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Serviço de Ortopedia e Traumatologia • São Paulo • Brasil Técnicas em Ortopedia. 2019;19(2):8-11 8 1. Médico Assistente Grupo de Trauma do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil 2. Médico Residente do Grupo de Trauma do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil 3. Médica do Serviço de Infectologia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil 4. Fisioterapeuta do Serviço de Fisioterapia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil Autor Responsável: Lourenço Galizia Heitzmann / E-mail: [email protected] RESUMO As fraturas da extremidade proximal do fêmur têm se tornado uma preocupação global de saúde pública com o aumento da expectativa de vida e a elevada morbidade e mortalidade. Normalmente, esses pacientes apresentam múltiplas comorbidades, que dificultam o tratamento cirúrgico imediato. Nós reportamos um caso em que o paciente foi submetido ao tratamento cirúrgico após 55 dias da fratura devido a complicações clínicas. Palavras-chave: fixação intramedular de fraturas; fraturas do quadril/ complicações; mortalidade. SUMMARY Fractures of the proximal femur are a world public health concern with higher life expectancy, and high mortality and morbidity. These patients have often multiple co morbidities, that make immediate surgical treatment more difficult. We report a case of surgical treatment after 55 days of fracture due to clinical complications. Keywords: fracture fixation, internal; hip fractures/complications; mortality. Tratamento cirúrgico de consolidação viciosa da extremidade proximal do fêmur Lourenço Galizia Heitzmann 1 , Leonardo Aguiar Cavalcante 2 , Juliano Valente Lestinge 1 , Ayres Fernando Rodrigues 1 , Eduardo Angoti Magri 1 , Adriana Macedo Dell’ Aquila 3 , Paloma Yan Lam Wun 4 INTRODUÇÃO As fraturas da extremidade proximal do fêmur têm se tornado uma preocupação global de saúde pública com o aumento da ex- pectativa de vida da população mundial. Um estudo realizado nos Estados Unidos em que mais de 90% dos pacientes admitidos na emergência e diagnosticados com fratura da extremidade proximal do fêmur tem idade superior a 60 anos 1 . Estima-se um aumento do total de fraturas do fêmur proximal de 1.26 milhões em 1990 para 4.5 milhões em 2050 2 . As fraturas transtrocanterianas corres- pondem a mais de 50% do total de fraturas que envolvem a região proximal do fêmur. Fraturas do terço proximal do fêmur estão associadas com ele- vada morbidade, mortalidade, perda da independência pessoal e altos custos 3 . Foi estimado que o custo médio do tratamento cirúr- gico de fraturas do fêmur proximal em um hospital público brasi- leiro foi de R$5.132,31 (U$2,284.88), podendo atingir valores de até R$24.000,00 (U$11,729.06), quando a análise dos custo foi realizada exclusivamente em cirurgias realizadas via operadoras de saúde 4,5 . Tipicamente ocorrem em pacientes com múltiplas comorbidades e frequentemente resultam em perda da independência funcional dos pacientes, sendo mais frequente em mulheres jovens, com

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1. Médico Assistente Grupo de Trauma do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil2. Médico Residente do Grupo de Trauma do Serviço de Ortopedia e Traumatologia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil 3. Médica do Serviço de Infectologia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil4. Fisioterapeuta do Serviço de Fisioterapia do HSPE, São Paulo, SP, Brasil

Autor Responsável: Lourenço Galizia Heitzmann / E-mail: [email protected]

RESUMOAs fraturas da extremidade proximal do fêmur têm se tornado uma preocupação global de saúde pública com o aumento da expectativa de vida e a elevada morbidade e mortalidade. Normalmente, esses pacientes apresentam múltiplas comorbidades, que dificultam o tratamento cirúrgico imediato. Nós reportamos um caso em que o paciente foi submetido ao tratamento cirúrgico após 55 dias da fratura devido a complicações clínicas.

Palavras-chave: fixação intramedular de fraturas; fraturas do quadril/ complicações; mortalidade.

SUMMARYFractures of the proximal femur are a world public health concern with higher life expectancy, and high mortality and morbidity. These patients have often multiple co morbidities, that make immediate surgical treatment more difficult. We report a case of surgical treatment after 55 days of fracture due to clinical complications.

Keywords: fracture fixation, internal; hip fractures/complications; mortality.

Tratamento cirúrgico de consolidação viciosa da

extremidade proximal do fêmurLourenço Galizia Heitzmann1, Leonardo Aguiar Cavalcante2, Juliano Valente Lestinge1, Ayres Fernando Rodrigues1,

Eduardo Angoti Magri1, Adriana Macedo Dell’ Aquila3, Paloma Yan Lam Wun4

INTRODUÇÃOAs fraturas da extremidade proximal do fêmur têm se tornado

uma preocupação global de saúde pública com o aumento da ex-pectativa de vida da população mundial. Um estudo realizado nos Estados Unidos em que mais de 90% dos pacientes admitidos na emergência e diagnosticados com fratura da extremidade proximal do fêmur tem idade superior a 60 anos1. Estima-se um aumento do total de fraturas do fêmur proximal de 1.26 milhões em 1990 para 4.5 milhões em 20502. As fraturas transtrocanterianas corres-pondem a mais de 50% do total de fraturas que envolvem a região proximal do fêmur.

Fraturas do terço proximal do fêmur estão associadas com ele-vada morbidade, mortalidade, perda da independência pessoal e altos custos3. Foi estimado que o custo médio do tratamento cirúr-gico de fraturas do fêmur proximal em um hospital público brasi-leiro foi de R$5.132,31 (U$2,284.88), podendo atingir valores de até R$24.000,00 (U$11,729.06), quando a análise dos custo foi realizada exclusivamente em cirurgias realizadas via operadoras de saúde4,5.

