tragédia na sala de aula um estudo de práticas de teatro na educação de jovens e adultos

100
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS MÁRCIO SILVEIRA DOS SANTOS TRAGÉDIA NA SALA DE AULA Um estudo de práticas de teatro na Educação de Jovens e Adultos PORTO ALEGRE/RS 2010

Upload: matheus-gomes-da-costa

Post on 20-Nov-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

tragedia

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS

    MRCIO SILVEIRA DOS SANTOS

    TRAGDIA NA SALA DE AULA

    Um estudo de prticas de teatro na Educao de Jove ns e Adultos

    PORTO ALEGRE/RS 2010

  • 2

    MRCIO SILVEIRA DOS SANTOS

    TRAGDIA NA SALA DE AULA

    Um estudo de prticas de teatro na Educao de Jove ns e Adultos

    Dissertao apresentada como requisito obteno do grau de Mestre em Artes Cnicas, Linha de Pesquisa: Linguagem, Recepo e Conhecimento em Artes Cnicas, Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da UFRGS.

    Orientador: Prof Dr. Joo Pedro Alcantara Gil

    PORTO ALEGRE/RS 2010

  • 3

    S237t Santos, Mrcio Silveira dos Tragdia na sala de aula : um estudo de prticas de teatro na educao de jovens e adultos / Mrcio Silveira dos Santos; orientador: Joo Pedro Alcntara Gil. Porto Alegre, 2010. 100 f. Dissertao (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Artes. Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas -- Linha de Pesquisa: Linguagem, Recepo e Conhecimento em Artes Cnicas, Porto Alegre, BR- RS, 2010. 1. Pedagogia Teatral. 2. Teatro do oprimido. 3. Educao de Jovens e Adultos : Teatro. I. Gil, Joo Pedro Alcntara. II. Ttulo. CDU: 792.071.5

    Catalogao na Fonte --- Biblioteca do Instituto de Artes/UFRGS

  • 4

    "O teatro pode ser uma arma de

    libertao, de transformao

    social e educativa." Augusto Boal

    1980

  • 5

    Quero registrar uma dedicao

    especial a Augusto Boal, mentor do

    teatro que fiz a vida inteira. Pude

    estar com ele algumas vezes e me

    emociono sempre quando penso que

    nos deixou h pouco! Boal, muito

    obrigado!

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    minha famlia, por tudo.

    Aos integrantes do Grupo Teatral Manjerico, por me ausentar tanto.

    Ao PPGAC, professores e funcionrios, especialmente a Gil, orientador e amigo.

    Anelise Camargo Garcia que sempre esteve ao lado apoiando, questionando,

    refletindo e sobretudo incentivando nos momentos mais complexos.

    Aos professores e alunos da Escola Municipal de So Leopoldo Arthur

    Ostermann, pela aceitao da pesquisa.

    Aos professores membros da banca de qualificao: Danilo Streck, Mirna

    Spritzer e Silvia Balestreri, pelo trasbordamento nas preciosas contribuies.

    Aos amigos, nas horas difceis e comemorativas.

    A todos, EVO!

  • 7

    RESUMO

    A presente dissertao tem por base estabelecer reflexes acerca do

    trabalho desenvolvido nas prticas de teatro na sala de aula com alunos do

    Programa EJA - Educao de Jovens e Adultos da Escola Municipal Arthur

    Ostermann, no Municpio de So Leopoldo, na regio do Vale dos Sinos, Estado

    do Rio Grande do Sul.

    Procuro estabelecer conexes dessas prticas com a Pedagogia do

    Oprimido de Paulo Freire e o conceito de Tempos Lquidos, de Zygmunt

    Bauman.

    As atividades foram realizadas atravs de jogos espontneos e

    protagonizados, visando o desenvolvimento dos potenciais criativos dos alunos,

    e a reflexo sobre os potenciais destrutivos da sociedade. As prticas so

    divididas em duas ramificaes: o Teatro Jornal, de Augusto Boal e o exerccio

    de escrita dramtica a partir da contextualizao das tragdias gregas. Uma tem

    ligao com a outra, tendo em vista que a partir das improvisaes teatrais

    surgiram necessidades de discutir os fatos vigentes. Estes fatos, a maioria

    publicados em jornais, foram considerados pelos alunos como tragdias, o que

    despertou em alguns a pesquisa a partir dos textos trgicos do teatro grego, que

    consistiu na leitura em especfico das peas dipo Rei e Antgona, de Sfocles,

    desencadeando assim uma contextualizao de determinadas obras.

    Palavras-chave: Pedagogia Teatral, Teatro do Oprimido, Pedagogia do Oprimido, Prticas Teatrais, Tempos lquidos, Dramaturgia.

  • 8

    ABSTRACT

    This thesis is based on established ideas about the work practices of

    theater in the classroom with students of adult education program - Youth and

    Adult Education of the School of Arthur Ostermann, in So Leopoldo, in the Vale

    of Sinos, Rio Grande do Sul.

    Looking for connections of these practices with the Pedagogy of the

    Oppressed by Paulo Freire and the concept of Liquid Times of Zygmunt Bauman.

    The activities were conducted through games and spontaneous

    protagonists, to develop the creative potential of students, and reflection on the

    destructive potential of society. The practices are divided into two branches: the

    Newspaper theater of Augusto Boal and the pursuit of dramatic writing from the

    background of Greek tragedies. One is linked to another in order that emerged

    from the improvisational theater needs to discuss current events. These facts,

    most published in newspapers, were considered by students as tragedy, which

    sparked some research from the texts tragic of Greek drama, which consisted of

    reading in specific parts of dipo Rei and Antigona by Sfocles. Thus triggering a

    contextualization of certain works.

    Keywords: Theatrer Pedagogy, Theatre of the Oppressed, Pedagogy of the Oppressed,

    Theatre Practice, Liquid Times, Playwright.

  • 9

    SUMRIO

    1 INTRODUO.................................................................................................... 11 2. CONTEXTUALIZAO DA EXPERINCIA...................................................... 15 3. DUAS PRTICAS.............................................................................................. 27 3.1 O Teatro Jornal................................................................................................ 28 3.1.1 Peas breves................................................................................................ 36 3.1.2 Sem teto, mas com esperana.................................................................... 39 3.1.3 A Fbrica de calados.................................................................................. 44 3.2 Dramaturgia..................................................................................................... 47 3.2.1 Que tragdia essa?................................................................................... 57 4. EDUCAO e SOCIEDADE............................................................................. 63 4.1 A Educao nos Tempos Lquidos................................................................. 64 4.2 A Educao como antdoto da barbrie....................................................... 70 5. CONSIDERAES FINAIS........................................................................... 74 6. REFERNCIAS................................................................................................. 79 7. ANEXOS............................................................................................................ 83

  • 10

    Lista de Anexos ANEXO Duas peas de teatro escritas pelos alunos: I A Confiana a alma do negcio.................................................................. 85 II A Procura....................................................................................................... 90

    Apndice Artigos. I Ensino de teatro sim!....................................................................................... 96 II O filho do padeiro no ganhou o Nobel........................................................... 97 III - Que tragdia essa?....................................................................................... 98 IV - Boal, o homem que inventava o futuro........................................................... 99 V - A Educao nos tempos lquidos................................................................... 100

  • 11

    TRAGDIA NA SALA DE AULA

    Um estudo de prticas de teatro na Educao de Jove ns e Adultos

    1

    1 - INTRODUO

    Como introduo gostaria de trazer um breve relato de minha trajetria,

    para melhor apreciao do leitor, no sentido de acompanhar com entendimento

    meus caminhos at aqui. Julgo necessrio, na medida em que esclarece o

    1 O quadro negro com a planta baixa da sala de aula. Definindo espaos da platia e dos atores.

  • 12

    interesse e vontade de aprofundar a pesquisa de toda uma vida ligada ao teatro

    e educao.

    Desde 1991 tenho trabalhado na rea da educao informal, atravs de

    aulas de teatro, com crianas e adolescentes em situao de vulnerabilidade

    social e com grupos de teatro, com nfase no teatro popular e no teatro de rua.

    Ministrei oficinas de teatro por todo o estado do Rio Grande do Sul, sempre

    voltadas para o desenvolvimento do ser humano, com base na cultura do meio

    em que vive. Dentro desses objetivos realizei oficinas para crianas e

    adolescentes em situao de vulnerabilidade social; para trabalhadores em

    formao, capacitao em teatro para professores de redes educativas. Em

    2004, j formado em Educao Artstica Habilitao em Artes Cnicas, pela

    UFRGS, fui convidado a realizar aulas de dramaturgia na biblioteca pblica

    municipal Josu Guimares que resultou em um site, j fora do ar, de novos

    dramaturgos e literatos de Porto Alegre, bem como um encontro para leituras

    das obras na 50 Feira do Livro de Porto Alegre, juntamente com o professor e

    dramaturgo Ivo Bender.

    Depois de um longo perodo trabalhando e coordenando a ACO -

    Associao Cultural de Oficineiros, passo a desempenhar a funo de

    Supervisor de classe e coordenao da rea de artes e expresso do Centro

    Refap Cidad Esporte Clube Cidado em Canoas - Esteio. Uma parceria na

    rea de desenvolvimento social da ACM Associao Crist de Moos do RS e

    da Refinaria Alberto Pasqualini S/A para a educao de crianas, jovens e

    adultos. Durante o trabalho de dois anos neste projeto, desenvolvi uma

    especializao em Psicopedagogia, a partir de uma pesquisa sobre o

  • 13

    atendimento atravs da arte-educao das crianas em situao de

    vulnerabilidade social, econmica e cultural.

    Em 2006 sou chamado atravs de concurso pblico para a funo que

    ocupo ainda hoje, professor de teatro da rede municipal de ensino de So

    Leopoldo, na regio do Vale dos Sinos, bero da imigrao alem no Rio

    Grande do Sul que, no ano de 2009, completou 180 anos.

    Como ator, diretor e dramaturgo, trabalhei com os grupos: Espalha-Fatos

    Atos de Teatro, de 1991 a 1999, Grupo Teatral Manjerico, de 1998 aos dias de

    hoje, Grupo O performtico/multimdias, de 2005 aos dias de hoje. Circulei por

    inmeros festivais e eventos pelo Brasil, obtendo prmios exitosos e tambm

    fracassos. Tudo fez parte de uma trajetria de busca e pesquisa, desenvolvendo

    sempre o contnuo trabalho de ampliao de novos horizontes de criao e

    conhecimento.

