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Tradução Carolina Simmer 1ª edição Rio de Janeiro | 2017

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Page 1: Tradução Carolina Simmer - Grupo Editorial Record · Alguns andares acima, dois casais estavam sentados em uma sala de es-tar — as paredes eram cobertas com obras de arte,

Tradução Carolina Simmer

1ª edição

Rio de Janeiro | 2017

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Parte Um

Chamo de lar qualquer lugar em que pendure o meu chapéu.

Johnny Mercer

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Capítulo 1t t t t

Parecia que nunca iriam embora. Clientes, especialmente os novos, sempre tendiam a se animarem e se estenderem demais, repetindo várias vezes a mesma ladainha de instruções, contatos e comentários antes de finalmente saírem porta afora. Ela compreendia, pois, quando partissem, deixariam para trás seu lar, seus pertences e, neste caso, seu gato nas mãos de uma desconhecida.

Em seu papel de cuidadora da casa, Lila Emerson fez tudo que podia para tranquilizá-los antes de irem embora, garantindo-lhes que suas coisas estariam sob os cuidados de uma pessoa competente.

Pelas próximas três semanas, enquanto Jason e Macey Kilderbrand apro-veitariam o sul da França com amigos e parentes, Lila moraria no aparta-mento fenomenal do casal em Chelsea, molhando as plantas, alimentando e brincando com o gato, recebendo a correspondência — e encaminhando qualquer mensagem importante.

Cuidaria do belo jardim de Macey no terraço, paparicaria o bichano, anotaria recados e desencorajaria ladrões apenas com a sua presença.

Enquanto isso, se divertiria morando no elegante condomínio London Terrace, assim como fizera naquele adorável apartamento em Roma — onde, por uma pequena taxa extra, pintara a cozinha — e na ampla casa do Brooklyn — com um golden retriever sapeca, um adorável Boston terrier idoso e um aquário cheio de peixes tropicais coloridos.

Nos seis anos trabalhando profissionalmente como cuidadora de casas, Lila conhecera muitas regiões de Nova York e, nos últimos quatro, expandira os negócios e passara também a visitar outras partes do mundo.

Era um bom trabalho se você conseguisse fazê-lo, pensou — e ela sempre conseguia.

— Venha, Thomas. — Lila afagou o corpo longo e magro do gato da cabeça ao rabo. — Vamos desfazer as malas.

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Ela gostava de se acomodar em uma casa nova e, já que o espaçoso aparta-mento tinha um quarto de hóspedes, foi lá que desfez a primeira das duas malas, guardando as roupas numa cômoda espelhada ou as pendurando no pequeno closet. Fora avisada de que Thomas provavelmente insistiria em dividir a cama com ela, e lidaria com isso. E ficou feliz ao ver que os clientes — provavelmente Macey — tinham disposto um vaso bonito cheio de frésias na mesa de cabeceira.

Lila adorava pequenos toques pessoais, tanto para o seu benefício quanto para o dos outros.

Já havia decidido usar o banheiro principal da casa, com sua espaçosa ducha a vapor e uma banheira de hidromassagem profunda.

— Nunca desperdice ou faça mau uso da gentileza dos anfitriões — disse a Thomas enquanto acomodava seus artigos de banho.

Como as duas malas carregavam quase todas as suas posses, Lila colocou-as onde lhe seriam mais convenientes.

Depois de pensar um pouco, montou seu escritório na sala da jantar, co-locando o notebook em um ponto de onde teria uma bela vista de Nova York. Se o apartamento fosse menor, não haveria problema algum em trabalhar no mesmo lugar em que dormia, mas, como tinha espaço, faria uso dele.

Recebera instruções sobre como usar todos os eletrodomésticos da cozi-nha, os controles remotos e o sistema de segurança — o lugar estava lotado de engenhocas que apeteciam sua alma geek.

Na cozinha, encontrou uma garrafa de vinho, uma tigela bonita cheia de frutas frescas e um monte de queijos chiques, com um bilhete escrito no papel monogramado de Macey.

