traduçãoteatral

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  • A TrAduo TeATrAl:

    o TexTo e A cenA

  • Christine ZurbaCh

    A TrAduo TeATrAl:

    o TexTo e A cenA

  • ttulo

    A Traduo teatral: o texto e a cena

    autor

    Christine Zurbach

    coleco

    Da Literatura

    director de coleco

    Christine Zurbach

    data de edio

    ???????????? de 2007

    ISBN

    ????????????????????

    depsito legal

    ?????????????

    edio

    Caleidoscpio_Edio e Artes Grficas, S.A.Rua de Estrasburgo, 26 - R/c Dto.

    2605-756 Casal de Cambra PortugalTel.: (351) 21 981 79 60 Fax: (351) 21 981 79 55

    e-mail: [email protected]

    apoio

  • Fontes 9

    Prefcio 11

    I. Traduo, literatura e vida teatral 171. Traduo, traduo teatral e traduo literria 192. A tragdia clssica francesa de Corneille em portugus: um estudo comparativo. 293. Traduo teatral e literatura em Portugal (1975-1988): um estudo de caso 394. Traduo e repertrio teatral: editar e representar teatro em Portugal 55

    II. Traduo, sociedade e vida cultural 735. Traduzir os clssicos : Gil Vicente em lngua francesa 75 6. O sculo XVIII: traduzir ao gosto portugus 1027. A traduo indirecta: uma norma consentida 113

    III. Traduo, histria e recepo teatral 1338. A prtica da retraduo na traduo para o teatro 1359. Texto, fragmentos, materiais: Brecht traduzido hoje 15510. Da efemeridade das tradues teatrais 161

    IV. Estudos de Traduo e Estudos Teatrais 16711. Problematizar teatro e traduo nos Estudos Teatrais 169

    Sumrio

  • 6

  • 7Nota biobibliogrfica:

    Professora Associada com agregao do Departamento de Artes na

    Universidade de vora onde lecciona nas reas de Estudos Teatrais e dos

    Estudos de Traduo. Doutorada em Literatura Comparada / Estudos de

    Traduo em 1997 com a tese TraduoePrticadoTeatroemPortugalde1975

    a1988 (Colibri (2002). reas de investigao: traduo; teatro; teatro de

    marionetas com um projecto autnomo sobre o teatro dos Bonecos de Santo

    Aleixo (POCI; 2005-2007). Colaborao como dramaturgista com o CCE/

    CENDREV a partir de 1975 e como membro da redaco da revista Adgio.

    Membro da APCT e membro do conselho consultivo da revista Sinaisde

    Cena.

    LusNotaArtes Cnicas

  • 9ITraduo literria e traduo teatral: duas prticas distintas, Encontro Internacional sobre

    Traduo e Interpretao organizado pelo Instituto Politcnico de Macau, Macau, 1999 in RevistadoInstitutoPolitcnicodeMacau, vol.2 (1-2), Julho 1999 (nova verso)

    A Tragdia clssica francesa de Corneille em portugus: um estudo comparativo, in ActasdoIIICongressodaAssociaoPortuguesadeLiteraturaComparada, Lisboa, Colibri, 2001

    Traduo teatral e Literatura em Portugal entre 1975 e 1988: um estudo de caso, in EconomiaeSociologia, n 73, vora, 2002

    Entre os LivrosRTPe a EstampaSearaNova: a traduo teatral em coleco, in Actas do Colquio TraduesnocoleccionismoportugusdosculoXX, Teresa Seruya (org.), Universidade Catlica Editora, Lisboa, 2007

    IINormes et modles dans la traduction franaise du thtre de Gil Vicente in ActasdoIVCongresso

    daAssociaoPortuguesadeLiteraturaComparada:EstudosLiterrios/EstudosCulturais, Carlos J.F. Jorge e Christine Zurbach (eds), ISBN 972-778-072-5, Universidade de vora, 2004

    Du discours des traducteurs contemporains du thtre de Gil Vicente en langue franaise, in ActasdoCongressoInternacional:GilVicente500anosdepois, Lisboa, INCM, 2003

    Molire traduit en portugais: de la comdie la comdia, Colquio Dungenrelittrairelautre.Rcriturestransgnriques, sous la direction de Michle Guret-Lafert et Daniel Mortier, Publications des Universits de Rouen et du Havre, 2006

    O Papel da traduo intermdia numa traduo de OAlquimista de Ben Jonson em lngua portuguesa in ActasdoICongressoInternacionaldeEstudosAnglo-Portugueses, Centro de Estudos Anglo-Portugueses, Lisboa, Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2001

    IIIA prtica da retraduo na traduo para o teatro, verso revista do artigo publicado com

    o ttulo Traduction(s) et retraduction(s) portugaises de Lcoledesfemmes de Molire, in CadernosdeTraduo, n11, revista da UFSC, Florianpolis, 2003, pp. 161-192

    Fontes

    LusNotacorrigir espao entre as palavras

    LusNotacorrigir espao entre as palavras nessa linha na seguinte

    LusNotacorrigir espaos

  • 10

    Tempo para Entender. Histria Comparada da Literatura Portuguesa

    Textos, materiais, fragmentos: traduzir Brecht hoje, Colquio Internacional Bertolt Brecht, vora, 1998 in Adagio, n 21/22, vora, Maro 1999

    Da efemeridade das tradues teatrais in TeatroEscrito(s), revista do Instituto Portugus das Artes do Espectculo (IPAE), n 2, Lisboa, Edies Cotovia, 2000

    IVProblematizar teatro e traduo nos Estudos Teatrais , in Teatro em Traduo, Cadernos

    de Literatura Comparada 12/13, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP), 2005

    LusNotaretirar ttulo

    LusNotacorrigir espaos

  • 1111

    Esto reunidos neste volume alguns textos at hoje dispersos em vrias publicaes sobre questes relativas traduo teatral, aqui entendida como prtica artstico-literria e, simultaneamente, como objecto de estudo. Trata-se de uma problemtica mal conhecida, mas cuja percepo cientfica, assim o cremos, poder contribuir para uma reviso do estatuto tradicional da tra-duo e do tradutor de teatro e tambm do entendimento das relaes entre os textos traduzidos e a cena que os acolhe.

    Este livro resulta de um percurso pessoal iniciado nos anos 90 com a des-coberta da disciplina emergente dos Estudos de Traduo e da teoria polissist-mica aplicada traduo. Nessa fase de experimentao num campo ainda mar-cado por uma relativa instabilidade, pude realizar uma primeira investigao em torno de prticas da traduo observveis no repertrio teatral em Portugal. Materializou-se numa dissertao de doutoramento apresentada Universidade de vora em 1997, hoje publicada com o ttulo Traduo e Prtica do Teatro em Portugal de 1975 a 1988 (Colibri, Lisboa, 2002) sob a orientao de Maria Alzira Seixo (FLUL), especialista no campo dos estudos comparatistas reconhe-cida a nvel internacional, e Jos Lambert (KULeuven, Blgica), um dos pio-neiros na rea dos Estudos de Traduo. Confirmando o interesse do domnio investigado, a riqueza promissora desses primeiros resultados justificou uma reorientao da minha vocao comparatista que se viu desde ento fortalecida pelo estudo privilegiado da traduo. Associando-se rea da dramaturgia e do teatro, que sempre me interessaram quer no domnio da prtica artstica, quer no terreno acadmico, a traduo passou assim a ocupar um lugar de destaque nas minhas preocupaes acadmicas e cientficas.

    Os limites da presente obra so claros na medida em que partem de uma percepo da traduo que, sem se afastar de uma busca terica, privilegia um conhecimento do que se entende por traduzir e traduo assente numa compreenso descritiva e pragmtica do conceito em si e dos fenmenos asso-ciados traduo. Assim, na busca da to apetecida e tambm to duvidosa

    Prefcio

    LusNotattulo em itlicos

  • 12

    A Traduo teatral: o texto e a cena

    definio desse objecto algo mtico, optmos pelo princpio metodolgico segundo o qual qualquer tentativa de definio dever apoiar as suas hipteses de teorizao em estudos realizados a partir dos objectos e das prticas tradu-trias observveis nas culturas e nas sociedades.

    Admitindo a possibilidade de um consenso (ainda que certamente pro-visrio) acerca do carcter diferenciado da traduo no mbito do teatro, a presente obra constitui uma tentativa de aprofundamento de tal especifi-cidade com a descrio das prticas observveis que cada captulo procura delinear. Tendo em conta a instabilidade do saber nessa rea, tal orientao pretende sobretudo alimentar a prossecuo de uma pesquisa aberta em torno da problemtica da traduo e do(s) debate(s) que sempre suscitou e continua a estimular.

    Razo pela qual o conjunto dos captulos deste livro ou esta srie de pro-postas de reflexo crtica em torno da especificidade da traduo teatral no pretende impor nenhuma tese definitiva, o que de resto de pouco serviria face diversidade das questes levantadas e das respostas sugeridas pela pro-blemtica em causa. sabido que a tradio do questionamento da traduo alimentou uma produo bibliogrfica abundante que visava sobretudo uma tentativa de construo da sua definio e da sua essncia: o que significa o termo traduo? O que a traduo?

    Mas o interesse actual pelo tema j no se limita a tal demanda. Omnipresente no mundo contemporneo e multifacetada nas suas manifes-taes prticas, a traduo hoje entendida como uma componente da comu-nicao entre as sociedades e as culturas, com aplicaes distintas para um nmero elevado de domnios de especializao. No caso da traduo teatral, a questo mais frequente precisamente a da sua hipottica especificida-de, expressa em variantes que procuram afinar e destrinar as problemticas envolvidas: Traduo e Teatro, Traduo para teatro, Traduo do ou de teatro Na nossa opinio, se as distines so pertinentes, devero sobre-tudo valer enquanto manifestao da importncia da reflexo suscitada pelo campo em termos terico-prticos, ou seja sobre o que estar em jogo em cada caso. Mas tambm so importantes enquanto reveladoras da evoluo do estu-do da traduo teatral que, j nos anos 1970, com Susan Bassnett, era asso-ciada questo decisiva da relao entre o texto e a representao enquanto forma de spatial poetry. E valer a pena referir que, se hoje os objectivos dos especialistas pressupem uma maior autonomia epistemolgica dos Estudos de Traduo, curiosamente, no caso do teatro, uma aproximao com a pr-

    LusNotasubtituir "das prticas observveis" por: e anlise de casos

  • Prefcio

    13

    pria disciplina dos Estudos Teatrais parece ter sido capaz de trazer benefcios mtuos a ambas as reas.

