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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. VALLE, Renato da Cunha. Renato da Cunha Valle (depoimento, 2012). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2012. p. 53 Renato Cunha Valle (depoimento, 2012) Rio de Janeiro 2014

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. VALLE, Renato da Cunha. Renato da Cunha Valle (depoimento, 2012). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2012. p. 53

Renato Cunha Valle

(depoimento, 2012)

Rio de Janeiro

2014

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Nome do entrevistado: Renato da Cunha Valle

Local da entrevista: Uberlândia - MG

Data da entrevista: 15 de outubro de 2012

Nome do projeto: Futebol, Memória e Patrimônio: Projeto de constituição de um acervo

de entrevistas em História Oral.

Entrevistadores: Bernardo Buarque (CPDOC/FGV)

Transcrição: Juliana Paula Lima de Mattos

Data da transcrição: 08 de novembro de 2012

Conferência da transcrição: Heitor Gomes

Data da conferência: 28 de outubro de 2012

** O texto abaixo reproduz na íntegra a entrevista concedida por Renato da Cunha Valle em 29/10/2012. As partes destacadas em vermelho correspondem aos trechos excluídos da edição disponibilizada no portal CPDOC. A consulta à gravação integral da entrevista pode ser feita na sala de consulta do CPDOC.

B.H – Podemos?

R.V – Vamos lá.

B.H – Bom dia. Uberlândia, 15 de outubro de 2012. Depoimento de Renato da Cunha Valle para o projeto Futebol, Patrimônio e Memória, que é uma parceria entre a Fundação Getúlio Vargas e o Museu do Futebol. Conduz essa entrevista, Bernardo Buarque. Renato, Bom dia. Muito obrigado por nos receber em sua casa, fico muito feliz em estar aqui em Uberlândia com você. Eu pediria, Renato, para você começar falando a sua data e local de nascimento.

R.V – Bom dia. É um prazer muito grande recebê-los aqui e dar esse depoimento. Uma coisa que irá ficar registrada para a História. Então o meu nome é Renato da Cunha Valle. Nasci no Rio de Janeiro, no dia 05 de dezembro de 1944 e desde os 12 anos eu tive essa vontade de ser jogador de futebol. Então foi uma coisa assim que eu coloquei na cabeça, um sonho, um objetivo e que eu corri atrás com unhas e dentes e respeitando a todos,

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sabendo que cada um tem o seu devido lugar, tem o seu caminho e, nesse mundo, eu fiz muitos amigos, graças a Deus.

B.H – Renato, conta um pouquinho da sua família, da sua infância, se o seu interesse pelo futebol teve alguma influência dos seus pais. Enfim, conta um pouquinho da sua família.

R.V – Bom, eu costumo falar que a minha história é mais ou menos ao contrário da história normal de todos os jogadores. Eu saí... eu nasci no Rio de Janeiro, como eu já falei, eu saí de uma família de Classe Média Alta. Meu pai militar, capitão de Mar e Guerra e eu tinha, dentro de casa, duas irmãs, uma mais nova que eu e a outra mais velha. E nós tínhamos quase que uma ordem unida dentro de casa. Então, era tudo muito rígido, uma educação muito... Que hoje eu agradeço realmente aquela educação, na época, a gente ficava meio zangado, porque era jovem, queria muita liberdade... E o meu pai gostava muito de futebol. Flamenguista, eu, aos nove anos, fui a primeira vez ao Maracanã e adorei. Depois daquele jogo, eu que fazia com que o meu pai fosse ao Maracanã. Nós íamos aos clássicos, nos sábados e nos domingos. Depois entrou o campeonato dos aspirantes também, nós íamos lá. Eu fiz meu pai chegar mais cedo... Então eu tomei um amor muito grande pelo futebol. Que eu vi grandes jogos, grandes jogadores. E eu lembro: Eu tinha 12 anos de idade, o Flamengo estava jogando contra a Portuguesa carioca e, naquele momento, eu ficava com um colega dele sentado atrás na arquibancada, eu virei para ele e disse: “Pai?”. “O que foi?” “Você vai me ver aqui, jogando no Maracanã. E eu vou jogar no Flamengo e vou jogar na Seleção Brasileira.” [Risos]. Ele falou: “Que isso, menino! Você vai estudar! Jogador de futebol não dá certo...” Não sei o quê e tal. Morreu aquele assunto ali naquela hora. Mas dali em diante, eu comecei realmente a me interessar por esporte. Eu morava juntinho da praia, então, era sempre na praia... E eu sempre tive habilidade para jogar futebol, para jogar voleibol também. Naquela época, nós tínhamos uma turma boa de companheiros, nós fundamos um timezinho de praia. E ali já começou. E o interessante é que nesse time de praia, nós tínhamos um amigo que só jogava no gol. Ele era muito bom goleiro e só jogava no gol. Eu queria ser goleiro, mas só sabia jogar na linha. Então, eles diziam: “Não, você vai jogar na linha, porque você chuta forte, cabeceia...” E eu cresci rápido também. Eu, rápido, fiquei com 1,80cm, que é o que eu tenho. E, naquela época, era alto, 1,80cm era alto. Hoje em dia, não é essa média que nós temos, não é? Então, eu era obrigado a jogar na linha. Eu fazia gol e tal, mas não era o meu objetivo. E depois as coisas foram indo e tal. O time da minha turma, do posto 6, que era o Lá vai Bola, era um time muito bom, e eu também não tinha oportunidade de jogar no gol,não tinha. Aí eu saí dessa turma, foi para a turma do posto 5 , jogávamos no time do Maravilha, que foi a primeira pessoa que acreditou em mim como goleiro, foi o Jaime, ele era o porteiro de um prédio, vascaíno

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doente, o time dele tinha a camisa do Vasco e ele, um dia, passando por ele na praia, ele falou assim: “Você não quer ser goleiro do meu time?” Lá chamava amador, “do amador do meu time?” Que era o primeiro time a jogar o campeonato de futebol de praia, que era 11 contra 11! Organizado, bonitinho e tudo. Eu falei: “Então eu vou jogar”. E fui para lá e, de vez em quando de tarde, ele me chamava: “Não, vamos treinar”. E a gente treinava, ele ficava chutando para mim e tudo... Então, ali, que realmente começou. Eu comecei a jogar no gol, aí o meu time da minha turma, viu eu jogando no gol, e disse: “Não, você tem que voltar para cá”. [Risos]. Aí, eu voltei e fui pro Lá vai Bola nós fomos bicampeões. E ali, no futebol de praia também, o time do Real Constant que era um time exatamente daquela rua dali do Maravilha, tinha um goleiro lá chamado Ivan, eu tenho que agradecer ao Ivan também porque foi ele que deu aquela mãozinha que toda pessoa precisa para chegar ao sucesso. Ele, goleiro também, já jogava no juvenil do Flamengo e ele indicou ao Modesto Bria, que era o olheiro do Flamengo, indicou para ver um jogo meu na praia. E, um dia, eu estava jogando. Acabou o jogo, veio um senhor falar comigo, ele era paraguaio, Modesto Brio, tinha sido tricampeão pelo Flamengo, ele se apresentou e perguntou se eu não queria treinar lá no Flamengo. Então aí começou mesmo a minha ida para o campo. Antes, eu já tinha... Essa mesma turma do Lá vai Bola, nós já jogávamos no futebol amador em Petrópolis, perto do Rio de Janeiro, a gente subia todo sábado de noite, jogávamos domingo de manhã e voltávamos. A gente jogava sábado à tarde na praia, subia , jogava domingo de manhã no campo, não é? E, ali, eu já... Lá eu comecei com 16 anos e já no final desse campeonato, eu fui convidado para jogar pela seleção Petropolitana, com 16 anos. Então, ali, eu vi que realmente poderia acontecer alguma coisa.

B.H – Aham.

R.V – Mas depois foi muito difícil porque, quando eu comecei e treinar no Flamengo, só a minha mãe sabia, meu pai não sabia.

B.H – Foi escondido.

R.V – Foi escondido. [Riso]. Então, foi uma coisa, assim, interessante, porque eu comecei a treinar e tal e eu não sabia, não tinha noção nenhuma de nada, só a minha mãe que sabia. Eu fui fazer uma excursão também - isso aí foi em 1963 – e eles pegavam jogadores, faziam uma excursão para formar o time, preparar o time de sub-20 para jogar

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em 1964. E aí eu tive que viajar com esse time, e eu tive que falar, mais ou menos, o que que era ao meu pai... E ele concordou, meio assim, mas foi mais ou menos [Riso]. Mas depois, quando voltou, o time se interessou, que ia começar o campeonato realmente, aí eu tive que falar com o meu pai. Eles vieram, queriam que eu assinasse aquele contrato de gaveta em que você só assinava, sem data, o contrato em branco, e eu falei que não assinava. Aí os dirigentes falaram para mim que se eu não assinasse, eu não jogava. E eu falei que se eu falasse em casa, ao meu pai, ele não me ia deixar eu jogar. Então ficou aquele impasse. Afinal, eles foram lá ao meu pai e eu tive chegar para ele e abrir o jogo: “Ó, pai, está acontecendo isso. Eles vem aqui para você assinar esse contrato, aí sim você vai dizer para eles que você não quer que eu jogue, você não vai assinar esse contrato.” E eles vão ter que deixar eu jogar porque... Vai ter que deixar. [Riso].

B.H – Agora, em 64, você já tinha 20 anos de idade, é isso?

R.V – É. Em dezembro eu estava fazendo 19 para 20.

B.H – Ainda assim o contrato tinha que ser assinado pelo pai?

R.V – É, ainda. Tinha que ser assinado pelo pai.

B.H – E como seu pai era militar, então, provavelmente, o senhor estudou em escola militar?

R.V – Também. Eu fiz um ano de escola militar. Eu estudei nos melhores colégios no Rio de Janeiro: Colégio Andrews, então...

B.H – Então, entre os seus colegas, não era comum o garoto seguir a carreira de jogador? Ou havia...?

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R.V – Não. Eu acho interessante também na minha história porque o pai do Ivan Lins, cantor, era muito amigo do meu pai, era militar também. Os dois fizeram carreira juntos. Então eu fui para o lado do futebol e o Ivan Lins para o lado da música, não é? E a gente frequentava a casa, brincava muito juntos e tal. Eu conheci o Ivan Lins pequenininho. Então é interessante isso. Mas foi muito difícil. Quando o meu avô soube, meu avô me chamou, colocou-me de frente e disse assim: “Meu filho, o que é isso? Você tem que trabalhar no comércio”. Ele era comerciante. “Jogador de futebol é coisa de vagabundo”. Nessa época, vagabundo era uma palavra até muito forte. Eu falei assim: “Não, meu avô, você vai me ver jogar, mas eu vou ser um profissional realmente, eu vou jogar em time grande e eu vou jogar na seleção brasileira.” Agora, infelizmente, a seleção brasileira, o meu avô não me viu jogar. Não me viu ser convocado, ele morreu antes. Mas me viu jogando futebol, depois quando eu comecei a minha carreira mais assim... mais firme mesmo, porque eu parei umas duas vezes, foi muito difícil, no início foi muito difícil, ele pegou e me deu, na época teve uma fábrica Drible que fez as primeiras luvas para se jogar futebol, ele me deu uma caixa, com 30 pares de luvas, e aquilo eu utilizei quase que a minha carreira inteirinha. Então eu tive o reconhecimento dele.

B.H – Teve.

R.V – Meu pai também era um incentivador, depois que ele viu que realmente eu ia fazer uma carreira séria, com dedicação e tudo, que aquilo ali não era só para não estudar, ou alguma coisa assim, nesse sentido, quando ele viu isso, aí ele foi um grande incentivador meu. Ele me viu na seleção brasileira, acompanhou bastante a minha carreira até, praticamente, o final.

B.H – Renato, em 1950, você tinha seis anos de idade. Foi o ano da Copa do Mundo realizada no Brasil. Você tem alguma lembrança desse torneio?

R.V – É muito interessante porque eu comecei a acompanhar, assim, a Copa do Mundo de 1958. A de 50 e 54, eu não tenho recordação nenhuma, nenhuma. Nem de movimentação, nem de comentário até do meu pai que gostava muito de futebol, não tenho. Porque eu acho que não havia tanta divulgação igual tem hoje. Hoje a mídia é uma coisa impressionante. Você espirra aqui, você escuta lá no Japão.

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B.H – [Riso].

R.V – [Riso]. Então, a coisa é muito rápida. Naquela época, não tinha, não. Agora, 58, eu me lembro muito bem. A minha tia avó adorava futebol também, ouvindo no rádio aquela coisa louca. E toda hora o som sumia. E a gente não sabia o que estava acontecendo. Foi uma festa muito grande. Aí de 58 eu já lembro bastante.

B.H – E isso você tinha 14 anos. A Copa seguinte no Chile, você tinha 18 anos.

R.V – Ali já foi uma participação maior, não é? Já teve algumas imagens de televisão também. Então, ali a gente já estava envolvido com o futebol. Então eu acho que eu aproveitei muito mais. Eu sempre fui um cara muito observador, então eu acho que eu sou um autodidata porque professores eu não tive. Eu aprendi a jogar no gol, olhando, vendo, aprendendo com os erros mesmo que a gente cometia e procurando aprimorar. E às vezes, uma dica que alguém dava... Eu tive uma dica com um primo meu, ele era um antiesportivo, mas adorava ver esportes. Ele andava pela praia, via um bom jogo de vôlei, ele parava, ficava apreciando. Jogo de futebol, ele parava, ficava apreciando. Mas ele não praticava absolutamente nada. Nada, nada, nada! Um dia ele foi-me ver jogando. Acabou o jogo, ele falou assim: “Ah, mas é muito fácil jogar ali no gol, na praia. Você não pega uma bola, você joga tudo para lá, assim, faz assim.”. Eu pensei: “O que é isso!”[Riso] Aí eu comecei, eu pensei: “Não, vou começar a pegar essa bola”. Então, uma dica assim, aquilo ali foi uma mensagenzinha de uma pessoa que não entendia nada de futebol e ele me deu essa dica. Aí eu comecei a trabalhar isso. Eu digo: Não, eu tenho que terminar a jogada. Esse negócio de toda hora a bola vai, você joga a bola para fora, qualquer um pode fazer isso!

B.H –Não era só espalmar... É agarrar, é o...

R.V – Segurar. Acabou a jogada. A bola bateu em você, acabou. Não pode largar a bola, não pode nada. Então, eu comecei a tentar aprimorar esse tipo de coisa.

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B.H - E com o Brasil, bicampeão do mundo, havia jogadores que você admirava, ou goleiros? Você já observava a posição de goleiro? Você, com 18 anos, já tinha esse projeto determinado de ser jogador. Isso orientava a sua visão do jogo?

R.V – Esse ser goleiro aí realmente me chamou atenção no jogo, que eu não prestei atenção em mais nada. Eu não sei te dizer que dia que foi, contra quem ou quem estava jogando... Eu sei que era um goleiro argentino chamado Roma. Eu vi esse cara jogar, mas que coisa espetacular! Falei assim: “Gente, mas é muito bom”. E depois, eu era meio do contra também, não é? O outro time está todo tentando fazer o gol, tentando fazer o gol, você vai lá e estraga tudo! Eu falei assim: “É bom demais esse aí! É bom demais esse goleiro”. Então, eu vi esse cara jogando, eu falei assim: “Nossa senhora, ele é um espetáculo.” Depois eu vi o Barbosa jogando também. Eu tive o prazer, depois, de conversar com o Barbosa. E ele dizia também que gostava muito de me ver jogar. Nossa, eu fiquei satisfeito demais na inauguração da escolinha do Zico, juntamos lá tantos jogadores conhecidos, Domingos da Guia1 também... Foi uma coisa, assim, maravilhosa. E esse depoimento do Barbosa para mim, deixou-me muito satisfeito porque ele tinha sido meu ídolo também.

B.H – Então, o fato do goleiro ser diferente em tudo: uniforme, usar a mão, te atraía para a posição. E seria o prazer de evitar o gol. Mas, por outro lado, no caso do Barbosa, também ficou muito marcado por uma suposta falha no gol da final, em 1950. O fato do goleiro também ser responsabilizado e receber a maior carga de pressão, você também não pensava nesses aspectos, quando decidiu ser goleiro?

