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Tradução de Ana Carolina Mesquita 1ª edição 2016

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Tradução deAna Carolina Mesquita

1ª edição

2016

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Parte Um

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Capítulo 1

Subo a escada, mas a porta está fechada. Hesito um instante do lado de fora. Agora que estou aqui, não quero entrar. Quero dar meia-volta e ir para casa. Tentar outro dia.

Mas essa é minha última chance. A exposição ficou em exibição durante semanas e acaba amanhã. É agora ou nunca.

Fecho os olhos e respiro o mais fundo que consigo. Eu me con-centro em encher os pulmões, endireito os ombros e sinto a tensão desaparecer do corpo ao soltar o ar. Digo a mim mesma que não há motivo para me preocupar. Eu venho sempre aqui — para almoçar com amigos, ver as exposições mais recentes, assistir a palestras. Dessa vez não é diferente. Nada aqui pode me machucar. Não é uma armadilha.

Por fim sinto que estou pronta. Empurro a porta e entro.

Tudo está exatamente como sempre foi — paredes off-white, piso de madeira encerado, spots de luz pendurados em vigas no teto —, e, embora ainda seja cedo, já há algumas pessoas perambulando por ali. Observo-as por um instante enquanto param diante dos quadros: algumas se afastam um pouco para ter uma visão melhor, outras assentem ao comentário murmurado pelo acompanhante

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ou examinam o folheto que pegaram lá embaixo. Com o sussurro das pessoas, há um clima de reverência na galeria, de contemplação tranquila. Elas vão olhar as fotografias. Vão gostar delas ou não. Depois vão sair daqui, voltar às suas vidas e, muito provavelmente, apagá-las da memória.

De início me permito apenas olhar de relance para as paredes. Há pouco mais de dez fotos grandes dispostas a intervalos regulares e outras menores entre elas. Digo a mim mesma que poderia dar uma volta, fingindo estar interessada por todas elas, mas hoje estou aqui para ver apenas uma fotografia.

Levo um tempo até encontrá-la. Está exposta na parede mais distante, no final da galeria, mais ou menos no centro, pendurada ao lado de dois outros trabalhos — o retrato colorido de corpo in-teiro de uma garotinha de vestido rasgado e o close de uma mulher de olhos delineados com kajal fumando um cigarro. Mesmo a essa distância, a foto me parece impressionante. É colorida, mas foi tira-da com luz natural, e sua paleta é formada basicamente por tons de azul e cinza. Ampliada nessa escala, ela é imponente. A exposição se chama Ressaca. Embora eu não olhe diretamente para a foto até estar a poucos centímetros dela, entendo por que merece tanto destaque.

Faz mais de uma década que não a vejo. Que não a vejo direta-mente, quero dizer. Eu já a vi antes, claro — embora naquela época ela não fosse tão famosa quanto hoje, já havia sido reproduzida em algumas revistas e até em um livro —, mas desde então não olho para ela de verdade. Assim, de perto.

Eu me aproximo da fotografia pela lateral e, primeiro, examino a legenda. “Julia Plummer”, diz. “Marcus no espelho, 1997, impressão em cibachrome.” E mais nada, nenhuma informação biográfica, ainda bem. Então, eu me permito olhar para ela.

É a foto de um homem de uns 20 anos, nu e retratado da cintura para cima, olhando para o próprio reflexo. A imagem diante dele está em foco, mas ele não, e seu rosto é fino. Os olhos estão estreita-dos e a boca, ligeiramente entreaberta, como se ele estivesse prestes

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a dizer alguma coisa ou suspirar. Há algo melancólico nessa foto, mas, olhando para ela, não é possível saber que pouco antes de ela ser tirada, o cara — Marcus — estava rindo. Tinha passado a tarde na cama com a namorada, alguém por quem estava tão apaixonado quanto ela por ele. Os dois leram um para o outro — Adeus a Berlim, de Isherwood, ou talvez Gatsby, um livro que ela havia lido, mas ele não — e tomaram sorvete direto do pote. Estavam aquecidos, felizes, seguros. Um rádio tocava r&b no quarto do outro lado do corredor, e a boca do homem está entreaberta daquela forma porque a namorada, a mulher que tirou a foto, cantarolava junto com a música e ele estava prestes a acompanhá-la.

Originalmente a foto era diferente. A namorada aparecia em quadro, refletida no espelho logo acima do ombro do homem, a câmera na altura dos olhos. Estava nua e borrada, fora de foco. Era um retrato dos dois, numa época em que fotos em espelhos ainda não eram comuns.

Eu gostava da foto daquele jeito. Quase a preferia assim. Mas, em algum momento — não lembro quando exatamente, mas com certeza antes de eu a expor pela primeira vez —, mudei de ideia. Decidi que ficava melhor sem que eu aparecesse. E me apaguei dela.

Hoje me arrependo. Foi desonesto da minha parte, a primeira vez que usei minha arte para mentir, e agora quero dizer a Marcus que sinto muito. Por tudo. Por ter ido com ele a Berlim e depois tê-lo abandonado lá, sozinho naquela foto, e por não ser a pessoa que ele achava que eu era.

