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Tradução de ?????????????? 1 edição 2016

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Tradução de ??????????????

1 edição

2016

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Prólogo

Antes da morte de uma pessoa, o sangue dispara, pulsando pelas veias, repleto de tudo o que a torna humana — adrenalina, medo, o desejo

de viver. É um som inigualável, um som que eu costuma-va ouvir com ansiedade, na expectativa da morte. Mas a pulsação que agora ecoava em meus ouvidos não era causada por um coração humano. Faltava aquela sen-sação frenética que torna o sangue tão irresistível. Era a minha… e a de meu irmão.

Havíamos ficado à beira da morte, mais uma vez, e agora estávamos fugindo de volta a Londres.

A Londres que eu vira era uma cidade de erros e des-truição, onde vidas inocentes eram perdidas e o sangue escorria pelas ruas, como água. E era para lá que Da-mon e eu nos dirigíamos, com a intenção de pôr um fim àquilo. Minha única esperança era que o preço não fosse alto demais.

Poucas horas antes, eu havia sido atacado e aban-donado à beira da morte por Samuel, um vampiro ver-dadeiramente astuto e vingativo. Damon me salvou. Eu consideraria um milagre meu irmão irromper pelo chalé e me arrastar para a segurança pouco antes de toda a construção explodir em chamas.

Mas parei de acreditar em milagres havia muito tem-po. O que tinha acontecido não passara de sorte. E agora

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eu precisava mais que nunca que ela estivesse ao meu lado. Não bastava depender do instinto, que havia me deixado na mão por incontáveis vezes, sempre levando à morte de alguém. E, se me falhasse novamente, eu sabia que a morte que se seguiria seria a minha própria. Só o que podia fazer era me lançar na batalha contra o mal e ter esperanças de que a sorte não tivesse me abandonado.

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Oapito do trem penetrou o silêncio do vagão, arrancando--me de meus devaneios com um sobressalto. Endireitei--me, subitamente atento. Estávamos numa cabine de pri-

meira classe, cercados de todo conforto imaginável. Havia um prato de sanduíches intocados na mesa entre os dois bancos de veludo vermelho, e uma pilha de jornais jazia ao lado deles. Pela janela, a paisagem passava exuberante e cheia de vida, os campos ocasionalmente pontilhados por rebanhos de gado. Era difícil conciliar a calma e a beleza ao meu redor com o horror e a con-fusão em minha mente.

Cora estava à minha frente, com um uma Bíblia pequena, encadernada em couro, aberta no colo. Olhava pela janela, sem piscar, como se o mundo lá fora pudesse lhe dar as respostas que eu não podia. Ela, uma jovem humana e inocente envolvida no mundo dos vampiros sem que lhe fosse dada uma escolha, aca-bara de testemunhar a irmã se transformar em um dos demônios sedentos de sangue que ela temia.

Há apenas uma semana, minha vida era tão agradável — eu hesitaria em dizer boa — quanto eu podia esperar. Afinal, ficar à mercê de meus anseios reduzia os prazeres simples, como po-entes tingidos de dourado e jantares em noites de domingo. Mas minha vida era tranquila. E, depois de anos fugindo de meus ini-migos e de minha própria culpa, a paz era a perfeição.

Há apenas uma semana, eu era empregado no Solar dos Ab-bott onde, como caseiro, minha maior preocupação era se a cerca do pasto precisava de consertos.

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Há apenas uma semana, sentava-me em uma confortável pol-trona de veludo vermelho na sala de estar dos Abbott, com uma taça de conhaque na mesa ao meu lado e um livro de Shakespeare no colo. Embora eu tivesse de me alimentar com sangue de es-quilos ou pardais para me saciar, desfrutava do cheiro do assado preparado pela criada da família, a Sra. Duckworth.