R.V – Não. Esse lado aí, eu nunca pensei, nunca pensei. Porque você vai de herói à vilão em fração de segundos. Como você também pode ir de vilão à herói em fração de segundos. Isso aí faz parte do futebol e são coisas, assim, muito injustas, que acontecem. Então, houve chance do Brasil não precisar daquele resultado, houve chance. Então, é aquela história, tem 10 na minha frente ainda. A bola, o jogo começa no meio do campo, para ela chegar a mim, eu ainda tenho 10 companheiros na frente. Então, eu não posso ser exatamente o culpado por isso. A não ser se o cara chute a bola no meio de campo e a bola entre. Então, eu achava assim: “Eu nunca vou ser o único culpado”. Nunca. Não vou admitir e aceitar que eu seja o único culpado. Agora, diversas vezes, eu digo: “Não, eu errei.”. Falava aos meus companheiros “Errei, fui eu que errei” e tal. Mas não admitia que todas as pessoas falassem assim: “Não, perdeu por causa do Renato”. Não, nós

1  O  entrevistado  se  refere  ao  ex-­‐jogador  de  futebol  Domingos  Antônio  da  Guia.  

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perdemos, nós ganhamos. Porque é um jogo coletivo. Então, durante o jogo acontece muita coisa. Houve repórter que perguntou assim para mim: “O que você acha que é um frango?” Eu disse: “Frango é exatamente aquela bola que a avó de todo mundo pegava, menos eu, que estava lá, peguei”. Então, alguma coisa aconteceu. Mas a pessoa não assume a responsabilidade, ninguém fala assim: “Eu pegava”. A minha avó! Coitadinha da minha avó... Deixa ela quietinha lá [Riso].

B.H – Você sentia essa cobrança da imprensa, mas você também chegou a sentir a cobrança da torcida do seu time?

R.V – A gente vive sob pressão, lógico. Já joguei em time de grande torcida. Joguei no Flamengo, joguei no Atlético, joguei em uma época muito boa no Fluminense também. Joguei no Bahia. Joguei em Uberlândia também. Então, a gente... é sempre uma pressão. Existe sempre essa pressão. O goleiro está sempre sob pressão. Ele está sempre sendo analisado. E depois ele também, muitas vezes, a bola foi chutada para fora e ainda existe comentário: “Se fosse para dentro, o goleiro não pegava”. Ainda existe isso. [Risos]. Ainda tem mais essa carga. Então é muito difícil ser goleiro. Eu acho que para ser goleiro, não é... Ele é exatamente... totalmente diferente. Hoje o goleiro tem a vantagem de ter um treinador de goleiro que, normalmente, é um ex-atleta. Então, tem uma carga muito maior de informações. Ele na mídia também, ele pode ver o jogo depois. Ver os erros dele, corrigir. Então, ele tem toda essa vantagem. Na minha época, eu fui aprender alguma coisa com alguém quando eu fui na Copa do Mundo em que tinha o Carlesso2, que foi o primeiro treinador de goleiro. Então, ali, eu aprendi alguma coisa. Assim mesmo, em termos só de treinamento. Porque em termos práticos, de experiência de jogo, ele não tinha porque ele não tinha sido o goleiro. E depois quando eu fui ao Fluminense, que eu convivia com o Félix3. Aí sim eu tinha uma carga de ensinamento muito grande, o Félix foi um companheirão, uma pessoa maravilhosa. Um cara que eu me orgulho muito de ter convivido com ele.

B.H – Então, nos anos 60, nesse período inicial do Flamengo, não havia... o seu treinamento como goleiro, ele não tinha nenhuma especialização?

2  O  entrevistado  se  refere  ao  treinador  de  goleiros  da  seleção  brasileira  tricampeã  do  mundo  em  1970,  Raul  Alberto  Carlesso.  3  O  entrevistado  se  refere  ao  ex-­‐goleiro  da  seleção  brasileira,  Félix  Mielli  Venerando.  

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R.V – Não, não. O treinamento do goleiro era simplesmente, você ficava no gol e aquele bate bola que existia: Os atacantes chutando de qualquer maneira, a bola rolada para eles, e ainda tinha mais. Quando eu cheguei ao Flamengo, tinham 11 goleiros, nós treinávamos todos juntos. Então, sobrava pouquinha coisa para cada um. Então, fazia um gol, você sai. Leva o gol, sai. Leva o gol, sai. Às vezes não tinha nem chance de pegar. Os caras chutavam... Cinco chutavam para fora, um fazia o gol, você não pegou nada! Então, era uma coisa muito rústica. Você não tinha, praticamente, ensinamento nenhum. Então você tinha que aprender, ali, vivendo a coisa. Então, se passava uma situação dentro do jogo, você dizia: “Bom, aqui ali está errado”. Então, no outro jogo, você já corrigia. “Posso fazer isso?” “É melhor?”. Mas com muito pouca informação que você tinha.

B.H – Renato, a década de 60, nesse momento da sua formação e afirmação como atleta profissional, coincidiu com a era dos grandes clubes de futebol nacional, como o Santos, de Pelé, o Cruzeiro e o Botafogo, no Rio. Como foi jogar com esses grandes clubes e esses ídolos do futebol daquela época?

R.V – Olha, eu tive a felicidade de ver essa gente jogar. Primeiro, jogar, não é? Eu estava no Maracanã, no bicampeonato do Santos, vi aquele jogo contra o Milan... Aquilo ali foi em 63. Depois, 64, eu já estava de férias, tinha terminado o campeonato de sub-20 do Flamengo. Eu estava de férias, de repente minha mãe aparece: “Meu filho, estão te chamando”. Eu falei: “o que houve?”. “Estão te chamando, do Flamengo.”. O Flamengo tinha uma decisão da Taça Brasil contra o Santos. Não, eles chamaram porque todos os goleiros de lá estão machucados e você está inscrito. Eu falei: “O quê?!” “É, você está inscrito.” Então, está. Eu fui para lá. Fui para concentração. Final contra o Santos. O grande Santos, que eu tinha visto ser bicampeão em 1963. E 20 ou 25 minutos do segundo tempo, o Marco Aurélio já tinha entrado machucado e tudo. Ele não aguentou e eu tive que entrar. Você imagina, não é? A estreia contra o time do Santos: Durval, Mingau, Coutinho, Pelé e Pepe. Eu acabei de entrar, o Pepe pegou a bola, no meio de campo, chutou a bola, parecia uma ogiva de caminhão [Riso]Eu sei que eu tentei pegar, ela bateu aqui na minha mão, ela sobrou. O Pelé veio entrando para pegar o rebote, junto com o Ditão. Ditão conseguiu tirar a bola. E ali foi... Eu falei: “Bom, essa primeira não entrou aqui, está bom.”. O Santos jogava pelo empate também, não é? O jogo estava 0 a 0. Eu consegui levar até o finalzinho. Pelé até tentou fazer os dois gols por cima, porque ele gostava muito de jogar por cima do goleiro, quando o goleiro estava adiantado e, quando acabou o jogo, eu tive também o prazer do Pelé vir falar comigo e me elogiar muito, me incentivar, de me dizer que eu tinha futuro, que tinha achado muito bom eu ter

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entrado no jogo e tal. Então aquilo ali também me deu uma injeção de ânimo muito grande.

B.H – E aí, pouco a pouco, então, o senhor se afirmou no Flamengo, como foi esse momento?

R.V – Não, não. Essa afirmação no Flamengo, ela demorou muito até, eu acho. Porque depois ali...

[Interrupção]

R.V – Essa afirmação do Flamengo, até que demorou um pouco. Porque... depois desse jogo, até inclusive, esse jogo foi ao final do ano: dia 19 de dezembro, uma data marcante, de 1964. Aí depois veio outra temporada, aí eu fiquei completamente sem chance no Flamengo. E ficou aquele negócio e tal. Um zagueiro que tinha jogado comigo, o Jordan, ele foi emprestado ao Taubaté, jogar a segunda divisão, e me perguntou se eu queria ir. Eu consegui um empréstimo, eu fui emprestado ao Taubaté, joguei a segunda divisão, um tornei lá em São Paulo e quase que eu desisto de jogar futebol por causa daquilo por que eu pensei: “Se o futebol for isso aqui, eu não quero me meter nisso não”. Foi um campeonato de cartas marcadas em que muita coisa aconteceu de desagradável e eu pensei se o futebol for isso aí, eu não quero não. Tanto que eu fiquei só um ano lá, voltei para o Flamengo, continuei sem chance, aí o meu avô teve um problema de saúde, eu comecei a ajudar no escritório dele e ficou aquele negócio, eu ia treinar de vez em quando, sem contrato. Eu falei: “Eu acho que isso aqui não vai dar certo muito não”. Aí eu também tinha um amigo dentro do Flamengo, um funcionário do Flamengo, gostava muito de mim, e ele sempre falava: “Você não desiste, você vai ter chance ainda, você não pode desistir”. E ele era amigo do pessoal de Três Rios e o Entrerriense4 começou a ter a... Mudou o campeonato. Dividiu o Rio de Janeiro com o Estado do Rio. Eles juntaram, aliás. Era dividido, juntaram. Então, fez um campeonato do Rio de Janeiro. E nesse campeonato, poderiam jogar 5 profissionais. “Para você não ficar parado, joga lá, vai para lá”. Aí eu, todo domingo, jogava também. Domingo de manhã, jogava no time do Entrerriense e assim eu não parei de jogar. Ficando em atividade e tal...

4  O  entrevistado  se  refere  ao  Entrerriense  Futebol  Clube,  time  da  cidade  de  Três  Rios,  município  do  Estado  do  Rio  de  Janeiro,.  

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B.H – Você continuou morando no Rio e ia jogar em...?

R.V – Ia, jogava e voltava.

B.H – Entendi.

R.V – Eu não treinava, trabalhava no escritório com o meu avô. Só ia jogar e voltava. Mas estava sempre em atividade. E depois, terminou 66. Em 67, começo do ano, o Armando Renganeschi5, já tinha trabalhado comigo no Flamengo e esse meu amigo no Flamengo, falou: “Oh, o Renato ele é doFlamengo”. E ele disse: “Não, manda chamar ele de volta”. Aí eu fui lá e conversei com ele: “Não, essa aqui é minha última vez. Se não der certo agora, não quero mais, não vou tentar mais não.” Ele disse: “Não, porque você tem chance. Vou te dar oportunidade”. Aí me deu oportunidade realmente, seu Armando Renganeschi. Eu joguei alguns jogos do torneio... Naquela época virou, parece, o Robertão. Porque tem diversos nomes, era primeiro Rio e São Paulo. Depois virou Roberto Gomes Pedrosa, Robertão e tal. Eu joguei alguns jogos realmente nesse torneio pelo Flamengo, eu estava mais ou menos me firmando e tal. E no final de 67, o Armando também saiu, no começo de 68 entrou Aymoré Moreira6.

B.H – Foi um momento difícil do Flamengo, ali, de desempenho, o time perdia...

R.V – É, não estava? O time não estava muito bom também. Então, tudo isso ajuda, não é? Você, para se firmar, vindo das divisões de base, você precisa ter também que o seu time colabore também, porque a carga aí é menor.

B.H – Era um momento em que o Flamengo tinha aquele dirigente sueco Günnar Goranson..

5  O  entrevistado  se  refere  ao  ex-­‐futebolista  argentino,  Armando  Federico  Renganeschi,  que  em  meados  da  década  de  60  era  técnico  do  Flamengo,    6  O  entrevistado  refere-­‐se  ao  Aymoré  Moreira  técnico  de  futebol  da  seleção  brasileira  bicampeã  em  1962,  foi  técnico  também  do  Flamengo  no  final  da  década  de  60.  

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R.V – Günnar Goranson, eu convivia muito com ele. Uma pessoa, assim, extraordinária. Mas adorava o Flamengo, o Flamengo era a paixão dele. Então, foi um grande dirigente do Flamengo. Mas foi uma fase assim, muito difícil, muito complicada, muito difícil. Depois em 68, quando o Aimoré Moreira chegou. Houve diversas contratações e o...

B.H – O Aymoré tinha sido técnico da seleção brasileira, um técnico tarimbado, com experiência...

R.V – Isso, exatamente. Tarimbado e tudo. Mas aí houve diversas modificações, nós fomos fazer, no começo do ano, a pré-temporada fora, um torneio em Campinas e eu joguei o primeiro jogo, quando chegou o segundo jogo, eu tive um desentendimento lá com ele e ali, naquele momento, eu vi: ”Bom, minha fase de Flamengo, aqui, terminou.Não quero mais ficar e tal”. E, por coincidência, tinha vindo fazer o jogo em Uberlândia, um jogo amistoso em Uberlândia e um dirigente do Uberlândia, o seu Sebastião Gonçalves, que era o filhinho da feira dos presentes, pessoa assim, queridíssima. Ele... a hora que terminou o jogo, ele foi no vestiário e falou para mim: “Não, o senhor tem que vir para cá, o seu lugar é aqui em Uberlândia”. “O seu lugar é aqui, o seu lugar é aqui”. Eu falei: “Não, agora eu estou tendo chance” e tal. “Vamos adiar isso aí um pouquinho”. E exatamente quando eu tive essa desavença no Rio, ele me ligou e falou assim: “Agora, está na hora de você vir para cá”. Eu disse: “Bom, eu já fui emprestado três vezes pelo Flamengo. Eu não quero ser mais emprestado. Se vocês vierem aqui e comprarem o meu passe, eu posso ir para aí.” E aí, fizeram. Vieram e compraram o passe no Rio de Janeiro e eu fui para Uberlândia, não é? E no Uberlândia, eu fiz três campeonatos mineiros e me saí muito bem e o Atlético me contratou. Depois aí a minha carreira, eu digo que realmente Uberlândia foi assim a... Uberlândia me apresentou para Minas Gerais. Eu fui para o Atlético, o Atlético me apresentou para o Brasil. E eu voltei para o Flamengo, o Flamengo me apresentou para o mundo, foi quando eu tive a oportunidade de ir a seleção brasileira. Foram etapas da minha vida que eu acho que foram muito importantes. Todas essas passagens, tudo isso para mim foi muito importante.

B.H – Então, como se o marco da carreira profissional tivesse sido mesmo quando chega em Minas, em Uberlândia, se estabiliza...

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R.V – Eu acho que aqui realmente alavancou a coisa. Porque eu tive oportunidade aqui, nós em três temporadas, nós modificamos muito pouco o elenco. Então, apesar de que, em 1968, em 1969 que tinha aqui a tabela dirigida, que era... Os times da capital, não iam ao interior jogar. Nós fazíamos praticamente uma excursão de 15 dias. Você jogava com o América, em uma quarta; Atlético, domingo; Cruzeiro na outra quarta. E ainda o juiz prejudicando esse time do interior, tudo. Nós conseguimos fazer três campanhas muito boas. E, em 70, quando terminou a tabela dirigida, que começou a ser um campeonato normal, em que os times vinham ao interior jogar normalmente, em casa e fora de casa, aí nesse ano, nós conseguimos ser campeão do interior. Inclusive, chegamos em terceiro lugar, na frente do América ainda. Então, foi aí que despertou o interesse do Atlético. O nosso time também foi muito bem, então tudo isso ajuda que o goleiro também vá bem, não é?

B.H – Renato, você já disse em uma oportunidade que posição de goleiro não tem segredo. Ela depende do treino. E você foi um jogador bastante dedicado, se aplicava nos treinos. Mas se você tivesse que definir o seu estilo ou encontrar uma maneira de ser como goleiro. Você poderia nos contar um pouco que características você vê, via na sua posição? Você era um goleiro que falava? Que gostava de fazer o elo com o ataque? Como era a sua dinâmica em campo?

