No planeta Terra existe água, terra, fogo e oxigênio. Existem também diversas formas derivadas de carbono e um amontoado de outros materiais não tão interessantes. Na verdade, a maioria dos outros materiais ainda é desconhecida, e talvez justamente por isso, a compreensão dos habitantes deste Universo sobre tudo ainda sejam limitadas a uma ou outra suposição acertada sobre a Natureza Intrínseca das Coisas. Mas ainda não podemos afirmar nada.

Existem diversas formas de seres na terra, mas a forma que se acha mais digna de nota talvez sejam os seres vivos (Isso aconteceu porque os Seres do Espelho ainda não acham que devam sair de trás dos reflexos. Como os Seres do Espelho são arrogantes o bastante para não dar a mínima para os vivos, e ninguém jamais soube que eles existem, coube aos vivos ser a espécie dominante. Por puro desinteresse de seres mais evoluídos). Calcula-se que exista no planeta Terra cerca de 13 milhões de seres vivos. Terra é um planeta, dentre 7 outros planetas, orbitando um Sol, que é uma estrela entre outras 200 milhões de estrelas, em uma das talvez 3 bilhões de galáxias desse setor específico do Universo, que é um dos Universos possíveis, e que irá desaparecer.

Dos prováveis 13 milhões de espécies de seres vivos existentes na Terra, apenas 3 milhões de espécies estão catalogadas. Por incapacidade ou por preguiça, teoriza-se. Uma dessas espécies de seres vivos catalogados na Terra é o autoproclamado Ser Humano. Seres Humanos são chamados também, por otimismo gritante, de homo sapiens, e possuem polegares opositores, telefones celulares com wi-fi, capacidade de se apaixonar perdidamente uns pelos outros e submetralhadoras com pente recarregável que podem ser utilizadas por crianças porque pesam menos que uma enciclopédia – e, naturalmente, possuem um cérebro desenvolvido para atividades motoras complexas e raciocínio lógico, embora sabidamente nem todos compartilhem das mesmas capacidades de uso das ferramentas que dispõe. Os homo sapiens estão no topo da cadeia alimentar deste pequeno planeta redondo-azul. Isso se dá, é claro, porque a cadeia foi construída por eles.

O Ser Humano é uma das 3 milhões de espécies de seres vivos já catalogados, entre prováveis outras 13 milhões de espécies de seres vivos existentes no planeta Terra, que é um entre 7 outros planetas orbitando um Sol, que é uma estrela entre outras 200 milhões de estrelas, em uma das talvez 3 bilhões de galáxias desse setor específico do Universo, que é um dos Universos possíveis, e que irá desaparecer.

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Os Seres Humanos atualmente existem na população de 8 bilhões de exemplares de sua espécie.

Um deles é você. Você é um Ser Humano, com polegares opositores e capacidade de se

apaixonar perdidamente por alguém, dotado de capacidades motoras complexas e engenhosidade cognitiva suficiente para projetar uma submetralhadora com pente recarregável que pode ser utilizada por crianças porque pesa menos que uma enciclopédia. Você é um exemplar entre outros 8 bilhões de Seres Humanos de sua espécie, que por sua vez é uma entre outras 3 milhões de espécies já catalogadas (dentre as prováveis 13 milhões de espécies de Seres Vivos existentes no Planeta Terra).

Terra é um planeta, dentre 7 outros planetas, orbitando um Sol, que é uma estrela entre outras 200 milhões de estrelas, em uma das talvez 3 bilhões de galáxias desse setor específico do Universo, que é um dos Universos possíveis, e que irá desaparecer.

Então, pelo menos Divirta-se.

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- Capítulo 1 - A SALINHA DE ESPERA DO INFINITO

Imaginemos essa história como sendo algo que poderia acontecer,

embora a nossa limitada visão das coisas e compreensão da realidade nos aponte tudo isso como um alarmante delírio de um louco. Não quero dizer que é possível, nem que deveria ser. Mas digo, com máxima certeza e sem a sombra irritante da dúvida racional, que pode perfeitamente estar acontecendo neste exato momento. Nunca se sabe. Não tem mesmo como saber.

Aconteceu entre o café da manhã e o almoço, talvez entre 10 e 11:30, se considerarmos que nosso personagem ainda não estava com fome, mas também já não se sentia tão saciado assim. Pense sobre isso. Seu corpo sabe quando está na hora de comer. Um relógio biológico é algo engraçado. Faz parecer que existe algo no seu corpo, nas suas entranhas e tripas, sabendo mais sobre o Universo (e a vida) do que você. Ainda que você me pergunte: “Isso é absurdo, como pode? Como iria saber meu intestino sobre o cosmos se o intestino sequer pode pensar, ou possui inteligência própria?” – Ora, não pretendo entrar em detalhes constrangedores sobre o caráter discutível do próprio conceito de pensar e da sempre duvidosa inteligência própria. Em vez disso, apenas posso dizer que há a possibilidade bastante plausível de que pensar talvez não seja a forma correta de saber coisa alguma sobre o cosmos.