Aproveite o nosso lar!Jason, Macey e Thomas

Que gentil, pensou Lila. Ela com certeza aproveitaria.Abriu o vinho, serviu uma taça, deu um gole e aprovou. Depois de pegar

os binóculos, carregou o copo até o terraço para admirar a vista.Os clientes aproveitavam bem o espaço, pensou, e o haviam decorado com

cadeiras acolchoadas, um banco duro de pedra, uma mesa com tampo de vidro — e vasos com flores desabrochadas, belos tomates-cereja, ervas chei-rosas. Lila fora encorajada a colher e usar tudo isso.

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Sentou-se com Thomas no colo, bebericando o vinho e acariciando os pelos sedosos do gato.

— Aposto que passam bastante tempo aqui, tomando um drinque ou um café. Parecem felizes juntos. E o apartamento tem um clima bom. Dá para sentir. — Lila coçou a parte de baixo do queixo de Thomas, e seus olhos ver-des brilhantes começaram a desfocar. — Macey vai ligar bastante e mandar um monte de e-mails nos primeiros dias, então vamos tirar algumas fotos de você, querido, e mandar para ela, para que possa ver que está tudo bem.

Deixando o vinho de lado, levou os binóculos aos olhos, analisando os prédios. O condomínio ocupava um quarteirão inteiro, oferecendo pequenos vislumbres da vida de pessoas desconhecidas.

E isso era algo que a fascinava.Uma mulher na mesma faixa etária de Lila usava um vestido preto que se

ajustava tão bem quanto uma segunda pele ao corpo magro e alto de modelo. Ela andava de um lado para o outro enquanto falava no celular. Não parece feliz, pensou Lila. Um encontro cancelado. Ele precisa trabalhar até tarde — ou pelo menos é o que disse, pensou ela, bolando uma história na sua mente. A mulher está farta dessa desculpa.

Alguns andares acima, dois casais estavam sentados em uma sala de es-tar — as paredes eram cobertas com obras de arte, e os móveis, modernos e elegantes — e riam enquanto bebiam o que pareciam ser martínis.

Obviamente não gostavam do calor do verão tanto quanto ela e Thomas, pois, caso gostassem, estariam sentados lá fora, no pequeno terraço.

Velhos amigos, decidiu Lila, que se encontravam com frequência, às vezes viajavam juntos.

Outra janela se abriu para o mundo de um menino rolando pelo chão com um cachorrinho branco. A felicidade absoluta dos dois atravessava o ar e a fez rir.

— Há séculos ele quer um cachorro. Com essa idade, séculos provavel-mente significam alguns meses. Mas, hoje, seus pais o surpreenderam. Ele vai se lembrar desse momento para sempre e, um dia, vai surpreender um garotinho ou uma garotinha da mesma forma.

Satisfeita com esse fim, Lila afastou os binóculos.— Certo, Thomas, vamos trabalhar um pouco. Eu sei, eu sei — continuou

ela, colocando o gato no chão, pegando a taça de vinho bebida pela metade. —

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O expediente da maioria das pessoas já terminou. E todo mundo está saindo para jantar e encontrar amigos. Ou, no caso da loura deslumbrante no ves-tido preto, reclamando por não ter para onde ir. Mas o caso é que... — Lila esperou até o gato passar a frente dela e entrar no apartamento. — Eu faço o meu horário de trabalho. É uma das vantagens.

Escolheu uma bola — ativada por movimento — da cesta cheia de brin-quedos de gato no armário da cozinha e a jogou no chão.

Thomas imediatamente investiu contra ela, pulando, lutando, golpeando e perseguindo.

— Se eu fosse um gato — especulou Lila —, também ficaria louca com isso.Com o animal feliz e distraído, pegou o controle remoto e ligou a música.

Observou a estação que estava tocando para que pudesse voltar a ajustar o rádio antes que os Kilderbrand voltassem para casa. Saiu do jazz e foi para o pop contemporâneo.

Cuidar de casas era um trabalho que lhe garantia abrigo, diversão e até mesmo aventura. Mas era a escrita que pagava suas contas. Ser escritora freelancer — e garçonete — fora o que a sustentara, aos trancos e barrancos, nos primeiros dois anos em Nova York. Lila só passara a ter tempo de verda-de para escrever seu livro depois de começar a cuidar de casas, inicialmente como favor para amigos, depois para amigos de amigos.

