trecho do livro "o sal é um dom"

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Page 1: Trecho do livro "O sal é um dom"
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O sal é um dom vem em segunda edição. As alegrias que tive quando da primeira sei que não virão inteiras porque nos temperos, nas medi-das, nas misturas muita coisa foi tirada. Junta-se agora a cada panela, a cada prato um pouco de saudade sem amargar nenhuma receita. É sau-dade com sabor adocicado por conta da certeza de que tudo continua como era o desejo de meu pai e de minha mãe: reunidos em volta da mesa os “meninos” de cabelos brancos levando adiante o saber e o sabor aprendidos com as lições de bem-querer passadas com o velho carinho.

Mabel Velloso

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O S O N H A D O D O M

Mabel,Seu livro, lindo como tudo que você faz, escreve, sonha, oferece, é

para mim como o beijo do meu pai em minha mãe na foto de Maria: gostoso, amoroso, suave, sal e açúcar no ponto.

Suas memórias, como as minhas, são como noite de São João: tudo aceso e quente, estrelas no chão, devaneios no ar, coração na mão, delícias sobre a nossa mesa, a gratidão a Deus, o amor frater-no, a saúde no prazer.

Fomos, somos abençoados, nós, filhos de mãe Canô e pai Zeca, acolhidos nessa mesa, nesse beijo, nesses sabores. Nossa Senho-ra da Purificação abençoando a alegria no sereno de junho ou no quentinho fevereiro do Recôncavo baiano. Todo dia boa comida! Aprendemos aí, todos os gostos, paladares, prazeres para toda vida.

Deus nos guarde! Sua bênção,

Maria Bethânia

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D O N A C A N Ô E A C O Z I N H A D O R E C Ô N C AV O

O saboroso livro de Mabel Velloso – e não vai aqui nenhum fácil jogo de palavras – não nos dá apenas uma “crônica culinária”, nos-tálgica, de uma família estruturada nos padrões brasileiros do Re-côncavo baiano; a memória da autora flui – docemente orientada para o campo da comida, que, desde menina, iniciando-se no conhe-cimento das coisas fundamentais, ela descobria, apreciava e, de certa forma, mitificava. Mito que se tornaria códice e padrão de qualida-de. Pois que ali está tudo. O amoroso lembrar da louvação e o didá-tico ensinar o sabido.

Nessas receitas de mãe Canô, encontramos uma das vertentes da tradição culinária da Bahia. E digo da Bahia e não “baiana”, pois ali estão “as estranhas misturas de azeites e pimentas” – de que fa-lava o poeta Manuel Bandeira –, cristalizadas num fazer secular, a comida do cotidiano do Recôncavo baiano, marcada pela tradição do índio, do português e do africano.

As receitas, com tanto carinho recolhidas por Mabel Velloso – do ouvir e ver fazer de sua mãe –, são, assim, a comida do Recôn-cavo baiano, e nela se encontra a síntese de uma pluralidade viva, dinâmica, que se modifica e se conserva, inventando com um toque pessoal um saber antigo. E tudo isso nos chega neste primoroso ca-derno de receitas organizado com sabedoria e amor.

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Aqui estão as sopas e os ensopados; as frigideiras e os bifes; as moquecas, o sarapatel e a maniçoba. E, ainda, a numerosa doça-ria recriada nos bolos e nas cocadas. Um ligeiro exame nos nomes desse variado “de comer” personalizado, cada um com a marca do ingrediente básico ou um apelido afetivo da intimidade familiar – arroz branco, arroz com sururu, arroz de viúva; bolo comum; bolo 1, 2, 3, 4; bolo bossa nova; bolo de minha Dinha; beijo de Olga; fa-rofa de ovo, farofa de sabiá, farofa de azeite de dendê... Cada uma dessas apelações evocando a tradição e provando a modernidade.

O livro de Mabel é uma nova e preciosa colaboração ao estudo que se vem realizando ultimamente no campo da cozinha brasilei-ra: a codificação escrita de um saber que vem da oralidade e do fa-zer. Cozinha que envolve a tradição da dieta portuguesa, ela mesma formada de numerosos “estilos” regionais; da cozinha indígena bra-sileira, presente em tantos elementos da comida popular; e da co-zinha africana, grandemente ritualizada e simbólica. Trata-se de identificar, nas diversas culinárias regionais, as origens e as mudan-ças por que elas têm passado. Muitos livros estão sendo publicados nessa linha – cadernos antigos de receitas, guardados com zelo e mistério –, e outros, como o de Mabel, construídos com a lembran-ça e a vivência. Lembro, nesse caso e, também, aqui, na Bahia, o li-vro de outra senhora, Receitas de vovó Thidu, de dona Theodolina Sá de Oliveira, viúva do professor Climério de Oliveira, matriarca sá-bia e de família extensa. Ela, perto de completar 100 anos de idade, escreveu as receitas que sabia e executava num livro dedicado aos netos e aos bisnetos. A edição, limitada e fora de catálogo, traz pre-fácio carinhoso, assinado por “um deles”, no anonimato intencional.

Esses dois livros – separados por quase cinquenta anos – defi-nem todo um modo de cozinha que, sendo regional, não é fechada numa tradição estanque. A modernidade os acrescenta de formas novas de um saber antigo – e ambos foram escritos com amor e ver-dade. É uma cozinha que podemos bem chamar de clássica, no sen-tido que essa palavra reflete o que é consagrado, indiscutível – mas, ainda assim, aberta à mudança –, no corpo de uma cultura.

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Mabel também evoca a família no cerimonial cotidiano das refei-ções, que aconteciam sob a carinhosa e severa vigilância do patriar-ca Zeca Velloso. Suas observações são pura etnografia para aqueles que procuram encontrar “método” no verdadeiro, no natural.

Mas aí está o retrato de uma família cristalizada nos padrões de seu tempo, cada um dos seus membros no seu viver cotidiano, mas reunidos, quando a força do tempo o consente, na comunhão do bem comer.

E o sal? Repito a pergunta ansiosa de Bob, um dos filhos de dona Canô, que dá o título a este livro precioso. O sal é um “dom” (nunca de mais, nunca de menos); é o dom da boa “mão”, nas inefá-veis medidas propostas pela experiência, pois que o homem sempre comeu com o sal, até nas metáforas mais sagradas das religiões an-tigas. E mesmo quando, nos candomblés jejes-nagôs da Bahia, da velha cidade da Bahia, ou às margens do Subaé, os santos comem o que os homens comem, e comer “sem sal” é privilégio de uma fa-lange soberana, chefiada por Oxalá, que evita o sal por força de re-conhecer o seu poder. Os santos de “roupa branca” não comem sal, mas conhecem bem o seu valor. “O sal é um dom”, dizia com sabe-doria dona Canô. O “tempero divino”, como o chamavam os antigos gregos, tem que ser um “dom”. Na medida certa. O sal é um dom.

Gostaria de concluir estas palavras plenas de carinho e compreen-são com uma pergunta enigmática de meu avô Quinquim Rosa, pai de minha mãe e, também, de Santo Amaro, como dona Canô. Ele surpreendia as pessoas com suas perguntas misteriosas, a que ele mesmo respondia: “Desde quando quando? Quanto mais, quanto mais.”

O livro de Mabel Velloso sobre e com as comidas de sua mãe, como um livro da beira do Subaé, tem verdade e mistério.

Vivaldo da Costa Lima

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