Há apenas uma semana, vira Oliver Abbott entrar apressado, seguido pelo irmão mais velho, Luke. Ambos estavam sujos de brincar na floresta. Mas em vez de repreendê-los, a mãe, Gertru-de, havia se abaixado e retirado uma das folhas de bordo laranja que eles traziam consigo.

— Que lindo! O outono não é encantador?! — exclamara Gertrude, deliciada, examinando a folha como se fosse uma joia preciosa.

Meu coração se contorceu. Agora, graças a Samuel, o peque-no corpo de Oliver estava enterrado sob as folhas, sem qualquer sangue. Gertrude e o resto da família Abbott — George, Luke e a mais nova, Emma — haviam sido poupados, mas eu podia ape-nas imaginar o pavor em que viviam naquele momento. Samuel os influenciara a acreditar que havia sido eu o responsável pelo rapto e assassinato de Oliver. Fora essa a tentativa dele de retaliar por um ato que eu nem sabia que existia — e que eu ainda não estava certo de como teria acontecido.

Fechei os olhos com força. Damon acabara de sair da cabine, provavelmente para alimentar-se de um companheiro de viagem. Normalmente, eu não gostava da insistência de meu irmão em buscar sua nutrição em humanos. Agora, porém, estava agradeci-do pela quietude. Havíamos fugido da fazenda várias horas antes, e só naquele momento eu começava a relaxar. Deixei os ombros caírem, e meu coração parou de martelar na caixa torácica. Por enquanto, estávamos a salvo. Mas eu sabia que, em Londres, a história seria outra.

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Olhei para a Bíblia, ainda aberta no colo de Cora. Fora bem manuseada por alguém; a capa estava desgastada, e as páginas, pontilhadas de manchas. Mas não havia nada no livro que pudesse ajudá-la — ou a qualquer um de nós naquele vagão de condenados.

Ao longe, ouvi passos pelo corredor. Meu coração se acelerou. Sentei-me ereto, pronto para me defender contra quem quer que aparecesse: Samuel, Henry, outro assecla vampiro que eu ainda não conhecia. Sentia Cora tensa junto de mim, seus olhos se arre-galando de medo. A mão de alguém se estendeu para abrir a cor-tina da cabine. Reconheci o anel decorado de lápis-lazúli idêntico ao meu e soltei um suspiro de alívio. Era Damon retornando, seus olhos transtornados e injetados de sangue.

— Veja só isto! — Ele esbravejou, agitando um jornal diante de meu rosto.

Peguei o jornal de sua mão e li a manchete: jack, o estri-pador, identificado por testemunhas oculares. Abaixo da coluna de caracteres havia uma ilustração de Damon. Rapi-damente passei os olhos pelas primeiras linhas: Descobriu-se que homem da alta sociedade é o temível assassino. Damon DeSangue, popular no meio social, foi identificado positivamente no caso do assassinato da Miller’s Court na semana passada.

O trem lançava-se para Londres, a cidade que agora acreditava que Damon era Jack, o Estripador. Éramos como camundongos a caminho da toca de uma serpente.

— Posso ver? — perguntou Cora, estendendo a mão, cheia de expectativa.

Damon a ignorou.— Pelo menos eles poderiam publicar um retrato melhor de

mim. Esta ilustração não me faz justiça alguma — disse ele, de mau humor, ao se acomodar no banco a meu lado e amassar o jornal em uma bola. Mas eu via suas mãos tremendo; o mais leve dos tremores, tão sutil que seria invisível a olhos humanos. Aque-le não era o Damon confiante que eu conhecia.

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Cora vasculhou os jornais colocados ao lado de nossas intoca-das bandejas de desjejum.

— Estamos apenas a alguns quilômetros de Londres — falei, olhando para meu irmão. — O que faremos quando chegarmos lá?

Imaginei que seríamos detidos assim que o trem chegasse à Paddington Station.

— Ora — respondeu Damon, jogando o jornal embolado no chão e o pisoteando, só para garantir. — Ouvi dizer que o Bri-tish Museum é extraordinário. Ainda não tive a oportunidade de visitá-lo.