Então, coincidência ou sorte a fizeram cuidar da casa de um editor que se interessara pela sua história. Seu primeiro romance, Lua crescente, vendera razoavelmente bem. Não era um best-seller estrondoso, mas fizera sucesso e lhe rendera fãs na faixa etária entre 14 e 18 anos, como queria. O segundo seria lançado em outubro, e cruzava os dedos para tudo dar certo.

Mas, no momento, precisava se concentrar no terceiro volume da série.Prendeu os longos cabelos castanhos rapidamente, girando, levantando e

juntando os fios com uma grande presilha de casco de tartaruga. Enquanto Thomas perseguia a bola com entusiasmo, Lila se acomodou com a taça de vinho, um copo de água gelada e a música que imaginava que sua personagem principal, Kaylee, escutaria.

Como aluna do segundo ano do ensino médio, ela lidava com os altos e baixos da sua idade — os romances, os deveres de casa, as garotas maldosas, os valentões, a diplomacia, as decepções e as vitórias que cercavam os breves e intensos anos de escola.

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Era uma caminhada difícil, especialmente para uma novata — como ela fora no primeiro livro. E, é claro, o fato da família de Kaylee ser de licantropos só tornava as coisas mais complicadas.

Quando se é uma garota lobisomem, não é fácil, durante a lua cheia, ter-minar as tarefas ou ir ao baile da escola.

Agora, no terceiro livro, Kaylee e sua família estavam em guerra com uma matilha rival, que caçava humanos. Talvez fosse um pouco sanguinário de-mais para leitores mais jovens, pensava Lila, mas a história tinha que chegar naquele ponto. Era assim que a planejara.

Ela continuou da parte em que Kaylee lidava com a traição do garoto que ela pensava amar, um trabalho atrasado sobre as Guerras Napoleônicas e o fato de que sua bela e loura inimiga a trancara no laboratório de ciências.

A lua nasceria em vinte minutos — mais ou menos no mesmo momento em que o grupo de estudos de química chegaria para a reunião.

Precisava encontrar uma saída antes de se transformar.Lila mergulhou naquele mundo, feliz em se transformar em Kaylee e sentir

o medo de ser exposta, a dor de um coração partido, a raiva direcionada a Sasha, líder de torcida, rainha do baile e devoradora de homens (literalmente).

Quando finalmente permitiu que Kaylee escapasse, bem em cima da hora, cortesia de uma bomba de fumaça que chamou a atenção do vice-diretor, outra pedra no sapato da garota, e depois de lidar com a bronca e a detenção subsequentes, precisando correr para casa enquanto a transformação come-çava, Lila havia trabalhado por três horas inteiras.

Satisfeita consigo mesma, libertou-se da narrativa e olhou ao redor.Thomas, cansado de brincar, estava aconchegado na cadeira ao seu lado,

e as luzes da cidade reluziam e brilhavam do outro lado da janela.Ela serviu o jantar do gato exatamente da forma como fora instruída.

Enquanto o animal comia, pegou seu canivete e usou a chave de fenda para apertar alguns parafusos na despensa.

Parafusos soltos, sob seu ponto de vista, eram o primeiro passo para o desastre. Tanto em pessoas quanto em objetos.

Notou uma fruteira de metal de vários andares ainda na caixa. Provavel-mente servia para guardar batatas ou cebolas. Lila se agachou, leu a descrição e a garantia de que a instalação era fácil. Pensou em mandar um e-mail para Macey depois, perguntando se queria que a montasse.

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Seria um projeto rápido e divertido.Serviu-se uma segunda taça de vinho e fez um prato com as frutas, os

queijos e biscoitos para um jantar tardio. Sentada de pernas cruzadas na sala de jantar, com Thomas no colo, comeu enquanto verificava e-mails, respondia mensagens e analisava seu blog — pensava em um post novo.

— Está chegando a hora de dormir, Thomas.O gato apenas bocejou enquanto ela pegava o controle remoto, desligava

a música e o tirava do colo para cuidar da louça e aproveitar o silêncio da primeira noite em um lugar novo.

Depois de vestir uma calça de algodão e um top, verificou o sistema de segurança e fez uma nova visita aos vizinhos com os binóculos.

