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Núcleo de Dramaturgia Sesi – British Council O OSSINHO DA SAUDADE Junho de 2009 1

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Page 1: Trez irmãos fazem suas musicas a base de musicas …  · Web viewO OSSINHO DA SAUDADE. Junho de 2009. Gustavo G Gonçalves. Gustavosp7@gmail.com. Sinopse: Entre as necessidades

Núcleo de Dramaturgia Sesi – British Council

O OSSINHO DA SAUDADE

Junho de 2009

Gustavo G Gonçalves [email protected]

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Sinopse: Entre as necessidades financeiras e o sonho de viverem com o

talento, nasceram três irmãos prodígios: Um cantor, um escritor e um ator. Eles contam suas histórias nas ruas de São Paulo, relembrando suas origens nordestinas e falando sobre sonhos e desilusões, nascimentos e mortes, intrigas e paixões com a ajuda das pessoas distantes, que permanecem em suas

lembranças de maneira cômica e dinâmica.

Personagens:

Sérgio dos Reis Tony dos ReisAntônio dos Reis

Ator 1: Zé, SunAtor 2: Tio Adão, médicoAtor 3: Primo Tobias, Vendedor, Ricardo, Atriz 1: Rosália, SôniaAtriz 2: Parteira, Tia menininha, Cega

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Indicação: Enquanto o público se acomoda os atores são vistos já caracterizados. Quando menciono “os três” falo sobre os três protagonistas: Antônio, Sérgio e Tony dos reis; Em suas narrativas eles podem estar cantando ou falando, a criação é livre. O importante é não declamarem o texto para que o ritmo seja sempre dinâmico.

Prólogo – Os personagens preparam o público para o mundo das lembranças

(Praça a céu aberto. Enquanto as pessoas se acomodam e aguardando o início da peça; Tony se aproxima do público e dá a nota musical iniciando o espetáculo. Os irmãos se aproximam para cantar).

Os três - Viemos aqui para a cidade;Á procura da tal felicidadeProcuramos hospitalidade

Tony - Um emprego!

Os três - Em troca prometemos agir sempre com honestidade.

Sérgio - Se pudéssemos traríamos nosso gado acompanhado de nossa senhora...

Os três – Amém!

Antônio - Para aqui abençoar nossas cabeças e levarmos um pouco das gotas dessa terra da garoa aos nossos conterrâneos, que conhecem bem o frescor d’água pelo valor que dão a cada gole.

Os três - Esse é o lugar prometido!

Tony – Dinheiro e roupas novas!

Antônio - Novas escolhas...

Tony – (Imaginando tudo que escuta e pensativo) Dinheiro...

Sérgio – Chuva...

Tony - Dinheiro...

Antônio – Carros...

Tony – Dinheiro... (Antônio estende um chapéu e caminha entre o público pedindo dinheiro)

Antônio – Roupas novas, chuva, trabalho, novos amores e muito medo. Quem sabe até futuramente lançar um livro com a ajuda de “Vossas senhorias”. Uma simples moeda ajuda e muito...

Tony - Pois agora querido público, contaremos com todo o carinho nossa história. Esperamos que apreciem todas as palavras e todos os momentos que dividiremos com vocês.

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Sérgio (Canta os versos de forma melodiosa e cadenciada)

Morávamos no meio do matoTerra do sol...Lugar próximo ao céu, das nuvens e o céu de estrelas é fartoTerra do solUm lugar que vive na margem do tempoEsquecido, pouco visto, mas que ainda está aliTerra do sol...Lugar Castigado: não tem tanta água nem tanto ventoMas é terra vermelha, ainda fértil.Terra do sol...

Antônio – Daquele solo nasceu toda a minha gratidão. Ali foi onde nosso pai plantou feijão e muitas vezes esse feijão vingou.

Sérgio – Por isso estamos aqui. Saímos de casa trazendo lembranças e com o compromisso de mandar notícias. Precisamos escrever uma carta pra nossa tia e olhando em volta, agora, nesse momento bate o medo de como descrever tamanha decepção ao ver que tudo é diferente do que achávamos. Por isso, meu irmão escritor: Antônio é quem vai escrever a carta para nossa tia... (Entregando o papel e a caneta)

Antônio – Eu?

Sérgio – Sim. Você não é o nosso escritor?

Antônio – Posso até escrever fatos fictícios, mas mentir assim, não!

Tony – Antônio pensa bem, imagina a angustia da titia!

Antônio – Não tem conversa.

Tony – (Imitando Antônio) “Não tem conversa”. Você prefere deixar a coitada mais preocupada ainda? Tenho certeza que agora mesmo ela reza, esperando que tudo tenha dado certo...(Antônio pega a folha e olha para o papel sem idéias).

- Primeiro Ato – O começo de tudo.

Cena I – As raízes

Os três - Filhos de um casalQue por falta de televisão:se divertiam contra a solidão...

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De pouquinho em pouquinho foi assim que:

Sérgio - Nasceu o primeiro!

Antônio - Nasceu o segundo!

Tony - Nasceu o terceiro!

Os três - Todos no mesmo mês: O mês de Janeiro.

Sérgio - Mas em anos diferentes!

Sérgio - Seu Zé!

Os três - Seu Zé!- (Zé entra fazendo reverência para o público)

Sérgio - Pai dos três -

Os três - Descendente de portuguêsPor gostar muito de novidadeComprou um rádio que era raridadeE batizou o primeiro filho como: Sérgio dos Reis... O primeiro tinha fama de violeiroNasceu cantando o A – B – C inteiro.

Zé – Lembro como se fosse ontem: No rádio era cantada uma música das mais bonitas que eu já ouvi: “O nascimento do passarinho” (Sérgio olha para o pai, como se fosse uma lembrança distante e emocionado começa a solfejar uma melodia)

A aurora veio anunciarA chegada do meninoE o sabiá veio cantarJunto ao badalar do sino

Dança, dança sem desesperarCanta, canta,meu menino...Canta, canta,meu menino...

Cena II – O nascimento do passarinho (Pequena casa de barro iluminada pela luz do sol. A casa tem poucos móveis, entre eles uma mesinha com a Imagem de Santo Antônio. Ouvimos gemidos de dor, é Rosália sentindo as dores do parto, ela está deitada em uma mesa de madeira e ao seu lado uma parteira).

Zé (Está impaciente, do lado de fora da casa e segura um rádio) – Deus do céu Rosália!

Parteira – Rosália, segura na toalha e morde. Grita com gosto e não se sacode, fica parada que o menino é grande e tem que sair de uma vez.

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Rosália – (Gritando e rezando) Meu Deus do céu, acuda. Santa Terezinha, que esse menino seja amado e não tenha tristezas... Santa Maria interceda por esse menino e por todos nós! Santo Expedito, meu santo guerreiro, que o menino seja forte! Essa miséria e sede devem acabar. Que esse tempo melhore, pois não quero ver meu menino sofrer. Ai que sofrimento pra esse menino sair!

Parteira – Mas já vem vindo! Já dá pra ver o menino!

Rosália – Ai!

Parteira – Respira Rosália, respira! (Ela respira exageradamente) Com mais calma mulher!

Zé – E foi aí que nasceu nosso passarinho. (Olha para Sérgio que ainda canta) O menino havia nascido com o dom de agradar aos ouvidos...

Parteira – Já nasceu cantando! E era um canto tão bonito, mas tão bonito que um passaredo encostou-se na janela e de forma espantosa começou a cantar junto com o menino...

Zé – E era tão afinado...

Parteira – Ainda bem que eu pedi pra Rosália respirar com mais calma, se nascesse com ela respirando daquele jeito estabanado o menino seria descompassado!

Zé – Pena que Rosália, com a beleza de toda a música dormiu e não viu nada.

Rosália (Que continuava deitada) Você que pensa. Eu estava era cansada. Fechei os olhos ouvindo a melodia e dormi um sono tão gostoso...

Zé – Logo os pássaros foram embora e logo nossos meninos dormiram, mas até hoje a bela sensação de ouvir aquilo não passou. Foi um coral de anjos que cantou e meu filho fez a primeira voz. - Vai se chamar Sérgio dos Reis - eu disse emocionado.

Cena III – Pro-dí-gio (Os filhos continuam contando na terceira pessoa, assumindo que estão contando uma história e sempre admirando a figura dos pais).

Os três – O segundo filho!

Antônio – Eu!

Os três – Nasceu debaixo do umbuzeiroOnde Rosália todas as tardes lia a bíbliaA cultura deu fé à dona Rosália,Freqüentante fiel da sagrada missa de domingo Que rogava por uma vida melhorE pedia que fosse milionáriaEra apaixonada por seu Zé;Casada graças à benção de Santo Antônio.Como ela não era boba, fez uma promessa:

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Rosália – (De joelhos, rezando na frente da imagem de Santo Antônio, Zé está escondido atrás da porta) Meu santo, a promessa é essa: Se o casamento continuar duradouro durante a próxima gravidez e o Zé não me trair (Se benze) nem me dispensar nos meus momentos de fogo... (Os filhos tapam os ouvidos com medo das confissões intimas da mãe) Darei ao meu segundo filho o nome de Antônio. Sei que durante a gravidez do primeiro tudo foi surpreendente, encantador, mas agora tenho certeza que meu corpo não será como antes. Meu santo, que o Zé ainda tenha interesse por mim... (Zé ri e Rosália pula no susto) Tava aí? Ouvindo minha conversa com o santo? (Ele balança a cabeça de maneira positiva) Que falta de respeito Zé! (Ele vai até a esposa e lhe dá um beijo na testa)

Zé – Nunca vou te faltar com respeito.

Rosália – Desculpe duvidar... É que você é assim, bonito de todo jeito, mesmo com o tempo passando...

Zé – E você fica mais bonita a cada dia. Em cada verão sofrido seu sorriso é mais e mais bonito... Sejam lá quantos cabritinhos nossos nascerem, um a um eu hei de amar e não hei de deixar nada faltar.

Rosália – Não chame nossos meninos de cabritinhos!

