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TRANSFORME CIÊNCIA EM NEGÓCIOS

o corpo humano de um adulto contém, em média,cerca de 40 litros de água que sustentam seusprocessos metabólicos. Vítimas de queimaduraspodem perder aproximadamente 37 litros deágua por dia devido aos danos causados à pele.O tratamento tradicional de queimados envolvecirurgia dolorosa e, muitas vezes, uma série deintervenções subsequentes. Depois de testemunharum procedimento num agricultor gravementequeimado, Lynn Allen-Hoffmann resolveu encontraruma forma de ajudar esses pacientes. Ela embarcounuma década de pesquisas e realizou mais de milexperimentos. Em 1999 patenteou um substitutopara a pele derivado de linhagensde células de tecidos normais.

Allen -Hoffmann atualmente é CEO e diretora exe-cutiva científica da Stratatech, uma empresa que de-senvolve pele para fins terapêuticos e de pesquisa.A empresa detém mais de 20 patentes pelo mundotodo e, em julho de 2013, recebeu um contrato deUS$ 47 milhões do Departamento de Saúde e Ser-viços Humanos dos Estados Unidos para completaro processo de aprovação, junto à Administração deMedicamento e Alimentos (FDA, na sigla em inglês),de seu produto de tecido de pele mais importante, oStrataGraft. A previsão para futuros queimados tra-tados com StrataGraft é promissora: num teste clíni-co, 19 entre 20 pacientes não precisaram de interven-ções cirúrgicas posteriores, depois de serem trata-dos com a nova tecnologia.

É uma bela história: o cientista faz uma descober-ta e, depois, cria uma empresa para comercializar oproduto criado. Mas nem todos os esforços cientí-ficos progridem tão suavemente da descoberta ou

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invenção até o empreendimento comercial. Compa-re a experiência de Allen -Hoffmann com a de RobertKearns, inventor do limpador de para-brisa intermi-tente usado na maioria dos carros atualmente. Keamslutou durante quase 30 anos para receber o reconhe-cimento e a recompensa financeira de uma tecnologiaque ele projetou, criou e patenteou na década de 1960.

No início, ao perceber as implicações comerciaisde sua invenção, Kearns tentou vender a tecnologiapara a Chrysler e a Ford. Ela foi recusada. Então, em1969, a Ford lançou um carro com limpadores inter-mitentes. Outras montadoras fizeram o mesmo, lo-go em seguida, na década de 1970. Surpreso ao veros limpadores até em carros estrangeiros, Kearnsdesmontou o sistema do limpador do Mercedes queseu filho havia comprado e descobriu que ele con-tinha exatamente a mesma tecnologia desenvolvi-da e patenteada por ele. E deu inicio a um processojudicial.

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Ideia em resumoPOR QUE ISSO ACONTECEo sucesso comercial de uma novatecnologia depende da propriedadeexclusiva de um ativo ou capacidadeessenciais. Mas para criar tecnologia,inovadores extraem conhecimento devárias fontes diferentes. Inventores queadministram mal essa tensão geralmentenão conseguem comercializar com sucessosuas inovações.

O PROBLEMA

Muitos inventores têm dificuldadepara comercializar suas invenções oudescobertas. Com frequência, grandesempresas, investidores, ou terceiroscolhem os frutos do trabalho .do cientista.

A SOLUÇÃO

Para administrar a tensão, inventoresprecisam ser bem-sucedidos em evitaras seguintes armadilhas: divulgarprematuramente informação sobrepropriedade intelectual, despreocupar-secom a capacidade de fiscalização, terdificuldade de demonstrar originalidade,confiar excessivamente na ciênciaconhecida, ter dificuldade em avaliaro melhor território, ser incapaz deadministrar contribuições e cair nasgarras dos financiadores.

Apesar da patente, Kearns teve que lutar muitopara reaver algum retorno financeiro de sua inven-ção. AChrysler e a Ford argumentaram que ele nãotinha inventado nenhum componente novo e quequalquer especialista poderia facilmente reproduziras melhorias que ele havia introduzido. A invençãoera, portanto, "óbvia" na opinião delas, significandoque sua patente não era válida.