— Isto é sério, Damon. Estão procurando por você. E quando o encontrarem… — Estremeci, pensando no que aconteceria se a Polícia Metropolitana o achasse.

— Sei que é sério. Mas o que eu deveria fazer? Esconder-me pela eternidade porque fui acusado de um crime que não cometi? Samuel precisa pagar. Além disso, não tenho medo da polícia. Tenho alguns truques na manga.

— Você também está neste aqui — disse Cora em voz baixa, estendendo a primeira página do London Gazette. O artigo não tinha ilustração, apenas uma manchete: jack, o estripador, descoberto e ainda à solta.

Damon apanhou o jornal e leu-o rapidamente. Virou-se para mim.

— A imprensa me rotulou de nobre. Agora estou parecido com um plebeu, então duvido que alguém me reconheça — falou, como se quisesse convencer a si mesmo. Entrelaçando os dedos, alisou o cabelo, jogando-o para trás, depois descansou a cabeça nas palmas, como se tomasse um banho de sol na praia.

Era verdade: ele não parecia mais em nada um membro da elite de Londres. Sua camisa estava rasgada e suja; os olhos can-sados e injetados, e ele tinha a sombra de uma barba cobrindo o queixo. Mas ainda parecia Damon. O cabelo era preto e espesso,

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caindo numa linha ondulada sobre as sobrancelhas fortes, e tinha na boca aquele leve escárnio que lhe era habitual.

Vendo que eu o observava, Damon arqueou uma sobrancelha.— Sei que você está pensando em alguma coisa. Por que sim-

plesmente não fala?— Não devíamos ir para Londres — respondi categoricamen-

te. Afinal, ele era um homem procurado na cidade; procurado e, sobretudo, enfraquecido, sem amigos. Não fazíamos ideia de quantos outros vampiros haviam se aliado a Samuel. O irmão, Henry, certamente era um deles, mas só podíamos imaginar até que ponto chegava aquela rede de influência. Certamente ele de-via ter amigos bem situados, para ser capaz de acusar meu irmão com a imprensa.

— Não ir para Londres?! — esbravejou Damon. — E fazer o quê? Viver na mata e esperar até sermos encontrados? Não. Pre-ciso me vingar. Não está preocupado com sua amiguinha, Vio-let? — acrescentou, sabendo que era exatamente por isso que eu perseguia Samuel.

Olhei para Cora, que folheava desesperadamente os jornais como se um deles contivesse um mapa para a segurança. Seus olhos azuis estavam arregalados de medo, e fiquei impressiona-do ao ver como a garota se mantinha firme depois dos acon-tecimentos da noite anterior. Ela fora corajosa nas horas antes do nascer do sol, quando estávamos escondidos na mata, espe-rando que o grupo de busca passasse, apesar de a irmã ter sido transformada em um demônio apenas momentos antes. Agora, eu podia apenas imaginar os pensamentos que borbulhavam por sua mente.

— Quero resgatar Violet — falei, na esperança de que Cora sentisse minha sinceridade. — Mas precisamos de um bom pla-no. Não sabemos contra o que estamos lutando.

Mesmo enquanto falava, eu sabia que Damon jamais concor-daria. Quando ele queria alguma coisa — romance, champanhe,

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sangue —, ele queria imediatamente. E o mesmo podia ser dito de vingança.

Pelo canto do olho, vi Cora endurecer o queixo.— Precisamos ir para Londres. Eu não conseguiria conviver

comigo mesma se não tentasse salvar minha irmã. — Sua voz se elevou na palavra salvar. Ela dobrou o jornal com uma pancada e apontou para outra ilustração. Retraí-me, esperando ver Damon. Em vez disso, era um desenho de Samuel, o queixo empinado e a mão erguida em um aceno cheio de pose e político.

