tragédia na sala de aula um estudo de práticas de teatro na educação de jovens e adultos
DESCRIPTION
tragediaTRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS
MRCIO SILVEIRA DOS SANTOS
TRAGDIA NA SALA DE AULA
Um estudo de prticas de teatro na Educao de Jove ns e Adultos
PORTO ALEGRE/RS 2010
-
2
MRCIO SILVEIRA DOS SANTOS
TRAGDIA NA SALA DE AULA
Um estudo de prticas de teatro na Educao de Jove ns e Adultos
Dissertao apresentada como requisito obteno do grau de Mestre em Artes Cnicas, Linha de Pesquisa: Linguagem, Recepo e Conhecimento em Artes Cnicas, Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da UFRGS.
Orientador: Prof Dr. Joo Pedro Alcantara Gil
PORTO ALEGRE/RS 2010
-
3
S237t Santos, Mrcio Silveira dos Tragdia na sala de aula : um estudo de prticas de teatro na educao de jovens e adultos / Mrcio Silveira dos Santos; orientador: Joo Pedro Alcntara Gil. Porto Alegre, 2010. 100 f. Dissertao (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Artes. Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas -- Linha de Pesquisa: Linguagem, Recepo e Conhecimento em Artes Cnicas, Porto Alegre, BR- RS, 2010. 1. Pedagogia Teatral. 2. Teatro do oprimido. 3. Educao de Jovens e Adultos : Teatro. I. Gil, Joo Pedro Alcntara. II. Ttulo. CDU: 792.071.5
Catalogao na Fonte --- Biblioteca do Instituto de Artes/UFRGS
-
4
"O teatro pode ser uma arma de
libertao, de transformao
social e educativa." Augusto Boal
1980
-
5
Quero registrar uma dedicao
especial a Augusto Boal, mentor do
teatro que fiz a vida inteira. Pude
estar com ele algumas vezes e me
emociono sempre quando penso que
nos deixou h pouco! Boal, muito
obrigado!
-
6
AGRADECIMENTOS
minha famlia, por tudo.
Aos integrantes do Grupo Teatral Manjerico, por me ausentar tanto.
Ao PPGAC, professores e funcionrios, especialmente a Gil, orientador e amigo.
Anelise Camargo Garcia que sempre esteve ao lado apoiando, questionando,
refletindo e sobretudo incentivando nos momentos mais complexos.
Aos professores e alunos da Escola Municipal de So Leopoldo Arthur
Ostermann, pela aceitao da pesquisa.
Aos professores membros da banca de qualificao: Danilo Streck, Mirna
Spritzer e Silvia Balestreri, pelo trasbordamento nas preciosas contribuies.
Aos amigos, nas horas difceis e comemorativas.
A todos, EVO!
-
7
RESUMO
A presente dissertao tem por base estabelecer reflexes acerca do
trabalho desenvolvido nas prticas de teatro na sala de aula com alunos do
Programa EJA - Educao de Jovens e Adultos da Escola Municipal Arthur
Ostermann, no Municpio de So Leopoldo, na regio do Vale dos Sinos, Estado
do Rio Grande do Sul.
Procuro estabelecer conexes dessas prticas com a Pedagogia do
Oprimido de Paulo Freire e o conceito de Tempos Lquidos, de Zygmunt
Bauman.
As atividades foram realizadas atravs de jogos espontneos e
protagonizados, visando o desenvolvimento dos potenciais criativos dos alunos,
e a reflexo sobre os potenciais destrutivos da sociedade. As prticas so
divididas em duas ramificaes: o Teatro Jornal, de Augusto Boal e o exerccio
de escrita dramtica a partir da contextualizao das tragdias gregas. Uma tem
ligao com a outra, tendo em vista que a partir das improvisaes teatrais
surgiram necessidades de discutir os fatos vigentes. Estes fatos, a maioria
publicados em jornais, foram considerados pelos alunos como tragdias, o que
despertou em alguns a pesquisa a partir dos textos trgicos do teatro grego, que
consistiu na leitura em especfico das peas dipo Rei e Antgona, de Sfocles,
desencadeando assim uma contextualizao de determinadas obras.
Palavras-chave: Pedagogia Teatral, Teatro do Oprimido, Pedagogia do Oprimido, Prticas Teatrais, Tempos lquidos, Dramaturgia.
-
8
ABSTRACT
This thesis is based on established ideas about the work practices of
theater in the classroom with students of adult education program - Youth and
Adult Education of the School of Arthur Ostermann, in So Leopoldo, in the Vale
of Sinos, Rio Grande do Sul.
Looking for connections of these practices with the Pedagogy of the
Oppressed by Paulo Freire and the concept of Liquid Times of Zygmunt Bauman.
The activities were conducted through games and spontaneous
protagonists, to develop the creative potential of students, and reflection on the
destructive potential of society. The practices are divided into two branches: the
Newspaper theater of Augusto Boal and the pursuit of dramatic writing from the
background of Greek tragedies. One is linked to another in order that emerged
from the improvisational theater needs to discuss current events. These facts,
most published in newspapers, were considered by students as tragedy, which
sparked some research from the texts tragic of Greek drama, which consisted of
reading in specific parts of dipo Rei and Antigona by Sfocles. Thus triggering a
contextualization of certain works.
Keywords: Theatrer Pedagogy, Theatre of the Oppressed, Pedagogy of the Oppressed,
Theatre Practice, Liquid Times, Playwright.
-
9
SUMRIO
1 INTRODUO.................................................................................................... 11 2. CONTEXTUALIZAO DA EXPERINCIA...................................................... 15 3. DUAS PRTICAS.............................................................................................. 27 3.1 O Teatro Jornal................................................................................................ 28 3.1.1 Peas breves................................................................................................ 36 3.1.2 Sem teto, mas com esperana.................................................................... 39 3.1.3 A Fbrica de calados.................................................................................. 44 3.2 Dramaturgia..................................................................................................... 47 3.2.1 Que tragdia essa?................................................................................... 57 4. EDUCAO e SOCIEDADE............................................................................. 63 4.1 A Educao nos Tempos Lquidos................................................................. 64 4.2 A Educao como antdoto da barbrie....................................................... 70 5. CONSIDERAES FINAIS........................................................................... 74 6. REFERNCIAS................................................................................................. 79 7. ANEXOS............................................................................................................ 83
-
10
Lista de Anexos ANEXO Duas peas de teatro escritas pelos alunos: I A Confiana a alma do negcio.................................................................. 85 II A Procura....................................................................................................... 90
Apndice Artigos. I Ensino de teatro sim!....................................................................................... 96 II O filho do padeiro no ganhou o Nobel........................................................... 97 III - Que tragdia essa?....................................................................................... 98 IV - Boal, o homem que inventava o futuro........................................................... 99 V - A Educao nos tempos lquidos................................................................... 100
-
11
TRAGDIA NA SALA DE AULA
Um estudo de prticas de teatro na Educao de Jove ns e Adultos
1
1 - INTRODUO
Como introduo gostaria de trazer um breve relato de minha trajetria,
para melhor apreciao do leitor, no sentido de acompanhar com entendimento
meus caminhos at aqui. Julgo necessrio, na medida em que esclarece o
1 O quadro negro com a planta baixa da sala de aula. Definindo espaos da platia e dos atores.
-
12
interesse e vontade de aprofundar a pesquisa de toda uma vida ligada ao teatro
e educao.
Desde 1991 tenho trabalhado na rea da educao informal, atravs de
aulas de teatro, com crianas e adolescentes em situao de vulnerabilidade
social e com grupos de teatro, com nfase no teatro popular e no teatro de rua.
Ministrei oficinas de teatro por todo o estado do Rio Grande do Sul, sempre
voltadas para o desenvolvimento do ser humano, com base na cultura do meio
em que vive. Dentro desses objetivos realizei oficinas para crianas e
adolescentes em situao de vulnerabilidade social; para trabalhadores em
formao, capacitao em teatro para professores de redes educativas. Em
2004, j formado em Educao Artstica Habilitao em Artes Cnicas, pela
UFRGS, fui convidado a realizar aulas de dramaturgia na biblioteca pblica
municipal Josu Guimares que resultou em um site, j fora do ar, de novos
dramaturgos e literatos de Porto Alegre, bem como um encontro para leituras
das obras na 50 Feira do Livro de Porto Alegre, juntamente com o professor e
dramaturgo Ivo Bender.
Depois de um longo perodo trabalhando e coordenando a ACO -
Associao Cultural de Oficineiros, passo a desempenhar a funo de
Supervisor de classe e coordenao da rea de artes e expresso do Centro
Refap Cidad Esporte Clube Cidado em Canoas - Esteio. Uma parceria na
rea de desenvolvimento social da ACM Associao Crist de Moos do RS e
da Refinaria Alberto Pasqualini S/A para a educao de crianas, jovens e
adultos. Durante o trabalho de dois anos neste projeto, desenvolvi uma
especializao em Psicopedagogia, a partir de uma pesquisa sobre o
-
13
atendimento atravs da arte-educao das crianas em situao de
vulnerabilidade social, econmica e cultural.
Em 2006 sou chamado atravs de concurso pblico para a funo que
ocupo ainda hoje, professor de teatro da rede municipal de ensino de So
Leopoldo, na regio do Vale dos Sinos, bero da imigrao alem no Rio
Grande do Sul que, no ano de 2009, completou 180 anos.
Como ator, diretor e dramaturgo, trabalhei com os grupos: Espalha-Fatos
Atos de Teatro, de 1991 a 1999, Grupo Teatral Manjerico, de 1998 aos dias de
hoje, Grupo O performtico/multimdias, de 2005 aos dias de hoje. Circulei por
inmeros festivais e eventos pelo Brasil, obtendo prmios exitosos e tambm
fracassos. Tudo fez parte de uma trajetria de busca e pesquisa, desenvolvendo
sempre o contnuo trabalho de ampliao de novos horizontes de criao e
conhecimento.