    Finalmente, se as frmulas citadas anteriormente parecem refletir um consenso em torno de uma especificidade da traduo teatral como problema inerente questo das relaes entre texto e encenao, no fica por isso resol-vido um tema recorrente nos discursos acerca da traduo teatral, o da sua relao com a traduo literria, o que, de resto, suscita outra pergunta: o que significa a designao traduo literria? De novo estamos confrontados com uma desmultiplicao de designaes com os seus prprios problemas. Bastar citar, entre outras problemticas j sobejamente difundidas, a distin-o estabelecida por Gideon Toury entre traduo detextosliterrios e tradu-o literria Se o carcter a-literrio da traduo teatral frequentemente afirmado pelos artistas que dela se servem, geralmente em nome do carcter dialogado, portanto profundamente oral, da componente verbal do texto de teatro, tal afirmao - certamente excessiva -, decisiva no entanto para o tradutor confrontado com a problemtica do dizer o texto, da oralidade no teatro e da sua relao com a escrita. Em termos provisrios, optaremos aqui por admitir que a traduo teatral no ser alheia ao literrio, surgindo como modo de inscrio do literrio num sistema semitico e de comunica-o outro, o do espectculo de teatro que, por sua vez, inserido na comu-nicao intercultural, com os seus respectivos parceiros e intervenientes. Para um entendimento da especificidade da traduo teatral, o nosso quadro con-ceptual deve ser mais vasto, de modo a transcender a oposio literrio-no literrio e poder acolher e abranger a diversidade das questes prprias desse sector das tradues. A instabilidade da traduo teatral, confirmada pela efemeridade dos textos produzidos e pelas variantes introduzidas no seu uso prtico, outra constante no discurso crtico. Empiricamente verificvel, apenas confirma a dupla existncia da traduo teatral: semelhante tradu-o literria, mas destinada a integrar um processo semitico e comunicativo mais complexo, impe um rigor na fixao do texto indispensvel para a profunda liberdade criativa do seu uso. Tal factor reenvia-nos para a natureza social e cultural da traduo, centrada nos agentes mediadores entre os textos e os contextos mais do que nas tradues enquanto textos isolados, em que o agente chamado tradutor isolado ou colectivo produz na sua prtica o(s) texto(s) que, nas suas concretizaes successivas desde o texto de partida at sua enunciao no palco, constituem um objecto cuja interpretao dever ser situada num plano macrotextual.

    LusNotareflectir

  • 14

    A Traduo teatral: o texto e a cena

    Alguns captulos da presente obra dedicam um interesse mais evidente importncia histrica da traduo na literatura e na cultura, quer no contexto portugus, quer no plano das relaes interliterrias e interculturais. Sabemos hoje que rara e escassamente se reconheceu o papel da traduo na historiogra-fia literria, em que a invisibilidade da sua presena impera. Uma mudana poder estar finalmente em curso, pelo menos se considerarmos o esforo mais visvel nas ltimas duas ou trs dcadas no sentido da elaborao da histria da traduo em Portugal com uma clara incidncia na histria da literatura. O debate comeou a ganhar consistncia no meio universitrio portugus, na formao e na investigao especializadas, em particular em projectos e programas de mbito internacional graas progressiva afirmao acadmica dos Estudos de Traduo, se bem que ainda se mantenham em muitos casos relativamente dependentes de uma matriz comparatista literria. Certo que o futuro da disciplina depender do efectivo desenvolvimento da investigao nesse domnio, quer em termos autnomos quer interdisciplinares, nacionais e internacionais, e do empenho dos especialistas e das instituies.

    Os estudos aqui reunidos so agrupados em trs reas que configuram tpicos complementares entre si da investigao em traduo teatral: tra-duo, literatura e vida teatral; traduo, sociedade e vida cultural; Estudos de Traduo e Estudos Teatrais. Na sua maioria, reenviam para um corpus especfico, o das tradues integradas no repertrio da companhia teatral de vora cuja primeira abordagem fiz no mbito do doutoramento. Alguma insistncia em voltar a esses mesmos textos, traduzidos e encenados, apenas visa aprofundar aspectos pontuais - ainda que recorrentes da prtica da tra-duo teatral, de modo a confirmar a sua natureza complexa enquanto proces-so multifacetado, frequentemente determinado pelo papel que deve assumir no conjunto do processo da comunicao teatral em contextos decisivos para a sua produo e recepo. Verificar-se- que a riqueza de qualquer debate terico em torno da traduo teatral no pode dispensar o conhecimento do contexto histrico e cultural da sua introduo no polissistema de chegada, em particular nos aspectos diversos do conjunto da vida teatral onde se tor-nar actuante.

    Revistos e parcialmente reescritos de modo a darem coerncia a uma obra que procurou apresentar alguma homogeneidade funcional para o seu poten-cial destinatrio, foram produzidos ao longo de um percurso que muito deve s circunstncias (at pessoais) da sua redaco. Geralmente apresentados no contexto de encontros cientficos ou inseridos em publicaes de natureza

  • Prefcio

    15

    cultural, tambm reflectem a articulao possvel entre trabalhos acadmi-cos e contributos para outros universos, no menos importantes na dinmica cultural que acolhe o investigador. Publicar esses tpicos nascidos da reflexo feita sobre a traduo teatral com apoio na disciplina dos Estudos de Traduo tambm procurar outros terrenos, hoje internacionalmente consagrados, que permitem juntar algumas pontas do tecido das relaes interliterrias e interculturais em que o conhecimento cientfico da traduo dialoga hoje com o vastssimo corpus dos textos em circulao e que assim so chamados.

  • Traduo, literatura e vida teatral

    I

  • 1919

    As observaes que se seguem so, em parte, apoiadas em estudos realiza-dos a partir da observao dos textos traduzidos no quadro do repertrio levado cena pelas companhias profissionais de teatro em Portugal e, em parte, foram suscitadas por questes de carcter mais geral que interpelam a vida cultural contempornea e o lugar que o teatro - e a traduo para o teatro - ocupam nos debates em torno das relaes interliterrias e interculturais observveis no quadro sociolgico e histrico da segunda metade do sculo XX.

    Os pressupostos tericos e metodolgicos que sustentam esta comunica-o situam-se no quadro geral dos estudos actuais sobre traduo, j ampla-mente conhecidos no mundo acadmico sob a designao de DescriptiveTranslationStudies que constituem o campo mais desenvolvido da disci-plina dos Estudos de Traduo criada por volta dos anos 1970 com vista a abordar a traduo atravs de um conhecimento verdadeiramente cientfico (Holmes 1988).

    Nesse sentido, a jovem disciplina socorreu-se da teoria literria do polis-sistema (Even-Zohar 1990) que descreve a literatura como um conjunto hierarquizado e estruturado, em correlao com outros sistemas no-liter-rios, onde a literatura traduzida intervm igualmente enquanto subsistema dinmico, por ser, como o descreve Gideon Toury (1986), [a] phenomenon, which permeates the entire domain of human culture and is at the root of many a cultural change and development.

    Procurou tambm na semiologia da cultura de Lotman (1978) uma abor-dagem relacional dos fenmenos culturais que lhe permitiu identificar a tra-duo como actividade de comunicao dentro da sociedade.

    Note-se que, no caso do texto teatral, tal modelo terico encontra uma pertinncia acrescida na medida em que as caractersticas do gnero levam necessria articulao entre vrios subsistemas que devem contribuir para a produo do objecto artstico final, isto , a obra traduzida encenada enquan-to objecto semitico complexo e aco comunicativa.

    1. Traduo, traduo teatral e traduo literria

  • 20

    A Traduo teatral: o texto e a cena

    De acordo com esta orientao, a perspectiva adoptada para a anlise do corpus de tradues teatrais j referido, levadas cena e nem sempre editadas, considerou a traduo na dupla compreenso do termo que, como sabido, designa simultaneamente uma aco, ou seja, um processo de rescrita, e o seu resultado enquanto objecto realizado. Nessa segunda acepo, surge na dupla qualidade de texto para a leitura geralmente editado em coleces literrias especializadas e de texto para a representao. Frequentemente no-editado e reproduzido apenas para um uso restrito nos ensaios, constitui um material efmero e instvel, mas particularmente significativo quanto realidade das relaes entre o teatro e uso que feito da traduo nesse campo.

    Na traduo teatral que se associa representao cnica surgem tam-bm as variantes de traduo, que se apresentam como etapas intermdias do processo, situadas na passagem do texto escrito para o texto dito. Tambm revelam as interferncias que outras normas e outros participantes, como por exemplo os actores, podem assumir na formulao do texto verbal, compo-nente parcial da obra final.

    De facto, as opes ou decises referidas no so da exclusiva responsabili-dade do tradutor; so feitas a vrios nveis, desde a seleco das obras destina-das a serem includas no repertrio, escolha do processo de traduo directa ou indirecta dos textos (ver infra), e s escolhas feitas pelo tradutor durante o processo em si, que podem afectar a matriz do texto ou interferir ao nvel da sua formulao verbal final.

    Deste modo, a observao analtica dos textos traduzidos e das relaes entre os textos de origem e de chegada foi articulada com os dados cons-titutivos do quadro histrico e scio-cultural no qual surgiram as decises tomadas pelos tradutores ou por outros agentes/intervenientes na produo do texto final com vista produo de um objecto artstico final associado a determinados efeitos no destinatrio. So dois domnios interdependentes que representam os elementos basilares desta investigao, organizada numa perspectiva multi e interdisciplinar.

    A traduo literria: uma definio

    Foi no quadro das primeiras reflexes elaboradas a partir dos anos 1970 pelos estudiosos da traduo que surgiram algumas consideraes acerca do texto teatral e da sua posio relativamente ao texto literrio, em particular no

    LusNotae o uso

    LusNotasuprimir "final"

  • Traduo, literatura e vida teatral

    21

    que diz respeito aos problemas da sua traduo para um uso teatral ou cnico, se bem que sejam ainda raras as referncias aos aspectos verdadeiramente especficos da prtica da traduo teatral e a determinadas tendncias verifi-cveis hoje quanto ao estatuto do texto na criao teatral.