Zé – Pára de me dar bronca, que a gente tem muito que fazer... Pra essa história realmente começar tem que pelo menos mais dois nascerem. (A beija de maneira fogosa)

Antônio (Tossindo sem graça) - E vamos agora realmente para o meu nascimento (Olha para trás e fala nervoso com os pais que não interromperam o beijo) Pai, mãe! Não é pra mostrar como eu fui feito e sim como nasci! Ou melhor... O momento em que nasci.

Zé – Desculpa filho.

Rosália – (Se recompondo) O menino nasceu em uma época até que boa! O umbuzeiro da frente de casa estava cheio, eu estava tentando ler a bíblia e comendo o umbu colhido do pé, senti as pontadas do menino...

Parteira – Esse segundo menino não deu muito trabalho. O Zé foi me buscar às pressas e quando chegamos na casa: estavam os dois, mãe e filho, debaixo do pé de umbuzeiro! Ela se limpava sozinha, toda sorridente. Eu disse - Esse nem precisou de mim! Parabéns Rosália.

Rosália - Obrigada comadre.

(Voz de Antônio ainda criança soletrando) “pe-que-ni-nos” (O bebê dá uma gargalhada bem gostosa de ouvir)

Parteira – O que disse?

Rosália – Eu não falei nada.

Parteira – Então quem disse isso? – (O bebê ri novamente)

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Voz do bebê – “Dei-xai vir a mim os pe-que-ni-nos e não os im-pe-ça-is, porque o rei-no de Deus é da-que-les que se asse-me-lham”...

(A parteira e a mãe estão boquiabertas, uma abraçando a outra de costas para o bebê).

Parteira – (Se benzendo) É do Evangelho de Marcos.

Voz do bebê - Capítulo dez, versí-culo qua-tor-ze...

Rosália - (Preocupada) Zé, outro prodígio!

Zé – E o que o nosso novo cantor faz ai? Deitado com a bíblia aberta nas mãos? Canta pro papai ouvir!

Voz do bebê – “Fa-rei apare-cer pro-dí-gios em ci-ma, no céu, e milagres em-bai-xo, na terra”...

Parteira – (Indo até o local onde está o bebê) Atos dos apóstolos.

Voz do bebê – Capí-tu-lo do-is, ver-sí-cu-lo de-ze-nove. (Zé se benze e sai correndo)

Rosália – Zé, volta aqui! Zé! É nosso filho! (O garoto ri novamente)

Parteira – (Ao público) Menino sempre esperto que não podia ver um lápis ou um pedaço de carvão que já começava a escrever letras e mais letras nas roupas, ou pegava um galho de árvore e escrevia no chão...

Zé - Passaram dois anos e o menino continuava inteligente, me assustava mais e mais, soletrava de tudo e unia letra com letra... Logo descobri seu ponto fraco: A matemática! (Pausa) Dos três meninos falta falar de um... Lembro que na época dei pra Rosália uma televisãozinha que funcionava á pilha, coisa chique, importada de São Paulo...

Cena IV – Finalmente o último dos três

Tony - O terceiro é o mais moço, mais formoso e conservado.

Sérgio – É também o mais modesto e vaidoso.

Sérgio e Antônio - Nasceu já assim, com os cabelos espetados...Esse nasceu na era da eletricidade nas casas distantes;Com todo o sucesso da teledramaturgia, dos tempos de láRosália pediu pro Zé Para ir à casa da parteiraEncomendar um partoQue seria com muita “berradeira”E foi chorando que a mãe teve esse filho

(Rosália assiste televisão. Zé está inquieto e a parteira sentada, preocupada com Rosália)

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Rosália – (Sempre olhando para a televisão) Sim, mas dá pra agüentar.

Zé – Parece besta! Fica na frente da televisão e esquece do mundo.

Rosália – Não me desconcentre, Zé!

Parteira – Seu Zé! Vai lá pra fora que agora não é momento de discutir.

Rosália – Silêncio! É agora que ele vai se declarar!

Zé – Pois então, licença. (sai)

Parteira – Quem já viu! Com ciúmes da televisão!

Rosália – (Olhando pra barriga) Espera um pouco menino! (falando sobre Zé) Desde que me deu essa televisão ele age assim.

Parteira - Mas logo se acostuma...

Rosália – Ele anda muito estressado, brigou com o irmão por causa da divisão da herança do pai, o Adão queria maior parte da terra, acredita?

Parteira – E Menininha? Como irmã dos dois o que faz?

Rosália – A Menininha é um amor de pessoa, mas prefere não fazer parte dessa briga.

Parteira – Me perdoe falar assim do seu cunhado, mas aquele sujeito não é homem que preste!

Rosália – Não ligo, o Zé é tão diferente do irmão...

Parteira – Como pode existir gente assim? Um mão de vaca como ele...

Rosália – (Apontando a televisão) Olha o Tony, comadre! Como é lindo! (Grita de dor) Espera filhinho, só mais um pouco., já vai vir o comercial.

Parteira – Ele é bonito mesmo, hein comadre!

Rosália – Eles vão se beijar! (Ofegante) É tudo igual comadre; O fim é sempre igual e o pior de tudo é que é mais comercial do que... Ai Meu Deus!

Parteira – (Saltando de preocupação) O que foi?

Rosália – Logo agora o comercial!

Parteira – Pensei que fosse o menino.

Rosália – Ele também! Acuda!

Zé –(Ao público) Desse eu ouvi os berros desafinados e exagerados...9

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Parteira - O filho era miudinho e chorava pela frieza do mundo, a mãe chorando pela delicadeza das palavras do mocinho: Foi gritando “Tony” que Rosália nomeou seu filho.

(Agora mais calma, Rosália não para de olhar para a televisão, a parteira tira o menino do colo da mãe e coloca em um berço)

Zé – Menino bonito! Parece com a mãe. (olha para Rosália que não deu atenção) Essa daí... Parece que está em outro mundo...

Parteira – É compadre, parece que esse é normal. Não tem nenhum dom precoce.

Rosália – E o nome dele é Tony.

Zé – Gostei. “Tony dos Reis”!

Parteira – (Cochichando para Rosália) Mas comadre, Tony não é a mesma coisa que Antônio?

Rosália – Claro que não, são nomes bem diferentes!

Parteira – Sim, mas qual o diminutivo de Antônio?

Rosália – “Antoninho”.

Parteira – E o diminutivo de Tony?

Rosália – Pense comadre! Poderia ser “Tonynho”! Mas em nome dos estrangeiro não se usa no diminutivo... Agora dê licença.

Zé - Obrigado meu Deus, por tudo dar certo. (Faz o sinal da cruz e olha fixamente para o berço) Nossa! (A parteira olha para Zé que olhando para o berço se espreguiça exageradamente)

Rosália – Zé! Sai da frente da televisão!

(A parteira olha para o berço)

Parteira – Nossa senhora! (Rosália finalmente olha) É um menino prodígio!

Zé – Imita direitinho tudo o que eu faço! ( Zé faz vários movimentos e a cada gesto eles olham mais e mais impressionados) Chama os outros meninos. Sou um homem cercado por gente bonita e talentosa!

Rosália – Sérgio! Antônio! “Venha” ver o irmãozinho de vocês, ele nasceu!

Cena V – A educação

Os três - Crescemos juntos, caçando passarinhoConstruindo carrinhos de lata e entrando em moinhos.

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Tony - Não tínhamos medo de nada!

Sérgio - Fosse Cobra, Catengue, Piaba, coelho, morcego ou Raposa. Era só apontar o estilingue que espantava o bicho que fosse.

Antônio - Fomos crescendo, estudando e ajudando nossos pais. Eram quatro horas de viagem até a escola. Quatro de ida e três de volta...

Tony – As voltas são sempre mais curtas!

Os três - Lá aprendemos a ler e escrever nossos nomes, decorávamos a tabuada e nossa professora era exigente. Recebíamos vários castigos, ajoelhando no milho e levando reguada na mão.

Sérgio - Não andávamos exatamente em cavalo... Na realidade eram os primos deles, três simples e valentes jumentos. (Zé, Sérgio, Antônio e Tony andam de jumentos, aparentam estar cansados, ao longo da conversa eles descem dos animais).

Sérgio – Pai, certeza que não quer nossa ajuda?

Zé - Não careço.

Antônio – Têm muita coisa pra fazer lá na roça!

Tony - Um monte de cerca quebrada...

Sérgio - Um monte de cabra sem chocalho...

Tony - E a gente nem tem tanta vontade assim de ir pra escola... O Antônio lê melhor que a professora!

Zé - Mas sabe pouco de matemática.

Antônio - Já sabemos a tabuada, pai. Fácil, fácil...

Zé - Pois é; Eu que não sou um homem estudado nem sei o que significa essa tal de “tablada”!

Antônio - É ta-bua-da. Tabuada, pai!

Zé – Pra que serve?

Sérgio – Pra fazer umas contas danadas de difíceis. Multiplicar, um número vezes vários...

Zé – Certo... Acho que aprendi um pouco disso por necessidade. Diga lá Sérgio: Nesses tempos difíceis uma cabra come no mínimo três sabugos de milho, quantos sabugos eu preciso pra nove cabras comerem pelo menos o suficiente?

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(Os três se olham, contam nos dedos, mas a partir do décimo dedo não conseguem mais contar)

Sérgio - Diz aí pai. Quantos?

Zé – Uns vinte e sete.

Antônio - Como assim “Uns vinte e sete”?

Zé - É que a prática é sempre diferente da teoria. Sempre tem uma mais gulosa que come mais que as outras...

Tony - Pois se a gente respondesse assim ganharíamos zero na hora!

Antônio - Sem contar o castigo!

Tony – Ajoelhar no Milho na certa.

Zé - Prestem atenção em tudo o que a professora fala e respeitem, ouviram? Não quero três mal educados em casa, muito menos que três meninos talentosos como vocês fiquem bobos. Sei que o Antônio entende bastante da escrita, mas quero que estudem pra vida, falar bonito, fazer negócio, não deixar ninguém fazer vocês de besta...

Sérgio - Ninguém vai fazer não!