O caminho foi longo at chegar nestes momentos finais do mestrado pelo
Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas na UFRGS - Universidade
Federal do Rio Grande Sul. A definio da temtica de pesquisa, Tragdia na
sala de aula - Um estudo de prticas de teatro na educao de jovens e
adultos, surge das prticas que desenvolvi na Educao de Jovens e Adultos
em So Leopoldo. O conhecimento prtico e reflexivo adquirido vai passando a
outros que por mim cruzam. De nada vale tanto estudo e trabalho se no puder
compartilhar com mais pessoas. o trabalho em conjunto que fortalece nossa
razo de viver, neste universo do teatro e da pesquisa permanente.
Na minha trajetria como professor/aluno/ator, o envolvimento do teatro
com a populao excluda socialmente foi uma constante. Passaram-se mais de
quinze anos e esta proximidade tornou-se mais estreita e a necessidade de
-
14
aprofundar estas relaes me levou a seguir o caminho de investigao das
prticas de sala de aula.
Procuro nesta dissertao estabelecer reflexes acerca do trabalho
desenvolvido nos encontros com os alunos nas aulas de teatro. As atividades
prticas foram realizadas atravs de jogos espontneos e protagonizados,
visando o desenvolvimento dos potenciais criativos dos alunos, e a reflexo
crtica sobre os potenciais destrutivos da sociedade. Estas prticas foram
divididas em dois momentos: o teatro Jornal e o exerccio de escrita dramtica a
partir da contextualizao das tragdias gregas. Ambas esto interligadas, tendo
em vista que a partir das improvisaes teatrais dos alunos com o Teatro Jornal,
surgiu a necessidade de discutir mais aprofundadamente os fatos vigentes na
sociedade atual. Estes fatos - a maioria publicados em jornais - foram
considerados pelos alunos como tragdias, o que despertou em alguns o
interesse pela pesquisa de textos trgicos do teatro grego da biblioteca da
escola. Este momento consistiu basicamente na leitura das peas dipo Rei e
Antgona, de Sfocles, que desencadeou cenas contextualizadas aos dias de
hoje destas obras especficas.
Anexei dois textos dramatrgicos dos alunos e tambm cpias
xerogrficas de alguns artigos publicados durante a constituio da pesquisa,
que derivam da mesma. Estes artigos pretendem levar a classe docente da
regio a refletir sobre a educao nos dias de hoje.
-
15
2 - CONTEXTUALIZAO DA EXPERINCIA
-
16
2
"o teatro pode ser praticado
mesmo por quem no artista, da
mesma maneira que o futebol
pode ser praticado mesmo por
quem no atleta." Augusto Boal
(1980)
2 Um dos subgrupos de alunos, no ptio da escola, combinando o roteiro das cenas.
-
17
A pesquisa teve por objetivo estudar as prticas de ensino de teatro com
alunos (as) de uma turma de etapa 5, correspondente a 8 srie do ensino
regular, do turno da noite da EJA - Educao de Jovens e Adultos da Escola
Municipal Arthur Ostermann localizada no bairro Feitoria/Cohab Seller no
Municpio de So Leopoldo/RS. Como parte desta dissertao realizei uma
contextualizao da temtica Educao de Jovens e Adultos, bem como
explanar sobre a insero da disciplina teatro na rede de ensino da EJA no
Municpio de So Leopoldo/RS.
A luta para aumentar a escolaridade ocorre h muitos anos. No incio do
sculo passado a presso para acabar com o analfabetismo vinha da indstria,
carente de mo-de-obra especializada. Diversos projetos oficiais surgiram, mas
foram os movimentos sociais que deram as bases para a Educao de Jovens e
Adultos que temos hoje. A ditadura militar tentou acabar com as iniciativas como
os Centros Populares de Cultura e o Movimento de Educao de Base, entre
outros, propondo o Movimento Brasileiro de Alfabetizao, o Mobral.
Com a abertura poltica, a sociedade voltou a organizar-se. O Brasil
participou de conferncias internacionais, reforando o compromisso com o fim
do analfabetismo. A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB), de
1996, dedicou EJA toda uma seo. O governo federal lanou em 1997 a
Alfasol - Alfabetizao Solidria hoje uma ONG (Organizao No
Governamental, atuante em 2433 municpios) e em 2001 o projeto
Recomeo, que distribui recursos para aquisio de material e pagamento de
professores de EJA para municpios com baixo ndice de Desenvolvimento
-
18
Humano. Foram as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2000 que definiram os
objetivos da EJA: restaurar o direito educao, negado aos jovens e adultos,
oferecer a eles igualdade de oportunidades para a entrada e permanncia no
mercado de trabalho e qualificao para uma educao permanente.
Mas garantir este direito e igualdade de oportunidade no o suficiente, ao
atrair o adulto para a escola preciso garantir tambm que ele no a abandone.
As altas taxas de evaso (menos de 30% concluem os cursos) tm origem no
uso de material didtico inadequado para a faixa etria, nos contedos sem
significado, nas metodologias infantilizantes aplicadas por professores
despreparados e em horrios de aula que no respeitam a rotina de quem
estuda e trabalha. Problemas como esses podem ser resolvidos quando o
professor conhece as especificidades dessa comunidade e usa a realidade do
aluno como eixo condutor das aprendizagens.
Nos ltimos anos, houve um intenso movimento de jovens e adultos
voltando sala de aula. Quem no teve oportunidade de estudar na idade
apropriada, ou que por algum motivo abandonou a escola antes de terminar a
Educao Bsica, est procurando as instituies de ensino para completar
seus estudos. Aqueles que no sabem ler e escrever pretendem ser
alfabetizados. Os que j tm essas habilidades desejam adquirir outros saberes
para que tenham chances no concorrido mercado de trabalho e sintam-se
cidados responsveis pelos destinos do pas. Quando falo em mercado de
trabalho me refiro s normas internas de muitas empresas de somente admitir
pessoas que tenham completado no mnimo o ensino fundamental. Assim
correndo o risco de ficarem sem emprego por muito tempo, os cidados
-
19
retomam seus estudos noite dentro do Programa de Educao de Jovens e
Adultos.
Segundo a LDB, a EJA - Educao de Jovens e Adultos visa proporcionar
acesso formao educacional destes a partir dos 15 anos. Tem por objetivo
cumprir de maneira satisfatria, a preparao dos jovens e adultos para o
exerccio da cidadania, bem como a qualificao profissional junto ao mercado
de trabalho e sociedade. Sendo assim, e de acordo com os Parmetros
Curriculares Nacionais, para a concretizao de uma prtica administrativa e
pedaggica verdadeiramente voltada para o cidado necessrio que o
processo de ensino-aprendizagem, na Educao de Jovens e Adultos, tenha
coerncia com os princpios ticos de autonomia, da responsabilidade e do
respeito ao bem comum; os princpios polticos dos direitos e deveres de
cidadania, do exerccio da criticidade e do respeito ordem democrtica; os
princpios estticos da sensibilidade, da criatividade e da diversidade de
manifestaes artsticas e culturais. (PCNs, 1997).
A incluso da linguagem artstica do teatro em 2006 no currculo da EJA
do Municpio de So Leopoldo veio ao encontro da expanso de possibilidades
de trabalho em prol destes princpios de sensibilidade, criatividade e diversidade,
para que o teatro possa com a descoberta, reanimar e fortalecer o potencial
criativo de todos. Isto supe que se ultrapasse a viso puramente instrumental
da educao, considerada como a via obrigatria para obter certos resultados
(saber-fazer, aquisio de capacidades diversas, fins de ordem econmica) e se
passe a consider-la em toda sua plenitude: como realizao da pessoa que, na
sua totalidade, aprende a ser. dentro deste contexto que o teatro
recentemente foi inserido, embora ainda no tenha afirmaes de suas prticas
-
20
e carea de um aprofundamento atravs de um estudo acadmico que desvele
sua aplicabilidade pedaggica e scio-cultural, aproximando-se desta realidade,
atravs de uma abordagem dialtica, calcada no dilogo e na reflexo prtica e
terica. a proposta deste trabalho.
O Municpio de So Leopoldo contempla o Teatro em seus concursos
para o magistrio, em conformidade com a Lei n 9.394/96 onde no artigo 26,
inciso 2, diz que o ensino de artes constituir componente curricular obrigatrio,
nos diversos nveis da educao bsica, de forma a promover o
desenvolvimento cultural dos alunos. No conjunto de disciplinas de artes,
compreendem-se as quatro linguagens artsticas: teatro, msica, dana e artes
visuais. No entanto, no h critrio de escolha na hora de definir qual disciplina
de artes ir para a escola, o processo se d atravs de necessidades
emergenciais. Se uma escola precisa de professor (a) de artes, ela solicita a
Secretaria Municipal de Educao, que verifica uma lista de aprovados em
concurso. Como so quatro linguagens criada uma sequencia de convocao,
um por linguagem. Um professor de teatro, um professor de msica, um
professor de dana, um professor de artes visuais. A SMED consulta a
sequencia, em que linguagem parou, e convoca o prximo professor. Mesmo
que a equipe diretiva da escola queira determinada linguagem no possvel
atend-la, deve-se respeitar a sequencia de convocaes, at esgotar a lista de
concursados.
Sempre tive envolvimento com ensino de teatro para jovens e adultos no
ensino no-formal, que tem como principais caractersticas turmas
multisseriadas compostas de alunos de idades bem diferentes, mas somente
agora comeo a ter contato com ensino formal de jovens e adultos.
-
21
extremamente inquietante a diferena que se apresenta. O quadro outro: todos
participam em uma nica srie do ensino fundamental, mesmo com idades
diferentes, com vivncias e experincias diversas, idias e ideologias diferentes.
Neste processo o teatro um meio que, alm de trazer novas propostas de
aprendizagem e desenvolvimento do indivduo, pode esclarecer novas diretrizes
para as relaes criadas e vividas no ambiente escolar e que ecoam na vida
cotidiana de cada um. Buscando as razes desses fatores a presente pesquisa
teve como objetivo desenvolver, neste ambiente escolar de ensino de jovens e
adultos, uma proposta de abordagem dialtica, visando desenvolver pesquisa
qualitativa, no eixo temtico teatro e educao. O propsito da pesquisa vem ao
encontro dos estudos ainda em processo de Gil (2004: 62) que afirma
A formao da sensibilidade humana o caminho da pesquisa
em educao e teatro numa perspectiva dialtica marxiana. No
o produto final, o resultado da anlise ltima dos dados que
importa. No interessa a quantidade, mas o conjunto da prxis
social.
