tradução e comentário do martírio do soldado marino

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GERUZA DE SOUZA GRAEBIN ENTRE A CRUZ E A ESPADA: TRADUÇÃO E COMENTÁRIO DO MARTÍRIO DO SOLDADO MARINO Monografia apresentada à disciplina Orientação monográfica II como requisito parcial à conclusão do Curso de Letras Português e Grego, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Pedro Ipiranga Júnior Curitiba 2008

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Page 1: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

GERUZA DE SOUZA GRAEBIN

ENTRE A CRUZ E A ESPADA TRADUCcedilAtildeO E COMENTAacuteRIO DO MARTIacuteRIO DO SOLDADO MARINO

Monografia apresentada agrave disciplina Orientaccedilatildeo monograacutefica II como requisito parcial agrave conclusatildeo do Curso de Letras Portuguecircs e Grego Setor de Ciecircncias Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paranaacute

Orientador Prof Dr Pedro Ipiranga Juacutenior

Curitiba 2008

2

Agradeccedilo

A todos os meus professores de Grego Sandra Meurer Werner Wiese Estevan Kirschnner

Alessandro Rolim de Moura e Jorge Piqueacute

Ao meu orientador Pedro Ipiranga Juacutenior por aparecer na hora certa e aceitar essa

complicada orientaccedilatildeo

Ao meu esposo Joatildeo Vocecirc eacute o verdadeiro maacutertir da histoacuteria

A Jesus que tudo fez por mim

3

ldquoἀλλὰ ἅτινα ἧν μοι κέρδη ταῦτα ἥγημαι διὰ τὸν Χριστὸν ζημίανrdquo

Προς Φιλιππησιοις 37

4

SUMAacuteRIO

RESUMO 5

INTRODUCcedilAtildeO 6

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18

3 TEXTO GREGO 23

4 TRADUCcedilAtildeO 25

5 COMENTAacuteRIOS 27

51 OS PERSONAGENS 27

52 ESTRUTURA 28

53 TEMPO E ESPACcedilO 29

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30

CONCLUSAtildeO 38

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40

ANEXOS 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45

5

RESUMO

Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes

Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo

Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute

6

INTRODUCcedilAtildeO

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca

atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos

entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de

um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as

linguumliacutesticas

Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes

ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi

decapitado

Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como

objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino

pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da

martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica

Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto

literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por

esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e

religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos

Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma

religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a

situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados

pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia

na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos

recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos

princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo

individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as

funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para

cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte

7

de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa

anaacutelise

O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do

pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade

romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou

sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da

eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a

literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as

ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o

Impeacuterio romano

Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui

para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes

anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa

eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees

como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em

lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos

Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para

cristatildeos e natildeo cristatildeos

O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a

traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios

BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-

Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg

Press 2007

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146

to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

8

Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

9

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

11

liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

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4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 2: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

2

Agradeccedilo

A todos os meus professores de Grego Sandra Meurer Werner Wiese Estevan Kirschnner

Alessandro Rolim de Moura e Jorge Piqueacute

Ao meu orientador Pedro Ipiranga Juacutenior por aparecer na hora certa e aceitar essa

complicada orientaccedilatildeo

Ao meu esposo Joatildeo Vocecirc eacute o verdadeiro maacutertir da histoacuteria

A Jesus que tudo fez por mim

3

ldquoἀλλὰ ἅτινα ἧν μοι κέρδη ταῦτα ἥγημαι διὰ τὸν Χριστὸν ζημίανrdquo

Προς Φιλιππησιοις 37

4

SUMAacuteRIO

RESUMO 5

INTRODUCcedilAtildeO 6

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18

3 TEXTO GREGO 23

4 TRADUCcedilAtildeO 25

5 COMENTAacuteRIOS 27

51 OS PERSONAGENS 27

52 ESTRUTURA 28

53 TEMPO E ESPACcedilO 29

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30

CONCLUSAtildeO 38

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40

ANEXOS 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45

5

RESUMO

Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes

Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo

Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute

6

INTRODUCcedilAtildeO

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca

atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos

entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de

um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as

linguumliacutesticas

Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes

ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi

decapitado

Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como

objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino

pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da

martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica

Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto

literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por

esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e

religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos

Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma

religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a

situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados

pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia

na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos

recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos

princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo

individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as

funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para

cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte

7

de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa

anaacutelise

O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do

pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade

romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou

sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da

eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a

literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as

ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o

Impeacuterio romano

Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui

para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes

anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa

eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees

como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em

lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos

Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para

cristatildeos e natildeo cristatildeos

O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a

traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios

BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-

Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg

Press 2007

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146

to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

8

Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

9

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

10

ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

11

liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 3: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