— Deixe-me ver isto. — Damon arrancou o jornal das mãos de Cora. — “Samuel Mortimer, o promissor candidato a vereador de Londres, jura manter seguras as ruas da cidade. ‘Matarei o Es-tripador com minhas próprias mãos, se for necessário’, promete Mortimer, sob aplausos de aprovação”. — Leu do texto. — Quero vê-lo tentar.

Estremeci. Samuel Mortimer, derivado da palavra francesa para a morte. Óbvio. Nem eu nem Damon tínhamos percebido isso, embora meu irmão tivesse muito orgulho de se intitular con-de DeSangue. O que muito provavelmente havia sido a primeira dica que Samuel teve da verdadeira natureza de Damon.

Balancei a cabeça. Que outras dicas deixáramos passar? Eu também não tinha caído na armadilha de Samuel? Também che-gara a acreditar que Damon era o Estripador.

— Prometa que não farão nada até que Violet esteja a salvo — disse Cora. — Depois, sim, podem matá-lo. Mas não deixem que minha irmã seja um joguete.

Eu não queria fazer a Cora uma promessa que não poderia cumprir. Nem mesmo tinha a confiança de que Damon e eu fôs-semos capazes de derrotar Samuel, mas sabia que meu irmão não deixaria passar nenhuma oportunidade de tentar. Eu queria dizer a ela para fugir de tudo isso assim que pudesse. Que fosse para Paris, trocasse de nome e tentasse esquecer o passado. Mas ela

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não agiria assim. Violet era sua irmã. Cora era ligada a ela, como eu a Damon.

Assenti levemente a Cora e, para ela, pareceu ser o bastante. Esfreguei os olhos, tentando me manter acordado. Parecia que eu estava embriagado, ou aprisionado num sonho. Tudo que havia acontecido nas últimas 24 horas assumira um caráter nebuloso, como se eu tivesse sonhado os eventos, e não os vivido. Mas era tudo real.

Os campos lá fora rareavam, e o ar assumia um caráter cinzen-to e melancólico. Gostasse eu ou não, estávamos nos aproximan-do da cidade. Ao longe, um bando de andorinhas voou na direção contrária do trem, para o campo e o mar além.

— Não se preocupe. Encontraremos Violet — falei sem con-vicção. Esperava ter a chance de ensinar Violet a viver bebendo sangue animal, aliviando o anseio e suportando uma fome cons-tante, assim como Lexi me ensinara. Tinha esperanças de que não fosse tarde demais.

Um cobrador com aparência de um avô, com cabelo grisalho e eriçado, abriu a cortina e entrou na cabine. Tocou o quepe e sorriu com gentileza para Cora. Perguntei-me o que parecíamos a ele: três irmãos a passeio? Dois jovens amantes e um acompa-nhante? Reconfortei-me ao saber que nem em seus sonhos mais loucos ele teria como adivinhar nossa verdadeira natureza.

— Próxima parada, Londres! — anunciou ele, seu olhar ga-nhando ares de suspeita ao reparar na camisa manchada de san-gue de Damon. Aquele não era o cobrador que havíamos influen-ciado para obter nossa cabine na primeira classe, e eu sabia, pelo jeito como ele franzia os lábios, que o homem estava a segundos de pedir para ver nossas passagens.

Damon virou-se para ele e arqueou uma sobrancelha.— Obrigado — disse em voz baixa. Um leve sorriso apareceu

em seu rosto enquanto sua mente se misturava com a do cobra-dor. Em segundos o homem estava inteiramente sob seu feitiço.

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Assisti, impressionado com a facilidade com que Damon po-dia influenciar, mesmo estando ferido e meio faminto. Quando eu influenciava, em geral terminava com uma dor de cabeça e um gosto amargo na boca. Damon parecia não sofrer esses efeitos colaterais.

— A partir de agora, você nos deixará em paz. Já lhe mos-tramos as passagens. Você nunca nos viu. — Suas palavras eram suaves e calmas.