Pensando neste sensvel do ser humano e suas relaes sociais,
econmicas, culturais, educacionais dentro e fora do ambiente da educao
formal que apresento uma srie de questes que puderam ser elucidadas
durante a pesquisa nas aulas prticas de teatro, ou seja, transformei estas
questes em metas terico-prticas: Qual prxis de reflexo se constitui a partir
do jogo teatral na EJA? Qual a dramaturgia que se revela na escrita e
encenaes da EJA? O que est para alm do jogo teatral em comunho com o
contedo social no qual o aluno/sujeito est inserido? Como se constituem as
-
22
aes/cenas a partir das vivncias prprias de cada aluno? Foram estabelecidas
esta inquietaes/questionamentos como metas durante o processo.
Na medida em que avanaram as atividades, resultado de um movimento
constante entre prtica e teoria, foi possvel um olhar cada vez mais elaborado e
que proporcionou uma qualificao no esclarecimento da escolha do quadro
terico. Procurei relacionar a realidade do aluno, atravs das aulas de teatro,
com as determinaes sociais mais amplas que atuam sobre a sua vivncia no
dia-a-dia. No era a inteno nesta pesquisa investigar se o teatro eficaz ou
importante e qual sua influncia no contexto social do aluno, o que Gil (2004,
p.65) considera absolutamente antidialtico, mas sim, o teatro como mediador
no processo de ensino-aprendizagem. Atravs de uma prtica embasada na
relao dialgica, com o propsito de uma emancipao dos alunos envolvidos
no processo pedaggico, busco a construo e afirmao de novos
conhecimentos adquiridos.
A teoria crtica se aproxima dos propsitos desta pesquisa, na medida em
que afirma haver a necessidade de uma motivao poltica dos pesquisadores
nas questes sobre desigualdades e dominao que, em conseqncia,
permeiam seus trabalhos. A abordagem crtica relacional, investiga os grupos
e instituies. Tem por base de anlise as aes humanas com a cultura e as
estruturas sociais e polticas, onde procura compreender como as redes de
poder so produzidas, medidas e transformadas. Os processos sociais esto
sempre profundamente vinculados s desigualdades culturais, econmicas e
polticas que dominam nossa sociedade. Grande parte destas desigualdades se
devem, ainda hoje, ao processo de crise da humanidade desencadeada pela
indstria cultural.
-
23
Entenda-se por indstria cultural a relao de padronizao de produtos
culturais como: cinema, revistas, rdio, programas de televiso, para
determinadas classes sociais atravs das articulaes entre a economia e a
cultura no mundo contemporneo.
A unidade sem preconceitos da indstria cultural atesta a
unidade em formao da poltica. Distines enfticas, como
entre filmes de classe A e B, ou entre histrias em revistas de
diferentes preos, no so to fundadas na realidade, quanto
antes, servem para classificar e organizar os consumidores a
fim de padroniz-los. Para todos alguma coisa prevista, a fim
de que nenhum possa escapar; as diferenas vm cunhadas e
difundidas artificialmente. O fato de oferecer ao pblico uma
hierarquia de qualidades em srie serve somente
quantificao mais completa, cada um deve se comportar, por
assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nvel,
determinado a priori por ndices estatsticos, e dirigir-se
categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu
tipo. Reduzido a material estatstico, os consumidores so
divididos, no mapa geogrfico dos escritrios tcnicos (que
praticamente no se diferenciam mais dos de propaganda), em
grupos de renda, em campos vermelhos, verdes e azuis.
(Adorno, 2009:11)
Theodor Adorno, filsofo alemo integrante da Escola de Frankfurt
fundada em 1923, voltada aos estudos do pensamento filosfico, sociolgico e
da pesquisa social de cunho marxista, juntamente com outros autores, como
Horkheimer, desenvolveram a teoria crtica. Ao longo dos anos criaram
categorias de pesquisa que se relacionam na viso de Totalidade - onde a
-
24
pesquisa, a partir do ponto de vista geral de classes ou grupos sociais deve se
encontrar numa relao dialtica nos processos da Contradio presente na
problematizao da pesquisa; da Mediao baseada na relao dialgica; da
Negao estabelecida atravs da no aceitao dos padres sociais que
estabelecem imobilismo; e do Conflito fator presente em qualquer relao
social. O teatro vem ao encontro dessas categorias de pesquisa enquanto arte
considerada de mediao, pois atravs dele que se estabelecem, no jogo e na
criao, a tomada de conscincia histrica e a identificao com o nosso tempo.
O conflito e a contradio precisam existir para estabelecerem a prtica e a
reflexo crtica; possuem dinmicas fundamentadas na prxis, necessitando
sempre de suportes tericos de reviso.
Na Educao de Jovens e Adultos foram criadas novas relaes humanas
e, no bojo dessa nova estrutura de convvio, o teatro surge como um veculo de
aproximao, vivncia e transformao, seja no campo educacional como
tambm scio-cultural (Vygotsky, 1987). Busquei neste espao social uma
proposta de autonomia no s do aluno, mas principalmente do homem em sua
realidade (Freire, 1970). H uma troca dialtica entre o que sabe e o que
descobre com os demais, numa troca contnua de saberes e prticas com boa
desenvoltura. H evoluo de uma conscincia crtica relativa aos fatos da
sociedade em que esto inseridos. Trao um paralelo comparativo com o que se
conhece e o que se descobre atravs da prvia da sala de aula. Com as prticas
teatrais, atravs de construo e apresentao de cenas, debates e discusses,
o grupo de alunos se organiza (Boal, 1975, 1979, 1980), se estruturando
conforme a necessidade e o conhecimento que apresentava. Segundo Gramsci
-
25
(1989) onde sua conscincia superior consegue compreender o prprio valor
histrico, a prpria funo na vida, os prprios direitos e deveres.
Outro fator importante que ressalto aqui, no como objeto de estudo, mas
no sentido de valorizar tambm a participao do professor/pesquisador e sua
educao, a reflexo sobre sua situao atual, sobre a poltica educacional no
Brasil e a grande responsabilidade do educador, como afirma Moll (1999: 37)
uma das maiores pesquisadoras na rea
O papel do educador nesta modalidade de ensino
extremamente importante, pois os jovens e adultos possuem um
histrico escolar permeado por questes como: variados
espaos de tempo, desistncias, desestimulo, repetncias e
problemas no s no campo cognitivo, mas no campo social,
econmico e emocional.
Os jovens e Adultos neste processo diferenciado de formao vivem
situaes mpares devido em parte a variao de idades e interesses Giroux
(1996: 72) define bem as angstias e os medos da juventude atual quando diz:
A programada instabilidade e a transitoriedade difundida de
forma caracterstica entre os jovens da faixa etria de 15 a 30
anos esto inseparavelmente ligadas a um grande nmero de
condies culturais ps-modernas constitudas pelos seguintes
pressupostos: uma perda geral da f nos discursos modernos
do trabalho e da emancipao; o reconhecimento de que a
indeterminao do futuro justifica lutar e viver das esperanas
imediatas.
-
26
Ao encontro deste pensamento, Brunel (2004: 54) nos diz que os
problemas sociais e econmicos agravados no decorrer dos anos se verificam
na sala de aula, quando observamos as angstias e as inquietaes desses
jovens em relao realidade atual brasileira e ao seu futuro.
Como as atividades foram divididas em dois caminhos prticos, o teatro-
jornal e a contextualizao dramatrgica das tragdias gregas, procuro aqui
discorrer sobre as mesmas, pontuando suas fundamentaes, para, em seguida,
relatar e refletir sobre estas prticas.
-
27
3 - DUAS PRTICAS
-
28
3.1 O Teatro Jornal
3
A primeira prtica em questo foi o Teatro-jornal. Nos anos 60, Augusto
Boal, falecido em 02 de maio de 2009, desenvolveu um teatro popular que
chamou de Teatro do Oprimido - um teatro voltado para a discusso das
necessidades do povo. Trata-se de mostrar alguns caminhos pelos quais o
povo pode reassumir sua funo de protagonista no teatro e na sociedade.
Assim desenvolveu uma srie de tcnicas de teatro popular em favelas,
sindicatos, prises, pelo mundo, etc. Sobre o conceito de teatro do oprimido
Boal diz:
3 Um dos subgrupos na sala de aula combinando entradas e sadas na cena.
-
29
O teatro do oprimido no um teatro de classe. No , por
exemplo, o teatro proletrio. Esse tem como temtica os
problemas de uma classe em sua totalidade: os problemas
proletrios. Mas no interior mesmo da classe proletria podem
existir (e evidentemente existem) opresses. Pode acontecer
que essas opresses sejam o resultado da universalizao
dos valores da classe dominante ("As idias dominantes numa
sociedade so as idias da classe dominante" - Marx). Seja
como for, evidente que na classe operria podem existir (e
existem) opresses de homens contra mulheres, de adultos
contra jovens, etc. O teatro do oprimido ser o teatro tambm
desses oprimidos em particular, e no apenas dos proletrios
em geral. Da mesma forma que o teatro do oprimido no um
teatro de classe, igualmente no um teatro de sexo
(feminista, por exemplo), ou nacional, ou de raa, etc., porque
tambm nesses conjuntos existem opresses.
Portanto, a melhor definio para o teatro do oprimido
seria a de que se trata do teatro das classes oprimidas e de
todos os oprimidos, mesmo no interior dessas classes. (Boal,
1980:25, b)
Situando historicamente o perodo de surgimento do teatro desenvolvido
por Augusto Boal, o professor Flvio Desgranges afirma que foi durante os
anos 60 e meados dos 70 que artistas e educadores movidos pela idia de
democratizao cultural, desenvolveram novas aes.