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ldquoἀλλὰ ἅτινα ἧν μοι κέρδη ταῦτα ἥγημαι διὰ τὸν Χριστὸν ζημίανrdquo

Προς Φιλιππησιοις 37

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SUMAacuteRIO

RESUMO 5

INTRODUCcedilAtildeO 6

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18

3 TEXTO GREGO 23

4 TRADUCcedilAtildeO 25

5 COMENTAacuteRIOS 27

51 OS PERSONAGENS 27

52 ESTRUTURA 28

53 TEMPO E ESPACcedilO 29

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30

CONCLUSAtildeO 38

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40

ANEXOS 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45

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RESUMO

Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes

Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo

Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute

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INTRODUCcedilAtildeO

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca

atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos

entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de

um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as

linguumliacutesticas

Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes

ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi

decapitado

Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como

objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino

pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da

martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica

Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto

literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por

esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e

religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos

Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma

religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a

situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados

pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia

na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos

recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos

princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo

individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as

funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para

cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte

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de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa

anaacutelise

O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do

pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade

romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou

sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da

eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a

literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as

ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o

Impeacuterio romano

Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui

para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes

anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa

eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees

como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em

lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos

Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para

cristatildeos e natildeo cristatildeos

O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a

traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios

BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-

Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg

Press 2007

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146

to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

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Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 4: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

4

SUMAacuteRIO

RESUMO 5

INTRODUCcedilAtildeO 6

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18

3 TEXTO GREGO 23

4 TRADUCcedilAtildeO 25

5 COMENTAacuteRIOS 27

51 OS PERSONAGENS 27

52 ESTRUTURA 28

53 TEMPO E ESPACcedilO 29

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30

CONCLUSAtildeO 38

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40

ANEXOS 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45

5

RESUMO

Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes

Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo

Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute

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INTRODUCcedilAtildeO

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca

atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos

entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de

um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as

linguumliacutesticas

Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes

ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi

decapitado

Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como

objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino

pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da

martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica

Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto

literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por

esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e

religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos

Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma

religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a

situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados

pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia

na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos

recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos

princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo

individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as

funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para

cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte

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de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa

anaacutelise

O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do

pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade

romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou

sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da

eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a

literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as

ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o

Impeacuterio romano

Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui

para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes

anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa

eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees

como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em

lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos

Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para

cristatildeos e natildeo cristatildeos

O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a

traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios

BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-

Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg

Press 2007

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146

to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

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Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 5: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

5

RESUMO

Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes

Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo

Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute

6

INTRODUCcedilAtildeO

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca

atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos

entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de

um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as

linguumliacutesticas

Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes

ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi

decapitado

Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como

objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino

pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da

martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica

Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto

literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por

esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e

religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos

Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma

religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a

situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados

pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia

na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos

recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos

princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo

individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as

funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para

cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte

7

de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa

anaacutelise

O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do

pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade

romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou

sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da

eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a

literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as

ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o

Impeacuterio romano

Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui

para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes

anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa

eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees

como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em

lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos

Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para

cristatildeos e natildeo cristatildeos

O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a

traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios

BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-

Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg

Press 2007

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146

to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

8

Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

9

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

10

ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

11

liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 6: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

6

INTRODUCcedilAtildeO

A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca

atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos

entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de

um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as

linguumliacutesticas

Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes

ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi

decapitado

Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como

objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino

pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da

martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica

Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto

literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por

esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e

religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos

Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma

religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a

situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados

pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia

na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos

recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos

princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo

individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as

funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para

cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte

7

de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa

anaacutelise

O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do

pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade

romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou

sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da

eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a

literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as

ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o

Impeacuterio romano

Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui

para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes

anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa

eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees

como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em

lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos

Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para

cristatildeos e natildeo cristatildeos

O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a

traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios

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Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