Zé - Deixa o mais velho falar! Estou falando. Esqueceu o que eu sempre ensinei? (Pausa) Responde menino! Quando alguém pergunta tem que ter resposta!

Sérgio - Não esquecemos não, pai.

Zé - Agora prometam que irão estudar bastante! Quando eu pedir que me ensinem, vocês vão ensinar!

Os três - A gente promete!

Sérgio - A bença, pai. (Beija a mão do pai, os irmãos fazem o mesmo)

Antônio – Bença, pai.

Tony – Bença, pai.

Zé - Deus abençoe. E não esqueçam de todos os sacrifícios que passo por... Por...

(Zé respira profundamente, os três vão saindo e Zé os acompanhando olhando ao longe. Logo a narração começa e Zé continua emocionado)

Cena VI – Briga de família

Os três - Na família, de pessoas ainda vivas Tínhamos um tio e uma tiaUma tia muito trabalhadora

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Que perdera o marido pra tentação(A tia passa com uma lata como se estivesse indo buscar água) E não aceitou essa perdaEle saiu de casa dizendo que iria voltar Mas não voltouEra um beberrão que saio pulando de taberna em taberna(Os três carregam um caixão e deixam no centro da cena, olham para o caixão com descaso) Já nosso tio por parte de paiTinha má fama de pão duroNão fazia favor nenhum tinha um filho não aceitoe brigava por tudo que fosse materialAté seu caixão ele encomendou!Pois sabia que nas mãos da populaçãoMorreria e ficaria deitado naquele chão

Sérgio - Deus o guarde naquele céu, mas que ele era pão duro ele era!

Tony – (Em segredo) Fica quieto se não o fantasma vem!

Tio – (Saindo do Caixão, todo bem vestido, pomposo) O que foi que falaram seus moleques?

Tony – (Tentando amenizar a situação) Tio! Bença.

Sérgio - Bença, tio.

Antônio – Bença, tio.

Tio – Abençôo nada. Sobre o que falavam? Sobre a minha pessoa, não é?

Antônio – (Tentando disfarçar) Chegou na hora certa, tio. Falávamos do quanto o senhor era... Era...

Tony - Pão duro!

Adão - O quê?

Tony - Mão fechada!

Tio - Acho que não entendi!

Antônio – Mão (Soletrando) fe-cha-da, tio. Mão fe-cha-da! E não adianta xingar! (Apontado para o céu) Que Deus pode te castigar.

Tony - Dê licença que agora iremos contar sua história.

Sérgio - Nem parecia que era sangue do nosso sangue. Para nosso pai ele era...

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Zé – (Zé desabafando) A desonra da família! (O tio cospe) Em cidade pequena é muito fácil ser mal falado e histórias sobre ele era o que não faltava na boca do povo...

Os três – Adão, Adão, Adão, Não pagava imposto e se dizia honestoO apelido pegou e não teve jeito“pão duro”, “mão fechada”, “Avarento”, “vai morrer pedindo esmola”a cidade caçoava e com razão

( Eles pulam um muro segurando baldes)

Antônio - Não faz isso, Tony.

Sérgio - Fica quieto Antônio!

Antônio - É pecado!

Sérgio - Pecado nada, o que eu posso fazer se só choveu um pouco e foi pra esses lados?

Antônio - Mas o Tio não deixou.

Tony - Não deixou porque é ruim.

Antônio - Mas a gente ta roubando!

Sérgio – Roubando, Antônio? Quem já viu? Água! Isso é Água! E Água não se rouba, se colhe, é um presente de Deus! Como fruta brota da terra!

Tio – (Nervoso) Se é um presente de Deus é um presente dele pra mim. Pois foi aqui nas minhas terras que choveu.

Tony - Fazer o que se o vento estava forte e virado pra cá?

Tio - São as minhas terras seus moleques!

Sérgio – Não! É a nossa sede!

Tio - Infelizmente vocês são sangue do meu sangue, mas mesmo assim não darei nada. Seus ladrões de água! Se der uma lata cheia pra cada um de vocês terei de dar a mesma quantia para cada um da cidade que vier me procurar.

Tony - Mas precisamos...

Tio - Isso é justo?

Antônio – (Aos irmãos) Eu disse que não deveríamos...

Tony (Respondendo ao tio) - Sim é justo.

Tio - Não, não é. E vocês estão nas minhas terras, fora daqui! (Saem correndo) Rapaz, volta aqui com essa lata, devolva minha água! Devolva!

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Sérgio - Peguei e pegaria de volta. Com aquela água enchi o nosso filtro de barro...

Tio – Sem vergonha!

Tony – (Imitando Adão) “Devolva minha água! Devolva!”

Antônio - Mas tio, responda... O senhor foi pro céu?

Tio - Falando em céu ta na hora do velho ali... (Aponta para Zé)

Zé – Ta tentando disfarçar? Quer mudar o rumo da conversa sua coisa ruim?

Sérgio (Ao público) – E esses dois sempre brigaram...

Tony - Por ganância, orgulho besta.

Zé e Tio – Respeita menino! (Os dois ficam emburrados)

Cena VII – Aceitação das perdas

(Rosália vai até Zé e o beija)

Rosália – Não estou preparada.

Zé – Nem eu.

Rosália – Eu não quero que você se vá!

Zé – Nem eu.

(Os três rapazes ajoelham-se e abaixam as cabeças)

Zé - Quando enfrenta a morte a gente fica mais genteAinda não descobri quais são os critériosMas descobri vários mistériosNão vou estragar nenhuma surpresaMas é o mesmo destino pra rico, velho, novo ou quem vive na pobreza. A morte é certa. Essa peça seria um auto se eu dissesse o que vem depois da morte!

Rosália – (Ao choro) Eu não esperava por isso! Câncer... Meu velho morrer de câncer! Não, não aceito.

Zé – Nem eu Rosália. Mas a hora já vem chegando, atacou o estômago, minha barriga virou barriga d’água. (tenso) Não aceito! Morrer assim, nem tão velho, mas cansado de ver “meus bicho morrer”, e vendo “os bicho” morrendo fomos morrendo também de fome, de sede, cansaço...

Rosália – Meu santo Antônio, proteja.

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Zé – E às vezes eu me perguntava o porquê a gente nasce se tem que morrer, o porquê a gente ama alguém se um dia vai se separar...

Rosália – E esse meu homem morreu, me deixou cuidando dos meninos, mas o coração apertou, a saudade bateu... (Abraçando o marido) Não consegui ficar sem o meu Zé.

Antônio – (Tentando consolar os irmãos) Quando os negros eram separados de suas famílias da áfrica alguns morreram de algo chamado “banzo”, acho que a morte de mamãe foi igual, o mesmo sentimento de falta, incerteza, tristeza... (Os abraça)

Parteira – Meus sentimentos meninos. Ela foi pra um lugar melhor!

Zé – E é ai que a gente sabe que pra lembrar do amor temos que passar bons momentos com a pessoa que amamos. Pra deixar a lembrança mesmo que o amor nunca se separe da dor.

Sérgio - Eu nunca disse isso pai, mas a gente te...

Zé – Não precisa dizer filho.

Tony - É um sentimento tão grande que não cabe aqui dentro de tão lindo.

Antônio (Olha para o público) - No meio de tanta gente dá até constrangimento...

Rosália - Eu também vou meus meninos. Como dificilmente uma frase escolhe seu ponto final eu escolho o meu. Mas essa ainda é uma vírgula na história dos três. Vou fazer companhia pro pai de vocês. (Ao público) E é ai que a gente sabe o porquê viveu. É porque estávamos vivos. (ri) Me orgulho de vocês meus meninos. Só quero que corram atrás de seus sonhos. Já aprenderam tudo o que tinham que aprender da nossa parte. Agora é no mundo!

Sérgio –Se o amor não existe com eles existiu. Ele se foi e ela ficou doente... Depois do ultimo respiro velamos e calmamente aceitamos.

Os três (Simbolizando um enterro) - E assim, no primeiro ato da nossa vida eles passaram como uma mensagem.contando o que é pecadomostrando o que é coragemdizendo o que é errado

Zé – O talento deles era válido, mas eu sou testemunha do tanto que eles praticaram cada um a sua arte, o tanto que eles pesquisaram e correram atrás. Com versinhos para os parentes, músicas na igreja e peças com os amigos de escola... Agora o mundo que os aguarde! E você pão duro? Não vai?

Tio – Sai do meu pé homem. Eu ainda continuo nessa maluquice...

Zé – (Tentando alegrar-se) Não venda sua alma para o Diabo, hein!

Tio – Cuida da sua vida Zé!

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Zé – E vocês meus filhos, cuidado com esse pão duro aí! (Uma enorme luz carrega Rosália e Zé, que saem rindo)

Tio – (Rindo sem graça) Que venha o próximo ato da vida desses meninos...

Ato II Não é só fruta que fica madura,

não é só fruta que estraga...

Cena I – Só se tem o gosto da liberdade depois que provou o amargo da prisãoOs três - No segundo ato Mal saímos do primeiro retratoE já encenamosUsando muito do que aprendemosQue a vida é difícil já sabíamosMas que mexer com terra e dinheiro é a mesma coisa que cavar uma cova sem fundo... (respiram profundamente)mal imaginávamos!Nosso Tio, logo no dia da morte de mamãe, chegou e Disse:

Tio – “Serginho”, “Antoninho” e “Tonynho” - Quero trabalhar com vocês sobrinhos, não confio em ninguém, menos ainda em parentes. Tenho minhas desconfianças sobre ser tio de vocês ou não... Sou muito diferente do pai de vocês, diferente da sua tia e mais diferente ainda do seu avô. (Gabando-se) Sou fino, educado, dono de posses, colega de empresários paulistas... Enfim, quero que morem na minha casa. Cuidaremos juntos da terra de vocês. Faremos “A grande fazenda dos Reis” Nosso gado será “A carne dos Reis” e seremos ricos, filhos, viajaremos para São Paulo!

Sérgio – São Paulo?

Tio – É. E de helicóptero!

Antônio - Disse isso com tal segurança e descaramento...