Propondo uma nova maneira de compreender a atuao
poltica, a ao por meio do teatro, um instrumento
revolucionrio, provocaria a potncia imaginativa e
transformadora do pblico. As formas artsticas mais
surpreendentes e contraditrias surgiram neste perodo, todas
-
30
encaixadas em um movimento comum, de um radicalismo com
grande vitalidade, em permanente contestao sociedade e
cultura dominantes, que desconstrua os espaos teatrais
tradicionais e transbordava pelas ruas e outros locais procura
de espectadores, diminuindo a distncia entre vida teatral e vida
social. (Desgranges, 2003:48).
Boal ponto fundamental neste trabalho, com suas tcnicas e jogos
teatrais criados e aperfeioados atravs da prtica em comunidades no s
da Amrica Latina como tambm em povos de todos os outros continentes.
Ele as chama de exerccios e jogos para atores e no-atores com vontade de
dizer algo atravs do teatro. Boal acredita que o teatro pode ser praticado
mesmo por quem no artista, da mesma maneira que o futebol pode ser
praticado mesmo por quem no atleta. Uma destas tcnicas o Teatro-
jornal que consiste em utilizar matrias da mdia impressa como mote para
improvisaes teatrais seguidas de debates e reflexes mais aprofundadas
sobre os temas vigentes na comunidade que os alunos esto inseridos como
tambm do mundo. Os principais objetivos so investigar e discutir os
problemas sociais, como nos afirma Boal:
... consistia na investigao de tcnicas, nove ao todo, onde era
possvel transformar qualquer notcia de jornal em cena de
teatro. No tinha o objetivo de realizar um espetculo bem
acabado e bem sucedido, mas de instrumento de discusso dos
problemas que afetavam a sociedade (Boal, 1979: 42).
-
31
O fato de um cidado, hoje, pegar um jornal para ler as notcias, ou at
mesmo uma revista, ouvir rdio e assistir televiso, passa por uma opinio j
formada dos editoriais que publicam o que lhes mais lucrativo conforme
interesses de empresas publicitrias e determinados grupos polticos. Esta
apreciao condicionada ocasiona muitas vezes uma no reflexo em relao
aos acontecimentos ou um sentimento conforme determina esta parte da
indstria cultural. Freqentemente as notcias so encaradas como verdades
absolutas dentro de um sistema cultural, econmico e social estabelecido.
O teatro-jornal, entre seus objetivos, procura desmistificar a
pretensa objetividade do jornalismo: demonstra que uma
notcia publicada em um jornal uma obra de fico. (...) O
teatro-jornal a realidade do jornalismo porque apresenta a
notcia diretamente ao espectador sem o condicionamento
da diagramao. Algumas de suas tcnicas, como a do
improviso so a realidade mesma: aqui no se trata de
representar uma cena, mas de viv-la de cada vez. E cada
vez nica em si mesma como nico cada segundo,
cada fato, cada emoo. Neste caso, jornal fico, teatro-
jornal realidade. (Boal, 1979: 43).
Vivemos a era da velocidade sem muitas vezes refletir sobre o que
acontece, como nos afirma Paulo Freire em seus saberes necessrios prtica
educativa:
O mundo encurta, o tempo se dilui: o ontem vira agora; o
amanh j est feito. Tudo muito rpido. Debater o que se diz e
o que se mostra e como se mostra... me parece algo cada vez
mais importante (Freire, 1996: 157).
-
32
No processo das aulas de teatro utilizamos as notcias de jornais,
transpostas para cena, como forma de propiciar um momento onde o sujeito
possa exercitar outras formas de reflexo. Dentro de uma viso de que os
fatos viram histria, o aluno pode desenvolver uma postura crtica dialtica
atravs das improvisaes, discusses e montagens de cenas que dialoga
com vrios pontos de vista possveis. Assim o aluno passa a ter uma
conscientizao maior frente ao desvelamento de quem oprimido e opressor
nesta sociedade.
Em uma tentativa de enfocar alguns dos diversos aspectos
opressores da vida social nos tempos que correm e que nem
sempre se afastam das opresses ocorridas nos anos da
criao deste teatro - talvez se possa conceber o Teatro do
Oprimido como o teatro dos excludos das prticas efetivamente
democrticas, quem sabe o teatro do sedado pela
espetacularizao e a banalizao promovida pelos veculos de
comunicao de massa, ou o teatro dos sem oportunidade, dos
sem teto, sem terra, sem emprego, sem uma escola decente,
sem acesso aos bens culturais, dos sem arte, o teatro dos sem
teatro, o teatro dos sem imaginrio ou melhor, dos que se
indignam com o freqente e amplo veto ao imaginrio, que
inviabiliza a possibilidade de formular sonhos prprios -,
daqueles que, impedidos no presente, se sentem incapazes de
reaver o passado e construir o futuro. (Desgranges, 2006:77).
Unindo estas linhas prticas e pedaggicas, diante de uma sociedade
cada vez mais competitiva, individualista e violenta, como o ensino do teatro
-
33
pode transformar a realidade? H muitos caminhos a trilhar com o trabalho de
Boal, como tambm para a pedagogia que influenciou Boal a Pedagogia do
Oprimido de Paulo Freire que apresenta uma prtica educativa calcada na
necessidade de transformao, da reinveno do mundo em favor das
classes oprimidas, da descoberta do seu lugar na sociedade.
Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da
hora atual, se propem a si mesmos como problema.
Descobrem que pouco sabem de si, de seu posto no cosmos,
e se inquietam por saber mais. Estar, alis, no reconhecimento
do seu pouco saber de si uma das razes desta procura. Ao se
instalarem na quase, seno trgica descoberta do seu poder
saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam.
Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.
(Freire, 1996:29).
Inquietaes derivadas de novas questes na prtica do trabalho
pedaggico com teatro na sala de aula que revelam uma pesquisa
participante. Participante no sentido Freireano de que todos aprendem juntos
e com aes coletivas. No incio dos trabalhos, realizamos improvisaes de
teatro utilizando apenas estmulos a partir de determinado jogo teatral. Os
jogos teatrais tiveram papel importante na preparao dos alunos para
desconstruir uma relao mais fechada vinda do mundo externo as atividades
de teatro. Que proporcionavam um ambiente mais descontrado e de
confiana, de espontaneidade e desinibio, no trato de se expor uns aos
outros em situaes de criao teatral. Momento que para outros fora do
contexto das prticas poderia parecer um tanto estranho e desconfortvel.
-
34
Por exemplo, quando sentia que a turma de alunos estava um tanto
desconcentrada no inicio da atividade, devido aos afazeres do cotidiano,
repleto de inusitadas situaes, realizava o jogo "Passa-palma". Consistia na
formao de uma roda de alunos que deveriam passar a palma para o colega
do lado esquerdo. Uma palma em que uma das mos deslizava na outra e
produzia uma palmada de som forte. O aluno seguinte deveria passar para o
prximo e assim sucessivamente. Quando feita umas dez vezes a roda,
invertia-se a direo da palma. O olhar deveria tambm acompanhar a
direo da palma. Sempre uma pessoa olhando no olho do outro. Este jogo
simples, permitia que em poucos minutos todos na sala estivem
descontrados e concentrados para a atividade.
Caso os alunos ainda precisassem de um jogo que os trouxessem
realmente para a atividade, pois a disperso em determinadas noites era
grande em funo de que durante o dia houve tiroteios na comunidade, eu
propunha o jogo "Cair com nmeros". O jogo tambm era realizado em
formato circular com a distancia de meio passo um do outro, ficavam de p.
Cada aluno recebia um nmero, e quando eu dizia um nmero, o aluno
correspondente caia pra trs com certa tenso no corpo, suficiente para que
os dois colegas nas laterais o segurassem evitando que ele casse de fato no
cho. O jogo alm da exigncia de silncio e concentrao trazia no seu fazer
uma relao de confiana e aproximao quando havia o toque no corpo um
do outro.
Outro jogo importante no processo das prticas foi o de imaginao, que
transforma uma massa disforme e invisvel em objeto real.
-
35
Era realizado da seguinte forma: aps todos criarem seus objetos numa
rodada de trs vezes, os alunos passavam a criar improvisos a partir da
manipulao destes objetos numa cena curta de grupos de cinco alunos. Em
uma das cenas havia guarda-chuvas e bonecos. A ligao deste jogo de
imaginao com a cenas de teatro jornal vinham seqenciadas. Quando eram
realizadas cenas com base em notcias de jornais, os elementos retornavam.
Este jogo proporcionou uma qualidade cnica s improvisaes.
Em determinado momento um aluno de um grupo pequeno props que
improvisassem em cima de uma noticia do Jornal Vale dos Sinos. Jornal local
da cidade. Realizou uma cena a partir de uma noticia sobre uma invaso de
terreno em uma comunidade do Municpio de So Leopoldo. Havia o relato
que uma criana iria nascer durante esta invaso e que as condies do j
assentamento de algumas famlias eram precrias e insalubres. Contava-se
ainda que a proprietria do terreno estivera por l com oficiais de justia e
policia.
De posse desta noticia e aps breve combinao, dois grupos se uniram
e realizaram uma improvisao sobre o tema, utilizando os objetos
imaginrios. Depois da breve encenao, foi realizado um debate. Em
seguida propus que o grupo continuasse aperfeioando a cena,
transformando os elementos invisveis em reais.
-
36
3.1.1 Peas breves
4
Passo a discorrer sobre duas peas breves desenvolvidas pelos alunos de
etapa 5, da Educao de Jovens e Adultos da Escola Municipal Arthur
Ostermann, do bairro Feitoria de So Leopoldo. A etapa 5 corresponde a 8 srie
do ensino fundamental regular, constituda de alunos que vieram das etapas
anteriores na prpria escola ou que foram matriculados diretamente nesta etapa,
em funo de terem interrompido os estudos na srie correspondente.
As aulas de teatro aconteciam uma vez por semana, nas quintas-feiras,
com duas horas de durao cada encontro. Das 18h30min s 20h30min. As
propostas foram tiradas de notcias de jornais da poca de cada encenao. A
primeira pea foi chamada de Sem teto, mas com esperana, e mostra a
4 Apresentao da Pea "Sem teto, mas com esperana", na sala de aula, para as demais turmas da EJA.
-
37
situao de um grupo de sem teto que ocupa um terreno amplo num bairro
perifrico chamado de Vicentina em So Leopoldo. A segunda pea teve o nome
de A fbrica de calados e apresenta um grupo de mulheres trabalhadoras que
reivindicam melhores salrios em uma fbrica de calados em dificuldades
financeiras diante da crise econmica mundial.