Mesmo tanto tempo depois, ainda sinto muito.

Demoro para virar as costas à minha própria fotografia. Não tiro mais retratos como esse. Agora só fotografo famílias, os amigos de Connor sentados com os pais e os irmãos mais novos, trabalhos que arrumo no portão da escola. Uma coisa ali, outra aqui. Não que haja algo de errado nisso: faço o melhor que posso nesses trabalhos, tenho uma reputação, sou boa nisso. Pessoas me convidam para as festas

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dos filhos para que eu tire fotos dos convidados e depois as mandam por e-mail, como lembrança. Uma vez cheguei a fotografar uma festa infantil organizada para angariar fundos para o hospital onde Hugh trabalha. Gosto do que faço, mas é muito técnico; não é o mesmo que retratos como esse. Não é arte — palavra que uso na falta de uma melhor —, e sinto falta disso. Eu me pergunto se ainda seria capaz, se ainda teria o olhar, o instinto para saber o momento exato de disparar o obturador. O momento decisivo. Faz muito tempo que não tento de verdade fazer algo assim.

Hugh acha que eu devia retomar meu trabalho artístico, agora que Connor está crescido e já consegue se virar um pouco sozinho. Por causa das dificuldades que ele teve no começo, nos dedicamos de corpo e alma a Connor, mas agora ele não precisa tanto de nós. E tenho mais tempo para mim.

Olho rapidamente para as outras fotos nas paredes. Talvez em breve. Eu poderia me concentrar um pouco mais na minha carreira e ainda assim cuidar de Connor. É possível.

Desço a escada para esperar Adrienne. Ela se ofereceu para me acompanhar na visita à exposição, mas não aceitei, eu queria ver a foto sozinha. Ela não se importou.

— Então encontro você no café — dissera ela. — A gente pode comer alguma coisa.

Adrienne chegou antes da hora que combinamos; está sentada a uma mesa perto da janela, com uma taça de vinho branco. Quando me aproximo, ela se levanta, e nós nos abraçamos. Enquanto nos sentamos, ela já pergunta:

— Como foi?Ajeito minha cadeira sob a mesa.— Meio estranho, para ser sincera.Adrienne já tinha pedido uma garrafa de água com gás para mim,

e me sirvo de um copo.— Não parece mais que é uma foto minha.Ela assente. Sabe o quanto eu estava ansiosa por vir à galeria.

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— Tem umas fotos interessantes lá em cima. Quer dar uma olhada? Mais tarde?

Adrienne ergue a taça.— Pode ser. — Sei que ela não vai, mas não fico ofendida. Ela

já viu a foto antes e não liga para os outros artistas. — Tim-tim — brinda. Bebemos. — Você não trouxe o Connor?

Balanço a cabeça.— Seria muito estranho. — Eu rio. — De qualquer maneira, ele

tinha outros compromissos.— Com os amigos?— Não. Hugh o levou para nadar. Os dois foram para Ironmon-

ger Row.Adrienne sorri. Connor é seu afilhado, e ela conhece meu marido

há quase tanto tempo quanto eu.— Nadar?— É, isso é novidade. Ideia do Hugh. Ele se deu conta de que ano

que vem vai fazer 50 anos e está morrendo de medo. Está tentando entrar em forma. — Faço uma pausa. — Você teve notícias de Kate?

Olho para minha bebida. Não queria ter feito essa pergunta, não tão cedo, mas agora já fiz. Não sei qual resposta prefiro: se sim ou se não.

Ela toma um gole de vinho.— Faz um tempinho que não tenho notícias dela. E você?— Umas três semanas.— E...?Dou de ombros.— Ah, o de sempre.— No meio da madrugada?— Sim — suspiro.Eu me lembro da última ligação da minha irmã. Às duas da ma-

nhã, tarde até mesmo para ela, que está em Paris. Parecia transtorna-da. Bêbada, supus. Ela quer Connor de volta. Não entende por que me recuso a devolvê-lo. Não é justo. Aliás, ela não é a única pessoa que acha que eu e Hugh estamos sendo egoístas e pouco razoáveis.

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— Ela só ficava repetindo a mesma coisa de sempre.— Talvez fosse bom conversar com ela. De novo, quero dizer.

Quando ela não estiver tão...— Irritada? — Sorrio. — Você sabe tão bem quanto eu que isso

provavelmente não vai adiantar nada, e, de qualquer forma, não tenho como entrar em contato com ela. Kate não atende o celular. E, se eu ligo para o apartamento, quem atende é a mulher com quem ela divide o lugar, e que nunca me diz nada. Não, Kate já se decidiu. De repente, depois desse tempo todo, a única coisa que ela deseja no mundo é cuidar de Connor, e acha que Hugh e eu estamos impedindo isso por puro egoísmo. Ela não parou para pensar nem por um minuto no que Connor iria sentir, no que ele poderia querer. Com certeza Kate não perguntou nada a ele. Como sempre, só está preocupada com ela mesma.