    Entendemos a traduo literria como um acto de comunicao, do mesmo modo que o texto literrio em geral e, mais precisamente, como uma extenso do processo de comunicao no qual o cdigo lingustico utilizado na produo da mensagem comum ao emissor e ao receptor. Esta produo dever, portanto, ser considerada como um trabalho de rescrita, enquanto processo regulado por normas que, para o tradutor, se situam em pelo menos dois planos: o primeiro lingustico, se considerarmos a traduo como reco-dificao do texto da lngua A para a lngua B, com as dificuldades decorren-tes das diferenas entre as lnguas, e o segundo esttico-literrio, situado no domnio das equivalncias conotativas ou associativas onde se realizam a dimenso e a funo estticas da mensagem.

    Estas ltimas so dificuldades de outra ordem, que obrigam o tradutor a conhecer no s dois sistemas lingusticos, mas tambm dois sistemas cultu-rais. Esta condio torna-se evidente quando analisamos textos traduzidos que fazem aparecer, nas decises tomadas pelos tradutores/mediadores, um certo tipo de condies (ou constraints) que, segundo os investigadores Bassnett e Lefevere (1990:12), por exemplo, pertencem ao universo do discurso e da potica dos textos, e simultaneamente transcendem o campo propriamente literrio: They ultimately have to do with power and manipulation, two issues potentially of enormous interest not only to those engaged in literary studies, but also to all their victims outside, isto , queles que intervm no campo mais alargado da produo intelectual ou cultural, no sentido em que Bourdieu o define (1987:167-177).

    De facto, os textos traduzidos so tambm a expresso das relaes do liter-rio com o campo do poder, nas condies especficas e concretas em que estas se desenvolvem, estando em constante evoluo, porque lautonomie des champs de production culturelle, facteur structural qui commande la forme des luttes internes au champ, varie considrablement selon les poques, dans la mme socit et selon les socits (ibid., p.173). Esta caracterstica particularmente interessante no caso do texto teatral dado que, como sabido, o teatro uma arte muito sensvel ao universo social e poltico onde existe e com o qual est em relao. A, nem sempre so as normas literrias que determinam, em termos de hierarquia, o processo da traduo (Toury 1995:166-180).

  • 22

    A Traduo teatral: o texto e a cena

    Por outro lado, as operaes feitas pelo tradutor durante o processo de traduo so, numa perspectiva ideal, derivadas da necessidade de, ao impor-tar (Lambert 1980) um texto novo para a literatura de recepo, permitir ao leitor da lngua de chegada uma participao na comunicao entre o autor do texto de partida e o leitor da cultura de recepo, ultrapassando a barrei-ra da lngua. De facto, hoje admitido que no se traduz uma lngua, mas entidades em situao, convencionalmente denominadas textos. A traduo literria portanto semelhante actividade literria na lngua de origem, e o texto de chegada deve tender para ser entendido e recebido como um enuncia-do que pertence lngua de recepo e que poder funcionar como um texto literrio.

    A rescrita feita atravs do tradutor, um agente intermedirio que tem a responsabilidade de ser o primeiro receptor e leitor do texto e que, simulta-neamente, perspectiva um certo tipo de pblico leitor com o seu horizonte de expectativa. Assim, a questo da importncia da criao literria na tradu-o, a questo de saber se o tradutor , ele tambm, um autor, no poder ser reflectida sem passar pela observao dos textos e dos processos que procuram realizar esta funo, ou por outras palavras, pela identificao das estratgias de traduo e do tipo de manipulaodo texto (Lambert & van Gorp 1985), que por sua vez so dependentes do estatuto e da funo do texto traduzido na cultura de recepo.

    As opes iniciais so as mais esclarecedoras a esse respeito. Elas so assim descritas por Toury no texto j citado em que aborda esta questo: ou so do tipo adequado, isto , orientadas em direco ao texto de origem, que funciona enquanto modelo influente e coloca a problemtica da fidelidade do tradutor e da equivalncia, ou so do tipo aceitvel, quando so orien-tadas em direco ao texto de chegada, o qual pode resultar numa adaptao do texto de partida (Popovic 1975-76) quando apresenta modificaes que evidenciam a procura comunicativa dos receptores ou o peso dos cnones da literatura do meio de chegada.

    A observao e a descrio das tradues confirmam que, tendencialmen-te, a traduo transforma os textos mais do que exigido pela adaptao ao sistema lingustico e que, para os investigadores confrontados com a observa-o emprica da literatura traduzida, se torna aceitvel falar de uma potica da literatura dramtica traduzida.

  • Traduo, literatura e vida teatral

    23

    Problemas da traduo do texto de teatro

    O texto de teatro pertence, enquanto gnero, literatura, um dos sistemas de interaco comunicativa que funciona dentro da sociedade. Mas um texto literrio particular.

    Patrice Pavis (1989 :97) lembra que os estudos teatrais actuais propem encarar le texte dramatique en fonction de son aspiration thtrale, comme la trace dune pratique scnique globale dans laquelle il sintgre, que ce soit dans lacte individuel de la lecture ou dans une reprsentation . Esta afirma-o de grande importncia para a nossa tipologia de traduo. Quer destina-do leitura, quer destinado ao palco, o texto de teatro mantm a sua condio, a sua funo implcita. Todavia, no gesto da criao, enquanto aco comu-nicativa realizada em condies histricas e socio-econmicas particulares, que alguns aspectos da distino anunciada podem ou devem surgir.

    Em primeiro lugar, enquanto componente verbal da comunicao teatral, o texto traduzido objecto de um processo de insero numa rea da vida cul-tural da sociedade de recepo cuja autonomia condicionada por numerosos factores, nomeadamente a condio de menor autonomia da actividade teatral enquanto actividade regulamentada e institucionalizada e, por conseguinte, dependente do sistema poltico, jurdico e econmico, numa relao varivel segundo as circunstncias. Assim, por constituir o repertrio de companhias profissionais subsidiadas, o corpus textual revelou ser fortemente caracteriza-do por aspectos ditos institucionais, presentes a todos os nveis e para todos os agentes ligados a esta forma de comunicao artstica, incluindo o tradutor. Basta lembrar que a escolha dos textos pode ser determinada pelo nmero de actores contratveis nas condies financeiras existentes, ou que o nmero de tradues a incluir no repertrio pode ser fixado por opes programticas ou por determinaes legais que obriguem incluso de uma quota de peas do repertrio nacional, etc.

    Verifica-se que no perodo considerado, sobretudo aps 1960, nesse mesmo corpusas peas traduzidas so em nmero largamente maior do que as peas oriundas do repertrio nacional, ou seja, do teatro portugus que inte-gram a vida literria e teatral. A escolha deste tipo de repertrio, os seus cri-trios ou as suas orientaes, so em grande parte explicveis pela escassez da produo em lngua portuguesa. A situao de crise ou de transformao dos anos 1974/75 em Portugal vir confirm-lo. Simultaneamente, uma norma comandada por escolhas de natureza esttica e de natureza sociocultural que

  • 24

    A Traduo teatral: o texto e a cena

    peas para que tipo de funo do teatro nesta sociedade? -, levou algumas companhias consideradas aqui (nomeadamente, Teatro Experimental do Porto e Centro Cultural de vora/Cendrev) a optar por textos designados como clssicos, com os quais se podia levar a cabo uma determinada poltica cultural, de teatro popular, e de fruio alargada e inovadora do patrim-nio pelo maior nmero de espectadores num quadro de interveno muito semelhante ao da dcentralisationthtraledo ps-guerra francs e do Teatro Nacional Popular de Jean Vilar.

    No caso do Centro Cultural de vora, por exemplo (Zurbach 2002), trata-se de um grupo de tradues associadas a um tratamento cnico orientado e includas num projecto destinado a renovar a actividade teatral num contex-to histrico de mudanas e de abertura para a inovao que resultou do 25 de Abril de 1974. Um aspecto destas tradues revela uma homogeneidade do tratamento, por exemplo, da traduo dos ttulos enquanto elementos que representam os textos e, por essa razo, desencadeiam e condicionam a recepo das obras: em geral so traduzidos sem adaptaes e sem que a refe-rncia ao nome do tradutor aparea no cartaz ou at no programa; ou ainda do tratamento dado aos nomes das personagens, em que a conservao ou no-traduo exerce uma funo de estranhamento ao mesmo tempo que designa a traduo como representao de um objecto novo no teatro portugus, por-tanto susceptvel de ter assim uma recepo mais alargada num contexto de mudana e de abertura cultural.

    Quanto traduo dos textos propriamente ditos, num tal quadro, ela participa necessariamente na leitura ou interpretao do texto de partida, como no texto literrio em geral. Mas o teatro requer uma apropriao dife-rente da parte dos diversos agentes intervenientes na construo do espect-culo: a dramaturgia ou reflexo e produo crtica do sentido da pea a partir da qual nasce a obra teatral, com a encenao que se ocupa da organizao do universo de signos verbais e no verbais no espao cnico, colaboram tambm na interpretao e no mesmo objectivo discursivo. A traduo teatral , por isso, mais solicitada pela rescrita de modo a facultar a quem faz o espectculo uma matria textual integrada no objecto artstico. No entanto, constatamos que os limites para esta manipulao textual pela via da traduo so vari-veis, tanto mais que, no teatro, na maior parte dos casos, os tradutores so eles prprios os responsveis da escolha do repertrio e das orientaes seguidas para a sua encenao A articulao intersemitica j evocada denuncia por vezes um peso bastante relativo do texto, absorvido na encenao.

  • Traduo, literatura e vida teatral

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    Com efeito, as escolhas dos tradutores ao nvel da estrutura profunda ou de superfcie do texto so orientadas, consciente ou inconscientemente, por modelos1 literrios e/ou teatrais, em concorrncia entre eles, com prioridades diversas, e em cujo conflito os gneros, a sua estabilidade e o seu tratamen-to artstico, assim como aspectos ligados aos nveis de lngua so um factor determinante para a compreenso do tipo de traduo efectuada.