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3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 7: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

7

de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa

anaacutelise

O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do

pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade

romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou

sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da

eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a

literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as

ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o

Impeacuterio romano

Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui

para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes

anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa

eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees

como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em

lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos

Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para

cristatildeos e natildeo cristatildeos

O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a

traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios

BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-

Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg

Press 2007

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146

to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

8

Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

9

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

10

ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

11

liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 8: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

8

Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a

de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa

9

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

10

ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

11

liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 9: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

9

1 GEcircNERO LITERAacuteRIO

O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os

relatos de martiacuterio estatildeo inseridos

A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a

leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja

natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um

estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque

conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute

muito tecircnue

A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por

duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes

eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-

los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos

por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-

cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda

a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde

11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde

A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a

questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de

textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a

IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em

grande medida da escrita

Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza

para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de

cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os

10

ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

11

liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 10: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em

textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca

Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica

Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender

duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia

que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo

Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram

escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o

maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas

vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito

cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns

textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o

povo

Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento

do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un

lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo

Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia

que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores

cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000

511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para

eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias

cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as

escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave

educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham

As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram

atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas

vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da

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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 11: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

11

liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio

do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf

Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)

Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um

gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da

hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia

primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses

autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em

formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio

como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos

textosrdquo

O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos

encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)

e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute

narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os

acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento

como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo

Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido

por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e

divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas

entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma

delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent

pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute

Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur

programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)

caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos

como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical

De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos

relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica

pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

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3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 12: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

12

lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo

histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se

em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do

mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio

desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a

cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E

o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de

Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior

do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)

Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande

interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma

nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo

Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os

circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez

cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)

Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos

promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum

deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da

sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se

reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado

nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para

Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria

corromper sua alma e corpo

O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)

Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e

substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava

dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 13: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

13

Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)

O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o

teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela

feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o

palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e

pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de

faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)

A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento

extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto

acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais

Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um

instrumento de poder para a Igreja

Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os

bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians

before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by

visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops

Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo

apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram

considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo

(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos

eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um

poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an

increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for

studies of literacy and powerrdquo

Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a

manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo

conforme escreve Alesso (2006 34-35)

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

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4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 14: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

14

Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana

O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do

Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o

Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais

inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio

do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico

12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS

Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo

do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do

discurso hagiograacutefico

Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois

natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como

hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993

146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos

e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso

ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas

invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una

esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la

finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos

hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)

Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias

no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um

nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre

drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 15: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

15

que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo

ndash et non lsquobiographiarsquordquo

Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim

da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo

Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao

qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois

A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez

magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees

poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o

maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto

focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com

Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre

questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo

de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as

palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma

determinada sociedade incutindo assim novos valores

A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes

A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a

relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)

autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o

autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em

sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem

em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute

possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que

simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de

algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 16: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

16

Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e

biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance

ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens

o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de

educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico

mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico

Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA

primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon

etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo

(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a

opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua

feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute

acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se

tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da

personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)

Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os

costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado

de forma determinante pelo mundo nem o modifica

Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)

Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o

personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos

acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute

o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios

Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o

romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas

autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo

O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

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3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 17: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

17

enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria

vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos

existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba

necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na

concepccedilatildeo cristatilde

No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque

diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)

verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance

biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo

vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem

esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde

antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e

principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que

Marino segue resoluto para o tribunal

Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para

o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se

tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave

iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-

se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)

No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um

fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os

seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo

elemento que possa remeter agrave individualidade

deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)

Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla

caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da

hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 18: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

18

2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO

O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)

ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme

historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos

acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo

a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000

xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas

desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de

260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir

livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)