R.V – Bom, dentro do campo, eu procurava ajudar ao máximo os meus jogadores, reclamar o mínimo possível porque todo mundo erra, a gente vai errar, qualquer um vai errar dentro do campo. Então, você tem que incentivar os seus companheiros. E eu sempre fui um cara muito positivo, muito positivo. Eu jogava o tempo todo falando, orientando, não só depois da jogada, como eu vejo, hoje, muitos goleiros saem reclamando. Não adianta, depois que aconteceu, não adianta. E eu também, eu agia muito diferente, eu falava, se o cara for chutar, o deixa ele chutar então. Não entra na frente que, muitas vezes, atrapalha. Nós levamos gol, às vezes, a bola bate em um fiapo de cabelo da perna do seu companheiro [Riso]. Se você não estiver preparado para o momento do chute, porque o segredo da defesa é o momento do chute, é você vê o momento do chute, se você vê uma bola a partir do momento em que ela já saiu ali, se você não viu, se você não teve, naquele momento, a presença de ver a bola sair do pé do jogador ou da cabeça do jogador, tudo se complica. Tudo fica mais difícil. Então eu falava: “Sai da frente, deixa chutar”. E eu falava muito, eu gritava, eu falava: “Deixa eu participar”. No meu tempo, não tinha esse empurra-empurra, agarra-agarra, essa confusão toda dentro da área. Então tinha, eu falava: “A grande área é minha, a grande área é minha. Se eu gritar, vocês saem da frente, que é trombada na certa. Se eu errar, a responsabilidade é minha.” Mas tudo aqui, eu chamava para mim. Eu digo: “E pode vir, vem ver se eu estou com a bola

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mesmo, porque eu posso soltar”. Então acredita, não fica achando que eu vou segurar a bola. Ah, mas... muitos companheiros falam assim: “Não, mas você segura muito a bola”. Eu falei: “Vai ter uma hora eu não vai segurar”, sabe? Eu acho interessante também que logo quando eu fui ao Atlético, tinha o Julio da torcida...

B.H – Julio?

R.V – Julio.

B.H – Julio, a banda do Julio7, do Atlético!

R.V – Charanga do Julio!

B.H – Charanga do Julio!

R.V – Ele uma vez eu fui conversar com ele, ele falou assim: “Rapaz, você parece eu tem o peito de estopa. Um saco de estopa, que a bola bate em você e fica”. Isso aí eu aprendi jogando na praia, não é? Porque eu pulava um pouquinho mais para pegar a bola na mão na praia, a bola sempre molhada, era muito difícil, com areia também era muito difícil. Então, eu pulava um poquinho mais e pegava a bola no peito. Dificilmente eu vejo jogadores, hoje, goleiros, hoje, fazerem isso. Então, eu procurava sempre também, eu dividia as bolas. Eu ia com a mão em todas as bolas. Eu sempre falava para todo mundo: “A prioridade do goleiro é ele ter a vantagem de sempre usar o mão.” O pé é a alternativa que você vai ter. É outra parte do corpo qualquer. Mas o objetivo sempre é ir com a mão, pegar com a mão porque é sempre mais fácil pegar com a mão. Você tem mais agilidade com a mão do que um jogador com o pé. Então, você tem que estar preparado para

7  O  entrevistado  se  refere  a  charanga  do  Galo,  que  nasceu  de  um  grupo  de  atleticanos  integrantes  de  uma  escola  de  samba  chamada  Surpresa,  no  bairro  Lagoinha.  Eles  resolveram  unir  a  música  e  a  paixão  pelo  Atlético.  Na  década  de  60,  Júlio,  comerciante  da  cidade,  resolveu  patrocinar  a  idéia  e  chamou  Bororó,  um  grande  músico  mineiro  para  comandar  os  músicos.  O  que  era  uma  simples  diversão  virou  coisa  séria  e  se  formou  a  Charanga  do  Galo,  que,  sempre  com  muita  animação,  há  quarenta  anos,  sobe  para  a  arquibancada  aplaudida  e  embalando  a  Massa  Atleticana  com  o  Hino  ao  Clube  Atlético  Mineiro.    Cf.:  http://atletico.com.br/site/camisa12/charanga  

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sempre pegar com a mão. Eu não tinha medo, dividia embaixo, até gostava mesmo, [Riso] quando dava umas divididas embaixo assim... Ficava satisfeito em ganhar do cara,[Riso] o cara com o pé e eu com a mão e tudo. Então, eu joguei assim, no gol por gostar realmente. Daí eu ficava satisfeito jogando. Então, eu acho que tudo isso ajuda muito. Ajuda demais até. E sempre orientando muito, cantando a jogada, falando, incentivando, sabe? Então, eu vejo assim... Eu já estava parando, o meu último jogo profissional, eu estava fora, inclusive, e houve um jogo estrangeiro contra o pessoal dos Emirados Árabes e o João Luis, era o quarto zagueiro – que jogou no América do Rio -, ele jogava lá e foi jogar nessa seleção comigo. Ele quando acabou o jogo, ele falou assim: “Renato, se eu tivesse jogado a minha vida inteira com você, eu seria o maior zagueiro do mundo. É muito fácil jogar com você.” Eu falei: “Por quê? Ele disse assim: “Não, porque você canta tudo, você orienta tudo, você fala tudo durante o jogo.” E era isso que eu fazia. Realmente, você está ali para ajudar. Eu estou de frente para a jogada, eu estou vendo tudo o que pode acontecer. Então como um zagueiro meu vai saber que tem alguém nas costas dele, se eu não falar? Ninguém joga com um retrovisor aqui. Então eu acho que é obrigação do goleiro, ele tem que orientar, em primeiro lugar ele tem que orientar a defesa. Os jogadores deles tem que saber o que está acontecendo. É um para cá, outro para lá. Tanto que quem me dá o maior trabalho era o Tostão. Tostão não parava: Está aqui, está lá, está do outro lado, está aqui. E eu acabava o jogo, realmente, muitas vezes, sem poder nem falar. [Risos]. Pois é, nem dar uma palavrinha, muito obrigado.

B.H – [Risos] Hoje em dia, um ponto importante também para o goleiro é a reposição de bola. Já saber fazer essa conexão entre defesa e ataque de maneira rápida, naquela época, isso já existia? Ou a tarefa do goleiro era fundamentalmente defender, saber ter o seu senso de colocação dependendo se era escanteio, falta indireta ou lance na área? Já tinha esse ponto colocado?

R.V – Não, eu gostava muito. Eu tinha uma boa saída com o pé, com a mão também, e eu também aprendi muito quando o Andrada8 foi ao Rio de Janeiro jogar no Vasco. Ele tinha uma saída com a mão espetacular, com o pé também muito boa. E eu filmava ele, ficava olhando para ver como ele fazia e realmente o movimento dele com a mão era muito mais fácil, eu aprendi a fazer e também você precisa ter no time jogadores estejam habilitados a isso. Na época do Flamengo, eu combinava, tinha o Geraldo e tinha o Zico. Então eu pegava a bola, os dois já se deslocavam e eu podia sair com um ou com outro. Então, isso é uma coisa assim em que você já predetermina. Mas você precisa também ter um 8  O  entrevistado  se  refere  ao  ex-­‐goleiro  argentino  Edgardo  Norberto  Andrada.  Andrada  foi  campeão  brasileiro  com  o  Vasco  da  Gama  em  1974.  Ficou  famoso  por  ter  sofrido  o  milésimo  gol  do  Pelé  durante  a  partida  entre  Vasco  e  Santos  no  Maracanã  em  1969.    

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companheiro que te ajude a fazer isso. Não adianta você ter uma boa saída com o pé ou com a mão, se você não tiver um companheiro que possa aproveitar essa jogada.

B.H – E o entrosamento da equipe.

R.V – E eu batia o tiro de meta no chão também, eu tinha uma precisão boa, eu treinava muito. Então, eu fazia isso, mas isso é uma coisa em que você tem eu combinar, não é? Tem que ser combinado para poder dar certo.

B.H – Renato, falando com esse interesse em Copas do Mundo, a gente está acompanhando uma a uma... Em 66, você lembra de algo? Copa da Inglaterra.

R.V – A de 66 foi, assim, não teve muito interesse a Copa, não. Porque ela já começou muito... Para mim, pelo menos, ela começou a ser muito confusa. Aquele negócio de você convocar 44 jogadores. O corte de uma seleção é uma coisa muito doída. E eu vi de perto porque, eu vi o Carbone era o meu companheiro de quarto. E o corte dele foi uma coisa assim, é como se cortassem na carne mesmo. Sabe uma coisa assim... sentida demais. Então é difícil quando você pega um grupo em que você tem que selecionar, dizer assim: “Esses vão e esses aqui não vão”. Esse momento é um momento dolorido demais, demais. E depois na Copa do Mundo também, quando houve o corte lá do... já nas vésperas da inscrição em que foi cortado o Wendel por causa do problema no joelho que ele teve. E o Clodoaldo que fez um teste lá e no teste, ele voltou a sentir a contusão e tudo, então aquilo foi muito doído. Só que para os dois, assim, amenizou um pouquinho porque eles ficaram lá conosco, eles já estavam lá... Então eles ficaram juntos conosco. Então, a gente pode dar um apoio grande a ele, mas esse corte que é feito ainda no Brasil, ele é muito complicado, é um momento muito triste.

B.H – Então, da Copa de 66, você não tem muitas lembranças?

R.V – Não, não tenho.

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B.H – Dos jogos, da reação à derrota? Porque o Brasil era bicampeão, acreditava-se que seria tricampeão. Lembranças...

Brasil R.V – Não me lembro do por que eu não tive muito interesse, não. Mas não foi muito interesse não. Talvez até eu não tenha acreditado muito na escalação e eu ainda tinha certa restrição pelo Aymoré, que era o treinador. E depois eu tive oportunidade dele ser o meu treinador de novo, no Bahia, e aí nós acertamos os ponteiros todos. Ele foi uma pessoa espetacular, maravilhosa. São coisas que a gente... eu tive essas oportunidades de consertar algumas coisas. Ali foi um momento muito jovem ainda que eu tive uma atitude e depois eu pude reparar isso. Aconteceu com ele, aconteceu depois com o Carlos Fromer, no Flamengo, que foi para o Bahia também e me deu essa chance da gente acertar ponteiros também. Mas tudo é muito importante. Por que a nossa vida é uma escola. É de lição em lição, você vai aprendendo, vai se ajustando as coisas.

B.H – E a Copa de 70?

R.V – A de 70, eu já estava em Uberlândia e essa eu acompanhei bastante. Essa eu acompanhei de perto todos os jogos e todas as vitórias. A gente saia para a rua , a gente fazia carreata e esse daí eu realmente vivi. Eu vivi a Copa bem intensamente porque eu já estava dentro do futebol e eu já tinha objetivos. Uma hora, eu vou chegar lá. Eu vou chegar. Eu vou chegar. Eu quero chegar. Então, eu já vi a Copa com outro interesse. Aí eu já reparei muito no futebol em si, nos goleiros e sofri muito pelo Felix. Todo mundo falava do Felix. E o Felix foi importantíssimo naquela Copa. Ele teve participação importantíssima, em momentos importantes do jogo. Porque, às vezes, uma defesa que você faz durante o jogo, ela vale pelo jogo inteiro. Ela vale pelo jogo inteiro. E, às vezes, ela passa e ninguém lembra dela. Então, eu fiquei assim... Falei assim: “Puxa vida, os caras não reconhecem que o Felix foi um grande goleiro”. E na minha época, também tinha isso: “Ah! O goleiro brasileiro não sabe sair do gol, o goleiro brasileiro é isso, é aquilo. Só o estrangeiro é que vale”. Então, ainda tinha essa carga contrária aí, e você tinha que mostrar mais ainda do que você, às vezes, até poderia para poder satisfazer algumas pessoas, alguns entendidos aí.

B.H – A Copa de 70, teve a cobertura da televisão de uma maneira muito mais intensa do que a anterior.

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R.V – Ah, foi, foram todos os jogos. E em outros jogos até em que o Brasil não estava envolvido. A participação assim, já foi bem maior.

B.H – Talvez por isso, a própria lembrança seja maior dessa Copa...

R.V – Também. Exatamente, também tem isso. De ter visto outros jogos e tudo. É tudo isso.

B.H – Então, em 70, você já era o goleiro do Atlético Mineiro?

R.V – Não, 70, na Copa, eu jogava no Uberlândia.

B.H – Uberlândia. Aí foi na sequência...

R.V – Final do ano.

B.H – Final do ano.

R.V – Final do campeonato mineiro, em setembro, é que aí eu fui para o Atlético.

B.H - E foi um momento de mudança da estrutura do futebol brasileiro com a criação do campeonato brasileiro, em 71.

R.V – É, 71.

B.H – Você entra nesse momento em que o próprio campeonato está se reestruturando.

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R.V – Eu entrei... O primeiro campeonato que eu disputei pelo Atlético foi a Taça de Prata, que o Fluminense ganhou, em 70. Nós já chegamos quase a finais lá e tudo. Mas aí já era um campeonato bem... Brasil inteiro, não é? Aí, em 71, mudou o nome para Campeonato Brasileiro, aí sim, que nós fomos campeões. Mas ali já estava aparecendo... o meu nome começou a aparecer para a seleção. Já havia alguns comentários e tudo. Aí eu comecei a focar mais ainda. Esse objetivo, que era o grande objetivo, que eu acho que deve ser o grande objetivo de todo jogador, jogar na seleção do seu país. O grande objetivo.

B.H – E, no seu caso, quer dizer, o Atlético Mineiro, era o Atlético dirigido pelo Telê Santana e que tinha um atacante de bastante destaque, que era o Dadá Maravilha.

R.V –Isso, que era o nosso grande artilheiro.

B.H – Como era...? O que você lembra daquele time, como é que era a relação entre os jogadores, o Atlético Mineiro campeão Brasileiro pela primeira vez em 1971. Que lembranças você guarda dessa fase do Atlético?

R.V – Olha, ali, foi... Nós jogamos o campeonato Mineiro, em 71. Nós não ganhamos o campeonato, foi o América que venceu. E a partir daquele momento, o nosso grupo era um grupo muito unido, nós éramos muito amigos. Todos amigos. Não havia aquele negócio de um querer jogar e o outro não querer. E o Telê, um grande comandante. E o Odair, um grande capitão. Isso aí, eu acho importantíssimo. Esse capitão – que ele que comanda realmente o grupo – o treinador ele vai comandar o grupo e vai dar orientações táticas e técnicas, essas coisas... Treinamento e tal. Mas, ali, o grupo tem que estar na mão de alguém ali que seja respeitado. Então esse grande capitão que é muito importante em qualquer equipe. E nós éramos muito amigos e a gente aceitava tudo. A gente acreditavamuito no treinador, também. O que o Telê falava... Ele era um cara muito disciplinador, rígido, mas muito honesto, sincero também. Ele era uma pessoa espetacular e nós fizemos uma pré-temporada – naquela época tinha tempo de fazer pré-temporada para o campeonato -, nós ficamos 15 dias em Poços de Caldas só treinando, só treinando. E aquilo ajudou a união do grupo também, foi o grupo inteiro, o grupo inteiro. Então, aquilo ajudou muito também na união e nós firmamos na cabeça, e ele falava sempre : “Esse time tem condição de ser campeão. Vocês têm que botar na cabeça que vocês podem ser campeões. O que nós vamos fazer? No Mineirão, não vamos perder ponto.

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Caiu no Mineirão, seja quem quer que for, nós temos que ganhar. Fora, belisca um pontinho aqui, belisca outro ali. Mas dentro do Mineirão, a gente tem que ganhar. E, naquela época, a gente tinha uma torcida, não é? Que era a Charanga do Julio, e o tempo todo... E a gente tinha informação, dos outros companheiros – dos adversários- que falavam: [Inaudível] “é ruim demais, aquela torcida não para: galo, galo, aquele troço, aquilo perturba a gente”. Então, a gente usava isso. Como eles tentavam usar também, dizer: “Oh, se o galo não fizer o golem 15min também, a torcida volta contra”. Mas não era assim não, a torcida não voltava contra não. [Risos]. Eles achavam que voltava contra, mas não voltava não. Aí que ela insistia mais ainda. Então, tudo isso foi um conjunto de coisas. E o nosso time também tinha bons reservas, que não faziam com que o time caísse em qualidade. Tudo isso aí. A gente jogava também muito em função do Dario. Eu acho isso muito importante também. O jogador tem que ter essa humildade, essa simplicidade. A gente sabia que... O Dario fala: “Eu sou o cara... Eu sei fazer gol! O resto eu não sei fazer. Eu não fui um jogador de futebol, eu fui um goleador”. Então ele mesmo reconhecia isso. Então, nós jogávamos em função dele. Dar a bola ao Dadá, oDadá resolve. E isso que a gente fazia. Então eu acho que o grande sucesso daquele time foi isso: A grande união e a gente acreditar o tempo todo que a gente poderia chegar lá.