    A tipologia das tradues do corpus, em termos de normas, , no seu conjun-to, bastante variada. So tradues directas quando o texto de partida em ln-gua francesa, bem conhecida dos intervenientes; so indirectas para o alemo ou outra lngua do Norte da Europa e no latina, e a cultura francesa que funciona como veculo intermdio para a importao, dado que alm da lngua, o modelo teatral francs corresponde a uma longa tradio em Portugal; so novas tradu-es, que se substituem muitas vezes a tradues j existentes, o que confirma a hiptese segundo a qual a traduo um fenmeno histrico, rapidamente data-do, e que a vontade de inovar, ou a busca do modelo inovador domina este corpus; existem ainda as variantes, numerosas por corresponderem prtica da fixao do texto final pela via da experimentao prtica em cena de formulaes mais prximas da norma teatral do que da norma literria; encontram-se finalmente as adaptaes, que podem ser realizadas de modo global ou parcial no texto, sem que estas sejam sempre notadas, como de resto o assinala Venuti (1995), quando fala do carcter invisvel da presena do tradutor no texto, enquanto autor que se manifesta implcita ou explicitamente a todos os nveis da traduo. A transcri-o sem traduo, ou pela no-traduo, no caso dos nomes das personagens ou de lugares, etc. so fenmenos tambm frequentes nos textos estudados.

    Comandada pela prtica, a traduo teatral multifacetada e dificilmente redutvel a um modelo normativo predefinido. Lembrarei ainda que o processo de recepo determinante neste caso. Por ser destinada a participar no objec-to artstico teatro que supe uma recepo colectiva e nica de cada vez no tempo e no espao, a pea traduzida, enunciada em cena, tem uma autonomia e

    1 O conceito de modelo utilizado na descrio das tradues de acordo com a perspectiva de Jos O conceito de modelo utilizado na descrio das tradues de acordo com a perspectiva de Jos Lambert: As far as the actual use of models is concerned, I and some of my colleagues use models in order to discover subtle historical changes I the way people function within the literary system; in order to relate seemingly incoherent events to a set of parameters. The fact that these parameters involve binary opositions sometimes leads to the misunderstanding that they are static tools, not allowing for interplay between different forces []. In our view however it is precisely because one uses models that the half-way opositions, the interferences, can be described and explained in a much better way than without them, in Lambert& Delabastita, EuropeanShakespeareintheRomanticAge, John Benjamins Publishing Company, Amsterdam/Philadelphia, 1993.

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    uma estabilidade bastante mais reduzidas do que no caso da traduo destina-da a uma impresso para leitura. De resto, de assinalar que, no prevendo na maioria dos casos uma recepo destes textos e das suas tradues fora do quadro da sua produo teatral, os agentes responsveis pela sua seleco raramente disponibilizaram para publicao as peas traduzidas.

    Acerca das prticas distintas ou da tipologia das tradues lite-rria e teatral

    Do mesmo modo que a traduo literria, a traduo teatral surge como um tipo de traduo entre outros, mas que coloca ao tradutor problemas especficos, como vimos. , por um lado, um acto de criao, fazer literatura e , por outro lado, uma actividade de escrita/rescrita destinada a colaborar na elaborao de uma obra no campo artstico e teatral, na qual a interveno no texto se mul-tiplica em vrios domnios semiticos concorrentes, sinteticamente definidos pela oposio entre o verbal e o no-verbal e na qual intervm factores no-lite-rrios importantes, ligados funo sociocultural do teatro. Aparece assim que a distino entre os dois tipos de traduo depende essencialmente da funo atribuda ao texto no processo da sua importao na cultura de recepo.

    Assim, os dados apresentados pela observao da traduo como existe na sociedade podero confirmar o interesse da abordagem emprica e inter-disciplinar da traduo como aco comunicativa inscrita num devir hist-rico. Enquanto metodologia orientada para um conhecimento dos processos de manipulao da literatura e, por conseguinte, dos seus receptores, o estudo descritivo permite aceder a um entendimento mais consciente do mundo onde vivemos. Hoje, certos aspectos tendenciais na literatura traduzida, derivados da massificao e da mercantilizao da cultura, apoiadas no papel decisivo das tecnologias da comunicao, tendem para introduzir alteraes significativas nas reas tradicionalmente consagradas em termos de valor, esttico e cultural, e de reconhecimento social (Bourdieu 1979), como as da literatura e do teatro. De facto, no plano da comunicao intercultural mun-dial, so sectores que parecem cada vez mais dependentes dos imperativos econmicos do mercado, ou at de presses de natureza poltica ou ideolgica que suscitam a manipulao de que fala Lefevere (1992).

    No caso do teatro, so dados perceptveis no s na escolha dos repertrios seleccionados com vista sua importao pela traduo, como nas normas

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    adoptadas no prprio processo de rescrita. Submetido a novas exigncias, derivadas de questes de natureza econmica que, por vezes, se sobrepem s artsticas e lhe impem escolhas orientadas pela moda, um certo tipo de teatro actual tende para privilegiar o espectculo em detrimento do texto, facto que determina uma perda relativa da caracterizao do texto teatral como prtica literria. De modo surpreendente, j podemos ler declaraes de resistncia a tais alteraes, em textos tericos e programticos sobre o teatro que rejei-tam a submisso desta arte ideologia dos lazeres. A traduo literria e os tradutores em geral - no podero alhear-se deste debate, sob pena de se per-der o que constitui esta prtica comunicativa como manifestao de cultura, entendida numa perspectiva universalista e humanista.

    Bibliografia

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    LusNotaHistory

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    Definida como um disciplina assenta numa abordagem emprica do seu objecto, a rea de investigao dos Estudos de Traduo tem como prin-cipais objectivos (...) to describe particular phenomena in the world of our experience and to establish general principles by means of which they can be explained and predicted (James Holmes 1988:66-80). Nesse sentido, o presente estudo prope a descrio da traduo considerada como resultado de um processo, sendo materializada aqui num estudo de caso, o de textos oriundos da literatura clssica francesa introduzidos no sistema literrio e teatral portugus contemporneo. Esta perspectiva ser articulada com uma reflexo em torno da funo da traduo e dos textos traduzidos no contex-to socio-cultural da sua recepo e com uma tentativa de caracterizao das opes seguidas pelos tradutores a partir da leitura crtica dos paratextos que acompanham ambas as tradues do corpus.

    So dois exemplos recentes de textos traduzidos para o teatro que perten-cem obra dramtica do autor francs setecentista Pierre Corneille, ou seja, na ordem cronolgica da sua seleco para o repertrio nacional, a tragdia Horace (1640), ou Horcio, traduzida em 1985 no Centro Cultural de vora, e a tragdia Sertorius (1662), ou Sertrio, traduzida em 1997 por Nuno Jdice para o Teatro da Cornucpia em Lisboa.

    Tratando-se de tradues destinadas representao, torna-se necessrio abordar uma questo terica e metodolgica levantada pela especificidade genrica dos textos: a problemtica da traduo teatral. O texto dramtico, como hoje reconhecido, um texto de natureza complexa, concretizada pela dualidade potencial da recepo e do estatuto da pea de teatro enquan-to objecto de leitura e objecto de espectculo. Hoje, dada a distncia tem-poral e cultural entre os dois sistemas literrios e teatrais envolvidos na sua recepo, podemos considerar que existiro, para a obra de Corneille, dois leitores privilegiados: o leitor culto e erudito, interessado pelo valor liter-rio e cannico da obra, e o encenador ou o actor que prolongam no presente

    2. A tragdia clssica francesa de Corneille em portugus: um estudo comparativo.

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    a carreira de uma pea que, no seu tempo, era destinada a um determinado pblico de espectadores e tambm de leitores.2 Assim, traduzi-la implicar uma opo inicial decisiva no processo comunicativo desencadeado, e que se pode resumir, para o tradutor, na alternativa seguinte: ou traduzir um texto que pertence a um gnero literrio codificado ou um texto para o espectculo de teatro. Ambas as tradues aqui referidas seguem a segunda orientao, mas, pelas opes do tradutor, tambm revelam normas e objectivos distin-tos no que diz respeito aos efeitos que devem produzir no espectador, como tentarei mostr-lo.

    Se bem que retirados do mesmo conjunto autoral, e idnticos no que diz respeito sua inscrio na categoria genrica da tragdia em cinco actos e em verso, os dois textos apresentam na sua traduo, enquanto resultados de um processo de rescrita ou de produo segunda, caractersticas divergentes que, pela comparao a vrios nveis entre eles, nomeadamente na versificao do texto, permitem apreciar a importncia do papel assumido por factores diversos, alguns dos quais, essencialmente ligados ao processo de importao (Lambert 1980) destas tradues no sistema cultural de recepo.

    Recepo da potica clssica de Corneille pela cena portuguesa contempornea.

    Duas perguntas podero surgir ao tradutor portugus de Corneille, hoje. A primeira incidir na apreciao da importncia a atribuir aos princpios que regulam a potica do teatro clssico francs e de Corneille nas escolhas que vo presidir traduo deste tipo de obras para o sistema literrio e teatral portu-gus quando esta visa a representao para um pblico actual, em particular no que respeita versificao das peas.

    A segunda, que pode ser entendida como um pressuposto para a prece-dente, questionar o grau verdadeiro de conhecimento que se tem hoje desta potica, demasiado banalizada pelo ensino normativo de uma histria lite-rria sem contradio. No ser surpreendente afirmar que sobretudo uma

    2 Assinalamos aqui a importncia dada actualmente edio teatral patente em obras produzidas no campo de estudo da edio ou do livro da leitura. Ver, nomeadamente, Chartier, Roger, DoPalcopgina.PublicarteatroelerromancesnapocamodernasculosXVI-XVIII, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002

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    imagem estereotipada de uma doutrina estril e acadmica que prevalece ainda, em oposio com a realidade da experincia social e esttica do teatro frequentado pelo pblico culto e mundano contemporneo de Corneille.

    Na realidade, e para responder s perguntas anteriores, convm lembrar que foi precisamente esta confrontao entre doutrina e experincia teatral que alimentou o teatro de Corneille desde o incio, na prpria definio do espectculo teatral, como era entendido, na sua poca, pelo dramaturgo quan-do afirmava o seu propsito de agradar segundo as regras, isto , fazer passar Aristteles para o seu campo, contra os acadmicos e os doutores, em confor-midade com a aco representada e o carcter universal do prprio objecto da representao: a natureza humana: Aristote a t droit aux mouvements de lme dont la nature ne change point, escreve Corneille no Discours(1963).E sabe-se que foi por ter preferido uma adequao ao ponto de vista e ao gosto da cena pblica e laica que Corneille teve xito, diramos apesar das regras.