Cora observava meu irmão, claramente curiosa, sem saber por que o cobrador se agarrava a cada palavra. Ela abriu a boca, e eu ia menear a cabeça, com medo de que interrompesse a in-fluência. Mas Cora apenas cochichou a Damon:

— Diga a ele para lhe dar seu quepe.Damon a olhou com confusão.— E preciso de seu quepe — disse no mesmo tom suave que

usara o tempo todo.— Naturalmente, senhor. — O cobrador entregou o quepe.— E o paletó — insistiu ela, erguendo uma sobrancelha.— O paletó também — acrescentou Damon. Eu assistia, im-

pressionado. Era como se Cora o estivesse influenciando.— Muito bem — disse o cobrador, tirando o paletó cinza e

empoeirado do uniforme e o colocando bem-arrumado no as-sento ao lado de Damon. Ele saiu da cabine em mangas de cami-sa, a cortina se fechando a suas costas.

— Isso foi bem pensado — comentei. Não conhecia uma hu-mana que ficasse tão à vontade com vampiros desde… bem, des-de Callie. Balancei a cabeça, tentando despistar a imagem da ga-rota que um dia amei. Callie fazia parte do passado, e tudo o que eu podia fazer agora era me concentrar no presente.

— Era necessário. A cara dele está em todos os jornais. Pelo menos não tivemos de pedir coisa pior. — Cora deu de ombros e entendi que ela pensava na influência que ela própria tinha sofri-do, quando Samuel a obrigara a se tornar sua escrava de sangue.

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— Damon, assim que você sair do trem, vista isto. Ninguém dará atenção se pensar que você trabalha na ferrovia. Não é infalível, mas terá de servir — disse Cora, assentindo consigo mesma.

— Obrigado — disse Damon, de má vontade, enquanto ex-perimentava o quepe. Era grande demais e escorregava sobre os olhos, o jeito ideal de esconder suas feições. — As damas sempre são muito competentes quando se trata de encontrar o traje mais adequado para cada ocasião.

A boca de Cora torceu-se como se ela resistisse ao impulso de sorrir. Já passara bastante tempo com Damon, quando estava sob influência de Samuel. Imaginei que ela tivesse se acostumado ao humor sombrio e ocasionalmente sarcástico de meu irmão.

— Sei aonde podemos ir — disse Cora. — Pelo menos por algum tempo.

— Sabe? Ficaríamos muito agradecidos se você partilhasse a informação conosco — disse Damon em uma exibição exagerada de cortesia.

Ela curvou-se para nós, apoiando os cotovelos nos joelhos. Seus braços estavam salpicados de sangue por ter cuidado de meus ferimentos.

— Assim que sairmos do trem, sigam-me — instruiu, man-tendo a voz baixa e olhando a porta da cabine. — Não posso lhes dizer para onde. Não quero que ninguém ouça. Todo cuidado é pouco. Não é? — Seu tom desafiava Damon a discordar.

— Muito bem dito — resmungou ele, aquiescendo. Fiquei sa-tisfeito com a perspicácia de Cora e sua capacidade de manejar meu irmão. Ela podia parecer inocente e ingênua, mas tinha uma vontade de ferro.

Cora concordou rigidamente com a cabeça e voltou a olhar pela janela. Eu a examinei. Além das crostas de sangue nos bra-ços, a garota tinha também manchas vermelhas no vestido de al-godão azul. De longe, parecia que o tecido era estampado com rosas.

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O apito do trem soltou três sopros curtos. Estávamos a minu-tos da estação.

— Pegue seu casaco — lembrou ela a meu irmão, como se fos-se uma mãe falando com o filho em um dia de neve.

Damon sacudiu os ombros dentro do largo paletó cinza, que quase parecia a farda dos confederados que ele havia usado mais de duas décadas antes.