Parecia que a Lourinha havia saído afinal de contas, deixando uma luz fraca acesa na sala de estar. Os dois casais também não estavam mais lá. Talvez tivessem ido jantar ou a algum espetáculo, pensou.

O menino já estaria dormindo, de preferência com o cachorrinho en-roscado a ele. Lila viu o brilho de uma televisão ligada, imaginou os pais relaxando juntos.

Outra janela mostrava uma festa. Uma multidão de pessoas — bem--vestidas e com roupas bonitas — conversava e se divertia, com copos ou pratos pequenos nas mãos.

Passou um tempo observando, imaginando conversas, incluindo uma sus-surrada entre uma morena em um vestido vermelho curto e o deus bronzeado no terno cinza-claro, que, na sua imaginação, estavam tendo um caso tórrido bem debaixo dos narizes da esposa sofrida dele e do marido alienado dela.

Analisou as janelas novamente. Parou, abaixou os binóculos por um instante, depois olhou mais uma vez.

Não, o cara fortão do... décimo segundo andar não estava completamente pelado. Usava um fio-dental enquanto dançava mexendo a virilha, girando e se agachando.

O sujeito fazia um belo exercício ao repetir os gestos ou adicionar movi-mentos, observou ela.

Era obviamente um ator/dançarino fazendo um bico como stripper até conseguir seu momento de fama na Broadway.

Gostou desse vizinho. Muito.

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O espetáculo das janelas a manteve entretida por meia hora antes de de-cidir ir para a cama — e, como era esperado, Thomas se juntou a ela. Ligou a televisão para o som lhe fazer companhia, deixando numa reprise de um episódio de NCIS — Unidade de elite o qual era capaz, literalmente, de recitar o diálogo de memória antes das personagens. Sentindo-se reconfortada com isso, pegou o iPad, encontrou o livro de suspense que começara a ler no voo vindo de Roma, e se aconchegou.

Durante a semana seguinte, ela criou uma rotina. Thomas a acordava às sete em ponto, mais confiável do que qualquer despertador, implorando aos mios pelo café da manhã.

Ela alimentava o gato, passava o café, molhava as plantas dentro e fora do apartamento e comia um pouco enquanto visitava os vizinhos.

A Lourinha e o namorado com quem morava — não pareciam ser casados — brigavam bastante. Ela apresentava uma tendência a arremessar objetos quebráveis. O Sr. Espertinho, um colírio para os olhos, tinha bons reflexos, além de ser muito charmoso. As discussões, praticamente diárias, terminavam em sedução ou selvagens explosões de paixão.

Lila não achava que eles combinavam. Por enquanto. Com a mulher arre-messando pratos ou roupas e o homem se esquivando, sorrindo e seduzindo, não tinha a impressão de que ficariam juntos por muito tempo.

O menino e o cachorrinho continuavam seu caso de amor, enquanto a mãe, o pai ou a babá limpavam, pacientemente, pequenos acidentes. Os pais saíam juntos todas as manhãs, vestidos em roupas que indicavam carreiras poderosas.

Os Martíni, como Lila os batizara, raramente usavam o pequeno terraço. A mulher com certeza era uma socialite, saída todos os dias no fim da manhã e voltava à tardinha, geralmente com uma sacola de compras.

Os Festeiros raramente passavam a noite em casa, pareciam desfrutar de um estilo de vida frenético.

E o Gostosão praticava seu rebolado regularmente — para a diversão descarada de Lila.

Ela gostava do show e das histórias que criava todas as manhãs. Trabalhava à tarde, fazia um intervalo para brincar com o gato antes de se vestir e sair para comprar algo para o jantar e para passear pela vizinhança.

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Mandava fotos de um Thomas feliz para os clientes, colhia tomates, sepa-rava a correspondência, bolava uma luta feroz entre licantropos, atualizava o blog. E montou a fruteira na despensa.

No primeiro dia da segunda semana, comprou uma boa garrafa de Barolo, aumentou a coleção de queijos chiques e adicionou cupcakes em miniatura de uma padaria maravilhosa das redondezas.

Logo depois das sete da noite, abriu a porta para a festa que era sua melhor amiga.