Os tribunais finalmente decidiram a favor deKearns, que acabou recebendo US$ 30 milhões daChrysler e US$ 10 milhões da Ford, mas o processofoi lento e desgastante e a indenização muito inferiorao que seria devido para uma tecnologia que é utili-zada em milhões de veículos.

Neste artigo, vamos explorar sete armadilhas co-muns de propriedade intelectual (PI) e fornecer es-tratégias para evitá-Ias.

Tensão inerenteAsprobabilidades iniciais não são favoráveis. Aexpe-riência de Kearns émuito mais comum do que parece.De acordo com o Instituto de Patentes e Marcas Re-

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gistradas dos Estados Unidos e a Organização Mun-dial de Propriedade Intelectual, em 2013, cerca de 280

mil patentes foram emitidas só nos Estados Unidos equase um milhão no mundo todo. Mas somente cercade 10% produzirão vantagens comerciais. E,mesmoquando produzem, os ganhos com uma patente mé-dia em geral são menores que os custos para obtê-Ia.

Esta situação deplorável pode, em grande par-te, ser explicada por uma tensão inerente entre de-sempenho comercial e esforço científico. O suces-so comercial de uma nova tecnologia normalmentedepende da propriedade exclusiva de um ativo ou

capacitação críticos. Avanços científicos, por outrolado, dependem da troca aberta de ideias e da capa-cidade de extrair conhecimento de várias fontes. Amenos que essa tensão seja resolvida, uma descober-ta que represente um grande avanço não conseguiráser comercializada com sucesso e poderá não atingirseu pleno potencial.

Para entender como gerenciar a tensão, realiza-mos uma análise abrangente de mais de mil inven-ções da Fundação de Pesquisa Alumni de Wisconsin- escritório de transferência de tecnologia (TTO;nasigla em inglês) da University ofWisconsin. Traba-lhando com Carl Gulbrandsen e Michael Falk, exe-cutivos seniores da universidade, entrevistamos aliderança sênior do TIO, executivos da propriedadeintelectual, executivos de licenciamento, assesso-res jurídicos, administradores de contratos e outrosfuncionários. Participamos de reuniões para apren-der, diretamente da fonte, como avaliar o potencialcomercial das invenções.

A partir da pesquisa identificamos sete arma-dilhas comuns de PI nas quais inventores incautos(pessoas fisicas e jurídicas) costumam cair. Estas ar-madilhas são particularmente preocupantes do pon-to de vista social: elas geralmente impedem a divul-gação de invenções promissoras que poderiam me-lhorar o bem-estar das pessoas no mundo todo. Naspróximas páginas, descreveremos essas armadilhase apresentaremos estratégias comprovadas para evi-tá-Ias. As estratégias são, obviamente, mais relevan-tes para os cientistas, mas todos os inovadores serãobeneficiados se entenderam melhor como gerenciara PI e melhorar suas perspectivas de converter des-cobertas em lucros.

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Divulgação públicaA maioria dos inventores não pode esperar paraanunciar suas descobertas ao mundo. Outros sãopraticamente obrigados a fazê-lo - para os acadê-micos, a publicação é fundamental para o proces-so de pesquisa. Infelizmente, a divulgação pública,muitas vezes, impede que os inventores patenteiemsuas invenções, como Robert Perneczky, professordo Imperial College ofLondon, aprendeu da formamais difícil.

Em 2010, Perneczky isolou uma proteína do líqui-do cefalorraquidiano que podia ser usada como bio-marcador para a doença de Alzheimer. Aproteína dePerneczky prometia melhorar substancialmente aprecisão de diagnósticos precoces da doença. Quan-do ele abordou seu TTOcom o intuito de comercia-lizar a descoberta, se surpreendeu ao saber que nãohavia interesse. Ele já tinha detalhado exatamente oque pretendia patentear num artigo publicado numarevista acadêmica de prestígio. Adescoberta era ago-ra de domínio público, informou-lhe o TTO.

Obviamente, sigilo absoluto não é uma opçãopara cientistas academicamente qualificados quevalorizam e confiam nas opiniões e sugestões deseus pares. É por isso que a conduta comum para

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administrar PI somente através de segredos comer-ciais não é uma estratégia viável para eles.