— Ótimo — disse Cora. — Agora, Stefan, fique na retaguarda e cuide para que ninguém nos veja ou siga.

— Claro — concordei, embaraçado. Pensei que teríamos de proteger Cora, mas, ao que parecia, era Cora que estava nos pro-tegendo. Será que esta dependência de uma humana para nos le-var à segurança significava que nossa situação era pior do que pensávamos? Ou a jovem era o amuleto da sorte pelo qual eu pedira? Fosse como fosse, eu confiava nela.

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Logo o trem entrava na Paddington Station, deixando um rastro de fumaça preta atrás de si.

Nós três saímos rápida e furtivamente do trem, atra-vessando o burburinho da plataforma. Ao tomarmos a saída, meus olhos caíram em três policiais agrupados no meio da esta-ção. Um deles virou-se para mim, seu olhar parando em meu ros-to por um momento antes de seguir adiante para guiar o resto da multidão. Meus ombros relaxaram. Ninguém desconfiava de nós.

A área em torno da estação ficava a um mundo de distância dos prédios decorados da preferência de Damon, todos doura-dos e de mármore reluzente. As construções dali, por outro lado, eram espremidas umas contra as outras, cobertas de tábuas, e não parecia haver ninguém por perto. O ar pesava, como se susten-tasse toda a sujeira da cidade à nossa volta. Nuvens escuras se acumulavam no alto.

— Parece que vai chover — comentei. Sacudi a cabeça assim que falei, enojado pela minha tentativa de jogar conversa fora. Eu falava como se fosse um lavrador conversando com o vizinho.

Stefan simplório, imaginei uma voz suave e meiga me falando. Livrei-me do pensamento em Katherine.

— Creio que sim — disse Damon com lentidão, em um tom enlouquecedor de tão indiferente, como se ainda estivesse na Vir-gínia e dispusesse de todo tempo do mundo.

— Vocês vão ficar aqui, ou estão prontos para vir comigo? — perguntou Cora, colocando as pequenas mãos nos quadris.

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Damon e eu nos entreolhamos e concordamos com a cabeça.— Estamos prontos se você estiver — disse ele.Cora rapidamente se orientou, depois partiu pelas ruas sinuo-

sas que se alastravam pelo oeste de Londres na direção do lento e lodoso rio Tâmisa. Eu costumava achá-lo majestoso, correndo para o oceano Atlântico e ligando Londres ao mundo. Agora, parecia turvo e malévolo. Eu andava a poucos passos de Cora, atento a qualquer sinal de Samuel, de cidadãos horrorizados ou da Polícia Metropolitana. De vez em quando, via cachos casta-nhos caindo em cascata por costas magras, e logo virava o olhar para longe. Mesmo agora, com tanto em que pensar, Katherine me assombrava.

Ao continuarmos junto do rio rumo à ponte de pedestres que atravessava o Tâmisa, visões familiares de Londres assomavam à nossa frente. Vi a capela abobadada da Catedral de São Paulo e, mais adiante, o Big Ben. Para além dali, havia armazéns contí-guos ao rio. Fora nos armazéns que Samuel mantivera Cora sob sua influência, e fora lá que Violet havia sido transformada em vampira. Londres era um estudo de contrastes, com os pináculos da igreja que alcançavam os céus mascarando o submundo dia-bólico em que entrávamos.

Logo nos vimos na Strand, a rua mais próxima do Tâmisa e um dos principais pontos comerciais da cidade. Vi algumas pes-soas nos encarando com suspeita. Não fiquei surpreso. Com nos-sas roupas sujas de sangue e de terra, nossa aparência era pior do que a dos mendigos que costumam vagar pelas praças da cidade.

— Estamos quase chegando — disse Cora, também sentindo os olhares de quem passava. Ela alisou o vestido, jogou os ombros para trás e andou decidida pela ponte, sem hesitar.

— Ela é boa companhia — observou Damon, andando ao meu lado.