Eu trouxe a proposta do Teatro-jornal como propulsor de um debate maior
ligado as necessidades da turma e da comunidade. Explanei sobre o assunto da
importncia ou no dos veculos de comunicao de massa e a possibilidade de
utiliz-los para uma postura mais crtica dentro da sociedade. Aps dividir a turma
em dois grupos de oito alunos, solicitei que, ao escolherem os assuntos,
procurassem estabelecer alguma relao com sua vida e da regio.
O processo de escolha das temticas foi ento a partir da leitura de jornais
da regio, procurando assuntos que mereciam reflexo e discusso do coletivo de
alunos, que tivessem algum significado, uma identificao com a realidade da
comunidade onde a escola estava inserida e os alunos morassem. No fiz
interveno nas escolhas dos assuntos, me reservei e deixei que os alunos
optassem livremente com base nas suas experincias e necessidades de
reflexo.
Os dois assuntos escolhidos foram muito prximos da realidade dos
alunos. A dificuldade por adquirir terreno ou casa para moradia e a procura de
emprego. O Vale dos Sinos, regio em que est situado o municpio de So
Leopoldo, possui em sua estrutura econmica uma grande quantidade de
empresas que manufaturam calados. O ramo caladista da regio conhecido
no mundo inteiro. Nos ltimos anos empresas faliram e ocorreram demisses em
massa.
-
38
A cenografia consistia alm dos objetos das alunas, tambm cadeiras,
mesas e folhagens da prpria escola, sendo acrescida de um painel de tecido
pintado que mostrava uma casa com rvores. Figurinos e maquiagem eram
definidos por alunas que trabalhavam com manicure, maquiagem e lojas de
vendas de roupas. Tudo foi feito pelas alunas, coube-me apenas estabelecer
pequenas coordenadas com relao ao espao ocupado pela encenao. Tendo
em vista que houve apresentaes para as outras turmas e para funcionrios da
escola, se fez necessrio estabelecer melhor o espao ocupado da sala.
Geralmente combinvamos que metade da sala seria palco, rea para ao
alunos/atores ocuparem com a marcao de cenas, e a outra metade seria
platia. Estabelecemos assim um nmero aproximado de quarenta pessoas por
vez a cada apresentao. Ao todo foram trs apresentaes, pois o ano letivo
acabou e todos os alunos progrediram para o ensino mdio.
-
39
3.1.2 Sem teto, mas com esperana.
5
Um grupo de cidados sem teto ocupa uma grande rea de terra
pertencente a uma importante e influente empresria da cidade. A vizinhana
espantada entra em contato com a proprietria, avisando da invaso. Logo chega
o oficial de justia solicitando a retirada das barracas e que o grupo saia
imediatamente do local com seus pertences. Diante do fracasso da tentativa, o
oficial volta com os fiscais da prefeitura. O grupo de sem teto solicita uma
conversa direta com a dona do terreno: querem expor os motivos e propor um
5 O Nascimento de Vitria, filha de uma adolescente, durante a invaso do terreno.
-
40
arrendamento da rea. H uma demora no atendimento da solicitao dos
ocupantes. Enquanto isso, a rotina no acampamento toma ares de uma
apreenso maior com a possibilidade de uma integrante dar a luz ali mesmo entre
as barracas. O que de fato acontece, nascendo uma menina. Em meio ao choro
do beb, recm nascido, chega a proprietria. So colocados os argumentos e
propostas. O grupo deseja morar no local, criar uma nova comunidade. Mesmo
colocando que so trabalhadores, alguns desempregados, gente boa que quer
um pedao de cho para poder ver os filhos crescerem com dignidade e
segurana, sade e estudo, no so aceitos. O dilogo se mostra de uma via s.
A liderana do grupo sai do local levando a criana no colo dizendo que, embora a
ganncia dos poderosos no tenha fim, o povo oprimido jamais perder a
esperana de dias melhores e mais justos.
Esta cena foi elaborada por um grupo de oito alunos durante dois meses. O
grupo utilizou guarda chuvas grandes para representar as barracas, colocando-os
no cho em frente a cena, produzindo assim certa barreira para a viso do
pblico. Criavam atrs destes a cena do parto. Para se aproximar da realidade, os
integrantes passaram nas mos tinta guache de cor vermelho vivo, reproduzindo
sangue. A aluna/atriz que fez a me que deu a luz representou com emoo ao
dar os gritos na hora do parto. Claro que em alguns momentos tambm ria da
prpria situao, ela que nunca teve filhos. Este momento clmax foi estabelecido
a partir dos prprios alunos, j que na noticia de jornal no havia nenhum relato
de parto. O boneco que representava o beb foi pintado de tinta vermelha
tambm, aps enrolado em um pano, pertencente a um filho de outra aluna. Pode
assim ser embalado e carregado pela lder dos sem teto durante a discusso com
a proprietria das terras. A trilha sonora escolhida e operada pelos alunos foi
-
41
composta alm de um choro de beb, das seguintes msicas: Admirvel gado
novo, de Z Ramalho,
Admirvel Gado Novo
Z Ramalho
Composio: Z Ramalho
Oooooooooh! Oooi!
Vocs que fazem parte dessa massa
Que pensa nos projetos do futuro
duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber...
E ter que demonstrar sua coragem
margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
J sente a ferrugem lhe comer...
eeeeh! Oh! Oh!
Vida de gado
Povo marcado
h!
Povo feliz!...(2x)
L fora faz um tempo confortvel
A vigilncia cuida do normal
Os automveis ouvem a notcia
Os homens a publicam no jornal...
E correm atravs da madrugada
A nica velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou...
eeeeh! Oh! Oh!
Vida de gado
Povo marcado
h!
Povo feliz!...(2x)
Oooooooooh! Oh! Oh!
O povo foge da ignorncia
Apesar de viver to perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam essa vida numa cela...
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A Arca de No, o dirigvel
No voam nem se pode flutuar
No voam nem se pode flutuar
No voam nem se pode flutuar...
eeeeh! Oh! Oh!
Vida de gado
Povo marcado
h!
Povo feliz!...(2x)
Ooooooooooooooooh!
-
42
E a msica Trabalhador brasileiro, de Seu Jorge.
Trabalhador
Seu Jorge
Composio: Seu Jorge
Est na luta, no corre-corre, no dia-a-dia
Marmita fria mas se precisa ir
trabalhar
Essa rotina em toda firma comea s
sete da manh
Patro reclama e manda embora quem
atrasar
Trabalhador
Trabalhador brasileiro
Dentista, frentista, polcia, bombeiro
Trabalhador brasileiro
Tem gari por a que formado
engenheiro
Trabalhador brasileiro
Trabalhador
E sem dinheiro vai dar um jeito
Vai pro servio
compromisso, vai ter problema se ele
faltar
Salrio pouco, no d pra nada
Desempregado tambm no d
E desse jeito a vida segue sem
melhorar
Trabalhador
Trabalhador brasileiro
Garom, garonete, jurista, pedreiro
Trabalhador brasileiro
Trabalha igual burro e no ganha
dinheiro
Trabalhador brasileiro
Trabalhador
Os figurinos, bem como a maquiagem foram criados com esmero, tal qual a
realidade das comunidades mais carentes da regio.
Houve um momento muito emocionante, quando uma aluna depois de
realizada a encenao, fez o comentrio de que estava apresentando a vida da
sua famlia, quando vieram morar no bairro Feitoria em So Leopoldo. As
-
43
situaes eram semelhantes e, no entanto, ela s tomou conscincia do fato
naquele momento, pois at ento no tinha resgatado da sua memria familiar tal
fato. Transcendendo da realidade pelo simblico do teatro.
-
44
3.1.3 A fbrica de calados
6
A cena inicial mostra a parte interna de uma empresa fabricante de
calados. No centro da cena uma grande mesa com funcionrias trabalhando na
manufatura de partes de calados. Existem quatro funcionrias sentadas na
mesa e uma fiscal de qualidade que ronda a mesa o tempo todo. Na volta de um
intervalo a fiscal comenta que pode haver demisso em massa na empresa em
funo da crise econmica mundial. O que causa alvoroo e preocupao com
as demais funcionrias. Cada uma coloca a necessidade de permanecer no
6 Ensaio da cena inicial da pea "A fbrica de calados", onde a supervisora insulta os funcionrios.
-
45
emprego. Desde as contas que aumentaram como tambm a famlia que vai
aumentar. Uma delas no possui compromissos como manter famlia ou contas
em excesso a pagar. Pensam numa proposta para o dono da fbrica. Quando o
empresrio vem avisar do corte de gastos com demisso de funcionrios, todas
se mostram descontentes e ameaam com uma greve. O patro deixa a cargo
das funcionrias decidirem quem vai ser a pessoa demitida e sai. Discutem
muito at chegarem a um consenso. Quando ele volta para saber do nome, elas
propem uma reduo de carga horria dos funcionrios. Ele explica que
mesmo assim haver uma reduo tambm no salrio, sendo
momentaneamente este o acordo, mas que poderia mudar conforme a economia
mundial.
Durante estas cenas havia certo nervosismo no ar. Aps apresentarem,
realizamos um debate para que pudesse mais uma vez ouvir as impresses dos
alunos e platia. Notadamente nervosas, trs alunas passaram a comentar
espaadamente que a situao da pea era a vida delas. Uma havia sido
demitida no inicio do ano e, desde ento, aps dez anos de fbrica no
conseguia trabalho algum, pois alm de s saber trabalhar com mquinas de
fabricar calados, estava tambm com a escolaridade atrasada. As outras duas
alunas mencionaram que a situao de possvel falncia da empresa caladista
da pea era na vida real a mesma na fbrica em que trabalhavam, o que ocorreu
de fato no ms seguinte.
