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54 CIÊNCIA HOJE • vol. 38 • nº 224 A poluição marinha por resí- duos sólidos é causada por uma seqüência complexa de eventos, que incluem desde o nos- so excessivo consumo de mate- rial descartável não biodegradá- vel até a nossa ineficiência pa- ra lidar com esses resíduos. O li- xo flutuante é levado pelas cor- rentes marinhas, podendo cau- sar problemas em áreas distantes de sua origem. O resíduo plástico é hoje uma das maiores amea- ças à vida nos oceanos, e o apri- sionamento de animais marinhos é uma das conseqüências mais evidentes dessa forma de polui- ção, que, embora visível, é negli- genciada. Entre as principais ví- timas das coleiras de plástico dispersas nos oceanos estão os tubarões. Os registros de animais mari- nhos afetados por essas coleiras O lixo plástico se torna cada vez mais comum em todos os oceanos da Terra, e os efeitos negativos de sua presença nas águas marinhas têm sido reiteradamente apontados por biólogos, oceanógrafos e conservacionistas. Mas um dado pouco divulgado nesse contexto diz respeito ao aprisionamento e à morte de animais marinhos por asfixia, causados por cintas plásticas lançadas ao mar por barcos de pesca. Tubarões de coleira Isaac Rodrigues Santos Universidade do Estado da Flórida (doutorando em oceanografia) ainda são escassos, mas é prová- vel que o número de casos seja bem maior do que os oficialmen- te anotados. Recentemente, pes- quisadores do Museu de História Natural da Universidade Esta- dual de Campinas e da Universi- dade Estadual Paulista (Rio Claro) encontraram no litoral de São Paulo três jovens cações-frango (Rhizoprinonodon lalandii) com coleiras plásticas em volta do corpo. Tais coleiras são a parte circular e destacável das tam- pas dos frascos de óleo, resíduos para os quais damos pouca im- portância no dia-a-dia. Um dos cações não podia alimentar-se, uma vez que sua boca estava en- volvida por uma dessas coleiras. Em um filhote, a coleira cingia a região branquial, dificultando tanto a alimentação quanto a res- piração. OPINIÃO Cação-frango capturado no litoral paulista: vítima de resíduo plástico lançado ao mar IVAN SAZIMA

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OPINIÃO

54 • CIÊNCIA HOJE • vo l . 38 • nº 224

A poluição marinha por resí-duos sólidos é causada por

uma seqüência complexa deeventos, que incluem desde o nos-so excessivo consumo de mate-rial descartável não biodegradá-vel até a nossa ineficiência pa-ra lidar com esses resíduos. O li-xo flutuante é levado pelas cor-rentes marinhas, podendo cau-sar problemas em áreas distantesde sua origem. O resíduo plásticoé hoje uma das maiores amea-ças à vida nos oceanos, e o apri-sionamento de animais marinhosé uma das conseqüências maisevidentes dessa forma de polui-ção, que, embora visível, é negli-genciada. Entre as principais ví-timas das coleiras de plásticodispersas nos oceanos estão ostubarões.

Os registros de animais mari-nhos afetados por essas coleiras

O lixo plástico se torna

cada vez mais comum

em todos os oceanos

da Terra, e os efeitos

negativos de sua presença

nas águas marinhas

têm sido reiteradamente

apontados por biólogos,

oceanógrafos

e conservacionistas.

Mas um dado pouco divulgado

nesse contexto diz respeito

ao aprisionamento e à morte

de animais marinhos

por asfixia, causados

por cintas plásticas lançadas

ao mar por barcos de pesca.

Tubarões de coleira

Isaac Rodrigues Santos

Universidade do Estado da Flórida (doutorando em oceanografia)

ainda são escassos, mas é prová-vel que o número de casos sejabem maior do que os oficialmen-te anotados. Recentemente, pes-quisadores do Museu de HistóriaNatural da Universidade Esta-dual de Campinas e da Universi-dade Estadual Paulista (Rio Claro)encontraram no litoral de SãoPaulo três jovens cações-frango(Rhizoprinonodon lalandii) comcoleiras plásticas em volta docorpo. Tais coleiras são a partecircular e destacável das tam-pas dos frascos de óleo, resíduospara os quais damos pouca im-portância no dia-a-dia. Um doscações não podia alimentar-se,uma vez que sua boca estava en-volvida por uma dessas coleiras.Em um filhote, a coleira cingia aregião branquial, dificultandotanto a alimentação quanto a res-piração.