— Sim, é — eu disse. Pela primeira vez, meu irmão e eu concordávamos.

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Na margem oposta, Cora desceu elegantemente uma escada sinuosa de pedra que levava à margem do rio. A área abaixo da ponte não abrigava nada além de um buraco gigantesco no chão, coberto por tábuas e vigas de ferro. Devia ter sido um dos locais das obras de uma estação do trem subterrâneo. Lembrei-me de George Abbott me contando sobre isso. O plano era ligar toda Londres por uma teia de túneis ferroviários subterrâneos. O obje-tivo da prefeitura era ter uma linha funcional na virada do século. A julgar pelo estado do buraco, no entanto, os operários não esta-vam com pressa alguma. A área parecia abandonada.

Segui Cora como um cachorrinho obediente enquanto ela abria caminho pelo local. Uma de mantenha distância estava pregada em um poste próximo, e uma cerca de arame rodeava o buraco. Algum operário fizera uma tentativa desleixada de cobrir a abertura com uma lona, mas pude ver o alto de uma escada fina de madeira se projetando para fora. Cora parou ali perto.

— Não é exatamente o Cumberland Hotel, não é mesmo, mano? — perguntou meu irmão com ironia.

Ela ignorou o sarcasmo de Damon, concentrada na tarefa em mãos.

— Podemos descer por aqui — disse Cora, pulando a cerca improvisada.

— Mas é seguro? — perguntei com ceticismo. Como ela sabia entrar de mansinho no subterrâneo?

— É claro que sim. Violet e eu dormimos aqui uma vez, então, se é seguro para duas mulheres, deve ser para qualquer vampiro. — Sua voz tinha certa provocação no tom.

— Vocês dormiam aqui sozinhas?Cora deu de ombros.— Não tínhamos dinheiro nenhum. Prometemos pagar o pen-

sio nato assim que conseguíssemos empregos, mas nos expulsa-ram. Eu sabia que não devíamos dormir na rua, então costumáva-

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mos andar a noite toda. Começávamos pelo Ten Bells e vínhamos até aqui. Seguíamos o rio e contávamos histórias uma para a outra a fim de passar o tempo. Descansávamos assim que clareava. Mas, numa noite, Violet estava quase delirante de cansaço e encontra-mos este lugar — explicou ela, gesticulando para o túnel. — É protegido e, quando você não tem amigos e está cercada de ini-migos, não existe lugar melhor. — Ela arqueou uma sobrancelha para meu irmão enquanto puxava a lona para trás e jogava uma perna pela escada, depois a outra. Desceu para o escuro, seguida rapidamente por Damon.

— Esperem! — chamei, mas não houve resposta. Assim que pisei no primeiro degrau trêmulo da escada, ouvi um baque nau-seante vindo de baixo.

— Cora? — chamei desesperado conforme descia rapidamen-te até o fundo do poço. — Damon?

— Aqui! — disse Cora. — Eu estou bem. Mas cuidado com…Dei um passo, esperando sentir um degrau abaixo. Em vez

disso, meu pé bateu no ar e caí de costas com um baque.— … a queda. — A voz de Cora cortou a escuridão.— Estou bem! — falei, levantando-me rapidamente e me es-

panando. Deixei que os olhos se adaptassem à luz. Estávamos em um túnel imenso que se estendia em todas as direções. Eu ouvia água pingando de uma fonte ainda invisível. Também captava um fraco e distante ruído de respiração, embora não pudesse ter cer-teza de se era apenas minha imaginação paranoica e hiperativa.

Os olhos de Damon brilhavam no escuro.— Ora, por muitas vezes você me mandou ao inferno. Parece

que chegamos, não, mano?— Creio que este é o esconderijo ideal. Mas, se vocês não gos-

tarem, podem ir embora. Posso encontrar minha irmã sem vocês. Estou acostumada a fazer as coisas sozinha — disse Cora com frieza.

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