Para evitar essa armadilha, os inventores devemlimitar a divulgação aos principais resultados ou auma descrição do problema, abstendo-se de revelardetalhes dos passos envolvidos na solução. Mesmorevelações parciais podem impedir a proteção de PIem países em que as exigências de divulgação (comoperíodo de carência, que detalhes divulgar e o queconstitui um "passo decisivo") são mais rigorosasque nos Estados Unidos.

De qualquer modo, recomendamos solicitar umregistro provisório de patente, antes de qualquer ti-po de divulgação. Para que o registro ocorra de formasegura, algumas empresas submetem pedidos de re-gistro provisório de patente por alguns dias (ou atéhoras) antes de qualquer divulgação pública parcial.Um registro provisório de patente assegura ao inven-tor o direito de se beneficiar de ter sido o primeiro ater a ideia, enquanto ganha tempo para desenvolvermelhor o conceito, obter mais resultados e criar umprotótipo que funcione - informações que podemser adicionadas ao registro definitivo. Se ocorrer di-vulgação inadvertida, tomar providências para sub-meter imediatamente o registro provisório da paten-te pode ajudar a proteger a propriedade intelectual.Lembre-se de que é preciso apresentar um registrodefinitivo no prazo de 12 meses para que a patenteseja emitida.

Cientistas que trabalham em P&Dcorporativo es-tão menos propensos a cometer os erros de Perne-czky. Pelo menos as grandes empresas dispõem deprocedimentos-padrão para submeter registros depatente: parecer de assessores jurídicos, aprovaçãode executivos de PI, processos formais para a libera-ção de informações sobre novas invenções e orienta-ção aos funcionários relacionada à PI. Mas, mesmoassim, a probabilidade de divulgação inadvertidapermanece, porque as empresas, muitas vezes, apre-sentam ou demonstram seus produtos em primeiramão para potenciais investidores, clientes e fornece-dores. Apatente crucial que a Nestlé usou para prote-ger sua máquina popular Nespresso foi invalidada noReino Unido, em parte porque a empresa tinha en-viado 40 máquinas de teste para clientes exclusivosna Bélgica e na Suíça sem que eles tivessem assina-do qualquer acordo de confídencíalidade, Este des-cuido abriu as portas para que imitações baratas dacafeteira expressa entrassem no mercado.

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AApple também caiu nessa armadilha, quando ofalecido Steve Jobs demonstrou como recuperar rapi-damente a galeria de fotos do iPhone na apresentaçãode lançamento do produto em 2007. AApple solicitoupatente para essa tecnologia na Europa cinco mesesdepois da apresentação de Jobs e, por isso, os tribunaisalemães invalidaram a patente em 2013.

Despreocupação com a fiscalizaçãoÉ difícil proteger inovações de processos e métodos.Como as operações de produção na maioria das em-presas ocorre a portas fechadas, muitas vezes é im-possível afirmar se um produto foi fabricado usan-do um determinado processo tecnológico. Isso dáàs empresas tempo suficiente para copiar impune-mente o novo método ou tecnologia e evitar o paga-mento de taxas de licenciamento. Este foi o proble-ma enfrentado por Robert Kearns e sua tecnologia dolimpador de para-brisa. Se Kearns tivesse requeridoo cumprimento de sua PImais cedo, provavelmenteo resultado teria sido muito diferente.

Idealmente, o inventor deve criar marcadores nopróprio produto para uma tecnologia ou método deprodução. Um exemplo envolve um novo proces-so para extrair flavonoides (composto encontradono vinho tinto, no suco de uva escura e em outroscompostos que protegem seres humanos e animais/contra ataques cardíacos) de produtos residuais des-cartados por vinicultores. Os inventores do processoencontraram uma forma de atribuir aos flavonoidesextraídos uma impressão digital química única. Sealguém utilizasse o processo desenvolvido por eles,um simples teste do composto final poderiarevelá-la.