— Aí está você. — Julie, com uma garrafa de vinho em uma mão e um cheiroso buquê de lírios na outra, conseguiu dar um jeito de abraçá-la.

Com mais de um metro e oitenta de curvas e uma cascata de cabelos ver-melhos, Julie Bryant era o oposto de Lila, com sua altura mediana, magreza e cabelos castanhos lisos.

— Você pegou uma cor em Roma. Meu Deus, até mesmo se eu usasse protetor fator 500 acabaria parecendo uma lagosta depois de enfrentar o sol italiano. Você está ótima.

— E quem não estaria depois de duas semanas em Roma? Só as massas já fazem valer a pena. Eu disse que compraria o vinho — adicionou Lila quando a amiga colocou a garrafa em suas mãos.

— Agora temos dois. E seja bem-vinda de volta.— Obrigada. — Lila aceitou as flores.— Uau, que lugar maravilhoso. É enorme, e a vista é linda. O que os

donos fazem?— Nasceram ricos.— Ah, quisera eu ser assim.— Vamos para a cozinha para eu guardar as flores, e depois te mostro a

casa. O marido trabalha no mercado financeiro, e não entendo nada sobre isso. Mas ama o trabalho e prefere jogar tênis a golfe. A esposa faz alguns trabalhos de decoração, e dá para ver que é talentosa só pela aparência do apartamento. Está pensando em fazer disso uma profissão, mas também estão pensando em ter filhos daqui a pouco, então talvez não seja a melhor hora para começar um negócio próprio.

— São clientes novos, não são? E ainda assim contaram coisas tão pessoais?— O que posso dizer? As pessoas gostam de contar as coisas para mim.

Este aqui é Thomas.

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Julie se agachou para cumprimentar o gato.— Que gracinha!— É um fofo. — Os olhos castanho-escuros de Lila se tornaram carinhosos

enquanto Julie e o gato se tornavam amigos. — Bichos de estimação geral-mente não são um ponto positivo do trabalho, mas Thomas é.

Ela selecionou um rato motorizado da cesta de brinquedos do animal, divertindo-se com a risada feliz de Julie quando Thomas o atacou.

— Ah, é um matador. — Levantando-se, a amiga se apoiou na bancada cinza enquanto Lila arrumava os lírios em um vaso de vidro transparente. — Foi maravilhoso ir a Roma?

— Muito.— Encontrou algum gato italiano para fazer sexo selvagem?— Infelizmente, não, mas acho que o dono do mercadinho local se apai-

xonou por mim. O homem tinha uns 80 anos, mais ou menos. Chamava-me de bella donna e me dava uns pêssegos deliciosos.

— Não é tão bom quanto sexo, mas melhor do que nada. Não acredito que não nos encontramos quando você chegou.

— Foi bom passar uma noite na sua casa, no intervalo entre os trabalhos.— Sabe que sempre pode ficar lá. Só queria ter estado também.— Como foi o casamento?— Com certeza vou precisar de mais vinho antes de começar a falar sobre

A Semana Infernal do Casamento nos Hamptons da Prima Melly e por que me aposentei da carreira de madrinha.

— Eu me diverti com suas mensagens de texto. A minha favorita foi a que dizia “A Vaca Louca da Noiva resolveu que as pétalas de rosa não são rosa o sufi-ciente. Teve uma crise histérica. Devo destruir a VLN pelo bem da humanidade”.

— Quase fiz mesmo isso. “Ah, não! Lágrimas, vertigens, desespero. As pétalas são rosa-rosa. Deviam ser rosa-flor. Julie! Dê um jeito no problema, Julie!” Quase dei um jeito nela.

— Ela realmente encomendou meia tonelada de pétalas?— Praticamente.— Você deveria tê-la enterrado nelas. “Noiva morre sufocada por pétalas

de rosa.” Todo mundo pensaria que foi um acidente irônico, porém trágico.

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— Queria ter tido essa ideia. Realmente senti sua falta. Fico mais feliz quan-do você está trabalhando em Nova York e posso vir conhecer a casa e fofocar.