B.H – Ir revertendo até a hegemonia que o Cruzeiro tinha adquirido antes.

R.V – Exatamente. Se você pegasse o elenco do Cruzeiro, jogador por jogador, você poderia dizer assim: “Bom, eu tenho jogador de mais qualidades”. Mas nós enfrentávamos ele era melhor ainda.

B.H – [Riso] Renato, você já disse, em uma oportunidade, que você não vê a posição do goleiro, como uma posição solitária. Você não se sente só ali, com todos os atacantes do outro lado e você ali. É isso mesmo? A posição do goleiro não é solitária?

R.V – Não, não. Eu estava participando com os meus companheiros lá. Nunca me senti abandonado lá, assim.

B.H – Tem um momento em que... Hoje até os goleiros vão para o ataque. Tem o Rogério Ceni que chuta. Naquele momento, era um momento em que as posiçõeseram mais fixas,

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quaisquer que fossem as posições. O goleiro costumava não sair da grande área, por isso que se diz que o goleiro era solitário. Mas esse não era o seu sentimento?

R.V – Não, nunca me senti assim, não. Nunca. Eu participava tanto do jogo, estava tão concentrado no jogo. Eu acho interessante... Meu pai e minha mãe, eles iam ao jogo, ficavam sempre no mesmo lugar, na cadeira no Maracanã e ele virava para mim e falava assim: “Olha, na hora que você entrar, vai lá e dar um tchauzinho”. Eu não lembrava. [Riso] Eu entrava em campo tão concentrado.Muitas vezes, eu não olhava nem para cima para ver a torcida. Eu sabia que tinha muita gente, por causa do barulho e tal, mas se perguntassem: “Você viu a torcida? Viu a bandeira? Viu isso?” Não, não vi. Eu estava tão concentrado no jogo, porque aquilo ali era muito importante para mim. Era tudo para mim, eu entrava dentro do campo, eu esquecia tudo. Não me lembrava de nada. Era o jogo, somente o jogo que me interessava. Então, não tinha solidão nenhuma, estava bem presente, bem junto ali com todo mundo.

B.H – Então Renato, falando do Maracanã, conta essa mudança: A saída do Atlético e a entrada, pela segunda vez, no Flamengo. Como foi esse novo momento, anos 70? Jogar no Flamengo, que via nascer futuros ídolos como, Zico... Conta um pouquinho das suas lembranças dessa segunda fase no Flamengo.

R.V – Essa volta ao Flamengo também foi um sonho. Eu tive esse sonho de jogar no Flamengo e foi em uma época muito boa. Eu voltei para o Rio de Janeiro, de novo, tinha casado há pouco tempo também. Então, foi assim uma coisa muito boa. O treinador era o Zagallo, tinha sido tricampeão do mundo e o time também estava muito bem e foi quando começaram a surgir também aqueles outros jogadores, mais novos: o Zico, o Geraldo, o Junior – que surgiu também naquela época -. Então, foram mesclando jogadores mais antigos com jogadores mais novos chegando, e nós conseguimos, realmente, fazer um belo campeonato. Foi um momento muito bom. Eu lamentei muito ter saído do Atlético, era um ambiente maravilhoso, eu gostaria de ter jogado mais no Atlético, mas também foi um momento certinho, eu fui dois anos antes da Copa, aí eu pude estar junto com o treinador da seleção e eu acho que por isso também que ele deu essa preferência também.

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B.H – Então, a convocação para a seleção Brasileira, para você foi uma surpresa, foi algo esperado, foi um processo natural? Como é que você viu, em 1973, ser convocado para a seleção?

R.V – Bom, era uma coisa em que eu achava que era possível. Eu não tinha aquele negócio de ficar esperando, não. Ou ficava ouvindo rádio para ver se eu fui convocado ou não. Por que o meu nome já tinha sido ventilado em 71, parece. Em 72 teve aquela Copa da Independência, não foi? E eu já tinha falado também, já poderia ter sido convocado. E eu estou ali, estou à disposição. Mas não vou ficar esperando não. Não vou ficar ouvindo para saber quem foi convocado ou não. Tanto que quando eu fui convocado realmente, quem falou foi minha mãe: “Uma amiga minha me ligou e falou que ouviu no rádio que você foi convocado.”. Eu nem sabia, aí que eu fui tomar conhecimento que eu tinha sido convocado para a excursão de 73. Mas era uma coisa que era esperada. Não que eu ficasse ansioso por aquilo, “ah, tem que ser agora”. Não. Era uma coisa que eu queria, que eu tinha vontade, era o sonho mesmo . Então, naquele momento, confirmando meu nome lá. Bom, o começo desse sonho, ir para a seleção brasileira, está começando. Começo do sonho.

B.H – Mas você tinha no seu horizonte com quem você disputava posição de selecionado. Por exemplo, no caso da Copa do Mundo de 70, havia três goleiros. Pela primeira vez os goleiros passam a ser três, não em dois: o Felix, já em fim de carreira; o Leão e o Ado, que era do Corinthians. Você imaginava que estava disputando com o Leão e com o Ado? Ou havia outras possibilidades, isso não tinha esse nível de consciência em que você ficava ali pensando?

R.V – Nesse momento, eu pensava só em mim. “Bom, eu tenho capacidade”. Agora, é uma escolha do treinador, são três. Três que vão. Então, vai depender muito do treinador me escolher ou não. “Que eu estou preparado, eu estou.” “Eu estou preparado, sei que sou capaz”. Tenho certeza absoluta que se eu fosse titular na Copa de 74, eu poderia fazer uma boa figura. O Leão fez uma boa figura. Foi muito bem na Copa também. E eu digo, com toda certeza, seria capaz de também ter boas atuações. Eu estava preparado para isso. Agora, é uma escolha. Então... Então tem que me conformar em não jogar. Mas a minha participação lá já me deu uma satisfação muito grande.

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B.H – Que lembranças você guarda dos jogos, do momento da preparação... Você tem essas cenas ainda vivas na sua cabeça? De como era a concentração, as cidades em que vocês estiveram durante os jogos? Como é que foi viver esse ambiente de Copa do Mundo, no caso, em 72, havia tido as olimpíadas de Munique, pela primeira vez, um problema associado as questões mais amplas, com o sequestro da delegação de Israel, isso gerou um mal estar em relação a esses grandes eventos. Teve isso também na Alemanha? Ou era algo que não passava pelo Brasil? Enfim, o que você lembra daquela época?

R.V – Eu vou começar aqui bem do começo. A nossa concentração no Rio foi no Retiro dos Padres. Eu acho que houve muita rigidez, nós ficamos muito isolados realmente. Lá no Retiro do Padre era quarto de um só. Então, cada um ficava sozinho no quarto e muita rigidez. Era tudo muito fechado. Sabe? A gente muito preso, muita concentração, muita rigidez, com tudo. Para sair tinha hora, tal, tal. Então, eu acho que ficou um ambiente muito pesado, muito pesado. E depois quando nós fomos para fora, nós fomos também um mês e meio antes, mais ou menos, para Alemanha, aí nós fomos para a Floresta Negra também. Um lugar totalmente isolado. Era muito bonito, mas muito isolado também. E lá a segurança também, por motivos óbvios, a segurança também muito rígida. Então, era tudo muito fechado. Os hotéis onde nós ficávamos eram todos cheios de madeira, ninguém via nada do lado de fora, não podia sair. Então, eu acho que houve... E a gente via outras seleções, por exemplo, a seleção da Holanda, os caras na piscina, com família e a gente lá com aquele troço, com aquela rigidez toda. Então, eu acho que o ambiente ficou muito pesado. Tudo isso também foi prejudicial porque você chega na hora do jogo, você está cheio de carga. Eu acho eu o jogador tem que ficar um pouco mais livre, mais à vontade. Então, eu acho que ali houve muito erro, na preparação. Muito erro na preparação.

B.H – Curioso, que essa observação do senhor em relação a rigidez na época... Nós vivíamos também no período em que os militares estavam no poder. O senhor falou que o seu pai era militar. Havia alguma influência, se é que a gente pode dizer, já se cogitou em relação a 70 que Médici, de alguma maneira, se valeu da Copa para promover o Regime? Havia um ambiente que refletia um pouco a atmosfera política? Você sentia isso ou eram coisas que não...?

R.V –Em termos de atmosfera política, não. Mas havia... Engraçado que o jogador quando vai para seleção, ele é convocado pelo o que ele produz no clube e pelo jeito que

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ele produz no clube. Então, eles fizeram partilha lá da CBD9, na época, que todo jogador deveria ter barba, cabelo, não podia andar de chinelo. Então, descaracterizava muita gente. São umas coisas assim pequenininhas, que isso aí... E aí a gente via outras seleções lá completamente à vontade. Nós víamos fotografia de jogador lá na concentração completamente à vontade e nós tínhamos aquela coisa toda. E tinha uma comissão técnica também em que diversos eram militares. Eu estava acostumado, filho de militar, eu também tinha passado pelo Colégio Militar, então aquilo não me assustava. Eu sempre fui muito disciplinado, muito rígido com horário, com as coisas, com as coisas minhas e tudo. Mas eu sentia que tinha muita gente lá que não estava à vontade. E o jogador precisa estar à vontade para poder render bem. Porque futebol é uma arte. Matemática você tem números e número não tem jeito, é aquele acabou e pronto. Agora, futebol é uma arte. Você tem que estar tranquilo para poder resolver a coisa, desenvolver aquilo ali. Então, eu achei muito pesado. O próprio ambiente lá, entre os jogadores, também não estava muito bom. Não havia um companheirismo muito grande, uma ajuda muito grande de todos e tal, infelizmente, sabe? Porque eu acho que para uma equipe ser vencedora tem que haver esse pensamento de grupo.

[FINAL DO ARQUIVO I]

R.V – Mas parece que agora, de novo, está tendo um campeonato lá no Rio.

B.H – Ah, está?

R.V – É. Eles inventaram lá aquele futebol lá...

B.H – O Beach Soccer? É.

R.V – É, o Beach Soccer. Aquilo é enjoado! Nossa senhora! É só o goleiro [inaudível] não sabe nada...

9  Confederação  Brasileira  de  Desportos.  Atualmente  nomeada  como  Confederação  Brasileira  de  Futebol  (CBF).  

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B.H – [Riso] Fazendo tabelinha com a placa.

R.V – Não.

B.H – Bom, falávamos, então, da Copa de 74, do relacionamento interno entre os jogadores.

R.V – Não havia... Não eu houvesse briga. Mas não havia aquela integração também de todo mundo. Ficou, assim, meio estranho. Ficou, mais ou menos, dividido os que tinham ido a Copa anterior, tinham sido campeões e os que não tinham. Então, não houve... Realmente não houve uma integração de todo mundo e depois não se achou, o também. Eu acho também que nós não achamos uma equipe definida. Como era a de 70. A de 70 pouquíssimo mudou. Mudou uma ou outra peça por causa de machucado, alguma outra coisa. Então, eu acho que faltou isso também.

B.H- Especula-se que teve desentendimentos em que os jogadores foram as vias de fato, depois da derrota contra a Holanda. Isso aconteceu? Como isso chegou para você?

R.V – Não, depois da Holanda não. O que houve de mais grave, de mais sério, foi no final da disputa de bronze, que foi contra a Polônia, terceiro lugar. Houve algum desentendimento entre o Leão e o Marinho Chagas. Mas eu estava perto lá, e eu não vi agressão, de mão um com o outro, eu não vi. Eu vi um falando um com o outro, o Leão reclamando que não tinha se posicionado direito. Inclusive, eu conversava muito com o Marinho, eu tive oportunidade de ficar com ele no quarto em [inaudível], eu falei com ele: “Marinho, você é um cara eu chuta bem, você vai bem à frente, às vezes, você só não tem uma cobertura boa, porque para você ir à frente você tem que ter cobertura também. Se não, fica um buraco lá atrás. E você, se você chegar lá na frente, você não pode tabelar com ninguém, porque se houver um erro na tabela, ficou tudo para trás. Mas você tem que definir a jogada. Ou você vai para o fundo e cruza ou você bota a bola no seu pé direito e chuta, porque aí define a jogada”. Eu comentava muito isso com ele. “E funciona de zagueiro, marcar primeiro. Você não pode abandonar largar por conta dos outros não, porque uma hora acontece coisa errada e tal”. Mas ele é muito voluntarioso, ele tinha, ele tinha muita habilidade, chutava muito bem, corria muito, tinha o fôlego muito bom também. Mas aí aconteceu isso. Mas o que eu acho que naquela jogada ali que

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foi fundamental para ter acontecido aquele erro ali foi que, no momento em que o Lato, ponta-direita, foi lançado, o bandeira que estava ali, naquele lado, o Alfredo, que era o quarto zagueiro naquele dia, estava um pouquinho longe dele, o Alfredo quando iniciou a corrida, o bandeira fez um movimento com a bandeira que se fosse levantar e dar um impedimento. E nessa hora o Alfredo deu uma paradinha. Nessa paradinha aí é que o Lato não estava vendo nada daquilo acontecer, já partiu. Ele realmente corria muito, talvez, se os dois saíssem juntos, até o Alfredo não conseguisse pegar, mas, naquela fraçãozinha de segundo houve uma hesitação do Alfredo para fazer aquela cobertura ali e o Lato foi feliz, foi lá e fez o gol. Alguma coisa, mais ou menos, prevista ali. Nós já tínhamos mencionado que eles tinham aquela jogada, que era uma coisa que eles usavam durante o jogo. Mas são coisas que acontecem no Futebol, é isso aí, Sabendo fazer o gol lá, é gol.

B.H – Além do Marinho Chagas, você dividiu quarto com quem?

R.V – Mais com... Foi mais com o Jovelino.

B.H – E isso era uma escolha da CBD ou vocês, jogadores, decidiam?

R.V – Não. Era, mais ou menos, combinado. Porque tinha jogadores de clubes que tinham se acostumado a ficar juntos. Então, era mais ou menos, assim combinado. Eu deixei à vontade, aí depois no final, saiu lá com o Jovelino. Muito bom trabalhar com ele, ótimo companheiro de quarto.

B.H – Você seguia essa divisão de quartos dos jogadores que tinham participado de 70 e dos que estavam chegando?

R.V – Não, isso aí, não.

B.H – Vocês se misturavam...

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R.V – É. Misturavam-nos.

B.H – E essa rigidez em relação a concentração, fazia com que alguns jogadores um pouco mais rebeldes, quisessem sair assim mesmo... Tiveram problemas de comportamento, como acontecia em 54? Que costumava acontecer.

R.V – Ah, eu dei uma escapulida. [Risos]. Eu dei umas escapulidas, eu acho que isso daí tem que ser bem repensado porque não dessa maneira que as coisas funcionam. Eu acho que a pessoa tem que estar se sentindo bem, feliz, tranquila. Eu acho que esse é um momento muito importante e a pessoa tem que saber valorizar aquilo ali. Então eu tenho que ter a responsabilidade de não exagerar, entendeu? O Telê foi uma pessoa muito inteligente, ele foi o primeiro treinador que eu vi, depois do jogo, ir jantar, ele mandava servir cerveja. Mas era contado. Ele perguntava: “Quem quer cerveja?” Aí, por exemplo, eram 10, ele pegava cinco cervejas, colocava lá. [Inaudível] Ele falava assim: “Não aqui já saciou um pouquinho a vontade, também não vai querer sair para beber mais não”. Então, eu acho que tem eu ter esse tipo assim, de cabeça aberta, não é? Para também o treinador não chegar e “Ih!! Não pode isso, não pode aquilo”. O tal do “não pode” é muito perigoso. Às vezes, isso gera certa revolta e depois já são todos homens barbados, não precisam ficar tão vigiados assim. Eu acho que cada um tem que saber das suas responsabilidades, tem que a coisa funcionar dessa maneira. Cada um se vigiando e procurando ajudar o companheiro também. Porque, às vezes, o companheiro está um pouquinho mais irritado com alguma coisa. Eu acho que aí é estar no grupo, o objetivo é um só e vai sobressair aquele que é melhor mesmo, não tem jeito, mas com a ajuda do grupo. Vão jogar 11 dentro do campo, não é? Tem que ter os 11 lá. Você perde um jogador expulso, a coisa fica mais difícil. Então, para esse se sobressair, ele tem que ter os outros 10 ajudando ele também. Então, em um dia é ele. No outro dia, pode ser outro. Não pode haver esse tipo de inveja, de picuinha, esse tipo de coisas assim. Tem que ser um objetivo só. Objetivo comum.

