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João Felinto Neto Tríptico Poemas – 1ª Edição Mossoró - 2007

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João Felinto Neto

Tríptico

Poemas – 1ª Edição – Mossoró - 2007

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Tríptico

Poemas – 1ª Edição – Mossoró - 2007

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2007 © Copyright by João Felinto Neto

F315t Felinto Neto, João. Tríptico / João Felinto Neto. – Mossoró, 2007. 122 p. (1ª Edição) ISBN: 978-85-60656-00-4

1. Literatura brasileira – Poesia 2. Poesia Norte-rio-grandense I. Título

CDD: B867.1 CDU: 82(813.1) - 1

João Felinto NetoJoão Felinto NetoJoão Felinto NetoJoão Felinto Neto Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 ---- Santa Delmir Santa Delmir Santa Delmir Santa Delmira I a I a I a I ––––

Mossoró, RNMossoró, RNMossoró, RNMossoró, RN CEP: 59 615 CEP: 59 615 CEP: 59 615 CEP: 59 615 –––– 790 790 790 790

Fone Fone Fone Fone –––– (0XX84) (0XX84) (0XX84) (0XX84) 3318 42453318 42453318 42453318 4245 eeee----mail: [email protected] mail: [email protected] mail: [email protected] mail: [email protected] Site: joaofelintoneto.xpg.com.brSite: joaofelintoneto.xpg.com.brSite: joaofelintoneto.xpg.com.brSite: joaofelintoneto.xpg.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/98) é crime

estabelecido pelo artigo 184 do código penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10994

de 14 de dezembro de 2004.

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Esse punhado de ossos que, na areia, alveja e estala à luz do sol a pino, moveu-se outrora, esguio e bailarino, como se move o sangue numa veia. E aí, na areia anônima, eles moram. Ninguém os escuta. Os ossos choram. Esse punhado de ossos – Ivan Junqueira

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Aos que hoje são apenas epitáfios sobre areias desconhecidas, dedico Tríptico.

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Índice Prefácio 13 Tríptico 15 Esta casa 16 Biografia 18 Desafeto 19 Existências fotografadas 20 Contraceptivo 21 Milenar 22 Entre o céu e a gaiola 23 Caravelas 24 Soneto da monogamia 25 Sabor da vida 26 A todos 27 A rês 28 À morte 30 Tateando 32 Amnésia temporária 33 Entre rugas e cabelos grisalhos 34 Acidente 35 O pomar 37 A mesma história 39 Seríamos infelizes 40 Capim ceifado 41 Soneto natalino 42

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É noite de natal 43 Cabra 45 Fantasia ou loucura 47 O atleta 48 Ainda à espera 49 Entre poeta e animal 50 Pó da imaginação 51 Onde a felicidade está? 54 Hoje é natal 56 Sonhos 57 Dois desconhecidos 58 O pateta 59 Soneto do aconselhamento 60 Sono sem sonhos 61 Coveiro 62 Alice 63 É natal 64 Predestinou-me, a solidão 65 Paixão pelo luar 66 Bornal de caçador 67 A greve 69 E se fosse você? 70 Eco 71 Dislate 72 Letras tortas 73 Poema de dois versos 74 O velho sofá 75

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Flores no deserto 76 Indolente 77 Poemas de minha alma 78 Out door 79 Quando o meu neto for um velho 80 Aos pósteros 82 Enquanto eu nascia 83 É 84 Em demasia 85 Escapulário 87 Agnóstico 88 Poeta de bancada 90 Anamnésia 91 Visita ao velório 92 Antônimo de mim 93 O ajoelhado 94 Os degraus 95 A missão 96 Pescadores de almas 97 Restrição mental 98 Pelintra 99 Um passeio no parque em dois mil e quatro 100 Saudade de casa 101 O nome é um só 102 Lendário 103 Cochilo operário 104

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Nostálgica viúva 105 Ter ou não ter? 106 Verbo encantado 107 Apesar 108 Soneto do reconhecimento 109 A pintura 110 Perda de tempo 111 Dúbio 112 Tenra beleza 113 Idos anos 114 Eles não 115 Óculos 116 Fé do carvoeiro 117 Minha vergonha 119 Fiz essa poesia 120 Na escada 122

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Prefácio Gostaria de ressaltar que escrevo pela segunda vez, um prefácio para Tríptico (O primeiro extraviou-se). A maior dificuldade para seguir a vida fazendo poesia é o menor apreço dado pelo leitor ante outros gêneros literários. Mas, pelo que eu conheço do poeta, a sua devoção a tão bela arte, o seu intenso desprendimento para escrever versos e sua disposição, completam uma trilogia que supera qualquer dificuldade. Tríptico poderia ressaltar nas diversas vertentes por onde o poeta segue numa escorredura de inquietação, de vislumbre e de solidão, o poeta, o poema e o leitor. Não sei depurar situações insones nem trabalhos específicos, apenas me situo entre o poeta e seus versos; sou um leitor que revitaliza a obra pelo empenho em extrair toda a essência curadora que a poesia exala. Dessa forma, eu me renovo nas páginas de Tríptico.

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Aparar arestas, lapidar o pensamento em busca de uma confluência entre verbo e harmonia, arranca do mais profundo âmago, a vitalidade racional confrontada à emotiva. Eu entendo o extraordinário esforço de criação do poeta em seu movimento pendular entre a loucura e a arte. Há versos que surpreendem com seu sentido nato para o óbvio, enquanto outros, para o absurdo. Em tríptico, o poeta norte-riograndense João Felinto Neto (Tratamento formal) estabelece, em minha visão, divisões precisas em sua poesia: o Alento, aonde galga a certeza da paz; o Extenso, onde conserva na síntese, o amontoado de sentidos e a Continuidade, a reticência aberta para ir além.

Carlos Agamenon

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Tríptico Numa capa se destacam, três dobras desenhadas. Uma simboliza o sorriso, outra os degraus de uma escada, e a do centro, a recoberta, a capa deste livro. Não importa o motivo que define estas páginas, seja o pai, a mãe e o filho; ontem, hoje e amanhã; uva, pêra e maçã em um cesto colorido. Verso, estrofe e poema é o tríptico do poeta. Um desenho em linha reta onde a mão serve de guia, a caneta solta a letra resultando em poesia.