Paro de falar. Adrienne conhece o resto; não preciso continuar. Ela sabe os motivos pelos quais eu e Hugh adotamos o filho da minha irmã, sabe que durante todos esses anos Kate esteve satisfeita com o arranjo. O que nenhuma de nós sabe é por que isso mudou.

— Você pode falar com ela? — peço.Adrienne respira fundo e fecha os olhos. Por um instante tenho a

impressão de que ela vai falar que preciso resolver isso sozinha, que não posso pedir sua ajuda toda vez que discuto com a minha irmã; é o tipo de coisa que o meu pai costumava me dizer. Mas não, ela simplesmente sorri.

— Vou tentar.

Fazemos os pedidos e almoçamos. Conversamos sobre amigos em co-mum — Adrienne me pergunta se vi Fatima recentemente, se eu sabia que Ali arrumou um novo emprego, quer saber se estou planejando ir à festa de Dee no fim de semana —, então ela me avisa que precisa ir embora, que tem uma reunião. Eu lhe digo que nos falamos no sábado.

Não consigo resistir e dou um pulo na lojinha da galeria antes de sair. Queriam usar a foto de Marcus na capa do catálogo da exposição,

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mas, como eu não respondi ao e-mail que me mandaram, acabaram usando a foto de um rapaz andrógino chupando um pirulito. Tam-bém não respondi aos pedidos de entrevista, mas isso não impediu uma revista — a Time Out, se não me engano — de publicar uma matéria sobre mim. Eu era “reclusa”, diziam, porém minha foto era um dos destaques da exposição, um “retrato íntimo” ao mesmo tempo “tocante e frágil”. Ridículo, tive vontade de responder, mas não disse nada. Vou mostrar a vocês quem é a “reclusa”.

Olho de novo para o rapaz do pirulito. Ele me lembra de Frosty, e folheio o catálogo mais uma vez antes de passar para os cartões--postais expostos na pequenina estante giratória. Numa situação normal eu compraria vários, mas hoje compro apenas um, Marcus no espelho. Por um instante, sinto vontade de dizer ao atendente do caixa que fui eu quem tirou aquela foto, que a tirei para mim mesma e que, apesar de tê-la evitado durante todos esses anos, fico feliz por ela fazer parte da exposição e por eu ter tido a chance de ser novamente sua dona.

Mas não faço isso. Não digo nada, apenas sussurro um “obrigada”, guardo o postal na minha bolsa e saio da galeria. Apesar do frio de fevereiro, percorro a pé a maior parte do caminho até minha casa — passo por Covent Garden e Holborn, depois desço a Theobald’s Road em direção à Gray’s Inn Road —, e, a princípio, a única coisa que consigo pensar é em Marcus e no tempo que passamos juntos em Berlim, há tantos anos. Porém, quando chego à Roseberry Avenue, já consegui deixar o passado para trás e penso no que está acontecendo aqui e agora. Penso na minha irmã e torço com todas as forças para que Adrienne a faça entender, embora eu saiba muito bem que ela não vai conseguir. Eu mesma vou ter de conversar com Kate. Serei firme, mas gentil. Lembrarei que a amo e que desejo sua felicidade mas também direi que agora Connor já tem quase 14 anos, que eu e Hugh nos esforçamos muito para lhe dar uma vida estável e que é importante não perturbar isso. Minha prioridade será fazer com que Kate entenda que as coisas vão ficar melhor do jeito que estão.

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Pela primeira vez me permito pensar que talvez seja uma boa ideia eu e Hugh consultarmos um advogado.

Viro a esquina da nossa rua. Um carro de polícia está estaciona-do um pouco afastado da nossa casa, mas é a nossa porta que está aberta. Começo a correr imediatamente, só conseguindo pensar que preciso ver o meu filho. Só paro quando já estou dentro de casa, na cozinha, e vejo Hugh na minha frente, conversando com uma mulher fardada. Tiro a toalha e a sunga de Connor de cima do aquecedor, onde foram colocados para secar, e então a policial e Hugh se viram para mim. Ela exibe uma perfeita e calculada expressão neutra, que conheço muito bem: é assim que Hugh me olha quando está prestes a me dar uma má notícia. Sinto um aperto no peito e me ouço berrar, como num sonho.

— Cadê o Connor? — grito. — Hugh! Cadê o nosso filho?Mas ele não responde. Tudo que eu consigo ver na cozinha é Hugh.

Os olhos dele estão arregalados; percebo que alguma coisa terrível aconteceu, algo indescritível. Me diz logo!, sinto vontade de berrar, mas não o faço. Não consigo me mexer; meus lábios não formam palavras. Abro e fecho a boca. Engulo em seco. Estou submersa, não consigo respirar. Vejo Hugh se aproximar de mim, tento afastá-lo quando ele segura o meu braço e então encontro a minha voz.

— Me diz logo! — exclamo, e repito até que ele abre a boca.— Não é com o Connor — responde, mas mal consigo registrar

o alívio que me inunda quando ele completa: — Sinto muito, meu amor. É com a Kate.

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