Mesmo assim, diante de uma possibilidade tão maravilhosa como essa, ainda insistimos em saber do vento mais que o nariz. Não é à toa que boa parte do multiverso lava as mãos com bactericidas após cumprimentar uma alma humana. Há um tacanho caráter viral na nossa relação com o mundo.

Mas não vou chamar isso de parasitismo, você provavelmente se ofenderia se eu disser agora que de tudo o que existe, você (e eu) somos o que menos importa. Quase como se fôssemos a sobra do que restou. Um vice-treco do sub-troço.

E além do mais, esse livro está apenas começando. Mais indicado seria eu cuidar para que você se ofenda mais para o final, onde sua atenção estará fisgada e você se sentirá no dever de alcançar a última página. Não quero que você me abandone com questões tão pertinentes e reflexões tão insalubres na cabeça. Mas se o fizer, saiba que não o faz sozinho. Se existe algo nada original na espécie humana é a inclinação que temos para não completar alguma coisa.

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De sermos assim, tão profundamente estúpidos e ineficientes. Deve ser por isso que 3 a cada 10 esferas de existência não permitem nossa entrada.

Assim sendo, ninguém se surpreenderá se você cumprir com o que se espera de nossa espécie: Um completo desinteresse pelas questões mais óbvias.

O Ser Humano também é conhecido por sua negligência. Corre por todas as mesas de bar do universo bidimensional de Colipsionar a piada sobre uma espécie tão burra, mas tão burra, que está tentando explorar os planetas vizinhos antes de resolver os problemas mais básicos do próprio planeta. Mas essa é outra história. Importante é sabermos que existe o consenso de que a ignorância humana é a única coisa no Universo capaz de nos dar uma ilustração perfeita do infinito.

O primeiro passo que daremos rumo à compreensão do que diabos afinal está se passando aqui, é conhecermos Jean Knoxville. Um sujeito bastante comum e ordinário, se prestarmos atenção. Nada extraordinário ou excepcional, apenas mais um entre outros oito bilhões de homo sapiens. Nunca foi bom nos esportes nem soube como lidar com o sexo oposto. Tão pouco sabia de cor a tabuada, e foi alfabetizado com quase dez anos, mesmo mediante as tentativas efusivas do Estado de enfiar nele algum tipo de instrução, ainda que de utilidade questionável. Também não conseguia ajustar um relógio digital, o que lhe deixava inquieto. Mas se confortava com o fato de saber preparar uma lasanha de micro-ondas, o que em dada medida, garante uma sobrevivência mais eficientemente que a habilidade de compreender configurações digitais usando apenas 4 botões. A não ser que você precise configurar aparatos digitais usando apenas quatro botões para sobreviver. Neste caso, suas habilidades com Lasanha são tão inúteis quanto conhecer as regras de baseball num jogo de QuarterBack Venuziano.

Jean Knoxville, nosso herói – apenas no sentido literário - nunca soube quais gases compunham os anéis de Saturno, mas pagava todas as contas em dia e sempre dava o troco da padaria para o mendigo idoso que ficava encostado sempre no mesmo canto. Fazia isso não por esperança de uma recompensação divina póstuma ou por qualquer outra necessidade cósmica de altruísmo. Fazia apenas porque se sentia estranhamente constrangido por haver outro Ser Humano, também com polegar opositor e cérebro altamente desenvolvido, pedindo esmolas para comer. Em outras palavras, Jean era apenas um indivíduo comum, se isso ainda significar alguma coisa.

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Jean nasceu em 1987, ano em que o cinema americano lançou no mundo uma pérola de simpatia e sensibilidade chamada “Conta Comigo1”, que você leitor deveria assistir, pois se trata de um mergulho no branco que havia na tela da alma antes da gente pintar tudo com os dedos, supondo desenhar bem, mas cometendo manchas terríveis.

Por outro lado, aquele também foi o ano em que o mesmo cinema lançou Robocop, o que nos dá uma excelente ilustração do quanto a vida é dialética e ridiculamente sem sentido na maioria absoluta das vezes.

Claro que eu estou falando do ponto de vista do Jean. Não é porque nós não enxergamos o sentido que ele não exista. Nós podemos estar cegos por praticamente qualquer motivo, qualquer razão. Embora na maioria esmagadora das vezes estejamos cegos apenas porque sentamos no chão e ficamos dando birra em autocomiseração absoluta na esperança vã de que alguém nos ouça e venha dizer: “Pobre de ti, ser miserável! Eis a resposta para todas as suas perguntas, basta que você assine aqui e aqui. Também aqui. Obrigado!”. Nós planejamos coisas maravilhosas, e de um modo abstrato, se ilude que fez o melhor possível.

Mas não é essa a questão aqui. A maioria de nós apenas não se importa com as respostas, ou sequer saberia formular as perguntas. Existe uma teoria bastante popular entre os habitantes da Quarta Dimensão2 que sugere que todas as respostas, para qualquer pergunta, estejam disponíveis se você souber fazer a pergunta correta. E esse é justamente o problema, já que para fazer perguntas corretas é preciso ter a dúvida correta.