    Esta dependncia do pblico teve igualmente aspectos negativos, segun-do o estudo biogrfico proposto por Bernard Dort (1957). Se Pierre Corneille (1606-1684) beneficiou de uma ascenso social nunca vista at ento graas s suas qualidades de dramaturgo reconhecidas desde o xito da sua comdia Mlite, em 1629, ele conheceu tambm um lento e definitivo declnio aps a morte da regente Ana de ustria em 1666, acompanhada pelo rejuvenesci-mento duma corte renovada, com o abandono final do teatro em 1674 aps Surna. Seguidamente, a histria literria evoca, tambm ela, a complexi-dade da recepo do teatro de Corneille pelo sculo XVIII, onde Voltaire e os seus comentrios prevalecero sobre o conhecimento directo da obra do dramaturgo, e onde a comparao com Racine acabar sempre em desfavor de Corneille.

    Mas um regresso triunfante do autor, no sculo XIX, devido canonizao e apropriao selectiva de uma obra assimilada aos valores da grandeza tr-gica, da energia e da vontade, da razo dominadora, preparar a sua recepo ulterior pelo sculo XX, que confirmar esta forma de consagrao ao nvel escolar e universitrio. Simultaneamente, no contexto da problematizao da herana clssica dinamizada pela corrente do teatro popular do ps-guerra europeu, interessado em releituras motivadas por tendncias variadas da cr-tica, sobretudo a vertente poltica e ideolgica que, numa leitura renovada, vai dominar as encenaes levadas a cabo na segunda metade do sculo.

    Averiguemos agora se existe, hoje, da parte dos agentes envolvidos na seleco e na traduo das tragdias citadas, uma conscincia ou um reco-

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    nhecimento de uma potica especfica nestas obras. A fonte privilegiada para tal assunto constituda pela produo discursiva paratextual dos prprios agentes tradutores. Podemos, nos casos estudados aqui, recorrer a dois docu-mentos paratextuais de acompanhamento dos espectculos postos em cena; so estes os programas editados pelas companhias respectivas.

    Verifica-se pela sua leitura que ambos os tradutores reconhecem aos tex-tos a traduzir um estatuto e um grau de consagrao literria e cultural ele-vados, mas estas qualidades encontram um significado de mbito diferente. Assim, o tradutor de Sertrio para o Teatro da Cornucpia, o poeta Nuno Jdice, apresenta o dramaturgo como um dos grandes clssicos franceses, o que implica o maior respeito pelo texto, e acrescenta a seguir uma aluso dificuldade prpria da linguagem (de Corneille) , assegurando que a leitu-ra de Corneille no das mais fceis (1997). Do mesmo modo, num texto do programa editado pelo CCE para o espectculo Horcio, aparece um comen-trio que esclarece a razo da escolha do texto para o repertrio da companhia de teatro do CCE e que faz referncia () grande excelncia do grande teatro, () eficaz historicidade dos clssicos que o nosso olhar actual lhes confere, () convico de que os pblicos tm que poder dispor sistemtica e permanen-temente da possibilidade de se poderem esfregar pelos melhores textos dos melhores autores de todos os tempos (1985:12).

    Todavia, o texto que acabmos de citar esclarece a seguir que a estrat-gia de repertrio para uma poltica teatral que legitima a seleco do texto. Sem limitar o alcance do critrio valorativo enunciado anteriormente a um estatuto prprio de um texto de Corneille enquanto autor consagrado na lite-ratura, atribui-lhe todavia uma funo associada orientao programtica adoptada com vista uma estratgia teatral: (...) a suspeita de que quando essa possibilidade no existe, no existe movimento teatral, quando muito s coisas teatrais insusceptveis de produzirem pblicos, s portanto benefici-rias de pequenas percentagens dos pblicos existentes, dos tais pblicos que no existem, nem podem existir, onde no existe aquele generalizado e siste-mtico e permanente movimento teatral (ibid., id.). Alm disso, de notar que a caracterizao literria da pea enquanto gnero o da tragdia - no referida em termos explcitos, nem o nome do tradutor, a responsabilidade do acto literrio e textual de traduzir sendo por isso atribuvel companhia profissional de teatro do CCE, representante dum projecto de descentraliza-o teatral, com uma poltica de repertrio centrada na encenao dos textos clssicos para um pblico contemporneo. De maneira sintomtica, a tradu-

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    o no foi publicada por ser destinada representao e apresenta-se na forma de um guio para os actores, com o estatuto de componente textual de um conjunto semitico que significa como um todo.

    Recorrendo ao conceito de norma preliminar ou seja: Preliminary norms have to do with two main sets of considerations: those regarding the very exis-tence of a definite translation policy along with its actual nature, and those questions related to the directness of translation (Toury (1980:244-245), podemos desde j afirmar que no papel estratgico atribudo dramatur-gia clssica que residir uma marca diferenciadora entre os dois projectos tea-trais, com consequncias no processo da traduo que, de resto, no objecto de nenhuma referncia no caso do texto includo no programa da autoria do CCE.

    No caso da Cornucpia, as referncias a um qualquer contexto de inser-o da traduo numa poltica teatral de companhia no existem no texto de acompanhamento produzido pelo tradutor Nuno Jdice que, pelo contrrio, evoca o desafio que representou traduzir Corneille, informando que se tra-tou de uma proposta que (lhe) fez Luis Miguel Cintra, e reconhece que a sua funo consistiu numa interveno relacionada com a elaborao do texto do espectculo (1997). Faz aluses explcitas s qualidades literrias do texto francs e aos efeitos que este produz sobre o receptor no plano tico e estti-co. A experincia descrita a de um envolvimento e da impossibilidade de ficar indiferente perante este universo construdo a partir de emoes intemporais, como so as do corao. Escreve igualmente o mesmo tradutor, ao descrever o modo como se processou a produo do texto de chegada: (...) o texto portugus ia nascendo por si, ganhando uma vida prpria e, finalmen-te, impondo certas regras que se tornaram uma disciplina de trabalho que me permitiu fazer a traduo em pouco menos de um ms (ibid.). A relao assim instaurada com o texto de partida levou ao que se chama aqui dar a Corneille uma voz portuguesa (ibid.).

    Pelo contrrio, no caso do CCE, o paratexto alude ao trabalho de traduo apenas numa nota indirecta e de carcter geral que clarifica a opo escolhi-da, a de no explicitar o que se entende como componentes datadas do texto e, por conseguinte, culturalmente distantes do espectador, com uma nica excepo, suscitada pelo termo parricida que o texto de Corneille emprega num sentido lato e desactualizado: O texto de Corneille contm aluses, referncias, expresses e sentidos textuais que a traduo procurou respei-tar, e que no possvel explicitar exaustivamente, nem certo que fosse sequer boa prtica faz-lo. Consideramos todavia excepo o uso do termo

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    PARRICIDA, principalmente na acusao de Valrio no V acto (1985).Resulta desta comparao dos paratextos que o tradutor de Sertrio repre-

    senta uma forte componente individual e subjectiva no processo de traduo. Sabe-se que, ausente do texto teatral, a voz do autor s se manifesta em textos de prefcio ou de comentrios ao seu trabalho. Aqui, a voz do tradutor que se manifesta no paratexto analisado revela escolhas iniciais claramente distintas daquelas adoptadas no caso de Horcio. O tradutor preenche uma funo idn-tica em ambos os casos, necessria comunicao no plano interlingustico mas, se paraHorcio, ele inequivocamente um autor annimo identificado com um projecto teatral global pela partilha da responsabilidade da escolha e da recepo do texto, para Sertrio, o tradutor, ele mesmo poeta e autor reco-nhecido na vida literria portuguesa, aparece como um autor segundo, facto pelo qual nasce um outro texto, recriado na lngua de chegada onde moldado como um novo objecto, integrado na dramaturgia portuguesa.

    Enquanto agente que toma posio no processo da traduo em que inter-vm fazendo escolhas, poder-se- admitir que o tradutor, portador de uma expe-rincia individual e de uma viso do mundo essencial na sua concepo traduto-lgica, ter um papel decisivo na estratgia que define a recepo desejada para o texto de chegada. neste aspecto que a versificao e o seu tratamento no texto de chegada podem funcionar como elementos de grande pertinncia.

    Aspectos da versificao nas duas tragdias traduzidas.

    Com efeito, verificamos que ambas as tradues so versificadas, sem que todavia a posio assumida pelos tradutores perante esta particularidade tex-tual seja idntica. Ignorada no paratexto do CCE, encontra-se explicitada no texto j referido de Nuno Jdice sobre Corneille em Portugus, apesar de este no ter sido retomado na edio comercial de Sertrio, o que permite emitir a hiptese interpretativa seguinte neste ponto: o leitor da pea no ser sur-preendido como o espectador pela particularidade formal implicada na ver-sificao teatral, o que acaba, por um lado, por realar a importncia da ideia de espectculo ou de encomenda ao tradutor orientada para uma finalidade precisa e, por outro, esclarecer qual a funo actual do verso no texto teatral.

    Um olhar rpido pela produo dramtica recente bastar para confirmar o desaparecimento quase total da versificao nos textos de teatro. Qual ser assim o estatuto do verso na representao teatral de textos antigos hoje?

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    Ser que j no passa de um ornamento literrio e algo artificial ou intil, ou ainda de uma componente exclusivamente literria definidora de um gnero e de uma potica? Ou antes, poder-se- perguntar: tratando-se de traduzir um texto versificado com o objectivo de criar um espectculo, ser o verso um problema essencialmente textual, da ordem da realizao escrita do texto dramtico, ou no ter ele uma incidncia no espectculo, no jogo do actor, e no ser assim uma parte da componente verbal que a traduo para a cena deve considerar?

    O verso de Corneille conhecido pelo rigor da sua construo e pela sua fidelidade aos preceitos de Malherbe. Sendo to nitidamente conotado com uma filiao formal, ele poder constituir um estorvo para uma recepo actu-al do texto clssico. sabido que as regras dos tratados tradicionais sobre o verso e a sua permanncia hoje continuam a alimentar, no universo lingus-tico francs, tentativas de restituir ou reconstituir o alexandrino, em nome do passado e da sua preservao. Mas a questo que interessa aqui a do verso alexandrino do sculo XVII traduzido e dito no sculo XX.

    Como j foi dito, o tradutor do CCE no deixou nenhum comentrio a respeito desta questo, o que o diferencia do tradutor de Sertrio, e permitiu ao investigador formular a hiptese interpretativa e comparativa segundo a qual a componente teatral estaria em conflito com a componente literria dos textos a traduzir, cada uma delas encontrando uma realizao diferente em cada um dos contextos de recepo dos textos.