B.H – Renato, você falou da relação dos jogadores entre si e como foi a relação com o Zagallo, como treinador, nessa Copa de 74?

R.V – Olha, eu fui na preleção do primeiro jogo, eu fui. Ele gostava muito de mim, eu fui. Aí eu vi umas coisas que eu não gostei muito e aí depois eu não fui mais. Então, como eu não quis interferir ou falar alguma coisa, aí eu senti que realmente não havia

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sentido de grupo. Muita gente muito preocupada em cada um. Porque era um momento de muita gente pensando em ir jogar no futebol da Europa, que ainda não tinha essa saída fácil dos jogadores, esse interesse também muito grande. Essa amostragem grande que existe hoje, a Copa do Mundo era uma amostragem muito maior. Então, normalmente, o jogador saía depois de uma Copa do Mundo. Tinha participado da Copa, então... Aí saía. Então, eu acho que houve um pouquinho disso aí. Pouco de pensamento individual.

B.H – Renato, você falou eu futebol é uma arte. Não dá para medir com números e mensurações. Na Copa de 74, quem apareceu para o mundo não foi a arte do futebol brasileiro, mas um novo formato de atuar conjuntamente, que foi o [inaudível] holandês. Para você, pessoalmente, foi uma surpresa? Como você viu a seleção da Holanda e a Copa de 74 foi um local para você observar os goleiros das outras equipes? Observar a sua própria atuação a partir dessa sua atuação internacional. Como foi a Holanda nessa Copa que é tão falada? Como você vê essa equipe?

R.V – Assim, surpreender, não surpreendeu não. Por que a Holanda jogava futebol de conjunto. A seleção da Holanda foi quase que um time só. Então, os jogadores já estavam acostumados a jogar. E eles tinham aquele negócio da defesa sair, para deixar impedimento. Aquilo é alguma coisa que você tinha que ver e perceber aquilo. [Percebeu]. O jogador tem que ter a decisão dele dentro do campo também. Ele tem que ver o que está acontecendo dentro do campo para ver a melhor maneira de jogar. Por onde que é melhor jogar, o que é melhor para fazer, essas decisões é o jogador que tem que tomar dentro de campo, Não é o treinador do lado de fora que vai orientar isso. Ele orienta no geral, mas dentro campo, na hora ali, é a visão do jogador. Então, eu acho que faltou um pouquinho disso aí. Eu já tinha visto o time da Holanda jogar [inaudível] e a nós víamos, eles fazem isso, eles saem todos, eles não guardam posição. Porque para eles é muito fácil fazer isso. O nosso futebol, brasileiro, naquela época, estava muito rígido. O jogador falava assim: “Não, a minha característica é jogar mais atrás um pouquinho, só pelo lado esquerdo”. Então o cara se contentava com aquele pedacinho de campo. “Não, aqui é o lugar onde eu sei jogar, onde eu quero jogar.” Quando não é isso. O jogador pode flutuar o campo inteiro. Eu acho que quem se coloca melhor dentro do campo, ocupa melhor os espaços do campo, tem vantagem. Pode não ser um time de jogadores de muitas qualidades, mas se você ocupou bem ali, você impede do outro time jogar. Então é isso que tem que ser feito: Ocupar bem os espaços. Não vou dizer “eu só jogo aqui”, “eu só jogo ali”. Então, o futebol brasileiro ficou meio rotulado com isso aí. E meio travado nesse negócio da característica”. Não, a minha característica é essa”. Aí o pessoal ficou um pouco assustado. O pessoal da Holanda jogava em tudo quanto era posição. Defendiam, atacavam. Era um momento ali. Eu vou fazer o quê? A hora de defender,

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vamos defender. É hora de atacar, vamos atacar. E todo mundo fazia isso. Mas no próprio jogo contra a Holanda mesmo, na hora que os times entraram, eu senti que o time da Holanda estava muito preocupado. Eles olhavam assim meio... Tinham uns que nem olhavam... O banco ficou muito perto um do outro, os caras nem olhavam para a gente. Estavam com um respeito muito grande. Tanto que no primeiro tempo, nós tivemos chances de ganhar o jogo. Em duas oportunidades de fazer o gol, não fizemos. Aí quando voltou do segundo tempo, aí bom, “os caras lá não estão com essa bola toda, não, então, nós vamos começar a impor.”. Aí nós tivemos problemas do Luís Pereira ser expulso também. Aí ficou mais difícil.

B.H – E goleiros, nessa Copa, você observou algum? Em termos internacionais, você tinha alguma referência que era valiosa para você? Depois você até passou a ser chamado, salvo engano do Flamengo, de Aranha Negra. Que goleiros eram modelos para você ou te encantavam?

R.V – Ali, naquela Copa, eu vi alguns jogos também, nós chegamos antes na Alemanha, não é? Eu vi o finalzinho do campeonato alemão também. Eu vi o Sepp Maier jogando. Nossa! Um goleiro extraordinário. Também com uma mão daquele tamanho! [Risos]. Ele saía muito bem do gol. Mas o futebol alemão, naquela época, era, assim, muito programado. Chega à ponta [calça] a bola. Era mais fácil de armar até. Os cruzamentos eram com a bola mais lenta e tudo. Eu vi jogar na Copa Tomas Edson também, excelente goleiro. Tinha outro, que eu não estou lembrando quem é. Agora eu não estou lembrado quem é. Tinha outro bom goleiro lá. Mais assim foi o Sepp Maier. Sepp Maier foi quem me chamou mais atenção naquela Copa. O Dino Zoff é um goleiro muito difícil de fazer gol nele, mas não tem muita técnica. Segurar uma bola... Eu achava que ele não tinha muita técnica, mas era muito difícil fazer gol nele. Difícil demais fazer gol nele.

B.H – Então, Renato, você foi reserva... Você era o primeiro reserva?

R.V – Primeiro reserva do Leão. Eu fiquei no banco em todos os jogos

B.H – Você ficou no banco em todos os jogos. E havia aquela expectativa, por alguma circunstância, você poder entrar em campo? Tinha essa ansiedade ou você achava que era muito pouco provável entrar em campo?

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R.V – Não, primeiro eu achava pouco provável Não tinha essa ansiedade de querer entrar, não. Porque para eu entrar, tinha que haver o prejuízo de alguém, teria eu acontecer alguma coisa ali com o Leão. Isso daí eu nunca pensei. Nada. Ele machucar ou ele jogar mal, alguma coisa assim. De maneira nenhuma, não tinha esse pensamento. Eu pensava em mim, só. Se eu estivesse lá, eu seria capaz. Ele pegava uma bola, eu falava assim: “Essa bola eu pegava também.” “Essa daí foi difícil”. “Essa foi fácil”. Eu teria feito isso, eu teria feito aquilo. Mas pensar que eu pudesse entrar, não. Eu até, quando eu não entrava, preferia até não entrar, porque eu não estava acostumada a entrar durante o jogo. É muito diferente: Uma coisa é você entrar no campo e crescer com o jogo. Outra – principalmente goleiro – é você entrar no meio daquilo ali em que já está tudo acontecendo, você entrar completamente frio. É muito difícil. Então, eu preferia que nada acontecesse para eu não entrar. Se fosse o caso, no outro jogo, aí era diferente. Eu começar a jogar.

B.H – A sua relação tanto com o Leão quanto com o Valdir Peres era boa?

R.V – Eu treinava mais junto com o Valdir Peres porque o Leão ficava mais com o Carlesso. Ele treinava mais sozinho com o Carlesso para ser mais exigido. E eu treinada junto com o Valdir. Mas a minha relação com todos eles, era muito boa. Tanto com Wendel que ficou lá e tudo, a minha geração, sempre me dei muito bem com todo mundo, vai ser difícil achar alguém reclamar alguma coisa de mim. Todo mundo queria ficar no quarto comigo, porque era bom de cama, não é? Porque eu dormia com a televisão ligada, com gente conversando, luz ligada, eu falava: “A única coisa que vocês não podem fazer, pelo amor de deus, apagar a luz e ascender a luz na minha cara”. Deixa acesa, eu durmo acesa. A hora que você chegar, você apaga a luz e pronto. Não tem problema [Risos]. Aí eles [encarnam]: “Esse aí é bom ficar no quarto com o Renato”.

B.H – Renato, vamos jogo a jogo. A primeira fase contra a Iugoslávia, você lembra de um fato que tenha ficado na sua lembrança?

R.V – Esse foi um fato marcante mesmo. Primeiro foi a abertura da Copa, muito importante a abertura da Copa e de vivenciar aquilo ali pela primeira vez e depois no final do jogo, na hora que eu cheguei ao hotel, a minha mulher me ligou e disse que a minha filha tinha nascido. Ali foi um momento maravilhoso, foi uma felicidade muito

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grande. Interessante, foi até Wendel mesmo, que era o goleiro, meu companheiro, ele foi lá, chamou-me quando viu aquela alegria toda, chamou-me na cozinha, aí o Mario tinha um refrigerante. Mario – cozinheiro – tinha um refrigerante, nós fomos lá, abrimos o refrigerante, fizemos um brinde lá. E chegou no dia seguinte, eu li no jornal que tinha nascido, também naquele mesmo dia, a filha do ponta-direita, chamada até Petkoviski, uma menina também. Aí apareceu lá citação disso, não é? Uma menina nasceu 13 de junho de 74.

B.H – Coincidência. [Riso] O jogo foi 0 a 0.

R.V – Foi 0 a 0, isso.

B.H - O goleiro da Iugoslávia se chamava Maric.

R.V – Maric, é.

B.H – E o jogo seguinte contra a Escócia, também no 0 a 0. Esse, você tem alguma lembrança?

R.V – Esse da Escócia, eu não tenho nada que tenha ficado gravado, não.

B.H – Falando em Escócia, em 73, houve o chamado Manifesto de Glasgow.

R.V – Isso.

B.H – Isso você considera que houve uma indisposição da imprensa em relação a você por conta de ter, segundo os jogadores que assinaram esse manifesto, que lideraram esse manifesto, segundo se diz, há um [inaudível] com a imprensa. Foi isso mesmo?

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R.V – Foi o tipo da coisa toda errada. Aquilo foi uma sucessão de erros: Primeiro, tomar aquela atitude. Nós, jogadores, tomamos aquela atitude. Segundo, eu não participei de nada daquilo. Nem na reunião, eu fui. Não fui eu, [Evelino] e Paulo Cesar Caju. Os três não foram naquela reunião em que ficou decidido aquilo lá. Os três não foram naquela reunião, em que ficou decidido aquilo lá. E eu soube que eles tinham decidido aquilo. Eu acordava muito cedo, dei de cara com o Piazza, o Piazza já estava com aquele papel na mão. Eu perguntei: “O que houve na reunião?” Ele disse: “Ah, foi isso aqui”. “Todo mundo concordou com isso?” “Todo mundo”. Eu falei: “Então está bom. Então passa aí que, quando todo mundo assinar, eu assino”. Aí está... Se você faz um documento, uma coisa que é séria, o que você tem que fazer? Você pegar e colocar, assinar realmente, assinar. Documento é assinado. Aí no final da história o Piazza falou: “Ah, todo mundo assinou”. Toma aqui. Quando eu olhei aqui, estava tudo autografado, aqui em baixo, em cima, aqui, aqui. Eu falei: “Gente, isso aqui é um documento”. “Ah, não, mas vai ser assim mesmo”. Então, esta bom, vou dar um autógrafo aqui também. Todo mundo concordou, todo mundo concordou, vamos lá. Aí deu aquele mal estar todo, aquela confusão toda, com a imprensa e tal. Eu não tinha nada a ver com aquilo. Mas o grupo decidiu, estou dentro. Aí, o primeiro encontro com a imprensa foi um mal estar danado, confusão danada... Ninguém queria falar. Uns reclamam daqui, outros de lá e tal. [Silêncio] Uns reclamam de cá, outros reclamam de lá e foi um mal estar danado. Agora, eu falei, se eu tomei uma atitude, vamos, pelo menos, manter a atitude. E depois que acabou o treino, estava todo mundo lá no hotel. Foi uma confusão danada também. Um aperta daqui, o outro aperta dali e tinha um jornalista de São Paulo que eu não recordo o nome dele agora não.

B.H – Da Gazeta esportiva?

R.V – Não me lembro quem era.

B.H – Naquela época, Placar já tinha bastante influência no jornalismo esportivo.

R.V – Tinha o Placar. É. E eu tinha conversado muito com ele, já tínhamos batido muito papo. E já tinha feito uma reportagem minha também sobre coisas fora do futebol e tal, aí ele me perguntou o que tinha acontecido. E ele vinha e me contava o que estava acontecendo lá juntos aos jornalistas. E, um dia, ele chegou apavorado para mim e disse:

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“Rapaz, os caras estão falando que tem que achar quem que liderou aquilo e estão falando que é você”. Eu falei: “Então deixa. O que eu vou fazer agora? Vocês acham que sou eu? Fala que sou eu então, eu não vou falar nada, não”. Não vou chegar aqui e dizer: “Não sou eu”. Aí vão dizer: “É você”. “Não sou eu”. “É você”. Então, deixa rolar, ué? Nem na reunião eu não fui, não decidi nada... Aí ficou aquele troço... Depois eu vi outros jogadores falando também que eu não tinha estado lá, tentando me defender. Eu vi o [inaudível] falar, o Paulo Cesar falou, o [inaudível] falou. Eu não tinha ido a reunião, mas... “Não, nós temos eu achar um líder”. Eu disse: “Não, então, eu vou ficar feliz de ser líder desses caras todos aqui: Vou ser líder do Leão, Líder do Marinho Perez, do Luis Pereira” Eu falei: “Po, eu chego aqui novinho, primeira vez na seleção, eu vou comandar os caras todos?” [riso]. Eu que vou chegar, vou impor “Não, nós vamos fazer isso aqui?” Aí depois queriam saber quem que redigiu junto com uma porção de coisa. Eu pensei assim: “Isso vai cair no esquecimento, eu vou deixar.” Aí depois também houve um prejuízo um pouquinho maior para mim que na volta da excursão, teve uma parada técnica do avião em Lisboa e eles estavam junto conosco. Tinha jornalista junto conosco. Aí o pessoal saiu, foram lá no bar e tal, aí eu vi alguns companheiros conversando, até o Chiquinho – Pastor – jogava comigo no Flamengo... Eu fiquei sentado dentro do avião. Aí ele foi lá me chamar: “Vamos lá conversar com o pessoal e tal.” “Eu não tenho nada para conversar com eles. Primeiro porque eles estão me acusando de uma coisa que eu não fiz. Eu estou sendo acusado de uma coisa que eu não fiz. Então, em primeiro lugar, eu acho que eles devem desculpa a mim. Eu não fiz nada daquilo e eles estão me acusando! Eu não tenho nada para falar com eles, eu acho que, se foi feito um documento, eles têm que fazer outro documento pedindo desculpas, então. Não é só chegar lá e pedir desculpas, “o outro que é amigo, o outro que é legal”... Para mim, não funciona. Não vou lá, não. Não tenho nada para conversar com ninguém”. Passou. Aí chegou ao Rio...”Os caras não falam com ninguém”, até cumprimentei o Carlinhos, que era o cinegrafista, nós conversávamos muito lá na Alemanha e tudo.

B.H – Carlinhos, da [inaudível]?

R.V – Ele era da Bandeirante.

B.H – Então não é o [inaudível].