Tony - Parecia até candidato político!

Antônio - Que aceitamos. “Não tínhamos futuro melhor...” Mas logo a coisa foi complicando...

Tio - Que dinheiro de vocês? Eu pago a tinta pra pintar a fachada da casa, conservo a casa, compro a comida importada dos bichos, dei colchão, dou a comida de vocês, compro o

fumo...

Sérgio – (Respondão) Mas quando ele comprava a tinta quem pintava a casa? Quem servia a comida para os animais? Quem ganhava comida? Trabalhávamos duro e éramos donos de parte das terras! Encarávamos até mesmo os bandidos, ladrões de animais... Espera aí, fumo?

Tio - Sim, eu pagava o fumo. 17

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Sérgio - Mas o que temos a ver com isso?

Tony - Nem fumar eu fumava.

Antônio - Muito menos eu.

Os três - Ficamos treze meses arando terra e plantandoColhendo e regando,Todos os animais eram tratados com carinhoComiam do bom e do melhorEnquanto, nós, SOBRINHOS, esperávamos uma sobra...Por isso ele era um homem tão sozinho!E morreu sozinho em casaDeixando tudo ao vento

Sérgio – Aquele seu filho apareceu.

Tio – Que filho? Nunca tive!

Tony – Esse mesmo; O que você nega.

Tio – Mas não é! Garanto que não. A mãe dele ela... Ela era uma mulher oferecida!

Sérgio – Acontece que ele foi até o seu enterro, foi o único! De toda a cidade o único! Chegou no enterro daquele jeito que todos sabemos que ele tem: “O dono da razão”...

Cena II – Sair e tentar? (No enterro do tio, vários móveis no fundo da casa com quadros. O caixão está no

centro).

Primo – (Olhando o caixão) Finalmente foi pagar pelos pecados dele. Não querendo me intrometer na vida de vocês, mas já me intrometendo... Vocês precisam saber o que vão fazer daqui pra frente! Se vão continuar com as terras do pão duro ai (Aponta o caixão, Adão reage com gestos) Ou seguir carreira...

Sérgio – Pensávamos nisso.

Primo – Eu, por exemplo, fui pra São Paulo ano passado pra aumentar minha renda...

Antônio – Tobias, lá vem você com esse papo de “Já fui pra São Paulo”...

Tony – (erguendo o nariz e imitando o primo) “Já fui pra São Paulo”.

Primo – Mas não fui mesmo?

Tony – Mas ninguém acredita nas suas histórias.

Primo – Acreditando ou não estou certo do que digo.

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Tony - E como é São Paulo?

Primo - Danado de grande.

Antônio – Isso a gente sabe... E o trabalho?

Primo – Fácil, fácil...

Antônio - E por que esses calos na sua mão?

Primo – (Sem graça) Esqueceu que sai daqui? As marcas não saem.

Antônio - E porque não ficou lá?

Primo - Pareço bicho. Fiquei com medo de morrer ali... Aquele paraíso não foi feito pra mim; Acho que eu morreria; Além do mais lá não existem peixes como aqui! Acho que meu verdadeiro dom é pescar... Na verdade o que faço muito bem, acho que muito bem mesmo é sexo. Deve ser esse o meu dom!

Sérgio – (Ao público) “Eita” bicho convencido.

Tony – Você fala dos peixes como se pescasse alguma coisa! Os que você pesca são menores do que essa “piabinha” entre as suas pernas!

(Os três riem)

Primo – (Ignorando) Lá o povo também gosta muito de se exibir, tudo fidalgo... Acho que tem inveja de nordestino sabia?

Sérgio - Então lá não há de ser lugar pra gente.

Primo - Lá tem muitas casas de shows e gravadoras. Mais casas de shows do que lojas aqui na nossa cidade!

Sérgio - Então é pra lá que eu quero ir.

Antônio - Interesseiro!

Primo - Ele corre atrás das oportunidades... Lá também tem um monte de editora de livros. Só não sei se existe escritor bom, ou grandes destaques... Nunca li nada.

Antônio – Pensando bem o interesse faz parte de qualquer coisa, não é mesmo?

Tony - Eu que não vou. Novela eu sei que maioria é gravada no Rio de Janeiro.

Primo - Calma! Algumas novelas não são gravadas lá... E as produtoras de filmes? As boas emissoras? Teatros? Ali têm rua que é motel teatral, todos os gêneros de peça na mesma rua...

Tony - Mas e os salários?

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Primo - Ai depende de você, da sua sorte, do seu talento. Se você ficar aqui vai receber bem fazendo teatro? Pensa bem primo... Pensem bem primos!

Tony - São Paulo como qualquer coisa tem seus defeitos... Mas aqui a gente não pode ficar.

Primo - Agora preciso ir descansar. (Lentamente pega um anel que está na mão de Adão que se movimenta, mas seus movimentos não são perceptíveis para o “filho”) foi boa a prosa. Que o pão duro ai tenha descanso... (Se benze) Até com a pessoa morta dá pra sentir o peso de sua presença. Ah, outra coisa... Não querendo ser interesseiro, mas tendo um pouco de interesse... Se forem, lembrem de mim. Qualquer “presentinho” de coração eu aceito. Um pedacinho de terra, uma parte da fortuninha que o velho tinha debaixo do colchão... (O tio reage) Tudo é de bom grado! Boa noite. (O tio fica boquiaberto)

Sérgio – Uma parte a gente vende e a outra deixamos á nossa tia.

Antônio - Vamos agora mesmo falar com ela, nossa oportunidade chegou!

Tio – Vocês e esse sonho besta...

Tony - Agora vamos falar com a tia.

Tio – Esperem. Antes de irem não se esqueçam de olharem no meu colchão. Meu dinheiro está escondido ali. Tinha uns dois mil reais.

Sérgio - Já peguei “tudinho”.

Tio – (Desacreditando) Moleque!

Sérgio - A propósito... Antes de você morrer não tinha tudo isso. Acho que apenas a metade...

Tio – Como?

Sérgio – Sabe como é... Eu pegava “emprestado” escondido quando ia pras festas...

Tio - Mas seu desgraçado! Se eu não estivesse morto daria a surra que os três sempre mereceram. Mexer debaixo do meu colchão!

Tony - Adeus tio. Apesar dos seus males sabemos que sempre quis fazer o bem, principalmente a si próprio! (Eles riem, o tio, mesmo nervoso entra no caixão e os garotos travam).

Sérgio (batendo no caixão )Lembra do caixão que você encomendou? Vendemos e pagamos os cigarros que você comprou e ficou devendo! Esse caixão ai foi comprado especialmente pra você! Madeira de terceira qualidade, o mais barato de toda a cidade! (Ouve-se batidas da parte de dentro do caixão. Um raio de luz leva o caixão) Tony - E esse foi o enterro do avarento.

Cena III - A tia e sua lata e o sol que mata20

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Os três - Tia Menininha também era nossa tia por parte de paiAndava toda encolhidinha Sempre com um lenço amarrado na cabeçaDava até dó da coitadinhaQuando andava com uma lataSoando até os pésA face, de amarelada passava a ser vermelhadaCom o sol no meio do céuDia depois de diaNo cantar do galo, da arara e da cotoviaTrabalhava, trabalhava...Graças a Deus começou a receberA abençoada e muito esperada aposentadoria

Sérgio - Dá vontade de chorar ao lembrar Da boa ação que ela faziaQuando nos dava bolachinha Nos dava alegria!Como era lindo o sorrisoDe distração da nossa tiaQue era silenciosa, astuta e espertaEla é a menininha Alma boa que enquanto não nos via bem, não ficava quieta.Acordava cedo, se espreguiçava na janela e dizia:

Tia – (voz da tia) Meninos! Não esqueçam de tomar o café! Aqui a bolacha...

Cena IV – Mais uma despedida entre tantas...

(Os três vão em direção a casa da tia, uma casa vista de longe, mais simples que a primeira)

Tia – (Com uma lata cheia de água na cabeça, vendo os sobrinhos de longe) Meninos, o enterro estava cheio?

Antônio – (Disfarçando) Não muito.

Tia – Desculpem minha ausência... Vocês sabem que eu não gosto de enterro.

Tony - Tudo bem.

Tia – Quero a lembrança dele assim como a do seu pai, os dois vivos e fortes...

Sérgio - Sabemos disso, Tia. (Pausa) Queríamos dizer uma coisa...

Tia – Eu já acordei com um mal pressentimento...

Sérgio - Estamos indo pra São Paulo.

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Tia – Meu Deus do céu! Onde está o juízo desses meninos? Eu vou ficar aqui, sozinha... Abandonada pelos meus familiares?

Tony – Calma tia, nós vamos voltar.

Tia - E voltam quando?

Sérgio - Não sabemos.

Tia – E vão me deixar aqui? Sozinha? Nunca vivi sozinha!

Antônio – Calma...

Tia – Nunca pensei...

Sérgio – Viremos buscá-la depois...

Tony – Questão de tempo!

Tia – Mentira!

Tony – Por favor, nos dê essa chance!

Tia – Sozinha...

Sérgio - Tia, nós vendemos parte das nossas terras e as que foram do nosso tio sem a sua autorização...

Tia – Isso é o de menos, morem aqui comigo!

Tony – Nos dê essa oportunidade, tia. Eu to cansado de cuidar de terras e de gado, não é pra mim!

Sérgio – Não tenho tempo de fazer o que mais gosto, quero viver cantando, criando músicas, encantando o público, fazendo tudo o que fazemos aqui não conseguiremos!

(A tia fica de cabeça abaixada, emburrada)

Tony – Tente nos entender...

(Ela vira-se de costas para os irmãos)

Antônio – Por favor...

Tia – (Perturbada) Cuidado que lá comem gente. O Tomé, seu tio, meu marido, foi e nunca mais voltou. Se encontrarem ele lá, “nas tripa do bicho” digam que eu estou esperando.

Sérgio – Ta certo... Tia – Mas as terras vocês venderam? Pobre do Adão... Será que esse dinheiro das terras vai pagar todas as dívidas?

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Tony – Que dívidas?