Eis a importncia do trabalho com o teatro do oprimido. O processo de
reflexo a respeito da condio humana destas alunas, que viviam no limite
entre a realidade e a fico foi transformado em ao. Boal dizia que no teatro
do oprimido, os participantes esto no exato limite entre a pessoa e o
-
46
personagem. Cria-se assim uma analogia, onde a identidade do personagem se
confunde com a do ator/atriz, tornando-se uma pessoa s, dentro do processo
reflexivo de sua condio social.
Essa identidade, esse limite (pessoa-personagem, fico-
realidade) so, a meu ver, a causa fundamental do
extraordinrio potencial do teatro do oprimido. Isso porque o
teatro do oprimido no o teatro para o oprimido: o teatro
dele mesmo. No o teatro no qual o artista interpreta o papel
de algum que ele no : o teatro no qual cada um, sendo
quem , representa seu prprio papel (isto , organiza e
reorganiza sua vida, analisa suas prprias aes) e tenta
descobrir formas de liberao. Como se cada participante se
estranhasse a si mesmo, fosse ao mesmo tempo o analista e
o objeto analisado. (Boal, p. 24, 25, 1980)
As alunas reconstruram de certa forma suas experincias de forma
coletiva com a turma. Assuntos que lhes pareciam peculiares foram desvelados
como sendo os mesmos temas preocupantes para outras pessoas da platia.
-
47
3.2 Dramaturgia
7
A segunda prtica de sala de aula que propus estava ligada aos PCNs e
norma do Programa EJA em So Leopoldo que preconizava a realizao de
produo textual. Todas as disciplinas deveriam trabalhar com a escrita. Em
teatro fui para o caminho da escrita do texto teatral, a dramaturgia. Atravs das
aulas propostas, os alunos leram textos de teatro num primeiro momento.
Fomos biblioteca da escola e retiramos todos os livros de texto para teatro, em
7 Um grupo de alunos debate os temas para a escrita teatral.
-
48
sua maioria peas infanto-juvenis. No entanto, encontramos dois textos, as
tragdias gregas de Sfocles: Antgona e dipo Rei. Solicitei a leitura das peas,
seguida da realizao de uma sinopse do texto lido. Feitas as snteses de textos,
realizamos as leituras. A cada trs lidos debatamos sobre a conciso da histria
e o que era importante realmente constar nesta sinopse para que o leitor
entendesse o que era a pea e sua estrutura (inicio, meio e fim). Como por
exemplo, quem era o personagem principal (protagonista) e os coadjuvantes,
qual sua evoluo na pea, qual a temtica central, quais os conflitos deste
personagem, quais as solues do dramaturgo para o desfecho final.
Estudamos tambm a estrutura de escrita do texto teatral, diferente do
romance, do conto, dos quadrinhos, do cinema, da poesia. O texto teatral
estruturado em forma de dilogo escrito e a participao do dramaturgo no texto
se d atravs da didasclia. Segundo Pavis (p. 96, 2003) "Do grego didascalia,
ensinamento. So instrues dadas pelo autor aos seus atores (teatro grego por
exemplo), para interpretar o texto teatral. Por extenso, no emprego moderno:
indicaes cnicas ou rubricas.
Quando realizamos a leitura das snteses de dipo Rei e Antgona, de
Sfocles, muitas questes foram levantadas pelos alunos.
-
49
A pea dipo Rei
8
Na histria grega, Laio, o rei de Tebas havia sido alertado
pelo Orculo de Delfos que uma maldio iria se concretizar:
seu prprio filho o mataria e que este filho se casaria com a
prpria me. Por tal motivo, ao nascer dipo, Laio
abandonou-o no monte Citero pregando um prego em cada
p para tentar mat-lo. O menino foi recolhido mais tarde por
um pastor e batizado como "Edipodos", o de "ps-furados",
que foi adotado depois pelo rei de Corinto e voltou a Delfos.
dipo consulta o Orculo que lhe d a mesma previso dada
a Laio, que mataria seu pai e desposaria sua me. Achando
se tratar de seus pais adotivos, foge de Corinto. No caminho,
dipo encontrou um homem e, sem saber que era o seu pai,
brigou com ele e o matou, pois Laio o mandou sair de sua
frente. Aps derrotar a Esfinge que aterrorizava Tebas, que
lanara um desafio ("Qual o animal que tem quatro patas de
manh, duas ao meio-dia e trs noite?"), dipo conseguiu
8 Cena do enterro do irmo de Antgona.
-
50
desvendar, dizendo que era o homem. "O amanhecer a
criana engatinhando, entardecer a fase adulta, que usamos
ambas as pernas, e o anoitecer a velhice quando se usa a
bengala". Conseguindo derrotar o monstro, ele seguiu sua
cidade natural e casou-se, "por acaso", (j que ele pensava
que aqueles que o haviam criado eram seus pais biolgicos)
com sua me, com quem teve quatro filhos. Quando da
consulta do orculo, por ocasio de uma peste, Jocasta e
dipo descobrem que so me e filho, ela comete suicdio e
ele fura os prprios olhos por ter estado cego e no ter
reconhecido a prpria me. Aps sair do palcio, dipo
avisado pelo Corifeu que no mais rei de Tebas; Creonte
ocupara o trono, desde ento. dipo pede para ser exilado,
mandado embora. Pede, ainda, para que Creonte cuide das
seus filhos, Antgona, Ismnia, Etocles e Polinces, como se
fossem seus prprios. (Brando, 1985:39)
A pea Antgona
-
51
9
Conta a historia de Antgona, que deseja enterrar seu
irmo Polinice, que atentou contra a cidade de Tebas, mas o
tirano da cidade, Creonte, promulgou uma lei impedindo que
os mortos que atentaram contra a lei da cidade fossem
enterrados, o que era uma grande ofensa para o morto e sua
famlia, pois a alma do morto no faria a transio adequada
ao mundo dos mortos. Antgona, enfurecida, vai ento sozinha
contra a lei de uma cidade e enterra o irmo, desafiando todas
as leis da cidade, Antgona ento capturada e levada at
Creonte, que sentencia Antgona morte, no adiantando
nem os apelos de Hemon, filho de Creonte e noivo de
Antgona, que clama ao pai pelo bom senso e pela vida de
Antgona, pois ela apenas queria dar um enterro justo ao
irmo. Hemon briga com Creonte e Antgona levada a
morte, uma tumba onde Antgona ficar at morrer. Aparece
Tirsias, o adivinho, que avisa a Creonte que sua sorte est
acabando, pois o orgulho em no enterrar Polinice acabar
destruindo seu governo. Antes de poder fazer algo, Creonte
descobre que Hemon, seu filho, se matou, desgostoso com a
pena de morte de Antgona. Aparece Eurdice e conta que, ao
abrir a tumba onde Antgona estava presa, encontram-na
enforcada. Eurdice, desiludida pela morte do filho tambm se
mata, para desespero de Creonte, que ao ver toda sua famlia
morta se lamenta por todos os seus atos, mas principalmente
pelo ato de no ter atendido o desgnio dos deuses, o que lhe
custou vida de todos aqueles que lhe eram queridos.
(Brando, P. 51, 1985)
Os alunos indagaram: se aqueles textos eram tragdias, o que a
sociedade hoje chamaria de tragdia? Solicitei aos alunos que realizassem uma
9 Guardas durante a emboscada, esperam por Antgona.
-
52
pesquisa para a definio de tragdia e que trouxessem o que para eles
tragdia hoje em dia.
No dicionrio de teatro de Patrice Pavis existem sete pginas dedicadas
tragdia e suas derivaes, como a tragicomdia.
(Do grego tragoedya, canto do bode - sacrifcio aos deuses
pelos gregos). Pea que representa uma ao humana
funesta muitas vezes terminada em morte. Aristteles d uma
definio de tragdia que influenciar profundamente os
dramaturgos at nossos dias: "A tragdia a imitao de uma
ao de carter elevado e completo, de uma certa extenso,
numa linguagem temperada com condimentos de uma
espcie particular conforme as diversas partes, imitao que
feita por personagens em ao e no por meio de narrativa, e
que, provocando piedade e temor, opera a purgao prpria
de semelhantes emoes". (Pavis, p. 415, 2003)
Tambm explanei aos alunos os elementos que compem a tragdia
grega. Mesmo que no memorizassem tais terminologias, entenderiam o
significado que Pavis coloca de forma compreensvel a estudantes no assunto.
-
53
10
Vrios elementos fundamentais caracterizam a
obra trgica: a catharsis ou a purgao das paixes pela
produo do terror e da piedade; a hamartia ou ato do heri
que pe em movimento o processo que o conduzir perda;
a hybris, orgulho e teimosia do heri que persevera apesar
das advertncias e recusa esquivar se; o pathos, sofrimento
do heri que a tragdia comunica ao pblico. A sequencia
tipicamente trgica teria por "frmula mnima": o mythos a
mimese da prxis atravs do pathos at a anagnoris. O que
significa, dito de maneira clara: a histria trgica imita as
aes humanas colocadas sob o signo dos sofrimentos das
personagens e da piedade at o momento do
reconhecimento das personagens entre si ou da
conscientizao da fonte do mal. (Pavis, 2003:416)
A partir da compreenso destes esquemas bsicos do dramaturgo, na
construo de um texto trgico, partiram para criao de suas prprias peas. O 10 Mscara da Tragdia Grega, pertencente ao professor, utilizada pelos alunos no processo de criao das cenas.
-
54
objetivo era que construssem textos que contextualizassem nos dias de hoje, os
personagens, enredos, tramas das peas e mitos gregos de que tivessem
conhecimento. Poderiam ir alm dos textos encontrados na biblioteca da escola.
Porm, antes de iniciarem as escritas, levei uma mscara semelhante a
da tragdia grega e propus um exerccio com a utilizao da mscara. Dividimos
a sala em forma de palco/platia. Na rea do palco duas cadeiras, uma delas
com a mscara a espera de algum para coloc-la. Duas pessoas se dirigiam
para as cadeiras e uma colocava a mscara. Aquela que colocava era o
personagem trgico, que criaria de improviso uma movimentao carregada de
sentimentos trgicos. Um exerccio livre sem qualquer rotulao de sentimentos.
Bastava expressar um sentimento trgico que a outra pessoa se encarregaria de
criar um desfecho movimentao.