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Esta casa Seja bem-vindo ao meu recinto. Sem cerimônias, pode adentrar. Lá fora, o mar jorrando espumas, também as dunas, vento a soprar. Se o meu piso retém areia, não se acanhe, pode limpar. E se quebrar um objeto, seja correto, reponha-o já. Se acaso usar alguma coisa, faça uma lista para comprar. Não vá pensar: é uma egoísta.

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Bem mais que peço, posso lhe dar. Dar-lhe-ei abrigo, coisa de amigo. Minha cozinha para cear. No meu alpendre, deita comigo. No meu banheiro... Deixa pra lá.

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Biografia Sou imortal nas páginas mal relidas. Mantive a vida em letras acabadas. Capas de luxo no lixo jogadas. Versos enxutos em folhas já molhadas. Chuva que cai, palavras borradas. Uma mão na luva que cata a esperança nas poucas letras ainda não apagadas, na tentativa de mantê-la viva, biografia de um poeta que se cala.

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Desafeto No espaldar da cadeira, encontro reminiscências em versos quase eternos quanto o terno surrado que me veste. Nas gotículas do soro, sou a peste ainda imune à ciência. Se permaneço vivo é por decência. Quando partir será por desafeto.

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Existências fotografadas Em preto e branco, vejo o retrato de minha avó; um colorido, de minha mãe na mesma idade, em épocas tão diferentes. As mesmas rugas congeladas pelo tempo, se opõem à tempo de percebê-las. No traço da boca quase sem lábios, cópias do mesmo espaço deixado entre eles. Existências fotografadas em negativos transparentes; duas mentes, sementes, avó e mãe.

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Contraceptivo Eu não sei se é o desespero que me leva à loucura quando o sexo estupra a minha alma, ou a calma que advém do meu tormento pelo tempo que passou em minha palma. Movimento anormal de penetração moral em sua saia, e no cheiro da indecência, feromônio da ciência em uma jaula. Uma fera excitante que no último instante, ofegante, cospe a vida no seu couro de borracha. Não há luta, nem corrida; há uma triste despedida de um suposto vencedor que foi fruto de um amor e se enforcou com a própria cauda.

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Milenar A flor que cheira ao desabrochar um dia na noite fria de uma estação secular, sente chorar no orvalho que inicia a poesia do jardim onde ela está. O vento dá, arrancando suas pétalas; cores dispersas na imensidão que há. Resta uma pá esquecida entre espinhos, ovos e ninhos, uma pegada a traçar. Triste cantar de uma grande ventania. Folhas sem guia, arrancadas do lugar. Vasos quebrados, que estranhas sepulturas, onde a cura vem da raiz milenar.

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Entre o céu e a gaiola É impossível a uma ave, acreditar na mão que agora abre a porta na intenção de a soltar, a mesma mão que um dia outrora, a pôs numa fria gaiola depois de tirá-la do ar. Bater as asas e voar, já não consegue; está completamente entregue. Sua prisão tornou-se um lar. Como é difícil acreditar no amor fiel, se sob o imenso azul do céu, a traição teima em reinar. A quem eu posso enganar, sendo infiel, se como a ave a voar no livre céu, limito o meu horizonte e a todo instante quero voltar?

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Caravelas O dia nublado, auréola dista. Um sol retocado, vermelho em pranto. No cruel tratado de Tordesilhas, das Terras alheias, tornei-me dono. Após ter singrado mares bravios, em naus, caravelas, um nome santo. Denominado enfim, Brasil. Povo gentil de cores e cantos.

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Soneto da monogamia Por mais que eu tente, o tento é pouco. Não há um outro amor em minha mente. Por ti somente, meu amor, eu sofro. Como sofre um louco pelo amor ausente. Por hoje e sempre, um escravo solto que sente a corrente. Fixo e permanente, meu olhar de lobo, ante a chama ardente.

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Sabor da vida Uma boca amarga que não prova do sabor da vida que tão bem servida numa taça, transparente passa no efêmero agora que o saudoso outrora jamais eterniza.

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A todos Conheci o triste, pelo seu lamento. Conheci por dentro, o que sempre ri. Conheci a ti no melhor momento. Conheci a tempo, a hora de partir. Conheci do louco, sua insanidade. Conheci saudade, mesmo antes de ir. Conheci o fim antes do começo. Conheci o esqueço, lembrando que enfim, conheci a todos sem conhecer a mim.

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A rês Uma rês que desgarrara, estava perdida e cega pela máscara que lhe impusera o destemido vaqueiro. O chocalho baderneiro afugenta o carcará que acreditara encontrar seu alimento primeiro. Longe, escuta o vaqueiro tangendo o resto dos seus; não sabia que era adeus, a distância do curral. Presa em um lamaçal, apavorada e com fome. Ecoa longe o seu nome e perto um bater de asas. O urubu vil aguarda, e sob o sol, a espreita. A rês cansada se deita quando sua força se acaba.

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Uma semana passada, a procura terminou. Aos urubus espantou de uma débil carcaça. Nessa hora acha graça de tamanha estupidez. Quando será sua vez, pois também ele é mortal. Acredita que afinal, sua medíocre vida talvez não passe de uma rês presa em um lamaçal.

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À morte A morte parece uma sentinela com seus olhos na janela, traspassando minha alma na hora que a dor em mim começa, lentamente, sem ter pressa, com a sua espada em brasa. A morte vem me visitar em casa, e continua sem pressa. Seus olhos não me olham da janela, estão dentro de minh’alma. A morte, sob o cobertor, me abraça e sem pudor me aperta. Parece ser uma graça, mas não passa de desgraça quando a morte me supera. A morte, em silêncio e descalça, uma dama bela e falsa

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que pela dor me desperta. Tão consciente que é certa, a morte exala o perfume de minh’alma, pelas rótulas da janela.

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Tateando Está em mim traçar meus passos em um caminho. Apiedar-se por estar sozinho, não é o meu caso. Não estou certo sobre meus fracassos. Não é se acho, é se ainda procuro. Andar no escuro ou tropeçar no claro é a razão de tudo.