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R.V – Ele até ficou doente lá – [pegou uma pneumonia lá]-. Eu o cumprimentei e veio um cara “Não pode falar com ele, não”. Eu digo: “Não, estou só cumprimentando.” [Ele não vai me entrevistar]. Sabe umas coisas assim... Depois apareceram outros episódios e... Tinha jogo que eu chegava, chegava um dia no jornal, levava um gol rasteiro, diziam que eu pulei atrasado, se era gol pelo alto, eu estava adiantado e foi indo... Eu falei assim: “Não, não tem importância, isso aqui uma hora acaba”. Tem gente que ficou com ranço e nem estava lá. Sabe? As pessoas tomaram as dores. E aquilo foi indo... Foi indo... Até que teve um dia lá em que eles fizeram um encontro, aí selaram as pazes. Eu fui lá. Mas aquilo ali não influenciou muito na minha carreira, não. Foi até bom porque me incentivou mais ainda. Vão ter que me aturar mesmo. Vão ter eu aguentar. Aí, em 74, eu fui campeão pelo Flamengo. Tinha eu falar que eu tinha sido campeão, sabe? Em 76, campeão pelo Fluminense, aí teve a festa lá, eu recebi três troféus: Troféu de campeão, troféu de goleiro menos vazado e de jogador mais disciplinado – não levei nenhum cartão amarelo o campeonato inteiro -. Então, tem que divulgar, tem que botar lá essa fotografia. Os caras estão com a cara virada, eu não posso fazer nada.

B.H – Na época, punição para o goleiro, muitas vezes, derivava do fato do goleiro fazer cera, dele quando estava ganhando o jogo, cozinhar um pouco. Isso acontecia mesmo? Era um expediente que o goleiro se valia, no caso de segurar o jogo? E você já chegou a fazer uso disso ou...?

R.V – Não, fazia.

B.H – Fazia, não é?

R.V – Era uma coisa que você faz dependendo da situação de jogo. Dependendo do juiz e tal. Eu acho que hoje o que mais atrapalha o jogo é aquele tiro de meta no chão. Tinha eu acabar com aquilo. Tinha que ser igual Futsal, pega a bola... Eu acho que o goleiro tinha que ter só cinco segundos para ficar com a bola na mão. Acabou. Hoje, do mesmo jeito, ele bota a bola no chão, se ninguém for em cima dele, ele não pega a bola também. Então, eu acho que hoje está havendo mais cera do que antigamente.

B.H – Porque, na época, o zagueiro podia recuar a bola. O goleiro podia pegar mais de uma vez na bola... Então, muitas vezes...

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R.V – É, podia. Não era ali que [inaudível]. Porque ali a bola está em jogo. Hoje o goleiro foca com a bola ali, vai até mais a frente, se ninguém for nele, ele fica lá parado. Então, eu acho que o goleiro só poderia ficar cinco segundos com a bola, ele tem que distribuir para algum lugar.

B.H – Renato, voltando para a Copa de 74. Então, Brasil e Iugoslávia, 0 a 0. Brasil e Escócia, 0 a 0. E o terceiro jogo, a terceira fase, contra o Zaire, equipe pouco expressiva da África, 3 a 0. Alguma lembrança dessa partida?

R.V – Esse jogo foi interessante contra o Zaire porque foi em 73, no começo do ano, o Flamengo tinha feito uma excursão e fomos ao Zaire e jogamos duas vezes contra a seleção do Zaire. Por duas vezes. Foi muito interessante porque foi um jogo que foi um rolo, uma coisa assim... [Risos]. Eles não deixaram nós ganharmos, de jeito nenhum. Um jogo foi 2 a 2 e o outro foi 3 a 3. E, no primeiro jogo, eles tinham uma jogada de [córnea], que, quando batiam [córnea], tinha o ponta-esquerda, acho que [Icono] eu chamava, ele tinha [inaudível] muito grande, ele vinha de fora da área para cabecear e o centro avante, que era o [Nudai] ele vinha e não deixava o goleiro sair. Então, no primeiro lance, aconteceu isso, eles bateram [córnea], quando eu fui sair, o centro avante pegou e deu com o pé na minha costela, chegou a rasgar a minha camisa, eu não consegui ir na bola, o cara fez o gol. Deu gol, deu uma confusão. Sai outro [córnea], a hora eu sai o outro [córnea], a mesma posição da esquerda para direita, aí eu peguei e fiz assim: Fui para o lado de fora da baliza, aí quando o centro avante me procurou, que ele olhou para mim, eu falei assim: “Vou da na sua cara”. Aí fiz assim, fiquei assim. A hora que a bola veio, ele olhou para mim, e não veio mais não. Aí não veio mais. [Risos]. O segundo jogo também, eles não dão impedimento... Uma bagunça danada. Então, eu já conhecia o time do Zaire. Então, eu passei muita informação e eles tinham uns brasileiros lá, eles tinham um costume de chegar e fazer uma roda em volta do time adversário – uma espécie de macumba, ritual qualquer, não é? – para espantar o adversário, não sei o quê. Vamos fazer o seguinte: Vamos dar a volta neles, porque eles vão ficar tudo... Eles não vão esperar, não é? [Risos]. Mas aí ninguém concordou em fazer isso não. Não fizeram, não. Eu falei: “Não vamos fazer. Botam eles na roda lá.” Porque eles tem muitos misticismos lá, essas coisas todas, não é? Mas foi um jogo muito difícil, foi decidido ali no golzinho [espírita].

B.H – Apesar do placar 3 a 0, não foi fácil.

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R.V – Não... Foi um jogo muito difícil. A carga nossa estava muito grande. “Você tem que fazer um placar”, em uma Copa do Mundo e contra um time de menor expressão do jeito que era o Zaire, então, complica tudo. Então, ficou muito difícil aquele jogo.

B.H – E aí, a segunda fase se inicia com um jogo contra nada mais, nada menos que é a Argentina.

R.V - A Argentina foi interessante porque... Eu conversei muito com o [Carle Valle] que era o goleiro reserva e eles não estavam com a menor disposição para aquela Copa do Mundo. O que aconteceu? Eles têm um sindicato muito forte na Argentina e segundo o [Carle Vale] me falou, houve a convocação. Convocaram os jogadores, o presidente do sindicato foi resolver a premiação na AFA10. Não agradou. Ele falou: “Essa premiação, nós não vamos querer. A AFA desconvocou todo mundo e convocou outros jogadores. Aí, chegou lá, premiação, aquela mesma premiação: Não aceitara,; Aí houve uma confusão daqui, confusão dali e tal, chegaram a um prêmio lá eu não agradou aos jogadores e ficou aquele impasse, aquela coisa toda, não agradou os jogadores, ele chegou e falou assim: [“No tiene la plata, no tiene fumo”]. Então, eles não estavam nem aí para a Copa do Mundo, não. Eles estavam... “Vamos passear”. Eles não estavam nem preocupados com nada.

B.H – A derrota também acontece dentro desse contexto de uma negociação com os dirigentes.

R.V – Também. Não estavam interessados mesmo, ele falou. Não estava mesmo.

B.H – Muito embora na edição seguinte, na Copa de 78...

R.V – Aí já foi em casa. O poder de fogo deles está maior.

B.H – Vão jogar em casa e vão jogar todas as fichas...

10  Refere-­‐se  a  Asociación  del  Fútbol  Argentino.  

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R.V – Como era em casa, a AFA teve que se curvar um pouco mais, lógico.

B.H - E, por fim, a derrota para a Holanda na segunda fase, que tirou o Brasil da disputa da final. Então, esse jogo que você já contou um pouquinho como foi o andamento, o primeiro tempo ainda super simples da Holanda, mas, no segundo tempo, à medida que o Brasil não se impunha, eles dominaram e chegaram aos 2 a 0.

R.V - Depois que fez o gol também, ficou mais fácil, não é? Ficou mais fácil, depois teve expulsão e aí complicou realmente. E eles tinham realmente um time muito bom. Eles estavam com uma equipe muito boa. Uma equipe jogando muito solta, muito à vontade. Depois, eles estavam lá, as famílias estavam juntas no hotel, estava todo mundo lá. A gente comparava aquilo e falava: “Olha lá, está vendo?” Mas era outra cabeça também, não é? É outra cabeça, diferente...

B.H – E o fato da sua filha ter nascido no dia do primeiro jogo, [nas eliminações] do Brasil, você já tinha um desejo de voltar logo. Como foi a sua cabeça? O Brasil derrotado pela Holanda. Ainda tinha motivação para jogar contra a Polônia? Como foi esse momento de voltar sem a vitória ao Brasil?

R.V – Não, ainda tinha. Para a gente não sair com a mão abanando. Inclusive, também, no dia lá, antes do jogo, melhoraram a premiação. Nós chegamos em terceiro lugar e tudo. Está valendo à pena, vamos lá tentar ganhar, pelo menos, isso aí. A raspinha do tacho, não é? [Risos]. Para ver se nós não saiamos tão desmoralizados daqui, mas não foi possível e...

B.H – Zagallo fez até mudanças no time. Botou o Ademir da Guia...

R.V – Exato.

B.H – E ainda assim...

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R.V – Mas não deu certo. O time ficou muito abatido com aquela derrota para a Holanda. Então, esse jogo foi como se fosse um castigo, quase como um castigo.

B.H – Na final, vocês torceram por algumas das seleções: Holanda, Alemanha? Tinha alguma preferência? Ou era uma coisa que, para os jogadores, já não fazia sentido.

R,V – Para mim, particularmente, não. Eu fui ver o jogo. Fui lá, vi o jogo...

B.H – Você assistiu a partida final?

R.V – Nós fomos participar da festa final, não é? Na festa final, tinha um jantar, no encerramento da Copa do Mundo, com todas as delegações, todo mundo. E aí, foi até interessante porque Alemanha foi campeã. Então, o Sepp Maier chegou lá sem camisa, charuto na boca, Muller carregado... Aí os caras comentaram: “Aí, está vendo? Os caras foram campeões, campeões.” Não pode beber, não pode tudo, ficar preso não adianta, aí chega lá todo mundo rindo para eles. Campeão pode tudo. Campeão pode fazer de tudo. Mas foi justo. O time da Alemanha também era muito bom. Era uma equipe muito boa. Justo.

B.H – E o retorno ao Brasil, como foi? Teve algum impacto a chegada da delegação? Hoje, nós sabemos a torcida vai ao Aeroporto quando ganha. Tinha uma reação, nesse sentido? Ou foi mais a imprensa... Como foi do ponto de vista de manifestação popular? Como foi a reação a uma derrota de um país que se estava se acostumando a ser campeão todo ano e encantava o mundo com a sua marca de tricampeão mundial?

R.V – Eu digo até eu não lembro muito, não, porque eu estava doido para chegar no Brasil mesmo. A hora em que eu cheguei ao Aeroporto, tudo bem, eu ainda estava meio confuso, tinha alguns repórteres eu não lembro... Eu não lembro se tinha torcida ou alguma coisa assim, não. E na hora em que eu cheguei, eu estava mais preocupado em chegar em casa mesmo. Chegar em casa. Então, eu não tenho nenhuma lembrança de alguma coisa eu tenha chamado atenção.

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B.H – Nos registros de jornal, da época, nós encontramos informação em que a casa do Zagallo foi apedrejada por conta da derrota. Não sei se isso foi uma coisa isolada ou se isso teve um significado maior em relação a derrota. Mas, enfim, o seu retorno ao Brasil e a passagem ainda, jogando pelo Flamengo, essa passagem para o Fluminense. Como foi essa transferência?

R.V – [Inaudível] que eu vou te falar.

B.H – Renato, falávamos da sua volta ao Brasil, o impacto da Copa de 74 pela torcida e agora o seu momento no clube e a passagem do Flamengo para o Fluminense. Conta um pouquinho como foi essa mudança de clube?

R.V – É, eu achei que tinha terminado a minha fase no Flamengo. Houve um desentendimento depois do Fla-Flu, nós perdemos. Foi, assim, desagradável porque foi retorcida a coisa. Eu não reclamei. Eu reclamei que o Flamengo não poderia estar com o time tão fraco do jeito que estava, não poderia ter perdido da maneira em que perdeu aquele dia, para o Fluminense, que é um rival nosso terrível, da maneira como perdeu e a coisa foi interpretada de outra forma e tal. Eu falei assim: Então agora já estávamos no final do ano mesmo. “Agora vocês não contem mais comigo. Não vou mais jogar, dessa maneira aqui não aceito jogar desse jeito, então vocês não contem mais comigo.” Aí logo depois o Francisco Horta, que era presidente do Fluminense, me ligou e falou: “Como está a sua situação?” Eu falei: “Eu não sou do Flamengo, não jogo mais, meu contrato termina no final do ano”. “E você tem para onde ir?” Eu falei assim: “Não, agora eu estou de férias”. “Então você fica quieto, você quer vir para o Fluminense?” Eu falei assim: “Quero”. “Então você fica quieto”. Aí eu fiquei calado e tal. E depois ele me chamou “Não, nós vamos fazer um negócio aqui”. Fez um troca-troca lá. O Flamengo sabiamente fez a troca. [Risos].

B.H – Você tinha comentado um pouquinho do Julio da Charanga, do Atlético. Tanto o Atlético quanto o Flamengo são times de massa, são times populares. A sua relação com a torcida do Flamengo, você lembra alguma coisa?

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R.V – Olha, a minha relação com a torcida do Flamengo foi maravilhosa. Eu tenho aqui diversas placas da torcida. Com a tia Helena, Jane de Almeida... Torcida jovem, que, na época, estava começando um pouquinho, mas ficava misturada ainda. Então, tem diversas manifestações assim. E depois, eu tive o prazer, na época eu estava no Bahia, em 82, eu fui jogar contra o Flamengo, no segundo tempo, quando eu fui para aquele gol ali embaixo da torcida do Flamengo, a torcida gritando o meu nome. Então, eu fiquei muito satisfeito: “Bom, pelo menos, deixou um rastrozinho bom, não é?”

B.H – Não esqueceram.

R.V – Não esqueceram. Então, eu fiquei satisfeito. Eu achei muito aquilo.

B.H – Mesmo nesse momento, não houve um melindre, a saída para um clube rival, o Fluminense? Ou foi...

R.V – Eu não senti nada. Não senti absolutamente nada. Nenhuma reação, nada, nada. Porque também, fomos três, não é? Saímos três para ser titular em outro time.

B.H – Uma transação...

R.V – Dividir um pouquinho. Foi uma coisa inusitada. Foi a primeira vez eu houve isso. Trocar três jogadores por três jogadores. Então, o que chamou mais atenção foi a própria situação em si. Não a individualidade de cada jogador.

B.H – E jogar no Fluminense, grande time de Fluminense da época, com Rivelino, anos 70, máquina tricolor... Que lembranças você tem desse momento? Edinho...

R.V – Foi outra troca, assim também na hora certa, muito boa, fui para um time que estava se reestruturando. Houve também tipo uma limpeza lá também do campeonato de 75, em que eles ganharam. Então, nós chegamos lá, eu cheguei com toda a vontade. Cada

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vez que eu mudava de time era como se eu estivesse reiniciando a minha carreira. Vou começar tudo de novo, você tem que fazer história. Fazer a sua história de novo no novo clube, não é? Então, eu encarava dessa forma. Dessa maneira assim, desse jeito. E, depois, o elenco também era fabuloso, não é? E havia também uma amizade muito grande entre todo mundo. E o Carlos Alberto Torres é também um grande capitão. Nossa, o que é aquilo! Grande capitão!

B.H - Por exemplo, com a família você falou que o seu era torcedor do Flamengo. O fato de você ir para o Fluminense gerava uma...? [Risos]

R.V – Não, ele falava assim: “Meu filho, Flamengo ganha, mas gol de pênalti, porque aí você não tem culpa”. [Risos]. Eu falei: “Não, pai, não faz isso não”. [Risos]. “Então você paga o bicho para mim, não é?”. “Não, está bom, eu pago o bicho”. “É, está certo”. [Risos]. Mas nunca... Ele falava de brincadeira.

B.H – Em 76, teve um episódio que ficou bastante conhecido na imprensa, que foi o jogo da semifinal do Fluminense contra o Corinthians, no Maracanã. Você lembra de desse jogo chamado invasão Corintiana?