Entretanto, o interessante da vida neste pontinho circular pálido-azul no Universo é que você pode construir castelos, mover montanhas, conquistar nações. Ou simplesmente passar as tardes jogando dominó na mesinha da praça. Do lado de fora da Terra, olhando pra ela, qualquer um diria que você sequer existe.

Eis o ponto. Significância. Você nasce, cresce, passa parte da vida tentando não se reproduzir, e morre. Ou se reproduz, constrói uma família. Uma

1 “Stand By Me”, no original. Filme baseado em um conto de Stephen King, que narra a aventura de um grupo de jovens amigos numa jornada para ver o corpo de um menino morto. O filme, que ao contrário dos textos habituais de King, não é uma história de horror. É uma história sobre cumplicidade e infância, focada no quanto a vida pode simplesmente ser cruel às vezes. 2 Não vou dizer que a Quarta Dimensão seja o lugar mais próximo que existe, mas está tão coladinha na nossa

dimensão que você ficaria surpreso. O problema é que nenhum ser humano jamais conseguiu abrir a porta para ela, embora um ou outro já tenha acidentalmente esbarrado nela ao captar por acaso uma frequência estática de ondas curtas na largura exata da fissura enquanto tentava sintonizar um jogo de futebol em seu radinho à pilha.

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família linda. Todos com a felicidade estampada na cara, mesmo quando as coisas não vão tão bem assim, porque sabem que possuem um ao outro e o amor é uma força edificante que transpassa qualquer racionalização ou experiência de medo ou desespero. Talvez, veja só, você descubra que ainda que viva em pobreza miserável durante todos os anos de sua vida, ainda será o homem ou mulher mais afortunado de todo o planeta se tiver ao seu lado aquele conjunto específico de rugas no rosto de um amor, aquele arco delicado de um sorriso. Sorriso, que descobriremos adiante, se trata da arma mais poderosa que existe.

Viver pode ser profundamente gratificante - ou um dramático desastre, eu digo. Ou melhor, é o que quero dizer. Não me tome por demasiado frio ou pessimista. Sou apenas o narrador dessa história. Não sou a mensagem, sou apenas o mensageiro. E todos nós sabemos que matar o mensageiro é inútil.

Pois bem, enfim: A vida é boa ou a vida é ruim, pode ser a vida gloriosa ou a vida mais vergonhosa. A vida pode ser útil ou um completo desperdício de carbono. Não importa muito (ou quase nada) quem você seja, acha que é, ou gostaria de ser. De qualquer jeito você - como a árvore, o esquilo, a coruja e o Universo – um dia morre.

Foi exatamente isso o que aconteceu com Jean Knoxville. 27 anos, 3 meses, 48 dias, 9 horas e 48 segundos após nascer, Jean

Knoxville morreu numa calçada suja e malcheirosa da Alameda Virtuosa, perto de casa. Dois quarteirões de casa, na verdade. Foi atravessar a rua segurando nas mãos três pacotes da padaria com pão francês quentinho, leite, queijo e alguns biscoitos de polvilho. Estava pensando em Carla Tícia quando o celular tocou. Deve ser ela, não seria incrível? Uma dessas coincidências loucas que acontecem quando a gente pensa bastante numa pessoa e de repente...

Bem, Jean tirou do bolso o celular e segurou na orelha com os ombros. E como sabemos, coincidências não acontecem apenas para o bem-estar dos corações apaixonados, e calhou que coincidentemente o motorista de um carro amarelo estivesse desatento justamente pela razão contrária. O cérebro deste, ao contrário do cérebro de Jean, estava também enevoado, mas era em razão de sua esposa, que o havia traído com o rapaz da portaria do prédio. Um belo e viril exemplar de macho alfa. Era a mesma nebulosa que cegava também a visão do apaixonado Jean, embora tenha uma origem, destino e aparência diferente. Surpreendente ou não, percebemos que quando se trata de um sentimento suficientemente forte, o cérebro altamente evoluído da espécie humana perde o foco e para de operar racionalmente, começando a agir feito um completo idiota.

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Eis a ironia à mesa, apresentando sua falta de boas maneiras: O cérebro do motorista não percebeu que Jean saia da padaria particularmente distraído. Já o cérebro de Jean, por razões bastante similares, não atentou à rua que atravessava. Foi suficiente para uma parte de seu cérebro não tomar o cuidado que deveria para assegurar a sobrevivência do corpo padecido de amor. E por um simples detalhe, como olhar para o lado certo ao atravessar a rua, o carro amarelo o jogou contra o poste mais próximo, onde a cabeça careca de Jean virou uma abóbora rachada em duas no meio fio. Tudo o que nosso herói ouviu antes de expirar foi um estrondo forte e oco, um baque violento e a sensação que os pássaros tem quando cruzam um espaço aberto sem se importar com questões fúteis como a gravidade. Mas ao contrário dos bem-aventurados pássaros, a espécie de Jean não é dotada de ferramentas adequadas para ignorar a gravidade. Fim da trajetória de Jean na Terra, e o início de nossa peripatética história.