    O caminho foi longo at chegar nestes momentos finais do mestrado pelo

    Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas na UFRGS - Universidade

    Federal do Rio Grande Sul. A definio da temtica de pesquisa, Tragdia na

    sala de aula - Um estudo de prticas de teatro na educao de jovens e

    adultos, surge das prticas que desenvolvi na Educao de Jovens e Adultos

    em So Leopoldo. O conhecimento prtico e reflexivo adquirido vai passando a

    outros que por mim cruzam. De nada vale tanto estudo e trabalho se no puder

    compartilhar com mais pessoas. o trabalho em conjunto que fortalece nossa

    razo de viver, neste universo do teatro e da pesquisa permanente.

    Na minha trajetria como professor/aluno/ator, o envolvimento do teatro

    com a populao excluda socialmente foi uma constante. Passaram-se mais de

    quinze anos e esta proximidade tornou-se mais estreita e a necessidade de

  • 14

    aprofundar estas relaes me levou a seguir o caminho de investigao das

    prticas de sala de aula.

    Procuro nesta dissertao estabelecer reflexes acerca do trabalho

    desenvolvido nos encontros com os alunos nas aulas de teatro. As atividades

    prticas foram realizadas atravs de jogos espontneos e protagonizados,

    visando o desenvolvimento dos potenciais criativos dos alunos, e a reflexo

    crtica sobre os potenciais destrutivos da sociedade. Estas prticas foram

    divididas em dois momentos: o teatro Jornal e o exerccio de escrita dramtica a

    partir da contextualizao das tragdias gregas. Ambas esto interligadas, tendo

    em vista que a partir das improvisaes teatrais dos alunos com o Teatro Jornal,

    surgiu a necessidade de discutir mais aprofundadamente os fatos vigentes na

    sociedade atual. Estes fatos - a maioria publicados em jornais - foram

    considerados pelos alunos como tragdias, o que despertou em alguns o

    interesse pela pesquisa de textos trgicos do teatro grego da biblioteca da

    escola. Este momento consistiu basicamente na leitura das peas dipo Rei e

    Antgona, de Sfocles, que desencadeou cenas contextualizadas aos dias de

    hoje destas obras especficas.

    Anexei dois textos dramatrgicos dos alunos e tambm cpias

    xerogrficas de alguns artigos publicados durante a constituio da pesquisa,

    que derivam da mesma. Estes artigos pretendem levar a classe docente da

    regio a refletir sobre a educao nos dias de hoje.

  • 15

    2 - CONTEXTUALIZAO DA EXPERINCIA

  • 16

    2

    "o teatro pode ser praticado

    mesmo por quem no artista, da

    mesma maneira que o futebol

    pode ser praticado mesmo por

    quem no atleta." Augusto Boal

    (1980)

    2 Um dos subgrupos de alunos, no ptio da escola, combinando o roteiro das cenas.

  • 17

    A pesquisa teve por objetivo estudar as prticas de ensino de teatro com

    alunos (as) de uma turma de etapa 5, correspondente a 8 srie do ensino

    regular, do turno da noite da EJA - Educao de Jovens e Adultos da Escola

    Municipal Arthur Ostermann localizada no bairro Feitoria/Cohab Seller no

    Municpio de So Leopoldo/RS. Como parte desta dissertao realizei uma

    contextualizao da temtica Educao de Jovens e Adultos, bem como

    explanar sobre a insero da disciplina teatro na rede de ensino da EJA no

    Municpio de So Leopoldo/RS.

    A luta para aumentar a escolaridade ocorre h muitos anos. No incio do

    sculo passado a presso para acabar com o analfabetismo vinha da indstria,

    carente de mo-de-obra especializada. Diversos projetos oficiais surgiram, mas

    foram os movimentos sociais que deram as bases para a Educao de Jovens e

    Adultos que temos hoje. A ditadura militar tentou acabar com as iniciativas como

    os Centros Populares de Cultura e o Movimento de Educao de Base, entre

    outros, propondo o Movimento Brasileiro de Alfabetizao, o Mobral.

    Com a abertura poltica, a sociedade voltou a organizar-se. O Brasil

    participou de conferncias internacionais, reforando o compromisso com o fim

    do analfabetismo. A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB), de

    1996, dedicou EJA toda uma seo. O governo federal lanou em 1997 a

    Alfasol - Alfabetizao Solidria hoje uma ONG (Organizao No

    Governamental, atuante em 2433 municpios) e em 2001 o projeto

    Recomeo, que distribui recursos para aquisio de material e pagamento de

    professores de EJA para municpios com baixo ndice de Desenvolvimento

  • 18

    Humano. Foram as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2000 que definiram os

    objetivos da EJA: restaurar o direito educao, negado aos jovens e adultos,

    oferecer a eles igualdade de oportunidades para a entrada e permanncia no

    mercado de trabalho e qualificao para uma educao permanente.

    Mas garantir este direito e igualdade de oportunidade no o suficiente, ao

    atrair o adulto para a escola preciso garantir tambm que ele no a abandone.

    As altas taxas de evaso (menos de 30% concluem os cursos) tm origem no

    uso de material didtico inadequado para a faixa etria, nos contedos sem

    significado, nas metodologias infantilizantes aplicadas por professores

    despreparados e em horrios de aula que no respeitam a rotina de quem

    estuda e trabalha. Problemas como esses podem ser resolvidos quando o

    professor conhece as especificidades dessa comunidade e usa a realidade do

    aluno como eixo condutor das aprendizagens.

    Nos ltimos anos, houve um intenso movimento de jovens e adultos

    voltando sala de aula. Quem no teve oportunidade de estudar na idade

    apropriada, ou que por algum motivo abandonou a escola antes de terminar a

    Educao Bsica, est procurando as instituies de ensino para completar

    seus estudos. Aqueles que no sabem ler e escrever pretendem ser

    alfabetizados. Os que j tm essas habilidades desejam adquirir outros saberes

    para que tenham chances no concorrido mercado de trabalho e sintam-se

    cidados responsveis pelos destinos do pas. Quando falo em mercado de

    trabalho me refiro s normas internas de muitas empresas de somente admitir

    pessoas que tenham completado no mnimo o ensino fundamental. Assim

    correndo o risco de ficarem sem emprego por muito tempo, os cidados

  • 19

    retomam seus estudos noite dentro do Programa de Educao de Jovens e

    Adultos.

    Segundo a LDB, a EJA - Educao de Jovens e Adultos visa proporcionar

    acesso formao educacional destes a partir dos 15 anos. Tem por objetivo

    cumprir de maneira satisfatria, a preparao dos jovens e adultos para o

    exerccio da cidadania, bem como a qualificao profissional junto ao mercado

    de trabalho e sociedade. Sendo assim, e de acordo com os Parmetros

    Curriculares Nacionais, para a concretizao de uma prtica administrativa e

    pedaggica verdadeiramente voltada para o cidado necessrio que o

    processo de ensino-aprendizagem, na Educao de Jovens e Adultos, tenha

    coerncia com os princpios ticos de autonomia, da responsabilidade e do

    respeito ao bem comum; os princpios polticos dos direitos e deveres de

    cidadania, do exerccio da criticidade e do respeito ordem democrtica; os

    princpios estticos da sensibilidade, da criatividade e da diversidade de

    manifestaes artsticas e culturais. (PCNs, 1997).

    A incluso da linguagem artstica do teatro em 2006 no currculo da EJA

    do Municpio de So Leopoldo veio ao encontro da expanso de possibilidades

    de trabalho em prol destes princpios de sensibilidade, criatividade e diversidade,

    para que o teatro possa com a descoberta, reanimar e fortalecer o potencial

    criativo de todos. Isto supe que se ultrapasse a viso puramente instrumental

    da educao, considerada como a via obrigatria para obter certos resultados

    (saber-fazer, aquisio de capacidades diversas, fins de ordem econmica) e se

    passe a consider-la em toda sua plenitude: como realizao da pessoa que, na

    sua totalidade, aprende a ser. dentro deste contexto que o teatro

    recentemente foi inserido, embora ainda no tenha afirmaes de suas prticas

  • 20

    e carea de um aprofundamento atravs de um estudo acadmico que desvele

    sua aplicabilidade pedaggica e scio-cultural, aproximando-se desta realidade,

    atravs de uma abordagem dialtica, calcada no dilogo e na reflexo prtica e

    terica. a proposta deste trabalho.

    O Municpio de So Leopoldo contempla o Teatro em seus concursos

    para o magistrio, em conformidade com a Lei n 9.394/96 onde no artigo 26,

    inciso 2, diz que o ensino de artes constituir componente curricular obrigatrio,

    nos diversos nveis da educao bsica, de forma a promover o

    desenvolvimento cultural dos alunos. No conjunto de disciplinas de artes,

    compreendem-se as quatro linguagens artsticas: teatro, msica, dana e artes

    visuais. No entanto, no h critrio de escolha na hora de definir qual disciplina

    de artes ir para a escola, o processo se d atravs de necessidades

    emergenciais. Se uma escola precisa de professor (a) de artes, ela solicita a

    Secretaria Municipal de Educao, que verifica uma lista de aprovados em

    concurso. Como so quatro linguagens criada uma sequencia de convocao,

    um por linguagem. Um professor de teatro, um professor de msica, um

    professor de dana, um professor de artes visuais. A SMED consulta a

    sequencia, em que linguagem parou, e convoca o prximo professor. Mesmo

    que a equipe diretiva da escola queira determinada linguagem no possvel

    atend-la, deve-se respeitar a sequencia de convocaes, at esgotar a lista de

    concursados.

    Sempre tive envolvimento com ensino de teatro para jovens e adultos no

    ensino no-formal, que tem como principais caractersticas turmas

    multisseriadas compostas de alunos de idades bem diferentes, mas somente

    agora comeo a ter contato com ensino formal de jovens e adultos.

  • 21

    extremamente inquietante a diferena que se apresenta. O quadro outro: todos

    participam em uma nica srie do ensino fundamental, mesmo com idades

    diferentes, com vivncias e experincias diversas, idias e ideologias diferentes.

    Neste processo o teatro um meio que, alm de trazer novas propostas de

    aprendizagem e desenvolvimento do indivduo, pode esclarecer novas diretrizes

    para as relaes criadas e vividas no ambiente escolar e que ecoam na vida

    cotidiana de cada um. Buscando as razes desses fatores a presente pesquisa

    teve como objetivo desenvolver, neste ambiente escolar de ensino de jovens e

    adultos, uma proposta de abordagem dialtica, visando desenvolver pesquisa

    qualitativa, no eixo temtico teatro e educao. O propsito da pesquisa vem ao

    encontro dos estudos ainda em processo de Gil (2004: 62) que afirma

    A formao da sensibilidade humana o caminho da pesquisa

    em educao e teatro numa perspectiva dialtica marxiana. No

    o produto final, o resultado da anlise ltima dos dados que

    importa. No interessa a quantidade, mas o conjunto da prxis

    social.