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Amnésia temporária A vida é uma guerra numa porção de terra demarcada. Para muitos é muito. Para poucos é nada. A vida é ridiculamente engraçada. É sangue na roupa que vive ensopada. Na roupa engomada, a vida é nula. Para muitos é dura. Para poucos é praia. É água com açúcar, é calma. É sol e buzina na rua apressada. A vida é amnésia temporária. Cadê o bom-dia? Boa-noite que nada. A vida é fase terminal, é fim de corrida, é luta banal.

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Entre rugas e cabelos grisalhos Envelheço nas mesmas mãos que me acalentaram e jogarão terra sobre o meu caixão. Nunca esqueço quem guia meus passos para longe do mais triste laço, o da solidão. Não pareço, no espelho olhado, com a imagem que eu via antanho. Como é duro olhar para o passado e ver-se um estranho. Entre rugas e cabelos grisalhos, somos companheiros na compreensão. Envelhecemos descalços para nunca esquecermos de manter os pés no chão.

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Acidente As luzes dos carros distorcem minha vista e na velocidade a pista se acaba. Eu vejo minha vida repassada como em uma fita. Na brusca freada, entre estrelas e o chão molhado, vejo retratos da família. A escuridão me deixa apavorado, enquanto a chuva fria me esfria. Eu sinto um suor quente que me deixa ensopado. Não penso em Deus, em anjos ou no diabo, apenas em meu trágico padecer. E nessa hora eu lembro de você. Procuro me mexer mas não consigo.

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E no silêncio, fico estarrecido. Eu devo ter voado pela porta. Agora não importa, percebo que o suor ás minhas costas, é sangue.

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O pomar Desejaria eu, voltar, se assim pudesse um dia, como uma folha que caia num belo pomar. Seria fruto do amor que a ave picaria ou simplesmente uma flor que beijaria o colibri. Nesse pomar, poderia ouvir da água, a cantiga que sobre as pedras escorria a te procurar. Em uma gota cristalina e fria, eu estaria como também na poesia de um sabiá. Há! Se eu pudesse voltar um dia. Seria a terra removida para se cultivar. Seria o vento que movia um galho a sustentar o ninho onde haveria

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uma ave prestes a voar. Nesse pomar não caberia tanta vontade de voltar.

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A mesma história Sob um casebre taciturno, uma criança chora; a sua mãe não foi embora, é tristemente fome. Não interessa o seu nome, pois o que importa é a razão porque não come. Talvez você não saiba agora que a culpa é nossa ou simplesmente se esconde. Mas, pesa mais do que escombros sobre nossos ombros, essa repetitiva história.

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Seriamos infelizes Eu não iria perdoar se você me traísse; sei que seria triste ter que continuar. Nesse ato vulgar, o amor não resiste e a dor persiste sempre a incomodar. Não se pode sonhar, nem pensar em futuro. Abre-se uma fenda no muro que tende a desabar. Jamais iria aceitar como um deslize; seriamos dois infelizes, ao me afastar. Você poderia chorar sobre a lápide fria que eu não perdoaria essa sua forma de amar.

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Capim ceifado Em um tronco brocado sento e vejo a criança ao olhar à distancia, entre o capim ceifado. Em seu mundo encantado, uma doce esperança que um dia alcança um adulto cansado. Há, que tempo malvado! Que saudade do dia que eu corria encantado. Entre o capim ceifado, era eu que sorria. Hoje, sonho acordado.

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Soneto natalino Sob o teto, as árvores de plástico iluminam com luas e estrelas, os presentes no caule, arrumados pela família inteira. Um aperto de mão e um abraço destinados a quem a gente ama que feliz se encontra ao nosso lado e animado nos chama. Nessa noite de luz e encantamento, brilha e eclode a cada momento, um eterno e místico sinal. Não importa em que língua e em que tempo, grite forte, solte a voz ao vento: - Tenha um feliz natal.

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É noite de natal Escuto o dobrar do sino e vejo anjos, meninos, brincando e também sorrindo; entre eles, um velhinho chamado papai Noel. Vejo as estrelas no céu indicarem um caminho àquele que está sozinho a procura de um sinal. Hoje é noite de natal, eu estou em pé na porta a procura de resposta para um mundo desigual. Numa banca de jornal no outro lado da rua, um menino se insinua com uma arma na mão, alguém diz pega ladrão, ele corre sob a lua e some na escuridão.

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No natal, também há fome, é a exploração do homem pelo seu próprio irmão. Nem o temor à religião faz mudar o coração desse rude animal. Como é noite de natal, o bem sobressai ao mal, o sentimento à razão. É tempo de aprender. É noite de união, onde cada coração tem vontade de dizer: - Feliz natal.

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Cabra Sou o cabra que observa a cabra ruminante. Estou em pé no pé do monte, sem saber ainda aonde a cabra vai me levar. A cabra não apercebe que sou o cabra que a segue para vê onde se serve, pois tá dando pra roubar. Descubro o lugar na cerca onde ela teima em passar. A cabra anda sozinha, vai à casa de farinha e bagunça o lugar. De volta ao outro lado, cansado de tapar buraco, ponho na cabra a cangalha (Uma armação de madeira, uma espécie de coleira de forma triangular) que a impede de passar pelo buraco na cerca.

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Esqueci-me de botar a tramela da porteira e à noite, a cabra faceira fugiu pra não mais voltar. Agora, sou conhecido como o cabra esquecido que uma cabra pôde enganar. Se acaso à cabra, encontrar, o cabra aqui vai pagar uma boa recompensa. Não sou cabra de ciência, perdi minha paciência, essa cabra eu vou matar.

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Fantasia ou loucura A ilusão caminha solta pela rua, onde as calçadas são de pedra de sabão. Os transeuntes são apenas esculturas que se derretem sob a chuva numa eterna ilusão. Rente aos telhados passa, a luminosa lua, transformada numa bolha de sabão. Há dentro dela, uma bela dama nua que na sua face oculta, amarga desilusão. Observando esta cena, continua extasiada com sua imaginação, a inusitada e sombria figura. Será fantasia ou loucura, essa alucinação?

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O atleta Na mais estranha quietude, o atleta se despede de sua juventude. Uma nobre atitude é o que a todos parece. Mas o atleta, em silêncio, faz uma prece: O mundo que me ajude. Tanta medalha no peito; contra o tempo não tem jeito, o atleta foi vencido. Hoje, um velho envaidecido que com a vida ainda compete. O atleta ainda se veste com a camisa da coragem e na sua jovem imagem se espelha e mantém ainda acesa, a chama da liberdade. Nem tristeza e nem saudade, mas sua vasta idade é que o condena. O atleta finalmente sai de cena.