Vem comigo. Quando o rapaz abriu os olhos novamente, pode-se dizer assim, estava

sentado numa salinha de espera ao lado de outras 10 pessoas, e todas elas pareciam tão perdidas quanto ele. Parecia uma antessala de dentista, e isso o deixou perturbado, embora estranhamente familiarizado. Odiava dentistas, mas quem não? Na verdade, o problema não era com os dentistas. Era a sala de espera. A espécie humana consegue construir submetralhadoras com pentes recarregáveis que podem ser operadas por crianças por que pesam menos que uma enciclopédia, mas ainda não conseguiram pensar numa solução mais inteligente que uma sala de espera.

A secretária, em sua mesinha de secretária, digitava num computador de secretária. Quando viu que Jean havia chegado, sorriu para ele com toda a simpatia que existe no Universo. Jean Knoxville estava completa e absolutamente apavorado, perdido e confuso. Mas como acontece com todos os sorrisos que se tem notícia, Jean apenas sorriu de volta. Consta em todos os manuais já escritos sobre o Multiverso que alguns povos usam o sorriso como arma de guerra com bastante eficácia. Aparentemente, mocinhas sorrindo com toda a simpatia do Universo tem poder letal maior que submetralhadoras de pentes recarregáveis.

Jean tentou dizer alguma coisa, mas antes de articular a primeira sílaba, a mocinha ruiva da recepção sorriu e apontou para um grande quadro emoldurado na parede. O quadro, muito bonito, mostrava a foto de uma

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enfermeira com o indicador à frente dos lábios. Sinal multi-universal de silêncio. Não precisava de qualquer legenda.

Então Jean esperou ser chamado, pois entendeu que havia um papelzinho com uma senha em suas mãos, e havia também um letreiro chamando por senhas em cima da mesa. Sua senha era a 452. O letreiro acabara de chamar a senha 448.

Bom, não demoraria muito. Enquanto sua vez não chegava, embora não soubesse para que estivesse ali ou se deveria ficar feliz ou não por sua vez estar chegando, olhou para seus colegas de espera. Trocaram olhares cúmplices, e Jean entendeu que não era o único ali sem a menor ideia do que estava acontecendo, ou o que estavam esperando.

De repente o letreiro apita um som de sino, como a porta de um elevador se abrindo. O marcador de senhas mudou para 449, e um senhor com olhar cansado se levanta. A secretária sorri para ele e indica a porta branca de madeira. O senhor entra, a porta se fecha atrás dele. Não deu pra ver o que estava do outro lado.

Jean continua olhando para os que ficaram. Um jovem com um skate embaixo dos pés, meio desorientado e angustiado com alguma coisa. Parecia querer tirar um celular do bolso e jogar algum joguinho até chegar sua vez. E é essa a expressão no rosto dele: Como se a bateria do celular estivesse acabado quando ele mais precisava dela.

Ao lado do jovem uma senhora apertava a bolsa contra o peito, como fazem as senhoras sensatas na saída do banco. Outra cadeira adiante estava um senhor de terno, depois outro senhor de terno, e então um sujeito alto, negro, com uma expressão de tédio. Seu rosto não parecia cansado nem confuso, mas sim profundamente incomodado. Aquilo ali não parecia lhe agradar em absoluto, como se alguém o tirasse da mesa de um bar para resolver uma equação de álgebra.

Não parecia em nada irritado ou sequer impaciente, mas certamente a palavra tédio definiria a expressão em seu rosto. Ao notar o olhar de Jean, o sujeito sorriu num cumprimento desajeitado. Jean sorriu de volta, é o que sorrisos fazem. Sorrisos exigem respostas positivas. Nunca se soube, em toda a história – tão pouco em nossa história – de um sorriso honesto que tenha sido respondido com um soco.

Claro que havia ainda outras pessoas na Salinha de Espera do Infinito, todos sabem que essa sala fica movimentada aos fins de semana, mas Jean parou de prestar atenção nos demais e fez um gesto com as mãos espalmadas para o sujeito negro e alto. Aquele gesto universal que diz: “O que diabos está

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acontecendo?” – o sujeito piscou duas vezes e apenas estendeu a mão espalmada para Jean, pedindo a ele que esperasse. A junção do gesto com a expressão do rosto dele, mais o sorriso apascentador e o manejar de cabeça diziam: “Calma, espere só um pouquinho e vai descobrir”.