Uma cena que destaco foi quando uma aluna pegou a mscara e
realizou o movimento de desolao por perda de algum. Lamentava, como
Creonte diante do filho morto ou como Antgona diante do irmo insepulcro
Polinces. Imediatamente a outra pessoa se ps como o corpo do outro,
esticando-se no cho. Passou-lhe a mo no rosto e deu um ltimo adeus antes
de cobrir-lhe com um casaco. Uma cena extremamente potica e densa para
aqueles alunos que tiveram um primeiro contato com uma mscara de tragdia e
com os textos gregos.
Aps os exerccios com mscara analisei os processos da escrita de
textos para teatro, como um veculo da conscincia crtica do homem em relao
aos fatos vigentes no mundo. Teve inicio ento a prtica, atravs de princpios
bsicos da estrutura do drama como o enredo, a trama, os personagens, a
-
55
construo de cenas. Elementos bsicos para dramaturgia, como nos esclarece
Eric Bentley sobre as tragdias.
A pea deveria ser uma catstrofe motivada pelos
personagens e situaes; sua exposio e dilogos devem ser
geralmente analticos, isto , devem carregar a ao e
informar-nos dos fatos preliminares ao mesmo tempo; a trama
ideal simples, na qual, no muitas pessoas, contrastantes em
motivaes e temperamentos, so juntadas no menor espao
possvel. (1991:73)
Os alunos desenvolveram textos curtos, cujas temticas: traio e
vingana foram a tnica. A dramaturgia foi desenvolvida individualmente ou em
duplas e no em grupos maiores como costume, e assim teramos um banco de
peas na biblioteca, para serem encenadas no ano seguinte, diminuindo assim
as dificuldades de material dramatrgico. Outra possibilidade era que
pudssemos ter peas para um varal de dramaturgia que seria exposto num
evento de aniversrio da escola. O que no aconteceu, devido ao forte temporal
naquela semana.
As duas peas anexadas nesta dissertao foram as nicas encenadas,
por serem as primeiras concludas. O ano letivo acabou e no foram encenadas
outras cinco peas entregues no ltimo dia de aula. Nas duas encenaes
pouco se mudou do texto, tendo em vista que os autores desempenharam o
papel de atores e coordenadores da encenao.
-
56
Procurei assim desenvolver um ambiente de criao, dilogo e
transformao de conhecimento intelectual, a partir do exerccio de
compreenso e elaborao de peas com base nas tragdias.
Ao tomar como base a afirmao de Gramsci de que todas as pessoas
so intelectuais, porque pensam, fazem mediaes e aderem a uma viso
especfica de mundo, confrontam a realidade desenvolvendo um pensamento
crtico (1989), propus o estudo e prtica do teatro Grego como elemento
catalisador e de organizao social e cultural de um determinado grupo.
Relacionei estas idias s prticas teatrais, no sentido de criao de cenas
teatrais, visando alcanar um teatro vivo, latente e presente, como exemplo, o
Teatro-jornal, anteriormente citado.
Em uma parte do processo das atividades de teatro utilizamos, alm dos
materiais do cotidiano como guarda-chuvas, cordas de varal para adereos e
cenografia, tambm as notcias de jornais transpostas para a cena, como forma
de propiciar um momento onde o aluno possa exercitar outras formas de
reflexo. Atravs das improvisaes e montagem de cenas que dialoguem com
vrios pontos de vista possveis, foi possvel conscientizar sobre determinados
fatos que no mundo ocorrem, e depois contextualizar com a leitura dos gregos.
Assim estabelecemos referncias aos dias de hoje.
No desenvolvimento do trabalho, relacionei alguns saberes das duas
prticas teatrais (dramaturgia e encenao), como fortes aliadas na
transformao do cidado em sujeito mais esclarecido e emancipado.
-
57
3.2.1 Que tragdia essa?
11
Apresento aqui um pouco mais do trabalho com as tragdias sob o
enfoque da contextualizao do bairro e a realidade dos alunos e comunidade.
Trabalhamos a contextualizao das tragdias gregas aos fatos do mundo
contemporneo, nas prticas de sala de aula de uma etapa 5, da Escola
Municipal Arthur Ostermann, na Feitoria. Buscava desenvolver um processo de
transformao scio-cultural de um determinado grupo de alunos. Ao estudar
as tragdias percebemos que o contexto social do bairro Feitoria era de uma
11 Um dos guardas a espera de Antgona. Na contextualizao era representado por um traficante.
-
58
violncia muito grande, recheado de srias tragdias pessoais e coletivas,
semelhantes dramaturgia grega, como vingana, morte, parricdio e guerra
de poderes. Ento fiz a seguinte indagao: Que tragdia essa? Partimos
para uma proposta de contextualizao dos mitos gregos, a partir das peas
das tragdias gregas e que hoje estariam presentes em nossa sociedade.
Ento iniciamos a busca por respostas com leituras de dipo Rei e Antgona,
de Sfocles, bem como assistimos a filmes que tivessem alguma relao um
pouco mais contempornea, que contribussem para que depois os alunos
encenassem. Aps, partimos para escrita dramatrgica, acrescidas de um jogo
teatral de aquecimento e integrao coletiva e improvisao com mscara.
Procurando desenvolver a criatividade visando descobrir as potencialidades e
a fruio esttica, contribumos para o aprendizado dos alunos, bem como no
incentivo cultura da regio da escola.
Os fatos debatidos e que produziram reflexo, entre outros, foram os
acontecidos durante o ano, na Feitoria, como o caso da me que durante uma
enchente do Rio dos Sinos, ao perder tudo dentro de casa, teve de pernoitar em
um albergue e ao ir dormir deixou os dois filhos juntos em uma cama de bebe. O
filho mais novo, meses de idade, amanheceu morto devido asfixia, pois o irmo
mais velho, 7 anos, dormindo, ficou por cima deste. E tambm o caso de um
parricdio seguido de priso e morte. Reunimos estes fatos e mais alguns
ocorridos pelo mundo, como o de um suo que manteve em cativeiro a filha por
mais de 20 anos e teve com ela muitos filhos, no poro de sua casa, sem a me
e esposa sequer desconfiar. Mais o caso da criana que foi jogada do alto de um
edifcio em So Paulo, supostamente pelo pai e pela madrasta, caso que por
-
59
muito tempo ficou sem soluo. Depois partimos para os debates e encenaes
dos cruzamentos entre o passado e o presente, a fico e a realidade.
Utilizamos os filmes: Poderosa Afrodite, de Woody Allen, que mostra a
histria de um casal que adota uma criana, Max, que se revela muito
inteligente. O pai adotivo fica obcecado com a procura dos pais biolgicos de
Max, pois eles tambm devem ser. Quando descobre quem a me biolgica
de Max, fica desapontado. uma prostituta e estrela de filmes porn. Alm
disso, ela provavelmente a pessoa mais burra que j conheceu. A histria
entrelaada com coros gregos que ligam a histria histria de dipo Rei de
Sfocles. Foram cenas filmadas num genuno anfiteatro grego, na Itlia. Romeu
+ Julieta, de Baz Lurhmann, cuja verso para os dias de hoje da pea de
Shakespeare o cenrio Verona Beach. Os Capuleto e os Montquio, duas
famlias que sempre se odiaram, tm rixas sem cessar, mas isto no impede que
Romeu, um Montquio, se apaixone pela bela Julieta, uma Capuleto. Entretanto,
uma apresentadora de televiso anuncia que este amor profundo acabar
gerando trgicas conseqenciais, em virtude desta insana rivalidade familiar.
Utilizamos este filme como referncia de atualizao de um texto clssico, no
necessariamente, como se percebe, que seja uma tragdia grega clssica.
Alm destes filmes utilizamos a mscara grega da tragdia. Foram
recursos para a realizao de uma contextualizao sincera e coerente com o
que se pretendeu realizar. O contexto dos alunos e do mundo, retratados nas
peas (ver anexos) foram a base de tudo, o que para Esslin fundamental
O contexto tudo: inserido no contexto adequado, um gesto
quase que imperceptvel poder mover montanhas, a mais
simples das frases poder transformar-se na mais sublime
expresso potica... uma vez que a ateno e o interesse do
espectador tenham sido captados, uma vez que ele tenha sido
-
60
induzido a seguir a ao com total concentrao e envolvimento,
seus poderes de percepo estaro intensificados, suas emoes
passaro a fluir livremente e ele atingir, na verdade, um estado
exacerbado de conscientizao no qual ficar mais receptivo,
mais observador, mais apto a discernir a unidade e o desenho
geral da existncia humana. (Esslin, 1978: 58, 59).
Todos os pontos e questes levantados aqui foram fundamentais.
Acredito que propiciaram leituras e discusses novas sobre conceitos,
pensamentos estticos e filosficos da arte, fundamentos histrico-culturais,
extremamente importantes para as vivncias de todos. Principalmente atravs do
entendimento dos mitos gregos, pelas leituras das peas de teatro da dramaturgia
grega. Nessas atividades, os alunos estudaram a origem do teatro, tendo como
ponto de partida o teatro grego. Particularmente, estudaram as diferentes
expresses faciais presentes na mscara grega da tragdia, utilizada como forma
de revelar sentimentos de dor, de horror, de ironia. Depois dessa atividade, os
alunos tornaram-se capazes de observar e identificar os sentimentos retratados
nas expresses faciais, das mscaras usadas na tragdia, bem como, na comdia
grega e de perceber como essas expresses so usadas no mundo moderno. Ao
encontro desta prtica Esslin nos fala sobre o drama moderno e as aptides em
decifrar cdigos do espectador
O drama teatral moderno, seja no teatral seja no dos veculos de
comunicao de massa, assume muito menos
comprometimentos. medida que as platias dos veculos de
massa so expostas a quantidades cada vez maiores de drama,
inevitvel que seja elevado o nvel de sofisticao: as pessoas
tornam-se mais observadoras, mais aptas a decifrar os cdigos
de sugestes introduzidos aqui e ali, bem como se tornam mais
-
61
cticas quanto possibilidade de aceitar sem hesitao o que
dito ou feito. (Esslin,1978: 52, 53).