Outra forma de proteger a PI de uma inovaçãode processo é transformar o processo em produto. Aequipe de um inventor ligada à nossa TTOapresen-tou um método para estudar células-tronco in vitro,enquanto simulava condições similares in vivo. Em-bora as aplicações comerciais para pesquisadores eempresas de biotecnologia fossem imediatamenteperceptíveis, era óbvio que seria difícil fiscalizar ouso não autorizado da tecnologia. A solução dos in-ventores foi transformar ométodo num kit que podiaser vendido como um produto. Com o kit de diagnós-tico facilmente disponível, os usuários seriam pou-co estimulados a produzir seus próprios dispositivos.

Se marcar os produtos e transformar os proces-sos em produtos não forem opções viáveis, os in-ventores também podem abordar o produtor de um

sistema maior, para saber se seus novos processospodem ser incorporados, sob licença, numa ferra-menta ou plataforma já existente. Isso transfere aresponsabilidade de fiscalização a produtores queestão numa posição mais alta na hierarquia empre-sarial e provavelmente estão mais bem equipadospara monitorar o uso da tecnologia.

Esta foi a abordagem adotada por Charles Mistret-ta e sua equipe de pesquisa, que em 2003 descobri-ram uma tecnologia de imageamento 3-Dque captu-ra múltiplas imagens em tempo real de uma área afe-tada do corpo e as exibe dinamicamente. Anova tec-nologia permite que médicos visualizem obstruçõesvasculares até nos vasos sanguineos mais finos. Paracomercializar este avanço, Mistretta licenciou a tec-nologia para a GEHealthcare, que a incorporou emseus imageadores de ressonância magnética.

Dificuldade em demonstraroriginalidadeInventores frequentemente dependem de ferramen-tas comercialmente disponíveis e técnicas existentespara gerar inovações muito mais eficientes, com boarelação custo-benefício e que atendam melhor àsnecessidades do usuário final que os produtos atu-ais. Mas essa abordagem pode limitar a capacidadedos inventores de lucrar com seu trabalho, uma vezque uma inovação precisa ser "nova", parecer "nãoóbvia" para os especialistas da área e conter um sig- . , .Uma patente provisona

•assegura ao Inventor odireito de se beneficiarde ter sido o primeiroa ter a ideia.nificativo "passo decisivo" para conseguir uma pa-tente. Em 2010, Philip Wyers enfrentou esse proble-ma quando suas esperanças de receber um prêmiode US$9 milhões da Master Lock foram frustradaspor uma decisão judicial declarando que sua inven-ção de um mecanismo de travamento (usando umasimples reconfiguração de projetos existentes) era

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óbvia. Sua patente foi invalidada com base no prin-cípio do "bom senso".

Inventores podem evitar esse destino criandoinovações com aspectos proprietários adicionais.Se as modificações levarem a melhoria de desem-penho para o usuário final, os inventores estarãomais aptos a defender uma tese mais convincentede que suas inovações não são óbvias. Quando umainovação é desenvolvida na área de P&Dcorporati-vo, a empresa pode reforçar a proteção de PI, com-binando ferramentas e técnicas-padrão com artefa-tos proprietários, algoritmos ou conhecimento. Sea combinação levar a um desempenho superior aode ferramentas e técnicas comercialmente disponí-veis, a empresa pode defender seus direitos de pro-priedade sobre sua versão da inovação. Ao trataressa armadilha de originalidade proativamente, in-

• •O a n strara contribuição,inventores deveriamfazer uma d·stinCiãoentre passos declsivese trabalho realizadosob supervisão.

ventores e empresas pavimentam a estrada de for-te estratégia de fiscalização que outros poderão per-correr nos desafios de PI.

Considere a abordagem adotada por Jeffrey Perci-val e seus colegas, que desenvolveram o Star Tracker5000 - um dispositivo preso à ogiva de foguetes queajusta a altitude do foguete durante o voo mantendouma estrela em seu campo de visão. Como o rastrea-dor se baseava em componentes fora de prateleira eutilizava técnicas de produção-padrão, o dispositivoera muito mais barato que a única alternativa com-parável do mercado - quase um centésimo do preço.Mas o uso de componentes padronizados tambémo tornou suscetível a acusações de que a invenção

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pecava por falta de originalidade. Para resolver o pro-blema, a equipe de Percival também embutiu no dis-positivo um algoritrno proprietário para transmissãorápida das imagens digitalizadas capturadas. Umavez garantida a patente da invenção, o TTOda equi-pe licenciou com sucesso o produto completo para aNasa, que usou o Star Tracker 5000 em pelo menos30 missões espaciais e voos de balão de alta altitude.