    Pensando neste sensvel do ser humano e suas relaes sociais,

    econmicas, culturais, educacionais dentro e fora do ambiente da educao

    formal que apresento uma srie de questes que puderam ser elucidadas

    durante a pesquisa nas aulas prticas de teatro, ou seja, transformei estas

    questes em metas terico-prticas: Qual prxis de reflexo se constitui a partir

    do jogo teatral na EJA? Qual a dramaturgia que se revela na escrita e

    encenaes da EJA? O que est para alm do jogo teatral em comunho com o

    contedo social no qual o aluno/sujeito est inserido? Como se constituem as

  • 22

    aes/cenas a partir das vivncias prprias de cada aluno? Foram estabelecidas

    esta inquietaes/questionamentos como metas durante o processo.

    Na medida em que avanaram as atividades, resultado de um movimento

    constante entre prtica e teoria, foi possvel um olhar cada vez mais elaborado e

    que proporcionou uma qualificao no esclarecimento da escolha do quadro

    terico. Procurei relacionar a realidade do aluno, atravs das aulas de teatro,

    com as determinaes sociais mais amplas que atuam sobre a sua vivncia no

    dia-a-dia. No era a inteno nesta pesquisa investigar se o teatro eficaz ou

    importante e qual sua influncia no contexto social do aluno, o que Gil (2004,

    p.65) considera absolutamente antidialtico, mas sim, o teatro como mediador

    no processo de ensino-aprendizagem. Atravs de uma prtica embasada na

    relao dialgica, com o propsito de uma emancipao dos alunos envolvidos

    no processo pedaggico, busco a construo e afirmao de novos

    conhecimentos adquiridos.

    A teoria crtica se aproxima dos propsitos desta pesquisa, na medida em

    que afirma haver a necessidade de uma motivao poltica dos pesquisadores

    nas questes sobre desigualdades e dominao que, em conseqncia,

    permeiam seus trabalhos. A abordagem crtica relacional, investiga os grupos

    e instituies. Tem por base de anlise as aes humanas com a cultura e as

    estruturas sociais e polticas, onde procura compreender como as redes de

    poder so produzidas, medidas e transformadas. Os processos sociais esto

    sempre profundamente vinculados s desigualdades culturais, econmicas e

    polticas que dominam nossa sociedade. Grande parte destas desigualdades se

    devem, ainda hoje, ao processo de crise da humanidade desencadeada pela

    indstria cultural.

  • 23

    Entenda-se por indstria cultural a relao de padronizao de produtos

    culturais como: cinema, revistas, rdio, programas de televiso, para

    determinadas classes sociais atravs das articulaes entre a economia e a

    cultura no mundo contemporneo.

    A unidade sem preconceitos da indstria cultural atesta a

    unidade em formao da poltica. Distines enfticas, como

    entre filmes de classe A e B, ou entre histrias em revistas de

    diferentes preos, no so to fundadas na realidade, quanto

    antes, servem para classificar e organizar os consumidores a

    fim de padroniz-los. Para todos alguma coisa prevista, a fim

    de que nenhum possa escapar; as diferenas vm cunhadas e

    difundidas artificialmente. O fato de oferecer ao pblico uma

    hierarquia de qualidades em srie serve somente

    quantificao mais completa, cada um deve se comportar, por

    assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nvel,

    determinado a priori por ndices estatsticos, e dirigir-se

    categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu

    tipo. Reduzido a material estatstico, os consumidores so

    divididos, no mapa geogrfico dos escritrios tcnicos (que

    praticamente no se diferenciam mais dos de propaganda), em

    grupos de renda, em campos vermelhos, verdes e azuis.

    (Adorno, 2009:11)

    Theodor Adorno, filsofo alemo integrante da Escola de Frankfurt

    fundada em 1923, voltada aos estudos do pensamento filosfico, sociolgico e

    da pesquisa social de cunho marxista, juntamente com outros autores, como

    Horkheimer, desenvolveram a teoria crtica. Ao longo dos anos criaram

    categorias de pesquisa que se relacionam na viso de Totalidade - onde a

  • 24

    pesquisa, a partir do ponto de vista geral de classes ou grupos sociais deve se

    encontrar numa relao dialtica nos processos da Contradio presente na

    problematizao da pesquisa; da Mediao baseada na relao dialgica; da

    Negao estabelecida atravs da no aceitao dos padres sociais que

    estabelecem imobilismo; e do Conflito fator presente em qualquer relao

    social. O teatro vem ao encontro dessas categorias de pesquisa enquanto arte

    considerada de mediao, pois atravs dele que se estabelecem, no jogo e na

    criao, a tomada de conscincia histrica e a identificao com o nosso tempo.

    O conflito e a contradio precisam existir para estabelecerem a prtica e a

    reflexo crtica; possuem dinmicas fundamentadas na prxis, necessitando

    sempre de suportes tericos de reviso.

    Na Educao de Jovens e Adultos foram criadas novas relaes humanas

    e, no bojo dessa nova estrutura de convvio, o teatro surge como um veculo de

    aproximao, vivncia e transformao, seja no campo educacional como

    tambm scio-cultural (Vygotsky, 1987). Busquei neste espao social uma

    proposta de autonomia no s do aluno, mas principalmente do homem em sua

    realidade (Freire, 1970). H uma troca dialtica entre o que sabe e o que

    descobre com os demais, numa troca contnua de saberes e prticas com boa

    desenvoltura. H evoluo de uma conscincia crtica relativa aos fatos da

    sociedade em que esto inseridos. Trao um paralelo comparativo com o que se

    conhece e o que se descobre atravs da prvia da sala de aula. Com as prticas

    teatrais, atravs de construo e apresentao de cenas, debates e discusses,

    o grupo de alunos se organiza (Boal, 1975, 1979, 1980), se estruturando

    conforme a necessidade e o conhecimento que apresentava. Segundo Gramsci

  • 25

    (1989) onde sua conscincia superior consegue compreender o prprio valor

    histrico, a prpria funo na vida, os prprios direitos e deveres.

    Outro fator importante que ressalto aqui, no como objeto de estudo, mas

    no sentido de valorizar tambm a participao do professor/pesquisador e sua

    educao, a reflexo sobre sua situao atual, sobre a poltica educacional no

    Brasil e a grande responsabilidade do educador, como afirma Moll (1999: 37)

    uma das maiores pesquisadoras na rea

    O papel do educador nesta modalidade de ensino

    extremamente importante, pois os jovens e adultos possuem um

    histrico escolar permeado por questes como: variados

    espaos de tempo, desistncias, desestimulo, repetncias e

    problemas no s no campo cognitivo, mas no campo social,

    econmico e emocional.

    Os jovens e Adultos neste processo diferenciado de formao vivem

    situaes mpares devido em parte a variao de idades e interesses Giroux

    (1996: 72) define bem as angstias e os medos da juventude atual quando diz:

    A programada instabilidade e a transitoriedade difundida de

    forma caracterstica entre os jovens da faixa etria de 15 a 30

    anos esto inseparavelmente ligadas a um grande nmero de

    condies culturais ps-modernas constitudas pelos seguintes

    pressupostos: uma perda geral da f nos discursos modernos

    do trabalho e da emancipao; o reconhecimento de que a

    indeterminao do futuro justifica lutar e viver das esperanas

    imediatas.

  • 26

    Ao encontro deste pensamento, Brunel (2004: 54) nos diz que os

    problemas sociais e econmicos agravados no decorrer dos anos se verificam

    na sala de aula, quando observamos as angstias e as inquietaes desses

    jovens em relao realidade atual brasileira e ao seu futuro.

    Como as atividades foram divididas em dois caminhos prticos, o teatro-

    jornal e a contextualizao dramatrgica das tragdias gregas, procuro aqui

    discorrer sobre as mesmas, pontuando suas fundamentaes, para, em seguida,

    relatar e refletir sobre estas prticas.

  • 27

    3 - DUAS PRTICAS

  • 28

    3.1 O Teatro Jornal

    3

    A primeira prtica em questo foi o Teatro-jornal. Nos anos 60, Augusto

    Boal, falecido em 02 de maio de 2009, desenvolveu um teatro popular que

    chamou de Teatro do Oprimido - um teatro voltado para a discusso das

    necessidades do povo. Trata-se de mostrar alguns caminhos pelos quais o

    povo pode reassumir sua funo de protagonista no teatro e na sociedade.

    Assim desenvolveu uma srie de tcnicas de teatro popular em favelas,

    sindicatos, prises, pelo mundo, etc. Sobre o conceito de teatro do oprimido

    Boal diz:

    3 Um dos subgrupos na sala de aula combinando entradas e sadas na cena.

  • 29

    O teatro do oprimido no um teatro de classe. No , por

    exemplo, o teatro proletrio. Esse tem como temtica os

    problemas de uma classe em sua totalidade: os problemas

    proletrios. Mas no interior mesmo da classe proletria podem

    existir (e evidentemente existem) opresses. Pode acontecer

    que essas opresses sejam o resultado da universalizao

    dos valores da classe dominante ("As idias dominantes numa

    sociedade so as idias da classe dominante" - Marx). Seja

    como for, evidente que na classe operria podem existir (e

    existem) opresses de homens contra mulheres, de adultos

    contra jovens, etc. O teatro do oprimido ser o teatro tambm

    desses oprimidos em particular, e no apenas dos proletrios

    em geral. Da mesma forma que o teatro do oprimido no um

    teatro de classe, igualmente no um teatro de sexo

    (feminista, por exemplo), ou nacional, ou de raa, etc., porque

    tambm nesses conjuntos existem opresses.

    Portanto, a melhor definio para o teatro do oprimido

    seria a de que se trata do teatro das classes oprimidas e de

    todos os oprimidos, mesmo no interior dessas classes. (Boal,

    1980:25, b)

    Situando historicamente o perodo de surgimento do teatro desenvolvido

    por Augusto Boal, o professor Flvio Desgranges afirma que foi durante os

    anos 60 e meados dos 70 que artistas e educadores movidos pela idia de

    democratizao cultural, desenvolveram novas aes.

    Propondo uma nova maneira de compreender a atuao

    poltica, a ao por meio do teatro, um instrumento

    revolucionrio, provocaria a potncia imaginativa e

    transformadora do pblico. As formas artsticas mais

    surpreendentes e contraditrias surgiram neste perodo, todas

  • 30

    encaixadas em um movimento comum, de um radicalismo com

    grande vitalidade, em permanente contestao sociedade e

    cultura dominantes, que desconstrua os espaos teatrais

    tradicionais e transbordava pelas ruas e outros locais procura

    de espectadores, diminuindo a distncia entre vida teatral e vida

    social. (Desgranges, 2003:48).