Tia – As do seu tio. Ele estava meio endividado pras bandas de São Paulo...

Sérgio – E o helicóptero que ele iria comprar?

Tia – História pra boi dormir! Estava na pindaíba, sem quase nada. Escondia um dinheirinho debaixo do colchão porque se deixasse no banco descobririam e tomariam.

Antônio – Então se alguém procurar pelo pagamento dessas dívidas diz que tem isso aqui (Tira um bolo de dinheiro) O dinheiro de todas as terras.

Tony – Antônio, todo o dinheiro?

Antônio – A gente precisa pagar isso, já pensou o que eles podem fazer com a tia se ela não pagar? Aqui, deixa esse dinheiro bem guardado...

Sérgio – (Tirando algumas notas) Vou pegar pelo menos quinhentos reais pra viagem...

Tony – Só isso?

Sérgio – Lá em São Paulo a gente ganha o dinheiro e manda pra cá.

Tony – É verdade, não tem mais com o que se preocupar. (Para Sérgio) O primo Tobias estava interessadíssimo na herança...

Antônio – Tia, se alguém quiser mais dinheiro, ou acertar contas diga pra ir até o Tobias que ele cuida de tudo. Mesmo sendo um filho rejeitado ele quis ajudar em tudo. Ele foi nos procurar interessado nisso! A herança! Eis ai o seu desejo.

Tia – Vão com Deus seus três, vou sentir saudades...

Tony – Sem choro tia. (Abraçando a tia) Dê lembranças a quem perguntar da gente.

Os três - Bença.

Tia – Espera. Antes de irem quero que me prometam uma coisa...

Antônio – O que é?

Tia – Que vão escrever uma carta falando como é o lugar, se não foram comidos por nenhum bicho... Vocês prometem? (Afirmam com a cabeça)

Tony - São Paulo, lá vamos nós!

Cena V – ilusões amorosas, Confusões juvenis?Os três - Após essa despedida passamos pelo rio que quando estava cheio íamos nadar. Hum... Melhor ainda era pescarSair com vara e linhaE chegar cheio de peixes e histórias pra contar

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(os três, cada um pra si mesmo) Lá na beira da lagoa eu namorava...

Sérgio - Levava as garotas mais bonitas da cidade para virem o próprio reflexo, o reflexo de uma flor.

Antônio – E você Tony? Alguma boa lembrança nesse rio?

Tony – Sim, o começo do meu namoro. E fim também... Na realidade, não era um “namoro” estava na moda beijar gostando ou não, amando ou não, ficando! Faz pouco tempo...

Sérgio – Com quem?

Tony - Com a mais quietinha da cidade.

Antônio – Quem?

Tony – A Sônia.

Sérgio - É mesmo?

Tony - Pois é.

(Ele senta na beira de um rio, em outro plano, ao lado de Sônia)

Antônio – (No outro plano) E nem pra contar pra gente...

Sônia (Para Tony) - Não. Se não me levar vou por conta própria e ponto final.

Tony - Mas como você é cabeça dura, mulher.

Sônia - Ainda me ofende!

Tony - Não posso sair por aí com tanta responsabilidade nas mãos. Além de mim, você?

Sônia – Você não me ama. (pausa)

Tony – Como?

Sônia – Amar, você me ama?

Tony – Olha, Sônia... Isso eu não sei. Mas sei que eu amo minha própria pessoa mais que tudo nesse mundo e que não vou ficar preso a ninguém pra viver minha juventude. (Tony sai cabisbaixo).

Sônia – Desaforado! (Se esconde).

Antônio – Ele já saiu! Pecado? Hei meu Pecado... Cadê você? (Sônia sai do meio do mato) Hora da despedida...

Sônia – Eu não quero que você vá.24

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Antônio – Mas amanhã já estou na estrada.

Sônia – Me leva junto?

Antônio – Não. Sônia – Por quê?

Antônio – Porque você não é mulher pra mim. Já pensou como seria o clima com o Tony só dele descobrir que nós dois estamos juntos?

Sônia – (Abraçando-o) E que eu gosto de você?

Antônio – Também gosto muito de você, mas preciso abrir mão desse amor.

Sônia – Você me ama?

Antônio – Não sei, e se amar agora não é hora de dizer; É melhor eu ir embora.

Sônia – Vem me buscar?

Antônio – Quem sabe um dia... (Antônio sai e deixa Sônia sozinha, sem que ela perceba)

Sônia – Você vai voltar? Antônio? Antônio? (Sérgio entra)

Sérgio – Ele já foi.

Sônia – Você ouviu nossa conversa?

Sérgio – Não. Cheguei agora, o que você disse pro Tony?

Sônia – Nada demais.

Sérgio – E pro Antônio?

Sônia – Nada demais também.

Sérgio – Falou sobre nós dois?

Sônia – Ainda não.

Sérgio – Por quê?

Sônia – Espero que você diga. Quando você me levar pra São Paulo eu...

Sérgio – Eu te levar pra São Paulo?

Sônia – É.

Sérgio – Não dá. Não tem como.25

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Sônia – Como não?

Sérgio – A gente vai andando, pedindo carona, com um pouquinho de dinheiro... Não dá!

Sônia – Você não me ama?

Sérgio – Pode parar por ai com essa chantagem.

Sônia – Não é chantagem não. (Alisa a face de Sérgio) E eu? (Sérgio a beija e vai embora) Sérgio? Sérgio? (Eles saem. Os três voltam a posição da cena anterior)

Tony – Eu não contei antes porque tinha meus motivos...

Antônio – (Para Tony) E eu tenho uma coisa pra te falar ...

Sérgio – E eu tenho uma coisa pra contar pra vocês dois.

Tony – Deixa eu falar uma outra coisa...

Antônio – Não, eu primeiro. Porque eu to angustiado pra falar.

Sérgio – E eu mais ainda!

Antônio – Eu e a Sônia, a gente...

Tony – Eu sei, sempre depois de mim você se encontrava com ela.

Sérgio – Você sabia?

Tony – E você Sérgio? Não vai falar?

Sérgio – Eu também me encontrava com ela. Mas como você sabe?

Antônio – Mas... O único que não sabe de nada sou eu?Vocês me fizeram de idiota e não contaram nada?

Tony – Não foi bem assim! Eu... (Sônia aparece, agora toda despenteada)

Sônia – A única pessoa enganada aqui fui eu!

Antônio – Sua...

Sônia – Idiota! Isso que eu sou. A gente gosta, conversa, mas parece que eu fui um objeto, fui usada!

Sérgio - Você usou os três!

Sônia – Fui usada e enganada pelos três!

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Sérgio - Louca!

Sônia – Vocês não entendem e nunca vão entender. Tem idéia do quanto é difícil se sentir alguém? Se sentir especial? Vocês três faziam com que eu me sentisse especial. As palavras, os agrados...

Antônio - Querendo os três?

Sônia - Os três são lindos!

Sérgio - Enganou a gente!

Sônia – (Desabafando) Vocês que se deixaram enganar. Eu falei pra você, Tony, que estava indecisa entre os três. Falei pra você Antônio, que o Tony tinha se declarado primeiro e também falei pra você Sérgio, que estava indecisas entre vocês três. Você disse que iria esperar a resposta...

Antônio – E o que sabia menos sobre tudo isso era eu.

Sônia - Não! Não senhor. A besta aqui foi quem ouviu poesias declamadas da boca pra fora, e se emocionava ao ouvir...

Tony – E não agimos de forma leal, um com o outro.

Sérgio – Não, na verdade agimos. A nossa escolha foi ir em frente. Pensamos um no outro. Nenhum quis...

Sônia – Conversa machista na minha frente não! Vocês são tudo farinha do mesmo saco! Iguaizinhos meu pai, iguais a qualquer homem daqui e do mundo. Eu estava cansada de ouvir conselhos da minha mãe, sobre como o homem tem o poder de fazer uma mulher de princesa em um dia e no outro fingir que não conhece...

Antônio – Não somos assim.

Sônia – Cara de pau! Isso é o que você e seus irmãos são.

Sérgio – Eu concordo com quase tudo o que ela disse. Sei principalmente como é difícil encontrar um amor de verdade, a mulher que eu amo de verdade não é você e eu sei disso. - Ela já é uma rainha... Pena que viva longe...

Sônia - Para de loucura Sérgio!

Sérgio – Te entendo. Você é linda, sei que é difícil encontrar um homem de verdade, mas nós tentamos ser diferentes. Não é qualquer um que quer casar logo, tem gente que quer ter várias mulher na vida... É o que eu queria com você.

Tony – E o Antônio... Tenho certeza do porque ele queria você. Pra se vingar.

Antônio – Me vingar de que?

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Tony – A minha primeira namorada era a mesma que você admirava, mas eu consegui me declarar primeiro...

Antônio – Tira essa idéia da cabeça.

Tony – Olha pra ela, diz que a ama. (Coloca Antônio frente a frente com Sônia) E olha pra mim e diz que não foi por causa disso.

Antônio – E se fosse? É! Foi sim, eu queria ver como você se sentiria...

Tony – Você é meu irmão!

Antônio – Isso mesmo, eu sou seu irmão e você sabia que eu gostava dela.

Tony – Mas éramos moleques, eu dei um beijinho... Coisa boba...

Antônio – Mesmo assim. Eu não te odeio, nunca quis odiar, mas queria que você passasse pelo que passei... Desculpa Tony, desculpa Sônia... (Antônio e Tony se abraçam)

Sônia – Não, não quero ver isso. Não era pra ser assim. Era pra gente brigar, eu xingar, me desesperar, comer com os porcos, ser chamada de abandonada por toda a cidade... Mas não! Eu tenho que ver os melhores homens do mundo agindo com o gesto mais difícil de todos os tempos: O PERDÃO! Seria mais fácil ser enganada... E você Tony, o que sente por mim?

Tony – Mas a decisão...

Sônia – A decisão já foi tomada. (O beija) O mundo merece os três. Três irmãos que nasceram com o destino traçado; Vou sentir saudades. Mas vou ter que me contentar em ficar sozinha ou conseguir outro homem...