Obviamente, combinar componentes comercial-mente disponíveis e componentes proprietários émais fácil para as grandes empresas, que geralmen-te têm mais opções de escolha. Pequenas empresase universidades não dispõem dessa facilidade e são,portanto, aconselhadas a procurar um parceiro deporte para licenciamentos com quem possam traba-lhar na adaptação de produtos.

Confiança excessivana ciência conhecidaPoucas invenções dependem de avanço da ciênciabásica. A maioria aproveita-se de relações causaisbem conhecidas entre um determinado conjunto deentradas e saídas. Isso geralmente leva a acusaçõesde que falta um "passo decisivo" numa determina-da invenção. Se as reivindicações de PI não forem re-chaçadas logo no início, os concorrentes provavel-mente questionarão a validade da patente e o inven-tor terá de enfrentar uma batalha de execuções legaisonerosa e demorada.

Inventores poderão responder a essas acusaçõesde forma convincente se conseguirem demonstrarque a invenção é uma nova aplicação de ciência co-nhecida. A invenção de um professor de veteriná-ria - uma faca para cortar e aparar cascos de cavalo

- ilustra bem o exemplo. Ainvenção não apresentavanenhuma novidade da ciência, mas resolvia um pro-blema - fadiga do túnel do carpo de ferradores decavalo - que nenhuma outra faca do mercado tinhasido explicitamente projetada para resolver.

Os cientistas também podem rebater questiona-mentos de originalidade demonstrando que umainvenção envolve uma nova aplicação de materiais.Veja o trabalho focado em dessalinização realizadopor uma inventora que estudamos. Os princípios ge-rais de dessalinização que utilizam processos de os-mose e tecnologia de nanofiltragem são bem conhe-cidos. Mas, combinando esses processos com ummaterial específico - uma membrana de sílica mo-dificada com ferro -, a inventora foi capaz defender

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legalmente que sua inovação constituía um saltoquântico em termos de eficiência na dessalinização.

Num outro exemplo, particularmente extraordi-nário, uma equipe de cientistas desenvolveu umaferramenta para melhorar manipulações dentro deum dispositivo microfluídico. A ferramenta, basea-da em técnicas tradicionais de pipetagem, utiliza uminterruptor de microválvula para regular o fluxo defluido, permitindo aos usuários extrair células indi-viduais ou mover pequenas quantidades de líquidode forma mais eficiente. Ointerruptor da válvula emsi não é um mecanismo novo, mas a ideia de colo-car o interruptor num dispositivo microfluídico, queninguém tinha tido antes, agregou valor considerá-vel à ferramenta.

Dificuldade de garantiro melhor territórioQuando inventores resolvem grandes problemas,surge uma infinidade de novas aplicações idealizadasa partir da invenção central. Concorrentes potenciaiscostumam usar informação publicamente disponí-vel (como artigos em revistas científicas ou formulá-rios de registros de patentes) para criar suas própriasaplicações. Em alguns casos, os concorrentes erguemcercas de patentes em tomo das aplicações mais atra-entes de uma ideia revolucionária, mesmo que nãotenham nada a ver com a P&Denvolvida.

Para evitar que isso aconteça, encorajamos inven-tores a demarcar antecipadamente o melhor territó-rio de PI. Se identíficarem cuidadosamente as poten-ciais aplicações mais lucrativas de uma invenção econcentrarem recursos para desenvolvê-Ias, eles po-dem melhorar o retomo sobre o investimento emP&Dda empresa. Eles também devem solicitar umregistro provisório de patente para proteger o de-senvolvimento do trabalho. Isso concede à empresao prazo de um ano para completar a pesquisa e ex-plorar as aplicações mais lucrativas da invenção. Oregistro provisório, no entanto, é uma faca de doisgumes: se a empresa não conseguir completar a pes-quisa dentro de um ano, então o conhecimento en-volvido toma-se publicamente disponivel. Por isso aestratégia deve ser usada com cautela - quando osresultados puderem ser previstos com precisão, porexemplo, e o registro for para um mercado suficien-temente grande em que o risco vale a pena.