Lila estudou a amiga enquanto abria o vinho.— Você deveria vir comigo um dia desses, quando eu for para algum

lugar maravilhoso.— Eu sei, você sempre diz isso. — Julie começou a caminhar pela cozinha

enquanto falava. — Mas acho que me sentiria estranha, dormindo na... Ah, meu Deus, olha esse jogo de pratos! Com certeza é vintage, que lindo!

— É da bisavó dela. E, se não se sente estranha quando vem me visitar, não deveria achar esquisito ficar mais tempo por aqui. Você se hospeda em hotéis.

— Mas não são a casa de ninguém.— São para algumas pessoas. Como Eloise e a Babá.Julie deu um puxão no longo rabo de cavalo de Lila.— Eloise e a Babá são ficcionais.— Pessoas ficcionais também são pessoas; caso contrário, por que nos

importaríamos com o que acontece com elas? Pronto, vamos tomar isso no terraço. Espere até ver o jardim de Macey. A família dela é francesa, tem vinhedos. — Lila segurou a bandeja com a facilidade da garçonete que um dia fora. — Os dois se conheceram cinco anos atrás, quando ela estava lá vi-sitando os avós, como estão fazendo agora, e ele foi visitar a vinícola durante as férias. Disseram que foi amor à primeira vista.

— É o melhor tipo de amor. À primeira vista.— Eu diria que é ficcional, mas isso acabaria com meu argumento anterior.

— Lila foi guiando o caminho até o terraço. — Acaba que os dois moravam em Nova York. Ele ligou para ela, e eles saíram. Dezoito meses depois, esta-vam se casando.

— Parece um conto de fadas.— Que eu também diria que são ficcionais, mas adoro contos de fadas. E

os dois realmente parecem felizes. E, como você vai ver, ela tem mesmo jeito com plantas.

Julie cutucou os binóculos enquanto passavam pela porta.— Continua bisbilhotando?A boca larga, com o lábio superior mais cheio, fez um muxoxo.— Não bisbilhoto. Observo. Se as pessoas não querem que os outros olhem,

deveriam fechar as cortinas.

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— Aham. Uau. — A amiga colocou as mãos no quadril enquanto analisava o terraço. — Você tem mesmo razão sobre ela ter jeito com plantas.

A vegetação abundante, colorida e florescente ocupava vasos simples de cerâmica, tornando o espaço urbano um oásis criativo.

— Aquilo são tomates?— E são maravilhosos. As ervas? Foi ela quem plantou as sementes.— É assim que se planta ervas?— É assim que Macey planta. Colhi algumas coisas, já que disseram que eu

podia e devia fazer isso. Fiz uma salada enorme e linda para o jantar de ontem. Comi aqui fora, com uma taça de vinho, e assisti ao espetáculo das janelas.

— Sua vida é muito estranha. Conte sobre os vizinhos.Lila serviu a bebida, esticou a mão para dentro do apartamento e pegou

os binóculos — só para garantir.— Há uma família no décimo andar. Os pais acabaram de comprar um

cachorrinho para o filho. O menino e o filhote são uma graça, muito fofos. É amor de verdade e é divertido de assistir. Tem uma loura bonita no décimo quarto que mora com um cara muito gostoso. Talvez sejam modelos. Ele está sempre indo e vindo, e eles têm conversas muito intensas, discutem feito loucos, jogando pratos pelo ar, e depois fazem uma maratona de sexo.

— Você assiste aos dois transando? Lila, passe para cá esses binóculos.— Não! — Rindo, ela negou com a cabeça. — Não fico vendo os dois

transando. Mas sei o que está acontecendo. Conversam, brigam, andam de um lado para o outro enquanto ela gesticula muito, então se agarram e começam a tirar as roupas. No quarto, na sala. O apartamento não tem um terraço, mas o quarto tem uma varandinha. Uma vez, os dois só saíram dela quando estavam praticamente pelados. E, falando em pelado, tem um cara no décimo segundo andar. Espere um pouco, talvez ele esteja em casa. — Lila pegou mesmo os binóculos e verificou. — Isso aí, meu bem. Dê uma olhada. Décimo segundo andar, terceira janela à esquerda.

Tendo a curiosidade despertada, Julie pegou os binóculos, finalmente encontrou a janela.