Então Jean concluiu que seria melhor mesmo esperar. E neste momento pensou que já deve passar das 11 horas e Carla Tícia deve estar apertando sua campainha, ou ligando para seu celular. Mas não havia relógio algum na Salinha de Espera do Infinito, então não pôde ter certeza. A única coisa que teve certeza foi que não havia tomado seu café, e embora isso tenha a ver com um carro amarelo, parecia não fazer mais diferença. Apenas pensou nos pães fresquinhos e nas rosquinhas de polvilho. A única coisa que pensava é que não havia tomado seu café, e isso pareceu-lhe tão incômodo que procurou uma garrafinha térmica ao lado de copinhos descartáveis numa bandeja prateada forrada com uma rendinha branca. Esse é um protocolo mundial de salinhas de espera. Mas não encontrou. Não havia sequer um jarrinho de vidro com balinhas de café em cima da mesa da recepção. Jean nunca entendeu o que levaria alguém a criar uma balinha de café, assim como nunca entendeu porque alguém comeria uma balinha de café, mas começou a achar que esse seria um dia muito, muito longo.

E uma balinha de café já ajudaria bastante. Novamente o sino de elevador. E a senha chamada foi a sua. 452. Não

entendeu como pôde não haver percebido que as anteriores tinham sido chamadas, mas não questionou isso por muito tempo. Apenas levantou-se. A mocinha ruiva da recepção que digitava ergueu os olhos para ele e sorriu de novo. Ele sorriu de volta. Agora precisava entrar na porta branca. Mas antes de entrar, procurou de novo pelo sujeito negro e alto, que acenou de volta com um amigável movimento de cabeça que dizia, entre muitas outras coisas: “A gente se vê por aí”.

Então entrou na porta branca, que se fechou atrás de si. Do outro lado da porta havia uma sala pequena e abarrotada de estantes,

com milhares de livros. A sala era definitivamente pequena demais para a quantidade de livros que comportava. Prateleiras e prateleiras com livros de registro de capa dura escura. Uma lâmpada fluorescente enchia tudo daquele branco pálido, e havia uma mesa grande no centro da sala. Uma mesa com uma pilha de fichas de arquivo e um computador. Ao lado da mesa grande uma outra mesinha, onde uma garota de óculos fundo de garrafa tinha apenas uma máquina de escrever à sua frente. A garota parecia séria demais, ou tímida demais, ou compenetrada demais. De qualquer forma, nem olhou na direção de Jean. Ao contrário do sujeito na mesa maior, que o encarou bem dentro dos

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olhos. Mas sem sorrir ou ser simpático, era apenas um olhar dentro dos olhos da gente. Estendeu a mão para que Jean se sentasse. Mãos foram apertadas.

Aquele sujeito parecia extremamente profissional, a julgar pela gravata e paletó perfeitamente alinhados, mas não parecia em nada com um médico. A Salinha de Espera do Infinito apenas parecia ser um consultório, afinal.

_Seu nome e dimensão de origem, por favor. Jean o olhou com espanto. Não sabia o que responder. É claro, sabia seu

nome. Essa resposta era fácil. Mas a dimensão de origem? O sujeito de gravata respirou fundo. _Já sei, não precisa dizer. Terra, certo? Terra pareceu ser a resposta certa. _Sim, Terra... Planeta Terra. _Sempre assim, sempre assim... – o sujeito começou a digitar em seu

computador. Ao mesmo tempo, a mocinha tímida ou séria ou compenetrada começou a bater em sua máquina de escrever. Ela parecia registrar tudo o que diziam na sala, como um escrivão registrando depoimentos de testemunhas num tribunal. Tribunais deixam Jean desconfortável, embora nunca tenha estado em um antes e não saberia afirmar se estava em um agora.

_Senhor, eu gostaria de saber o que está acont.... O homem apenas levantou uma mão. Jean se calou. O sujeito continuou

digitando mais um pouco, e sem olhar para o rapaz, perguntou outra vez pelo nome.

Jean limpou a garganta antes de responder: _Jean P. Knoxville _Knoxville... Knoxville... – o homem digitava _O “k” é mudo? _Sim. _ok. Continuou digitando. _Qual é seu nome do meio? _Paulinelli.... – respondeu Jean, e antes de ouvir a próxima pergunta,

acrescentou _São dois “L’s”. Na última sílaba, eu digo. _Jean Paulinelli Knoxville, da Terra. _Acho que sim – confirma Jean, sem saber ao certo o que estava

confirmando. A expressão do homem mudou de alguma forma, ele parecia haver

encontrado o que pesquisava, e digitou mais algumas coisas no computador. Jean tentou esticar o pescoço para enxergar o monitor, mas o olhar do homem o fez recuar para o encosto da cadeira.

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_Pois bem, senhor Knoxville – finalmente o homem de gravata disse algo _O senhor deve se encaminhar para o portão 2-B e preencher o formulário azul. O seu caso é obviamente um BetaTeste.

_BetaTeste? – a pergunta saiu tão sincera e tão genuinamente coroada com uma interrogação, que nem se fosse um espirro seria tão espontânea.

O homem de gravata respirou profundamente mais uma vez. Sem mudar sua expressão séria e profissional, apenas disse que todas as respostas poderiam ser encontradas no portão 2-B, assim como todas as instruções de preenchimento do formulário azul. Jean não sabia o que dizer. Tinha muito que perguntar, mas percebeu claramente que o assunto ali havia acabado.