Ao pensar em qual território marcar, inventoresprecisam enxergar além de suas próprias áreas de

expertise direta. O ornitólogo Mark Cook e o micro-biólogo Michael Pariza são um bom exemplo. Embo-ra Cook estude aves domésticas e Pariza, anticance-rígenos, ambos estavam pesquisando o ácido linolei-co conjugado (CLA,na sigla em inglês) - um ácidograxo com uma variedade de propriedades nutricio-nais favoráveis -, cuja aplicação comercial mais pro-missora estava fora das áreas de expertise dos doispesquisadores.

Cook e Pariza descobriram que o CLApode agircomo anticancerígeno, tratar certas doenças autoi-munes e aumentar a musculatura magra e ao mesmotempo reduzir a gordura corporal. Potencialmenteele era, portanto, um produto extremamente útil pa-ra emagrecimento. Os inventores entraram em acor-dos de licenciamento iniciais com a EAS - produ-tor líder de suplementos nutricionais e treinamentodesportivo - e ao mesmo tempo entraram com o pe-dido de registro provisório de patente. Logo depoisoutro fabricante de suplementos nutricionais procu-rou licenciar a tecnologia com direitos exclusivos pa-ra perda de peso.

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~~------------------------------~Inventores são mais suscetíveis a armadilhas em certas fases do processode descoberta e comercialização. Abaixo estão algumas mais comuns ecomo evitá-Ias.

FASE

FASE

FASE

CONCEBENDO E TESTANDO AlDEIAPara conceituar lnovâções, os inventores dependem deinformações de especialistas de diferentes áreas e de recursosfinanceiros de patrocinadores.ARMADILHAS POTENCIAISDIVULGAÇÃO PÚBLICA. Inventores podem divulgar informação proprietária.

• Antes de solicitar o registro de patente, partilhe em fóruns públicossomente resultados parciais, e não soluções completas.

• Exija que colaboradores assinem contratos de não divulgação das informações.INCAPACIDADE DE ADMINISTRAR CONTRIBUiÇÕES Especialistas podem

reivindicar o direito de serem coinventores.

• Faça uma distinção clara entre "passos decisivos" e trabalho realizado sob

supervisão.

CAINDO NAS GARRAS DOS FINANCIADORES. Inventores podemcomprometer sua capacidade de obter lucros com seu trabalho ao aceitar

recursos financeiros em condições desfavoráveis.

• Estruture planos de financiamento para garantir que os patrocinadores nãose apoderem de todas as vantagens da invenção.

DESENVOLVENDO O PRODUTOPoucas inovações constituem avanços em ciência básica.Quando inventores transformam conceitos em protótipos,eles geralmente procuram ferramentas científicas familiares.ARMADILHAS POTENCIAISCONFIANÇA EXCESSIVA NA CIÊNCIA CONHECIDA. Se as reivindicações

de PI não forem rechaçadas logo no início, os concorrentes provavelmente

questionarão a validade da patente.

• Mostre uma nova aplicação dos princípios científicos.

• Mostre uma nova aplicação de materiais.DIFICULDADE DE DEMONSTRAR ORIGINALIDADE

• Inclua aspectos proprietários na inovação.

• Combine inovação com artefatos proprietários, conhecimento ou ferramentas.INCAPACIDADE DE ADMINISTRAR CONTRIBUiÇÕES. Inventores podem

terceirizar elementos da inovação ou se basear no trabalho de outros para

desenvolver protótipos.

• Conceda créditos parciais aos colaboradores.• Formalize acordos de posse de PI antes de iniciar o desenvolvimento.DESPREOCUPAÇÃO COM A FISCALIZAÇÃO. Pode ser difíçil monitorar o uso de

certas invenções, principalmente novos processos, e fiscalizar uma patente.