No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o

cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a

julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez

acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito

provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados

porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente

imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de

humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente

que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o

rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o

momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das

precedentesrdquo

Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham

conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)

quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser

sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles

(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio

Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 19: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

19

ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966

105)

Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos

Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees

nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos

Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia

Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo

ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao

imperador

Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)

Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem

que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e

submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a

ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao

bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo

aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo

No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram

tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees

militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 20: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

20

El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso

Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata

casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico

A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da

busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a

decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava

formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III

que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas

orientais

El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)

Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos

cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo

Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa

Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-

Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu

essencialmente por meio dos escravos e da filosofia

a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables

Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo

com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 21: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

21

textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para

a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)

O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico

como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem

principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia

Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops

1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova

configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa

de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo

IV

Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como

membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o

sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)

Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos

documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os

ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo

estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute

Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como

centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo

Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em

249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio

havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses

romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses

possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era

um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua

religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique

principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte

des lois rituelles Religion signifiait culterdquo

O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve

como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 22: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

22

opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia

para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como

observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo

ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e

quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo

Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o

Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo

mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 23: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

23

3 TEXTO GREGO

Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου

Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς

Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε

καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν

ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας

2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν

ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν

Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι

Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων

μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς

βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον

3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι

ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως

ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα

4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε

ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν

ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι

παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος

ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων

εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 24: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

24

ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν

ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς

αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης

5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ

δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ

δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν

ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 25: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

25

4 TRADUCcedilAtildeO

O martiacuterio do Santo Marino

1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares

em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido

honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por

todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu

testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte

2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a

conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a

ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo

Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e

declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e

portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos

romanos Assim o cargo cairia para si

3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou

primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele

insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs

horas para refletir

4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era

bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela

matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando

um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo

tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos

exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem

hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas

ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno

ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo

5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para

o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se

apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute

26

imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 26: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre

o seu fim

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5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

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A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

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Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

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CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

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Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 27: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

27

5 COMENTAacuteRIOS

51 OS PERSONAGENS

Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em

um ponto da estrutura

Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola

Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal

familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute

exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um

homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos

movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do

texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave

autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado

guerreiro

O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo

dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo

para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A

denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma

preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega

Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o

exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees

do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio

militar portanto tinha um significado muito grande

Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas

informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou

compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem

disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 28: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

28

Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na

quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado

provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era

seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para

conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial

para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve

como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)

O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para

anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo

de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos

outros personagens no texto

52 ESTRUTURA

O texto pode ser subdividido em 5 partes

(i) Marino o soldado cristatildeo

A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no

espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo

A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de

captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a

expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo

(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo

A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio

narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo

apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal

(iii) Marino e o juiz a confissatildeo

A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente

que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 29: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

29

(iv) Marino e o bispo a decisatildeo

Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de

Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem

palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a

espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe

a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras

(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo

Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo

Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte

53 TEMPO E ESPACcedilO

O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto

para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης

ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor

Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria

Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e

a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII

12)

A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que

Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em

todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto

o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se

deram de maneira muito raacutepida

Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia

na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no

entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes

contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o

Cristianismo

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 30: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

30

O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno

poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por

Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo

tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito

cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera

propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz

que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os

sofrimentos corporais

Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte

54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS

O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de

diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um

detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga

essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de

martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)

Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte

A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da

distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no

entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 31: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

31

A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra

no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios

desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica

Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com

Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma

narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute

portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a

noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007

8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente

engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo

No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no

uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo

εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por

ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento

por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann

2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que

eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega

amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e

decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo

do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio

ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento

emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado

comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como

afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva

de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a

forte presenccedila do aspecto emotivo

A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para

enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou

ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops

(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 32: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

32

medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te

apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo

Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila

Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte

pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o

caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o

representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute

o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar

Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel

seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os

espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo

Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na

hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops

(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo

obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo

O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino

se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua

decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo

que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar

O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma

meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior

sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O

adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez

Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num

texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e

ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς

πίστεως τὴν προθυμίαν

Assim temos

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 33: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