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Ainda à espera Eu adorei meu tempo como adorei a ela, tal qual adoro o vento que invade a janela, trazendo o sentimento de um jovem ciumento que achava a vida bela. Meu corpo era um barco. Meu coração, sua vela. Meu tempo era parco; achava eu, que não era. Minha idade é o marco onde aportei meu barco, deixado à espera.

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Entre poeta e animal Eu vejo um corvo voar por cima de um telhado. Ele pousa do outro lado, onde mora o Edgar. Um pica-pau a viver numa árvore que resiste e dá de ombros ao Nietzsche que continua a escrever. Escuto uma cabra balir e Saba com ela falar. Curioso para olhar, levanto e saio dali. Vejo um gato brincar no meio da rua, à toa. Então percebo o Pessoa na janela a observar. Além da vida real, há um mundo de poesia que afinidade propicia, entre poeta e animal.

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Pó da imaginação Procurei pelos campos, campanários, sob antigos telhados de igrejas, na mais profunda caverna e muito além da terra, meu planeta. Procurei entre humildes e bastardos, entre corpos cremados de profetas, desde o mais antigo sábio à teoria mais moderna. Procurei em recôndita aldeia, nas profundezas do mar, na melodia da areia espalhada pelo ar. Nas delicias do prazer, na loucura dada ao vício, na força que tem o querer, no engodo do artifício.

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Na mais completa biblioteca, no conceito violado, na pena de um velho poeta, pelas lentes de um letrado. Nos sonhos de liberdade do preconceito da cor, nas chamas da vaidade das letras que falam de amor. Procurei em cada beco, cada gueto, um a um. Procurei entre os segredos dentro de um copo de rum. Nada encontrei nessa busca, que durou por toda a vida. Só uma luz nos ofusca, a do sol que irradia. Não encontrei céu ou inferno, nem par de asas ou tridentes. Encontrei homens como eu, que de perto não são diferentes.

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Encontrei sim, sofrimento de um ser desesperado que se agarra ao pensamento de que há um outro lado. Que quando enfim, der adeus aos seus entes mais queridos, será levado por Deus a um eterno paraíso. Só fé, pó da imaginação, que o vento da realidade sopra em busca da razão e o que parece verdade é apenas ilusão.

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Onde a felicidade está? Eu não consigo ser feliz enquanto há fome e miséria no país em que eu nasci e amo tanto, diz o idealista franco. Eu vejo uma criança em pranto; a cruel fome e o desencanto de uma mãe que já não canta, pois há um nó em sua garganta, não há almoço, nem há janta. Lá pelas tantas, eu vejo um velho infeliz que amarga sua prece. Porque o mundo me esquece? Apago a chama que me aquece, vejo o mendigo que se enrijece diante da força do frio que me provoca um arrepio só em pensar. Como alguém pode aceitar tão desigual situação? Sinto uma grande comoção quando vejo um irmão

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que vê outro padecer enquanto assiste à TV, e não se importa quando um outro bate à porta: -Perdoa-me, não posso agora. Onde a felicidade está? Pois ao se por em seu lugar, sou infeliz, por que assim você me quis. Jamais quero ser feliz vendo a desgraça de outrem que comparada a uma raiz se desenvolve muito bem debaixo de nosso nariz.

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Hoje é natal Pelo mundo se espalha um sentimento que é antigo e permanece atual. A humanidade até o coevo momento, comemora o histórico nascimento de um mito espiritual. Piscam as luzes tal qual olhos que paqueram. Assim celebram essa noite especial. Feliz natal! É o voto mais sincero de um amigo pessoal.

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Sonhos Os meus sonhos são apenas fragmentos de memória, pequenos focos de luz como cristais dispersados num caleidoscópio de pensamentos, distorções esdrúxulas da realidade. Rumores, amores e momentos, abertos numa gaveta destrancada. Minhas pálpebras fechadas num caixão de quase nada. Um quase definido como os sonhos que são versos que componho numa noite agitada. Movimento involuntário dos meus olhos, que entre risos, ainda choro por apenas acreditar sofrer. Entre cartas mal escritas e seladas, vem a calma ao chegar o amanhecer. Vem enfim, o esquecimento desse quase fingimento que é sonhar.

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Dois desconhecidos Num vôo sem asas, alcança o céu, em sua imaginação. Calibre na mão errada. Queima um coração num fogo sem brasas. Casa com janelas e portas entreabertas onde a solidão reinava. Uma companhia tão indesejada, que em pouca conversa, a noite acaba em desgraça. Depois, um silêncio. Pouco a pouco, o vento enxuga uma mancha que há na sala. Um desconhecido agoniza ao chão, outro corre na escuridão. Longe, um ladrar de cão. Uma injustiça nunca reparada.

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O pateta De pé, o poeta observa as pessoas que caminham nas calçadas, em um vai-e-vem constante. Imagina a todo instante, o que para si reserva, cada pessoa que passa. Umas acreditam certas, outras ao contrário, erradas. O poeta observa sem pressa, devagar o tempo passa. Uma face parece bela, outra feia e macabra. Tenta ler os pensamentos de cada um, no momento que atravessam a calçada onde tal qual uma estátua, o poeta os observa. Quem será esse pateta com uma cara de babaca? Sou uma lápide indecisa, cuja frase em si escrita não significa nada.

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Soneto do aconselhamento Converta-se ao cinismo do que seja, louvado sob o dogma de uma fé. Em ternos engomados, se deseja, oculta a realidade de quem é. Entregue-se ao pecado e padeça nos braços de uma dama que o quer. Esconda os seus atos e não esqueça, a vida é breve, faça o que lhe aprouver. Não diga a verdade e será considerado um cidadão honrado e respeitado. Suas vestes vão dizer quem você é. É tristemente hipócrita a humanidade. O preço que se paga é não ter a liberdade e viver num faz de conta que não quer.

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Sono sem sonhos Por ser a morte um sono sem sonhos sem amanhã para recordar, uma escuridão eterna em tamanho, um inconsciente sem memória pra lembrar, é que eu a temo tanto e também a canto em dolorosos ais. Não vislumbro sinais que me levem a tal sorte. Meu medo da morte é ter a certeza de não te ver, princesa, nunca, nunca mais.