    Sendo necessrio aqui partir de uma concepo do verso no teatro, de acor-do com a tese conhecida de Milner e Regnault discutida em Direlevers (1987), considera-se que o verso um artifcio que funciona como uma segunda natu-reza. A especificidade lingustica do verso reside na tenso entre as regras da lngua e as regras do verso, dado que so regras distintas, que se opem e/ou coincidem. Dizer o verso ser encontrar a coincidncia mxima entre esses dois tipos de exigncia. O debate no recente: nota-se que o sculo XVII, nos preceitos de dAubignac, distinguia o verso comum, - isto , prximo da lin-guagem comum -, do verso lrico das stances, apesar da opinio de Corneille que via no verso lrico, pelo contrrio, uma maior afinidade com a linguagem comum, pelo seu carcter irregular e, portanto, natural. O entendimento da articulao entre artifcio e natural no era seguramente unvoco na poca cls-sica. E hoje? o respeito pelo verso implicar que tipo de dico e de jogo teatral? Como fazer passar por naturais a paragem no fim do verso, a insistncia da rima, a complexidade do tratamento da vogal e mudo ou da direse, a regu-

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    laridade do ritmo e dos acentos, igualmente ignorados na lngua actual?A adopo pelos dois tradutores da versificao no texto de chegada confir-

    ma uma hierarquia nas normas escolhidas na qual a preservao do gnero, o da tragdia clssica, prevalece, como j foi identificado nesta descrio, posta ao servio da sua concretizao cnica. Assim, o verso surge como a manifestao por excelncia da forma no corao do funcionamento e da energia do texto teatral, como uma linguagem que fundamenta o jogo e a sua codificao.

    Em termos comparativos, todavia, as tradues divergem na sua versifica-o. Na traduo de Sertrio explcita a adopo duma orientao que visa a produo de um texto com as marcas da naturalidade da expresso, (da) cadn-cia prpria do texto dito (1997). Por conseguinte, sem adoptar uma natura-lizao do alexandrino como se fosse um texto em prosa, idntico linguagem comum, o tradutor esclarece que abandonou a regularidade mtrica e de rima, no deixando esta de aparecer enquanto pontuao potica em final ou no inte-rior do verso. Podemos afirmar que o natural que acaba por predominar.

    Na ausncia de comentrios explcitos a esse respeito, s uma descrio da traduo de Horcio permite concluir esta breve comparao. A observa-o dos processos retricos e poticos adoptados revela, assim, uma busca de imitao do verso alexandrino e da sua regularidade mtrica, com o apoio frequente da rima e dos acentos de intensidade, a valorizao das mximas como cristalizao da ostentao no texto, ou da tirada que estrutura e articu-la, numa progresso em degraus estritamente demarcados, as paragens refle-xivas ou as mudanas de atitude na personagem. As opes do tradutor so orientadas de modo privilegiado no sentido do artifcio, das marcas retricas do estilo elevado, e no do natural.

    Reconhecem-se aqui as marcas das opes dramatrgicas e interpretativas de cada projecto de espectculo. Horcio, com a escolha de Roma, e a entrada da poltica na tragdia onde passa a ocupar o primeiro plano, associado na leitura do CCE denncia dos perigos polticos contemporneos, e das amea-as blicas ou totalitrias, com uma citao de um poema de Brecht acerca do fascismo. A especificidade do gnero da tragdia, a esse respeito, j se encon-trava em Corneille: Lorsquon met sur la scne un simple intrique damour entre des rois, et quils ne courent aucun pril, ni de leur vie, ni de leur tat, je ne crois pas que, bien que les personnes soient illustres, laction le soit assez pour slever jusqu la tragdie. Sa dignit demande quelque grand intrt dtat ou quelque passion plus noble et plus mle que lamour, telles que sont lambition et la vengeance, et veut donner craindre des malheurs plus

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    grands que la perte dune matresse (1963:824). Quanto a Sertrio, uma obra-prima da tragdia poltica e histrica de Corneille segundo Marc Fumaroli, uma tragdia na qual residem ainda as marcas do gnero da pastoral, com protagonistas como Sertrio e Viriata, que acreditam na iluso da felicidade possvel neste mundo.

    Se as estratgias para a traduo so divergentes, como procurmos mos-tr-lo, na sua articulao com a recepo do espectculo, no seu contexto sociocultural, com o tipo de pblico visado que se encontram as principais motivaes para as opes dos agentes envolvidos, tradutores e intervenientes no espectculo. Confirma-se assim que a investigao literria, neste caso no domnio do teatro e da traduo, s pode beneficiar duma perspectiva pluri-disciplinar. Afirma S. Schmidt We do not want to investigate literary texts in isolation but as necessarily related to human actions, action chains, and situations regarding those texts(1994:12).

    O papel da traduo no processo de rescrita textual e teatral, permitindo uma manipulao interpretativa dos textos com vista sua aceitao pelo sistema literrio receptor, revelou todavia uma particularidade prpria da dramaturgia de Corneille. Apesar de derivados de opes traducionais dife-rentes, os textos de chegada no deixam de reflectir, se bem que em graus diversos, as vertentes subjacentes a uma potica original, duplamente arti-culada entre uma manipulao da retrica e da arte oratria, por um lado, e a explorao da veia moderna do natural, por outro. A componente escrita era muito valorizada por Corneille, se considerarmos o cuidado extremo que punha na edio das suas peas cuja edio completa em 1663 aparece no formato in-folio reservado aos autores clssicos gregos e latinos (Fumaroli 1996:14). Mas, nas razes da sua formao jesutica, existiu a prtica do tea-tro neolatino juntamente com o conhecimento do teatro espanhol e italiano contemporneo, e uma iniciao a uma esttica oratria combinada com uma pedagogia: a palavra domina a escrita, como na retrica latina. O sentido da eloquncia no teatro de Corneille , com efeito, ligado ao jogo e ao teatro, tecido em dilogos e animada pela paixo e pela inteligncia. Assim, verifica-se que: Le thtre de Corneille, tout entier plaidoyer en acte en faveur de la lgitimit de la scne, a t conu pour faciliter au comdien cette concordan-ce entre mimesis de lhomme naturel et norme oratoire de lhomme qui incarne la loi divine et morale. Trata-se de uma harmonia fundada nas dissonncias entre o decorum e o natural, como ideal da voz e do gesto enquanto meios disposio do actor para entrar nos papis do teatro de Corneille. O teatro para

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    o seu tempo foi concebido por Corneille como um instrumento da cultura humanista em lngua francesa, em sintonia com a Corte e os autores da moda: dUrf, Thophile, Malherbe ou Balzac, com base na imitao da experincia nobre, o que levou o dramaturgo libertao dos recursos para a expresso, mas associada ao treino escolar na arte da palavra viva.

    No ser por isso to surpreendente que, na concretizao de duas das suas peas, tenham surgido duas orientaes divergentes, se bem que coerentes com a potica de Corneille. Antes confirma a hiptese segundo a qual traduzir um acto orientado, fortemente dependente do contexto cultural de recepo dos textos.

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    3. Traduo teatral e Literatura em Portugal (1975-1988): um estudo de caso.3

    At na disciplina especializada dos Estudos de Traduo, os textos tra-duzidos que pertencem ao gnero dramtico esto pouco representados ou so considerados como um caso complexo (Bassnett 1978, 1980, 1985) para o qual ainda no existe verdadeiramente uma teoria satisfatria (Schultze 1990). Parece todavia que este tipo de textos se enquadra de maneira par-ticularmente interessante nas orientaes recentes destes estudos, virados hoje mais para os aspectos especficos da traduo enquanto fenmeno intercultural.

    1. A traduo teatral como rea de estudo pluridisciplinar

    Entre as circunstncias que atrasaram uma abordagem terica geral da traduo teatral cita-se mais frequentemente o carcter duplo do texto dra-mtico, literatura e teatro, texto e representao , cuja especificidade textual designada por theatrical potential (Schultze 1990:267). Com efeito, um entendimento redutor desta caracterstica pode ser observado com frequncia nos estudos de traduo ou de teorizao da traduo teatral que se resumem na maior parte dos casos na satisfao de apenas uma das duas exigncias que tal dualidade implicaria: a de procurar uma adequao ao palco, translating for the stage significando speakability, playabi-lity e spontaneous understanding. Apesar de atenta dimenso cnica do texto, esta trade revela que dada prioridade ao texto verbal, escrito ou oralizado, e que existe uma tendncia para ignorar as implicaes da dualidade quanto s marcas literrias desta mesma teatralidade, ainda por definir.

    3 Verso-sintese da tese de doutoramento apresentada Universidade de vora em 1997 e publicada em 2002 pelas Edies Colibri (Zurbach 2002).

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    De facto, a traduo teatral coloca problemas particulares ao investigador, confrontado com vrios campos de estudos nos quais este tipo de texto pode ser acolhido.

    Para os estudos literrios, a crtica tradicional considera que o texto de tea-tro pertence ao conjunto dos textos literrios, por oposio aos no-literrios; mas, apesar de ser um dos gneros consagrados da famosa trilogia, esta classi-ficao tornou-se cada vez mais problemtica, nomeadamente para os estudos teatrais nascidos da semiologia que questionam esta perspectiva unvoca apli-cada a um gnero de natureza hbrida, ao mesmo tempo texto e representao, acto discursivo situado num quadro especfico de recepo. Por outro lado, se retomarmos a distino entre traduo literria e traduo tcnica que admite que estas apenas se distinguem pelo tipo de actividade que designam, a tra-duo teatral mostra que dificilmente se pode falar neste caso de um produto puramente literrio; constatamos sem dificuldade que a traduo dramtica se destina, na maior parte dos casos, representao e que a recepo do texto traduzido tem lugar fora da literatura, dado que a maior parte destes textos no so publicados e ficam muitas vezes em margem da instituio literria-alvo. Como se integram na literatura receptora? Ou ser que constituem e de que maneira um sistema no interior desta ltima (Even-Zohar 1990:46)? Seria igualmente interessante ver qual a parte que cabe s convenes literrias e qual a que cabe aos aspectos culturais e dramticos nas normas extratextuais (Toury 1980:57) adoptadas. falta de uma teoria satisfatria quanto questo do gnero teatral nos estudos literrios, portanto prefervel recorrer a estudos descritivos dessas tradues teatrais (Lambert 1978:242), o que far intervir necessariamente diferentes domnios de competncia em interaco.