OPINIÃO

Cação-frango capturado no litoralpaulista: vítima de resíduo plásticolançado ao mar

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OPINIÃO

março de 2006 • CIÊNCIA HOJE • 55

Os animais que vivem pertodo homem nas áreas costeirasestão mais sujeitos a sofrer os im-pactos da poluição marinha. Masas espécies que vivem longe daspraias também podem ser afeta-das por resíduos menos fami-liares que a parte destacável dastampas dos frascos de óleo. Pes-quisadores do Departamento deOceanografia da Fundação Uni-versidade Federal do Rio Gran-de (RS) analisaram 1.757 tuba-rões-azuis (Prionace glauca) cap-turados em mares do sul do Bra-sil por um barco de espinhel(equipamento formado por umalonga corda na qual se prendem,de espaço em espaço, linhas ar-madas de anzóis). Desse total, 17animais tinham algum tipo deobjeto preso ao corpo, e os resí-duos mais comuns eram cintasplásticas de polipropileno. Taiscintas são resíduos circularesmuito resistentes, usadas paraembalar a isca congelada dapesca de espinhel. Isso significaque a atividade pesqueira é res-ponsável pela morte inútil demilhares de peixes, que pode-riam ser fonte de lucro para aprópria indústria pesqueira.

Na África do Sul, onde tuba-rões são assassinados sistema-ticamente para a proteção de ba-nhistas, a presença de cintasplásticas também foi observada.Mas os resíduos circulares nãoafetam só os tubarões. Pesqui-sas feitas na Austrália, no Havaí ena Antártida revelam que cintasplásticas semelhantes às encon-tradas em tubarões brasileirossão freqüentemente observadasem focas, leões-marinhos e lo-bos-marinhos. O problema é, por-tanto, mais comum do que pare-ce. Além das cintas plásticas, re-des e linhas de pesca dispersasnas águas também podem causara morte de animais marinhos.Os resíduos em forma de coleiratêm em comum o fato de esta-rem relacionados com atividadespesqueiras.

O ditado popular ‘curiosidademata’ pode ser motivo de polê-mica. Mas parece verdadeiro nocaso dos animais marinhos afe-tados por coleiras plásticas. Co-mo muitos animais costumaminvestigar objetos estranhos aoambiente onde vivem, eles se tor-nam presas fáceis de cintas plás-ticas, redes, cordas e linhas depesca abandonadas nos oceanos.Uma vez enredados, os animaisraramente conseguem se libertardo objeto que os aprisiona, sobre-tudo porque, com o seu cresci-mento, a coleira fica cada vezmais apertada.

Os animais jovens são maiscuriosos. Focas e lobos-marinhoscostumam introduzir a cabeçaem resíduos circulares quandoestão brincando. Muitos cres-cem com os colares plásticos, queaumentam sua tensão com o pas-sar do tempo, causando efeitossérios, como constrição de arté-rias ou sufocamento. Ironica-mente, muitos animais conse-guem se livrar dos colares plás-ticos só depois de mortos. Apóssua decomposição, no entanto,a coleira estará livre para afetarnova vítima, em um longo ciclode aprisionamento e morte. Al-guns estudos mostram que o pro-blema é grave e pode ameaçar aexistência de certas espécies defoca. Suspeita-se que só raramen-te a morte dos animais afetadosseja imediata; em geral é lenta eagonizante, causada por efeitosindiretos, como inanição ou difi-culdade para evitar predadores.

Os surpreendentes relatos deinterações entre animais e resí-duos plásticos indicam que leisinternacionais de prevenção dapoluição marinha não têm sidocumpridas. O Brasil e mais deuma centena de países são sig-natários da Convenção Interna-cional para a Prevenção da Po-luição Causada por Navios, co-nhecida pela sigla Marpol (doinglês Marine Pollution). O Ane-xo V da convenção deixa claro

que os resíduos de embarcaçõesdevem ser trazidos para terra. Odescarte de plástico nos ocea-nos é terminantemente proibido,uma vez que esse tipo de lixocausa inúmeros impactos à vidamarinha e demora enorme tem-po para se decompor. Como é co-mum no Brasil, o problema não écausado pela falta de leis, mas porsua não aplicação e pela ausên-cia de fiscalização e de puniçãoaos que as infringem.

Os tubarões vivem na Terra hámais de 400 milhões de anos. In-felizmente, sua longa e bem-su-cedida trajetória evolutiva não ostornou aptos a se livrar do lixolançado ao mar pelos homens, umfato que se tornou comum nos úl-timos 40 anos. O que intriga é queo lixo marinho é um dos proble-mas ambientais modernos demais fácil solução. Nesse caso, nãosão necessárias grandes inova-ções tecnológicas nem a erradi-cação do consumo de plástico.Muito menos a criação de umanova legislação. Em teoria, bastaque não se atire lixo ao mar: umgesto simples e singelo de respei-to à vida marinha. ■

Cintas plásticasencontradasem praiasda Bahia.Esses sãoos resíduosque maisaprisionamanimaismarinhos

ISA

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