33

Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)

darrdarrdarrdarr

Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo

darrdarrdarrdarr

Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo

O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas

uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado

pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν

ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente

detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita

conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui

coerecircncia ao texto

Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)

destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura

feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que

todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou

seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica

fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e

estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha

havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois

poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 34: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

34

sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser

adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um

antagonismo fundamentalrdquo

O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de

Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo

substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo

ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos

esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no

texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino

Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos

durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e

por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que

a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino

Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη

ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto

o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων

o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος

o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις

o substantivo εἰρήνη

o substantivo μαρτυρία

Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e

formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

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CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

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REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduccedilatildeo Wolfgang Fisher Satildeo Paulo Fonte Editorial 2005

41

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GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995

GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956

IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito

__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007

MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332

MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971

_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991

MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000

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42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

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TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 35: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

35

A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes

por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)

honra romana (τιμή)

vide (κλῆμα)

centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)

reconhecimento passageiro e

terreno (ἀξιώμασι

τετιμημένων )

honra cristatilde (τιμή)

paz (εἰρήνη)

maacutertir (μάρτυρ)

reconhecimento eterno e divino

(τελειοῦται)

O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria

honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o

argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado

explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos

versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω

ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o

objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας

φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo

Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o

ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ

τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela

feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995

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IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito

__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007

MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332

MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971

_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991

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MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000

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REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004

42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 36: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

36

Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha

pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento

terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo

ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na

comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o

cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)

Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito

mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp

Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo

por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute

essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto

O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por

exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer

voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do

termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que

ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to

the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις

Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de

um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados

Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor

menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A

acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os

personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado

numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo

de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute

em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

AALEN S τιμή In COENEN Lothar BROWN Colin (Orgs) Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento v1 Traduccedilatildeo Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 2000

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BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

BAKHTIN Mikhail Esteacutetica da criaccedilatildeo verbal Traduccedilatildeo Paulo Bezerra 4aed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BERGER Klaus As formas literaacuterias do Novo Testamento Traduccedilatildeo Fredericus Antonius Stein Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998

BIacuteBLIA SAGRADA Nova Versatildeo Internacional Traduzido pela comissatildeo de traduccedilatildeo da Sociedade Biacuteblica Internacional Satildeo Paulo Editora Vida 2001

BOEFT Jan den BREMMER Jan Notiunculae Martyrologicae II Vigiliae Christianae vol36 no4 dez 1982 pp383-402 httpwwwjstororgpss1582845 Acesso 11062008

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DELEHAYE Hippolyte Les passions des martyrs et les genres litteacuteraires 2aed rev et corr Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1966

EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduccedilatildeo Wolfgang Fisher Satildeo Paulo Fonte Editorial 2005

41

FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995

GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956

IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito

__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007

MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332

MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971

_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991

MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000

MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196

MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000

PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930

REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004

42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 37: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

37

como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da

acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade

interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se

constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio

por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os

imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao

registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o

mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)

A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das

intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que

como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos

entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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DELEHAYE Hippolyte Les passions des martyrs et les genres litteacuteraires 2aed rev et corr Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1966

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GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995

GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956

IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito

__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

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MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971

_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991

MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000

MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196

MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000

PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930

REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004

42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

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TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 38: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

38

CONCLUSAtildeO

O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e

produtivo sob vaacuterios aspectos

Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual

gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A

percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a

ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os

primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma

instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na

literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um

pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os

cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo

- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura

No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do

texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico

durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e

consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa

ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias

da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna

centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o

posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos

fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento

A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se

compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao

bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se

mostrar complacente

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

AALEN S τιμή In COENEN Lothar BROWN Colin (Orgs) Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento v1 Traduccedilatildeo Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 2000

ALESSO Marta Los geacuteneros literarios en el primer cristianismo Circe de Claacutesicos y Modernos [online] 2005-2006 no10 p19-36 ISSN 1851-1724 Disponiacutevel em http ltwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S1851-17242006000100003amplng=ptampnrm=isogt Consultado em 03 Junho 2008

ARNAULD Dominique Histoire du christianisme in Afrique - les sept premier siegravecles Paris Eacuteditions Karthala 2001

BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950

BAKHTIN Mikhail Esteacutetica da criaccedilatildeo verbal Traduccedilatildeo Paulo Bezerra 4aed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

BERGER Klaus As formas literaacuterias do Novo Testamento Traduccedilatildeo Fredericus Antonius Stein Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998

BIacuteBLIA SAGRADA Nova Versatildeo Internacional Traduzido pela comissatildeo de traduccedilatildeo da Sociedade Biacuteblica Internacional Satildeo Paulo Editora Vida 2001

BOEFT Jan den BREMMER Jan Notiunculae Martyrologicae II Vigiliae Christianae vol36 no4 dez 1982 pp383-402 httpwwwjstororgpss1582845 Acesso 11062008

BROWN Peter Corpo e sociedade o homem a mulher e a renuacutencia sexual no iniacutecio do cristianismo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990

DANIEacuteLOU Jean amp MARROU Henri Nova Histoacuteria da Igreja dos primoacuterdios a Satildeo Gregoacuterio Magno Traduccedilatildeo Dom Frei Paulo Evaristo Arns Petroacutepolis Vozes 1966

DANIEL-ROPS A igreja dos apoacutestolos e dos maacutertires Traduccedilatildeo Emeacuterico da Gama Satildeo Paulo Quadrante 1988

DELEHAYE Hippolyte Les passions des martyrs et les genres litteacuteraires 2aed rev et corr Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1966

EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduccedilatildeo Wolfgang Fisher Satildeo Paulo Fonte Editorial 2005

41

FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995

GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956

IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito

__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007

MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332

MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971

_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991

MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000

MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196

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PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930

REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004

42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 39: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

39

Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os

cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de

sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem

como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como

um substituto aos espetaacuteculos romanos

Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave

plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos

Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o

que deu origem ao culto dos santos

Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda

precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos

possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados

ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται

presente no texto traduzido e em outros relatos

Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais

utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e

posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma

melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande

auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo

cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade

proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses

novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde

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REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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BOEFT Jan den BREMMER Jan Notiunculae Martyrologicae II Vigiliae Christianae vol36 no4 dez 1982 pp383-402 httpwwwjstororgpss1582845 Acesso 11062008

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DANIEacuteLOU Jean amp MARROU Henri Nova Histoacuteria da Igreja dos primoacuterdios a Satildeo Gregoacuterio Magno Traduccedilatildeo Dom Frei Paulo Evaristo Arns Petroacutepolis Vozes 1966

DANIEL-ROPS A igreja dos apoacutestolos e dos maacutertires Traduccedilatildeo Emeacuterico da Gama Satildeo Paulo Quadrante 1988

DELEHAYE Hippolyte Les passions des martyrs et les genres litteacuteraires 2aed rev et corr Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1966

EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduccedilatildeo Wolfgang Fisher Satildeo Paulo Fonte Editorial 2005

41

FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995

GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956

IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito

__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007

MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332

MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971

_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991

MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000

MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196

MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000

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REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004

42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 40: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

40

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

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UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 41: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

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FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996

GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993

GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995

GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956

IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito

__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007

LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000

LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007

MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332

MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971

_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991

MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000

MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196

MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000

PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930

REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004

42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 42: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

42

RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo

SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266

SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900

TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974

UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 43: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

43

ANEXOS

TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)

[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1

1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em

Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um

tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua

linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte

2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles

que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o

escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a

honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo

as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que

era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a

ele

3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a

Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que

era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse

4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e

afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma

vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o

manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e

contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as

duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a

direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -

manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que

escolheste Vai em pazrdquo

1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu

este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer

casos como o de Marino [nota do Editor]

44

5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 44: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de

novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado

Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua

feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado

45

TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment

Page 45: tradução e comentário do martírio do soldado Marino

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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)

During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in

Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and

was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It

came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour

and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and

according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he

was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and

attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and

should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to

the ancient laws but that instead the post should fall to himself

It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he

first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed

that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had

Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside

in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed

Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword

attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it

before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out

his right hand and took the divine writings

lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him

may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo

No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the

tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and

showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to

execution and so found his fulfilment