• Crie marcas indeléveis de uma invenção no produto.• Insira o processo de invenção num sistema mais amplo.

• Licencie o processo de invenção para produtores de sistemas maiores.

PARTINDO PARA O MERCADOÀ medida que inventores comercializam suas tecnologias, osconcorrentes podem entrar na briga, lançando aplicaçõeslucrativas por meio de opção de compra. Financiadorestambém podem reivindicar vantagens econômicas.ARMADILHAS POTENCIAISDIFICULDADE DE GARANTIR O MELHOR TERRITÓRIO. procureantecipadamente mercados promissores.

• Submeta petições ou requeira registro provisório de patente, nas áreas maisatraentes simultaneamente com a invenção.

CAINDO NAS GARRAS DOS FINANCIADORES. Avance com cautela parapreservar direitos comerciais.

• Conceda acesso inicial livre de royalties aos financiadores.

• conceda-lhes participação em quaisquer ganhos de patentes.

• Submeta um registro provisório da patente antes de solicitar fundos.

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Incapacidade deadministrar contribuiçõesApesquisa avança por meio de conversas com espe-cialistas e aproveitando o feedback que eles forne-cem numa grande variedade de áreas. Épor isso quecientistas assistem a conferências e visitam exposi-ções comerciais onde o estado da arte da pesquisaé apresentado. Nesses ambientes, especialistas seinformam sobre novas ideias e pesquisas com estu-diosos de diferentes disciplinas. Plataformas de có-digo aberto oferecem as mesmas oportunidades decompartilhamento de ideias e obtenção defeedback.

Mas nesse processo parcialmente terceirizadopode ser difícil descobrir a quem atribuir os créditos.Para complicar ainda mais, os cientistas geralmentesão generosos demais ao compartilhar créditos. Uminventor nosso conhecido, que trabalhava com ani-mais resistentes à insulina, incluiu sua assistente téc-nica como coinventora, afirmando que sem ela o tra-balho não teria sido realizado. Além disso, ele haviaescolhido essa linha de pesquisa por sugestão de umprofessor numa conferência e, segundo ele, o profes-sor também deveria receber uma parcela dos crédi-tos. Oproblema é que investir no desenvolvimentode aplicações comerciais torna-se menos atraentepara as empresas quando os créditos pela invençãosão muito diversificados.

Aconselhamos inventores a fazer uma distinçãoclara entre passos decisivos - proposição de umaideia original- e trabalho realizado sob supervisão.Embora técnicos dedicados mereçam recompensa fi-nanceira por seu trabalho, uma invenção não podeser creditada a eles, a menos que tenham sido fun-damentais nos passos decisivos.

Obviamente, é essencial atribuir os devidos cré-ditos a quem os merece. Vejamos o caso de InBae Yo-on, que projetou um trocarte seguro - um disposi-tivo para reduzir lesões internas de órgãos duranteprocedimentos endoscópicos. Em 1985, ele recebeua patente americana como único inventor do disposi-tivo e, posteriormente, licenciou a tecnologia exclu-sivamente para a Ethicon. Em 1989, a Ethicon des-cobriu que uma concorrente, a U.S. Surgical, tinhadesrespeitado a patente e entrado com uma ação ju-dicial. Ciência revolucionária raramente se deve aum esforço isolado e o trocarte não era exceção. Paradesenvolvê-lo, Yoon havia contado com a colabora-ção de Young Jae Choi, técnico em eletrônica. Embo-ra Choi tivesse contribuído para o desenvolvimentodo produto, Yoon não o pagou pelo seu esforço, e a

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relação de trabalho entre eles terminou antes da con-clusão do projeto. Yoon solicitou o registro da paten-te como o único inventor, sem reconhecer a partici-pação do Choi.

À medida que o processo judicial tramitava, a U.S.Surgical soube da participação anterior de Choi, en-trou em contato com ele e, em 1992, tomou as me-didas necessárias para incluí-I o na patente originalsolicitada por Yoon. Tendo garantido propriedadeparcial da tecnologia a Choi, a U.S. Surgical propôsa ele um acordo separado e exclusivo para licencia-mento. Posteriormente, em 1998 o tribunal decidiuque a U.S.Surgical tinha utilizado retroativamente apatente legalmente. AEthicon perdeu a disputa e orecurso foi negado.