    Boal ponto fundamental neste trabalho, com suas tcnicas e jogos

    teatrais criados e aperfeioados atravs da prtica em comunidades no s

    da Amrica Latina como tambm em povos de todos os outros continentes.

    Ele as chama de exerccios e jogos para atores e no-atores com vontade de

    dizer algo atravs do teatro. Boal acredita que o teatro pode ser praticado

    mesmo por quem no artista, da mesma maneira que o futebol pode ser

    praticado mesmo por quem no atleta. Uma destas tcnicas o Teatro-

    jornal que consiste em utilizar matrias da mdia impressa como mote para

    improvisaes teatrais seguidas de debates e reflexes mais aprofundadas

    sobre os temas vigentes na comunidade que os alunos esto inseridos como

    tambm do mundo. Os principais objetivos so investigar e discutir os

    problemas sociais, como nos afirma Boal:

    ... consistia na investigao de tcnicas, nove ao todo, onde era

    possvel transformar qualquer notcia de jornal em cena de

    teatro. No tinha o objetivo de realizar um espetculo bem

    acabado e bem sucedido, mas de instrumento de discusso dos

    problemas que afetavam a sociedade (Boal, 1979: 42).

  • 31

    O fato de um cidado, hoje, pegar um jornal para ler as notcias, ou at

    mesmo uma revista, ouvir rdio e assistir televiso, passa por uma opinio j

    formada dos editoriais que publicam o que lhes mais lucrativo conforme

    interesses de empresas publicitrias e determinados grupos polticos. Esta

    apreciao condicionada ocasiona muitas vezes uma no reflexo em relao

    aos acontecimentos ou um sentimento conforme determina esta parte da

    indstria cultural. Freqentemente as notcias so encaradas como verdades

    absolutas dentro de um sistema cultural, econmico e social estabelecido.

    O teatro-jornal, entre seus objetivos, procura desmistificar a

    pretensa objetividade do jornalismo: demonstra que uma

    notcia publicada em um jornal uma obra de fico. (...) O

    teatro-jornal a realidade do jornalismo porque apresenta a

    notcia diretamente ao espectador sem o condicionamento

    da diagramao. Algumas de suas tcnicas, como a do

    improviso so a realidade mesma: aqui no se trata de

    representar uma cena, mas de viv-la de cada vez. E cada

    vez nica em si mesma como nico cada segundo,

    cada fato, cada emoo. Neste caso, jornal fico, teatro-

    jornal realidade. (Boal, 1979: 43).

    Vivemos a era da velocidade sem muitas vezes refletir sobre o que

    acontece, como nos afirma Paulo Freire em seus saberes necessrios prtica

    educativa:

    O mundo encurta, o tempo se dilui: o ontem vira agora; o

    amanh j est feito. Tudo muito rpido. Debater o que se diz e

    o que se mostra e como se mostra... me parece algo cada vez

    mais importante (Freire, 1996: 157).

  • 32

    No processo das aulas de teatro utilizamos as notcias de jornais,

    transpostas para cena, como forma de propiciar um momento onde o sujeito

    possa exercitar outras formas de reflexo. Dentro de uma viso de que os

    fatos viram histria, o aluno pode desenvolver uma postura crtica dialtica

    atravs das improvisaes, discusses e montagens de cenas que dialoga

    com vrios pontos de vista possveis. Assim o aluno passa a ter uma

    conscientizao maior frente ao desvelamento de quem oprimido e opressor

    nesta sociedade.

    Em uma tentativa de enfocar alguns dos diversos aspectos

    opressores da vida social nos tempos que correm e que nem

    sempre se afastam das opresses ocorridas nos anos da

    criao deste teatro - talvez se possa conceber o Teatro do

    Oprimido como o teatro dos excludos das prticas efetivamente

    democrticas, quem sabe o teatro do sedado pela

    espetacularizao e a banalizao promovida pelos veculos de

    comunicao de massa, ou o teatro dos sem oportunidade, dos

    sem teto, sem terra, sem emprego, sem uma escola decente,

    sem acesso aos bens culturais, dos sem arte, o teatro dos sem

    teatro, o teatro dos sem imaginrio ou melhor, dos que se

    indignam com o freqente e amplo veto ao imaginrio, que

    inviabiliza a possibilidade de formular sonhos prprios -,

    daqueles que, impedidos no presente, se sentem incapazes de

    reaver o passado e construir o futuro. (Desgranges, 2006:77).

    Unindo estas linhas prticas e pedaggicas, diante de uma sociedade

    cada vez mais competitiva, individualista e violenta, como o ensino do teatro

  • 33

    pode transformar a realidade? H muitos caminhos a trilhar com o trabalho de

    Boal, como tambm para a pedagogia que influenciou Boal a Pedagogia do

    Oprimido de Paulo Freire que apresenta uma prtica educativa calcada na

    necessidade de transformao, da reinveno do mundo em favor das

    classes oprimidas, da descoberta do seu lugar na sociedade.

    Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da

    hora atual, se propem a si mesmos como problema.

    Descobrem que pouco sabem de si, de seu posto no cosmos,

    e se inquietam por saber mais. Estar, alis, no reconhecimento

    do seu pouco saber de si uma das razes desta procura. Ao se

    instalarem na quase, seno trgica descoberta do seu poder

    saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam.

    Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.

    (Freire, 1996:29).

    Inquietaes derivadas de novas questes na prtica do trabalho

    pedaggico com teatro na sala de aula que revelam uma pesquisa

    participante. Participante no sentido Freireano de que todos aprendem juntos

    e com aes coletivas. No incio dos trabalhos, realizamos improvisaes de

    teatro utilizando apenas estmulos a partir de determinado jogo teatral. Os

    jogos teatrais tiveram papel importante na preparao dos alunos para

    desconstruir uma relao mais fechada vinda do mundo externo as atividades

    de teatro. Que proporcionavam um ambiente mais descontrado e de

    confiana, de espontaneidade e desinibio, no trato de se expor uns aos

    outros em situaes de criao teatral. Momento que para outros fora do

    contexto das prticas poderia parecer um tanto estranho e desconfortvel.

  • 34

    Por exemplo, quando sentia que a turma de alunos estava um tanto

    desconcentrada no inicio da atividade, devido aos afazeres do cotidiano,

    repleto de inusitadas situaes, realizava o jogo "Passa-palma". Consistia na

    formao de uma roda de alunos que deveriam passar a palma para o colega

    do lado esquerdo. Uma palma em que uma das mos deslizava na outra e

    produzia uma palmada de som forte. O aluno seguinte deveria passar para o

    prximo e assim sucessivamente. Quando feita umas dez vezes a roda,

    invertia-se a direo da palma. O olhar deveria tambm acompanhar a

    direo da palma. Sempre uma pessoa olhando no olho do outro. Este jogo

    simples, permitia que em poucos minutos todos na sala estivem

    descontrados e concentrados para a atividade.

    Caso os alunos ainda precisassem de um jogo que os trouxessem

    realmente para a atividade, pois a disperso em determinadas noites era

    grande em funo de que durante o dia houve tiroteios na comunidade, eu

    propunha o jogo "Cair com nmeros". O jogo tambm era realizado em

    formato circular com a distancia de meio passo um do outro, ficavam de p.

    Cada aluno recebia um nmero, e quando eu dizia um nmero, o aluno

    correspondente caia pra trs com certa tenso no corpo, suficiente para que

    os dois colegas nas laterais o segurassem evitando que ele casse de fato no

    cho. O jogo alm da exigncia de silncio e concentrao trazia no seu fazer

    uma relao de confiana e aproximao quando havia o toque no corpo um

    do outro.

    Outro jogo importante no processo das prticas foi o de imaginao, que

    transforma uma massa disforme e invisvel em objeto real.

  • 35

    Era realizado da seguinte forma: aps todos criarem seus objetos numa

    rodada de trs vezes, os alunos passavam a criar improvisos a partir da

    manipulao destes objetos numa cena curta de grupos de cinco alunos. Em

    uma das cenas havia guarda-chuvas e bonecos. A ligao deste jogo de

    imaginao com a cenas de teatro jornal vinham seqenciadas. Quando eram

    realizadas cenas com base em notcias de jornais, os elementos retornavam.

    Este jogo proporcionou uma qualidade cnica s improvisaes.

    Em determinado momento um aluno de um grupo pequeno props que

    improvisassem em cima de uma noticia do Jornal Vale dos Sinos. Jornal local

    da cidade. Realizou uma cena a partir de uma noticia sobre uma invaso de

    terreno em uma comunidade do Municpio de So Leopoldo. Havia o relato

    que uma criana iria nascer durante esta invaso e que as condies do j

    assentamento de algumas famlias eram precrias e insalubres. Contava-se

    ainda que a proprietria do terreno estivera por l com oficiais de justia e

    policia.

    De posse desta noticia e aps breve combinao, dois grupos se uniram

    e realizaram uma improvisao sobre o tema, utilizando os objetos

    imaginrios. Depois da breve encenao, foi realizado um debate. Em

    seguida propus que o grupo continuasse aperfeioando a cena,

    transformando os elementos invisveis em reais.

  • 36

    3.1.1 Peas breves

    4

    Passo a discorrer sobre duas peas breves desenvolvidas pelos alunos de

    etapa 5, da Educao de Jovens e Adultos da Escola Municipal Arthur

    Ostermann, do bairro Feitoria de So Leopoldo. A etapa 5 corresponde a 8 srie

    do ensino fundamental regular, constituda de alunos que vieram das etapas

    anteriores na prpria escola ou que foram matriculados diretamente nesta etapa,

    em funo de terem interrompido os estudos na srie correspondente.

    As aulas de teatro aconteciam uma vez por semana, nas quintas-feiras,

    com duas horas de durao cada encontro. Das 18h30min s 20h30min. As

    propostas foram tiradas de notcias de jornais da poca de cada encenao. A

    primeira pea foi chamada de Sem teto, mas com esperana, e mostra a

    4 Apresentao da Pea "Sem teto, mas com esperana", na sala de aula, para as demais turmas da EJA.

  • 37

    situao de um grupo de sem teto que ocupa um terreno amplo num bairro

    perifrico chamado de Vicentina em So Leopoldo. A segunda pea teve o nome

    de A fbrica de calados e apresenta um grupo de mulheres trabalhadoras que

    reivindicam melhores salrios em uma fbrica de calados em dificuldades

    financeiras diante da crise econmica mundial.