R.V – Não tem jeito de esquecer. Esse jogo, eu vi... Nós estávamos concentrados no Hotel Glória, ali no Centro, na cidade ali, eu vi o Aterro do Flamengo invadido, só tinha preto e branco, preto e braço, preto e branco. O que é isso? Que coisa maluca é essa? Que, quando nos entramos no Maracanã, eu vi. Eu olhei para cima, assim, eu só vi bandeira preta e branca, eu falei: “Gente, eu acho que nós entramos no estádio errado”. O que é isso? Nossa torcida ficou espremidinha no canto assim. Foi uma loucura aquilo ali. Mas eu acho que o fundamental daquele jogo ali, que nos prejudicou, foi a chuva do intervalo. Ali, nosso time era muito leve, tocava muito bem a bola e tudo. Agora, teve uma chuva no intervalo, que, no segundo tempo, já foi outro jogo. Chovei um pouquinho no primeiro, mas não que estragasse o jogo. O segundo tempo foi terrível. Aí o segundo tempo foi terrível, não tivemos chances mesmo. Os dois foram no primeiro tempo. E, no segundo tempo, nós não tivemos como... Porque eu acho que o nosso time, ele era melhor do que o time do Corinthians. O time do Corinthians tinha muita garra, essas coisas todas, não pode tirar esse mérito deles. Mas time por time, se o campo estivesse seco, eu acho que nós tínhamos condições de suplantar eles. Mas, se não joga, não é? Depois na hora lá também... Começou aquele negócio entre um time... Nós não pudemos treinar no dia

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anterior porque encheu as Laranjeiras lá e houve muita comemoração antes também. Eu falei: “Não, nós não podemos comemorar antes, não”. Isso é tudo depois do que acontece. Ali foi um momento que eu acho que o primordial mesmo foi o campo foi ter ficado daquele jeito lá.

B.H – Renato, pouco depois a Copa de 78 na Argentina, houve alguma cogitação em relação ao seu nome? Ou, de fato, já não era uma possibilidade?

R.V – Não, ali, aconteceu que eu joguei todos os jogos do Fluminense. Todos: 52 jogos. Entrei em todos eles. Saí duas vezes: No campeonato carioca, contra o Bangu, no intervalo, porque eu tinha passado mal. E no jogo contra o Guarani, no campeonato brasileiro, onde nós estávamos ganhando de 3 a 0 e o Félix estava voltando de uma contusão. Aí eu estava ali, eu quis fazer uma homenagem a ele, o colocaram no campo e nós quase perdemos o jogo. Ainda faltava algum tempo e aquele jogo que está 3 a 0? Mas você não está com o jogo na mão. E o time do Guanari, sensacional, Careca...

B.H – Zenon.

R.V – Zenon... Aquele time maravilhoso e o jogo que você tem a oportunidade, você faz o gol. Então, nós tivemos oportunidades, fizemos o gol. Foi um jogo muito difícil. Eu até me assustei quando eu vi o Felix se aquecendo lá. Eu pensei: “Meu deus do céu, o que esse homem vai fazer!” E logo, logo, eles fizeram 3 a 2 e se tivesse mais um pouquinho de jogo, talvez nós chegávamos até ao empate. Porque houve aquele impacto de colocar um goleiro e eles conseguirem fazer o gol logo. E, nas férias, eu tive um problema na coluna. Em Março, eu tive que operar a coluna. Aí em 77 eu joguei muito pouco. Depois em 78, eu joguei pouco também. Aí eu fiquei meio fora do cenário. O Fluminense contratou o Wendel. Ele achava que eu ia ficar bom em nove meses, eu fiquei em três. Eu falei: “Não contrata ninguém porque eu vou ficar bom rápido.”. “Não, isso aí são nove meses”. “Não são, são três”. Coisas da vida. [Riso].

B.H – E aí o Brasil sob o comando do Claudio Coutinho mais uma vez, não consegue ir embora tenha ganho os seus jogos, feito o seu papel. Acabou por ter sido um...

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R.V – Aquelas coisas estranhas do Futebol.

B.H - É. Uma conjuntura política conturbada na Argentina.

R.V – Exatamente. Não tem... Futebol ele não existe só dentro do campo não, infelizmente.

B.H – Mais uma vez a Holanda quase lá. Novamente vice. Enfim, aí você do Fluminense vai jogar no Bahia. Como foi morar em Salvador, jogar com a torcida...?

R.V – Foi de novo um recomeço porque como eu tinha tido esse problema e depois eu tive outro também, no começo de 79. Jogo contra o São Cristovão, eu tive uma fissura no pé. Então, é uma contusão muito difícil. O Jairzinho teve. Luís Carlos Tatu teve, eles tiveram que operar e tudo. E eu tive essa fissura. E ela é muito difícil de consolidar também. Uma coisa trabalhosa, difícil à beça. Não tem como... Rio de Janeiro, um calor danado. O medido me engessou, eu não aguentei o gesso, pedi para ele tirar e ele falou que tirava para mim porque sabia... Eu não podia botar o pé no chão de jeito nenhum. Não forçar de jeito nenhum porque já tinha havido essas duas contusões e depois teria que operar, fazer enxerto e tal. Aí eu consegui me cuidar bem e tudo. Aí eu fui me desanimando... Eu voltei, joguei algumas vezes pelo Fluminense e tal e apareceu essa oportunidade do... Um dia eu estou no final do treino e disseram-me lá “O Paulo [Marcajá] está lá no hotel Glória querendo falar com você”. Eu falei: “O que ele quer comigo”. “Dizem que ele quer te falar para o Bahia. Está no final do campeonato lá, ele está com medo de perder o goleiro dele, pode ser suspenso.” Eu falei, “Nossa, vou lá escutar, não é?”. Aí eu estava até mio desanimado, Bahia e tal... “O que será que eu vou fazer?”. Aí eu fui pensando, não é? Eu vou pedir para ele dizer não e eu ficar com a minha consciência tranquila. Eu vou botar lá emcima, ele vai falar assim: “Não. Isso aí, não, você está maluco”. Ou alguma coisa assim. Aí eu fico com a minha consciência tranquila. Aí fui lá, entrei e disse assim... Muito engraçado, não é? Veio, me cumprimentou e falou assim: “Vou te falar uma coisa. Primeira coisa. Eu vim falar com você porque eu sei que você não se vendo, você é um cara honesto, um cara de caráter. Porque lá na Bahia, eu compro os goleiros todos.” Eu falei assim: “Opa, então... Aí já aumentou a oferta, hein? Falou isso já aumentou a oferta, então o senhor vai ter eu botar a mão no bolso aí”. “Não, o que você quer?” Pensei e falei assim: “Eu quero tanto”. Ele

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andou para cá, andou para lá. Eu pensei assim: “Fala não, fala não”. [Risos] “Está feito”. Eu falei: “O quê?” “Está feito!”. [Risos] Aí, eu fui para lá. Mas foi muito bom.

B.H – Foi bom?

R.V – Foram três anos na Bahia. Esse título lá, nós ganhamos apesar de eu não ter jogado. Foi o goleiro dele quem jogou. Mas depois ele fez negócio com o Fluminense, eu fiquei lá mais três temporadas, fui campeão duas vezes lá. Tenho boas lembranças da Bahia, ótimos jogos. No Bahia, teve aquele campeonato brasileiro em que nós perdemos de 5 a 0 para o Santa Cruz e revertemos 5 a 0 na Fonte Nova. Aquele jogo é para ir para História. Eu participei daquilo lá também. Então, foi muito bom ter ido para lá, sabe? A família também gostou muito de ter ido para lá.

B.H – A família? Você tinha uma filha?

R.V – Já tinha um casal.

B.H – Tinha um casal.

R.V – É, já. A diferença deles é de um ano e quatro dias, só. Entre eles dois.

B.H – E para a sua mulher? Ela acompanhava? E...

R.V – Ela acompanhava. Onde eu estava ela estava junto.

B.H – E os filhos gostam de futebol? Envolveram-se com o futebol? Como é ser filho de um...

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R.V – É um casal. O meu menino chegou uma época... Gosta de futebol, então chegou a treinar no Atlético, foi aprovado e tal... Mas quando ele olhou os caras fazendo física, ele disse assim: “Não pai, tem que fazer aquilo todo dia, eu tenho preguiça”. Eu falei: “Então, vai fazer outra coisa”. Aí [rolou] uns rachas lá, ele não se envolveu profissionalmente, não. Profissionalmente, tem que fazer com seriedade, se não vai jogar só em time pequeno aí. Vai vender almoço para comprar a janta. [Risos] Aí ele saiu pelo outro lado.

B.H – E depois da temporada na Bahia que você vai encerrar a carreira nos Emirados Árabes. É isso?

R.V – Isso.

B.H - Como se deu essa proposta e essa ideia? Para você, como foi?

R.V – Isso aí foi o seguinte: Eu já tinha trabalhado com o Djalma Cavalcanti, ele estava lá e eu soube que tinha outro time, não era o dele, mas ele era amigo do Sheik que tomava conta do time, que estava precisando de um goleiro. Aí, ele pensou em mim. Eu jpa estava em final de carreira, não é? Ele pensou em mim e depois para eu sair do Bahia foi uma coisa muito difícil. Aí que entrou, de novo, aquele problema que eu tinha tido com o Carlos Froner, nós consertamos no Bahia e ele foi o responsável pela minha liberação. Porque o [Marcajá] não queria me liberar. Como eu ia para fora, ele queria que eu pagasse dólar para ele também. Então foi muito difícil eu sair. Aí ele intercedeu e a coisa ficou tudo certinho, tudo direitinho, aí eu fui para lá. Fiquei um ano lá. No outro ano, ele s fecharam o mercado. Dois anos antes da Copa, eles fecham o mercado, tiram todos os estrangeiros que estão lá para poder selecionar os jogadores deles para Copa e tudo. Aí, eu fiquei lá, no mesmo time, como treinador de goleiro.

B;H – Que ano?

R.V – Isso aí foi... Lá, temporada é de setembro à março. Então, eu fui para lá em setembro de 82 e depois eu fui de setembro de 83 até março de 84, quando eu voltei.

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B.H – Oitenta e dois. Logo depois da Copa da Espanha em que o Brasil comandado pelo Telê encantou o mundo, mas não conseguiu ser campeão. Como você...? O fato de ter sido um dos seus primeiros técnicos... Você acompanhou?

R.V – É, eu torci muito. E naquele jogo exatamente contra a Itália, ali eu acho que faltou um grande capitão na seleção. Naquele jogo, porque nós tivemos três chances: 0 a 0 era nosso, 1 a 1 era nosso e 2 a 2 era nosso. Então, nós tivemos três oportunidades. Ali, fez 2 a 2, acaba o jogo. Eu vi o Gerson fazendo isso no time do São Paulo. São Paulo. Ele dando bico para lateral e acabou o jogo, não tem jogo mais. Então, faltou alguém decidir dentro do campo. Porque aquilo ali não é do treinador. E não era filosofia do Telê também aquilo ali. Mas aquilo tinha que ser uma decisão, ali, do momento. Não tem mais jogo. Puxa vida! Nós tivemos todas essas chances, estava quase no final do jogo.

B.H – E a escolha do goleiro de 82? Você vinha acompanhando... O leão tinha sido titular das duas últimas Copas. Como você... Achou que foi uma boa...?

R.V – Eu acho que ali foi uma questão mais de temperamento do Leão com o próprio Telê. Eu acho que nós não podemos misturar essas coisas. A atividade profissional da gente, nós não podemos misturar com a parte social, digamos assim. Então, às vezes, você não gosta da atitude da pessoa, mas ele é um grande profissional, acabou. Não adianta. Você tem que administrar a coisa. Então pode ter havido isso.

B.H – Preferiu ir com o Carlos ao Perez.

R.V – É, isso. Pode ter havido isso, porque o Leão ainda estava jogando muito bem.

B.H – E, para você, do ponto de vista da adaptação cultural, como foi ir para os Emirados Árabes? Era algo muito exótico ou no dia-a-dia você acostumava e...?

R.V – Não, um mundo completamente diferente. Primeiro que não era do jeito que está hoje. Dubbai, quando eu fui para lá, era uma cidade desse tamanho: Pequenina. Não tinha praticamente nada. E lá, inclusive também, eles tinham descoberto petróleo lá há 11 anos. Então, eles estavam ainda, eles mesmos, em fase de adaptação, de saber quanto de riqueza eles tinham. Então, tinham coisas, assim, absurdas. Contrastes absurdos. Mas eu sempre procurei me concentrar no meu trabalho, sabe? Fazer a minha parte. E foi o que

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aconteceu lá. Era uma coisa inusitada, nenhum time tinha goleiro estrangeiro. Porque lá você podia ter dois estrangeiros, mas não podiam jogar os dois. Então, normalmente, eles tinham atacantes que trocavam um pelo outro durante o jogo e tal. Só que nesse time lá, no local, tinha um centro avante muito bom. Então, faltava um goleiro. Por isso que eles me contrataram. Então, [eu vou contar uma coisa inusitada]: Lá tem uma passagem muito interessante. O futebol é amador, o pagamento lá... O Sheik gosta, ele paga para qualquer um e tal. Nós éramos profissionais, eu era profissional, eu fui com contrato. Mas eles lá, não. E lá tem umas situações assim: Ninguém troca de time porque o time é da região dele, é do local dele, ninguém troca de time, ninguém vai de um time a outro. E lá tem umas richas entre jogadores. O meu centro avante não jogava com o goleiro de um time lá e um zagueiro de outro time. Então, no começo do campeonato ele falou: “Aqui, você não conta com ele, não. Em dois jogos, ele não joga”. [Risos]. “Porque ele não jogava contra o fulano e contra o ciclano”. “E esse jogo aqui, nós não conseguimos ganhar nunca. Esse aqui nós perdemos. Esse aqui, nós empatamos.” Umas coisas assim. E teve u jogo desses que ele falava que nós não ganhávamos nunca, inclusive no time do Djalma Cavalcanti, eu nós fomos jogar... Tinha outra coisa também, o time tinha subida da segunda divisão para a primeira. Ficava na primeira, ele descia. Todos. Sua uma temporada, descia de novo. E aí, ele estava querendo quebrar isso aí. O time se manter na primeira divisão ainda, não é? Então, ainda tinha essa carga ainda. E nós fomos jogar com esse time do Djalma e esse time não ganhava nunca. E nós, já no final do jogo, o juiz deu um pênalti contra nós. E todo time lá, tem um Pelé deles. Que é o cara consagrado, o astro máximo. E eu sei que eles são muito cismados, não é? Aí eu cheguei, peguei a bola, fiquei rolando a bola na mão, antes dele bater ele ficou olhando espantado, eu fiquei enrolando a bola, eu peguei e botei a bola na mão dele. Ele ficou... Deixou a bola cair e tal. [Risos].

B.H – Está enfeitiçada. [Riso].

R.V – É. Eu falei: “Cuidado, hein?” Eu falei em português para ele não entender mesmo nada. [Risos] Era para ele achar que eu estava falando alguma coisa. [Risos]. Eu botei o dedo perto do rosto dele e falei assim: “Cuidado, hein?”. Aí o cara foi bater, eu vi que ele estava nervoso. Aí eu fiquei movimentando um pouco e tal. O juiz apitou, aí ele veio e pum, chutou para fora! Ih, rapaz, Nossa senhora! Foi uma festa danada. Chutou fora. Aí, nós fomos lá e fizemos gol. Nossa, outra festa. Nunca tínhamos feito gol lá, naquele time, naquela cidade. Uma festa danada e tal. E nesse time tinha um brasileiro lá também.O Carlinhos, ponta-esquerda, tinha jogado em um time do interior de São Paulo. O jogo vai correndo, o juiz dá outro pênalti. Eu peguei a bola, dei ao cara de novo. Ele falou que não, que não ia bater. Aí ficou aquela confusão, UEM bate o pênalti? Ninguém queria

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bater o pênalti. Ninguém! Aí eu me senti, “eu sou o máximo”. [Risos]. Espantei todo mundo aqui... Aí está aquela confusão...

[FINAL DO ARQUIVO II]

R.V – Aí na hora do pênalti, ficou aquela confusão, o cara não queria bater de jeito nenhum e ninguém queria bater. Aí eu também aproveitei a confusão toda, fui ao juiz e falei: “Ninguém quer bater” não sei o quê, falando em inglês com ele. Aí vai o Carlinhos, pega a bola e fala: “Ah! Ninguém quer bater, eu vou bater”. Eu falei: “Carlinhos, não mexe com isso não, rapaz. Deixa-os brigarem entre eles. Não vai bater, não. Para quê você vai bater? Deixa eles .” “Não, ninguém vai bater, eu tenho bater.” “Então está bom, então você bate o pênalti.” Aí ele bateu o pênalti, eu peguei o pênalti dele. Rapaz, foi uma festa danada! Depois que o jogo acabou, os caras pularam em cima de mim, foi uma festa danada. Era o diretor nosso, tirou um relógio de ouro da mão, botou em mim e tal. Porque eles são assim, não é? De repente querem premiar. Então foi bastante interessante, porque foi um futebol completamente diferente. Não tem nada a ver com o nosso futebol. E eles adoravam o futebol brasileiro. Chegava no treino, estavam com a camisa do Zico, camisa do Pelé, Rivelino... Então, futebol brasileiro, eles adoravam.