_O senhor pode sair por aqui, muito obrigado pela paciência – o sujeito engravatado apontou para uma porta de madeira nos fundos da sala. Jean se levantou e saiu, agradecendo. A maior parte das espécies civilizadas age com o automatismo da educação que recebeu quando estão em situação de confusão mental. É como se o cérebro, sem saber ao certo o que fazer, ativasse um piloto automático comportamental.

“Espécie Civilizada” era exatamente o caso de Jean - então ele apenas agradeceu ao curto atendimento e saiu sem entender patavinas do que acabara de acontecer. Mas mesmo assim fechou a porta sem fazer barulho, como manda a boa educação.

A mocinha que digitava todo o conteúdo da Primeira Entrevista ajeitou os óculos fundos de garrafa no nariz. Assim que o funcionário lhe entregou a ficha impressa do passageiro que acabara de entrar, ela confirmou suas suspeitas mais esperançosas. Esboçou um sorriso quase invisível, que se desenhou apenas no lábio inferior de forma muito feia. Ninguém que visse aquilo diria que era um sorriso. Mas era, por que sorrisos não precisam ser vistos como sorrisos para serem sorrisos. Nós ainda não sabemos, e tão pouco sabe Jean Knoxville, mas essa mocinha de óculos de fundo de garrafa terá um papel quase fundamental nessa história toda, e salvará a pele – não apenas de nosso herói – mas de toda a nossa galáxia.

Entretanto, ainda não é a hora de sabermos sobre isso. Uma história precisa ser contada ao redor da fogueira, aproveitando as sombras e o calor, uma palavra de cada vez. Segue o próximo passo de Jean, para que depois a narrativa se encaixe. Confie em mim, você irá gostar quando chegarmos lá.

*

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Do outro lado da porta havia uma confusão gigantesca de pessoas indo e vindo em todas as direções, como um enorme aeroporto internacional. Havia pessoas de todas as etnias e cores e sotaques. Milhões de vozes falando ao mesmo tempo, perguntando coisas e respondendo coisas, rindo e chorando. A quantidade dos que riam era esmagadoramente maior que a quantidade dos que estavam chorando, mas como o choro é mais alarmante que a risada, Jean reparou de imediato naqueles que choravam. Não soube dizer bem o porquê.

Na verdade, a única coisa que diferenciava aquele enorme saguão (que parecia se estender até o infinito) de um aeroporto internacional, é que não havia em nenhum canto sinal de bagagem alguma. Ninguém carregava malas, nem bolsas, nem mochilas, nem carrinhos de bagagem. Por alguma razão, todos estavam ali apenas com a roupa do corpo. E ninguém fala ao celular, o que trouxe uma estranheza absurda à cena, bem mais que o detalhe das bagagens. Nunca se soube de um aeroporto onde não houvesse pessoas ligando para outras pessoas para dizer a essas outras pessoas que elas estavam partindo ou chegando.

Ou todos não tinham celulares, ou todos não tinham a quem ligar. Ou todos não podiam ligar? Ou todos tinham celulares, e também tinham a quem ligar, mas os celulares não funcionam neste “aeroporto”?

Ficou um tempo embasbacado com as luzes, as vozes e as dimensões infinitas do lugar, cheio de esteiras, escadas rolantes e pessoas que iam e vinham e às vezes paravam. Ele mesmo foi um dos que paravam. Jean permaneceu ali parado procurando pelo tal portão 2-B ou qualquer coisa que pudesse servir de instrução até o portão 2-B, quando uma voz feminina muito doce e simpática chamou sua atenção logo atrás de si.

_Está perdido, senhor? Posso lhe ajudar? Jean girou nos calcanhares automaticamente, e se deparou com uma

mulher baixinha, simpaticíssima, num terninho azul de veludo e um crachá. Seu crachá não tinha nenhuma indicação de função, cargo ou empresa. Continha apenas seu nome: Celestine. E era assim, apenas o primeiro nome mesmo.

_Hann... Oi, Celestine, certo? Mmm.... Sim, eu estou.. Completamente perdido.

Celestine sorriu um largo e franco sorriso cheio de dentes perfeitos. A tez rosada se esticou no rosto quando o maxilar se movimentou, fazendo o rosto redondinho dela parecer uma pequena boneca de porcelana maquiada de forma tão sutil que não parecia uma maquiagem. Seus olhos castanhos brilhavam de vontade de ajudar e isso soou confortável no espírito do rapaz.

_Eu... Acabei de chegar – diz ele, enfim.

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_Oh, sim, eu vejo. Seja muito bem vindo ao nosso setor – dizia ela sem desmanchar o sorriso nem para respirar _Como o senhor já sabe, sou Celestine, e gostaria de lhe ajudar no que for possível. O senhor acaba de chegar de onde?