    Eu trouxe a proposta do Teatro-jornal como propulsor de um debate maior

    ligado as necessidades da turma e da comunidade. Explanei sobre o assunto da

    importncia ou no dos veculos de comunicao de massa e a possibilidade de

    utiliz-los para uma postura mais crtica dentro da sociedade. Aps dividir a turma

    em dois grupos de oito alunos, solicitei que, ao escolherem os assuntos,

    procurassem estabelecer alguma relao com sua vida e da regio.

    O processo de escolha das temticas foi ento a partir da leitura de jornais

    da regio, procurando assuntos que mereciam reflexo e discusso do coletivo de

    alunos, que tivessem algum significado, uma identificao com a realidade da

    comunidade onde a escola estava inserida e os alunos morassem. No fiz

    interveno nas escolhas dos assuntos, me reservei e deixei que os alunos

    optassem livremente com base nas suas experincias e necessidades de

    reflexo.

    Os dois assuntos escolhidos foram muito prximos da realidade dos

    alunos. A dificuldade por adquirir terreno ou casa para moradia e a procura de

    emprego. O Vale dos Sinos, regio em que est situado o municpio de So

    Leopoldo, possui em sua estrutura econmica uma grande quantidade de

    empresas que manufaturam calados. O ramo caladista da regio conhecido

    no mundo inteiro. Nos ltimos anos empresas faliram e ocorreram demisses em

    massa.

  • 38

    A cenografia consistia alm dos objetos das alunas, tambm cadeiras,

    mesas e folhagens da prpria escola, sendo acrescida de um painel de tecido

    pintado que mostrava uma casa com rvores. Figurinos e maquiagem eram

    definidos por alunas que trabalhavam com manicure, maquiagem e lojas de

    vendas de roupas. Tudo foi feito pelas alunas, coube-me apenas estabelecer

    pequenas coordenadas com relao ao espao ocupado pela encenao. Tendo

    em vista que houve apresentaes para as outras turmas e para funcionrios da

    escola, se fez necessrio estabelecer melhor o espao ocupado da sala.

    Geralmente combinvamos que metade da sala seria palco, rea para ao

    alunos/atores ocuparem com a marcao de cenas, e a outra metade seria

    platia. Estabelecemos assim um nmero aproximado de quarenta pessoas por

    vez a cada apresentao. Ao todo foram trs apresentaes, pois o ano letivo

    acabou e todos os alunos progrediram para o ensino mdio.

  • 39

    3.1.2 Sem teto, mas com esperana.

    5

    Um grupo de cidados sem teto ocupa uma grande rea de terra

    pertencente a uma importante e influente empresria da cidade. A vizinhana

    espantada entra em contato com a proprietria, avisando da invaso. Logo chega

    o oficial de justia solicitando a retirada das barracas e que o grupo saia

    imediatamente do local com seus pertences. Diante do fracasso da tentativa, o

    oficial volta com os fiscais da prefeitura. O grupo de sem teto solicita uma

    conversa direta com a dona do terreno: querem expor os motivos e propor um

    5 O Nascimento de Vitria, filha de uma adolescente, durante a invaso do terreno.

  • 40

    arrendamento da rea. H uma demora no atendimento da solicitao dos

    ocupantes. Enquanto isso, a rotina no acampamento toma ares de uma

    apreenso maior com a possibilidade de uma integrante dar a luz ali mesmo entre

    as barracas. O que de fato acontece, nascendo uma menina. Em meio ao choro

    do beb, recm nascido, chega a proprietria. So colocados os argumentos e

    propostas. O grupo deseja morar no local, criar uma nova comunidade. Mesmo

    colocando que so trabalhadores, alguns desempregados, gente boa que quer

    um pedao de cho para poder ver os filhos crescerem com dignidade e

    segurana, sade e estudo, no so aceitos. O dilogo se mostra de uma via s.

    A liderana do grupo sai do local levando a criana no colo dizendo que, embora a

    ganncia dos poderosos no tenha fim, o povo oprimido jamais perder a

    esperana de dias melhores e mais justos.

    Esta cena foi elaborada por um grupo de oito alunos durante dois meses. O

    grupo utilizou guarda chuvas grandes para representar as barracas, colocando-os

    no cho em frente a cena, produzindo assim certa barreira para a viso do

    pblico. Criavam atrs destes a cena do parto. Para se aproximar da realidade, os

    integrantes passaram nas mos tinta guache de cor vermelho vivo, reproduzindo

    sangue. A aluna/atriz que fez a me que deu a luz representou com emoo ao

    dar os gritos na hora do parto. Claro que em alguns momentos tambm ria da

    prpria situao, ela que nunca teve filhos. Este momento clmax foi estabelecido

    a partir dos prprios alunos, j que na noticia de jornal no havia nenhum relato

    de parto. O boneco que representava o beb foi pintado de tinta vermelha

    tambm, aps enrolado em um pano, pertencente a um filho de outra aluna. Pode

    assim ser embalado e carregado pela lder dos sem teto durante a discusso com

    a proprietria das terras. A trilha sonora escolhida e operada pelos alunos foi

  • 41

    composta alm de um choro de beb, das seguintes msicas: Admirvel gado

    novo, de Z Ramalho,

    Admirvel Gado Novo

    Z Ramalho

    Composio: Z Ramalho

    Oooooooooh! Oooi!

    Vocs que fazem parte dessa massa

    Que pensa nos projetos do futuro

    duro tanto ter que caminhar

    E dar muito mais do que receber...

    E ter que demonstrar sua coragem

    margem do que possa parecer

    E ver que toda essa engrenagem

    J sente a ferrugem lhe comer...

    eeeeh! Oh! Oh!

    Vida de gado

    Povo marcado

    h!

    Povo feliz!...(2x)

    L fora faz um tempo confortvel

    A vigilncia cuida do normal

    Os automveis ouvem a notcia

    Os homens a publicam no jornal...

    E correm atravs da madrugada

    A nica velhice que chegou

    Demoram-se na beira da estrada

    E passam a contar o que sobrou...

    eeeeh! Oh! Oh!

    Vida de gado

    Povo marcado

    h!

    Povo feliz!...(2x)

    Oooooooooh! Oh! Oh!

    O povo foge da ignorncia

    Apesar de viver to perto dela

    E sonham com melhores tempos idos

    Contemplam essa vida numa cela...

    Esperam nova possibilidade

    De verem esse mundo se acabar

    A Arca de No, o dirigvel

    No voam nem se pode flutuar

    No voam nem se pode flutuar

    No voam nem se pode flutuar...

    eeeeh! Oh! Oh!

    Vida de gado

    Povo marcado

    h!

    Povo feliz!...(2x)

    Ooooooooooooooooh!

  • 42

    E a msica Trabalhador brasileiro, de Seu Jorge.

    Trabalhador

    Seu Jorge

    Composio: Seu Jorge

    Est na luta, no corre-corre, no dia-a-dia

    Marmita fria mas se precisa ir

    trabalhar

    Essa rotina em toda firma comea s

    sete da manh

    Patro reclama e manda embora quem

    atrasar

    Trabalhador

    Trabalhador brasileiro

    Dentista, frentista, polcia, bombeiro

    Trabalhador brasileiro

    Tem gari por a que formado

    engenheiro

    Trabalhador brasileiro

    Trabalhador

    E sem dinheiro vai dar um jeito

    Vai pro servio

    compromisso, vai ter problema se ele

    faltar

    Salrio pouco, no d pra nada

    Desempregado tambm no d

    E desse jeito a vida segue sem

    melhorar

    Trabalhador

    Trabalhador brasileiro

    Garom, garonete, jurista, pedreiro

    Trabalhador brasileiro

    Trabalha igual burro e no ganha

    dinheiro

    Trabalhador brasileiro

    Trabalhador

    Os figurinos, bem como a maquiagem foram criados com esmero, tal qual a

    realidade das comunidades mais carentes da regio.

    Houve um momento muito emocionante, quando uma aluna depois de

    realizada a encenao, fez o comentrio de que estava apresentando a vida da

    sua famlia, quando vieram morar no bairro Feitoria em So Leopoldo. As

  • 43

    situaes eram semelhantes e, no entanto, ela s tomou conscincia do fato

    naquele momento, pois at ento no tinha resgatado da sua memria familiar tal

    fato. Transcendendo da realidade pelo simblico do teatro.

  • 44

    3.1.3 A fbrica de calados

    6

    A cena inicial mostra a parte interna de uma empresa fabricante de

    calados. No centro da cena uma grande mesa com funcionrias trabalhando na

    manufatura de partes de calados. Existem quatro funcionrias sentadas na

    mesa e uma fiscal de qualidade que ronda a mesa o tempo todo. Na volta de um

    intervalo a fiscal comenta que pode haver demisso em massa na empresa em

    funo da crise econmica mundial. O que causa alvoroo e preocupao com

    as demais funcionrias. Cada uma coloca a necessidade de permanecer no

    6 Ensaio da cena inicial da pea "A fbrica de calados", onde a supervisora insulta os funcionrios.

  • 45

    emprego. Desde as contas que aumentaram como tambm a famlia que vai

    aumentar. Uma delas no possui compromissos como manter famlia ou contas

    em excesso a pagar. Pensam numa proposta para o dono da fbrica. Quando o

    empresrio vem avisar do corte de gastos com demisso de funcionrios, todas

    se mostram descontentes e ameaam com uma greve. O patro deixa a cargo

    das funcionrias decidirem quem vai ser a pessoa demitida e sai. Discutem

    muito at chegarem a um consenso. Quando ele volta para saber do nome, elas

    propem uma reduo de carga horria dos funcionrios. Ele explica que

    mesmo assim haver uma reduo tambm no salrio, sendo

    momentaneamente este o acordo, mas que poderia mudar conforme a economia

    mundial.

    Durante estas cenas havia certo nervosismo no ar. Aps apresentarem,

    realizamos um debate para que pudesse mais uma vez ouvir as impresses dos

    alunos e platia. Notadamente nervosas, trs alunas passaram a comentar

    espaadamente que a situao da pea era a vida delas. Uma havia sido

    demitida no inicio do ano e, desde ento, aps dez anos de fbrica no

    conseguia trabalho algum, pois alm de s saber trabalhar com mquinas de

    fabricar calados, estava tambm com a escolaridade atrasada. As outras duas

    alunas mencionaram que a situao de possvel falncia da empresa caladista

    da pea era na vida real a mesma na fbrica em que trabalhavam, o que ocorreu

    de fato no ms seguinte.