Tony - Se quer um homem pra vida toda, não procure tanto, nem fique esperando demais. Mas têm que ser um melhor que os três juntos...

Sônia – Impossível.

Antônio – Possível. Quem será e como será só Deus sabe...

Sônia (Abraçando Tony) – Vai dar saudade.

Tony – Muita saudade.

Sônia – E se a saudade não agüentar voltem pra cá.

Antônio – (Vão saindo) O ossinho da saudade (pega no calcanhar) Vai estar protegido com todas as lembranças que são nosso cálcio, nosso sangue!

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Sônia (Acenando e gritando) Se encontrarem um homem melhor que os três juntos, lembrem-se, eu continuarei morando aqui! Mandem notícias! E diga que eu, Sônia filha do pastor estou me guardando! Façam uma boa propaganda!

(Os três irmãos se olham e riem com esse comentário)Cena VI – Os outros sentidos

Os três - Saímos da nossa casaE seguimos a estrada, que era longa Quanto mais andávamos, mais o Sol era quente e nos tomava a cabeçaPrecisamos pararPara rezar, Descansar, CantarAté que uma mulher cega nos parouCom o olho profundo e encantadorMulher de face profundaEla era magra, meio que corcundaCom olhar de pássaro, sobrevoando e procurando comida Cheia de jóias e brilhosos sapatosVestido longo, rendado

Cega – Vejo daqui seus rostos, olhem que aqui se paga aqui se têm.sinto seres desamparados e bem amados uma família formada por três.Sei que um dos três será meu igual e agora meu freguês.Olhem ali naquele horizonte...vocês devem atravessar aquele monte!Não encontrarão nem ouro nem diamantemas a busca da felicidade, que vai deixar de ser utopiaFica bem ali em certa cidadeDominada por capital e anjos da maldadeLevem com vocês toda a lealdadeE lá plantem uma sementeQue dará fruto á muita gente Três prodígios!

Os três - E ela sumiu. Sem deixar nome.

Tony - Saiu sem cobrar nada!

Sérgio e Antônio - Nada? Ninguém faz favor sem cobrar nada...

Os três - Ela voltou e cobrou!

Tony - Pagaremos a divida. (Tira o dinheiro e conta)

Cega - Espero que tenham sorte com as caronas... Está cada vez mais difícil... (Olhando o dinheiro) Não dêem tudo, apenas dez por cento e estarei satisfeita. (Sai)

Antônio – Não acredito que você deu dinheiro pra ela!

Tony – Foi pouco.29

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Sérgio – Mas pode fazer falta!

Antônio – Desde quando você acredita nessas coisas?

Tony – Não sei se acredito, mas a velha é cega!

Antônio – E daí?

Tony – Ela pode estar precisando.

Antônio – E pra gente? Quem vai dar? Também estamos precisando!

Sérgio – Não vamos discutir. Mas pelo amor de Deus, guarda esse dinheiro!

Os três - Passamos por várias terras Das vermelhar, brancas e pretas até chegarmos ao chão falso e cinzento,Atravessamos cerras.(Mulheres passam correndo com vestidos de noiva e gritando: - “Não, por favor, não vão embora! Por favor!”)E por pouco que nossa economia se acabouRestou uma dúvida:A de nosso destino.Uma cega não é garantia.Passou dia, noiteCantou galo, soou sinoVieram dias e diasPensamos que tínhamos cruzado o mundoPassado por onde Deus prendeu o Diabo

(Mulheres passam gritando: “Mais uma poesia Tony, só mais uma?”, “Quero seu autografo!”, “Tony, se apresenta de novo, por favor!”)

Os três - Cantigas cantadasE novos amigos

(Homens bêbados passam estendendo copos e gritando: “Amigo, não vai não! Toca mais uma companheiro, toca mais uma!”)

Os três - Mulheres apaixonadasObstáculos vencidos Chegamos em um lugar inimaginável

Tony - O mar...

Sérgio - Ô coisa bonita, cheio de cores que lhe dão vida...

Tony - Eu vou me jogar!

Antônio - É bom se benzer antes.30

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Sérgio - Toma cuidado pra não se afogar.

Tony – O bicho não para nunca!

Antônio – Assim como dizem nos livros... (Começa a escrever) Mesmo com todas as forças para mim ainda misteriosas alguns tentam enfrentar as ondas de varias formas, com barrigadas, de costas ou prendendo os pés ao chão e fechando os olhos. Não sei quantas ondas o desobediente pode enfrentar até chegar na parte calma do mar...

- Ato III – São Paulo!

A multidão os dividiu, cada um tentou...

Cena I – O dinheiro...

(Recepção de um hotel caindo aos pedaços, atrás do balcão vemos Ricardo, o dono do estabelecimento. Ricardo é asmático e em alguns momentos usa uma bombinha de ar. Encima do balcão um escrito “diária: 50 reais”. Os irmãos entram lentamente, estão

cansados)

Sérgio – Moço, quanto custa pra ficar aqui?

Ricardo (Se levantando e tampando a placa) Oitenta reais a diária.

Tony – Que frio!

Sérgio – (Para os irmãos) Temos quanto de dinheiro?

Antônio - Cem reais.

Tony – Minhas pernas... Eu mal consigo sentir!

Sérgio – Não podemos gastar tudo em um dia só... Amigo, você sabe onde encontro algum lugar mais barato pra ficar?

Ricardo – Não, esse é o hotel mais barato da região.

Tony – Não temos o dinheiro suficiente.

Ricardo – Estou precisando de gente pra trabalhar aqui nas obras do hotel... Se vocês quiserem trabalhar aqui...

Sérgio – Não. Nós trabalhamos em outra área. Eu sou músico, ele é escritor e ele ator.

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Ricardo – Nossa... Artistas no meu humilde hotel!

Tony – Viemos tentar trabalhar aqui nessa área...

Sérgio – Agora vamos que já é tarde.

Antônio – Obrigado.

Ricardo – De nada. Caso precisem daquele emprego procurem por mim, Ricardo.

Sérgio – Brigado. (Saem)

Cena II – Outro ponto de vista

(Rua. Ouve-se o som de um rádio, enquanto isso os irmãos formam um quadro, eles vão entristecendo cada vez mais - “Na região central, próximo ao terminal bandeira uma briga entre torcidas acabou em morte..” interferência, “Enquanto o trafego de drogas aumenta a cracolândia é um exemplo claro de descontrole quanto a isso. Jovens usam drogas durante o dia..”. O local é a mesma praça do prólogo, como se o público estivesse em uma praça assistindo o espetáculo, é importante que algum ator represente o público)

Antônio (lendo e corrigindo o que está escrito em uma carta): “Tia, Chegando em São Paulo era arranha céu pra todo ladoSempre via um atropelado ou morto de morte matada.As paredes todas pintadas, uma mais destacada que a outra.Os muros com versos de livros e nomes infinitos,Nomes de bandidos exibidos, Alguns malditos exploravam as leis da física.Um povo de passo longo e rápido. Andamos pela avenida Paulista, poucos andando no meio da rua, muitos dormindo nos cantos das calçadas. Negros e brancos, amarelos e vermelhos, de olho aberto ou fechado, todo mundo ocupado, sem ordem certa de importância. Os meninos magros querendo comida...Nos jornais todas essas coisas do diabo, guerra e mais guerra;Fotos de soldados entre crianças e mães com o poder de viver e ao mesmo tempo o medo de morrer. É ruim não ter dinheiro nesse mundo tia. Sempre um ataca “os pobre” e muitas vezes nenhum acode os desamparados.”

Sérgio - Rasga essa carta e faz outra.

Antônio - Por quê?

Sérgio - Faz uma outra e diz que estamos felizes.

Antônio - Mas vimos que aqui a coisa é diferente!

Tony - Mas vamos conseguir mudar, não vamos?

Sérgio – Espero. Escreve que nas horas vagas estamos fazendo shows, que estamos nos apresentando em ruas, com enormes públicos, mas não diga que não conseguimos nada... Ela não vai gostar nada.

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Tony – Verdade. Fala que as enchentes que falam tanto no jornal na verdade são maravilhosas, ajudam as pessoas a trocarem de moveis, que os móveis vão direto pros córregos. Que o transito acontece porque as pessoas precisam parar de dirigir por um tempo, param na estrada, ligam o rádio e ficam ali por muito tempo e...

Sérgio – Diga que andamos de helicóptero, que as casas são todas iguais as das novelas...

Antônio - Calma... Muito exagero, ela vai estranhar.

Sérgio – Então diga que aqui é indiferente de qualquer outro lugar!

Antônio – Tudo bem. Depois a gente escreve.

(Começa a chover, primeiramente com uma garoa fina, logo o público vai saindo)

Cena II – Os nascidos com conhecimento ensinam ao que procura...

(Enquanto Sérgio canta os irmãos dançam com destroços de um guarda chuva, o som de buzinas atrapalha sua melodia) Sérgio – xua, xua, xuachuva que caí, vira ribeira, vira oceano,águas naturais que alimentam peixe pequeno, piaba, todos os animais chuva que cai, evapora, vira nuvem e de novo que caixua, xua São as lágrimas de amor;que evaporam e viramas lágrimas de alegria;que evaporam e viram;lágrimas de dor.a fonte clara que nos ilumina...É a parte azul que a terra domina...(Como se o último do público tivesse saído)

Tony - Hei, volta!

Sérgio - Assim não dá! Chuva “arretada”!

Tony - Com essa chuva o público todo foi embora, tudo desinteressado.

Sérgio – Deu algum dinheiro no chapéu?

Antônio - Não conseguimos nada...

(Entra o vendedor. Quando começa a falar, fala o texto da mesma forma que vendedores de bala, tudo decorado e falado da mesma forma)

Vendedor - Com problemas financeiros, não é? Eu trago aqui a solução dos seus problemas! Empréstimos-veste você consegue tudo de uma forma mais fácil, simples e agradável.

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Antônio - Como funciona isso?

Vendedor - Empréstimos-veste é uma empresa que fornece o dinheiro necessário para que nossos clientes possam investir no que quiserem.