Jean pensou bem. Tentou organizar os fatos, mas a ordem deles parecia bem confusa em sua cabeça. Ele chegou de onde? Parece evidente que ele deveria saber a resposta, mas não estava assim tão claro. Foi acordado hoje às 7:35, ativou a função soneca do despertador, levantou de verdade às 7:45, escovou os dentes. Pasta de dente mentolada, escova branca, movimentos circulares. Escovou a língua. Quase vomita, sempre. Enxugou o rosto com uma toalha pequena e ficou espremendo alguns cravos. Achou dois, um na testa e outro no queixo. Encarou bem seus olhos no espelho, sua careca reluzente e as olheiras profundas.

Depois fez café. Água. Dois copos de açúcar, três colheres de pó. Água fervendo.

Paz, calma e aquela inexplicável felicidade inspirada pelo cheiro de café passado na hora3. Dai ligou para Carla para confirmar o almoço, porque hoje é domingo, e domingo é dia de almoçarem juntos. Ela confirmou o almoço, bastante animada, disse que iria levar uma mousse de maracujá. Sua mousse de maracujá não é nem de longe a melhor mousse de maracujá do mundo, embora ela tenha a plena convicção de que sua mousse de maracujá seja o próprio manjar dos deuses, ilusão que Jean nunca fez a menor menção de desmanchar em sua cabeça. Apesar de seu conhecimento sobre a psique feminina ser um montante próximo de zero, aprendeu na prática que os seres humanos do gênero feminino possuem neuroses de estimação que convém a todos ser mantidas como estão.

3 Existem centenas de coisas em nossa dimensão que foram inspirações diretas de dimensões maiores e mais evoluídas. Não existe oficialmente uma lista desses conhecimentos importados de outros lugares, mas suspeita-se que nós jamais conseguiríamos pensar sozinhos num macarrão instantâneo, na eletricidade e nas varetas com mãozinhas para coças as costas. Entretanto, duas coisas na nossa dimensão são claramente importadas de um lugar mais evoluído: O Abraço Apertado de Quebrar Costelas e o café. Não necessariamente o café, fruta perfeitamente nativa (embora possua variáveis não tão atraentes em outras dimensões, como em Gull3, onde o café é tão grotescamente horroroso que é servido em reuniões chatíssimas para manter a plateia acordada). Mas o hábito de se parar ao lado da cafeteira e sentir o cheiro do café sendo coado é originalmente uma cerimônia de meditação e contemplação do cosmos e da vida muito comum nas dimensões celestes próximas ao Arco de Athenas, região conhecida como a fonte de tudo o que é bonito e apreciável e que vale a pena prestar a atenção em todo o Multiverso. Curiosamente, a palavra “Athenas” é outro exemplo de conhecimento que alguém em algum momento esbarrou na sua forma mais pura, vagando entre as dimensões de forma aleatória. A captura do conhecimento acontece numa fração de microssegundo e a maior parte das pessoas sequer registra o ocorrido porque estava olhando para o lado errado. Mas quando consegue registrar, a palavra para esse esbarrão acidental cósmico no nosso vocabulário comum é Eureka! – Isso não significa que todas as boas ideias são inspirações coletadas acidentalmente de outras dimensões. Apenas as mais gritantes (todos nós havemos de concordar que o cafuné ter sido “inventado” pela mesma espécie que construiu bombas atômicas é algo no mínimo suspeito). Nunca existiu um método e ninguém sabe porque raios isso acontece. Mas pode acontecer de forma completamente aleatória, durante horas de meditação e dieta balanceada, limpeza da mente, abstinência sexual e jejum. Ou pode acontecer durante um espirro causado por uma almofada cheia de ácaros.

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Depois se vestiu com um jeans azul marinho e uma camiseta branca velha onde se podia ler a inscrição: “KEEP CALM AND FUCK THEM ALL”. Vestiu uma jaqueta de couro. Foi até a padaria e comprou 6 pães franceses quentinhos, um litro de leite, um corte de queijo e manteiga. Antes de deixar a gôndola dos pães, pegou ainda quatro biscoitinhos de polvilho. Pagou com uma nota de dez, recebeu o troco e deixou-o à mão para entregar ao velho mendigo que sempre pedia esmolas na porta da padaria.

Às vezes, em troca das moedas, o velho mendigo contava uma interminável história sobre a guerra. Jean não se lembra de qual guerra, mas era uma guerra feia e o mendigo perdeu muitos amigos lá. Jean não se lembra de haver ouvido falar de uma guerra que fosse bonita. Aparentemente ele era um soldado antes de virar um mendigo e sabia usar uma submetralhadora com pente recarregável. O mendigo, antes soldado, viu também muitas crianças usarem submetralhadoras na guerra, pois elas são mais leves que uma enciclopédia.