— Minha nossa. Hummm, hummm. O homem sabe rebolar. Deveríamos ligar para ele, convidá-lo para uma visita.

— Não acho que somos o tipo dele.

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— Entre nós duas, somos o tipo de todo homem.— Gay, Julie.— Não dá para ter certeza de tão longe. — A amiga baixou os binóculos,

franziu a testa, então os levantou novamente para dar mais uma olhada. — O seu gaydar não consegue pular de um prédio para o outro, como o Super-Homem.

— O sujeito está usando fio-dental. Isso já basta.— É para facilitar os movimentos.— Fio-dental — repetiu Lila.— Ele dança todas as noites?— Praticamente. Acho que é um ator procurando trabalhos, fazendo bico

como stripper até ficar famoso.— Ele tem um corpo maravilhoso. David também tinha.— Tinha?Julie baixou os binóculos, gesticulou que aquilo era coisa do passado.— Quando?— Logo depois da Semana Infernal do Casamento nos Hamptons. Era inevi-

tável, mas não queria terminar durante o casamento, que já foi ruim o suficiente.— Sinto muito, querida.— Obrigada, mas, de qualquer jeito, você não gostava dele.— Eu era indiferente.— Dá na mesma. E, apesar dele ser bonito de se olhar, estava grudento

demais. Aonde você vai, quanto tempo vai demorar, blá-blá-blá. Sempre me mandando mensagens de texto ou deixando recados no telefone. Se eu tives-se que resolver alguma coisa do trabalho ou quisesse sair com você ou com algum outro amigo, ele ficava chateado ou emburrado. Meu Deus, era como ser casada, só que do pior jeito possível. Nada contra casamentos, já estive em um. Mas só havia alguns meses que estávamos saindo, e ele começou a forçar a barra para ir morar comigo. Não quero morar com ninguém.

— Você não quer morar com a pessoa errada — corrigiu Lila.— Ainda não estou pronta para isso. É cedo demais depois de Maxim.— Já faz cinco anos.Julie balançou a cabeça, afagando a mão de Lila.— É cedo demais. Ainda sinto raiva daquele canalha traidor. Acho que

tenho que achar um pouco de graça na situação antes. Odeio términos —

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adicionou ela. — Ou você se sente triste, porque levou um pé na bunda, ou má, porque deu um pé na bunda de alguém.

— Acho que nunca dei um pé na bunda de alguém, mas vou acreditar na sua palavra.

— É porque você sempre faz com que pensem que a ideia foi deles. Além do mais, nunca deixa as coisas ficarem sérias o suficiente para merecer o termo “pé na bunda”.

Lila apenas sorriu.— É cedo demais depois de Maxim — repetiu ela, fazendo a amiga rir.

— Podemos pedir comida. Tem um restaurante grego que os clientes reco-mendaram. Ainda não experimentei.

— Contanto que tenha baklava de sobremesa.— Comprei cupcakes.— Melhor ainda. Agora tenho tudo que poderia querer. Um apartamentão,

um bom vinho, comida grega a caminho, minha melhor amiga. E um homem sensual... ah, e suado — adicionou Julie enquanto levantava novamente os binóculos. — Um homem sensual e suado, de orientação sexual não confir-mada, dançando.

— Gay — repetiu Lila, levantando-se para buscar o cardápio do restaurante.

t t t t

Elas beberam a maior parte do vinho enquanto comiam kebabs de cor-deiro — e então devoraram os cupcakes por volta de meia-noite. Talvez não tivesse sido a melhor combinação, decidiu Lila, considerando seu estômago levemente embrulhado, mas fora a coisa certa a se fazer por uma amiga que estava mais chateada do que admitia com o término do namoro.

A questão não era o cara, pensou ela enquanto verificava o sistema de segurança, mas o ato em si, e todas as dúvidas que depois ocupavam a mente e o coração.

Será que o problema sou eu? Por que não consegui fazer com que desse certo? Quem vai jantar comigo agora?

Quando se vive em uma cultura de casais, fazer as coisas sozinha pode causar um senso de inferioridade.