Tony - Que maravilha!

Vendedor - Desculpe a curiosidade, mas o que vocês desejam comprar?

Sérgio - Estávamos pensando em uma intervenção por praças, teríamos nossos momentos de música, poesia e teatro... Assim levantaríamos um dinheiro maior para...

Vendedor - Vocês precisam fazer um investimento. Os instrumentos! Eles precisam ser novos!

Sérgio – Mas como?

Vendedor - Comprem em prestações! Prestação é a melhor solução.

Antônio - Como que funciona?

Vendedor - Você pode comprar com várias parcelas, todo mês você paga uma pequena parte.

Sérgio - Não sei, tem alguma coisa estranha, é tudo fácil demais...

Vendedor - É uma grande oportunidade. Admirei o trabalho de vocês da forma que estava vendo, é algo cativante, admiro o trabalho artístico dos nordestinos! Um conselho que eu dou é que vocês arrumem um outro emprego, correrem atrás do investimento para o empréstimo e a compra dos instrumentos. Esse é o investimento necessário!

Sérgio – Não estamos interessados...

Tony – Mas deixa seu cartão com a gente, quem sabe mais pra frente...

Antônio – É, não custa nada.

Sérgio – Perdi o animo pra escrever a carta.

Tony – Deixa pra depois...

Cena – III – Tudo tem seu tempo

(O Hotel de Ricardo, ele está limpando o balcão, quando os três entram ele muda a placa novamente de cinqüenta reais para oitenta)

Sérgio – Olá.

Ricardo – Opa, sejam bem vindos. Então, vão se hospedar?

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Antônio – Não. Lembra daquela proposta de emprego?

Ricardo – Claro.

Antônio – Ainda está de pé?

Ricardo – Sim, com certeza.

Antônio – E o que teremos que fazer?

Ricardo – Trabalhar nas minhas obras aqui mesmo no hotel.

Tony – Mas qual é a proposta de salário?

Ricardo – Duzentos e cinqüenta reais por mês, pra cada um. Carteira não registrada, com direito a um quarto no hotel e almoço.

Antônio – (Cochichando para Sérgio e Tony) Duzentos reais é bastante coisa pra se ganhar em um mês!

Sérgio – (no mesmo tom) Ainda acho pouco, aqui a gente gasta bastante.

Ricardo – Então “artistas”? É pegar ou largar...

Os três – Acordo feito.

(Eles caminham)

Ricardo – Meu projeto ainda não está totalmente concluído, mas esse hotel que hoje é horrível será o mais procurado daqui a alguns anos. (Em algumas pausas ele usa uma bombinha de asmáticos) Por enquanto são simples quatro andares, mas o subsolo é o que fará a diferença! Vinte e oito andares abaixo desse chão! Sem contar o estacionamento! Será perfeito!

Tony – Mas quarto sem janela?

Ricardo – Podemos criar jardins lá pra baixo também, mas isso num futuro mais distante. O importante é que vocês participem disso querendo ver resultados, sem preguiça.

Sérgio – E o salário poderá ser aumentado?

Ricardo – Não posso garantir nada... Minha rede de hotéis não está em um momento instável. (Ele pega várias notas de dinheiro, balança sobre o rosto dos três como se fosse hipnotizá-los, os três observam isso e acham engraçado) Sun! Sun? Vem aqui!

(Sun, um homem com características orientais entra todo sujo de terra) Sun – Sim?

Ricardo – Novos funcionários! (Aos três) Esse é Sun, meu assistente.

(Bem disciplinado, Sun cumprimenta um por um)35

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Ricardo – Ele fala pouquíssimo de português, entende mais do que fala, ele vai apresentar o lugar pra vocês... Até mais.

Sun – Venham comigo.(Sun fala com dificuldade na pronúncia)

Sun – O andar de cima, quarto quatorze é o de vocês. Cuidado com a escada velha. Precisar de alguma coisa procurar por Sun, no quarto três, mas cuidado com horário porque eu não gosto que me incomodem quando durmo. Mais pessoas serão contratadas, mas enquanto isso teremos de dar conta de tudo. Aqui também trabalham minha mulher e minha filha, respeito é bom e eu gosto. (Os três concordam com o que foi dito) Descansem, pois amanhã o dia será longo. Oito horas em ponto! Ah, não é sempre que paramos pra descansar, algumas vezes faremos hora extra!

(Os três se olham)

Sérgio – É... Melhor irmos dormir.

(Eles saem cabisbaixos, ouve-se o som dos três subindo uma escadaria. Black-out. Som de goteiras, local escuro)

Os três (Cantando) - Sem lugar pra ficar, sem amigos, trabalhávamosPega a pá, puxa a terra, carrega o lixoDepressa trocandoDepressa armandoDepressa passandoPega a pá, puxa a terra, carrega o lixo

Tony – (Sempre tossindo) Sérgio, eu tenho uma surpresa pra você. Comprei um violão novo, só pra você.

Sérgio - Com que dinheiro?

Tony - Foi à prestação. Sem problema algum.

Antônio – Você foi precipitado Tony! Mal recebemos o primeiro...

Tony – Calma, não fica com ciúmes Antônio! Eu trouxe esse caderno pra você. E não é qualquer caderno tem folhas recicladas, dá uma olhada (Antônio recusa)

Antônio – Vai devolver. Depois eu compro.

Tony – Não faz essa desfeita...

Antônio – Ta bom. Brigado Tony, mas vê se não gasta tudo!

Sérgio – Eu comprei esse sapato aqui. (Mostra o sapato em seu pé)

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Tony – Eu já tinha percebido... Pensei que você não fosse falar nada. Então quer dizer que vocês saem pra gastar e não falam nada, vai cada um pra um canto, ninguém almoça...

Sérgio – Calma Tony! Ta agindo como se fosse nosso responsável. Olha... (Tira do bolso uma câmera fotográfica) Nem foi tão cara. Agora podemos tirar uma foto e mandar pra tia. O que acha? (Tira uma foto dele mesmo)

Antônio – Meu Deus do Céu... E lá se vai o dinheiro do primeiro mês de trabalho de vocês! Que merda viu...

Sérgio – Vem, vamos tirar uma foto?

Antônio – Não quero. (Ele volta a cavar)

Sérgio – Vem Tony, tira uma foto comigo...

(Tony vai, ele tira a foto, logo acontece um desmoronamento, black-out)

Voz de Tony (Desesperado) Meu Deus!

Voz de Antônio - Ai, ai... Socorro!

Voz de Sérgio – Antônio? Antônio?

Cena – IV – Não estava nada previsto

(Hospital. Tony está no centro ouvindo a voz da velha cega)Voz da Cega – Então, rapaz... Parece que as coisas mudaram muito com você...

Antônio – Quem é você?

Voz da Cega – É... Bem vindo ao meu universo...

(Voz de Sérgio) Só pode ser um engano doutor. É um engano!

Antônio – Socorro!

Voz da Cega – Você consegue me ouvir?

(Agora vemos o quarto inteiro e o médico)

Médico – Responda Antônio, consegue me ouvir?

Antônio – Quem é você?

Médico – Sou um médico. Precisamos conversar você se acidentou durante a...

Antônio – Por favor, não precisa falar nada. Só me responde: Tem alguma chance de cura?

Médico – Não.37

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(Black-out. Antônio está sentado em um sofá, é um dos quartos do hotel onde os três trabalham. Vemos um violão, sapatos,e sobre uma mesinha um cofrinho de dinheiro e duas carteiras. No chão, na frente de Antônio um caderno e uma caneta)

Voz de Sérgio – Não podemos demonstrar desanimo, ouviu? Tudo vai dar certo mesmo, Tony. Você vai ver! Amanhã cedo você vai pagar essas dívidas ai que você fez e eu pago os remédios. Vamos, estamos atrasados.

Sérgio (Entra se arrumando e pega uma das carteiras que é sua) – Antônio, estamos indo trabalhar. O seu remédio está na mesinha. Tony, vai logo! Estamos atrasados.

(Tony sai correndo, dá um abraço em Antônio)

Tony – Sei que essa semana está sendo difícil... Vamos dar um jeito de contratar alguém pra ficar com você.

Sérgio – Vamos Tony!

(Tony sai correndo. Antônio tateia o chão, acha o caderno e tenta escrever. Lentamente Ricardo vai abrindo a porta, com o máximo de cautela, joga os sapatos e a câmera fotográfica dentro de um saco que carrega e pega o violão. Ricardo vai saindo e usa sua bombinha, vê a carteira e pega, quando vai colocar o cofre dentro do saco faz um grande barulho com o balançar das moedas, Antônio se assusta)

Antônio – Sérgio? É você? Tony? Quem é? (Ricardo sai correndo e bate a porta. Assustado, Antônio fica de pé e desesperado começa a tatear todos os cantos da casa, desesperado derruba alguns móveis. Sérgio e Tony entram tentando controlar Antônio, ele se acalma, os irmãos olham em volta e compreendem o que aconteceu, Tony sai correndo para ver se encontra os objetos).

Sérgio – Calma, Antônio! Calma!

(Ricardo entra)

Ricardo – Mas o que foi que... Meus móveis! O que aconteceu aqui?

Antônio - Alguém entrou aqui e pegou tudo.

Ricardo – Um ladrão? E isso era motivo pra vocês derrubarem os meus móveis?

Sérgio – Você não viu nada seu Ricardo?

Ricardo – Não. Infelizmente não. Ano passado tivemos uma onda de assaltos aqui na região. Eles assaltaram pulando as janelas, o hotel só tem dois andares e...

Antônio – Mas foi pela porta.

Ricardo – Pela porta eu asseguro que não. Fiquei lá embaixo na recepção o tempo todo.

(Tony volta)38

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Tony – Ninguém viu nada.

Ricardo – As coisas são assim, vocês tem que tomar cuidado...

Tony – Vamos chamar a polícia!

Ricardo – Opa, não quero ninguém pensando que teve confusão aqui no meu hotel! Nada de polícia.

Sérgio – Eles precisam vir e investigar. Podem roubar dos seus clientes assim como roubaram da gente!