    Eis a importncia do trabalho com o teatro do oprimido. O processo de

    reflexo a respeito da condio humana destas alunas, que viviam no limite

    entre a realidade e a fico foi transformado em ao. Boal dizia que no teatro

    do oprimido, os participantes esto no exato limite entre a pessoa e o

  • 46

    personagem. Cria-se assim uma analogia, onde a identidade do personagem se

    confunde com a do ator/atriz, tornando-se uma pessoa s, dentro do processo

    reflexivo de sua condio social.

    Essa identidade, esse limite (pessoa-personagem, fico-

    realidade) so, a meu ver, a causa fundamental do

    extraordinrio potencial do teatro do oprimido. Isso porque o

    teatro do oprimido no o teatro para o oprimido: o teatro

    dele mesmo. No o teatro no qual o artista interpreta o papel

    de algum que ele no : o teatro no qual cada um, sendo

    quem , representa seu prprio papel (isto , organiza e

    reorganiza sua vida, analisa suas prprias aes) e tenta

    descobrir formas de liberao. Como se cada participante se

    estranhasse a si mesmo, fosse ao mesmo tempo o analista e

    o objeto analisado. (Boal, p. 24, 25, 1980)

    As alunas reconstruram de certa forma suas experincias de forma

    coletiva com a turma. Assuntos que lhes pareciam peculiares foram desvelados

    como sendo os mesmos temas preocupantes para outras pessoas da platia.

  • 47

    3.2 Dramaturgia

    7

    A segunda prtica de sala de aula que propus estava ligada aos PCNs e

    norma do Programa EJA em So Leopoldo que preconizava a realizao de

    produo textual. Todas as disciplinas deveriam trabalhar com a escrita. Em

    teatro fui para o caminho da escrita do texto teatral, a dramaturgia. Atravs das

    aulas propostas, os alunos leram textos de teatro num primeiro momento.

    Fomos biblioteca da escola e retiramos todos os livros de texto para teatro, em

    7 Um grupo de alunos debate os temas para a escrita teatral.

  • 48

    sua maioria peas infanto-juvenis. No entanto, encontramos dois textos, as

    tragdias gregas de Sfocles: Antgona e dipo Rei. Solicitei a leitura das peas,

    seguida da realizao de uma sinopse do texto lido. Feitas as snteses de textos,

    realizamos as leituras. A cada trs lidos debatamos sobre a conciso da histria

    e o que era importante realmente constar nesta sinopse para que o leitor

    entendesse o que era a pea e sua estrutura (inicio, meio e fim). Como por

    exemplo, quem era o personagem principal (protagonista) e os coadjuvantes,

    qual sua evoluo na pea, qual a temtica central, quais os conflitos deste

    personagem, quais as solues do dramaturgo para o desfecho final.

    Estudamos tambm a estrutura de escrita do texto teatral, diferente do

    romance, do conto, dos quadrinhos, do cinema, da poesia. O texto teatral

    estruturado em forma de dilogo escrito e a participao do dramaturgo no texto

    se d atravs da didasclia. Segundo Pavis (p. 96, 2003) "Do grego didascalia,

    ensinamento. So instrues dadas pelo autor aos seus atores (teatro grego por

    exemplo), para interpretar o texto teatral. Por extenso, no emprego moderno:

    indicaes cnicas ou rubricas.

    Quando realizamos a leitura das snteses de dipo Rei e Antgona, de

    Sfocles, muitas questes foram levantadas pelos alunos.

  • 49

    A pea dipo Rei

    8

    Na histria grega, Laio, o rei de Tebas havia sido alertado

    pelo Orculo de Delfos que uma maldio iria se concretizar:

    seu prprio filho o mataria e que este filho se casaria com a

    prpria me. Por tal motivo, ao nascer dipo, Laio

    abandonou-o no monte Citero pregando um prego em cada

    p para tentar mat-lo. O menino foi recolhido mais tarde por

    um pastor e batizado como "Edipodos", o de "ps-furados",

    que foi adotado depois pelo rei de Corinto e voltou a Delfos.

    dipo consulta o Orculo que lhe d a mesma previso dada

    a Laio, que mataria seu pai e desposaria sua me. Achando

    se tratar de seus pais adotivos, foge de Corinto. No caminho,

    dipo encontrou um homem e, sem saber que era o seu pai,

    brigou com ele e o matou, pois Laio o mandou sair de sua

    frente. Aps derrotar a Esfinge que aterrorizava Tebas, que

    lanara um desafio ("Qual o animal que tem quatro patas de

    manh, duas ao meio-dia e trs noite?"), dipo conseguiu

    8 Cena do enterro do irmo de Antgona.

  • 50

    desvendar, dizendo que era o homem. "O amanhecer a

    criana engatinhando, entardecer a fase adulta, que usamos

    ambas as pernas, e o anoitecer a velhice quando se usa a

    bengala". Conseguindo derrotar o monstro, ele seguiu sua

    cidade natural e casou-se, "por acaso", (j que ele pensava

    que aqueles que o haviam criado eram seus pais biolgicos)

    com sua me, com quem teve quatro filhos. Quando da

    consulta do orculo, por ocasio de uma peste, Jocasta e

    dipo descobrem que so me e filho, ela comete suicdio e

    ele fura os prprios olhos por ter estado cego e no ter

    reconhecido a prpria me. Aps sair do palcio, dipo

    avisado pelo Corifeu que no mais rei de Tebas; Creonte

    ocupara o trono, desde ento. dipo pede para ser exilado,

    mandado embora. Pede, ainda, para que Creonte cuide das

    seus filhos, Antgona, Ismnia, Etocles e Polinces, como se

    fossem seus prprios. (Brando, 1985:39)

    A pea Antgona

  • 51

    9

    Conta a historia de Antgona, que deseja enterrar seu

    irmo Polinice, que atentou contra a cidade de Tebas, mas o

    tirano da cidade, Creonte, promulgou uma lei impedindo que

    os mortos que atentaram contra a lei da cidade fossem

    enterrados, o que era uma grande ofensa para o morto e sua

    famlia, pois a alma do morto no faria a transio adequada

    ao mundo dos mortos. Antgona, enfurecida, vai ento sozinha

    contra a lei de uma cidade e enterra o irmo, desafiando todas

    as leis da cidade, Antgona ento capturada e levada at

    Creonte, que sentencia Antgona morte, no adiantando

    nem os apelos de Hemon, filho de Creonte e noivo de

    Antgona, que clama ao pai pelo bom senso e pela vida de

    Antgona, pois ela apenas queria dar um enterro justo ao

    irmo. Hemon briga com Creonte e Antgona levada a

    morte, uma tumba onde Antgona ficar at morrer. Aparece

    Tirsias, o adivinho, que avisa a Creonte que sua sorte est

    acabando, pois o orgulho em no enterrar Polinice acabar

    destruindo seu governo. Antes de poder fazer algo, Creonte

    descobre que Hemon, seu filho, se matou, desgostoso com a

    pena de morte de Antgona. Aparece Eurdice e conta que, ao

    abrir a tumba onde Antgona estava presa, encontram-na

    enforcada. Eurdice, desiludida pela morte do filho tambm se

    mata, para desespero de Creonte, que ao ver toda sua famlia

    morta se lamenta por todos os seus atos, mas principalmente

    pelo ato de no ter atendido o desgnio dos deuses, o que lhe

    custou vida de todos aqueles que lhe eram queridos.

    (Brando, P. 51, 1985)

    Os alunos indagaram: se aqueles textos eram tragdias, o que a

    sociedade hoje chamaria de tragdia? Solicitei aos alunos que realizassem uma

    9 Guardas durante a emboscada, esperam por Antgona.

  • 52

    pesquisa para a definio de tragdia e que trouxessem o que para eles

    tragdia hoje em dia.

    No dicionrio de teatro de Patrice Pavis existem sete pginas dedicadas

    tragdia e suas derivaes, como a tragicomdia.

    (Do grego tragoedya, canto do bode - sacrifcio aos deuses

    pelos gregos). Pea que representa uma ao humana

    funesta muitas vezes terminada em morte. Aristteles d uma

    definio de tragdia que influenciar profundamente os

    dramaturgos at nossos dias: "A tragdia a imitao de uma

    ao de carter elevado e completo, de uma certa extenso,

    numa linguagem temperada com condimentos de uma

    espcie particular conforme as diversas partes, imitao que

    feita por personagens em ao e no por meio de narrativa, e

    que, provocando piedade e temor, opera a purgao prpria

    de semelhantes emoes". (Pavis, p. 415, 2003)

    Tambm explanei aos alunos os elementos que compem a tragdia

    grega. Mesmo que no memorizassem tais terminologias, entenderiam o

    significado que Pavis coloca de forma compreensvel a estudantes no assunto.

  • 53

    10

    Vrios elementos fundamentais caracterizam a

    obra trgica: a catharsis ou a purgao das paixes pela

    produo do terror e da piedade; a hamartia ou ato do heri

    que pe em movimento o processo que o conduzir perda;

    a hybris, orgulho e teimosia do heri que persevera apesar

    das advertncias e recusa esquivar se; o pathos, sofrimento

    do heri que a tragdia comunica ao pblico. A sequencia

    tipicamente trgica teria por "frmula mnima": o mythos a

    mimese da prxis atravs do pathos at a anagnoris. O que

    significa, dito de maneira clara: a histria trgica imita as

    aes humanas colocadas sob o signo dos sofrimentos das

    personagens e da piedade at o momento do

    reconhecimento das personagens entre si ou da

    conscientizao da fonte do mal. (Pavis, 2003:416)

    A partir da compreenso destes esquemas bsicos do dramaturgo, na

    construo de um texto trgico, partiram para criao de suas prprias peas. O 10 Mscara da Tragdia Grega, pertencente ao professor, utilizada pelos alunos no processo de criao das cenas.

  • 54

    objetivo era que construssem textos que contextualizassem nos dias de hoje, os

    personagens, enredos, tramas das peas e mitos gregos de que tivessem

    conhecimento. Poderiam ir alm dos textos encontrados na biblioteca da escola.

    Porm, antes de iniciarem as escritas, levei uma mscara semelhante a

    da tragdia grega e propus um exerccio com a utilizao da mscara. Dividimos

    a sala em forma de palco/platia. Na rea do palco duas cadeiras, uma delas

    com a mscara a espera de algum para coloc-la. Duas pessoas se dirigiam

    para as cadeiras e uma colocava a mscara. Aquela que colocava era o

    personagem trgico, que criaria de improviso uma movimentao carregada de

    sentimentos trgicos. Um exerccio livre sem qualquer rotulao de sentimentos.