    A traduo teatral constitui tambm um dos captulos dos estudos de lite-ratura comparada. O comparatismo, em crise desde as transformaes sofridas pelos estudos literrios no seu conjunto, dispe hoje das hipteses de trabalho lanadas pelos Estudos de Traduo com base numa abordagem sistmica apli-cada investigao literria. A anlise que aqui ser desenvolvida assenta num corpus de tradues contemporneas representadas entre 1975 e o fim dos anos 80 e inseridas no repertrio de autores no portugueses includos na programao de uma companhia profissional de teatro em Portugal. Estas tradues representam mais de metade do total das peas encenadas e correspondem, em cada ano de produo da companhia, em mdia, a duas ou trs das cinco criaes apresenta-das. Numa perspectiva estritamente teatral, as obras traduzidas e as peas escri-tas directamente em lngua portuguesa podem ser entendidas como idnticas,

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    uma vez que partilham o mesmo estatuto quando so destinadas representa-o; podem, assim, ser objecto do mesmo tipo de anlise, centrada nas relaes entre a cena e o texto (Pavis 1989:95-107). Mas se considerarmos o conjunto do corpus estudado, essas tradues permitem tambm, no plano das relaes entre literaturas, identificar as diferentes tradies literrias que o repertrio contm, observar a sua diversidade ou as suas convergncias e definir, numa perspectiva comparatista, qual o tipo de relaes que se instala entre as diversas literaturas a que pertencem. A traduo pode corresponder, em termos de dinmica do sistema, a uma contribuio conservadora ou, pelo contrrio, inovadora para a literatura de chegada, ou ainda situar-se num meio termo de compromisso. Qual o grau de autonomia da dramaturgia nacional e quais as interferncias externas e internas que podemos observar na sua eventual evoluo?

    De facto, traduzir um acto que depende de condies ou de determi-naes reguladas no espao e no tempo; ser por isso necessrio acrescentar a este conjunto de tpicos de investigao uma perspectiva cultural e histrica, dado que o repertrio escolhido se inscreve num contexto histrico e poltico preciso da vida teatral portuguesa a partir da mudana de regime em 1974 que ps fim poca salazarista, o que permitiu uma transformao e uma renovao desta actividade cuja dimenso social essencial. Um nmero to elevado de tradues, logo, de textos importados provenientes de tradies culturais diversas, pe a questo da integrao ou no dessas obras na cultura portuguesa e implica uma anlise dos meios utilizados na sua elaborao, entre outros, o recurso traduo indirecta, portanto de modelos intermedi-rios, e as novas tradues, que substituem tradues j existentes.

    Alm disso, os princpios que orientam as tradues seleccionadas esto ligados a uma conjuntura no s poltica e social, mas tambm literria dado que as contribuies exteriores literatura portuguesa introduzidas por esses textos vm responder a uma crise da produo dramtica no sistema de che-gada, em estreita relao com a situao cultural geral deste ltimo naquele perodo (Even-Zohar 1990:47).

    A mtua integrao dos campos de estudo que acabam de ser citados parece claramente demostrada pelo prprio fenmeno da traduo teatral, o que s vem reforar a orientao seguida nos ltimos trinta anos pelos inves-tigadores e tericos que analisam as tradues enquanto objectos de estudo, constituindo por esse facto um domnio especfico de pesquisa, enquanto suporte de uma nova disciplina, autnoma apesar de reunir diversos domnios da histria cultural.

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    2. A histria do gnero dramtico em Portugal: dramaturgia nacional lacunar e tradio da presena estrangeira.

    Apesar de o repertrio escolhido se inscrever nitidamente no quadro tempo-ral da contemporaneidade e parecer, portanto, privilegiar uma observao direc-ta, no independente da histria mais antiga da cultura portuguesa, como o revelam algumas descries j clssicas da literatura e do teatro portugueses, no especificamente centradas na literatura comparada, mas relativamente atentas s diversas situaes de confronto entre a literatura nacional e a estrangeira.

    Uma pequena obra de sntese, publicada em Lisboa em 1977 e centrada numa tentativa de definio da originalidade da literatura portuguesa, ques-to sintomtica, aponta-lhe uma caracterstica negativa, a pobreza do seu tea-tro, gnero em que s dois grandes nomes emergem da plancie: Gil Vicente e, a trs sculos de intervalo, Garrett (Coelho 1977:52). O autor explica esta lacuna por trs factores: vida social pouco intensa, pblico sem formao e cr-tica inexistente. O conjunto desse estudo desenvolve, por outro lado, uma viso histrica da cultura portuguesa segundo a qual a literatura um dos aspectos do que designado por personalidade colectiva ou cultura nacional.

    O lugar do gnero dramtico na literatura portuguesa , para os investi-gadores que se pronunciam sobre a questo, efectivamente muito reduzido, a tal ponto que as referncias produo dramtica so geralmente conotadas com este trao, o de uma ausncia, com a sua contrapartida, a valorizao das excepes. A. Jos Saraiva e O. Lopes organizam a sua HistriadaLiteraturaportuguesa (1 edio 1955) em seis pocas e colocam o dramaturgo Gil Vicente no momento da passagem entre a 2 e a 3 poca; de resto o nico autor que consideram como personalidade de sntese, entre um passado medieval con-siderado como pouco relevante pelo seu teatro e um perodo de Renascimento humanista rapidamente interrompido pela censura inquisitria, que, apesar de tudo, permitiu a um pequeno nmero de autores, como S de Miranda e Antnio Ferreira, experimentarem as inovaes italianas. Os autores apenas falam a seguir de tentativas teatrais a propsito da poca barroca e o seu panorama histrico deixa de fazer referncia em termos especficos ao gnero ou aos autores dramticos. Finalmente, no sculo XIX, Almeida Garrett estudado num captulo de cerca de trinta pginas nas quais o seu trabalho de dramaturgo no ocupa mais que um tero dos comentrios, centrados no carcter particular da sua obra por se tratar do projecto oficial, por ele pro-posto, de criar um teatro nacional (o.c., p. 777).

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    Em breves consideraes, a obra evoca o peso da Inquisio, instalada em Portugal entre 1534 e 1821, e da dominao espanhola entre 1580 2 1640 para explicar a debilidade da produo literria nacional em geral. Quanto aos contactos e s importaes estrangeiras, so tratados nas introdues dos cap-tulos, como informao contextual, e informam-nos (o.c., p.41), por exem-plo, que distinguir literatura portuguesa e espanhola no muito possvel at ao sculo XVII e que, at ao sculo XVIII, fala-se de Espanha para designar o conjunto da pennsula.

    Uma abordagem mais precisa da traduo literria e no-literria introdu-zida a propsito do sculo XVII e XVIII e diz respeito s importaes estrangei-ras, se bem que tardias, para compensar a ausncia de uma tradio autctone de teatro de Corte como na Frana no sculo XVII. Um teatro de Lisboa dedica-se a partir de 1782 representao de textos traduzidos, sobretudo de com-dias. Imita-se a comedia espanhola, descobre-se a pera italiana, Metastsio e as comdias de Goldoni que so traduzidas e adaptadas ao gosto nacional, e tradu-zem-se os clssicos franceses, ao mesmo tempo que se tenta introduzir a tragdia segundo Voltaire de par com os modelos da Antiguidade grega; mas a ausncia ou o atraso de uma conscincia doutrinria e esttica da burguesia portuguesa (o.c., p.690) mantm a penria de uma produo nacional, apesar de a Arcdia Lusitana discutir as bases para uma tragdia nacional inteiramente formada a partir do modelo francs de Lus XIV, contra a proveniente de Inglaterra, e ape-sar de, na comdia TeatroNovo de Correia Garo, as personagens dissertarem acerca dos gostos teatrais dominantes e reclamarem uma reforma do gnero.

    Os responsveis por esses contactos com a Europa so sobretudo os emi-grantes, vtimas da censura e simpatizantes dos Enciclopedistas cujos tra-balhos acompanham de perto. Constituem o grupo dos estrangeirados, uma elite social e intelectual embaixadores, judeus exilados, acadmicos, etc. apoiada pelo dspota esclarecido D.Joo V. O Real Colgio institui o ensino das lnguas vivas e a Academia das Cincias torna-se um eixo do europeismo. Quando, na sequncia da epopeia de Napoleo, uma oposio se comea a manifestar contra a influncia dominante da cultura francesa, os afrancesados tero que opor-se aos castios. Assiste-se, finalmente, por volta de 1820, com as lutas liberais contra o absolutismo, a uma renovao dos contactos com o estrangeiro com ondas sucessivas de emigrao forada de que tambm Almeida Garrett foi vtima. Esses emigrantes constituem a sua prpria literatura, expresso de um programa de renovao da sociedade portuguesa de inspirao romntica (Saraiva, 1965:115-116). Garrett encon-

    LusNota1580 e 1640

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    tra na leitura de Schiller, de Goethe e Shakespeare os fundamentos estticos para um teatro nacional, reatando com as suas origens como o mostra o seu primeiro drama intitulado UmAutodeGilVicente, em 1838. O conflito entre casticismo e europeismo exprimir-se- paradoxalmente com o slogan rea-portuguesar Portugal tornando-o europeu (Coelho, 1977:34).

    Gnero pouco representado na literatura portuguesa, apesar de dois dos quatro principais autores nacionais serem tambm dramaturgos, o teatro igualmente pouco estudado; recentemente, parece interessar mais alguns eruditos estrangeiros como os francese Cl.-H. Frches ou P. Teyssier, ou ainda a comparatista italiana L. Stegagno Picchio, autora de uma HistriadoTeatroportugus (1969) cuja publicao contempornea de um outro estudo com o mesmo ttulo do portugus L.F. Rebello, traduzida para as lnguas espanho-la e francesa. Este conjunto representa um grupo de estudos relativamente cosmopolita e bastante significativo no que respeita s fronteiras ou mapas mundiais da literatura (Lambert 1990, 1983).

    Nos dois ltimos estudos referidos anteriormente encontram-se afir-maes de autores portugueses segundo as quais no existiria em Portugal nenhuma dramaturgia poeticamente autnoma, dotada de traos artsticos capazes de dar o nome de teatro a um repertrio limitado, sem ser no entanto desprovido de qualidade (Picchio 1969:19). Cita-se Garrett que se interro-gava perante esta esterilidade dramtica: ser que, assim como os franceses no so dotados para a poesia pica, os portugueses no tm lattedramatique ? (Rebello 1989:13) ou ainda Ea de Queirs: O portugus no tem gnio dramtico: nunca o teve (ibid.). Mas, como J. P. Coelho, os autores propem na realidade uma crtica histrica e concordam com as reflexes de Garrett: O teatro um grande meio de civilizao, mas no prospera onde a no h (o.c., p.14). Esta afirmao ser retomada na poca seguinte, a da modernida-de, politicamente marcada por um universo de paralisia cultural.