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Coveiro Entre corpos velados, de joelhos. Entre lábios selados, um desfecho, como as covas que cavo. A ferrugem do prego que eu cravo. Na madeira um estalo, traz o medo. Na demência, o segredo de um fim trágico. Na ausência, um lapso, um desterro.

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Alice Uma personagem que existe e habita o mundo real. Minha amiga mais leal, minha querida Alice. Somos mais que mãe e filha, mais que laço de família, duas faces de um cristal. Compartilhamos com o tempo, alegria e sofrimento, a certeza e o talvez. Nenhuma lágrima desfez nossa eterna companhia. Soube qual o papel de filha, quando mãe por minha vez. Duas lições tive em casa: da mãe e da professora. Nada na vida é à toa, o destino me ensinava. Sigo, mãe, com a família; pois ainda segue, a guia que me levou a essa escolha.

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É natal Não é o meu nascimento, nem jamais seria o seu. Isso já faz muito tempo, que acreditam, aconteceu. Presépios tentam lembrar, o que você esqueceu. Não quero o mundo real, esse que me dá adeus. Quero gritar: É natal! Nasceu o filho de Deus.

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Predestinou-me, a solidão Uma donzela fina que em meus braços beija. Um pescador caleja seu rude coração. A solidão que predestinou-me, um dia, a dor ainda viria; a dor da ingratidão. No adeus de um amor que não voltou jamais, o vai-e-vem de uma onda que arrebentou o cais. O naufragar de um barco à deriva por um vento frio que me deixou um vazio que nem a própria morte o suportaria.

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Paixão pelo luar Quem sabe dou um beijo na lua que me espia. Amigo, quando for dia, o sol que irradia, vai querer me queimar. Como é difícil amar quem brilha tão distante. Eu sempre fui amante, um poeta delirante, diante de um belo luar.

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Bornal de caçador Vejo pela janela, distante, a liberdade de um condor que voa com esplendor sobre a planície verdejante. E vejo antes, meu bornal de caçador. Minha tristeza e pudor ante um espécime empalhado que sob o velho telhado desafia minha dor. E vejo antes, meu bornal de caçador. Um ninho de beija-flor no alpendre, me desarma, dependurado com a arma, hoje, sem nenhum valor. E vejo antes, meu bornal de caçador.

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Escuto um estampido distante. Sendo agora um defensor, retiro do quarador, ainda manchado de sangue, o que era antes, meu bornal de caçador.

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A greve Descobrimos uma forma de lutar sem armas, cruzamos os braços no pátio da fábrica. Reivindicamos apenas melhores salários, não quebramos janelas, nem queimamos carros, cruzamos os braços. De repente, fardas e homens armados. Cidadãos feridos, outros arrastados. Como animais, foram enjaulados pelo que fizeram, cruzaram seus braços. Para os libertar, um advogado que recebe altos honorários. Os homens de fardas foram condecorados por terem espancado os operários de braços cruzados.

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E se fosse você? O vento me distrai, levando areia sobre o asfalto quente, enquanto estou à sombra do alpendre e de repente, uma telha cai. Assusta-me, o fato conseqüente. Mas não perturba à minha doce paz. Enquanto uma réstia, ali se faz, abre-se ainda mais, o sol ardente. Uma cadela velha, até demais, com chagas pelo corpo tão doente, procura abrigo embaixo do alpendre. Agindo asperamente, a fiz voltar atrás. Talvez eu tenha agido cruelmente. De fato, muita gente não o faz; divide seu espaço com animais, mas jamais, com sua gente.

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Eco Eu escutei uma canção que vinha de alguma ilha no meio do mar. Ela falava de uma noite fria, de alguém sem companhia e do mais lindo luar. A mesma lua que dali eu via. A mesma noite, tão fria, eu sentia. A melodia, o vento trazia; assim, eu me ouvia no eco, a cantar.

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Dislate Talvez minhas palavras sejam tolas, minhas ações, inconseqüentes; as minhas brincadeiras, ironia; eu próprio seja falho e negligente. O meu discurso seja sátira; minha seriedade, uma piada. O meu humor seja mau gosto; o meu dislate, permanente. Meu riso entre dentes, atimia; a minha faina seja ociosa; meu pranto, uma lição jocosa e o jeito infantil, idiotia. Talvez a minha vida seja um fracasso; meus versos, um engodo imoral. Em epítome, sou um gracejo nefasto. Meu desejo, um esboço abnormal.

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Letras tortas São raros meus momentos de silêncio. Quase sempre, minha mente está em polvorosa. Palavras tão desencontradas que intimidam minha alma inquieta e nunca ociosa. Um legado aos pósteros, os pensamentos toscos que registro em papel sem pauta. Dissonante flauta em notas musicais, que não são mais, que minhas letras tortas.

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Poema de dois versos Quem espera o meu regresso, cansa.

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O velho sofá Ampliamos os nossos sentidos no encosto do velho sofá. Quantas vezes, os trêmulos joelhos, sob o peso do abissal cansaço, surpreendem o nosso abraço num discreto segredo? A penumbra suaviza o desejo. Mesmo assim, enlouqueço e esqueço que estamos na sala de estar. Um gemido que a garganta cala. Uma mão atrevida que pára. Vamos recomeçar.

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Flores no deserto São flores exuberantes no deserto, entre espinhos e areia, meus versos, ou talvez miragem seja, entre patas de uma cáfila que passeia. Uma nuvem de poeira não encobre o colorido das flores, nem os odores que exalam. São escravos de um nobre, que combóiam a caravana. O enigma que acompanha as pirâmides. Os meus versos, tão distantes dessa ponta de caneta, semelhante flores, na estreita ilusão de que são versos.

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Indolentes Meus olhos pedem tanto e não retribuem nada, são vazios como a escada que me leva até o sótão. A eles não importam, tristes lágrimas. Diante de uma dor, eles são impiedosos. São pedras calcinadas pelo tempo. Esporos peçonhentos que não choram. Parecem duas mães que se consolam enquanto apunhalam suas crias. Em meio às conquistas, se defloram. Jamais imploram, o perdão de suas vitimas.