    Bastava expressar um sentimento trgico que a outra pessoa se encarregaria de

    criar um desfecho movimentao.

    Uma cena que destaco foi quando uma aluna pegou a mscara e

    realizou o movimento de desolao por perda de algum. Lamentava, como

    Creonte diante do filho morto ou como Antgona diante do irmo insepulcro

    Polinces. Imediatamente a outra pessoa se ps como o corpo do outro,

    esticando-se no cho. Passou-lhe a mo no rosto e deu um ltimo adeus antes

    de cobrir-lhe com um casaco. Uma cena extremamente potica e densa para

    aqueles alunos que tiveram um primeiro contato com uma mscara de tragdia e

    com os textos gregos.

    Aps os exerccios com mscara analisei os processos da escrita de

    textos para teatro, como um veculo da conscincia crtica do homem em relao

    aos fatos vigentes no mundo. Teve inicio ento a prtica, atravs de princpios

    bsicos da estrutura do drama como o enredo, a trama, os personagens, a

  • 55

    construo de cenas. Elementos bsicos para dramaturgia, como nos esclarece

    Eric Bentley sobre as tragdias.

    A pea deveria ser uma catstrofe motivada pelos

    personagens e situaes; sua exposio e dilogos devem ser

    geralmente analticos, isto , devem carregar a ao e

    informar-nos dos fatos preliminares ao mesmo tempo; a trama

    ideal simples, na qual, no muitas pessoas, contrastantes em

    motivaes e temperamentos, so juntadas no menor espao

    possvel. (1991:73)

    Os alunos desenvolveram textos curtos, cujas temticas: traio e

    vingana foram a tnica. A dramaturgia foi desenvolvida individualmente ou em

    duplas e no em grupos maiores como costume, e assim teramos um banco de

    peas na biblioteca, para serem encenadas no ano seguinte, diminuindo assim

    as dificuldades de material dramatrgico. Outra possibilidade era que

    pudssemos ter peas para um varal de dramaturgia que seria exposto num

    evento de aniversrio da escola. O que no aconteceu, devido ao forte temporal

    naquela semana.

    As duas peas anexadas nesta dissertao foram as nicas encenadas,

    por serem as primeiras concludas. O ano letivo acabou e no foram encenadas

    outras cinco peas entregues no ltimo dia de aula. Nas duas encenaes

    pouco se mudou do texto, tendo em vista que os autores desempenharam o

    papel de atores e coordenadores da encenao.

  • 56

    Procurei assim desenvolver um ambiente de criao, dilogo e

    transformao de conhecimento intelectual, a partir do exerccio de

    compreenso e elaborao de peas com base nas tragdias.

    Ao tomar como base a afirmao de Gramsci de que todas as pessoas

    so intelectuais, porque pensam, fazem mediaes e aderem a uma viso

    especfica de mundo, confrontam a realidade desenvolvendo um pensamento

    crtico (1989), propus o estudo e prtica do teatro Grego como elemento

    catalisador e de organizao social e cultural de um determinado grupo.

    Relacionei estas idias s prticas teatrais, no sentido de criao de cenas

    teatrais, visando alcanar um teatro vivo, latente e presente, como exemplo, o

    Teatro-jornal, anteriormente citado.

    Em uma parte do processo das atividades de teatro utilizamos, alm dos

    materiais do cotidiano como guarda-chuvas, cordas de varal para adereos e

    cenografia, tambm as notcias de jornais transpostas para a cena, como forma

    de propiciar um momento onde o aluno possa exercitar outras formas de

    reflexo. Atravs das improvisaes e montagem de cenas que dialoguem com

    vrios pontos de vista possveis, foi possvel conscientizar sobre determinados

    fatos que no mundo ocorrem, e depois contextualizar com a leitura dos gregos.

    Assim estabelecemos referncias aos dias de hoje.

    No desenvolvimento do trabalho, relacionei alguns saberes das duas

    prticas teatrais (dramaturgia e encenao), como fortes aliadas na

    transformao do cidado em sujeito mais esclarecido e emancipado.

  • 57

    3.2.1 Que tragdia essa?

    11

    Apresento aqui um pouco mais do trabalho com as tragdias sob o

    enfoque da contextualizao do bairro e a realidade dos alunos e comunidade.

    Trabalhamos a contextualizao das tragdias gregas aos fatos do mundo

    contemporneo, nas prticas de sala de aula de uma etapa 5, da Escola

    Municipal Arthur Ostermann, na Feitoria. Buscava desenvolver um processo de

    transformao scio-cultural de um determinado grupo de alunos. Ao estudar

    as tragdias percebemos que o contexto social do bairro Feitoria era de uma

    11 Um dos guardas a espera de Antgona. Na contextualizao era representado por um traficante.

  • 58

    violncia muito grande, recheado de srias tragdias pessoais e coletivas,

    semelhantes dramaturgia grega, como vingana, morte, parricdio e guerra

    de poderes. Ento fiz a seguinte indagao: Que tragdia essa? Partimos

    para uma proposta de contextualizao dos mitos gregos, a partir das peas

    das tragdias gregas e que hoje estariam presentes em nossa sociedade.

    Ento iniciamos a busca por respostas com leituras de dipo Rei e Antgona,

    de Sfocles, bem como assistimos a filmes que tivessem alguma relao um

    pouco mais contempornea, que contribussem para que depois os alunos

    encenassem. Aps, partimos para escrita dramatrgica, acrescidas de um jogo

    teatral de aquecimento e integrao coletiva e improvisao com mscara.

    Procurando desenvolver a criatividade visando descobrir as potencialidades e

    a fruio esttica, contribumos para o aprendizado dos alunos, bem como no

    incentivo cultura da regio da escola.

    Os fatos debatidos e que produziram reflexo, entre outros, foram os

    acontecidos durante o ano, na Feitoria, como o caso da me que durante uma

    enchente do Rio dos Sinos, ao perder tudo dentro de casa, teve de pernoitar em

    um albergue e ao ir dormir deixou os dois filhos juntos em uma cama de bebe. O

    filho mais novo, meses de idade, amanheceu morto devido asfixia, pois o irmo

    mais velho, 7 anos, dormindo, ficou por cima deste. E tambm o caso de um

    parricdio seguido de priso e morte. Reunimos estes fatos e mais alguns

    ocorridos pelo mundo, como o de um suo que manteve em cativeiro a filha por

    mais de 20 anos e teve com ela muitos filhos, no poro de sua casa, sem a me

    e esposa sequer desconfiar. Mais o caso da criana que foi jogada do alto de um

    edifcio em So Paulo, supostamente pelo pai e pela madrasta, caso que por

  • 59

    muito tempo ficou sem soluo. Depois partimos para os debates e encenaes

    dos cruzamentos entre o passado e o presente, a fico e a realidade.

    Utilizamos os filmes: Poderosa Afrodite, de Woody Allen, que mostra a

    histria de um casal que adota uma criana, Max, que se revela muito

    inteligente. O pai adotivo fica obcecado com a procura dos pais biolgicos de

    Max, pois eles tambm devem ser. Quando descobre quem a me biolgica

    de Max, fica desapontado. uma prostituta e estrela de filmes porn. Alm

    disso, ela provavelmente a pessoa mais burra que j conheceu. A histria

    entrelaada com coros gregos que ligam a histria histria de dipo Rei de

    Sfocles. Foram cenas filmadas num genuno anfiteatro grego, na Itlia. Romeu

    + Julieta, de Baz Lurhmann, cuja verso para os dias de hoje da pea de

    Shakespeare o cenrio Verona Beach. Os Capuleto e os Montquio, duas

    famlias que sempre se odiaram, tm rixas sem cessar, mas isto no impede que

    Romeu, um Montquio, se apaixone pela bela Julieta, uma Capuleto. Entretanto,

    uma apresentadora de televiso anuncia que este amor profundo acabar

    gerando trgicas conseqenciais, em virtude desta insana rivalidade familiar.

    Utilizamos este filme como referncia de atualizao de um texto clssico, no

    necessariamente, como se percebe, que seja uma tragdia grega clssica.

    Alm destes filmes utilizamos a mscara grega da tragdia. Foram

    recursos para a realizao de uma contextualizao sincera e coerente com o

    que se pretendeu realizar. O contexto dos alunos e do mundo, retratados nas

    peas (ver anexos) foram a base de tudo, o que para Esslin fundamental

    O contexto tudo: inserido no contexto adequado, um gesto

    quase que imperceptvel poder mover montanhas, a mais

    simples das frases poder transformar-se na mais sublime

    expresso potica... uma vez que a ateno e o interesse do

    espectador tenham sido captados, uma vez que ele tenha sido

  • 60

    induzido a seguir a ao com total concentrao e envolvimento,

    seus poderes de percepo estaro intensificados, suas emoes

    passaro a fluir livremente e ele atingir, na verdade, um estado

    exacerbado de conscientizao no qual ficar mais receptivo,

    mais observador, mais apto a discernir a unidade e o desenho

    geral da existncia humana. (Esslin, 1978: 58, 59).

    Todos os pontos e questes levantados aqui foram fundamentais.

    Acredito que propiciaram leituras e discusses novas sobre conceitos,

    pensamentos estticos e filosficos da arte, fundamentos histrico-culturais,

    extremamente importantes para as vivncias de todos. Principalmente atravs do

    entendimento dos mitos gregos, pelas leituras das peas de teatro da dramaturgia

    grega. Nessas atividades, os alunos estudaram a origem do teatro, tendo como

    ponto de partida o teatro grego. Particularmente, estudaram as diferentes

    expresses faciais presentes na mscara grega da tragdia, utilizada como forma

    de revelar sentimentos de dor, de horror, de ironia. Depois dessa atividade, os

    alunos tornaram-se capazes de observar e identificar os sentimentos retratados

    nas expresses faciais, das mscaras usadas na tragdia, bem como, na comdia

    grega e de perceber como essas expresses so usadas no mundo moderno. Ao

    encontro desta prtica Esslin nos fala sobre o drama moderno e as aptides em

    decifrar cdigos do espectador

    O drama teatral moderno, seja no teatral seja no dos veculos de

    comunicao de massa, assume muito menos

    comprometimentos. medida que as platias dos veculos de

    massa so expostas a quantidades cada vez maiores de drama,

    inevitvel que seja elevado o nvel de sofisticao: as pessoas

    tornam-se mais observadoras, mais aptas a decifrar os cdigos

    de sugestes introduzidos aqui e ali, bem como se tornam mais

  • 61

    cticas quanto possibilidade de aceitar sem hesitao o que

    dito ou feito. (Esslin,1978: 52, 53).