    3. Contexto contemporneo de insero do corpus estudado.3.1. Contexto literrio.

    Dois autores verdadeiramente nacionais, uma presena importante das culturas vizinhas, muitas vezes pela traduo e pela adaptao: so essas as caractersticas da poca passada. Quanto actualidade, ou antes, ao sculo XX, Picchio comenta no prefcio do seu estudo o regresso, sobretudo depois

    LusNotacorrigir colocao do ponto de interrogao

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    do ps-guerra, deste gnero bastante esquecido; de facto, a crtica e a teoria literria, nova disciplina dos anos 60, interessam-se pelo valor literrio dos textos dramticos; os autores do um novo arranque a esta forma directa de insero e interveno na sociedade, maneira dos Romnticos, e contrria s experincias do novo romance que se afastava dos seus destinatrios pelas suas escolhas estticas. Os traos principais desta dramaturgia permitem identi-ficar trs orientaes: a produo de textos destinados representao, que se ope de um teatro para a leitura herdado de uma tradio mais ligada a razes histricas do que estticas (a censura, por exemplo) e, finalmente, obras hbridas nas quais as didasclias representam uma componente irrepresent-vel pelo seu papel de comentrios estticos ou morais. As influncias provm de modelos supra-nacionais como Brecht, Ionesco e Beckett, segundo Picchio (1969 p.10) que constata igualmente at que ponto esta nova dramaturgia de uma universalidade abstracta e, sublinha ela, distante da tradio nacional no plano cultural quando no no plano temtico; a dramaturgia portuguesa que definira no sculo XVI a sua especificidade artstica local com os Autos vicentinos divide-se de novo entre as diversas tradies dramticas, clssicas e modernas, provenientes de outros pases.

    Ser portanto til conhecer as diferentes situaes culturais em que surge a traduo, porque esta no corresponde sempre s mesmas procuras ou neces-sidades.

    3.2. Contexto ideolgico

    Para a poca contempornea, desde o ps-guerra at cerca de 1970, os estudos de Rebello e Picchio precisam quais foram as tendncias filosficas e ideolgicas que definiram a evoluo da nova gerao dramtica: em primeiro lugar, o teatro de vanguarda e experimental que reagia contra o naturalismo da encenao, depois os autores estrangeiros da modernidade, de Pirandello ou Sartre a Brecht, e finalmente o retorno aos clssicos da literatura cannica. Mais uma vez o gnero teatral ser, na produo nacional, o ponto sensvel de uma espcie de apagamento dos traos de originalidade que se tentou definir; duas tendncias vo dominar: um teatro social e um outro existen-cial, substitudos a partir de 1960 pelo teatro dito do Absurdo e pelo teatro pico, ambos representativos das formas teatrais europeias da mesma poca, divididas entre essas escolhas de natureza ideolgica. No entanto, sobretudo

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    A Traduo teatral: o texto e a cena

    por causa das circunstncias polticas, a maioria dos autores escrevem e publi-cam as suas obras, mas s raramente as vem encenadas (Rebello 1989:139). Assim, entre as mudanas introduzidas pela queda do regime em Abril de 1974, foi o fim da censura que surgiu em primeiro lugar como um elemento determinante para uma revitalizao da vida teatral portuguesa.

    Mas os aspectos relativos ao teatro no se limitaram unicamente res-taurao da liberdade de expresso. Face ao atraso cultural do conjunto do pas e de acordo com a necessidade sentida pelos novos dirigentes de fazer assentar as transformaes em curso numa vasta participao da populao, uma campanha de dinamizao cultural foi desencadeada pelo Movimento das Foras Armadas com vista implementao da descentralizao cultural. Para compreender a situao cultural na sua novidade e na sua globalidade ser preciso averiguar quais as novas regras, explcitas e implcitas, que foram introduzidas a partir desta mudana de orientao poltica e de que maneira elas influenciaram o sistema literrio.

    3.3. Contexto institucional.

    neste quadro que um projecto de centros culturais polivalentes inspi-rado no modelo das Casas da Cultura francesas criadas por Andr Malraux proposto por agentes culturais que pertencem ao sector do teatro e que defendem, por essa razo, a criao de unidades de produo teatral profissio-nal, do sector pblico, estruturadas tambm para acolherem um projecto de animao destinado a promover a realizao e a difuso de produes oriundas de outros domnios da actividade artstica (msica, artes plsticas, dana, etc.). Com a aprovao da Comisso Consultiva das Actividades Teatrais e com um subsdio anual estatal, o primeiro Centro Cultural instalou-se na provncia, em vora, em Janeiro de 1975, no Teatro Garcia de Resende, pres-tigiosa construo italiana quase centenria, pertencente cidade, com 300 lugares, mas praticamente abandonada. O Centro tinha um carcter de experincia piloto e devia ser seguido da criao de outras estruturas idn-ticas o que no vir a acontecer, de resto, por causa de mudanas ocorridas pouco tempo depois na poltica cultural, logo em 1976. O decreto de criao do Centro publicado em 23 de Janeiro de 1975 no Dirio da Repblica. A equipa de fundao do Centro contava nomeadamente com dois encenadores formados em Frana, entre 1970 e 1974, na Escola do Teatro Nacional de

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    Estrasburgo, e com diversos actores e tcnicos cuja experincia no perodo anterior a 1974, em Portugal, tinha sobretudo tido lugar fora da instituio oficial. Os documentos de sntese do projecto sublinham a coeso da forma-o, da metodologia e da pedagogia da equipa no momento em que esta abriu, logo em 1975, a sua prpria escola de formao teatral, destinada a alimentar a descentralizao teatral com quadros sensveis a este tipo de interveno.

    Uma associao das companhias da descentralizao teatral (Associao Tcnica e Artstica da Descentralizao Teatral ATADT), projecto de vida curta, juntar os responsveis de uma dezena de estruturas instaladas na pro-vncia, com objectivos idnticos; trs Encontros permitiram a formulao de teses e de programas que so importantes para este estudo por constiturem um conjunto de elementos no-literrios, mas com um grande peso na polti-ca de repertrios adoptada. Permitiriam tambm alargar este estudo a outros casos, em termos comparativos.

    3.4. Definio programtica do repertrio.

    Um certo nmero de normas preliminares aparecem desde o incio da activi-dade do Centro Cultural de vora. O repertrio em que assenta este trabalho de descentralizao teatral orientado teoricamente para a representao de textos de autores portugueses, de acordo com um primeiro documento no publicado datado de Setembro de 1974: Aos Centros Dramticos seria feito apelo no senti-do da realizao do maior nmero possvel de textos portugueses, como estmulo dramaturgia nacional, que nestas ltimas dcadas conheceu a maior decadncia de todos os tempos. Pede-se igualmente que a temtica das peas novas seja orientada para os grandes problemas da vida do pas, mas preciso acrescentar que o autor destas palavras ele prprio dramaturgo e exprime-se nesses termos tendo em conta a situao anterior do teatro de lngua portuguesa.

    Ainda no mesmo perodo da criao do Centro Cultural de vora, os docu-mentos ou as declaraes de princpios sublinham a importncia do teatro em geral, definido como a nica arte capaz de implementar os processos de ade-so, de interesse e de atraco de amplas camadas de pblico, para uma demo-cratizao efectiva da cultura. O texto no especifica a partir de que tipo de peas ou de dramaturgia e ser necessrio esperar um documento oficial de balano, redigido pelo director do Centro em 1980, aps seis anos de activida-de, para reencontrar linhas programticas claramente enunciadas: promover

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    a divulgao das obras de grande qualidade que constituem a herana cultural nacional no domnio do teatro; estimular o trabalho de pesquisa, cnica e te-rica, orientado para a vivificao de tais obras e para a sua acessibilidade por novos pblicos; promover a divulgao das obras teatrais e dos autores que fazem parte do patrimnio universal mais significativo, clssico e moderno. Os autores portugueses, nomeadamente os clssicos, so encarados na pers-pectiva de um trabalho dirigido para um pblico escolar e as manifestaes do teatro tradicional popular devero ser objecto de um trabalho de recuperao e de conservao; ser o caso dum teatro de marionetas tradicional em risco de desaparecer. Reencontramos o tringulo produo-tradio-importao enquanto suporte desta seleco de repertrio, mas ser necessrio estudar em que proporo para cada um dos termos.

    Teoricamente, a relao entre repertrio estrangeiro e teatro nacional equilibrada, sendo os textos sujeitos de maneira igual a princpios de seleco e de leitura dramatrgica comuns, com vista obteno do mesmo efeito cnico. Este tratamento igualitrio em cena no pode todavia no ter nenhum efeito sobre a traduo e verifica-se, nesse repertrio, uma tendncia domi-nante para uma certa naturalizao ou domesticao das obras traduzidas. No entanto, j no se trata do tipo de adaptaes tpicas do sculo XVIII, das peas de Molire ou Goldoni, que implicavam uma reconstruo literria do texto original; nesta naturalizao mantida uma certa adequao ao texto de partida. Trata-se de realar os aspectos do texto que correspondem a um siste-ma de valores com dimenso universal, e esta elaborao pode corresponder busca de um resultado determinado, como o de reforar o aspecto perlocut-rio da traduo representada (Brisset 1990:195).

    4. A poltica de traduo do Centro Cultural de vora4.1. A seleco das obras

    Entre outros constrangimentos impostos traduo, a seleco dos textos o que corresponde da maneira mais visvel para aquilo que A. Lefevere chama o poder ou a autoridade, no sentido da produo de cultura (1990:14-28). Aqui, a escolha do gnero importante porque, no contexto que acabmos de descrever, a obra teatral aquela que responde melhor a uma troca comunicativa colectiva e realizada no presente, no diferida. O corpusanalisado, situado entre 1975 e 1988, data em que o primeiro director nomeado cessa as suas funes, representa

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    um total de 57 textos; 38 dos quais so tradues de obras em lngua estrangeira, mais um original em lngua brasileira posto em verso portuguesa, e 18 so textos originais em portugus; o repertrio inclui t