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Poemas de minha alma Tenho um corpo oco como um toco. Sou apenas casca. Sentimentos soltos dentro de um coco ainda cheio d’água. Ajuntei apenas um ou mais fonemas. Transformei-os em versos num simples reverso de minha própria cara. E cada poema que julgam ser meu, é de quem morreu ou de minha alma.

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Out door A vida, talvez seja a liberdade da criança no balanço no out door. Tão só, com um sorriso iluminado. Enquanto pela janela do carro, eu observo no contraste da escuridão, a eterna ilusão de que estou no out door iluminado.

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Quando o meu neto for um velho

Quando o meu neto for um velho, eu serei só lembrança de um vulto triste e sombrio que vivia à distância, que era enigma e desafio aos olhos de uma criança de pé à sombra de uma imponente árvore. Não serei jamais saudade, por ter sido alheio e não ter nenhum anseio de beijá-lo e de sorrir. O que seria ao partir? Apenas desconforto. Um homem que já estava morto e teimava em não ir. Quando o meu neto for um velho, talvez nem mesmo queira, ver a mais horrenda caveira em moldura de um século, apelar por um regresso com insistência e dor. Uma figura sem amor, sem cor, sem esperança, que foi na sua doce infância,

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mistério e pavor. Quando o meu neto for um velho, serei ossos velados, levados através do tempo pelo esquecimento, por que jamais seria amado. Em velhos livros empoeirados, encontrará escritos que não revelarão quem fui, e também qual a cruz que os meus ombros carregaram. Não descobrirá cansaço para minha estranha ausência, nem tampouco, inocência, nos meus atos de culpado.

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Aos pósteros Para impedir que fossem as minhas palavras, o suspirar de uma boca não ouvida, borrei de tinta as paredes esquecidas numa caverna há muito tempo desabada. Pus hieróglifos em pedras arrumadas. Risquei os templos com frases sem sentido. Em pergaminhos antigos e papiros, deixei escrito, idéias rejeitadas. Em línguas mortas, ainda estudadas, deixei nas páginas de um antigo livro, versos perdidos em linhas rabiscadas. Da antiga pena em tinta mergulhada, sobreviveu minhas palavras sem estilo à mais moderna e refinada esferográfica.

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Enquanto eu nascia Enquanto eu nascia e minha mãe se contorcia de dor, a meninada pro quintal corria pra não ver do sangue nem a cor. Não uso o nome, uso o apelido. Havia os filhos de Nova de Perigo, que em suas fezes se encontravam vermes, e enquanto eu nascia pelas mãos de Dulce, as verminoses provocavam o cuspe de minha prima. A vida ensina de maneira estranha. Enquanto uma cria nascia na cama; lá no quintal, os vermes se mexiam, ao perderem a vida fora das entranhas.

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É... O que é ser normal para uma criança especial? É ver alguém deficiente por ficar triste ou doente. É caminhar entre o bem e o mal permanecendo inocente. É ver a vida, como tal, um passatempo diferente. É nunca parecer igual, diante de toda essa gente. É ver de forma natural, o estranho mundo à sua frente. É acompanhar o racional com passos de quem muito sente. É ouvir o mais sábio casal usar uma frase comovente: “Nós somos pais deficientes para cuidarmos de uma criança especial”.

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Em demasia Eu sou demasiado triste, pelos versos que componho. Eu sou demasiado louco, pelo pouco que proponho. Não deveria o mundo ser assim, em demasia. Talvez não seja o mundo, seja enfim, minha poesia. Demasiada em meu tédio, sem remédio, em grafia; em longas noites mal dormidas; nos insultos que eu ouvia. Não caberia em minha mão, toda a visão que em mim cabia. Eu sou demasiado em tudo, que ironia, demasiado em meu luto por ser fruto de utopia.

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Em demasia são os dias que me escapam entre os dedos como uma teia que é lânguida e esguia. O mais sublime pensamento que perde tempo em demasia. Demasiado, meu tormento, pelo tanto que eu não via. Demasiadamente eterno, meu inferno em agonia. Em demasia sou quem sou, um astronauta que acordou num mundo estranho em demasia.

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Escapulário Semelhante a um maltrapilho, pela margem eu ladrilho meu caminho. Torturado pelo espinho que me espeta. Um anônimo profeta sem destino. Entre regras que ensino, a mais púdica exceção. Escapulário na mão alivia ao colarinho, o peso do sacramento. O mais lascivo pensamento traduzido em sermão pela mão de um presbítero. Dessa forma eu duvido de que sou uma criação. Transformado em ilusão pela mão de um poeta que tem a fé encoberta pelo manto da razão.

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Agnóstico Não me pergunte nada, porque de nada sei. Apenas acredito que é incognoscível a real lucidez de um mundo inebriante. Não quero ser pernóstico. Por ser um agnóstico, sou dúvida constante. Sou uma pequena forma que a multidão deforma por me manter distante. Mito sacrificado, herança de um primata, sou aquele que mata o anjo e o macaco. Não me convence histórias e antigas teorias. Nem mesmo a ciência com sua sapiência, também convenceria. Talvez a metafísica do cartesianismo e o transcendente abismo

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de nossa inconstância; quem sabe a esperança, a fé em sua pujança, não sejam um estágio pra desvendar o pelágio de nossa ignorância.

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Poeta de bancada Escuto o retinir do martelo na bigorna, o galope na água morna, de um corcel à beira-mar. Na poesia popular, um cordel de sete versos, um soneto em si disperso, de um poeta a sonhar. Que entre capas quer deixar um pedaço de sua vida, a poesia colorida pelo gosto de rimar. Nunca pare de pensar; não importa a idade. Um poeta de verdade nunca deve se calar.

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Anamnésia Um pequeno verso que se mumifica em sua eterna subjetividade, dentro de um sarcófago de maturidade, num poema velado por um antigo vate que em sua anamnésia guarda a mais poética saudade.

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Visita ao velório Eu te vi deitada, você não sorria. Só a morte via que você chorava. Ainda criança, de nome Maria. Como adormecida, por ninguém, velada. O que esperava? Juro, não sabia. Uma pele fria, embora enrolada. Rosa, não havia. Mas por que cheirava? Perfume da vida que a morte exalava.