Outro elemento importante da tragdia grega alm dos mitos utilizados
nas tramas, a participao do coro, possui uma forma peculiar de explanao
dos fatos anteriores s cenas representadas pelos personagens principais.
Ento se observa neste detalhe que o coro retratado nos textos atuais dos
alunos tomam a postura daquele cidado, muitas vezes representado pela
juventude, que revela o mundo das aparncias, bem como desvela a hipocrisia
das relaes e a impossibilidade de uma comunicao. Temas abordados pelo
teatro do absurdo e tantos outros estilos teatrais criados no sculo XX. Outros
elementos foram aplicados na criao dramatrgica, aps tambm colocadas
em cena, como a unidade espacial e de andamento,
Pode haver esquemas de intensidades que crescem at um
clmax para depois baixar, formas ascendentes de
intensificao gradativa de todos os elementos (velocidade,
andamento, ritmo de luz, cor) e outras, descendentes, nas quais
elas gradativamente se atenuam; ou ainda outras circulares,
nas quais o final retorna a configurao inicial. (Esslin, 1978:
54).
Dentro destes processos de desenvolvimento do enredo de uma pea
teatral, o aluno constri suas tramas e personagens que mostram o
esfacelamento e o enfraquecimento do ncleo familiar, abordam tabus sociais
(ver peas anexas). Com esta postura possvel notar que se faz presente na
formao deste aluno dramaturgo a busca por uma identidade em meio ao
contexto de convvio, sempre com uma tragdia em eminncia. atravs das
-
62
identidades dos personagens que perceptvel a valorizao das idias dos
autores. E neste processo de reflexo do que l, escreve, encena, que o aluno
passa por uma conscincia maior no espao e no tempo de sua prpria relao
com as pessoas que convive.
-
63
4. Educao e Sociedade
12
12 Debate com os professores e alunos da escola aps apresentao.
-
64
4.1 A Educao nos Tempos Lquidos
13
Quando penso na avaliao do desenvolvimento da aprendizagem dos
alunos, discuto com os colegas docentes, com as famlias de alunos, sobre
determinados assuntos como normas e regras, estrutura familiar, drogas,
roubos, pareceres e avaliaes de diferentes ngulos, de um prisma scio-
cultural e educacional, sempre permeados por um vis psicopedaggico. Ou
poderamos chamar de psicanaltico? Discuto muito a educao nos dias de hoje
e o que fazer pra mudar o quadro de possveis repetncias que a cada ano
aumenta. 13 Improvisao teatral com mscara.
-
65
Observei professores que na tentativa, talvez v, de clarificar o que
estamos fazendo e o que est em jogo em nossas mos nesta reta final, se
detm na dificuldade de aprendizagem, onde alunos no conseguem solucionar
questes simples. Alegam que apresentam deficincia cognitiva, parecendo
distantes e desinteressados.
durante este processo que percebo com mais nfase que muitas vezes
ns professores trabalhamos como se os alunos chegassem escola como
folhas em branco. Compreendo agora que suas aprendizagens no partem do
zero, trazem uma histria de vida em formao constante, ou seja, trazem uma
pr-histria. Segundo Vigotski (p. 96, 2002) Tm uma formao forjada no
contexto social em que esto inseridos. Desenvolvem-se em grupos de forma
proximal, tm um crescimento mediado pelos meios eletrnicos, como tv, rdio,
internet, que so absorvidos pelos indivduos formadores destes grupos. O
perodo em que os alunos ficam nas prticas escolares apenas uma pequena
parte em suas formaes.
Como diz Bauman (2008: 28) os dias so efmeros, a vida veloz como
os tempos lquidos em que vivemos. As instituies, quadros de referncia,
estilos de vida, crenas e convices mudam antes que tenham tempo de se
solidificar em costumes, hbitos e verdades "auto-evidentes". Os alunos j
chegam escola com conhecimentos a respeito de violncia, drogas, religio,
sexo, vivncias que so mais intensas do que a dos professores, que ainda no
sabem como lidar com o assunto.
Reconhecer as histrias dos alunos e contextualizar os fatos do mundo s
suas realidades, utilizar a internet como instrumento de aprendizagem e propor
maior aproximao das ONGs ao ambiente escolar, eis as propostas para novos
olhares formao emancipatria destes futuros comerciantes, atletas, polticos,
-
66
professores, pastores, policiais, lideranas, ou ainda, catadores, vendedores
ambulantes e donas de casa. No se pode prever s pelo perfil do aluno o que
ele ser mais adiante!
O pensamento sensvel, que produz arte e cultura,
essencial para a libertao dos oprimidos, amplia e
aprofunda sua capacidade de conhecer. S com os
cidados que, por todos os meios simblicos (palavras) e
sensveis (som e imagem), se tornam conscientes da
realidade em que vivem e das formas possveis de
transform-la, s assim surgir, um dia, uma real
democracia. (Boal, 2009:16)
Repousar um olhar sobre o aluno e suas inquietudes possibilita, na
medida do possvel, que a pesquisa abarque essa liquidez que caracteriza a
sociedade atual.
Quando um aluno, aps passar o dia dentro de uma empresa de metal
pesado, da indstria do ao chega desgastado, da mo de obra pesada e
cansativa, com as aulas de teatro, possvel trabalhar de forma mais amena,
procurando desvelar o lado mais humano e espontneo do aluno. Se reunirmos
alguns jogos teatrais de imaginao e outros que permitam que o aluno jogue ou
brinque de forma mais tranqila, seja sentado ou em p num crculo de pessoas,
obteremos maior interesse na atividade
Foi assim que um dos alunos, aps presso do setor onde trabalha para
que ele produzisse mais, passou a refletir nas razes por que lhe exigiam mais.
E o seu entendimento era que a produo j estava alm da demanda que
chegava pra empresa. Um oprimido refletia sua condio.
-
67
Enquanto se encontra ntida sua ambigidade, os oprimidos
dificilmente lutam, nem sequer confiam em si mesmos. Tem
uma crena difusa, mgica, na invulnerabilidade do opressor.
preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do
opressor para que, em si, v operando-se convico oposta
anterior. Enquanto isto no se verifica, continuaro abatidos,
medrosos, esmagados.
At o momento em que os oprimidos no tomem conscincia
das razes de seu estado de opresso "aceitam"
fatalistamente a sua explorao. Mas ainda, provavelmente
assumam posies passivas, alheadas, com relao
necessidade de sua prpria luta pela conquista da liberdade e
de sua afirmao no mundo. Nisto reside sua "conivncia"
com o regime opressor. (Freire, 1970:51)
14
14 Improvisao teatral. Cenas de entrevista para emprego em fbricas de calados.
-
68
Cabe salientar, neste momento em que reflito sobre a condio atual do
aluno na EJA - Educao de Jovens e Adultos, em consonncia com as prticas
do teatro, que existem estudantes em processo de construo de suas
cidadanias e com grandes expectativas em relao ao mercado de trabalho. Em
funo disso, as instncias de ensino em acordo com os tempos atuais no
podem negligenciar esta fase da vida, em que existem muitas chances, pois
poder vir a perder sua funo de mediao neste momento crucial dos jovens.
Paulo Freire (p. 135, 1996) diz que no h um dilogo verdadeiro se no h nos
seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crtico. Pensar que, no aceitando a
dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantvel
solidariedade. J no teatro procuro cumprir a tarefa de estabelecer uma relao
dialgica com os alunos, no sentido de trabalhar sobre diferentes pontos de vista
as mltiplas dimenses que constituem um cidado. Para isto, conforme os
PCNs - Parmetros Curriculares Nacionais, deve-se propor uma reflexo sobre a
tarefa de levar em conta alguns aspectos relacionados vivncia desses alunos
que, por serem jovens, vivenciam um momento importante do desenvolvimento
humano, embora tempestuoso, do ponto de vista da construo de suas
identidades e de elaborao de projetos de insero na sociedade.
Nesta direo existem parcerias como o Projovem Trabalhador
Juventude Cidad entre municpios e o governo federal, que visa proporcionar
qualificao profissional nas reas de administrao, vesturio, beleza e
esttica, turismo, telemtica, alimentao, construo e reparos, madeiras e
mveis, grfica e metal mecnica, para mulheres e homens com idade entre 18
e 29 anos que se encontram em situao de desemprego, mas que devem estar
cursando o 8 ano do ensino fundamental ou o ensino mdio. Espero em breve
que as aulas de artes que compem tambm o Projovem sejam constitudas de
-
69
teatro. Para Boal (2009:17) a luta pelo espao luta por todos os espaos:
fsico, intelectual, amoroso, histrico, geogrfico, social, esportivo, poltico...
Projetos como este so vitais. Segundo Bauman na esteira dos tempos
lquidos em que o homem perde seu espao em funo do imediatismo, que
surge a necessidade da qualificao constante para o mercado de trabalho. Por
seu lado, a juventude quer o "agora" de forma mais dinmica e correspondente
s suas necessidades.
Percebo o quanto h por se discutir e desenvolver para que estes jovens
no percam o estimulo, mantendo-se assim inseridos no mercado de trabalho.
Ao lutar por melhores condies de qualidade de vida e atravs do
empoderamento de seus direitos e deveres, possam ser multiplicadores dos
mesmos meios proporcionando a to sonhada liberdade de expresso e
participao social, que passa pelo sensvel das aulas de teatro, do pensamento
sensvel da apreciao esttica da arte teatral.
O pensamento sensvel arma de poder - quem o tem
em suas mos, domina. Por isso, os opressores lutam
pela posse do espetculo e dos meios de comunicao
de massas, que por onde circula e se impe o
pensamento autoritrio.
Quando exercido pelos oprimidos, o Pensamento
Sensvel censurado e proibido - eles no tm o direito
sua prpria criatividade: mquina no cria. Aperta-se o
boto... e produz. Podem tambm ser usados como
macaquinhos de realejo em programas de auditrio...
(Boal, 2009: 18)
-
70
4.2 A educao como antdoto da barbrie
As identidades parecem fixas e slidas
apenas quando vistas de relance, de fora.
A eventual solidez que podem ter quando
contempladas de dentro da prpria
experincia biogrfica parece frgil,
vulnerv