B.H – A carreira do jogador é quando ele começa a refletir e ter essa autoconsciência: Quando é o momento de parar. Esse limite, muitas vezes, não é fácil de identificar. Para você, foi fácil? Para você isto estava claro?

R.V – Eu sempre tive na cabeça: Ninguém vai me parar, eu vou parar. Eu não vou ouvir isso assim: “Você tem quer parar”. Não vou. E exatamente ter ido para lá, me ajudou. Porque eu achei que eu ia para lá e ia jogar os dois anos. Quando eu soube que no ano seguinte eu não poderia jogar, aí eu já... Falei: “Ah, não pode jogar?” O Sheik veio falou comigo: “Não, mas você fica aqui, que você vai treinar os meus goleiros”. Aí, eu falei: “Pronto, está aí uma oportunidade”. Eu já não estava querendo sair do Rio, eu já tinha jogado Flamengo, Fluminense. Botafogo tinha goleiro naquela época. Vasco estava com goleiro. Eu falei assim: “Vou chegar aqui, pegar de novo o meu passe para levar para lá...” Eu lembrei do Rivelino, que ficou aquela confusão toda... Eu falei: “Isso vai ser uma dificuldade danada...” Quer saber de uma coisa? E, no final do ano, teve aquela festa que eu já contei, que eu encarei como se fosse a minha despedida do futebol, sabe? Então, foi uma festa linda. Nossa! [inaudível] Estou me despedindo do futebol. Pronto, aí ficou. Então, foi bem manso, não foi nada dolorido. Já no ano seguinte, eu voltei para não jogar mesmo. Para ser treinador, então ficou desse jeito assim. Não foi...

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B.H – Muitos jogadores, justamente, acabam encontrando na profissão de treinador a sua saída para o fim dessa carreira que, pelas limitações físicas, acaba sendo precoce. Para você, você vislumbrava ser treinador? Ou foi essa proposta que te fez realizar essa possibilidade?

R.V – Eu achei boa essa proposta. E eu acho bacana, eu sempre gostei muito de transmitir experiência aos outros. Sempre gostei muito. Eu achei bastante interessante, só que depois, quando eu voltei ao Brasil, eu tive a oportunidade de trabalhar no Vasco, como treinador de goleiro. Trabalhei com o Acácio, com o Regis, mas, naquela época, o treinador de goleiro não fazia parte ainda da comissão técnica. Então, chegava na hora do jogo, você tinha que ir lá para arquibancada. Então, tudo isso dificultava muito. Eu tinha uma facilidade que como os juízes, quase todos eles eram do mesmo tempo que eu, eu chegava para eles e falava: “Oh, vou sentar quietinho ali, não vou falar nada e tal, posso só ver os meus goleiros?” Muitos deles, deixavam. Os que não me conheciam, logicamente, não deixavam. Às vezes, eu até nem pedia e tudo. Mas eu fui encontrando esse tipo de dificuldade, sabe? Aí depois eu... Também estive com o Parreira na seleção da Arábia Saudita, nós fizemos a eliminatória para a Copa de 90 e eu estava junto com ele. Aí depois disso, eu falei: “Ah, eu não quero mais nada disso, não”. Vou fazer outra coisa aí... [Riso]

B.H – Você não vislumbrou a possibilidade de ser técnico de futebol?

R.V – Treinador, isso aí eu nunca quis.

B.H – Nunca?

R.V – Não. Não quero essa carga, de jeito nenhum.

B.H – Por quê?

R.V – Porque não tenho... Você não tem valor nenhum, você dizer que você irá fazer um planejamento é a maior mentira do mundo. Não existe isso. O futebol brasileiro não te dá chance de você fazer planejamento algum. Você vai viver de resultados do material humano que, normalmente, responsabilidade sobre ele, se você tiver 50% é muito. Se você mandar contratar 50% do seu elenco, é uma coisa assim, eu acho que é do outro mundo. Então é muito difícil você trabalhar com material que não foi escolhido por você e ter sucesso, não é fácil, não. E ter sucesso rápido, não é? E depois, também, eu queria sossegar também, depois de ter uma vida de cigano. [Riso]

B.H – Mas você chegou a ter uma experiência na Seleção Brasileira também, não foi?

R.V – Foi. Foi antes até de eu ter ido para a seleção da Arábia Saudita. Eu trabalhava no Vasco com o Lazaroni. O Lazaroni me levou para Seleção, mas ele queria trabalhar junto com o Nielsen, que tinha sido meu companheiro no Fluminense. E o Nielsen estava com

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o Parreira. Nós fizemos uma troca. Ele conversou comigo, eu falei: “Lógico que eu aceito. Bom demais” Está bom para os dois, vamos embora! Comigo não tem essa não. Não vou atrapalhar ninguém, nem prejudicar, nem nada... E fizemos a troca.

B.H – Bom, se afastando profissionalmente do futebol, quer seja como jogador ou como treinador, como que passou a ser a sua relação com o Futebol? Você, hoje, é um torcedor, alguém que acompanha o futebol, alguém que observa o futebol? Ou você se distanciou?

R.V – Eu dei uma distanciadazinha porque depois de 90, eu fui para Belo Horizonte, eu tive uma padaria lá durante oito anos, então eu fiquei fora um pouquinho. Eu não tive uma grande formação de torcedor, daquele torcedor entusiasta mesmo e tal. Hoje, eu até gosto muito do Atlético, porque, apesar de ser o time em que eu joguei menos, foi o título mais importante da minha carreira – título de campeão brasileiro – e o Atlético já me deu todos os prêmios que eu poderia ter ganhado. Eu tenho o Galo de Prata, eu tenho a Medalha dos cem anos e sempre que tem algum evento lá, eles me convidam, então eu tenho uma gratidão muito grande pelo Galo. Aonde eu vou – também, por estar morando em Minas- as pessoas reconhecem, sempre estão me agradando com um carinho muito grande. Então, eu tenho um carinho muito grande pelo Atlético. Acompanho assim... Mas, vou te dizer, sofrer, eu não sofro mais não. Eu sofria na época em que eu jogava. Hoje em dia, eu não sofro mais não. Eu fico triste, chateado, tudo. Pelo torcedor, aquele fanático mesmo – aquele que chora. Fico triste, mas sem sofrimentos. [Risos].

B.H – Renato, o Brasil vai sediar, pela segunda vez, uma Copa do Mundo, daqui há dois anos -menos de dois anos-, como é a sua visão sobre o que vai ser o Brasil daqui há dois ano, a seleção brasileira e o país, recebendo esse evento, que, hoje, é um mega evento, se tornou com o crescimento da FIFA11, com o agigantamento da televisão, estamos nesse grande espetáculo contemporâneo... Qual a sua sensação, os seus sentimentos em relação à Copa de 2014?

R.V – Eu acho que é uma responsabilidade muito grande do Brasil por causa do momento que o Brasil está vivendo também. Um momento muito conturbado, muitas denúncias de tudo, então seria um momento para o Brasil aproveitar e uma mudança total de atitude. É uma responsabilidade muito grande. Primeiro, eu acho muito errado ter que aceitar todas essas exigências da FIFA. Eu acho que a FIFA teria que respeitar cada comportamento. O comportamento do Europeu, no futebol, é como se ele fosse a um teatro. Ele está em um teatro, vendo uma ópera, o cantor deu um agudo bonito lá, ele grita “bravo”. Igual a um gol: “Bravo”. O comportamento dele é completamente diferente do brasileiro. Então aceitar de uma geral do Maracanã, que era uma coisa linda e maravilhosa, é brincadeira! Não existe isso. O futebol, pelo menos o sul-americano, você vê na Argentina, as torcidas na Argentina são espetáculo, maravilhoso. Então é tudo completamente diferente. E

11  Refere-­‐se  a  Federação  Internacional  de  Futebol  Associado.  

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obrigar a fazer estádios enormes em locais que não tem essa fluência de público toda... Então, eu acho que, primeiro lugar, aceitar todas essas exigências, eu acho que está muito errado isso. A FIFA não poderia ter esse poder. Depois, fazer essas obras todas também é uma responsabilidade muito grande, já estão havendo denúncias que tem obras atrasadas, já tem roubo, já tem essa confusão toda. Então, para montar esse espetáculo todo, eu acho uma responsabilidade muito grande para todas as cidades se apresentarem. Tomara que possam deixar alguma de bom para o futuro. Que não fiquem só esses elefantes brancos sem uso, sem nada. E que a gente possa, realmente, mostrar ao mundo que o Brasil não esse Brasil corrupto, esse Brasil de bagunça, de organização criminosa. Eu acho que é o momento da gente pensar em fazer um novo Brasil. Fazer um novo Brasil e mostra ao mundo que nós realmente... Esse país aqui é lindo! Nós não sabemos a força que nós temos. Então, eu acho que é um momento de repensar realmente se nós vamos querer que continue esse Brasil do jeito que está... Mas não tem que haver uma mudança de governo, não. Eu acho que é uma mudança total. A sociedade também tem que participar muito mais e tem que saber que eleição não é brincadeira. Nós estamos brincando com a eleição. Nós estamos brincando. E essa brincadeira custa caro. No mínimo quatro anos. Ela custa caro.

B.H – Renato, e em relação a equipe eu vai atuar daqui há dois anos? Em relação ao jogo propriamente dito, qual é a sua expectativa...?

R.V – Eu acho que está tudo indefinido, eu acho. Eu acho que nós estamos caminhando à passos de tartaruga. Não tem um planejamento, realmente não tem, porque o nosso calendário é diferente do calendário europeu. Então, tem hora que convoca jogador que joga só no Brasil; só lá fora; mistura; prejudica os times aqui no Brasil. Eu acho até que o jogador, hoje, não está se interessando muito em jogar na seleção brasileira, não. O objetivo dele maior é ir para Europa e jogar no time da Europa. Porque esses jogadores eu estão na Europa já, não tem muito interesse em jogar na seleção Brasileira. Eles já estão no cenário, já estão na vitrine melhor da loja. Então, parece que não está havendo um grande interesse. Depois também, nós estamos fazendo amistosos aí que não tem nada a ver. É briga com bêbado, é brigar com bêbado, você não vai ter vantagem nenhuma. Você bateu no bêbado, você bateu no bêbado. Então, não tem vantagem nenhuma. Você perder do bêbado que é uma vergonha. Então eu acho que nós estamos caminhando meio errado. Não existe também uma aceitação geral pelo próprio treinador. O Felipão houve, praticamente, uma unanimidade na escolha dele, na escolha de quem iria. A única polêmica foi o Romário ou não. Foi a única polêmica. Agora, não. Está muito indefinido. E ainda existe aquele negócio de dizer que ele está chamando jogador do Corinthians. Está havendo algumas preferências, que está chamando outros para prejudicar... Então, eu acho que não estamos caminhando bem para ir... Pelo menos em relação a essa parte da seleção brasileira dentro do campo.

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B.H – Em relação aos goleiros, tem algum que chama atenção? Tem algum para quem você tem uma atenção particular? Vê com mais...

R.V – Eu vejo que os goleiros, hoje, eles não seguram mais a bola. O goleiro, hoje, está numa posição muito ruim, muito inferior, uma bola do meio de campo é uma bola perigosa, ele fica sem ter nenhuma atitude, não tem mais espaço para jogar porque os próprios zagueiros estão indo para cima dele no momento da jogada. Então, ele está sem espaço completamente. Ele tem que esperar alguma definição de alguém. Então você vai inúmeros gols em que o cara chuta no meio de campo e a bola entra. Porque ele está ali: Pode pegar em alguém, pode não pegar, pode não pegar... Então... Quando chega o momento dele agir, já não tem mais tempo. E eu não vejo assim... Não vejo mais goleiro segurar a bola, não pega mais a bola, tudo coloca ao lado. Então, eu estou vendo essa safra de goleiro aí bem fraca. Esses novos que estão vindo aí, eu não acredito muito neles não. Infelizmente, não acredito, não.

B.H – E essa postura mais ativa e recente do goleiro de sair da grande área, de ir para o ataque? O próprio Rogério Ceni se destacando. Goleiro que faz gol. Como você vê essa nova função, vamos dizer assim, do goleiro, na atualidade?

R.V – É, ele hoje é... Antigamente quem não sabia jogar bola nenhuma tentavam ser goleiro, não é? Agora, hoje, já não pode ser isso. Se ele não tiver um pouquinho de habilidade, ele vai ficar muito prejudicado. Então, ele tem que ter certa habilidade para jogar e é bom para ele participar também. Mas eu acho que com essa participação assim, eles estão esquecendo um pouquinho a função primordial dele, que é segurar a bola. Tem muito goleiro aí que não segura a bola, de jeito nenhum e eu vejo goleiros com defeitos em que constantemente estão cometendo aqueles defeitos. Hoje, tem um treinador de goleiro, porque não corrige aquilo, ué? Eu vejo. Eu vejo jogo. Se chutar desse jeito aqui pode ver que é gol toda hora. Se chutar daquele jeito para aquele outro é gol. Eu vejo direitinho e não vejo as pessoas corrigirem. Eu acho que nem o próprio jogador... “Eu sabia, eu treinava porque eu não gostava, porque eu achava ruim”. Essa bola eu não gosto, então, eu tenho que treinar ele mesmo porque ela que vai me prejudicar. As outras, eu gosto e sei. Então, eu fazia isso. Eu fazia tudo ao contrário.

B.H – [Riso] Renato, no início do seu depoimento, você falou de certo prazer que é ser do contra, de impedir, do prazer do goleiro que é impedir que o time adversário faça o gol. Se você tivesse que destacar ou um pênalti ou uma falta ou um lance seu que para você ficou guardado como aquele lance? Que jogo você destacaria?

R.V – Aquele lance da minha vida é o do torcedor do Atlético, que vinha. Foi a semifinal contra o São Paulo, em 71, no Mineirão. Nós estávamos ganhando de 1 a 0 do São Paulo, 43min e meio mais ou menos do segundo tempo, Paraná foi no fundo, rolou a bola para o Gerson, Gerson veio... O pênalti é pequena área. Do jeito que a bola veio, ele chutou, eu

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estava na trajetória dela, eu levantei a mão esquerda, ela bateu na minha mão esquerda e saiu para o lado. Inclusive, a bola não saiu, ela ficou lá perto da bandeirinha do corner, não saiu. Vantuí correu em cima de mim, pulou em cima de mim festejando, Grapete também e eu falei assim: “A bola não saiu, corre lá”. [Risos] O Gerson estava ajoelhado arrancando os cabelos dele – os poucos que ele já tinha - .Esse daí está em livro que conta a história do Atlético e tudo. Essa defesa ficou marcada na minha carreira. Essa foi a maior de todas. A mais importante.

B.H – Renato, em nome da Fundação Getulio Vargas, do Museu do futebol, queremos agradecer imensamente esse seu depoimento que irá ficar nos arquivos do Museu para que as novas gerações, aqueles que visitam o Museu, possam conhecer a história rememorada por você aqui nesse depoimento. Então passo a palavra, as palavras finais, agradecer em nome da FGV e do Museu do Futebol.

R.V – Olha, eu é que tenho que agradecer porque fazer parte da história do futebol brasileiro é uma coisa muito importante. O futebol brasileiro com o poder que ele tem, a fama que tem no mundo inteiro e o Brasil grande do jeito que é, eu ser um dos escolhidos para dar esse depoimento e ficar registrado para sempre. Eu vou embora daqui. Eu vou embora e vai ficar registrado lá, essa minha fala, essas minhas brincadeiras. E eu espero, então, que quem for lá ver, acompanhar lá no Museu, possa ficar satisfeito com tudo o que foi dito aqui, por mim e por todos os companheiros que fizeram esses depoimentos. Sinto-me extremamente honrado em estar participando. Muito obrigado.

[FINAL DE DEPOIMENTO]