Entregou as moedas ao mendigo, que devolveu com um aceno e um sorriso bastante agradecido. O mendigo colocou a esmola dentro de uma caixa de sapatos, que sempre ficava ao lado de uma garrafa vazia de bebida. Engraçado, nunca viu esse mendigo beber. Mas a garrafa sempre estava ali, vazia. Foi nesse momento que o celular tocou e Jean imaginou que seria Carla com alguma sugestão ou novidade. As mulheres sempre tem uma sugestão e é melhor ouvi-las. Existe uma lei cósmica tão indiscutível quanto o Inspirar Pra Dentro e o Respirar Pra Fora: Sempre ouça um conselho feminino, ainda que não faça o menor sentido. Provavelmente foi você quem não entendeu.

Jean, que não conhecia essa lei, mas era capaz de intuí-la, sentiu o amor aquecer o peito quando viu que era mesmo ela. O amor, que é um sentimento abstrato, manifesta-se de forma curiosamente física: Formiga a planta dos pés e sobe pelas veias até o peito, amortecendo as juntas. Causa choques de sensações em todo o sistema nervoso. O amor desencadeia uma série de holocaustos bioquímicos no cérebro e também deixa moles os joelhos e desacelera o fluxo sanguíneo e de oxigenação, muitas vezes causando até mesmo uma pequena confusão de equilíbrio. O que deve ser analisado com bastante atenção, já que todos esses sintomas também podem ser facilmente confundidos com um acidente vascular cerebral.

Quando disse “Alô” no telefone, antes mesmo de poder ouvir a voz de sua amada, o carro amarelo se materializou na sua frente e o jogou contra o poste na velocidade do som. Poste esse, feito de concreto armado e sólido como o coração de um político da Terceira Regência das Dimensões Confederadas.

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Supõe-se que o crânio humano seja a parte mais rígida e resistente de todo o esqueleto, justamente para proteger o cérebro, que por sua vez, se supõe ser a parte mais importante do corpo humano. Mas existe uma discussão informal a respeito da parte mais importante do corpo. Uns dizem ser o coração, outros dizem ser as genitálias. É preciso entender que entre a verdade científica e a verdade prática pessoal talvez exista um abismo existencial.

De todo jeito, a Natureza construiu o crânio para suportar forte impacto e pressão, já que ao contrário da alma humana, a natureza é sábia e entende bem o que é importante e o que é apenas adereço para fins recreativos. Assim sendo, o crânio humano é capaz de aguentar impactos surpreendentes, preservando o cérebro de danos maiores. O que não foi o caso aqui, já que o dano maior estava representado por um poste de concreto armado, que, conforme dito, era mais sólido que o coração de um político depois de eleito.

Imediatamente após rachar o crânio em dois, Jean estava segurando uma senha entre os dedos na Salinha de Espera do Infinito.

Não, ele não tinha nem a mais remota ideia de como começar a responder à pergunta da Celestine. Por isso apenas disse:

_Eu vim por aquela porta ali, ó.

Então, gostou do que acabou de ler?

Esses são os dois primeiros capítulos de TUDO TENDE AO TÉDIO, livro de autoria do escritor brasileiro Felipe Lacerda Bicalho, que já está à venda – tanto em formato impresso quanto livro digital (e-book) em diversas lojas nacionais e internacionais, como a Amazon.com. O livro foi lançado simultaneamente em português e em inglês.

Divulgue esse material demonstrativo livremente. Compartilhe com seus amigos e familiares, e para qualquer um que possa se interessar por um romance dessa natureza.

Para saber mais sobre o leitor, comprar o livro e mais um multiverso de

novas e surpreendentes informações sobre a obra, visite o site:

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SOBRE O AUTOR Felipe Lacerda Bicalho é mineiro, de Divinópolis, cidade no centro-oeste do estado. Escritor publicado desde 2007, escreve desde muito pequeno. Sempre apaixonado por contar suas histórias. O que começou com narrativas de RPG (Role Playing Game), acabou se tornando literatura. Estudante de filosofia e Design Gráfico, Felipe Lacerda é professor de informática e inglês – é essa sua profissão, oficialmente. A filosofia e a teologia entram em sua vida como paixão pessoal. Realiza palestras de escrita criativa e produção independente, além de realizar oficinas literárias. Tem 27 anos e é do signo de Touro, se isso significar alguma coisa para você. Suas influências maiores estão em Stephen King, Clive Barker, Douglas Adams, Ariano Suassuna, Efraim Medina e Luiz Felipe Pondé, o que pode parecer estranho à primeira vista. Mas não se assuste. Boa parte de sua habilidade vem de muita leitura, não apenas dos clássicos – ele literalmente lê quase tudo o que aparece em sua frente. Publica frequentemente seus textos em sites e espaços na internet, produzindo crônicas e contos para qualquer um que se interesse. Odeia acordar cedo e prefere climas frios.

OUTRAS OBRAS DO AUTOR:

SUBLIMINAR (2007 - INDEPENDENTE) Romance de suspense policial e horror psicológico. CRÔNICAS DE ELDORADO (2010 – EDITORA BARKAÇA) Coletânea de contos sobre a cidade fictícia de Eldorado, criação coletiva em parceria com outros dois autores – Cochise César de Montecarmo e Bárbara Rocha.

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