Ricardo – Não vai acontecer de novo. Sabe por quê? Por que os meus clientes vão tomar mais cuidado com as coisas deles.

Tony – Será que ele sabia que o Antônio era cego e estava aqui?

Sérgio – Antônio, você não ouviu nada?

Antônio – EU ouvi o som da porta, pensei estar ouvindo besteira e continuei escrevendo, depois ouvi um barulho estranho e as moedas caindo, ai perguntei quem era, quando perguntei a pessoa fechou a porta e... E eu não pude fazer nada, nada.

Sérgio – Eu vou descer pra chamar a polícia. (Quando vai saindo pela porta Ricardo corta)

Ricardo – Se você chamar os únicos ladrões que serão presos serão vocês! Se chamarem a polícia eu vou querer todos os meus móveis pagos ou vocês vão presos!

Tony – Como assim?

Ricardo – E esse tempo sem trabalhar vai ser descontado! (Novamente ele tira várias notas de dinheiro do bolso, Sérgio e Tony parecem se hipnotizar)

Sérgio – Isso é um absurdo!

Ricardo – Meu falecido pai sempre dizia “Tempo é dinheiro”, nunca ouviram isso? Bando de vagabundos, vocês merecer isso. Se vocês tinham o mau costume de deixar tudo aberto na casa de vocês aqui é diferente e eu não quero confusão aqui! Odeio gente besta. Agora licença... (Sai usando a bombinha)

Antônio – Esse barulho, que barulho foi esse?

Tony – Calma. Foi só aquele animal usando a bombinha dele...

Antônio – Esse som! Eu ouvi esse som!

Sérgio – Antônio, chega.

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Antônio – Sérgio, eu não enxergo, entendeu? Mas ouvir, eu escuto bem. E eu sei muito bem que esse foi o som que o ladrão fez.

Sérgio – Eu vou ver...

Tony – Quer que eu vá com você?

Antônio – Cuidado Sérgio.

Sérgio – Não precisa ir. Daqui a pouco eu volto. (Sai)

Cena V – Mais um assassinado(Céu, luz Azul. Sérgio caminha, Rosália e Antônio entram e vão até ele, o Abraçam. Os dois estão rejuvenescidos )

Rosália – Sérgio!

Zé – Meu filho... O que você fez? O que aconteceu com você? Sérgio - O sujeito só podia ser louco, mãe, louco. Parecia alguém sensato, mas não.

Zé – E seus irmãos?

Sérgio – Não sei...

Rosália – Conta direito essa história, menino.

(Ricardo pega Sérgio pelo pescoço e aponto uma arma para sua barriga)Ricardo – Vocês devem parar de atrapalhar o crescimento de nossa cidade!

Sérgio – E qual o motivo de tanto nojo? O que a gente fez?

Ricardo – (Enquanto fala vai enforcando Sérgio) A “porquice” está nas ruas. Vocês saem do lugar de onde nasceram e não tentam muda-lo, correm pra cá, vocês nordestinos, os japoneses, os coreanos... E nós temos que abraça-los? Acolhe-los? EU sou obrigado a assistir filmes, peças e um monte de outras baboseiras falando sobre a vidinha miserável de vocês? Tenho que assistir T.v e ver como o presidente perdeu o dedo e se aposentou, saindo do nordeste pra trabalhar aqui? Vocês não foram embora por quê? Tem que morrer mesmo! Maioria dos camelos, dos analfabetos, dos favelados, é nordestina... Eu quero ver aquele sugar explodir!

Sérgio – Eu não vim roubar nada de ninguém, nem comida, nem bebida...

Rogério - Precisamos de histórias boas, nossa cidade não precisa de gente pedindo esmola na rua e dizendo que é arte, precisamos é de trabalho! Trabalho! (Black-out)

(Ouve-se um tiro. Quarto do hotel)

Antônio – Sérgio!

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Tony – Meu Deus! Sai de perto da porta Antônio. (Ele sai, logo volta e coloca alguns objetos na frente da porta ouve-se uma pessoa batendo na porta, vai até a janela e começa a gritar) Alguém, alguém pelo amor de Deus chama a polícia!

(Ricardo exclama para que abram a porta)

Antônio – O que aconteceu com o Sérgio?

Tony – Ele levou um tiro, Antônio. Foi o Ricardo que roubou as nossas coisas... (Para fora) Socorro!

(Céu, Sérgio está contando o que aconteceu com ele, Rosália e Zé escutam atentamente)

Sérgio – Ai eu fui até o quarto dele pra ver se as coisas estavam lá, ele fazia muito barulho, estava mexendo em alguma coisa, eu arrombei a porta e entrei, vi meu violão, minha câmera, todas as nossas coisas que foram roubadas estavam lá, junto com muitos outros objetos. Ele tinha coleções de canetas, cds, livros, celulares e armas. Apontou uma arma pra mim, parecia um bicho... Ele não estava arrependido de nada, começou a gritar...

Ricardo – (Apontando uma arma para Sérgio) Idiota! Porque você não ficou na sua? Hein? Pra que essa insistência? Eu precisa de dinheiro pô! Pra se ter uma mulher hoje em dia eu preciso de um carro, eu tenho que pagar o imposto de tudo isso aqui..Olha... Minha casa, meu quarto... Não são lindos? Agora a policia vai vir e tirar tudo de mim? Depois de tanto esforço? Tanta “mutreta”? Agora eu tenho que matar os três... Bosta...

Sérgio – A minha vida você não pode pegar pra você. Pode tirar, mas não é sua. Não é! Tudo que eu tenho feito tem me dado orgulho, nada foi sobre as costas dos outros...

Ricardo – Cala a boca!

Sérgio – O Sun... Você inveja a família que ele tem, não? Quando eu olhei pra você eu pensei que você se tratasse como alguém...

Ricardo – Você que não é ninguém...

Sérgio – Meu irmão ficou cego e você não fez nada, nada!

Ricardo – Muita gente já morreu nessas obras, ou você pensa que ele foi o primeiro? Por acaso conheceu a família do Sun?

Sérgio – Porco maldito. Tudo o que a gente queria era juntar um dinheiro pra comprar as nossas coisas, você vai lá e rouba? EU não te entendo!

Ricardo – EU é que não entendo porque existem pessoas como você. Não sei qual o sentido da sua existência se não for trabalhar pra poder encher minha barriga... Merecia morrer trabalhando aqui!

Sérgio - Ele não queria conversar mais, não deu pra ajudar os dois.

Zé – Calma... Se tivesse acontecido alguma coisa com eles os dois estariam aqui. Calma... Tudo deu certo...

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Cena VI – Os que ficaram(Cemitério. Antônio e Tony estão sobre a cova de Sérgio)

Tony - Eu fico pensando o que seria da gente se ninguém ligasse pra policia... E se ninguém ligasse?

Antônio – Mas ligaram.

Tony - As pessoas podiam pensar que era alguma mentira...

Antônio – Mas não pensaram Tony. Graças a Deus existem exceções nesse mundo. Se a polícia demorasse mais um pouco ai sim eu não sei o que seria da gente.

Tony – Nunca vi alguém tão louco como aquele cara. Já vi homem corno jurando se vingar da esposa, homem dizendo já ter visto disco voador, mula sem cabeça, um monte de outras coisas... A morte do Sérgio foi tão besta! Tão sem motivo!

Antônio – E o que vamos escrever pra tia?

Tony – Ela não vai poder receber essa notícia de qualquer forma... (Tira uma fotografia do bolso)

Antônio – O que você ta vendo?

Tony – A foto que eu tirei com o Sérgio... O que vamos escrever pra tia?

Antônio – Sabe Tony... Acho que eu não quero mais ficar aqui.

Tony – Como assim?

Antônio – Eu não consigo me concentrar nesse lugar, não dá pra ter a paz que eu tinha lá. Ouvindo tudo que era sábia. Eu quero voltar pra lá. Ai eu posso escrever bastante, sobre os lugares, as histórias que ouvimos e até mesmo a nossa.

Tony – Toma, leva essa foto.

Antônio – Você concorda?

Tony – Quem sou eu pra te impedir de fazer alguma coisa?

Antônio – Mas e você?

Tony – Vou tentar me cuidar.

Antônio – Pega uma parte desse dinheiro...

Tony – Da onde você tirou esse dinheiro?

Antônio – O Sérgio. O lugar onde ele caiu era um tablado falso. O Ricardo escondia esse dinheiro lá.

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Tony – Já comprou sua passagem?

Antônio – Pra amanhã.

Tony – Então porque perguntou se eu concordava?

Antônio – Pra você se sentir importante (Os dois se alegram)

Tony – O que você vai contar pra tia?

Antônio – Que o Tony fez uma longa viagem...

Tony – Mesmo sabendo que ele não vai aparecer nunca mais?

Antônio – Como ele está na foto?

Tony – Feliz.

Antônio – E vou falar que você irá fazer uma turnê com seu espetáculo lá pra nossas bandas...

Tony – Quem me dera atuar novamente...

Antônio – E ter alguém assistindo você?

Tony – É...

Antônio – Olha lá! (Aponta para o público, enquanto Tony caminha para a beira do palco Antônio, Tia menininha, Rosália, Zé e Sérgio vão se aproximando, Adão entra, Sérgio se assusta. Adão lhe dá um abraço, juntos eles se aproximam do público)

Tony - Pois agora querido público...

(Cantam)

Um início e um meio foram dadosAgora é pra mudarAgora é só você pra saber se vai valer a pena o fimÉ pra fazer valerNossa história fielmente foi contadaAgora é pra mudarAgora é só contar pro seu herdeiroÉ pra fazer valerPra que esses fatos façam parte do passadoAgora é pra mudarÉ pra fazer valer

Todos - Novas escolhas...

Tony - Dinheiro... 43

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Todos - Chuva...

Tony - Dinheiro...

Todos - Carros...

Tony – (Insatisfeito) Fazer o que eu quero não tem valor! Mas mesmo assim eu preciso de dinheiro...

Fim

Gustavo Guimarães Gonçalves

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