Em geral as empresas tendem a atribuir menoscréditos que mais, porque elas partem de uma po-sição de poder: empregados inventores não são au-tomaticamente beneficiados com a comercializaçãode suas invenções. Mas isso não significa que a em-presa deva ignorar a questão da atribuição de crédi-tos, mesmo para invenções produzidas internamen-te, porque normalmente os pesquisadores se inspi-ram numa ampla rede de colegas, que muitas vezesultrapassa o âmbito da empresa. Companhias quepromovem a rotatividade de cientistas com aliançase empreendimentos conjuntos precisam ser particu-larmente prudentes ao atribuir créditos nos passosdecisivos e devem compartilhar recompensas comtodos os envolvidos.

Que medidas podem ser tomadas para evitar pro-blemas na atribuição de créditos? Em primeiro lugar,devem ser formalizados acordos sobre a PI antes deiniciar seu desenvolvimento comercial. Tenha emmente que as leis diferem de país para país. Por issoa estrutura, detalhes e itens dos acordos devem se-guir leis próprias. Em países europeus, por exemplo,as empresas são obrigadas por lei a recompensar fim-cionários pelas invenções que produzem como partede seu trabalho. É fundamental documentar como ainvenção foi criada e quem participou dela, com osregistros diários de laboratório ou arquivos conten-do registros de dados. No caso da Ethicon, nos docu-mentos apresentados por Yoon ao solicitar o registrode patente, foram encontradas anotações feitas depróprio punho por Choi, o que confirmou sua partici-pação como coinventor. Medidas de precaução comoestas podem evitar complicações quando outros in-ventores questionarem uma descoberta promissora.

Caindo nas garras de financiadoresEmbora alguns conceitos possam ser desenvolvidoscom um orçamento apertado, outros exigem um in-vestimento substancial para serem completamentelegalizados e disponibilizados para comercialização.Quando é necessário um financiamento externo, osinovadores tomam-se altamente dependentes deprovedores de recursos.

Captar financiadores - quando os investidoresfazem reivindicações sobre a PI - é um problemaprincipalmente para empresas com pequena P&Dque fazem alianças e parcerias com grandes corpo-rações. Um grupo de pesquisa que encontramos de-senvolveu um novo método de craqueamento de ga-solina e diesel inline antes da injeção do combustí-vel para obter mais eficiência de queima. Os inven-tores precisavam de recursos para testar a tecnologia.Uma grande empresa automotiva interessou -se pelatecnologia, mas o investimento ficava vinculado aosdesdobramentos de PI.

Nesse tipo de situação, o inventor deve protoco-lar um registro provisório de patente antes de come-çar a levantar fundos, pois isso definirá suas reivin-dicações sobre a invenção, e deixar claro que qual-quer financiamento será para gerar dados e resulta-dos e desenvolver protótipos descritos no registroprovisório. Isso fortalece a posição do inventor emsubsequentes decisões de comercialização e é parti-cularmente pertinente devido às recentes mudançasna lei de patentes dos Estados Unidos. Obviamente,qualquer negociação requer uma relação de troca(dar e receber). Pode-se oferecer aos financiadores,por exemplo, vantagens como acesso livre de royal-ties à tecnologia e uma pequena participação na ren-da derivada de seu licenciamento. Estruturado destaforma, o acordo reconhece implicitamente os direi-tos anteriores dos inventores.

DE CÉLULAS-TRONCO À produção de energia alterna-tiva, vivemos numa era de inovação tecnológica.Mas, com muita frequência, os pioneiros da ciên-cia não colhem os frutos financeiros de suas desco-bertas e, às vezes, fracassam em comercializar comsucesso inovações potencialmente vantajosas paraa sociedade. Usando as estratégias descritas, em-preendedores da ciência poderão controlar melhoro desenvolvimento e a comercialização de suasideias. ~HBR Reprint R1S02E-P Para pedidos, página 8

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