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Page 16: Tradução Carolina Simmer - Grupo Editorial Record · Alguns andares acima, dois casais estavam sentados em uma sala de es-tar — as paredes eram cobertas com obras de arte,

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— Não causa em mim — garantiu Lila para o gato, que se enrolara na própria cama em algum momento entre o último kebab e o primeiro cupcake. — Gosto de ser solteira. Isso significa que posso ir aonde quero, quando quero e aceitar qualquer trabalho que me apeteça. Estou vendo o mundo, Thomas, e, tudo bem, converso com gatos, mas também gosto disso.

Ainda assim, queria ter convencido Julie a passar a noite ali. Não só pela companhia, mas para ajudar com a ressaca que a amiga com certeza teria na manhã seguinte.

Cupcakes em miniatura eram obra do demônio, decidiu enquanto se aprontava para a cama. Tão bonitinhos e pequenos que, ah, nem parece que se está comendo alguma coisa, mas, quando você se dá conta, já comeu meia dúzia.

Agora, agitada com tanto álcool e açúcar, não conseguiria dormir nunca.Pegou os binóculos e notou que ainda havia algumas luzes acesas. Não

era a única acordada às... Credo, uma e quarenta da manhã.O Cara Pelado e Suado permanecia de pé, na companhia de um homem

igualmente gostoso. Convencida, disse a si mesma para se lembrar de contar a Julie que seu gaydar era exatamente como o Super-Homem.

O casal festeiro ainda não fora dormir; na verdade, pareciam ter acabado de chegar. Outro evento glamoroso, pela roupa que usavam. Lila admirou o vestido laranja brilhante da mulher e desejou poder ver seus sapatos. Então foi recompensada quando a vizinha esticou um braço para baixo, se equi-librando no ombro do marido, e tirou uma sandália dourada de tiras, com saltos enormes e sola vermelha.

Humm, Louboutins.Lila desceu.A Lourinha também não estava dormindo. Usava novamente um vestido

apertado e curto preto, com os cabelos saindo de um coque solto. Saíra para se divertir, especulou Lila, mas a noite não fora muito boa.

Está chorando, percebeu ela, analisando a maneira como a mulher es-fregava o rosto enquanto tagarelava. Falava rápido. Com urgência. Era uma briga intensa com o namorado.

E onde estava ele?

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Mas, mesmo mudando de ângulo, Lila não conseguia vê-lo.Termine logo com esse cara, aconselhou ela. Não deveria estar com uma

pessoa que lhe deixa tão infeliz. Você é linda, aposto que é inteligente, e com certeza merece mais do que...

Lila deu um pulo quando a cabeça da mulher foi para trás, sendo golpeada.— Ah, meu Deus. Ele bateu na Lourinha. Seu canalha. Não...Ela mesma soltou um grito quando a mulher tentou cobrir o rosto,

encolhendo-se para trás ao receber outro tapa.A mulher chorava, implorava.Lila saltou para a mesa de cabeceira e agarrou seu telefone, voltando para

o lugar.Não conseguia vê-lo, não era capaz de distinguir sua forma na luz fraca,

mas agora a mulher estava encurralada contra a janela.— Chega, chega — murmurou Lila, preparando-se para ligar para a polícia.Então, a cena pareceu congelar.O vidro quebrou. A mulher explodiu para fora. Com os braços esticados,

as pernas se debatendo, os cabelos caindo como asas douradas, ela despencou do décimo quarto andar, caindo brutalmente à calçada.

— Ah, meu Deus, meu Deus, meu Deus. — Tremendo, Lila se atrapalhou com o telefone.

— Polícia, em que posso ajudar?— Ele a empurrou. Ele a empurrou, e ela caiu da janela.— Senhora...— Aqui é Lila Emerson. Acabei de testemunhar um assassinato. Uma mu-

lher foi empurrada de uma janela no décimo quarto andar. Estou na... — Ela levou um momento antes de se lembrar do endereço dos Kilderbrand. — É o prédio do outro lado da rua. Ah, ao oeste. Eu acho. Sinto muito, não consigo pensar. Ela está morta. Ela só pode estar morta.

— Estou enviando uma viatura agora mesmo. Pode continuar na linha?— Sim. Sim. Posso.Tremendo, Lila olhou para fora novamente, mas, agora, a sala além da

janela quebrada estava escura.

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