Tipicamente ocorrem em pacientes com múltiplas comorbidades e frequentemente resultam em perda da independência funcional dos pacientes, sendo mais frequente em mulheres jovens, com

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osteoporose associada. O mecanismo de trauma geralmente é queda de baixa energia, sendo 90% resultado de queda ao solo6.

A escolha do implante para tratamento de fraturas transtrocan-terianas é baseado no padrão de estabilidade da fratura.

Fraturas estáveis geralmente são fixadas com parafuso desli-zante. É considerada estável a fratura transtrocanteriana cuja cor-tical do calcar posteromedial encontra-se intacta ou reduzida, per-mitindo melhor redistribuição de forças através do fêmur proximal.

Fraturas transtrocanterianas instáveis incluem os padrões com calcar medial cominuado ou com grande fragmento; fraturas com extensão subtrocanteriana e fraturas obliquas. Dispositivos intrame-dulares são método de escolha para fixação deste tipo de fratura7.

A taxa de consolidação óssea no tratamento cirúrgico das fratu-ras transtrocanterianas é satisfatório. A incidência de pseudoartrose em fraturas transtrocanterianas é de apenas cerca de 1-2%8,9, em virtude da boa vascularização e de boa quantidade de osso trabeculado presentes na região transtrocanteriana10. As forças deformantes atuantes contribuem para o estresse na fratura e não consolidação da mesma. O iliopsoas descola o trocanter menor e cortical posteromedial proximamente e anteriomedial, enquan-to os adutores são resposáveis por aduzir o fragmento distal e variar o ângulo cervicodiafisário do fêmur fraturado11. Redução inadequada da fratura ou escolha inapropriada do implante são as principais causas de complicações, como perda da posição do implante, consolidação viciosa ou pseudoartrose. Podemos citar também atraso no tratamento, padrões desfavoráveis de fratura ou baixa qualidade óssea como outros fatores relacionados12.

RELATO DO CASOPaciente masculino de 91 anos, vítima de queda ao nível do

solo e no dia foi diagnosticado com fratura transtrocanteriana do fêmur esquerdo. Comorbidades e antecedentes pessoais incluíam hiper tensão arterial arterial e história de 5 cateterismos devido infarto agudo do miocárdio, com 2 paradas cardiorespiratórias du-rante um dos procedimentos, realizado há 20 anos atrás.

Inicialmente foi atendido em outro serviço, sendo optado por tratamento conservador da fratura devido condição clínica desfa-vorável do paciente para procedimento cirúrgico. Após 45 dias do trauma, o paciente persistia com dor em região de quadril esquerdo, quando foi transferido para o HSPE (Figura 1). No exame físico de admissão, apresentava rotação externa e encurtamento do membro ipsilateral à inspeção.

Exames de imagem evidenciavam início de formação de calo ósseo, com desvio rotacional e encurtamento dos fragmentos (Fi-gura 2). Diante do exame físico e exames e após compensação clínica do paciente, 55 dias após a data do trauma, foi submetido a tratamento cirúrgico.

Figura 1. Imagem radiográfica de entrada no HSPE (45 dias pós fratura)

Figura 2. Imagem tomográfica de corte coronal demonstrando sinais de consolidação parcial

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TÉCNICA CIRÚRGICAPaciente em decúbito dorsal horizontal sob raquianestesia e em

mesa de tração foi tentado a redução incruenta, mas sem sucesso. Optado por um acesso lateral extendido sobre a face lateral do fê-mur proximal, dissecado um plano profundo entre o glúteo médio e o vasto lateral para acesso a região anterior da cápsula articular e ao foco de fratura. Com auxílio de um osteótomo foi realizada calo-clasia e com a tração e pinças conseguido a redução. A fixação pro-visória foi feita com fios de Kirchner e estabilização definitiva com “Dynamic Hip Screw” (DHS) sob controle radioscópico (Figura 3).

Figura 3. Imagem radiográfica do pós-operatório imediato

DISCUSSÃOA osteotomia de valgização do fêmur proximal com fixação

inter na tem sido preconizada para tratar consolidações viciosas e pseu doartroses, apesar da dificuldade da técnica cirúrgica e perda de sangue elevada no período intra-operatório. Por isso evolui com taxas mais elevadas de morbidade e mortalidade13,14. Em pacientes idosos com baixo estoque ósseo ou osteoartrose associada, artro-plastia total de quadril se torna uma opção possível.

O diagnóstico de pseudoartrose primária da fratura transtro-canteriana é feito quando há persistência do traço de fratura, após 15 semanas do trauma, podendo haver calo ósseo (hipertrofica) ou sem calo ósseo (atrófica). Pseudoartrose deve ser suspeitada em pacientes que persistem com dor na virilha ou coxa ao deam-bular, sentar ou durante mudanças de decúbito, após excluídas outras causas. Na radiografia, poderá ser observado halo peri-im-plante assim como, um calo ósseo reduzido ou ausente15. Conso-lidação viciosa é definida quando tais achados não acompanham mobilidade do foco de fratura. Tomografia computadorizada é um exame complementar indicado com intuito de caracterizar melhor a falha óssea e ausência de calo ósseo. No atraso de consolidação pode haver tais achados , porém sem mobilidade ao manuseio da fratura. Infecção indolente é uma das causas de pseudoartrose e deve ser uma causa a ser excluída, sendo Hemograma, PCR e VHS indicados. Consolidações viciosas de fémur resultam em aumento do custo de tratamento e consequências mentais e físicas, cau-sando debilidade importante aos pacientes16.

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