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Antônimo de mim Poemas que não me dizem nada, quanto há tantos, nessa estrada, que ainda desejam ouvi-los. Declamações que me aborrecem, porém o mundo não esquece, embora eu tenha esquecido. Antônimo de mim são versos que enfim, eu jamais citaria. Mesmo na poesia, a fé como utopia, ao cético poeta não pode enganar. Assim, não espera, para não se cansar. Por convicção, mantenho na mão, não acreditar.

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O ajoelhado Não diviso seu rosto, posto estar ajoelhado. Fito suas sandálias e as bordas do seu vestido rasgado. Suas mãos ainda pingam sangue. Ela chama o meu nome, sua voz é de calma. Enxuga minhas lágrimas com o hálito da alma. Tão forte é o peso de sua decência, que em minha incoerência ainda sou perdoado. Permaneço ajoelhado, a noite inteira. Vejo livre a cadeira ao seu lado. Não consigo sentar por não ficar de pé. Diante de tanta fé, permaneço ajoelhado.

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Os degraus Não importa se você me segue, se sobe ou se desce os velhos degraus. Ou se corre para o novo templo, ou mesmo se tranca em seu pensamento, o bem e o mau. Pouco importa se há vela acesa, se há santo na mesa, se há livro sagrado. Sei que está ao meu lado. De olhos fechados, irei enxergar. Não precisa gritar aos ouvidos de um homem perdido que não quer rezar. Talvez jamais reconheça, do mundo esqueça e volte a chorar. E você pelo mundo se perca, um anjo sem alma que não pode galgar, de volta, os degraus da escada.

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A missão Pregaram enormes cravos em jovens crucificados, e entre eles eu, um brasileiro rude e aleijado. Em cada golpe, nossos nomes eram exclamados. Uma região tão cheia de miséria, tão seca e tão ardente. Escorria em suas mãos, um sangue quente e secava de nossas bocas, a saliva. Enfim nossa missão fora cumprida. A sua então, está em não acreditar.

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Pescadores de almas Usavam uma rede engraçada, trançada de palavras em forma de charada, uma mantilha e um estranho linguajar. Um poeta e um homem arrojado. Não eram com a terra acostumados, Porém, eram ases no mar. Nunca fizeram milagres. Viajavam pelos mares, tentando ensinar como andar sobre as águas salgadas. Suas almas, tentaram pescar. Suas almas.

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Restrição mental Teclas com letras desenhadas, seguindo o comando de meus dedos. Mistérios e histórias reveladas, expondo os mais recônditos segredos. Um transe no fastígio de minha fé, enquanto meus dedos se movimentam. Estranha hora para eu ficar de pé, quando as pernas não mais, me sustentam. Palavras de um sentido abnorme. Enorme transgressão espiritual nas bases de um denodo paranormal. Psicografo usando outro nome, em letras de uso universal, essa minha restrição mental.

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Pelintra Quer enganar a quem, querer voltar pra casa? Quer convencer-se, bem, que é vergonha na cara? Deixo você fingir ser casta. Deixo você achar que basta querer voltar pra casa. Quer disfarçar que é zen. Quer vestir-se tão bem e não tem nada. Quer viver com pompa? Agora pague a conta ou saia. Deixo você pensar que tem alguma coisa que me agrada. Quer me enganar e vem. Sou predador, meu bem. Você é minha caça.

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Um passeio no parque em dois mil e quatro Eu vi um corpo enforcado à distância; era um parque infantil. É a fachada do trem fantasma. Onde estão as crianças? Hoje o terror é diversão. Samba não é só música, é brincadeira confusa, sem graça. E a criança, o que acha? Olha o tamanho da barca! Parece um grande navio. Da proa vê-se a cidade e rindo de felicidade, uma criança diz: - Bom é o desafio. E na barriga, o frio, numa montanha de ferro. Sobe aos céus, desce ao inferno. Onde as crianças estão? No parque de diversão.

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Saudade de casa Eu queria ir para casa dar um beijo nela e um cheiro na cabeça dele. Meu pequeno, vez em quando, na janela, esperando que eu chegue. Estou chegando em casa, filho, tenha calma. O mesmo pra você, minha doce amada. Esta fria moldura enclausura suas almas. O vento que à sala invade, é saudade. O tempo se torna esguio como a lembrança. Um enorme vazio atalha e alcança meu absorto coração.

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O nome é um só Posso cortar os pulsos e no mesmo impulso sugar o seu sangue para não morrer. Também inocular veneno e aplicar a tempo, um eficaz antídoto, você. Mas não posso manter em segredo quem sempre amei. Todos sabem de cor. Pois o nome é um só, o que eu sempre chamei.

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Lendário Sou um lobo expulso da própria matilha. Sou a mão que calça a velha servilha. Sou barca espanhola. Sou uma pandemia. A minha influenza navega na quilha. Sou o rude corsário deixado na ilha. Sou o terrífico esqueleto na flâmula sombria. Anoso e lendário, sou um centenário, cabal revelia.

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Cochilo operário O serrilhar constante da cerâmica alcança meus ouvidos. Abro os olhos um instante. O barulho é reduzido. O pó espalhado pela casa, como ave, cria asa. Nevoeiro colorido. Eu retiro o encosto da cabeça. Antes que eu mesmo esqueça, este não é meu abrigo. Sou apenas um operário que na hora do trabalho, dá um pequeno cochilo.

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Nostálgica viúva Quem é aquele rapaz? Nessa distância, ele me lembra você. Uma remota criança que aos meus olhos não vê o pai que em passos de dança, dizia: - Amo você. Quanta saudade, meu velho, que chega, o peito, doer. Esse rapaz, mesmo sério, lembra-me muito você. - A sua bênção, minha mãe. Escuto ele dizer. - Seu pai, do céu, abençoa. Ele sorri meio à toa; só acredita se vê. Parece mesmo você.

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Ter ou não ter? Mulher, aprenda o que um homem pode ser. Talvez, ele jamais se arrependa, nem mesmo entenda que também a fez sofrer. Não há remorso, por não perceber a culpa. Não há desculpa, por não ter o que dizer. Mulher, entenda, não revide, não se ofenda. O homem é prenda que não vale a pena ter. Riso e lágrimas, cabe àquela que o tenha. Escancarada, fica a porta do querer. Ter ou não ter? É pergunta sem resposta. O homem é encosta que não dá para descer.