    Outro elemento importante da tragdia grega alm dos mitos utilizados

    nas tramas, a participao do coro, possui uma forma peculiar de explanao

    dos fatos anteriores s cenas representadas pelos personagens principais.

    Ento se observa neste detalhe que o coro retratado nos textos atuais dos

    alunos tomam a postura daquele cidado, muitas vezes representado pela

    juventude, que revela o mundo das aparncias, bem como desvela a hipocrisia

    das relaes e a impossibilidade de uma comunicao. Temas abordados pelo

    teatro do absurdo e tantos outros estilos teatrais criados no sculo XX. Outros

    elementos foram aplicados na criao dramatrgica, aps tambm colocadas

    em cena, como a unidade espacial e de andamento,

    Pode haver esquemas de intensidades que crescem at um

    clmax para depois baixar, formas ascendentes de

    intensificao gradativa de todos os elementos (velocidade,

    andamento, ritmo de luz, cor) e outras, descendentes, nas quais

    elas gradativamente se atenuam; ou ainda outras circulares,

    nas quais o final retorna a configurao inicial. (Esslin, 1978:

    54).

    Dentro destes processos de desenvolvimento do enredo de uma pea

    teatral, o aluno constri suas tramas e personagens que mostram o

    esfacelamento e o enfraquecimento do ncleo familiar, abordam tabus sociais

    (ver peas anexas). Com esta postura possvel notar que se faz presente na

    formao deste aluno dramaturgo a busca por uma identidade em meio ao

    contexto de convvio, sempre com uma tragdia em eminncia. atravs das

  • 62

    identidades dos personagens que perceptvel a valorizao das idias dos

    autores. E neste processo de reflexo do que l, escreve, encena, que o aluno

    passa por uma conscincia maior no espao e no tempo de sua prpria relao

    com as pessoas que convive.

  • 63

    4. Educao e Sociedade

    12

    12 Debate com os professores e alunos da escola aps apresentao.

  • 64

    4.1 A Educao nos Tempos Lquidos

    13

    Quando penso na avaliao do desenvolvimento da aprendizagem dos

    alunos, discuto com os colegas docentes, com as famlias de alunos, sobre

    determinados assuntos como normas e regras, estrutura familiar, drogas,

    roubos, pareceres e avaliaes de diferentes ngulos, de um prisma scio-

    cultural e educacional, sempre permeados por um vis psicopedaggico. Ou

    poderamos chamar de psicanaltico? Discuto muito a educao nos dias de hoje

    e o que fazer pra mudar o quadro de possveis repetncias que a cada ano

    aumenta. 13 Improvisao teatral com mscara.

  • 65

    Observei professores que na tentativa, talvez v, de clarificar o que

    estamos fazendo e o que est em jogo em nossas mos nesta reta final, se

    detm na dificuldade de aprendizagem, onde alunos no conseguem solucionar

    questes simples. Alegam que apresentam deficincia cognitiva, parecendo

    distantes e desinteressados.

    durante este processo que percebo com mais nfase que muitas vezes

    ns professores trabalhamos como se os alunos chegassem escola como

    folhas em branco. Compreendo agora que suas aprendizagens no partem do

    zero, trazem uma histria de vida em formao constante, ou seja, trazem uma

    pr-histria. Segundo Vigotski (p. 96, 2002) Tm uma formao forjada no

    contexto social em que esto inseridos. Desenvolvem-se em grupos de forma

    proximal, tm um crescimento mediado pelos meios eletrnicos, como tv, rdio,

    internet, que so absorvidos pelos indivduos formadores destes grupos. O

    perodo em que os alunos ficam nas prticas escolares apenas uma pequena

    parte em suas formaes.

    Como diz Bauman (2008: 28) os dias so efmeros, a vida veloz como

    os tempos lquidos em que vivemos. As instituies, quadros de referncia,

    estilos de vida, crenas e convices mudam antes que tenham tempo de se

    solidificar em costumes, hbitos e verdades "auto-evidentes". Os alunos j

    chegam escola com conhecimentos a respeito de violncia, drogas, religio,

    sexo, vivncias que so mais intensas do que a dos professores, que ainda no

    sabem como lidar com o assunto.

    Reconhecer as histrias dos alunos e contextualizar os fatos do mundo s

    suas realidades, utilizar a internet como instrumento de aprendizagem e propor

    maior aproximao das ONGs ao ambiente escolar, eis as propostas para novos

    olhares formao emancipatria destes futuros comerciantes, atletas, polticos,

  • 66

    professores, pastores, policiais, lideranas, ou ainda, catadores, vendedores

    ambulantes e donas de casa. No se pode prever s pelo perfil do aluno o que

    ele ser mais adiante!

    O pensamento sensvel, que produz arte e cultura,

    essencial para a libertao dos oprimidos, amplia e

    aprofunda sua capacidade de conhecer. S com os

    cidados que, por todos os meios simblicos (palavras) e

    sensveis (som e imagem), se tornam conscientes da

    realidade em que vivem e das formas possveis de

    transform-la, s assim surgir, um dia, uma real

    democracia. (Boal, 2009:16)

    Repousar um olhar sobre o aluno e suas inquietudes possibilita, na

    medida do possvel, que a pesquisa abarque essa liquidez que caracteriza a

    sociedade atual.

    Quando um aluno, aps passar o dia dentro de uma empresa de metal

    pesado, da indstria do ao chega desgastado, da mo de obra pesada e

    cansativa, com as aulas de teatro, possvel trabalhar de forma mais amena,

    procurando desvelar o lado mais humano e espontneo do aluno. Se reunirmos

    alguns jogos teatrais de imaginao e outros que permitam que o aluno jogue ou

    brinque de forma mais tranqila, seja sentado ou em p num crculo de pessoas,

    obteremos maior interesse na atividade

    Foi assim que um dos alunos, aps presso do setor onde trabalha para

    que ele produzisse mais, passou a refletir nas razes por que lhe exigiam mais.

    E o seu entendimento era que a produo j estava alm da demanda que

    chegava pra empresa. Um oprimido refletia sua condio.

  • 67

    Enquanto se encontra ntida sua ambigidade, os oprimidos

    dificilmente lutam, nem sequer confiam em si mesmos. Tem

    uma crena difusa, mgica, na invulnerabilidade do opressor.

    preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do

    opressor para que, em si, v operando-se convico oposta

    anterior. Enquanto isto no se verifica, continuaro abatidos,

    medrosos, esmagados.

    At o momento em que os oprimidos no tomem conscincia

    das razes de seu estado de opresso "aceitam"

    fatalistamente a sua explorao. Mas ainda, provavelmente

    assumam posies passivas, alheadas, com relao

    necessidade de sua prpria luta pela conquista da liberdade e

    de sua afirmao no mundo. Nisto reside sua "conivncia"

    com o regime opressor. (Freire, 1970:51)

    14

    14 Improvisao teatral. Cenas de entrevista para emprego em fbricas de calados.

  • 68

    Cabe salientar, neste momento em que reflito sobre a condio atual do

    aluno na EJA - Educao de Jovens e Adultos, em consonncia com as prticas

    do teatro, que existem estudantes em processo de construo de suas

    cidadanias e com grandes expectativas em relao ao mercado de trabalho. Em

    funo disso, as instncias de ensino em acordo com os tempos atuais no

    podem negligenciar esta fase da vida, em que existem muitas chances, pois

    poder vir a perder sua funo de mediao neste momento crucial dos jovens.

    Paulo Freire (p. 135, 1996) diz que no h um dilogo verdadeiro se no h nos

    seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crtico. Pensar que, no aceitando a

    dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantvel

    solidariedade. J no teatro procuro cumprir a tarefa de estabelecer uma relao

    dialgica com os alunos, no sentido de trabalhar sobre diferentes pontos de vista

    as mltiplas dimenses que constituem um cidado. Para isto, conforme os

    PCNs - Parmetros Curriculares Nacionais, deve-se propor uma reflexo sobre a

    tarefa de levar em conta alguns aspectos relacionados vivncia desses alunos

    que, por serem jovens, vivenciam um momento importante do desenvolvimento

    humano, embora tempestuoso, do ponto de vista da construo de suas

    identidades e de elaborao de projetos de insero na sociedade.

    Nesta direo existem parcerias como o Projovem Trabalhador

    Juventude Cidad entre municpios e o governo federal, que visa proporcionar

    qualificao profissional nas reas de administrao, vesturio, beleza e

    esttica, turismo, telemtica, alimentao, construo e reparos, madeiras e

    mveis, grfica e metal mecnica, para mulheres e homens com idade entre 18

    e 29 anos que se encontram em situao de desemprego, mas que devem estar

    cursando o 8 ano do ensino fundamental ou o ensino mdio. Espero em breve

    que as aulas de artes que compem tambm o Projovem sejam constitudas de

  • 69

    teatro. Para Boal (2009:17) a luta pelo espao luta por todos os espaos:

    fsico, intelectual, amoroso, histrico, geogrfico, social, esportivo, poltico...

    Projetos como este so vitais. Segundo Bauman na esteira dos tempos

    lquidos em que o homem perde seu espao em funo do imediatismo, que

    surge a necessidade da qualificao constante para o mercado de trabalho. Por

    seu lado, a juventude quer o "agora" de forma mais dinmica e correspondente

    s suas necessidades.

    Percebo o quanto h por se discutir e desenvolver para que estes jovens

    no percam o estimulo, mantendo-se assim inseridos no mercado de trabalho.

    Ao lutar por melhores condies de qualidade de vida e atravs do

    empoderamento de seus direitos e deveres, possam ser multiplicadores dos

    mesmos meios proporcionando a to sonhada liberdade de expresso e

    participao social, que passa pelo sensvel das aulas de teatro, do pensamento

    sensvel da apreciao esttica da arte teatral.

    O pensamento sensvel arma de poder - quem o tem

    em suas mos, domina. Por isso, os opressores lutam

    pela posse do espetculo e dos meios de comunicao

    de massas, que por onde circula e se impe o

    pensamento autoritrio.

    Quando exercido pelos oprimidos, o Pensamento

    Sensvel censurado e proibido - eles no tm o direito

    sua prpria criatividade: mquina no cria. Aperta-se o

    boto... e produz. Podem tambm ser usados como

    macaquinhos de realejo em programas de auditrio...

    (Boal, 2009: 18)

  • 70

    4.2 A educao como antdoto da barbrie

    As identidades parecem fixas e slidas

    apenas quando vistas de relance, de fora.

    A eventual solidez que podem ter quando

    contempladas de dentro da prpria

    experincia biogrfica parece frgil,

    vulnerv