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Verbo encantado Há cercas, mato quebrado. No galope selado, há um porquê. Há nuvens, vento soprado. Há chuva no telhado, a escorrer. Há lua no céu marcado. Há um atalho que me leva até você. Na volta, um único pecado, aquele de não me satisfazer. Há flores, jardim plantado. No fértil chão molhado, um querer. Há dores, sertão velado. Um homem condenado a correr. Há muitas e muitas coisas que eu jamais vou entender. Há fome, vício e violência. Ciência, Deus e o diabo. Haver é verbo encantado. O seu encanto é haver.

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Apesar Um riso triste e disfarçado entre amigos que nos levam à infância numa folga breve do trabalho. Desmiolado e ferido em um abrigo na lembrança. Não somos mais que uma criança sem juízo. Apesar do velho riso e do cansaço, resta-nos, a esperança.

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Soneto do reconhecimento Debruço-me sobre meus livros, enquanto ponho tudo a perder. Escuto sua voz, solta em gritos. Reclamações de tanto a fazer. Eu vejo em meio às páginas, um mundo que ninguém consegue ver. E sofro por entre lágrimas, por tudo que nos possa acontecer. Os meus anéis, circundam os dedos. Punho fechado, não consigo esconder a fúria por manter tantos segredos. Dias a sós comigo mesmo, eu vejo o que eu seria sem você, apenas cicatrizes e muito medo.

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A pintura Mar revolto. O céu exposto como uma pintura. A essa altura, os meus olhos estão encantados. Eu sentado na areia fria. Amanhecia e eu ali calado. Nos coqueirais, o vento se insinua. A fina chuva simplesmente cai, tal qual as lágrimas de uma virgem nua, quando o amor se vai. Acena o sol com dedos em mistura; tonalidades de uma bela cor. O seu amor, estupenda moldura. Sua figura, delicada flor.

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Perda de tempo Talvez eu seja uma perda de tempo. Mas, amar é o que eu tento, e tentar é um esforço redobrado pouco a pouco, no que falo, no que penso. Entre minhas ações tortas, distrações atrás das portas que se abrem em silêncio. Em seus atos ciumentos, sou a culpa. Não se julga, quando se é condenado. Sou um fim quase acabado, uma luta num começo renovado.

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Dúbio Sofro por não saber porque eu choro. E todo dia eu me consolo em silêncio. Sofrer por dentro, não molha os olhos. Mas fere a alma e o pensamento. Há muito tempo, eu sofro e choro de amor, de ódio ou fingimento.

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Tenra beleza Não há estrela no céu que possa me iluminar como a tenra beleza que ofusca o meu olhar. Não há na vida um lugar que cause maior tristeza que aquele que distante está da sua tenra beleza. Por mais escuro que seja a estrada da solidão, a claridade que enseja é fruto do coração. E mesmo se digo não, o sim é flor em colheita. O cheiro de uma paixão, exala quando se deita.

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Idos anos Bateram na porta. Minha alma que parecia morta, acorda em pranto. Depois do espanto, volto a dormir com a mesma calma dos meus idos anos.

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Eles não Eles não têm culpa; e se têm, eles serão mortos; e se não, eles serão súditos; e se súditos, rei nunca serão.

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Óculos Quem sabe os óculos fazem parte de meu rosto. Uma completação à visão que já me falta. Óculos modernos, atualizam minha cara, seja plástica ou metálica sua exótica armação. Um par composto, que nem sempre é bom gosto. Pernas abertas, pendurada no nariz, a armação nada me diz, nas orelhas, apoiada. Quando eu quebrei a cara ela escapou por um triz.

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Fé do carvoeiro Deixei de falar com Deus por não ouvi-lo dizer: - Estou te escutando, filho, diga o que quer saber. Sozinho eu tive que aprender que o mundo sabe ensinar. Chorei para poder crescer. Sorrio para não mais chorar. Deixei de implorar a Deus por ele não atender, não o que eu tinha a pedir, mas para não ver sofrer. Tanta inocência perdida; tanto para se fazer; quantas súplicas de perdão; quanta oração dividida; o agravo da omissão; a revogação em vida. Deixei de acreditar em Deus por uma dedução lógica: Não há como evitar o adeus. Depois do adeus não há porta.

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Sem entrada, sem saída, resta a fé do carvoeiro numa terra prometida sob um denso nevoeiro.

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Minha vergonha Minha vergonha, talvez não seja pela nudez e sim, pela insensatez de atos indecentes. Minha vergonha é ser gente moderna. Sinto saudade da antiga caverna em que morava. Minha vergonha é você na senzala; é ver uma mãe que se cala por ver seu filho com fome; é falsificar o seu nome para esnobar toda minha ganância; é manter o povo na ignorância para me eleger. Minha vergonha é matar por prazer; é promover a discórdia, levando o mundo a crer na mais incauta história. Minha vergonha sou eu; é você; é toda essa mixórdia.

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Fiz essa poesia É manhã, algumas pessoas nas calçadas. Transeuntes que passam, um bom-dia. Uma pequena cidade retratada em versos de minha autoria. Um amigo que fala em vencer. Outro ri como símbolo de alegria. Os telhados parecem nos dizer: -Olhem a minha harmonia. Oficinas com manchas nas paredes. Nas lojinhas, as bonecas de plástico. O sisudo que vende suas redes e o curto das saias com elástico. Ante os olhos que nos viram crescer, no imenso sofrer dessa partida,

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não pude na hora, me conter, quando fomos em busca de outra vida. Vi o mundo. Mas nada pude ver que fizesse me esquecer daquele dia. Quando tive vontade de escrever, eu fiz essa poesia.

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Na escada E enquanto eu causo náuseas ao mundo, sou imundo, o quanto ele também é. Na minha boca, o cigarro faz fumaça. Não tão alta quanto a enorme chaminé. Na minha mão, empunho uma pequena arma que não mata tanto quanto o mundo quando quer. A minha língua pode até ser afiada. Porém, mantém-se calada ante a voz de um boato do mundo inculto, do mundo hipocritamente incauto. A sujidade de meu corpo não é nada, comparada ao esgoto que é o mundo. Esse mundo me dá nojo, e eu vomito na escada.